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ALMAS DIVIDIDAS / Toby Clements
ALMAS DIVIDIDAS / Toby Clements

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Em julho do ano de 1465 – apenas doze meses depois que o grandioso Castelo de Bamburgh caiu nas mãos dos seus inimigos yorquistas – o rei Henrique VI foi capturado quando se escondia em uma floresta em Yorkshire e levado para a Torre de Londres. Com isso, supunha-se que qualquer esperança remanescente à Casa de Lancaster perdera-se para sempre.
Mas no momento de seu triunfo, o rei yorquista Eduardo IV revelou em si mesmo um defeito humano simples e fatal: uma fraqueza por um rosto bonito. Pois no mesmo ano, a caminho do norte para ver por si próprio a disposição de seu povo, ele conheceu e se casou – em circunstâncias tensas e secretas – com uma mulher chamada Elizabeth Grey, uma plebeia, mãe de dois filhos e viúva de um cavaleiro morto a serviço do velho rei.
Não se tratava apenas do fato de que, com este casamento, o rei Eduardo desfizera anos de negociação diplomática conduzida com o rei francês, em seu nome, por seu principal aliado, o conde de Warwick – a quem muitos acreditavam que ele devia seu trono em primeira instância. O problema é que essa Elizabeth, nascida Woodville, de uma grande família de irmãos ambiciosos, com suas necessidades de cargos na corte e de casamentos de conveniência, iria colocá-los – e a seu novo cunhado, o rei Eduardo – em conflito com o mesmo conde de Warwick e as altas ambições que ele alimentava para sua própria dinastia.
Assim, agora, quatro anos depois, enquanto para outros rostos o rei Eduardo e o conde são apenas sorrisos, circulam rumores de que os homens próximos a cada um falam uma língua diferente e nenhum homem vai à corte sozinho ou desarmado. Cartas têm voado para os grandes intrometidos de além-mar, o rei da França e o duque de Borgonha, para avisá-los de que o sol já não brilha tanto na Casa de York quanto brilhou um dia e que, por outro lado, as perspectivas para a Casa de Lancaster não são tão pequenas quanto pareciam, e que poderia haver, de fato, afinal, uma chance para o rei Henrique e sua voluntariosa rainha, que espera, arquitetando, do outro lado do mar, na França...

 

 


 

 


PARTE UM


Depois da Páscoa, 1469


1


Na semana após a Páscoa, no meio de um inesperado período de tempo ameno, Thomas Everingham, John Stump e Jack Bradford começaram a construir uma chaminé no salão da propriedade de sir John Fakenham em Marton, no condado de Lincoln. Fizeram-na com blocos de pedra clara que sir John havia comprado no ano anterior de um mineiro em Lancaster e eles levaram uma semana para construí-la, da base ao topo, inclusive com uma cruz de St. Andrew que Thomas esculpiu na face da chaminé como um feitiço contra bruxas voando pelo duto abaixo, e durante todo este tempo não choveu nem uma vez.

– Estão vendo? – perguntou Jack. – Eu disse a vocês que éramos abençoados.

Mas na semana que se seguiu, sir John Fakenham ficou de cama e na semana seguinte, morreu, e eles passaram a lamentar suas palavras.

– Por Nossa Senhora, você é um grande idiota, Jack – John Stump disse.

No entanto, sir John desistiu de sua alma da maneira como teria desejado, como todos eles teriam desejado: deitado em sua própria cama, um círio aceso nas mãos para guiar sua alma para fora do corpo, um padre rezando baixinho à sua cabeceira. Tinha sua mulher de um lado, seus amigos do outro e, a seus pés, um cachorrinho talbot que ganhara há pouco tempo, que até o momento da morte de seu dono, estava feliz com um pedaço de chifre de veado.

O cãozinho parou de roer e começou a uivar quando sir John partiu, e assim eles o tocaram para fora do quarto e escada abaixo, então o restante da família e da criadagem subiu e posicionou-se em volta da cama como uma cortina de carne e osso para proteger das correntes de ar dos charcos o corpo do velho senhor, assim permanecendo a noite inteira, rezando por sua alma, com lágrimas nos olhos. Em seu funeral, alguns dias mais tarde, o sino da igreja tocou da aurora ao pôr do sol, e tantas velas foram acesas dentro do recinto que, ao final, o padre teve que retirar as molduras das janelas para deixar o cheiro de sebo se dissipar.

– Bem – John Stump diz no caminho de volta da igreja. – É isso. É melhor juntar nossas coisas e botar o pé na estrada.

Faz-se um momento de silêncio confuso, quebrado apenas pelo som do sino ainda batendo na torre da igreja atrás deles e seus passos na terra escura e úmida da trilha.

– O que quer dizer? – Thomas pergunta.

– Bem, não podemos ficar aqui, podemos? – John diz, gesticulando com sua metade de braço para os campos à volta. – Não agora, depois que sir John se foi. Isabella vai precisar de um novo marido, não vai? Alguém para mantê-la. Alguém que não vai nos querer por perto.

– Ela pode não precisar se casar – Jack diz. – Seus filhos. Eles não podem ficar?

John Stump cospe.

– Não – ele diz. – Eles não vão ficar por muito tempo. Estão aqui para estabelecer um preço para o lugar, vocês vão ver. E de qualquer modo, mesmo que ficassem, vocês iam querer que fossem seus senhores? Iriam confiar neles?

Jack hesita.

– Bem... – ele começa a dizer.

– Não – John interrompe. – Então, aqui estamos nós. Já tivemos nosso tempo. Cinco anos. É tudo que um homem pode esperar antes que algum idiota com um título venha para enviá-lo para onde ele por si mesmo jamais pensaria em ir.

Thomas e Jack entreolham-se. John Stump tornara-se um homenzinho intragável, como se já não apreciasse mais o período extra de anos comprado à custa de seu braço esquerdo, mas hoje, com tudo o que está acontecendo, suas palavras fazem um calafrio percorrer o corpo de Thomas, porque talvez, afinal, ele possa estar certo. Talvez cinco anos de paz sejam tudo o que um homem possa razoavelmente esperar.

Eles continuam a caminhar em um silêncio pensativo e Thomas não pode deixar de levantar a cabeça e olhar à volta, ao que John diz que eles logo serão forçados a deixar: os sulcos arados da lavoura, forrados com o verde-claro das mudas de ervilha; as lagoas em que gordas trutas marrons se agitam, formando círculos que se espalham lentamente; os chiqueiros onde montículos de leitõezinhos rosados sugam as tetas de suas mães; as duas parelhas de bois curvando seus pescoços musculosos para pastar na exuberante grama de inverno sob os cascos; e mais além, o volume sólido da mansão à frente, com sua chaminé de pedra cinzenta agora deixando escapar um cachecol de fumaça clara para o céu, como o estandarte de batalha de algum lorde.

Mais além ainda, aninhada entre os choupos, está sua própria casa, construída durante esses últimos três anos, peça por peça, reunidas e moldadas para se encaixarem, o chão de terra batida, feito de barro e leite azedo, uma lareira de pedra no meio do aposento, banquetas que ele consertou para ficarem ao redor, uma mesa de tábua que ele mesmo cortou e na qual come com sua mulher e o filho.

E a cada passo, Thomas sente a fatia grossa de couro curado sob sua sola, o aperto suave da meia-calça castanho-avermelhada de lã finamente tecida que aquece suas pernas e a sensação confortável de seu gibão de feltro. Ele está consciente do peso de seu casaco grosso, com sua bolsa presa ao cinto em volta da cintura e do seu gorro de lã penteada forrado com um bom tecido de linho. Ele pensa em como era antes, o que faziam e como viviam, e compreende que fará qualquer coisa – qualquer coisa – para evitar voltar à mesma situação.

Por fim, Jack quebra o silêncio com uma pergunta.

– O que está querendo dizer, nos mandar para algum lugar onde nem pensaríamos em ir?

– Para o norte, aposto. É onde tudo começa.

– O que começa?

– A luta – John diz, imitando preparar um arco e lançar uma flecha da melhor maneira que pode com sua metade de braço.

– Mas tudo isso acabou – Thomas lhe diz. – O rei Henrique está na Torre, não é? Preso a sete chaves e sob a guarda de Cristo! Seus apoiadores não estão todos mortos? Nós vimos a maioria ser morta com nossos próprios olhos.

– Mas há o filho, não é? – John retruca. – E ele? Ainda está vivo.

– Mas muito mal – Thomas diz. – E ele está na França com a mãe, sem nem duas moedas para esfregar uma contra a outra.

John dá uma risadinha irônica.

– Você ouviu o que o velho vendedor de agulhas disse – ele continua. – Como todo mundo no reino está pegando em armas por uma coisa ou outra, todo lorde está reunindo homens e distribuindo elmos e alabardas e tudo o mais? E por quê?

Thomas suspira.

– Por Deus, eu não sei – ele diz. – Pensei que ele estivesse contando histórias para que você lhe servisse mais cerveja. E de qualquer modo, ainda que estejam, e daí? O que isso tem a ver conosco? Não temos nenhum motivo para nos juntarmos a eles.

John para e olha para ele.

– E quanto a Edmund Riven? – ele pergunta. – Ainda está vivo, também, não está? E não foi ele a razão de você entrar na guerra, para começar? Para tirá-lo, e a seu pai, de... daquele castelo? De Cornford?

Thomas olha fixamente para John Stump em silêncio. Ele jamais teria ousado mencionar o nome de Edmund Riven enquanto sir John estivesse vivo. O nome ficava subentendido, como o de uma criança morta, nunca totalmente esquecido, por mais brilhante que fosse o dia, mas nunca, jamais, mencionado. Ouvi-lo agora, dito assim de forma banal, faz o coração de Thomas dar um salto e ele olha à volta como se alguma regra monástica estivesse sendo transgredida.

– Não fale dele, John – Thomas diz. – Não há nenhum benefício em pensar nele ou em Cornford, e além do mais...

Sua voz definha. Além do mais o quê? Ele não sabe, apenas que se lembra de ter matado o pai de Edmund Riven e sente que talvez já tenha feito o suficiente para acertar as contas com aquela família.

– E então, John? – Jack insiste. – O que sugere?

John obviamente já dedicou algum pensamento próprio à questão.

– Deveríamos ir para a França – propõe. – Atravessar o Canal da Mancha. Poderíamos nos unir ao duque de Borgonha. Dizem que ele está precisando de arqueiros. Verdadeiros arqueiros ingleses. Paga um xelim por dia. Imaginem.

Jack ri.

– John – ele diz. – Você mal consegue manejar uma besta.

– Sou um atirador melhor com só uma das mãos do que você jamais será com duas – John lhe diz.

Thomas interrompe.

– Mas, John – ele diz. – Você quer ir para a França? Quer ir para a França e lutar?

– Por um xelim a cada maldito dia? Eu iria a qualquer lugar e lutaria contra qualquer um.

– Já se esqueceu de como é a luta? – Thomas pergunta. – Por Cristo! Olhe para nós!

Ele indica o lado de sua cabeça onde seus cabelos nasceram brancos sobre uma antiga depressão, resultado de um golpe do qual – pela graça de Deus – ele não consegue se lembrar. Indica o toco de braço de John Stump, que Katherine fora obrigada a amputar para impedir que a podridão negra se espalhasse depois que ele foi ferido em uma batalha e, em seguida, indica a perna de Jack, que ainda hoje é torta e arrastada, por causa de uma flecha que quase o matou em Hedgeley Moor.

– Você tem orgulho, Thomas – diz John, como se isso nada tivesse a ver com a conversa. – E com razão. Olhe para este lugar. Você fez tudo isso com seu trabalho duro. Fez uma vida aqui, um lar, mas não é seu, é? Não lhe pertence. Pertence a outra pessoa e agora eles querem de volta. Portanto, acabou, nosso tempo aqui, o seu tempo aqui, e agora você, eu, ele, até mesmo ela, todos nós temos que prover a nós mesmos.

Thomas sacode a cabeça. Ele se recusa a acreditar no que está ouvindo.

– Não – ele diz, mas Jack já se virou e continua a caminhar, pensativo e silencioso, como se tivesse se lembrado de que tem muito a fazer, e John está olhando para Thomas como se dissesse “Você vai ver”. Agora Thomas não quer mais estar com ele, então para, a fim de deixá-lo seguir Jack pela trilha até a mansão, e ele se vira, tendo que proteger os olhos do sol baixo da primavera, a fim de poder ver os outros virem da igreja, subindo entre os limites verdes da trilha, caminhando no passo do mais lento do grupo.

Primeiro vem Isabella, a viúva de sir John, ainda bonita, apesar dos olhos embaciados, o rosto de aparência frágil, abatido pela tristeza, a pele como papel antigo que se desgastou pelo toque de tantos polegares que a luz do sol parece quase atravessá-lo, e quando ela finalmente consegue enxergá-lo, ela sorri, por vê-lo ali parado, esperando com seu cachorro, um lembrete reconfortante de felicidade recente, talvez. Thomas afasta-se para o lado e faz um cumprimento com a cabeça quando ela passa, e seu cachorro, um lurcher, parece também inclinar a cabeça, e Isabella sorri disso também.

Ele tenta ler sua expressão, detectar uma migalha de otimismo, mas não há nada ali. É cedo demais para ela estar pensando em tais coisas. Não há manchas de lágrimas em suas faces e Thomas lembra-se de que sir John é... o quê? O terceiro ou quarto marido que ela enterrou? Então, talvez, ele pensa, ela já esteja acostumada com isso a esta altura. Mas, por outro lado, talvez as coisas não funcionem bem assim, não é? Talvez tais tristezas sejam cumulativas e aumentem com o tempo, como as marcas de chicotadas?

Em seguida, vem sua irmã, também viúva, embora apenas duas vezes, com a mesma constituição física de Isabella, embora caminhe com passadas pesadas, pés afastados e para fora. Mandaram buscá-la quando se tornou óbvio que não havia nada que Katherine pudesse fazer por sir John e que só lhe restava pouco tempo de vida. Ela vem acompanhada por duas criadas, provavelmente irmãs também, com cabelos cor de milho sob os gorros, cada qual tão volumosa quanto uma novilha. Jack diz que elas são descendentes dos vikings e Thomas acredita nele.

Atrás delas vêm mais três moças, parentes distantes de Isabella. Thomas não sabe ao certo a posição dos parentes. São mulheres bem-vestidas, ele pode ver isso, com vestidos de seda e sapatos com solado alto de madeira para protegê-las da lama, cada qual casada ou noiva de alguém ocupado demais para estar ali para o funeral de sir John, mas que virão para sua Missa de Mês, talvez, especialmente agora que se sabe que é provável que o camareiro do rei compareça. Cada mulher é seguida por duas criadas próprias e, quando passam em grupo, as senhoras analisam Thomas por baixo das pestanas abaixadas e ele se sente corar sob o escrutínio.

Depois delas, vêm as criadas pessoais de Isabella, três jovens que trabalham dentro da casa, inclusive Nettie, casada com Jack, e que carrega sua barriga protuberante diante dela como o arco da proa de um navio de mercador. É uma jovem bonita, de longe a mais bonita das três, e Jack tem sorte de tê-la, Thomas pensa, pois ela é capaz e inteligente, com um sorriso nunca muito longe de seus olhos e lábios, embora esteja distante hoje, e seus olhos estão marejados de lágrimas pelo falecido.

Atrás delas, a uma distância discreta, vêm os dois filhos de Isabella, andando com os olhos fixos nas nádegas das jovens à frente. Eles se mantiveram a distância, esses dois, ambos altos, empertigados, garotos na verdade, ainda não têm vinte anos, vestidos em veludos e sedas com guarnições de pelo de marta, e um deles possui pequenas aberturas cortadas no tecido roxo das amplas mangas de seu casaco, através das quais se pode vislumbrar um vermelho. Ambos possuem cabelos escuros cacheados, cortados como uma tigela emborcada, como se estivessem em campanha em Gascony ou algo assim, mas enquanto um deles tem barba rala no queixo, com as bochechas bem barbeadas, o outro é completamente imberbe, exibindo uma covinha em seu queixo rosado. Barba e Sem Barba. Ambos portam espadas. Thomas se pergunta quem é que usa uma espada em um funeral. Qualquer um que possa, ele supõe.

Eles ignoram Thomas, olham de relance para seu cachorro e passam por ele agora, com suas cabeças elegantes viradas um para o outro, falando em voz baixa, e por um momento parece que ainda estão especulando sobre as formas das jovens por baixo de seus vestidos, mas então um deles – Barba – aponta para o moinho situado em uma elevação acima do rio para oeste, construído há dois anos, e murmura algo elogioso, e o outro resmunga algo menos elogioso. Thomas sente um desapontamento e compreende então que John provavelmente está certo sobre esses dois e que não estão ali no funeral de seu padrasto por sua mãe, nem para olhar para as criadas, mas por outra razão, antiga e mais óbvia.

Eles pertencem ao mundo real, esses dois, Thomas compreende, o mundo que os habitantes de Marton Hall tentaram excluir nestes últimos anos. São arautos da dura realidade – como corvos ou gralhas –, e ele sabe que John Stump não está louco, como poderia esperar, mas que provavelmente tem razão e que toda a tranquila segurança destes últimos cinco anos chegou ao fim.

Atrás dos filhos de Isabella, demorando-se ainda mais para trás, vêm aqueles por quem Thomas está realmente esperando e aqueles que ainda podem ter o poder de animá-lo: sua mulher, Katherine, de azul-marinho e uma touca escura, um cinto vermelho na cintura fina, uma carteira e sua faca embainhada no mesmo couro. Nenhum rosário. Ela ainda é magra, porém não mais esquelética, nos últimos dois ou três anos perdeu aquele ar assombrado, e seu rosto, antes pontudo como um bico, suavizou-se; ela é, a todos os olhos, não somente aos seus, uma bela mulher.

Ela segura a mão estendida para cima de um menino, também com uma beca azul-marinho do mesmo material, meias-calças castanho-avermelhadas e botas marrons folgadas feitas pelo próprio Thomas. É o filho deles, que recebeu o nome de John em homenagem a seu padrinho, a sir John e também a vários outros Johns que conheceram nos últimos anos, mas todos o chamam de Rufus por causa do tufo rebelde de cabelos ruivos no alto da cabeça, a cor herdada do pai, mas de algum modo intensificada e exagerada, tão vívida quanto a de uma castanha-da-índia, e tão indomável que não consegue ser abaixado pelo seu gorro, por mais que apertem os cordões embaixo de seu queixo.

Thomas fica parado, olhando, sem dizer nada, apenas aliviado de vê-los se aproximar. Eles param por um instante, quando Rufus se distrai com dois pombos gordos inclinando os galhos delgados do espinheiro acima de sua cabeça. Ele é um menino sério e formal na maioria das vezes, preferindo a companhia de sua mãe à do pai, e geralmente se diverte mais com o comportamento de pássaros e animais do que com o de seres humanos. Entretanto, há ocasiões em que para e recorre a Thomas, como se precisasse dele da mesma maneira que precisaria de uma bebida. Então, ele se deixa ser levantado e colocado nos ombros de seu pai e este é um desses momentos. O menino ainda é fácil de ser levantado, não tendo nem mesmo completado cinco anos, e depois de ter sido erguido e assentado, Thomas caminha ouvindo a respiração tensa do filho, sentindo seus dedinhos delicados explorando a depressão na lateral da cabeça do pai.

Todos conhecem a história de como Thomas foi golpeado, talvez no campo de batalha de Towton, há quase dez anos, mas ninguém sabe com o quê.

– Você chorou? – o menino pergunta de novo.

E Thomas ri novamente.

– Um pouco – ele admite, embora não tenha certeza, sente a mão do menino, ligeiramente pegajosa, acariciar sua orelha para tentar reconfortá-lo, e realmente se sente consolado e sorri para Katherine. Mas ela está olhando para outro lado, distraída, e ele se pergunta se ela andou conversando com John Stump. No entanto, ela não diz nada e assim continuam a subir pela trilha atrás dos outros, caminhando em silêncio, até Thomas estender o braço e colocar a palma de sua mão no ombro de Katherine. Ela chega um pouco mais para perto e solta um longo suspiro.

– Vai dar tudo certo – ele diz.

Mas ela não diz nada em resposta.

E ele pensa, Oh, Cristo, não vai dar tudo certo.

É a semana seguinte ao Dia de São Jorge no ano de 1469, o oitavo do reinado do rei Eduardo IV.


2


A irmã de Isabella deixa Marton Hall após o funeral, mas seus filhos permanecem. Thomas, Katherine e os demais aguardam que eles partam e que tudo se acomode, mas eles não vão embora e, enquanto Isabella se mantém enclausurada com seu confessor, os rapazes montam em seus cavalos todo dia e percorrem cada centímetro da propriedade, observando o que foi bem-feito, observando o que precisa ser melhorado e o que nem sequer foi feito ainda. E eles inspecionam tudo. Cada aposento, cada armário, cada cofre. Verificam o peso e a medida dos materiais que têm em mãos, contam xícaras, tigelas, alfinetes e uma cabeça de machado. Examinam os cravos das ferraduras nos cascos dos cavalos, a lâmina de um arado, cada galinha.

– Fazendo um inventário – John diz. – Um levantamento. Anotando tudo. Depois, partirão para Londres com um preço de venda com base no qual podem pedir um empréstimo, de modo que possam viver como condes até terem perdido tudo.

Mais tarde, porém, chega um vagão carregado, enviado de Londres: os falcões dos rapazes, um homem para cuidar deles e três cães de caça da raça alano, atarracados, com pelagem curta e branca, e com mandíbulas babando, fortes o suficiente para arrastar um urso para a morte. Os dois rapazes parecem amar esses cães, apesar de tão feios aos olhos de Thomas, e há alguém para cuidar deles também, um homem com a aparência e até o cheiro de um urso, igualmente incompetente, que atira os braços para cima quando os cães correm enlouquecidamente de um lado para o outro e ri como se fossem inofensivos como coelhos. Os animais fazem o cachorro de Thomas fugir ganindo com o rabo entre as pernas e Katherine se lembra dos cães que Eelby, o administrador de Cornford, mantinha no castelo.

– Eles vão acabar matando um de nós, tenho certeza – ela diz.

Na semana anterior à Ascensão, Isabella comunica que tomou sua decisão quanto ao futuro deles. Ela reúne todos – cada homem, mulher e criança que trabalha na propriedade, desde Thomas ao garoto que coleta gravetos e cogumelos quando estão na estação – no salão, primeiro para se ajoelharem com ela em oração e depois para permanecerem em pé enquanto ela sobe no estrado elevado que foi instalado para a cerimônia próxima da Missa de Mês de sir John. Ao seu lado, estão seus dois filhos, vestidos mais modestamente hoje, e com a voz embargada de emoção ela revela a notícia.

Sua intenção, diz, não é aceitar um marido, pois como poderia permitir que a abençoada memória de sir John, a quem ela amava mais do que a qualquer outra pessoa no mundo – até mais, ao que parece, do que ao pai de seus filhos –, fosse enfraquecida? Nem ela irá vender ou arrendar a propriedade, tampouco. Em vez disso, se tornará uma reclusa. Fará uma promessa solene diante do padre e se retirará do mundo, não aceitando a proposta de casamento de nenhum homem, pretendendo viver o resto de sua vida em silenciosa oração, a vida de uma freira, embora não enclausurada e livre para desfrutar das alegrias de sua própria propriedade.

Quando ouvem a notícia, todos os trabalhadores e a criadagem – homens e mulheres e até mesmo crianças, que pouco compreendem o significado de tudo aquilo – primeiro soltam uma arfada e depois aplaudem com alívio e satisfação. Abraçam-se. Batem os pés. Thomas está arrebatado. Sente-se aliviado de um grande peso. As lágrimas sobem aos seus olhos. Ele acha que a vida continuará sendo, pelo futuro próximo, muito da maneira como tem sido até agora, e poderá garantir a Katherine e Rufus o mesmo teto que lhes proporcionou nos últimos cinco anos. E quanto a tudo que John Stump disse, bem, ele estava errado. Ao seu redor, o amontoado de criados sorri e balança a cabeça uns para os outros, e até o garoto dos cogumelos tem uma moça de roupa rústica em seus braços.

Assim, Thomas volta-se para Katherine e Rufus, e tem vontade de pegar cada um nos braços, abraçá-los e murmurar doces palavras de alívio, mas Rufus está distraído e Katherine não diz nada. Ela não sorri e seu olhar está fixo em Isabella e seus filhos, que a flanqueiam, um de cada lado. Quando Thomas se vira para também olhar para eles, vê que cada um fica parado com um sorriso fixo e seus olhos escuros movendo-se tão rapidamente que parecem estar faiscando, registrando a reação que as palavras de sua mãe trouxeram, porém sem nenhuma satisfação, na verdade, detestando o que veem.

É nesse momento que Isabella pede silêncio e admite como está satisfeita por todos estarem tão felizes. Então, diz que seus filhos, William e Robert, vão morar com ela e administrar a propriedade.

O barulho definha e a alegria se dissipa como vapor.

Isabella lhes diz que no dia seguinte pretende sair em peregrinação, a Fotheringhay, para agradecer a Deus no dia de sua Ascensão. Ela levará Jack, como guarda, duas das jovens, mas não a grávida Nettie, seus dois filhos, e seus criados particulares. Ficarão ausentes por uma semana, talvez, até a hora de retornar a Marton para supervisionar os preparativos finais para a Missa de Mês de sir John.

Mais tarde, quando a criadagem volta ao trabalho, Thomas tem tempo de dizer algo a Katherine.

– Os rapazes – ele diz. – Será que serão muito ruins? Será que nos deixarão continuar como antes? Eles não estão interessados em... levantar cercas? Drenar pomares? Construir choupanas? Você olhou bem para eles? Viu seus sapatos de bico fino? Não são fazendeiros.

– Não – ela diz. – Eles não são fazendeiros.

Mais tarde, naquele mesmo dia, enquanto os outros são chamados para ajudar a preparar a viagem de peregrinação, Thomas evita a companhia de John Stump, sabendo que vai se sentir pior ainda ao ouvir suas opiniões sobre o que aconteceu. Assim, ele senta-se no pequeno quintal de sua própria casa, alimentando seu cão com algumas raspas de carne escura da tíbia de um cervo que está pendurado desde antes da morte de sir John. Ele é um bom cachorro, cinza-escuro, manchado de branco aqui e ali perto das patas da frente, com pelos compridos como arame macio. Enquanto não vê algo para matar, seus olhos negros, grandes e redondos, o fazem parecer ansioso para agradar, embora naturalmente isso não seja verdade, ou não em especial, e ele frequentemente pode ser encontrado onde não deveria estar, mas depois desses incidentes, fica com um ar tão culpado que é impossível não rir e perdoá-lo por quase tudo.

Thomas observa seu cachorro distraidamente enquanto ele agora rói o osso, e o animal devolve seu olhar, uma das sobrancelhas levantada, aparentemente perplexo por Thomas não querer se unir a ele em seu banquete, quando um dos filhos de Isabella – William, aquele de barba – entra no quintal, carregando no punho um imponente falcão cinza em seu capuz de couro decorado. Ele sempre detestou essas aves. São piores do que raposas em seu apetite para matar.

Thomas o cumprimenta. William o ignora e olha para Lurcher com seu osso.

– Seu cachorro esteve na floresta outra vez – ele diz.

Thomas balança a cabeça, confirmando, embora não compreenda o que William tem a ver com o fato de Lurcher ter ou não ter estado na floresta.

– Ele abateu outro cervo? – William continua.

– Sim, de fato, é claro – Thomas diz.

– Mas você não pode caçar esses cervos.

Thomas fica perplexo.

– Mas nós sempre os caçamos – ele diz, mas agora pode ver para onde essa conversa está indo e pensa que gostaria de estar em pé.

– Não caçará mais – William diz. – Se acharmos seu cachorro lá, soltaremos os nossos em cima dele, e se virmos que trouxe qualquer outra coisa, mandaremos o zelador cortar suas garras dianteiras.

Thomas não consegue deixar de olhar para as patas brancas do cachorro estendidas para a frente, cada uma de um lado do osso. Cortar suas garras o aleijaria.

– Não pode fazer isso – ele diz.

– Não? E por que não? Esta terra em que você está pertence à minha mãe. Temos o direito de fazer muito mais do que isso.

– Mas Isabella... – Thomas começa a dizer.

– Ela não é Isabella para você. Ela é lady Fakenham. Sir John Fakenham estava louco deixando que você falasse com ela ou com ele desse jeito. Ele era muito frouxo. Frouxo demais com vocês. Frouxo demais com tudo.

Thomas não consegue pensar em nada para dizer e abaixa os olhos para Lurcher, que observa a conversa como se compreendesse que alguma esperança está sendo frustrada. Após um instante, William balança a cabeça, satisfeito com seu trabalho, e volta-se para seu falcão, ainda empoleirado ali, em seu punho coberto pela luva de couro, a cabeça virando-se em movimentos curtos e rígidos, cegamente buscando alguma coisa. Os lábios de William se movem, como se estivesse prestes a beijar a ave, mas não o faz.

– Não somos pessoas irracionais – William diz. – Só queremos ver as coisas feitas adequadamente. De modo... apropriado.

Depois que ele se afasta, Thomas acaricia a cabeça ossuda de Lurcher e se pergunta como eles irão suportar isso.

Quando a família parte em sua peregrinação, os que ficam na mansão formam duas facções distintas, que dão as costas uma à outra, e os dois lados compreendem que é assim que será dali em diante. O zelador dos cães – Borthwick – leva seus alanos para dentro da mansão à noite e o aterrorizado cachorro de Thomas pressiona-se contra as pernas de seu dono, os olhos negros imensos, redondos e brilhantes, e suas costelas cinzentas felpudas tremendo. Os alanos deitam-se observando tudo através de seus olhos cor-de-rosa inexpressivos, arfando horrivelmente com as línguas parecendo carne crua – há algo de demoníaco em sua estupidez.

– Tudo vai terminar quando Isabella voltar – Thomas diz a Katherine na manhã seguinte enquanto estão sentados no quintal, lavando Rufus junto ao poço.

– De uma maneira ou de outra – ela concorda.

Na manhã seguinte, Borthwick faz uma observação a Nettie ou lhe oferece algo que é considerado inadequado e, como Jack está ausente, é John Stump quem Thomas tem que impedir que mate o sujeito. Borthwick ri como se estivesse acostumado a tais ameaças e Thomas pode facilmente imaginar Borthwick matando John com a adaga que carrega em seu cinto ou a que ele provavelmente mantém escondida em algum outro lugar de seu corpo. Nettie chora o resto do dia, a mão espalmada sobre a barriga, e se recusa a contar o que foi dito, mas dali em diante, Borthwick – a quem sir John jamais teria permitido entrar em suas terras, quanto mais dormir em sua mansão – faz um curioso som de sucção com a língua sempre que olha para ela.

– Faça este barulho mais uma vez – Katherine lhe diz – e eu mesma vou estripá-lo, das bolas às costeletas.

Borthwick ri outra vez.

– Que sirigaita – ele diz, abanando os dedos curtos, gordos e sujos.

Oh, Cristo, seu tolo, Thomas pensa, porque sabe que ela está falando sério.

Nada acontece até a noite seguinte, na hora em que sir John costumava encerrar os trabalhos do dia, quando o sino já tocara as Completas, mas não era hora de cobrir o fogo, eles se reuniam no salão e a primeira lamparina de junco era acesa. No passado, sir John poderia ter pedido uma música e ter rido quando não acontecia nenhuma, depois haveria vinho, cerveja e um jogo de xadrez até que outra lamparina precisasse ser acesa, e seria caso sir John estivesse ganhando, mas não se perdesse, e teria havido alguma discussão sobre o mundo exterior ou talvez uma história de seus dias em cativeiro na França. Mas agora não há nenhum sir John, e Borthwick está esparramado na cadeira em que o falecido costumava sentar-se em seus últimos dias, suas pernas estão abertas, a braguilha volumosa, suja e grotesca, e aqueles seus cachorros espalham-se à volta como barris claros de gordura e pelo, olhando ao redor do aposento com ar tão estúpido que Thomas passou a detestá-los. Lurcher está agarrado aos seus calcanhares, como sempre ocorre agora, as patas de cada lado da cabeça abaixada. Ele olha para cima, franzindo ligeiramente o cenho, os olhos negros, cada qual iluminado por um único sinal branco, insondáveis na escuridão.

Katherine senta-se em frente a Thomas, rigidamente em um banco com Rufus a seu lado, em sua sombra, longe dos cachorros, e com dois bonecos de palha de milho nas mãos. Ele murmura alguma coisa, um jogo, e está aparentemente contente, mas Katherine está agitada, tensa, e Thomas imagina que ela não gosta do que aconteceu ali tanto quanto qualquer um deles, porque este é o único lar que já teve. Entretanto, deve haver alguma outra coisa incomodando-a, pois ela é a própria imagem da vigilância congelada.

Thomas se pergunta o que podem fazer. Se não podem viver ali, então onde? Pensa na fazenda de seu irmão, nas montanhas a oeste de Sheffield. Poderiam morar lá com a cunhada viúva? Ele não pensa nela há cinco anos, desde que soube que seu irmão havia morrido, e só espera que ela não tenha pensado nele pelo mesmo período, já que seus pensamentos... Bem, eles provavelmente não são cristãos. E Jack, é claro, jamais teria permissão de voltar lá, pois da última vez em que lá esteve, lançou uma flecha através da parede de pau a pique e matou o sobrinho de Thomas. Sem intenção – ele mirava em Thomas na época –, mas mesmo assim.

E quanto à família de Katherine? Onde estará? Ele tenta imaginar quem eles devem ser para terem mandado sua filha de quatro ou cinco anos para um priorado como o de St. Mary, em Haverhurst. Nenhuma família normal faria algo assim, não é? E aquele sonho que Katherine às vezes tem – ou costumava ter, de qualquer modo – de fogo em uma chaminé de pedra sugere que havia mais alguma coisa. Ela não voltará ao priorado, é claro, por motivos que até um dos cães de Borthwick poderia entender, mas ainda que o fizesse, para perguntar à prioresa sobre sua família, não há a menor chance de que a mulher fosse atendê-la.

Nettie volta da despensa de bebidas enxugando as mãos no avental, e Thomas vê que Borthwick estava aguardando exatamente por isso; Nettie para por um instante, como se esperasse que não houvesse ninguém no aposento, e comete o erro de olhar para ele. Borthwick faz aquele som outra vez, o ruído de sucção.

Thomas sabe exatamente o que acontecerá em seguida.

Ele tem razão. Katherine se põe de pé num salto, sua sombra estendendo-se pelas vigas do teto. Borthwick a vê se aproximar. Ele atira sua caneca para o lado e levanta-se para enfrentá-la, levando seu enorme e maciço punho para trás para desfechar-lhe um soco, mas antes que possa fazê-lo, Thomas se levanta e Borthwick, com o punho cerrado puxado para trás, hesita, e seu olhar salta para Thomas no mesmo instante em que Thomas vê que Katherine sacou sua faca da cintura.

– Não! – Thomas grita.

Mas ela se lança contra Borthwick, ele cai de costas em cima da cadeira, o cotovelo erguido, e ela pressiona sua lâmina contra o queixo do zelador, sussurrando alguma coisa em seu rosto. Instantaneamente, os alanos se levantam, as garras raspando o junco, e eles se perfilam lado a lado, rosnados roucos reverberando em suas gargantas, grandes cristas de pelos eriçados nas costas e enormes dentes amarelos arreganhados.

Ninguém se mexe. Katherine mantém a lâmina embaixo do queixo gorduroso de Borthwick, mas ela ouviu os cachorros e agora é sua vez de hesitar. Diante disso, Borthwick engole em seco, seu rosto se crispa em um sorriso debochado e Katherine fica insegura. Sua lâmina, fosca na luz alaranjada, pressiona com menos força.

– Mande seus cachorros ficarem quietos – ela lhe diz.

Mas o olhar atravessado de Borthwick resvala dela para Thomas.

– Mande a sua cadela se afastar – Borthwick diz a ele.

Então, Borthwick retesa o corpo quando a faca de Katherine afunda um pouco mais nas dobras gordas de seu queixo.

– Katherine – Thomas a adverte. Ele ainda acha que aquilo pode terminar sem derramamento de sangue. Estende a mão e dá um passo à frente. Nesse momento, ouve-se uma nítida mudança no tom dos rosnados dos cachorros e ele sabe que não pode se aproximar, que este é o instante, breve como uma batida do coração, antes de os cães atacarem.

Mas agora Lurcher se levanta. Ele late esganiçadamente para os três cães de caça e, em uma fração de segundo, os alanos já estão em cima dele. Um dos alanos agarra o focinho de Lurcher entre suas mandíbulas antes que ele possa escapar. Um outro enfia os dentes em seu ombro, para derrubá-lo, enquanto o terceiro ataca os quartos traseiros.

Não há nada que Thomas possa fazer a não ser matar os três cães de caça.

Assim, ele saca sua própria faca e golpeia o mais próximo. Sua lâmina rasga as dobras frouxas de couro espesso e ele se sente enojado com o sangue quente sobre seus pulsos, mas o cão morre com um latido fraco e engasgado. John Stump também age rapidamente com sua faca, esfaqueando o terceiro cachorro, mas o segundo está esmagando o focinho pontudo de Lurcher em suas poderosas mandíbulas e o barulho é hediondo, os gemidos dolorosos de Lurcher são de cortar o coração. Thomas esfaqueia repetidas vezes, sem parar, mas o cão de cara larga não solta sua presa, e ele chuta e chuta até seu pé estar quase quebrado, mas o cachorro parece apenas intensificar sua mordida em seus espasmos de agonia.

Agora Borthwick empurrou Katherine e, com um soco, a fez sair cambaleando para trás. Ele parte em direção a Thomas com sua própria faca em punho e é difícil imaginar que aquilo possa terminar sem que um deles caia morto.

Thomas agarra o pulso de Borthwick. Este pode ter usado um arco no passado, mas não recentemente, e não possui nenhuma força nos braços em comparação a Thomas, que ainda pode dobrar um arco e lançar uma flecha pesada a mais de trezentos passos. Thomas vira a faca do zelador para o outro lado com a mão direita e desfecha um soco em sua garganta com o punho esquerdo. A faca de Borthwick sai girando para longe, suas pernas cedem e seu corpo troncudo cai com força no chão entre os bancos virados, os corpos e o sangue dos cães mortos e moribundos.

Nesse momento, Rufus, até então em choque, incapaz de se mover, começa a berrar.

Katherine ergue-se do chão e corre para ele. Uma mancha roxa se forma em sua face e suas mãos estão cobertas de fuligem e sangue. Vendo Rufus gritar cada vez mais alto, ela afasta as mãos dele, segura o pequeno corpo contra o seu e enterra o rosto do menino contra seu peito. Ela o leva correndo para fora, para a escuridão, para longe da vista de sangue, dos três cães mortos e dos gemidos de Lurcher na agonia da morte.

Quando tudo termina, eles ficam parados olhando um para o outro, Thomas e John Stump.

– Santo Deus – Thomas exclama. Suas roupas, suas mãos estão cobertas de sangue. John Stump se encontra do mesmo jeito que os cachorros.

Thomas ajoelha-se ao lado de Lurcher. Os cães de caça o estraçalharam, mas ele ergue os olhos uma última vez para o seu dono, que reconhece neles um pedido de perdão. Então, faz o que tem que fazer.

Ao fim de tudo, quando o cão silencia, John diz:

– Deus do céu, Thomas, em nome de Deus, o que vamos fazer agora?


3


A Missa de Mês de sir John cai na semana seguinte ao Pentecostes e é um acontecimento solene e concorrido. Quando o sino para de tocar a convocação, a pequena igreja está lotada além de sua capacidade, com homens e mulheres pressionados ombro a ombro contra as paredes recém-rebocadas e ainda muitos do lado de fora. Lorde Hastings compareceu, parando em sua viagem para o norte com uma comitiva de mais de 150 homens, todos portando armas de haste longa, até mesmo os arqueiros, inclusive o homem que estivera lá para salvar a vida de Katherine depois que ela foi arrastada semimorta de baixo dos escombros da guarita leste do Castelo de Bamburgh.

– Então este é ele, hein? – dissera quando viu Rufus pela primeira vez. – Imagino que o choque de seu nascimento fez seu cabelo ficar em pé deste jeito.

O homem – seu nome é John Brunt – tornou-se o padrinho de Rufus quando o menino nasceu e hoje – agora – trouxe consigo um presente para seu afilhado: um arco pequeno de teixo amarelo e uma sacola de linho com doze flechas minúsculas e com pontas rombudas. São para um menino de uns dez anos, talvez, e quando Rufus o recebe, ele apoia uma das pontas do arco no chão e o segura com o braço estendido, e vê-se que tem quase o dobro de seu tamanho. Ele o estuda em solene silêncio.

– Você vai crescer para usá-lo – John Brunt afirma.

Thomas agradece e Katherine esboça um sorriso fraco e desajeitado. Rufus não diz nada. Faz-se silêncio, com todos os quatro em pé, em um pequeno grupo, sob o sol fraco da primavera, e Katherine não sabe o que dizer.

Após algum tempo, John Brunt diz:

– Ele não fala muito, não é?

Thomas sacode a cabeça e balbucia um vago pedido de desculpas.

Rufus não falou mais desde a noite em que aqueles cães foram mortos. Quando aconteceu, Katherine o pegou nos braços e levou-o para fora da mansão, para a escuridão, em direção à sua própria casa, o tempo inteiro sentindo todo o seu corpinho quente lutando contra ela, as palmas da mão empurrando-a, e esperneando com os pezinhos em seus sapatos de couro. Seu corpo ficara rígido de terror e seus membros só relaxaram muito tempo depois que ela acendeu uma segunda lamparina de junco do toco quase extinto da primeira, quando finalmente seus pequenos ossos se afrouxaram de fadiga, ele deixou que ela o abraçasse e se acalmou. Mas não conseguia dormir. Ficou acordado, fitando-a com os olhos arregalados à luz turva da lamparina, seu olhar melancólico jamais se desviando, nem por um instante.

– Está tudo bem, Rufus – ela murmurava. – Olhe. Não há nada aqui. Nada a temer.

Mas enquanto falava, ela podia sentir as lágrimas assomarem aos seus olhos e compreendeu que fora ela quem havia trazido a violência, que a culpa era sua.

E quando finalmente Thomas veio, cheirando a sangue, cinzas e terra revirada, o menino choramingou e empurrou-a outra vez, e desde então não disse nem mais uma palavra, apenas observa os dois com olhos quase violetas na cor, sujos e com olheiras de exaustão, e toda vez que ela encontra seu olhar, sente-se derrotada.

Quando Rufus nasceu, espojado em sangue em uma tenda fora dos muros do Castelo de Bamburgh, constatou-se que era o segundo de gêmeos. A parteira que Thomas e Jack haviam encontrado entre os seguidores do acampamento viera com mel, água de rosas, e outros unguentos pelos quais sir John Fakenham pagou, e dera à luz o primeiro dos gêmeos – uma menina natimorta, e acharam que tudo estava acabado, lágrimas de infelicidade foram derramadas. Katherine, entretanto, continuou sangrando depois do nascimento, e quando a parteira tentou estancar o fluxo, descobriu que havia outra criança lá dentro.

Era Rufus, que nasceu instantes depois, muito frouxo, muito pequeno, e houve uma arfada de risos quando viram como seu cabelo era ruivo. Ele não tinha chance de sobreviver, é claro, nem Katherine, e como o padre já estava lá, o menino foi batizado rapidamente com John Brunt como padrinho, e quando viram que ele ainda estava vivo naquela noite, uma ama de leite, que não fosse uma prostituta, foi encontrada e passou a cuidar da criança de cabelos vermelhos. Enquanto Katherine jazia mais morta do que viva nas peles de carneiro de sir John, com Matthew Mayhew ministrando-lhe colheradas de suas poções de gosto forte, Rufus se alimentou no peito da jovem e juntos, milagrosamente, ao final da primeira semana, ambos ainda estavam vivos.

Quando finalmente levaram Rufus para Katherine, ela também ficou chocada ao ver os cabelos ruivos espetados para fora das cobertas da criança. Ele já havia engordado um pouco e estava rosado e satisfeito, frouxamente enrolado. Eles o colocaram sobre seu peito e ela prendera a respiração, ansiosa e com medo, mas ele então se contorceu e ela agarrou-o, com receio de que pudesse cair, e então manteve as mãos em volta dele, esperando não sabia bem o quê. Abaixou o olhar para ele, viu aqueles olhos violeta-escuros se abrirem, e por um longo instante, eles se fitaram. Katherine sentiu algo ceder dentro dela, algo se abrandar e sucumbir, sentiu seus membros se abrasarem e derreterem, e então pensara que era assim que seria para sempre. Rufus parecera afundar em seu corpo, se aconchegar, não apenas física, mas mental e espiritualmente, e ela erguera os olhos para eles, para Thomas, para Mayhew, para a parteira e a ama de leite ali parados, assomando acima dela, e não pôde conter as lágrimas que irromperam de dentro dela sem controle, como se jorrassem de uma fonte. Sentia seu queixo tremendo, a boca aberta, e por longos instantes permaneceu fisicamente impotente de amor por aquela trouxinha quente, de cheiro estranho, envolta em linho, que era seu filho.

Então ela agora o segura bem apertado, enquanto Thomas agradece a John Brunt em nome de Rufus outra vez, John Brunt olha de Thomas para Katherine e novamente para Rufus. Ele sente que algo está errado e, portanto, não dá dois tapas nos ouvidos do menino, como normalmente faria, por sua falta de modos.

– Bem – ele diz, sem jeito, enquanto se aproxima e dá um tapinha na cabeça de Rufus com a mão grande e pesada, mas Rufus se encolhe e seus olhos se arregalam outra vez. Katherine inclina-se para ele e o aperta ainda mais junto ao peito, murmurando vagamente palavras tranquilizadoras para o menino, enquanto Thomas segura John Brunt pelo braço e o vira, conduzindo-o para fora dali, balbuciando mais desculpas, fazendo algum elogio ao arco. Katherine permanece ali com Rufus, seu arco, seus olhos brilhantes, e sente-se consumida de culpa.

Após a cerimônia da Missa de Mês de sir John, haverá uma refeição servida no salão da mansão. Quarenta pessoas sentadas e serão servidas em mesas trazidas de Lincoln. Haverá sopa de canela, depois carneiro, pato e frango assados, tudo servido em um único prato. Em seguida, haverá garça e pavão assados em molho de pimenta, depois lagostim em gelatina de enguia batida, e então um pudim doce de amêndoas moídas, ovos e leite.

Lorde Hastings senta-se à mesa em cima do estrado, próxima a ele Isabella e de cada lado um de seus filhos. Nem Katherine, nem Thomas são convidados a se sentar. Perderam esta oportunidade na noite em que Thomas matou os cães dos filhos de Isabella. Mas são convidados a entrar e ficar de pé, observando a refeição transcorrer. É o que eles fazem, com Rufus perplexo entre os dois, observando em silêncio, enquanto as toalhas (alugadas) são estendidas pelos mordomos (contratados), o pão é cortado por dois rapazes da comitiva de lorde Hastings, os pratos (contratados) são trazidos por mais criados (também contratados) e dispostos sobre as mesas de tábuas entre dois saleiros muito estimados por sir John, grandes copos (alugados) e as velas de cera de abelha, que são acesas apesar de a luz do dia brilhar do lado de fora. Um criado distribui colheres, enquanto dois dos sobrinhos de Isabella, que tiveram que aprender apressadamente a destrinchar, começam a trabalhar nas carnes assadas, Isabella, de veludo negro, observa nervosa e ansiosamente, ao mesmo tempo que seus filhos mostram-se irritadiços e impacientes, tentando deixar claro a todos, e especialmente ao camareiro do rei Eduardo, que estão acostumados a luxos muito maiores.

Enquanto isso, Lorde Hastings senta-se e observa de forma neutra, reclinando-se para trás a fim de deixar os criados fazerem seu serviço, é como se ele não tivesse nenhuma opinião sobre os procedimentos, nem contra, nem a favor, e só está agradecido por ser alimentado.

Ele veste-se modestamente, com um casaco escuro, meia-calça azul e sapatos de bico fino moderado, e embora seu chapéu seja adamascado ou de algum outro tecido caro, é de formato bastante sóbrio e ele usa apenas três anéis nos dedos. Não parece ter mudado muito desde que Katherine o viu pela última vez depois do cerco ao Castelo de Bamburgh. Está um pouco mais robusto, ela acredita, e há alguns cabelos brancos nas têmporas, mas ele continua com os olhos brilhantes e seu olhar vagueia pelo salão, demorando-se em tantos rostos bonitos e, naturalmente, ele olha para ela – e passa adiante. Então, ele para, retorna e olha novamente para ela. Katherine pode sentir sua mente trabalhando. Ele leva alguns instantes para reconhecê-la, mas mesmo assim não está completamente claro exatamente para quem ele está olhando.

Será que ele pensa que está vendo lady Margaret? A mulher que ajudou em Hereford há tantos anos passados? Mas ela certamente está morta, não é mesmo? Neste caso, só pode ser – certamente só pode ser – Katherine Everingham, a qual viu rapidamente, e em circunstâncias muito diferentes, após a queda de Bamburgh há quase cinco anos. Katherine Everingham, a mulher de Thomas Everingham, um arqueiro relativamente humilde que ele um dia empregou como comandante de seus arqueiros em Towton, mas que tem o hábito de aparecer em momentos oportunos e que veio, por alguma razão, a assumir uma importância distante, estranha e significativa, não só para ele, como também para o rei Eduardo. Ou ela será outra pessoa? Outra das muitas mulheres que dizem que Hastings – como diria Jack – “comeu”.

Ela vê seu olhar saltar para os que estão à sua volta, buscando algum contexto, então, encontra Thomas e agora ele sabe exatamente onde situá-la. Ele ergue o dedo, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa, e instantaneamente um garoto de cabelos escorridos surge junto ao seu ombro. Hastings volta-se para ele, o garoto abaixa a cabeça e o homem sussurra alguma coisa. Após um instante, o menino balança a cabeça, ergue os olhos e focaliza-os ou em Thomas ou nela, Katherine não tem certeza, e neste momento Hastings é interrompido por uma pergunta educada de Isabella. Ele vira-se para ela, responde, o garoto dá um passo para trás e por enquanto isso é tudo.

O jantar transcorre lentamente. Embora o vinho tenha sido servido e os criados rápidos e eficientes, e embora esteja subentendido que todos estão ali reunidos para celebrar a vida de sir John, como uma vida bem vivida, ainda que tocada pela tragédia, ninguém está ainda com disposição para alegria. Apesar dos esforços e preparativos que foram feitos, a atmosfera permanece hesitante, como se todos estivessem esperando para ver o que vai acontecer em seguida.

Quando Isabella retornou de Fotheringhay com seus dois filhos e Jack, Jack ficou incrédulo.

– Vocês fizeram o quê? – ele perguntou. – Vocês mataram os cachorros? Mataram aqueles cães de caça? Não! Cada um deles valia mais do que você, Thomas, e duas vezes o seu valor, John. Por Cristo. O que William vai dizer? Vai mandar enforcá-los. Vocês dois.

Se Thomas fosse outro homem, os dois filhos de Isabella poderiam muito bem ter tentado mandar enforcá-lo ou tê-lo matado ali mesmo, na mesma hora, mas eles não são tolos. Ele é um homem forte, hábil com todo tipo de ferramentas que podem ser transformadas em armas e eles sabem que Thomas possui um machado de guerra e um arco grande e poderoso pendurados em pregos em uma das vigas de sua casa, e assim, Katherine supõe, podem se considerar com sorte por Isabella ter impedido que agissem, e não foram forçados a tentar se vingar ainda.

Mas existe um “ainda” e enquanto Thomas tentou desculpar-se e explicar, até mesmo pagar alguma espécie de recompensa (embora não pudesse arcar com o custo), Isabella lhe disse que ele não deveria buscar a companhia de seus filhos e os instruiu a não buscar a dele. Ela disse que será ela, e apenas ela, com a ajuda de Deus, que irá decidir o que deverá ser feito e quando deverá ser feito. Comunicará sua decisão, afirmou, assim que a Missa de Mês tiver sido realizada.

Mas para Katherine a verdade é óbvia. Eles não podem permanecer ali. Precisam ir embora. Ela tem salgado alimentos – tanto literal quanto metaforicamente – para a jornada a ser empreendida, exatamente como fez em dias incertos no passado: um pedaço de porco em um barril de sal marinho, duas dúzias de ganchos em uma bolsa de pele de bode que vai servir de bolsa para ela, meia dúzia de agulhas, dois pedaços de carvalho ainda verdes, alguns metros de linho grosso de boa qualidade com acabamento em uma das bordas. Um par de sapatos extra. É patético. Ela sabe disso. Mas é tudo que pode fazer, pois não consegue nem imaginar aonde esta jornada os levará.

Depois que os pratos são retirados da mesa, são servidos wafers adoçados com mel para os convidados e jarras de hippocras, uma bebida de vinho e especiarias, são trazidas e servidas. Foram contratados três homens para tocar uma música que começa de forma fúnebre, mas muda para algo mais alegre à medida que prossegue. A essa altura, as faces estão ficando rosadas com a bebida e o burburinho das conversas eleva-se com o som da rabeca, das flautas e de um tambor que possui pequenos címbalos presos a ele e que, quando tocado, faz o ar parecer tremular. O líder dos músicos canta uma canção sobre São Jorge e depois uma sobre a chegada do verão. Os que estão em pé no salão começam a bater palmas no ritmo, depois a bater os pés, logo as guirlandas e as folhagens com que decoraram o salão também estremecem com o ritmo e as batidas de tantos pés libera o aroma das ulmárias e violetas que foram espalhadas entre o junco do assoalho.

É fim de tarde quando o jantar termina. Então o padre dá graças, e depois disso, todos saem devagar do salão e emergem no pátio, piscando à luz fraca do sol, e encontram os homens de Hastings prontos e esperando para pegar a estrada, entre eles John Brunt, aguardando para se despedir de seu afilhado.

– Por que está viajando com tantos homens? – Katherine pergunta em voz alta.

Estão todos montados, a maioria velhos soldados usando as cores de Hastings, com a insígnia do touro preto, bem protegidos e bem armados, com elmos de aço, arcos preparados e aljavas de flechas frouxamente amarradas.

– Tem havido mais problemas – John Brunt diz. – Na região norte. E por estas redondezas também.

Katherine olha para ele.

– Que tipo de problema?

Ele revira os olhos, mas seu semblante se anuvia.

– O de sempre – diz. – Mas até agora são só boatos e ninguém sabe ao certo o que é verdadeiro e o que é um relato falso. Dizem que os servidores do velho rei Henrique no País de Gales estão se reunindo para algum novo ataque, e que o conde de Warwick está em Yorkshire, levantando seu exército para vir e arrancar de sua posição o irmão da rainha do rei Eduardo, que ele passou a odiar por algum motivo. Portanto, agora, o rei Eduardo não viaja sem uma guarda de duzentos homens ou mais, e o mesmo acontece com lorde Hastings.

– Pode repetir? – Katherine pergunta. – O conde de Warwick está levantando um exército contra o irmão da rainha?

John Brunt apenas sorri.

– Vocês estão como enclausurados aqui, não é? Não ouvem falar de nada.

– Mas o conde de Warwick? – pergunta Thomas. – Ele é o braço direito do rei Eduardo.

– Ele era o braço direito do rei Eduardo – Brunt concorda. – Mas não agora. Eles se desentenderam sobre várias questões. Vocês sabem como são esses nobres. Quando não estão caçando ou praticando no campo de combate, estão brigando por terras em lugares distantes do país ou lutando para ver com quem seus filhos e filhas irão se casar. Que energia que eles têm! É todo esse açúcar e vinho de especiarias que os deixam esquentados.

Neste instante, o garoto de cabelos escorridos aparece, enviado por lorde Hastings. Ele se parece um pouco com Hastings e também compartilha alguns de seus maneirismos. Diz a Thomas que Hastings gostaria de dar uma palavra com ele, se tiver tempo, antes de irem embora. Como se tivesse escolha.

Thomas olha para Katherine.

– O que será que ele quer? – pergunta.

Katherine não diz nada. Sente uma estranha sensação arrepiante de calor espalhar-se por seu corpo, uma espécie esquisita de tremor eletrizante, como se algo estivesse acontecendo, e se pergunta se este não seria um daqueles momentos em que olhará para trás e pensará: acabou, nada mais será como antes.

– Minha mulher irá comigo – Thomas diz, decidindo-se, como se ele também reconhecesse o momento, e o garoto dá de ombros. Nettie chega para levar Rufus e ver se há alguma coisa que ele gostaria de comer entre as sobras. O menino toma sua mão e sai com um olhar sombrio por cima do ombro, como se tentasse gravar a imagem de sua mãe na mente, para lembrar-se dela exatamente assim.

Hastings está a ligeiramente um passo atrás dos dois filhos de Isabella, os quais conversam e gesticulam com lentidão, as penas de seus gorros balançando-se no devido tempo. Um dos rapazes usa correntes finas nas pernas para segurar as pontas de seus sapatos no lugar, enroladas até a metade da perna. Hastings trocou os sapatos por botas de montaria e exibe uma figura mais modesta, embora em sua sela haja uma capa de viagem forrada de pele clara. Os três viram-se para olhar para Katherine e Thomas conforme eles se aproximam, cada qual com uma expressão diferente.

– Milorde – Thomas diz. – Que Deus lhe dê um bom dia.

– A você também, mestre Everingham. – Hastings sorri. – A você também, sra. Everingham. Já faz algum tempo desde que nos vimos pela última vez!

É a primeira vez que alguém se dirige a eles tão respeitosamente, ainda mais se tratando da envergadura de lorde Hastings. Isso faz os dois irmãos – Barba e Sem Barba – se encolherem, e suas suspeitas pioram quando Hastings pede a eles que se afastem e lhe deem um instante com seu velho amigo e irmão de armas, com quem partilhou uma ou duas aventuras, e sua mulher, que descreve como uma pessoa de confiança e muito amada. Os dois rapazes não têm opção, mas se mantêm rancorosos e alertas.

– Vamos caminhar, Thomas, por favor, e você também, sra. Everingham – Hastings diz. – O almoço foi pesado e eu não quero montar um cavalo com a barriga cheia de carne, por mais deliciosa que tenha sido na primeira vez que foi servida. Por favor, se tiverem um instante, mostrem-me a propriedade.

Ele caminha devagar, um homem alto, quase tão alto e tão largo quanto Thomas, embora sem a musculatura do arqueiro, e ele se mantém sempre elegante enquanto caminha com prazer, passeando, as mãos para trás, através das sombras compridas lançadas pelos choupos. Observa com interesse as melhorias que Isabella e sir John fizeram à propriedade, encantando-se com os pequenos detalhes: o topo da chaminé com linhas retas e pedras limpas; um novo barracão onde toras verdes de freixo secam; a casa de Thomas e Katherine, com seus beirais altos.

– Tenho uma ideia para uma casa própria – Hastings diz. – Uma construção nova e não de pedra, mas de tijolos, como se usa em Flandres.

– Flandres! – Thomas diz.

Katherine se pergunta que tipo de casa Hastings tem em mente que possa de algum modo se parecer com a deles, construída nos últimos três anos por Thomas com ajuda de um e de outro, com o que podia ser encontrado e sempre que havia tempo.

Depois disso, falam do tempo, da perspectiva da chuva que deverá cair mais tarde e da melhor estrada para Doncaster, onde Hastings espera passar a noite, e Thomas se sente irritado, mas se mostra cordato enquanto dão voltas no real motivo da conversa. Katherine havia se esquecido do quanto Hastings pode ser encantador. Seu rosto é muito expressivo e seus dentes imaculadamente brancos: cintilam quando ele sorri. O lorde inclina a cabeça como todos os homens altos fazem quando ouvem uma mulher pequena e seus olhos saltitam com prazer de um ponto a outro. Além disso, está impecavelmente bem barbeado, pele clara e macia, e usa uma gola de veludo escuro, bordada com uma flamejante rosa branca em fio de ouro e prata com uma pérola no centro, do tamanho da unha de um polegar. Após algum tempo, ele arquiteta um momento de silêncio embaraçoso para, em seguida, quebrá-lo.

– Então, Thomas – ele diz. – Como você sabe, eu tenho muito mais quilômetros de estrada hoje e, assim, vou ser breve.

Thomas anui com um grunhido.

– Lady Fakenham – Hastings começa. – Ela está em uma posição difícil. Como deve saber, seus filhos a têm pressionado para mandar expulsar todos vocês de suas terras, ao que ela diz estar resistindo por boa vontade com vocês, assim como amor e lealdade à memória de sir John, mas como você matou seus cães de caça, os rapazes a têm pressionado ainda mais e querem justiça, na maneira de eles verem, e portanto expulsá-los da terra é agora a menor das punições que estão exigindo, e ela sente que não pode mais resistir às exigências dos garotos.

O choque não é inesperado, é claro, mas ainda assim vem como um soco. Ou algo mais sólido: como o golpe de uma cabeça de touro, talvez, atingindo-o nas entranhas enquanto você está tentando colocar um arnês em seu pescoço. Katherine experimenta uma sensação de medo que lhe é familiar, que é úmido e do qual quase pode sentir o cheiro. E apesar do sol, do canto dos milheiros e dos tentilhões nos galhos e o balido distante de um cordeiro recém-nascido em busca da mãe, ela agarra seu casaco e o aperta em volta do corpo, pois se lembra de como é estar na estrada na hora do crepúsculo, com um único pé de sapato, pouca comida e nenhuma perspectiva de abrigo nas noites que tem pela frente.

Thomas também está horrorizado: seu rosto pálido, as maçãs do rosto abatidas, os olhos arregalados.

– Ela não pode fazer isso – ele diz, sua voz mais uma respiração do que um som.

Hastings descarta essa objeção com um aceno, a tosca simpatia de alguém que já teve que suportar reveses como esse, e continua andando, descendo o caminho em direção à igreja, deixando-os para trás, para segui-lo. Katherine não vê mais sentido nisso e se pergunta se não fariam melhor empacotando seus parcos pertences como John Stump sempre disse que teriam que fazer um dia, de qualquer modo, antes de partirem para onde quer que resolvam partir.

Em vez disso, entretanto, eles continuam andando para se juntarem de novo a Hastings em silêncio, surgindo cada um de um lado do lorde, sem saber como começar.

– Quando foi a última vez que o vi, Thomas? – Hastings pergunta após alguns instantes, como se isso tivesse alguma coisa a ver com o assunto.

Thomas tem que resgatar seus pensamentos da escuridão.

– Foi depois da queda de Bamburgh – ele diz.

– E antes disso?

Os cantos da boca de Thomas voltam-se para baixo.

– Campo de batalha de Towton – ele admite.

Hastings balança a cabeça.

– Sim – ele diz. – Você estava conduzindo homens na ocasião, não estava?

Thomas dá de ombros. Katherine pode ver que ele não se importa nem um pouco com isso agora.

– E não foi uma sensação boa? – Hastings continua.

Thomas olha para Hastings como se ele estivesse louco.

– Que Deus tenha piedade – ele diz. – Não. Se não fizesse tanto frio, aquilo poderia ter sido o próprio inferno.

Hastings fica desconcertado.

– Bem, não foi propriamente um prazer, a Batalha de Towton, admito – ele diz. – Mas olhe, Thomas, naquele dia, nós salvamos o reino, não foi? Você se lembra? Estávamos lá, fizemos o que fizemos e salvamos o reino. E conseguimos, fomos bem-sucedidos, somente por causa de homens bons, homens como você.

– Eu não poderia fazer isso de novo – Thomas diz.

Hastings franze o cenho.

– Bem – ele diz –, creio que ninguém poderia, se não fosse necessário. Mas ninguém está lhe pedindo para fazer exatamente isso outra vez.

Faz-se uma pausa.

– Então, o que está querendo de nós? – Katherine não pôde deixar de interpor.

Hastings volta-se para ela e sorri.

– Você sempre foi perspicaz, senhora – ele diz.

Ela fica ruborizada, desconcertada por não saber exatamente como ele saberia disso a seu respeito.

– A verdade é que... – Hastings continua, agora com um ar falsamente confidencial, como se tivesse sido pego escondendo alguma verdade sobre a qual agora seria franco. – A verdade é que o rei Eduardo está inquieto. Vocês devem ter ouvido os rumores. Mesmo aqui. Pelo amor de Deus, o que estou dizendo? Não são rumores. São fatos. Tem havido rebeliões. No norte e em Kent também. E no oeste. No País de Gales. Por toda parte, creio. Só neste último ano, quinhentos homens apareceram do lado de fora da grande fortaleza de milorde de Warwick em Middleham, vestidos para a guerra e prontos para cavalgar até Londres e destronar o rei Eduardo, caso Warwick os liderasse, o que pela graça de Deus, e por quaisquer outras razões próprias, ele se recusou a fazer. Mas poderia, sabem? Ele poderia. E depois, Santo Deus...

– Mas como o rei Eduardo e o conde de Warwick foram se tornar inimigos? – Thomas pergunta.

Hastings suspira como se fosse iniciar uma longa história e lhes conta sobre o rei Eduardo ter se casado com sua rainha contra a vontade do conde de Warwick.

– Sir John ficou muito satisfeito ao saber que o rei Eduardo havia se casado com uma inglesa – Thomas diz.

– Sim – Hastings diz vagamente, como se isso nada tivesse a ver com o caso. Estão passando pelo chiqueiro onde os leitõezinhos rosados estão agora mesmo gritando e se engalfinhando.

– Ha!– Hastings diz, apontando. – Olhem só para eles! São exatamente como nós! Aquele é o conde de Warwick. Aquele enlameado é o conde de Pembroke e aquele, muito bonito, é Anthony Woodville, o irmão da rainha. Olhe para ele! Que ardiloso!

– Mas o que o casamento do rei Eduardo tem a ver com o conde de Warwick? – Katherine pergunta.

Hastings vira-se para ela outra vez e ela pode vê-lo se perguntando o quanto contar, o quanto precisa explicar.

– Milorde de Warwick esperava usar o casamento do rei Eduardo para selar uma aliança com a França – ele começa. – O rei Eduardo, entretanto, tem uma aversão ao país, como a maior parte de seus súditos, mas não lembrou milorde de Warwick disto, e em vez de simplesmente lhe dizer que não estava interessado, continuou fazendo o jogo, no começo para mantê-lo quieto, imagino, e para agradá-lo, somente então se casou com Elizabeth, Elizabeth Grey, a filha do velho John Woodville, que agora está muito prestigiado, é claro, e só contou a Warwick quando o casamento já estava abençoado e consumado.

Por que ele está nos dizendo isso?, Katherine se pergunta. Mas Hastings continua.

– Bem – ele dá de ombros. – Foi uma decisão imprudente, talvez. Deixou Warwick sentindo-se um idiota e ele não é o tipo de homem que aceita essa situação, especialmente diante de príncipes estrangeiros, mas Eduardo é Eduardo, assim como Warwick é Warwick. Eduardo é o rei, não é? Não é mais o garoto que era quando Warwick o adotou. E quanto à rainha... bem, vocês provavelmente ainda não a viram, mas também não é uma pessoa fraca e a Warwick parece que ela passou os últimos meses trabalhando para miná-lo em todas as instâncias, colocando sua própria gente, seus irmãos, irmãs, mãe e pai onde ele teria colocado os seus, e embora, no final das contas, tudo que ela tenha feito é o que qualquer um faria, o fato permanece de que o pessoal dela suplantou o dele.

Katherine vê que Hastings está elogiando-os. Mas por quê? Por que se incomodar com isso? O que pode querer deles? O que pode querer de Thomas? Certamente ele não é diferente de milhares de outros homens a quem o camareiro do rei Eduardo pode recorrer, não é?

Estão na vila agora. A igreja está à esquerda, e mais adiante o mercado de laticínios e o forno de pão, e reunidas ao redor estão todas as casas do vilarejo, de estrutura em arco, de cujos beirais uma fumaça suavemente escoa para o céu do final de tarde. Os pássaros fazem barulho nas árvores, e em algum lugar um cachorro late.

– Não – Hastings diz, como se estivessem em alguma conversa –, a verdade é que as coisas não têm andado bem desde a queda de Bamburgh. Na época, lembram-se?, o rei Eduardo prometeu viver de sua própria renda e retomar a Normandia e o que mais nos pertencesse na França. Até agora, é claro, ele não conseguiu realizar nenhuma das duas promessas e, portanto, é claro, o povo está decepcionado. Mas o povo tem sido rápido em demonstrar isso, rápido demais, e agora o país está completamente sem lei, como no reinado do antigo rei. Pior ainda, já que os apoiadores do rei Henrique estão usando os ressentimentos do povo, um imposto tolo cobrado por uma casa de caridade em York, pelo amor de Deus, para se aproveitar e agir como se pretendessem livrar o reino de seu rei.

Hastings agora finge estar falando mais para si próprio do que para ela ou Thomas, Katherine percebe conforme continuam a andar, e ele lhes conta sobre lorde Montagu, irmão de Warwick, que foi nomeado conde de Northumberland, e é encarregado de manter a paz no norte, o que tem feito até agora.

– Mas ele é irmão de Warwick – Hastings repete. – Compreendem? E agora, com esta discórdia entre o rei Eduardo e Warwick, para que lado ele vai pular? E se a coisa ficar feia? Ele tem tanto poder lá em cima, que não é exagero dizer que o destino do reino fica nas mãos dele. Droga!

Ele bate com o punho cerrado no portão do pátio da igreja num gesto de frustração e, em seguida, eles entram e caminham entre as pedras através de um extenso gramado verde. Sir John está ali, na cripta. Entram na igreja, onde o padre está supervisionando o recolhimento das velas – de cera de abelha, desta vez, e caras – e eles param nos desgastados ladrilhos vermelho-escuros diante da pintura de São Cristóvão que sir John mandou fazer, o qual sempre ia ver, mesmo depois de perder a visão.

Tudo isso enquanto ele fala, contando-lhes sobre o outro irmão do rei Eduardo, o duque de Clarence, até ser demais, mesmo para um homem com a paciência de Thomas.

– Há algum modo, não consigo imaginar qual, em que possamos ajudar? – ele pergunta.

E Hastings vira-se da imagem de São Cristóvão.

– Bem – ele diz. – É mais uma maneira de como eu poderia ajudá-los.

Eles aguardam.

– Sim – Hastings continua. – Recebi uma pequena propriedade, em Ryedale, ao norte de York. Chama-se Senning. Uma pequena herdade. Não... não muito diferente desta.

Ele gesticula na direção da mansão fora de vista.

– Ao menos, assim acredito, embora na verdade nunca tenha estado lá. Pertence... pertencia a um homem chamado John Appleby, que serviu lorde Hungerford. Depois de Hexham, ele foi privado de seus direitos e, assim, perdeu a propriedade. Seu filho, também John Appleby, tem contestado o confisco, mas neste último mês foi finalmente confirmada a sua perda.

Hastings parece ligeiramente envergonhado.

– E o rei Eduardo, em sua generosidade, concedeu a propriedade a mim. Disseram-me que é uma boa construção, com sua própria mansão, um moinho e estábulos. Há um curtidor, um ferreiro, um padre e um cervejeiro. Tudo que é essencial. As terras são vastas, na maior parte pastagens altas, e o lugar é espetacular para a caça. No ano passado, o capataz, Evans, um irlandês, embora eu não saiba por que ele está lá, vendeu oito fardos de lã da melhor qualidade na Scarborough por trinta marcos cada.

Thomas, que conhece o assunto, murmura com admiração.

– Crucialmente, entretanto – Hastings continua –, há uma estalagem, com cavalos para alugar, administrada por um morador da propriedade, que paga o aluguel em dia, e que está situada na estrada que vai do porto de Scarborough a leste até a cidade de Thirsk a oeste, e continua depois disso para outras partes.

Há algum significado nestas últimas informações que Katherine ainda não compreende.

– O que o senhor está dizendo? – Thomas pergunta.

– Preciso de alguém para ocupar o lugar – Hastings diz. – Para manter as construções em bom estado. Tosar os carneiros. Fazer a coleta e os pagamentos.

– Nós? – Katherine pergunta.

Hastings olha para ela.

– Por que não? – ele pergunta.

– Porque... porque... – Thomas começa a dizer. Mas é óbvio que não consegue pensar em nenhuma boa razão, e Katherine pode ver o sorriso começando a inflar as faces de Hastings, irresistivelmente puxando os cantos de sua boca para cima. Seus olhos brilham com um prazer esperançoso, hesitante.

Hastings faz um sinal com a cabeça em direção a São Cristóvão e, em seguida, observado pelo padre e pelo menino, seu ajudante, coloca uma moeda em um candeeiro, vira-se e os conduz para fora da igreja outra vez, para a luz mortiça do sol que se põe.

– O que temos que fazer em troca? – Katherine pergunta conforme alinham o passo ao lado dele.

Hastings arqueia uma das sobrancelhas para ela e finge estar em choque.

– Sra. Everingham! Não há nenhum quid pro quo. Sou um amigo dedicado do seu marido, que me fez muitos favores no passado, e quando o encontro desfavorecido pela sorte, sem que tenha cometido nenhuma falta, e vejo que posso ajudar, eu o faço. Isso é tudo.

Mas ele sorri ironicamente.

– Então, por que nos contar tudo isso sobre lorde Montagu? Sobre o duque de Clarence? De que vale isso se estaremos cuidando de ovelhas e coletando aluguéis?

Hastings chega a abafar uma risada de satisfação.

– Você é esperta demais, sra. Everingham! – ele diz outra vez. – Esperta demais! E é por isso que vocês são tão perfeitos para o que tenho em mente. Eu tenho tratado durante muito tempo, e muito indiscretamente, desses assuntos que não lhes dizem respeito, mas que é bom que conheçam porque isso pode ajudá-los se estiverem... se estiverem preparados para assumir o controle desta propriedade e, além dos encargos habituais, tiverem que agir como meus ouvidos e meus olhos na terra? Desta distância, é difícil avaliar o humor dos nortistas, saber que peso atribuir aos boatos que ouvimos. Se eu tivesse alguém lá, alguém em quem pudesse confiar para me orientar, informalmente, na verdade, alguém que não estivesse na folha de pagamento do conde de Warwick, bem... Podem ver como isso seria de grande ajuda.

– Então devemos ser espiões? – Katherine pergunta.

Hastings deixa de lado o fingimento.

– Não, não é isso – ele diz. – É só para ficar de olho. Colocar um garoto na estalagem para chamá-lo caso... caso apareça alguém de interesse. Pedir ao zelador para fazer algumas sondagens, embora nenhuma pergunta mais inadequada. Isso é tão difícil assim, se considerarem a alternativa?

Ele gesticula novamente em direção à mansão conforme se aproximam e lá, à frente, estão reunidos Isabella e seus dois filhos, e até mesmo desta distância é possível ver a tensão contrariada no rosto de Isabella e a satisfação nos semblantes dos dois rapazes.

– Mas o que deveremos procurar? – Thomas pergunta. – Como saberemos se são de interesse, como o senhor diz?

Hastings para.

– Estou interessado em qualquer sinal – ele diz. – Qualquer coisa fora do comum: homens com bagagem demais e sem motivo para estar na estrada, ou qualquer carroça carregada de penas de ganso que esteja sendo levada para o norte.

– Norte?

Hastings parece frustrado.

– Para lorde Montagu – ele diz. – Irmão de milorde Warwick. Temos que saber para que lado ele irá, quando for tentado pelo canto da sereia de seu irmão.

Faz-se uma longa pausa. Não parece muito difícil, essa tarefa, mas existe algo mais, ela pensa, algo que Hastings ainda não está lhes contando.

– Então, o que dizem? – Hastings pergunta.

– Bem, o que posso dizer? – Thomas diz. – Apenas sim e obrigado por esta oportunidade?

Hastings olha para eles e sorri. Ele é um bom homem apesar de tudo, Katherine pensa, e realmente Thomas tem razão: que escolha eles têm? Ainda assim, uma vaga desconfiança, uma certa reserva se alojam no fundo de sua mente: isso não é tudo que Hastings quer que eles façam.

– Bem – Hastings diz –, isso vai tirar um peso da mente de lady Fakenham. E da minha também, é claro. Entrarei em contato. Aguardem meu mensageiro.

Ele aperta a mão de Thomas e beija as faces de Katherine, duas vezes cada uma, como se ela fosse um parente. Ele está exatamente se virando, quando para e faz aquilo, como se tivesse acabado de pensar em alguma coisa, e Katherine não pode deixar de arquear a sobrancelha, porque, é claro, exatamente como havia pensado, ele ainda não acabou.

– Ah, sim – ele diz, como se tivesse acabado de se lembrar de algo. – Há ainda uma outra questão.


PARTE DOIS


Depois de Trinity,
começo do verão de 1469


4


Quando deixam Marton, duas semanas mais tarde, partem rapidamente, com despedidas desajeitadas, contrafeitas, e naquela primeira manhã eles cavalgam quase sempre em silêncio, de novo para o norte, cabisbaixos, Thomas com um gorro puxado bem para baixo, Katherine com o capuz de sua capa levantado e sobre as orelhas, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Em Doncaster, unem-se a um ansioso comerciante de sal dos poços de salmoura de Droitwich, que está levando seus blocos de sal para os pescadores de arenque na costa leste, mas só conta com três homens como sua guarda. Thomas vê que são do tipo especializado em empurrões e escaramuças inócuas, do tipo que saem correndo ao primeiro sinal de qualquer problema de verdade, e o negociante de sal também sabe disso. Assim, tão logo ele tem certeza de que Thomas, Jack, e em parte também John, são confiáveis e fica satisfeito em tê-los viajando ao seu lado.

– Está ficando cada vez pior – ele reclama. – Um homem não pode ganhar um dinheiro honesto por medo de ser assaltado na volta para casa. E isso ocorre não só no norte, ah, não: a mesma maldita disputa criou raízes em todas as partes do país. Em toda cidade e vilarejo. É o mesmo por toda parte. Onde quer que você vá. Pra onde quer que você olhe.

E ele tem razão. Apesar do sol e da brisa leve em suas costas, há algo estranho no ar. Alguma coisa está acontecendo e, quando atravessam as cidades e vilarejos do interior do país, homens, mulheres e crianças ocupados em seus afazeres rapidamente erguem os olhos do que estão fazendo para vê-los passar e, por um instante, tudo fica imóvel e silencioso, e todos avaliam uns aos outros, perguntando-se o que acontecerá, e então cabe a Thomas demonstrar que não têm nenhuma má intenção. Uma vez tranquilizados, homens, mulheres e crianças voltam ao seu trabalho, mas permanecem alertas e Thomas tem a sensação de que eles sabem que há problemas a caminho e estão correndo para terminar o que quer que estejam fazendo, exatamente como fariam sob a ameaça de uma tempestade.

Eles viajam para o norte com o comerciante de sal, Jack e John se revezando no cavalo da carroça, com Nettie e Rufus no chão do veículo, onde ficam sentados em três arcas cheias de roupas, vasilhas, sapatos, colheres, cobertas, um pequeno bloco de sabão de Castela, preto e duro, como presente de Isabella, e uma saca de ervilhas secas, enrolada em dupla proteção, que semearão em Senning para cultivar. Thomas está satisfeito de ver que, à medida que prosseguem, parecem estar voltando na estação, para a primavera, quando os brotos dos olmos ainda não despontaram, e não será tarde demais para espalhar as ervilhas. Seus arcos estão enrolados em oleado – inclusive o de Rufus e a besta de John Stump – e o machado de guerra, com um saco próprio sobre aquela temível cabeça, de modo a não assustar alguém que a veja passar.

– Frio – Rufus diz.

– Está, sim – Nettie concorda.

Nettie está desconfortável em sua gravidez e infeliz por estar se mudando de Marton Hall e de tudo que conheceu até aqui, mas Jack a fez se resignar, e ela sente-se mais confiante com a presença de Katherine, que ela acredita que será capaz de fazer o parto quando chegar a hora. Katherine não tem coragem de lhe contar o que aconteceu na última vez em que tentou fazer um parto.

Jack e John revezam-se imaginando como será Senning. Imaginaram um paraíso: um paraíso com uma bela e gorda cervejeira para John, com covinhas e olhos escuros.

John dá um sorriso irônico.

– Já estou me imaginando abrindo corpetes.

– Espero, para o seu bem, que ela não seja encrenqueira – Jack diz.

Às vezes, Rufus senta-se ao lado deles na carroça e outras vezes cavalga empoleirado na sela de Thomas. Não é confortável, mas Thomas gosta do peso do garoto contra ele, e Rufus começou a falar novamente, ainda que apenas sussurrando até agora. Assim, Thomas fica satisfeito de estar sendo distraído pela empolgação de Rufus sempre que vê um moinho de vento com suas velas em movimento ou quando encontram um grupo de atores mascarados acompanhados por um simpático malabarista.

No entanto, nunca leva muito tempo para os pensamentos de Thomas retornarem para aquilo que mais o preocupa: o livro-razão. Ele está de volta, ressuscitado em uma única palavra de William Hastings, e à sua menção, no dia da Missa de Mês de sir John, Thomas sentiu o suor pinicar sua testa e um nó na garganta impedir sua respiração. Oh, Santo Deus, ele pensou, não de novo. Não ainda.

O livro-razão está enterrado há quatro anos, envolto em oleado, sepultado – mas nunca esquecido – sob a pedra da lareira de sua casa, quase como se Thomas tivesse construído a casa como um mausoléu para ele. Nunca mais foi mencionado desde que fora enterrado ali, embora às vezes ele tenha parado acima das chamas conforme se apagavam ao final do dia, com o sino de barro de tampar o fogo na mão, e tenha fitado a pedra rústica da lareira como se pudesse olhar através dela e ver o livro-razão embaixo, com o buraco em suas páginas deixado pela ponta de um machado de guerra, os pontos encardidos perfurando o couro grosso da lombada, suas páginas endurecidas, de bordas grosseiras, escritas com tinta de caroço de carvalho que começa a descamar. Ele quase pode ver aqueles nomes, longas listas de homens e das cidades em que as tropas haviam se aquartelado na França. Seus olhos são atraídos para aquelas páginas em que uma versão mais nova de si mesmo havia acrescentado desenhos perfeitos às margens, tais como Abraão estendendo a mão através da letra O para colher pequenas e gordas ameixas que teriam sido uvas tivesse ele algum dia as visto crescerem, com uma foice que seria dourada se ele algum dia tivesse tido dinheiro para comprar folha de ouro. Katherine uma vez lhe disse que essa versão de Abraão foi moldada no homem que lhes deixou o livro-razão, um homem que morreu há muito tempo, a quem eles devem a vida.

Thomas não consegue se lembrar de nenhum detalhe a respeito desse homem, mas Katherine lhe disse que ele era um perdoador que os salvara da morte pela fome e pelo frio no primeiro dia de sua apostasia, deixando-os compartilhar de sua fogueira em um bosque e, depois, os alimentou, comprou roupas para eles e os levou em sua companhia – como Thomas esperava – a Canterbury, para que pudessem apelar ao Prior de Todos de sua ordem, a fim de provar que não eram apóstatas. Ela lhe contara sobre os homens que mataram o perdoador no mar, a caminho de lá, sobre como o haviam lançado ao mar e depois sobre como suas vidas foram alteradas para sempre pela intervenção de sir John Fakenham e seus homens, que tomaram o navio e o levaram – e a eles – não para Canterbury, mas para Calais.

Quando aportaram na França, descobriram que tudo que restara dos pertences do perdoador foi seu livro, um livro-razão de nomes e lugares, que ele anteriormente alegara valer uma fortuna para os homens certos, embora nunca tivesse dito por que era tão valioso, ou quem seriam esses homens certos. Eles precisaram de cinco anos para descobrir seu segredo, mas quando o fizeram, se benzeram e rezaram a Deus, pois só o conhecimento do segredo era traição suficiente para colocar um homem em perigo iminente de uma morte excruciante; ali, enterrado entre os detalhes de muitas e diversificadas idas e vindas das guarnições inglesas na França nos anos de 1440, havia um detalhe que mostrava que no mês em que sua mãe o concebeu, o pai do rei Eduardo, Ricardo, duque de York, estava em uma pequena cidade chamada Pontours, no sudoeste da França, enquanto ela – sua mãe – estava em Rouen, na Normandia, a uma distância de mais de duas semanas de viagem. O livro-razão prova que o rei Eduardo não é filho de seu pai, mas um bastardo, sem nenhum direito ao trono da Inglaterra. Até mesmo considerar se isso pode ser verdadeiro ou não é cometer traição, e sir John Fakenham fizera uma descrição muito vívida do destino de homens que foram considerados culpados de tal crime.

Eles haviam acreditado que o tinham escondido bem. Ele pensara que sim, mas então William Hastings viera, erguendo a mão para deter seus homens e levar Thomas e Katherine para o lado uma última vez a fim de explicar um trabalho extra que poderiam fazer para ele: encontrar esse mesmo maldito livro-razão.

– Sir Ralph Grey sabia a respeito disso – Hastings lhes dissera. – Antes de o carrasco o pegar depois da queda de Bamburgh, ele falou a seu padre sobre um registro encadernado que viera às suas mãos, detalhando os movimentos do exército na França na época em que Ricardo, duque de York, era tenente lá.

– Isso não parece... valioso? – Katherine dissera a Thomas, mas logo viu que teria sido estranho não ter sequer perguntado. Hastings, então, é claro, se tornara deliberadamente inescrutável. Ele não disse – não pôde dizer – o que havia de tão importante naquele livro, ou por que o queria, somente que o queria muito.

– E por onde devemos começar? – Katherine perguntara. – A estrada é bastante fácil de ser vigiada, imagino, mas encontrar um livro em um... país inteiro? E em um lugar que não conhecemos?

– Bem, temos ao menos uma pista a seguir – Hastings dissera. – Depois da queda de Bamburgh e de sua captura, sir Ralph Grey contou a seu confessor sobre o registro, sua importância, e seu padre, sendo um homem de Warwick, é claro, e indiferente aos seus votos, foi diretamente contar a Warwick. Quando Warwick soube, vocês podem imaginar: veio correndo.

“Mas, então, Grey lhe disse que havia perdido o livro-razão! Para começar, eu creio que Warwick achou que Grey estivesse fazendo um jogo para obter algo mais ambicioso do que um mero perdão, e vocês sabem como Warwick é: ninguém diz não para ele. Assim, Grey perdeu a cabeça, literalmente. Mas pensando nisso agora, eu absolutamente não acho que Grey estivesse jogando. Acho que ele havia, genuinamente, perdido o livro-razão, caso contrário... bem. Claro, quando você está com a cabeça no cepo do cadafalso, sabe? Você revela seus segredos, não é? Sei que eu o faria.”

Ele havia, então, esticado o pescoço, como se ele próprio estivesse no cadafalso, e imitou estar levando as mãos à frente para sinalizar para o carrasco que estava pronto para o golpe. Então, as recolheu abruptamente.

– Isso não parece uma pista muito forte para seguirmos – Katherine dissera.

– Sir Ralph Grey perdeu o registro quando Bamburgh caiu – Hastings continuara. – Portanto, se ele ainda existir, terá sido levado por alguém que estava no castelo na ocasião, não é?

Katherine concordara.

– Mas se era um objeto tão comum como o senhor diz, quem quer que o tenha levado, bem, não o teria usado para acender fogo?

Hastings tivera que admitir que isso era possível.

– Mas temos que ter certeza – ele dissera. – Não podemos entregar isso à sorte.

– Então temos que encontrar quem estava com Grey quando o castelo caiu? – Katherine perguntara.

Thomas precisara de todas as suas forças para não olhar para ela nessa hora. Ele podia sentir o nó da forca se apertando.

– Mas era o caos – ele dissera.

Hastings concordara.

– Os homens dentro do castelo foram compreensivelmente rápidos em depor as armas e fugir – ele dissera –, mas eram em sua maioria o rebotalho da comitiva dos lordes Roos e Hungerford, não eram? Homens que haviam fugido do campo de batalha em Hexham e conseguiram chegar até ali.

Katherine, então, soltara uma risada curta e Hastings lançara-lhe um sorriso irônico, porque ela havia percebido, compreendido o plano de Hastings, e um instante depois, Thomas também o compreendeu.

– E esta mansão – ele começara a dizer –, esta Senning, nosso novo lar, um dia pertenceu a um homem que seguiu lorde Hungerford?

Hastings tivera a decência de parecer envergonhado, mas estava satisfeito com o estratagema, e também por eles terem adivinhado antes que precisassem de qualquer explicação.

– Ora, sim, isso mesmo – ele dissera. – Sim. De fato.

– E é verdade que ele convocou seus homens daqui das vizinhanças?

– Acho que este é o caso, sim.

– E assim nós estaríamos idealmente posicionados para vigiar a estrada para os mensageiros de Warwick, vigiar a zona rural para qualquer sinal de tumulto entre o povo, ficar de olho no humor de lorde Montagu, que agora foi nomeado conde de Northumberland e devemos procurar entre eles algum sinal desse... desse registro?

– E pagar seu aluguel – Hasting acrescentara.

Então, era isso. Era engenhoso, até Katherine tivera que admitir.

– O que deveríamos fazer se encontrássemos esse seu registro? – Thomas perguntara.

Hastings fizera uma pausa e dissera:

– Nada. Apenas mande avisar. Quem quer que tenha esse registro, deve ser extirpado. Completamente. Compreendem? Como você faria com um... dente-de-leão: por inteiro, sem deixar nenhum vestígio de raiz ou semente para trás. Temos que saber como vieram a tê-lo em seu poder e o que sabem a respeito dele. Precisamos saber tudo sobre essas pessoas. Temos que saber tudo e todos que conhecem. Tudo e todos que sabem que eles sabem também. Compreendem? Essa é a importância do registro.

Os modos afáveis haviam desaparecido e Hastings se tornara mais cerebral, mais implacável, e Thomas vira então como ele pôde ter se tornado o camareiro do rei Eduardo, como pôde ter lutado ao lado do rei Eduardo em Towton.

Mas logo Hastings prosseguira, pretendendo talvez tranquilizá-los, mas na prática fazendo exatamente o oposto, tornando muito pior algo que eles haviam pensado que não poderia ser tão ruim, ao revelar a abrangente extensão de seu comprometimento.

– Mas vocês não vão fazer isso sozinhos – ele dissera. – Tenho outra pessoa trabalhando para mim, um frade que fala oito línguas. Ele está na França, tentando descobrir como o livro-razão veio a ser roubado depois que Rouen caiu, para onde ele foi e que caminhos tortuosos o trouxeram à atenção de Grey. Ele enviou uma mensagem dizendo que está no rastro de um comerciante especializado em... em tais coisas... mas que não consegue ser descoberto, como se tivesse desaparecido sob as águas. Mas meu homem é bom. Ele é como um sabujo, sabem? Vai desencavá-lo e então veremos.

Thomas, então, não pôde deixar de olhar para Katherine. Ele a vira engolir em seco, ao compreender o que aquilo significava: logo alguém descobriria o perdoador. Logo alguém os descobriria. Era a pior notícia possível.

No entanto, Hastings ainda tinha um golpe final a desfechar.

– Portanto, não se desesperem – ele continuara. – Se o registro não estiver lá, estará em outro lugar. E, como Deus é minha testemunha, eu o encontrarei antes que aquele maldito Warwick faça uso dele.

– O que quer dizer com “faça uso dele”? – Katherine perguntara e Hastings parecera apanhado de surpresa outra vez, culpado de colocar mais uma obrigação sobre os ombros deles.

– Eu devia ter dito antes – ele admitira. – Warwick já tem um homem lá em cima. Ele está fazendo todo tipo de perguntas e tem a reputação de descobrir o que estava encoberto pelos meios mais impiedosos possíveis.

– Impiedosos?

Hastings encolhera os ombros.

– Não sei – dissera. – Você ouve dizer, não é? Ele é muito temido, de qualquer modo.

Hastings soltara um longo e desalentado suspiro, e em seguida erguera os olhos para o céu. Estava escurecendo e, apesar da visita à pintura de São Cristóvão, não parecia que ele e seu grupo iriam conseguir chegar a Doncaster sem se molhar.

– Então, estamos acordados? – ele perguntara.

Todos assentiram, balançando a cabeça, pois o que mais poderiam fazer?

E ele ficara satisfeito.

– Quando podem partir? – ele perguntara.

Eles se entreolharam, em seguida para a vista dos dois filhos de Isabella, esperando com ódio mal disfarçado, e Thomas dissera:

– Logo?

Hastings montara em sua sela, olhara para eles e respondera:

– Ótimo. Quanto mais cedo, melhor, pois se esse registro, esse livro-razão cair nas mãos de milorde Warwick, então todos nós estaremos fazendo fila para o cepo do carrasco quando chegar o Dia de São Miguel.


5


- Devíamos tê-lo destruído quando tivemos chance – Thomas diz a Katherine e ela concorda, mais uma vez, pois esta é a quinta ou sexta vez que têm esta conversa desde que partiram de Marton.

– Devíamos tê-lo queimado – ele não consegue deixar de continuar – ou o lançado ao mar. Qualquer coisa.

– Mas ainda assim isso não nos salvaria – Katherine repete. – Quando Hastings souber que temos conhecimento do que o livro contém, mesmo o que o livro continha, estamos mortos.

– Devíamos ter dito a Hastings que o tínhamos – ele diz, ignorando-a. – De imediato, com toda a inocência, para mostrar a ele que não tínhamos o menor conhecimento de seu significado, ou admitido que sabíamos a respeito dele, mas o usamos para acender fogo, sem saber do seu valor.

– Sim – Katherine imagina, cansada daquela conversa. – Teria sido melhor.

– Mas agora não podemos dizer nada, não é? Isso simplesmente... – Thomas para e solta o ar através dos lábios franzidos. – Por Deus. Nunca é fácil, não é?

Ela ri secamente.

– Você ouviu John – ela diz, indicando com a cabeça a carroça em que ele está sentado com sua besta sobre os joelhos. – Tivemos cinco anos bons. E temos Rufus. Talvez essa seja toda a felicidade que se pode esperar em uma vida.

Thomas apenas resmunga. Santo Deus, pergunta-se, será só isso?

– Senning será tudo que esperamos – ele diz a ela. – Tenho certeza.

– Lembro-me de cavalgar para Cornford com Richard, compartilhando as mesmas esperanças – ela diz. Ela não precisa terminar a frase. Ele sabe como tudo aquilo acabou.

– Será melhor desta vez – ele diz. – Você ouviu Hastings. Há uma casa à nossa espera, com tudo que poderíamos precisar. Um ferreiro! Um marceneiro! Um cervejeiro! Ervilhas para plantar! E carneiros. E colinas, ele disse. Senti falta de colinas quando estávamos em Marton. Era tão plano.

– Sim – ela diz, e isso é tudo.

Eles e o negociante de sal tomam caminhos diferentes depois que saem de York, quando a jornada se torna repleta de desastres. A carroça quebra uma roda. Um cavalo fica manco. Nettie é assolada por febre e tremedeiras, e Katherine diz que devem parar em um mosteiro, o que apresenta seus próprios problemas, já que ela não atravessará a soleira por um medo infundado de ser reconhecida, apesar de estar muito mudada da garota que fugiu do Priorado de Haverhurst há quase dez anos. Assim, Jack deve levar Nettie aos frades e lhes oferecer dinheiro para que a aceitem em seu hospital enquanto os demais se hospedam em uma estalagem à beira da estrada, um lugar rústico a pouco menos de um dia de caminhada de York, cheio de cachorros enormes, mas dóceis. John e Thomas se revezam toda noite ficando acordados, vigiando os pertences na carroça, que sentem que todo homem do condado irá querer roubar.

Quando Nettie é considerada recuperada o suficiente para viajar, os frades dizem a Jack que ela tem sorte de estar viva, que durante todo o seu delírio, chamou por uma mulher de nome Katherine, e que ele faria melhor encontrando essa Katherine do que deixando sua mulher em um hospital, especialmente se pretende viajar por esta estrada, pois o próximo hospital que vai encontrar por ali é para o tratamento de leprosos.

Ao ouvir isso, Nettie tem uma recaída, e eles têm que ficar mais tempo.

Mas agora, ali estão, tendo passado pelo hospital de leprosos em silêncio, desfrutando dias mais quentes e mais longos, viajando novamente para o norte. Já atravessaram alguns montes baixos e agora chegaram a planícies amplas onde o vento é menos cortante, e o caminho é pontilhado de numerosos monastérios e vilarejos onde podem pedir informações. Poucos conhecem Senning exatamente. Eles continuam a viagem. À frente, há uma série de cumes escuros e, acima deles, pilhas de nuvens brancas e espessas fervilham em bases largas e azuis. Assim, ainda que as gralhas não estivessem voando em círculos no céu, eles saberiam que estava prestes a chover.

– Quanto ainda falta? – John Stump grita da carroça outra vez.

Eles chegam a Senning três horas mais tarde sob um aguaceiro tão forte que cega e abafa os sons, e William Hastings tem razão: a estalagem – outra White Hart – fica bem localizada na estrada, ao lado de uma ponte de pedra sob a qual borbulha uma água marrom que desce da encosta atrás. Do outro lado do rio, um pequeno rebanho de vacas está furioso, olhando por baixo de franjas desgrenhadas, vigiado por um garoto de casaco e capuz da cor de terra arada. Ele está sentado embaixo do escasso abrigo de uma macieira florida, imóvel.

– Ele está morto? – Jack pergunta, e John o chama. O garoto levanta a cabeça para olhar para eles, mas não a mão para responder ao aceno.

– Que pirralho antipático, hein? – John diz.

No pátio, o cavalariço da estalagem surge rapidamente, e o lugar é exatamente como Thomas queria: paredes brancas, telhado sólido, com palha limpa, e o chão varrido e seco. Os dois ajudantes do cavalariço vêm correndo, descalços, pela chuva retumbante para levar os cavalos para secarem e serem escovados, enquanto outro leva a carroça para baixo de um telheiro. Em seguida, surge outro homem, com uma capa comprida de oleado e um cone do mesmo material na cabeça. Ele grita, chamando alguém para vir ajudar, e três jovens de avental limpo aparecem no vão da porta e começam a ajudar, pegando as bolsas que lhes são passadas. Uma delas se ocupa de Rufus e ele se agarra a ela, que lhe mostra que também tem a mesma cor de seu cabelo. Thomas não pode deixar de sorrir, encantado. Eles vão ficar bem aqui, pensa. Vão ficar bem. Vai dar tudo certo.

No salão, um fogo forte aquece talvez umas vinte almas, sentadas em bancos ao redor das mesas compridas, o cheiro é familiar e reconfortante: corpos suados, lã chamuscando, gordura de carneiro e um cão pastor branco e preto, enrolado, mas atento, junto ao fogo. O burburinho da conversa diminui quando Thomas entra à frente de seu grupo. Os rostos se viram para ele, mas tão logo são trocados cumprimentos e bênçãos são oferecidas, o barulho aumenta outra vez e o estalajadeiro aparece para conduzi-los a uma mesa comprida, de onde alegremente despeja um frade que cochila.

– Estávamos esperando vocês há semanas! – ele lhes diz.

– Foi uma longa viagem – Thomas admite.

– Agora estão aqui – diz o homem. – Venham, descansem perto do fogo.

Ele é Campbell: um homenzinho encarquilhado, de olhos brilhantes e escuros que nunca param, e cabelo avermelhado, grudado na cabeça estreita.

Jack ri.

– Como uma lontra de chapéu.

Eles sentam-se por um instante e deixam a água escorrer de suas roupas nas lajes rústicas embaixo. Thomas olha para as demais pessoas na sala, esperando... o quê? Ele não sabe. São comerciantes, na maioria, com seus empregados e guardas. Há dois frades, um de cinza e outro de marrom, e três peregrinos a caminho de algum lugar... York talvez? Não há ninguém, até onde ele pode ver, que pareça oferecer qualquer ameaça de ser qualquer outra coisa que não uma pessoa absolutamente comum. Não há ninguém a quem interrogar. Ninguém que levante suspeita.

Logo as jovens de avental estão de volta – uma delas é muito bonita – com jarros de cerveja, tigelas de sopa, bandejas com grandes fatias de pão de centeio. A cerveja é doce e forte, o pão praticamente livre de impurezas e a sopa é grossa, salgada, temperada com alguma especiaria e com gordos pedaços de carne de porco também.

– Santo Deus – Jack diz. – Isso é perfeito.

Até mesmo John Stump sorri.

– Nada mau – ele diz. – Nada mau.

Campbell retorna e senta-se com eles por um instante, feliz em poder tirar o peso dos pés.

– Vão descansar aqui esta noite? – ele pergunta. – A casa está vazia desde a Candelária e precisa de limpeza, creio eu, e de aquecimento. Amanhã podem acender a lareira e arejar o lugar.

Thomas faz perguntas sobre a propriedade.

– Somos duzentas e poucas almas – Campbell lhe diz. – E agradecemos a Deus por suas bênçãos.

Na hora de se recolherem, Campbell os conduz com uma lamparina de junco erguida acima da cabeça pelas escadas para os seus quartos no sótão, onde as vigas atravessam o espaço à altura da cintura. As camas estão secas, os lençóis, limpos, e eles só precisam dividir o espaço com uma outra pessoa, que já está dormindo em um rolo de cobertores em seu próprio colchão. Um gato preto de queixo branco, que está ali para manter os ratos longe, quando Rufus se aproxima, esgueira-se mais para dentro de seus domínios de sombras onde o telhado se inclina e se encontra com o chão.

Thomas deita-se ao lado de Rufus e é transportado a um sono profundo pelo som da chuva na palha do telhado e ao amanhecer o sino da igreja o acorda. Permanece deitado por alguns instantes, acostumando-se à escuridão, ouvindo o canto dos pássaros agora que a chuva passou, aproveitando o calor dos macios cobertores de lã. Rufus está deitado de costas, a boca aberta, ressonando baixinho, a touca de dormir deslocada. Katherine está deitada de lado, a testa franzida em seu sono. Ele levanta a cabeça. Jack e Nettie estão mais além, e John também, embora ele tenha rolado para fora das cobertas e agita o toco rosado de seu braço no ar como se quisesse coçar algum lugar que ele nunca alcançará.

Thomas permanece deitado, feliz, por um longo instante, conscientemente sem pensar nos dois filhos de Isabella, nem em Lurcher, mas então, quando está de pé, amarrando suas vestes, pensa, Será que alguém andou remexendo nesta bolsa? Parece desarrumada, vasculhada. Ele procura a bolsinha de moedas que o mensageiro de Hastings lhes deu para a jornada e quaisquer outras despesas necessárias e lá está ela: não foi roubada.

Imagina que estivesse escuro na noite anterior e assim qualquer coisa pode ter acontecido enquanto procuravam suas camas e assim por diante, e ele lamenta suas suspeitas.

No salão, há cerveja e pão quente, muito movimento de homens, e batidas de porta conforme entram e saem. Thomas e os demais recuperam sua mesa e observam enquanto os comerciantes reanimam a si mesmos e a seus empregados, acertam suas contas e vão embora com bênçãos a Campbell e suas filhas. Quando a lamparina de junco se apaga, Campbell se aproxima e lhes diz que Evans, o capataz, se encontrará com eles em sua nova casa quando estiverem prontos.

Quando deixam a estalagem, encontram uma luminosa manhã nortista, com um ar adstringente e nuvens céleres no alto. O garoto ainda está lá, embaixo da árvore, do outro lado do rio turbulento.

– Definitivamente, desta vez, ele está morto – Jack diz.

– Não é o mesmo de ontem – Katherine diz. – Aquele tinha um casaco marrom.

A um grito de Jack, a cabeça do garoto gira para olhar para eles novamente e, desta vez, ele ergue a mão em resposta.

– Assim é melhor – John diz.

Mas Thomas observa-o por mais um instante. Ele quase podia ser um frade em oração, agachado e encurvado embaixo de uma árvore, mas há algo de estranho naquele garoto, Thomas pensa. No entanto, ninguém mais vê nada de incomum. Assim, depois de alguns instantes, eles prosseguem, seguindo rio acima, em direção à ponta cinzenta da torre da igreja, e Thomas se esquece do garoto quando ouvem o barulho rítmico do ferreiro em seu ofício e inalam os vapores penetrantes de sua forja. Continuam subindo, passam por seu pátio e ouvem o sopro de seu fole, e então são surpreendidos por gansos furiosos sendo conduzidos pela trilha abaixo por uma garota de olhos arregalados, cabelos amarelos, empunhando uma longa vara e alegremente gritando blasfêmias aos animais sob seus cuidados. Ela fica mortificada ao ser pega em flagrante. Então, deparam-se com porcos e cabras: alguns soltos, ruminando entre os tufos de capim à beira do caminho; outros presos, olhos diabólicos, por trás de cercados feitos com hastes de aveleira. Sob os pés, o solo é escuro e fértil, e tudo é verdejante e promissor. Logo eles chegam à margem do rio onde, novamente, ouvem as mulheres antes que elas os vejam: o barulho da tábua de bater roupa, o burburinho de conversa que irrompe em um instante de risada estridente. Elas são cinco: três na água, as saias enroladas para cima, pernas grossas manchadas do frio da água, as pás de bater roupas erguidas em braços fortes; duas na margem, uma torcendo sua roupa no tronco de um salgueiro cuja casca foi alisada por gerações de mulheres fazendo exatamente o que elas faziam, a outra pendurando roupas nos espinheiros. A conversa cessa quando Thomas e os demais se aproximam.

Cumprimentos cautelosos são trocados.

– Onde estão seus maridos, senhoras? – John pergunta. Sua pergunta é entendida como não sendo sem intenção. As mulheres riem, e a John só resta encolher-se e ficar ruborizado. Uma delas levanta um braço maciço para cima e para trás, para onde o sol brilha sobre muitas ovelhas pastando, espalhadas pelas suaves ondulações da encosta da montanha. A visão provoca uma sensação tão agradável em Thomas que ele quase continua a subir, atravessando a vila, passando pela casa, pela igreja e pelo campo arado, que eram o que ele realmente viera ver, só para ele mesmo estar lá em cima, nas colinas, com eles.

Jack ri.

– Olhe só para você – diz. Mas ele também está radiante de prazer com tudo aquilo, com seu novo lar, e por um instante Thomas se sente como o profeta que conduziu seu povo do deserto à Terra Prometida, à Nova Jerusalém. Ele se vira para Katherine, que caminha com Rufus – seu filho está absorto com os patos no rio –, e à luz clara e fria sua pele é pálida, e em seu vestido azul e toucado de linho claro ela parece etérea. Por um instante, ele prende a respiração e sente que não deveria estar olhando para ela assim, que fazer isso é de certa forma um sacrilégio. Nesse instante, porém, ela se vira, sorri para ele, por ele, e a luz se reflete em seus olhos, e Thomas se sente quase zonzo de amor pela esposa, zonzo de felicidade. Ele conseguiu. Eles conseguiram. Juntos.

Continuam a andar, sem pressa, passando por fileiras de casas de pedra, baixas e com sólidos telhados de palha, seus quintais quase uma confusão de vegetação refrescante, uma fumaça pálida flutuando dos buracos nos beirais. Há cachorros, gatos, cabras, porcos e crianças por toda parte. O vilarejo está repleto de vida, barulhento e primitivo, e ele pode sentir seu cheiro, exatamente como deveria ser: fresco, de terra e de folhas verdes.

Quando chegam à casa, é ainda melhor: uma cópia de Marton Hall, mas em pedra, e já existe inclusive uma chaminé, de onde agora flutua uma coluna de fumaça branca. Abelhas giram no ar ao sol baixo em meio aos brotos no jardim, e andorinhas volteiam no alto. Eles param diante da casa, na margem da trilha de um muro baixo de pedras e cada um pode ver que este lugar excede suas melhores expectativas.

– Nós vamos morar aqui? – Nettie pergunta, incrédula.

Jack passa o braço à sua volta.

– Nosso garoto vai nascer aqui – ele diz.

Até mesmo John enxuga uma lágrima.

A porta – de tábuas novas de carvalho – se abre e um homem alto e corpulento emerge, vestindo um velho casaco de tecido rústico castanho-avermelhado, que alcança seus joelhos, e um olhar desconfiado que só desaparece quando se cumprimentam. Este é Evans, o capataz. Ele comanda uma equipe como a de um escritório, eles acham, e tem muito a dizer quando aponta para a despensa, o estoque de bebidas, os armários de louça, os depósitos, os suportes de ferro para lenha, as escadas para os dois quartos em cima, onde os cordões das armações das camas ainda estão firmes. Fica confuso com a satisfação que eles demonstram com tudo que ele lhes mostra, já que viveu com isto toda a sua vida. Em seguida, os leva para fora e lhes mostra os prédios externos, a pilha de toras de lenha e a latrina, construída perto do rio.

– Acima da vila?

Ele ri.

– Melhor do que abaixo dela.

Evans tem um cachorro que late sem parar. Ele o amarra a um poste que assinala algum limite.

– Vocês vão querer ver a igreja – ele diz, e eles concordam, sem muita convicção.

O padre é do tipo musculoso, está em cima de uma escada, fazendo alguma coisa com um martelo delicado em um amplo trecho de janelas de vitrais. Quando desce, estende a mão do tamanho de um prato, tão grossa quanto uma tábua de pão, e até mesmo Jack se contrai com seu aperto de mão. Quando ele olha para Katherine, depois para Nettie, fica confuso, cala-se, se benze duas vezes e murmura alguma coisa sobre o Senhor no alto. Ele bate a poeira da roupa e os conduz para dentro da igreja, onde se ajoelham e rezam, e Thomas aproveita um momento para olhar o mural que retrata a partida de Adão e Eva do Paraíso, com as figuras se contorcendo e saltando por cima dos muros caiados, parecendo reais e quase vivos.

Thomas fecha os olhos com força. Agradece a Deus com tanto fervor que sente que vai desmaiar.

Quando terminam, o padre gesticula, afugentando-os, e retorna à sua escada.

– A escada de Jacó – ele diz com uma risada.

E eles começam a voltar para baixo atravessando a vila pelo outro lado. Encontram a fornalha, onde compram pão de uma menina de vestido azul e descalça, depois a cervejaria, onde cada um compra uma caneca de cerveja tão fresca que quase não tem gosto nenhum. Em seguida, encontram um velho que lhes vende maçãs com a casca tão encarquilhada como a própria pele e as quais armazenou em seu palheiro durante o inverno. Então, eles sobem o vale, com Rufus nos ombros de Thomas outra vez, até o pasto mais alto, onde o vento sopra um pouco frio e constante, e as ovelhas – de rosto marrom, chifres torcidos e lã espessa – são maravilhosamente numerosas. Eles ouvem os assobios dos pastores e conhecem um menino com um cajado, atirando pedras com grande precisão no tronco de um espinheiro raquítico pela ação do vento. Sentam-se em uma pilha de pedras, comem e bebem, e estudam a vila lá embaixo. Thomas ri quando pensa nela como seu novo reino.

– Tem tudo – John tem que admitir.

Os olhos de Thomas seguem a linha do rio, passando pela mansão, atravessando a vila e seguindo até a estalagem à beira da estrada. Ele pode ver o campo do vigia das vacas e é somente agora, dali de cima, que vê o que havia de estranho a respeito dele.

– Onde estão as vacas? – ele pergunta.

E é verdade: não estão lá agora, nem estavam naquela manhã. Por que o garoto ainda está lá?

Eles descem da colina, apenas intrigados a essa altura, e Thomas se pergunta se o rapazinho ainda estará lá. E, de fato, está: vigiando uma extensão vazia do pasto.

Thomas e Katherine deixam os outros na estalagem e atravessam a ponte para falar com ele. O menino tem cerca de dez anos, e permanece lá agachado, imóvel, enquanto eles se aproximam. Agarra sua verga com a mão nua, ossuda, e eles veem que seu casaco grosseiramente urdido está ensopado, como se ele estivesse fora, sob todas as intempéries, há algum tempo. À medida que se aproximam, ele mal olha para o grupo, e somente quando param entre ele e a estrada é que olha realmente para a sua direção.

– Santo Deus – Thomas diz.

Sua pele é da cor de linho molhado, com um aspecto de cera, e há uma mancha escura sob cada olho.

– Não tirei os olhos – ele fala impulsivamente antes que Thomas ou Katherine falem algo mais. – A semana inteira. E não houve nada, a não ser aquele comerciante de sabão sobre o qual enviei John para contar a ele. E agora vocês. E eu o enviei para informar isso também. E não houve nada novo depois disso. Ninguém novo. Juro por Deus. Nada. Ninguém passou por aqui. Nem uma única pessoa. Eu não despreguei os olhos. Como ele disse. Nem pisquei. Perguntem ao meu pai. Ele dirá a vocês. Juro por Deus.

Thomas e Katherine se entreolham. Thomas passa para trás do garoto: para ver o que ele vê. O rapaz nem sequer se contrai. Está tão cansado que se Thomas lhe desse um tapa, ele não se daria ao trabalho de revidar. Está vigiando a estrada, nada mais, a uns cem passos de distância. Dali, ele tem uma boa visão do caminho, de leste para oeste, possivelmente cinco a seis quilômetros em cada direção.

– Quem o colocou de sentinela? – Katherine pergunta.

O garoto hesita, vendo agora que os confundiu com outras pessoas.

– O senhor – diz o garoto. – O senhor, é claro. Ninguém mais. Quem mais poderia ser?

Eles olham para o menino por um instante. Ele tem tanto medo de ser visto desobedecendo seu “senhor” que se inclina de um lado para o outro para não perder a estrada de vista, para que não possa ser acusado de ter desviado os olhos da estrada. Quem quer que seja o senhor, ele infundiu um medo tão grande quanto o temor a Deus no menino.

– Quem é o seu senhor? – Katherine pergunta.

Agora o menino realmente arrisca um olhar para eles. Sacode a cabeça como se quisesse dizer que o nome pode dar azar.

– Vamos, filho – Thomas diz. – Só queremos saber. Não estamos aqui para prejudicá-lo. Podemos ir buscar pão para você, se quiser. Sopa? Um pouco de cerveja?

Os olhos do menino mudam de forma, se suavizam.

– E então? – Thomas pergunta.

Ele ainda hesita, mas em seguida solta o casaco, deixa-o abrir-se, e com um dedo longo e esquelético, toca a face embaixo do olho direito, e murmura um nome que ninguém ouve.

– Como?

– É Riven – sussurra. – Edmund Riven.


6


Edmund Riven.

É um nome de pesadelo, o último que iriam querer ouvir. Katherine sente um frio repentino, e o sol já não é suficiente para aquecer seus ossos. A seu lado, Thomas está pálido, parecendo que levou um soco no estômago. Ele tirou o gorro e ela pode ver que seus cabelos estão brilhantes de suor. É como ouvir que a peste chegou.

– Cristo. – É tudo que ele diz. – Cristo.

Não conseguem extrair mais nada do garoto e, assim, deixam-no e voltam penosamente à estalagem.

Edmund Riven está aqui, no norte.

– Por quê? – Thomas não para de repetir. – Por quê?

A hospedaria está movimentada. Campbell atende um negociante de cavalos que está comprando, em vez de vendendo, e quer dar uma olhada nos estábulos, enquanto as meninas de avental trazem tigelas e tábuas de pão para um bando de comerciantes a caminho daqui e dali. O fogo está aceso e os homens já estão bebendo. Jack está sentado no salão, à mesa que agora já é deles. Está ensinando um jogo de dados a Rufus.

– Não, não. – Jack ri. – Você não deve dizer a verdade. – Então, vê os rostos deles. – O que houve?

Thomas bebe um longo gole de cerveja antes de responder.

– Edmund Riven – ele diz. – Ele está aqui.

Jack prende a respiração.

– Aqui?

– No condado.

– Por quê? Por que ele está aqui? – Jack pergunta.

É uma boa pergunta. O que Riven está fazendo ali? E por que colocou aquele garoto para vigiar a estrada?

Uma das moças de avental aproxima-se com mais cerveja.

Eles ficam em silêncio enquanto ela os serve.

– Muito quietos hoje? – ela diz.

Katherine pergunta se ela conhece Edmund Riven.

O fluxo de cerveja oscila, derramando-se por cima da borda da caneca de madeira. A jovem olha à sua volta, como se pudessem ser ouvidos, e em seguida olha novamente para Katherine.

– Por que pergunta? – ela rebate, os lábios mal se movendo, a voz quase inaudível. Ela enxuga a cerveja com o avental.

– É um velho amigo – Katherine lhe diz.

Os olhos da jovem se estreitam.

– Edmund Riven é amigo de vocês?

Ela faz parecer que eles são amigos do diabo.

Neste instante, Campbell vem, parecendo ansioso.

– Mary? – ele chama a jovem e ela lhes lança um olhar significativo antes de se virar e desaparecer por trás da cortina da entrada da despensa de bebidas. Campbell fica desconfiado.

– Não podem perturbar minhas meninas – ele diz.

– Nós lhe perguntamos sobre Edmund Riven – Thomas lhe diz.

Campbell fica assustado e faz um barulho com o ar entre os dentes.

– O que tem ele?

– Por que ele colocou um menino para vigiar a estrada?

Campbell olha fixamente para Thomas, e Katherine pode ver que lhe atravessa a mente classificá-lo como apenas um grande idiota com braços fortes, mas pouco cérebro. Ela já viu outros homens subestimarem-no assim antes. Para sorte de Campbell, ele não o faz.

– Ele quer saber quem vem. Quem vai. Seus nomes. O que fazem.

– Por quê?

– Por quê? É a posição dele, é claro – Campbell diz.

Thomas continua:

– Mas que posição é essa?

– Oh, ele diz que é o “Portador da Vara do Espantador de Cachorros”, como aqueles funcionários da igreja, entendeu? Só que ele trabalha para milorde de Warwick, mas isso é uma brincadeira que ele gosta de fazer. É mais como um... inquiridor, sabe?

Katherine sente a pele de suas faces se arrepiarem, seu couro cabeludo pinicar. Ela vira-se para Thomas.

– Riven faz parte do círculo doméstico do conde de Warwick – ela lhe diz. – É o homem dele. – Agora Thomas compreende isso também.

– Ele é o homem de Warwick? – ele exclama intempestivamente. – Aquele de quem Hastings falava?

Eles se entreolham fixamente.

Campbell parece surpreso com a intensidade da reação do grupo.

– Claro que é – Campbell diz. – Como a maioria das pessoas por aqui, de uma maneira ou de outra, agora que lorde Hungerford está morto e sua família privada de seus direitos.

– Ele sabe que estamos aqui? – ela pergunta.

Campbell abre a boca, hesita e talvez deseje não ter dito nada, mas foi flagrado e, após alguns instantes, ele balança a cabeça.

– Você enviou alguém? – ela pressiona.

– O irmão do garoto – ele admite, erguendo-se nos dedos dos pés e levantando as sobrancelhas na direção do garoto invisível dali. – Se eu não o tivesse feito, Riven teria descoberto de qualquer modo, então teria culpado o garoto e aí...

Campbell faz o barulho que todos reconhecem como o de um pescoço sendo torcido até se quebrar. Será que ele está falando literalmente? Certamente que não. Mas agora Campbell parece envergonhado de sua traição, a negligência de seu dever como anfitrião, e começa a ficar nervoso, falando rapidamente e mudando o peso de um pé para o outro, porque, afinal, Thomas e Jack, e até mesmo John, são temíveis e não do tipo que se deva contrariar desnecessariamente.

– Posso lhes trazer mais alguma coisa? Mais cerveja – ele pergunta.

Katherine o ignora.

– Será que Riven virá pessoalmente? – ela continua e Campbell compreende que não vai poder se livrar facilmente.

– Pode ser – ele arrisca. – Ele é imprevisível, sir Edmund.

– Quanto tempo até chegar aqui? – Thomas pergunta. Campbell encolhe os ombros e abre a boca para falar. De repente, porém, seus olhos ficam aguçados como se um pensamento tivesse lhe ocorrido subitamente, e ele diz algo diferente.

– Olhe – diz. – Pelo que sei, ele pode nem estar no condado.

– Mas e se estiver?

– Bem, se estiver em Middleham, que é para onde eu mandei o menino, então... então talvez depois de amanhã? Sim. É um dia de viagem e portanto... sim... Depois de amanhã. Ah. Agora estou sentindo o cheiro de seu jantar queimando.

Ele se vira e faz menção de se dirigir para a cortina. Mas Thomas inclina-se para a frente e agarra-o pelo braço.

– Há muitos homens como Riven lá fora fazendo perguntas em nome do conde de Warwick? – ele pergunta.

Campbell pensa por um rápido instante e em seguida concorda que isso é possível, embora não saiba de nenhum com certeza e, com um movimento abrangente de seu braço livre, ele indica a impossibilidade de certeza na vastidão do mundo lá fora e, em seguida, a urgência em salvar seu jantar.

– Que tipo de perguntas ele faz? – Thomas indaga.

– Espere aí. – Campbell tenta rir, seu olhar resvalando para a mão em seu pulso. – Agora você está falando exatamente como ele.

– Mas que tipo de perguntas? – Thomas pressiona.

– Só... só... perguntas – ele diz, gaguejando. – Quem esteve onde, e por quê, e assim por diante. Perguntas comuns, na maior parte. Posso ir agora? Seu jantar...

Campbell espera que ele tenha acabado, mas Thomas tem uma última pergunta.

– E foi em nome dele que você vasculhou nossas bolsas ontem à noite?

Isso coloca Campbell contra a parede. Ele nega, mas a negação é tão pouco convincente que serve como uma admissão.

– O que estava procurando? – Thomas continua.

– Nada – Campbell diz. – Nada. Nada em particular.

– Um livro, talvez?

Campbell abre e fecha a boca.

– Seu jantar! – ele exclama de repente. – Está queimando.

E sem mais nenhuma pretensão de normalidade, ele liberta seu braço, vira-se, corre e desaparece. Katherine endireita-se em seu assento e tenta pensar, mas neste momento Rufus pula em seu colo. Ela o segura, pressiona o nariz em seu gorro de linho e inala seu cheiro doce, precisando um pouco de um banho; ela tenta pensar no livro-razão, se Campbell estava procurando por ele em suas sacolas e, se assim for, se ele fazia isso com todos os hóspedes, mas ela não consegue.

Edmund Riven. Há dois ou três anos que ela não ouve seu nome dito em voz alta, porque sempre que era mencionado, sir John tinha um acesso de raiva que somente Isabella podia acalmar com longas horas de murmúrios tranquilizadores e talvez um galão de vinho com especiarias, mas ele nunca esteve longe de seus pensamentos. Edmund Riven. Ela relembra a primeira vez em que o viu, ou ele a viu, no campo em que os irmãos leigos plantariam centeio, diante do portão dos pedintes das irmãs do Priorado de St. Mary, em Haverhurst. Ela estava voltando da latrina com a irmã Alice – que Deus a tenha –, quando um grupo de homens a cavalo saiu da estrada, gritando como se perseguissem um javali. Desde então, ela se pergunta quais seriam suas intenções, já que, pelo amor de Deus, eles não podem realmente ter pensado em estuprá-las, não é? Mas eles eram os primeiros homens que elas já tinham visto e, em seu terror, ela, Katherine, irmã da Ordem de São Gilberto, atirara o balde que carregava no rosto do primeiro cavaleiro, derrubando-o de seu cavalo, arrancando seu olho, e naquele momento irrevogável, ela mudara o curso de todas as suas vidas.

Ela o vira novamente no País de Gales, voltando de Kidwelly, quando estava assolada pela culpa e pela tristeza com a morte de Margaret Cornford, com as mortes de Walter, de Dafydd e de Owen. Naquela ocasião, teve vontade de matá-lo, pois ele foi o responsável por todas elas, de uma maneira ou de outra, mas ela era impotente, é claro, e foi somente pela graça de Deus – e pela ajuda de William Hastings – que ela e Thomas conseguiram escapar com vida.

Sir Edmund e seu pai. Eram como ínguas, eclodindo com uma maldade assustadora, implacável: para cegar Richard Fakenham; matar Liz Popham; forjar um júri e acusá-la de assassinato; e, finalmente, naquele dia em Bamburgh, causar a morte da irmã gêmea de Rufus, quando Giles Riven a chutara no ventre enquanto ela estava estendida no chão, forçando-a a abortar a menina que ela nunca segurara em suas mãos, a quem estava doente demais para prantear. Thomas o matara, então, com seu próprio machado de guerra, e quando ela soube disso, mais tarde, quando ainda estava em seu leito de parto, sentira uma profunda sensação de alívio, como se um grande peso tivesse sido tirado de cima dela. Mas agora, ao que parece, seu filho está de volta.

Durante todo esse tempo, Jack e John Stump ficaram observando, sem realmente entender. Eles sabem a respeito de Edmund Riven, é claro, e um pouco sobre o livro-razão, mas nenhum dos dois compreende ainda que o primeiro está agora procurando este último. Thomas lhes conta com um rápido sussurro.

Ao saber dos fatos, Jack fica horrorizado. Lança o dado quicando pela mesa, ultrapassando a ponta e caindo nos juncos do assoalho.

– O maldito livro-razão outra vez? Pensei que o tivesse queimado ou algo assim. Você disse que ia fazer isso, Thomas, lembra-se?

Thomas balança a cabeça outra vez. Um lampejo de culpa.

– Não teria adiantado nada – Katherine lhe diz. – Ainda saberiam que um dia nós o tivemos e que soubemos de seu segredo. Só de saber de sua existência e do que ele prova... é o suficiente.

John recosta-se.

– Eu falei para vocês – ele diz. – Cinco anos. Isso é tudo que se pode ter.

Rufus deixa Katherine e vai se juntar a Nettie, que está sentada na outra ponta da mesa, comendo pão. Ele adora Nettie; está fascinado por sua barriga cada vez maior, de onde acredita que um coleguinha para brincar está pretendendo emergir.

– Edmund Riven deve ter estado com o conde de Warwick desde a queda de Bamburgh – ela supõe. – Ele estava com o conde enquanto seu pai estava com o velho rei Henrique, lembram-se, de modo que a família não perderia nada, qualquer que fosse o lado vencedor.

– Será que ele vai nos reconhecer? Se vier? – Jack pergunta.

É uma boa pergunta.

– Ele não demoraria nada a saber quem somos – Katherine imagina. – E de onde viemos. E quando descobrir isso... bem. Nem imagino o que seria capaz de fazer. Estão vendo como deixou todo mundo aqui? Morrem de medo dele.

A segunda irmã de avental aparece, a mais feia das três, segundo John Stump. Ela se mostra furtiva, ansiosa, com medo de que alguém – seu pai? – a veja.

– Conhecem Edmund Riven? – ela pergunta.

– Desde muito tempo – Katherine lhe diz.

– Têm razões para temê-lo?

Eles se entreolham antes de concordar.

– Então, vocês devem ir embora – ela lhes diz. Fala com grande urgência, dando seu aviso com veemência. – Ignorem meu pai. Ele quer mantê-los aqui para... para ele. Para Riven.

Seu olhar ansioso resvala para Rufus. É possível vê-la imaginando-o sendo queimado.

– Vocês têm que ir embora! – ela repete. – Ele é o demônio. Ou feito pelo demônio. Ele sempre leva dois. Ele mesmo nos diz. Se vangloria disso. Um marido e sua mulher. Ou uma mãe e seu filho.

– Por quê?

– Para queimar um, bem diante do outro. Ele pega um carvão em brasa e coloca na pele do primeiro, e o segundo revela todos os seus segredos por amor ao outro, ou por medo de ser ele próprio queimado.

– Jane!

É Campbell perto da cortina. A conversa no salão se acalma. Jane se vira com um olhar de súplica e desaparece. Campbell franze o cenho como se tivessem sido eles que houvessem agido mal. Em seguida, ele se vira e a segue para trás da cortina. A conversa no salão é retomada.

– Maldito Riven – Jack diz. Ele pode ver que este não é o lugar onde seu filho irá nascer, afinal.

– Ele sabe que você matou o pai dele com aquele seu machado, Thomas? – John pergunta.

Thomas sacode a cabeça.

– Ele teria vindo atrás de mim em Marton se soubesse, não é?

Faz-se um longo e pensativo silêncio.

Então, Jack pergunta se Riven sabe que eles o têm.

– Quero dizer, você não... você não trouxe ele com você, não é?

Thomas sacode a cabeça outra vez.

Katherine pensa nele, sepultado em segurança sob a pedra da lareira em sua casa em Marton.

– Bem, graças a Deus por isso, ao menos – John resmunga.– Mas, pelo amor de Deus, Thomas, por que nos trouxe aqui? De todos os lugares? Pensávamos que você fosse como o judeu nos tirando do deserto para a Terra Prometida, mas não é. Você é o maldito Daniel, não é? Nos levando para o covil dos leões!

Talvez John tenha dito isso como uma triste piada.

– Não foi minha escolha – Thomas lhe diz. – Lorde Hastings também quer que procuremos o livro-razão.

– Mas você sabe onde está! – John diz, batendo o punho cerrado na mesa.

– Hastings não sabe disso! – Thomas diz. – E não podemos dizer a ele, porque então saberia que nós temos conhecimento sobre o livro, e se souber disso...

Thomas deixa a voz definhar, repetindo o barulho de pescoço quebrado de Campbell. John toma um gole de sua bebida.

– Por que Hastings quer o livro? – ele pergunta quando coloca a caneca na mesa.

– Ele quer impedir que Warwick o encontre.

– Warwick também quer o livro? – Jack pergunta. – Oh, Santo Deus. É claro que quer.

Agora eles compreendem. John coça seu toco de braço.

– Pelas bolas de Cristo, Thomas – ele diz. – Você está preso, não está? Preso entre esses dois? Entre a cruz e a espada? Santo Deus! Muito pior do que isso. Nós estamos... nós estamos... fritos.

Após um instante, Thomas balança a cabeça.

– Jesus – John continua. – Não é sempre assim? Sempre. Ficamos presos entre dois desgraçados com mais tempo e dinheiro do que bom senso, com o poder de nos dar ordens, mandar outros canalhas atrás de nós, de um lado para o outro. É sempre a mesma droga.

Há uma verdade no que ele está dizendo, mas de nada adianta a curto prazo.

– Então, o que podemos fazer? – Jack pergunta. – Esperar que ele venha?

Katherine pensa no que a segunda jovem de avental falou. Riven leva dois. Um homem e sua mulher. Ou a mãe e seu filho. Ela não será levada, nem deixará que Rufus seja levado.

– Não – ela diz. – Ele não pode nos encontrar.

Thomas olha para ela com a mesma determinação. Não. Ele concorda.

O estado de ânimo de Katherine sucumbe. Ela olha ao seu redor, para o salão da estalagem, e pensa no vilarejo lá em cima da colina e na casa em que esperava que Rufus crescesse, protegido de homens exatamente como Riven, e agora aqui está ele. A pior pessoa possível. Pior do que a serpente do Jardim do Éden. Riven. Aqui.

– Por sorte não desfizemos a bagagem – Jack diz.

Eles se entreolham e Thomas abaixa a cabeça. Ele também havia depositado suas esperanças neste lugar, Katherine sabe, e agora a estrada é tudo que têm pela frente. Ela estende a mão e toca a dele.

– Tudo vai dar certo – ela diz.

Ele ergue os olhos para ela.

– De manhã, certo? Ao amanhecer?

Cada qual balança a cabeça, assentindo.

Campbell retorna e fica pairando ao redor deles, observando, desconfiado, atento.

– Vocês vão partir?

– Precisamos – Thomas lhe diz.

– Minhas filhas – ele diz, abanando a mão em direção à cozinha e à despensa de bebidas, onde estão trabalhando –, elas exageram. Edmund Riven, ele não é mau. Não é como dizem.

Thomas sacode a cabeça.

– Temos uma história com Edmund Riven – ele diz a Campbell.

– Uma história? São velhos amigos!

– Não é bem assim – Thomas diz.

– Oh, tenho certeza que não têm nada a temer dele – Campbell lhes diz.

– Não se trata apenas dele – Jack diz. – É a meia dúzia de homens com quem ele vai chegar.

É mais provável que sejam duas dúzias agora, Katherine pensa, e depois que Campbell contar a Riven mais sobre eles e a existência de uma conexão, é mais provável que sejam cinco dúzias.

– Bem, se precisam ir – Campbell diz. – Vou assegurar que tenham um belo último dia, ao menos. Tenho carne de porco que está curtindo na conserva desde o ano passado.

– Nós vamos partir assim que clarear amanhã de manhã – Thomas diz.

– Assim que clarear? Não, não, não. Certamente não há necessidade disso. Riven não pode chegar aqui antes do fim da tarde, ainda que viaje a noite toda.

– Temos uma longa jornada à nossa frente – Thomas diz.

– Mas há uma névoa sobre a lua, vocês viram? – Campbell insiste. – Vai chover de manhã.

Katherine sabe que não há névoa alguma. Quando entraram, o céu estava límpido, com as estrelas em volta de uma fatia fina de lua como um xale em ombros de veludo azul. Se algo acontecer, será uma geada.

– E um dos cavalos, o castrado, está mancando – Campbell continua, agora com uma espécie de cômico desespero. – Posso cuidar disso de manhã. Temos um óleo para isso. O ferreiro pode fazer uma ferradura nova. E para onde vocês irão? De volta para o sul? Para Lincoln?

– Norte – Thomas mente. – Temos amigos no norte. Perto de Newcastle.

Campbell balança a cabeça. Ele pensa rápido. Seus olhos se movem tão depressa que chegam a cintilar.

– Newcastle, hein? – ele diz. – Então, têm que pegar a estrada do leste. É o modo mais seguro.

– Seguro?

– Sim. Há rumores de problemas ao norte. Ao longo da estrada do oeste.

– Que tipo de problemas? – Thomas pergunta.

– Alguém está convocando homens sob a bandeira do rei Henrique. Quer dizer, o ex-rei Henrique.

Thomas olha para Katherine. É o tipo de coisa que Hastings quer saber.

– Quem é ele? Esta pessoa?

– Ele se chama Robin de Redesdale – Campbell lhes diz, satisfeito por ter alguma coisa para adiar a partida deles, ainda que por alguns instantes. – E há um boato, apenas um boato, veja bem, de que ele não está relacionado a ninguém menos do que ao próprio conde de Warwick.

Faz-se um momento de silêncio, mas então Katherine diz:

– Todo mundo está relacionado ao conde de Warwick.

– Nem todo mundo – rebate Campbell. – Robin de Holderness não estava, não é? Ele também levantou sua bandeira no ano passado, exatamente como Redesdale, mas como não estava relacionado a Warwick, não tinha o seu apoio, e assim o conde de Northumberland decepou sua cabeça.

– Esse Northumberland teria saído contra esse primeiro Robin se tivesse tido o apoio de Warwick? – Thomas pergunta.

– Talvez – Campbell diz. – Talvez não.

– Mas esse Robin de Redesdale está relacionado a Warwick, e assim Northumberland não agirá contra ele? Não vai decepar sua cabeça?

– Ahh – Campbell exclama –, essa é a pergunta que todos nós devemos nos fazer, não é? Se Northumberland de fato for atrás dele, então será o fim de Robin. Sua cabeça estará em uma estaca em York antes do fim da semana, mas e se Northumberland não fizer nada? E se ficar sentado e deixar Robin de Redesdale passar? Deixá-lo prosseguir? O que acontecerá então? Quem sabe?

Hastings tem razão, Katherine pensa. Uma estalagem é onde se descobre tudo. Mas Campbell continua a falar, realmente fofocando, como uma mulher torcendo a roupa, repetindo conversas que ele já ouviu muitas vezes.

– Mas há um terceiro cenário, não é? – ele está dizendo. – E se Warwick convencer Montagu a unir-se a esse novo Robin, hein? Então, teríamos os condes de Warwick e de Northumberland, aliados a Robin de Redesdale, levantando-se contra o rei Eduardo, e só há um jeito de isso terminar. Só que eu não acho que vão deixar Eduardo apodrecendo na Torre como fizeram com o rei Henrique, não é? Eles vão decepar sua cabeça e colocá-la em uma estaca num piscar de olhos.

Thomas olha novamente para Katherine e, em seguida, de volta a Campbell.

– Quantos homens tem esse Robin de Redesdale? – ele pergunta.

Campbell dá de ombros.

– Muitos, pelo que dizem, e crescendo a cada dia.

– E onde estão se reunindo? – Thomas continua.

Campbell encolhe os ombros.

– É como eu disse – responde. – Em algum lugar no vale, no vale de Mowbray, pra lá, por onde passa a estrada do oeste, entende? É por isso que eu digo que vocês devem pegar a estrada do leste.

Ele fica satisfeito com a conclusão do seu argumento.

– E você não faz nenhuma ideia do que pretendem? Quem são eles? Se têm armas e assim por diante?

Campbell franze o cenho.

– O que pretendem? Esta é uma pergunta muito específica, mestre. Agora, você mesmo está começando a soar como um espião. Ah. Esqueci. Você é um homem de lorde Hastings, não é?

Thomas fica visivelmente ruborizado.

– Não é isso – Katherine mente por ele. – Estamos procurando alguns amigos. Que podem estar envolvidos.

– Oh, é mesmo? – Campbell diz, achando que talvez agora a tenha colocado contra a parede. – Quem?

– John – ela diz. – John Horner.

Ela se lembra de Horner como um bom homem. Ele nunca mais foi visto depois de Hexham, portanto provavelmente está morto, já que não era do tipo que deserta. Campbell nunca ouviu falar dele e continua não convencido.

– Bem – ele diz, voltando ao seu tema –, ele não é um homem tão ruim assim, Edmund Riven, apesar do que minhas filhas digam. Mas se estão decididos a ir, lembrem-se: a estrada do leste.

Katherine olha para ele atentamente. É difícil dizer, naquela obscuridade, se está dizendo a verdade ou enviando-os para uma armadilha.

Ocorre-lhe que o próprio Campbell também não parece ter certeza. Talvez um pouco dos dois?

– Muito bem – ele diz. – Vou deixá-los agora. Vamos cozinhar aquela carne de porco assim que amanhecer, para nos despedirmos de vocês com nossas bênçãos.

Depois que ele se afasta, Thomas pergunta se ela acha que ele pode estar dizendo a verdade a respeito da reunião de homens, a respeito de Robin de Redesdale. Ela não vê por que mentiria.

– Mas precisamos de algo mais do que apenas boatos para levar ao conhecimento de Hastings. Precisamos... não sei. Fatos. Nomes. Números. Armamento. Esse tipo de coisa. Onde estão, para onde vão e assim por diante. Não podemos simplesmente ir lá e dizer que um homem chamado Robin, que pode estar ou não relacionado ao conde Warwick, está reunindo homens em algum lugar.

Katherine observa Campbell por um longo instante enquanto ele se ocupa dos outros hóspedes da estalagem, alimentando o fogo, indo de mesa em mesa, colocando a mão nos ombros dos homens na crescente escuridão, inclinando-se sobre eles. Ela os vê virando-se para olhar para ele, e ela o vê rindo e fazendo suas próprias piadas para entretê-los, e o vê dando ordens para suas filhas. Pensa que ele talvez seja um homem tão bom quanto qualquer outro, melhor do que alguns, pior do que outros. Entretanto, há algo a respeito dele em que ela não confia inteiramente, um filamento de dúvida que permanece.

E assim, ela não deveria ficar surpresa quando nas primeiras horas do dia seguinte, sir Edmund Riven, com uma dúzia de homens uniformizados, armados e aparelhados como se estivessem indo para a guerra, entraram ruidosamente no pátio da estalagem sob o pálido clarão azul da lua crescente.


7


Mas a essa altura eles já estavam longe.

Foi a terceira garota de avental – a que tinha a mesma cor de cabelos de Rufus – quem os salvou. Ela havia procurado John Stump sob o luar límpido e frio, exatamente quando ele voltava da latrina junto ao rio, tentando amarrar a calça com sua única mão, de modo que ele não notou a presença da jovem até ela estar bem perto. Ele ofegou quando ela segurou seu braço e então pensou, Bem, por que não, afinal, porque... mas ela não estava atrás disso. Ela lhe disse que seu pai estava mentindo e que Edmund Riven não estava no Castelo de Middleham, como dissera, mas no Castelo de Pickering.

– O que é meio dia a cavalo, a leste – ela disse.

– Leste! – Jack exclamou. – Então, seu pai estava nos mandando na direção dele!

– Você não está me entendendo – ela disse. – Pickering fica a meio dia de distância. Meio dia de viagem. Se Riven está vindo, ele estará aqui antes do amanhecer.

E, então, John compreendeu e voltou correndo. Eles saltaram da cama, amarraram suas roupas, calçaram as botas e, à luz de lamparinas de junco, selaram seus cavalos e puxaram a carroça, ainda carregada com as arcas, para o meio do pátio. Quando Campbell apareceu gritando sobre o medo de incêndio, Thomas ergueu o punho cerrado e lhe disse que deviam matá-lo. O estalajadeiro quase se encolheu na lama, chorando, de modo que por fim Thomas não pôde nem sequer chutá-lo.

Eles atrelaram a carroça ao animal de carga, Katherine enrolou Rufus em cobertas, o levantou para o assento que haviam feito para ele e Nettie o segurou. Eles, então, se viraram para a estrada, quando a terceira jovem de avental apareceu novamente e desta vez vestia uma capa pesada que devia ter roubado de seu pai e carregava uma pequena trouxa.

– Levem-me com vocês – ela disse.

Após um instante de hesitação, quando John olhou primeiro para Thomas e depois para Jack, como se pedisse permissão, ele aquiesceu e ela subiu na garupa de seu cavalo. Assim, ali estavam eles agora, cavalgando o mais rápido que podiam ao longo de uma estrada esburacada na direção oeste, as rodas da carroça saltando e rangendo na terra arenosa, suas sombras ao luar pálido passando rapidamente pelos cascalhos e pedras da superfície, e logo surge uma leve sugestão de aurora no céu.

A terceira irmã grita que eles nunca vão conseguir se livrar.

– Não com esta carroça. Os homens de Riven virão muito depressa.

Thomas sabe que ela tem razão. Deveriam ter deixado a carroça, mas então como fariam com Rufus? Com Nettie, grávida? Com a jovem de avental vestindo a capa do pai? Ele olha ao redor.

– Podemos enfrentá-los? – ele se pergunta. – Matar um ou dois deles? Matar o próprio Riven?

John franze a testa.

– Acha que pode acertá-lo?

Ambos voltam-se para olhar especulativamente para o nascer do sol despontando a leste. O sol brilhará sobre eles primeiro, enquanto esperam, mas poderiam deixar Riven e seus homens passarem e, então, atirar pelas costas. Isso funcionaria, mas somente se Riven não parasse. E somente se não fossem em grande número.

– Não sejam tolos – Katherine diz, surgindo ao lado deles. – Não podem atingir dez homens, ou talvez possam, mas haveria mais cem de onde vieram. Eles nos seguiriam até as portas do inferno.

– Mas vocês poderiam tentar – a terceira irmã diz.

– Aonde esta estrada leva? – Katherine pergunta.

– Kirby – ela diz. – Depois, a Thirsk e outros lugares.

– Estaríamos a salvo em Kirby?

A jovem acha que sim, mas Katherine não está convencida.

– Há alguma trilha de rebanhos? – ela pergunta, dirigindo a mão pálida para as montanhas ao norte. – Qualquer caminho que pudéssemos pegar para sair desta estrada?

A jovem parece não saber. Ela acha que não. Thomas pode ver o branco de seus olhos conforme seu olhar move-se rapidamente pela estrada e as montanhas que assomam ao norte. O céu agora está mais claro, com um tom desbotado de lavanda, e ele pode ver os cumes dos montes. Certamente, pensa, deve haver uma maneira de sair desta estrada.

Eles encontram um caminho ao redor do penhasco. Uma interrupção inesperada no tojo, onde já se ouve a algazarra dos pássaros. Através do mato, vê-se uma faixa clara de terra arenosa, aberta pela passagem de milhares de ovelhas ao longo dos anos, que subsequentemente desaparece nas sombras de um desfiladeiro estreito entre as montanhas. É fácil imaginá-la serpenteando até o topo e continuando mais além.

– Jamais conseguiríamos levar a carroça até lá – Jack diz.

– Não – a jovem concorda. – Exatamente.

– Esqueçam a carroça – John diz.

– É tudo que possuímos – Jack diz. – E Nettie não irá muito longe sem ela. Não a pé.

Thomas olha para Nettie. Ela vem chorando sem parar desde que foi acordada e agora está choramingando.

– Podíamos achar um lugar para ela em Kirby – a jovem sugere.

– A que distância fica? – Thomas pergunta.

Novamente, a jovem é vaga.

– Não vou deixá-la – Jack lhes diz.

– Não – Thomas concorda.

– Mas Riven está procurando um grupo de sete – Katherine supõe. – E se não formos um grupo de sete?

– Nos dividir? – Thomas pergunta.

– Não – a jovem diz. – Seria tolice. Ainda assim, ele os encontraria.

Mas Jack não lhe dá ouvidos.

– Tem razão – ele diz a Katherine. – Riven não sabe quem eu sou. Eu poderia seguir para Kirby. Eu e Nettie. Você e Thomas podem pegar a trilha. Afinal, são vocês quem ele quer.

Thomas acha que Jack tem razão.

– E John? Você viria conosco? – Jack pergunta.

John pensa por um instante antes de concordar.

– Você vai ficar bem? – ele pergunta a Thomas.

– Não gosto disso – diz a jovem.

Thomas ainda não tem certeza. Talvez a garota tenha razão. Eles não deveriam apenas tentar chegar a Kirby? Encontrar um pátio ou algo assim? Mobilizar os habitantes locais para ajudá-los? Mas o que isto tem a ver com esta garota? E de qualquer forma, que escolha eles têm? Ele não quer arrastar Jack para isso mais do que já fez. Deve deixá-los partir, livres.

– Está bem – ele diz a Jack. – Leve a carroça. Vá para Kirby. E depois para o sul, certo? Vá para York, se puder. Viaje o dia todo. Enquanto os cavalos aguentarem. Encontraremos com vocês lá. Daqui a três dias. Ao meio-dia, digamos, embaixo do portão onde exibem as cabeças em estacas. Se não estivermos lá, ou vocês não estiverem, tentem o dia seguinte. Depois disso... eu não sei. Mas esperem por nós.

Ele acha que talvez devam esperar até uma semana. Jack e John se entreolham. Após um instante, ambos balançam a cabeça, assentindo. Eles também parecem se sentir culpados e, ao vê-los assim, Thomas percebe-se um pouco mais aliviado. Talvez ele e Katherine estejam optando pela empreitada mais arriscada.

Katherine desce de sua sela e toma nos braços a criança adormecida no chão da carroça.

– Tem certeza? – ele pergunta.

Claro que não tem, mas que escolha eles têm?

A jovem não para de espreitar ansiosamente na direção do sol nascente. Riven surgirá ali a qualquer momento. John ainda tem um ar sombrio.

– E se ele alcançá-los? – ele pergunta. – E se não cair nessa? Serão somente você e Katherine, contra ele e seus homens. Ele vai... sabem?

Thomas pensa em Rufus e Katherine, em sua pele brilhando sob um carvão em brasa, e tem sorte de não ser capaz de imaginar isso.

– Vão embora – Thomas diz. – Parem de se preocupar. Ficaremos bem. É com vocês que eu me preocupo.

Thomas pega seu arco da carroça. Após um instante de hesitação, ele deixa seu machado de guerra. Mas Katherine sacode a cabeça. De repente, ela parece ter certeza.

– Deve trazê-lo – ela diz. – Dá azar se separar dele outra vez.

Assim, ele o tira da carroça e mais uma vez se sente nervoso em sua companhia. É uma arma impressionante, pensa, destinada a um propósito terrível, com uma aura própria, e todos os olhos se voltam para ela, mesmo agora, à claridade cinza-azulada. Ele a prende atravessada atrás de sua sela, quase estremecendo, ao lado de seu arco e de sua aljava de flechas.

– Depressa – Jack grita.

Antes de partir, Thomas pega um punhado de moedas de sua bolsa e pressiona Jack para aceitá-las.

– Não – Jack diz. – Já tenho o suficiente.

– Pegue – Thomas insiste.

É dinheiro de sangue, para salvar a consciência de Thomas, e ele tem prazer em fazer isso. Monta outra vez, acena adeus aos outros, que acenam em resposta, seus rostos apenas discos pálidos, e por alguma razão sussurram ao desejarem boa sorte uns aos outros e que Deus os acompanhe. Thomas é grato pela despedida apressada e por ainda estar bastante escuro, pois sente o medo percorrer sua espinha dorsal ao pensar nos homens mal-encarados de Warwick cavalgando soturnamente pela noite, conduzidos por Riven, e então sente a nauseante dor da culpa.

A jovem ainda olha de um lado para o outro, parecendo ansiosa. Ela o analisa atentamente, ele sente, como se estivesse tentando decidir com quem deve ir. Thomas não quer tê-la em sua consciência também.

– Vá com eles – ele lhe diz. – Vá com Jack.

Ela faz uma careta que ele não compreende e com um último e desejoso olhar para seu cavalo, como se, de tudo, aquilo fosse o que ela mais desejasse, ela se vira e atravessa para onde Jack aguarda.

– Nós podemos simplesmente deixá-los? – ele pergunta a Katherine.

– É preciso – ela diz. – E depressa. Riven não vai querê-los. Ele só vai querer a nós.

Ela se vira e toca seu cavalo para fora da estrada, e após alguns instantes olhando a carroça se afastar, Thomas a segue pela descida, entrando em uma depressão escura que de cima parece nunca terminar, antes de começar a subir novamente até encontrar a antiga trilha dos rebanhos, estreita onde as ovelhas rasparam o solo em volta das pedras exatamente como um riacho o faria. Não é bom para cavalos no escuro, e eles têm que desmontar outra vez, mas logo ele agradece pelos volteios do caminho e pelos espinheiros entortados pelo vento que se erguem dos dois lados, protegendo-os da vista.

Eles continuam subindo por algum tempo, para longe de Jack, John, Nettie e a garota de avental, e à frente dele, Thomas pode ouvir Katherine encorajando Rufus, que cochila, quase caindo da sela.

– Posso levá-lo, se quiser – ele diz.

Thomas pega Rufus nos braços. Ele não pesa nada. É como um camarão. Rufus enterra o rosto no ombro de Thomas e atira os bracinhos em volta de seu pescoço. Ainda está quase adormecido, de modo que Thomas o segura por um instante, como qualquer pai faria, em circunstâncias mais felizes. À luz do alvorecer, ele vê que as faces de Katherine estão brilhantes de lágrimas. Ele sente um profundo aperto de vergonha.

– Eles vão ficar bem – ele diz.

Ela balança a cabeça e reprime um soluço.

– Eu sei – ela diz. – Eu sei.

– Vamos, então – ele diz. – Vamos continuar avançando.

E nada mais é dito por algum tempo, mas conforme prosseguem para o norte, subindo depressa pelo lado do charco, para longe de Riven e de seus amigos. Thomas sente gosto de cinzas na boca. No alto da primeira colina, eles param outra vez onde o caminho se aplaina e os pássaros fazem uma algazarra, revoando e batendo as asas, alarmados. Eles podem ver a estrada outra vez, mas não há sinal de Jack, nem de John, nem das mulheres, nem tampouco de Riven e seus homens.

– Talvez eles tenham conseguido chegar a esse lugar, Kirby, não é?

– Vamos pedir a Deus que assim seja – ela diz.

Eles ficam parados, observando, por um instante, e o sol levanta-se tão rapidamente que é possível ver seus raios suavizados pelas nuvens expandindo-se, atravessando a aurora, iluminando as bolsas de névoa suspensas entre as árvores, nas depressões e fossos abaixo. Ele lança seu fulgor diretamente através das colinas e atinge em cheio o rosto de ossos altos de Katherine. Vendo seu queixo empinado, o ângulo de sua cabeça e a expressão desafiadora, apesar de tudo, apesar de cada revés, Thomas não pode imaginar estar ali sob o primeiro sol da manhã, com desastre a toda volta, sem ela. Sorri para ela e ela quase sorri para ele. Thomas sente Rufus aconchegar-se contra seu peito e lembra-se de algo que John Stump disse ao que já parece que foram meses atrás, sobre como esta porção de felicidade – esses cinco anos – pode muito bem ser a cota a que um homem tem direito em uma vida inteira, e ele imagina que, se isso for verdade, então não pode se queixar da sorte.

– Vamos – ele diz. – Riven pode estar em qualquer lugar.

Assim, eles continuam montanha acima, até que finalmente, no topo da encosta mais íngreme, o caminho emerge do meio dos espinheiros raquíticos e se dissolve em um platô de ampla pastagem de terras altas. Há ovelhas por toda parte, de cara marrom e chifres bem enrolados, e ali é morada de cotovias que esvoaçam e de muitos insetos voadores, pontos brilhantes onde captam o sol. Rufus acorda, se contorce para ver e fica encantado. Thomas o coloca de volta na sela.

– Flautas – Rufus diz.

E de fato, um pouco mais tarde, eles podem ouvir o assovio fino da flauta de um pastor de ovelhas tocando uma canção curta e simples. Eles olham à volta, à sua procura, mas provavelmente ele está à sombra de alguns montes de feno, e eles não podem vê-lo. Assim, partem novamente, e o capim é alto, prateado pelo orvalho, e ele açoita suas pernas conforme avançam na direção norte. Cavalgam a manhã inteira entre as ovelhas e o capim alto, subindo e descendo, sem ver ninguém, sequer uma alma.

Por fim, podem olhar para trás e ver de onde vieram. O caminho está vazio. Não estão sendo seguidos. Riven foi atrás de Jack e John Stump, Nettie e a jovem de avental. Thomas sente sua culpa se redobrar e mal pode olhar para Katherine. Nenhum dos dois diz nada e, assim, continuam cavalgando em silêncio.

O calor do sol fica mais pesado a cada passo. É como uma palma da mão quente na nuca de Thomas. Rufus está com fome e Thomas tem em sua bolsa um pouco de pão seco, que ele dá ao menino, mas que provavelmente não é suficiente. Queria ter um chapéu de palha, em vez de um gorro de lã. Ele se pergunta como Katherine pode suportar aquelas saias, mas ela provavelmente já se acostumou. Rufus já está espirrando com a febre do feno, os minúsculos pólens que causam comichão nas orelhas de seu cavalo.

Eles encontram outro caminho, embaixo, no começo de um vale que se estende de noroeste para sudeste, no fundo do qual se vê um fio gorgolejante de água limpa e fresca, onde deixam os cavalos beberem e eles se lavam e bebem também, desejando que tivessem um pouco mais de pão. Thomas pode ver que sua pele está queimando sob o calor do sol, ficando rosada e quente, e fora do sol, a água é boa, mas Deus! Está tão quente! Mesmo ali embaixo.

Katherine permanece quieta e pensativa, observando Rufus afastar-se um pouco, explorando as poças do córrego onde há alguns minúsculos peixes pretos. Atrás deles, os cavalos pastam, seus beiços preto-azulados e surpreendentemente móveis.

– Bem, e agora, para onde? – Katherine pergunta.

Thomas sente dificuldade em se concentrar.

– Damos a volta para oeste – ele diz.

– Depois voltamos para o sul, para York? Parece uma longa volta.

Thomas concorda.

– Estive pensando – ele diz.

– Em quê?

Ele tenta se recordar do que estivera pensando. Então, se lembra.

– Campbell disse que Robin de Redesdale estava reunindo homens no vale de Mowbray, não foi? Que fica a oeste.

Ele aponta para o leste. Katherine o corrige, apontando para o alto da montanha e para a direção certa. A ideia de outra subida assombra Thomas. Ele molha o rosto várias vezes com a água do córrego, mas sente-se cada vez mais acalorado. Imagina vapor saindo de suas costas. Sente-se letárgico e seu corpo irradia calor.

– Você está bem, Thomas? – Katherine pergunta.

Ele balança a cabeça debilmente. Parece que ela está recheada de lã e faz muito calor. Calor demais para pensar. O suor escorre para dentro de seus olhos. A terra parece flutuar.

– William Hastings – ele diz. – Ele iria querer que soubéssemos alguma coisa a mais sobre esse... esse Robin de Redesdale, não é? E se víssemos quantos homens? Por onde ele anda. Quem está com ele. Esse tipo de coisa.

Katherine ainda olha para ele ansiosamente.

– Poderíamos até descobrir se tem o apoio de Warwick – Thomas acredita. – Tais notícias seriam de interesse para Hastings, sem dúvida.

– Mas se ele estiver reunindo homens lá – Katherine diz –, vamos querer ser convocados? Você sabe como é com esse tipo de exército.

– Só precisamos fazer umas perguntas. Dar uma olhada neles, quero dizer. Ver se tem alguém usando o uniforme do conde de Warwick ou do conde de Northumberland.

Ele pode ver que ela não gosta da ideia. Estar perto de tropas que estão sendo convocadas – particularmente se estiverem se reunindo em rebelião – é perigoso.

– Temos que poder dizer alguma coisa a ele – Thomas afirma.

Ela balança a cabeça, concordando. Eles montam em silêncio e continuam a viagem, agora para oeste, com o sol batendo em seus ombros esquerdos, e falcões sobrevoando no alto, seus gritos curiosamente sombrios apesar do calor do sol. A terra tremula em uma névoa de calor e parece que estiveram cavalgando a tarde inteira. Os cavalos suam copiosamente. Ele também. Por fim, encontram um caminho quase apagado, e depois de muito tempo, durante o qual ainda nenhuma palavra é trocada, eles se deparam com mais ovelhas agrupadas na sombra de alguns álamos. O caminho se torna mais claro, e há muros de pedra à frente, bem ordenados, e ainda mais ovelhas, tosadas recentemente, que levantam os olhos de sua sombra. Há, ainda, um suporte para tosquia de um lado e parece que estão chegando a um vilarejo.

De fato, depois de uma subida, na parte inferior do vale, eles avistam algumas construções de pedra, baixas, espalhadas em torno de uma igrejinha atarracada, com fileiras de cercados para animais, feitos pelos mesmos muros de pedras encaixadas sem cimento. O ar tremula no calor e há pessoas ali, exatamente como era de se esperar: homens e mulheres cuidando devagar de seus afazeres à temperatura escaldante. Ouvem cachorros latindo preguiçosamente, e o sol está muito quente. Quente demais.

Thomas se sente esgotado, exaurido. Senta-se largado em sua sela e mal consegue focalizar a vista. Mal consegue tocar o cavalo. Quisera não estar carregando Rufus, pois o menino também é muito pesado e quente.

Descem a encosta. O caminho se amplia tornando-se uma via desgastada. Um criador de porcos senta-se à sombra de um muro e ri ao ver Thomas tão queimado de sol. Cachorros latem, mas saudando-os. Entretanto, sentar-se ereto e tocar seu cavalo é tudo que Thomas consegue fazer. Eles continuam até à sombra fresca da torre, onde porcos esparramam-se, arquejantes, gansos e galinhas se misturam, há um cachorro de olhos azuis preso a uma corrente em um cercado próprio, que olha para eles diretamente detrás de três barras, exatamente como se estivesse em um instrumento de punição pública, e Thomas pensa distraidamente que ele parece estar planejando uma terrível vingança.

– Cerveja – Thomas diz.

Há uma cervejeira, com uma vassoura do lado de fora de sua casa para mostrar que ela tem cerveja para vender, Thomas mal consegue descer da sela, mas a bebida é fresca e ele não se importa com o valor. Bebe três canecas, quase sem fazer uma pausa. A criada da cervejeira é uma jovem bonita, que também ri da vermelhidão da pele de Thomas, mas a cervejeira está mais ansiosa, assim como Katherine, e depois que Thomas terminou a quarta caneca de cerveja, ele diz que sente o vapor subir de seu corpo, embora se sinta melhor, mas nesse instante todos recuam quando ele se dobra para a frente com náusea e vomita cada gole tomado. Ele consegue se distanciar dois passos do vômito antes de cambalear e desabar no chão.

– É somente o calor – Katherine lhes diz.

Thomas é levado para fora e deitado em uma sombra lançada pelos altos muros de pedra do solar surpreendentemente grande e confortável do marido da cervejeira. Thomas está sem chapéu, usando apenas sua meia-calça, camisa enrolada para cima e gibão desamarrado. Ele está escuro e brilhante do suor que parece emanar de sua pele queimada do sol. Seus pés descalços são colocados em um balde de água fria e há mais cerveja ao seu lado, em um grande jarro, embora Thomas nem o toque, com medo de vomitar outra vez.

A cervejeira, sra. Watkins, e seu marido, parados a uma curta distância, observam preocupados. Seu marido, John Watkins, não é o tipo de homem que Katherine imaginaria ser dono de tantas terras. Ele deve ter aproximadamente uns quarenta anos, corpulento, quase gordo, com um rosto manchado e uma cicatriz, lívida e de bordas endurecidas, que atravessa o maxilar direto até as suíças. Se ela não soubesse que era o proprietário deste solar e de toda esta terra, presumiria que fosse um caipira, mas lá estava ele, com um casaco de veludo ajustado que deve ter sido feito para ele quando era mais jovem.

– Por mim, eu nunca o teria deixado entrar – Watkins exclama indignado.

Mas é a sra. Watkins quem toma esse tipo de decisão, enquanto Watkins bebe e observa com olhinhos de porco.

– Ele vai ficar bem? – a sra. Watkins pergunta.

– É melhor que fique – Watkins interrompe. – Não vou deixá-lo morrer em minha casa.

Katherine pergunta se eles teriam um colchão para ele. Os criados trazem um colchão de palha e o colocam junto ao fogo apagado da lareira de pedra. Eles não dão nenhuma assistência quando Katherine ajuda Thomas a ficar em pé e entrar na casa. Estão ansiosos demais. Quem sabe que doença é essa? Eles concordam com seu patrão: jamais deveriam tê-lo deixado entrar no pátio, muito menos na casa. Rufus observa, calado e ansioso outra vez. Ela lhe dá um sorriso.

– Ele estará bem pela manhã – ela diz.

Ela faz Thomas se deitar. Seus olhos estão abertos e ele é capaz de agradecer-lhe.

– Desculpe – ele diz.

– Não é nada. Não é culpa sua. O sol. Vamos, feche os olhos. Durma.

Rufus faz suas preces e depois deita-se ao lado de Thomas, um pouco afastado, porque, como ele diz, seu pai está quente demais esta noite. Ela beija Rufus e acaricia sua testa. Em poucos instantes, ele também está adormecido, ela o abençoa e se dirige a um banquinho à mesa, onde irá comer com Watkins e sua mulher. Sente-se faminta, de repente, apesar do calor. A sra. Watkins é uma mulher simples, piedosa, que assim como seu marido, parece deslocada em uma casa tão boa. Sem pressa, ela faz suas preces antes da refeição, mas Watkins é menos cuidadoso, e quando a comida é trazida – um pato assado e untado com a geleia de frutas vermelhas e especiarias, acompanhado de um prato de legumes e ovos –, ele não perde tempo em se servir e leva as colheradas à boca como se tivesse trabalhado o dia todo na lavoura. Ele também bebe assim e, depois de ter tomado cerveja suficiente, se volta para Katherine e ela vê que ele se sente encabulado.

– Então, o que os trazem aqui para nossas bandas? – ele pergunta, sem olhar diretamente para ela, mas estendendo a mão para um prato de amêndoas e leite.

Katherine não vê nenhuma razão para não lhe dizer a verdade.

– Decepção, na verdade – ela diz. – Esperávamos ter um trabalho um pouco ao sul daqui, mas... mas não era para ser.

Watkins resmunga.

– E então estão viajando por aí para ver que oportunidades o Senhor lança em seu caminho?

– Sim, de certa forma – ela concorda.

Ele resmunga e bebe mais cerveja. Ela se pergunta o que mais haveria para dizer. Então, imagina que Watkins pode saber de algo útil sobre esse Robin de Redesdale.

– Embora pareça que escolhemos a estação do ano errada para isso, não é? – ela especula.

– Sim – Watkins diz. – Certamente.

Ele come seu pudim, bebe mais cerveja, o rosto escondido pela caneca, mas ela pode ver seus olhinhos de porco piscando. Talvez não se fale sobre tais assuntos à mesa do jantar? No entanto, sir John sempre o fazia. Ou talvez por ela ser uma mulher? Assim, ela continua.

– Ouvimos dizer que há homens se reunindo sob o estandarte do velho rei...

Watkins coloca sua caneca de volta sobre a mesa. Olha para a mulher, que faz um sinal quase imperceptível com a cabeça, como se dissesse, Fale com ela.

– Oh, sim – Watkins murmura. – Maldito Robin de Redesdale. Só que ele não está erguendo sua bandeira pelo velho rei Henrique, sabe? Ele a está erguendo pelo conde de Warwick. É primo do conde ou algo assim, posicionado no vento como o dedo de um arqueiro para ver para que lado o conde de Northumberland vai pular se Warwick criar uma rebelião contra o rei Eduardo.

– Mas Warwick e Northumberland são irmãos, não são? – ela pergunta. – Certamente um irmão sempre sairia em defesa de outro irmão, não é?

Watkins dá um tapinha no nariz.

– É o que seria de imaginar, mas o conde de Northumberland deve muito ao rei Eduardo, não é? Foi o rei Eduardo quem o elevou a uma posição tão alta.

– Mas Warwick não o elevaria a uma posição ainda mais alta se Northumberland se unisse a ele?

Watkins reflete sobre o que ela disse.

– Não havia muito mais que Warwick pudesse oferecer – diz, após alguns instantes. – Ou que ele fosse querer. Ser o conde de Northumberland é a posição mais importante aqui, sabia? E eu sei como ele é, de quando ele era lorde Montagu. Servi sob a bandeira dele por cinco anos, já faz algum tempo, e vou lhe dizer: ele é como Carlisle. Já estiveram com Carlisle? Não? Bem, claro que não. Mas é assim que ele é. Como o maldito Carlisle.

Katherine não faz a menor ideia do que significa aquele elogio rancoroso. Watkins toma mais um grande gole de cerveja.

– Então, ele não vai se unir a Warwick? – ela especula.

– Eu não disse isso – Watkins lhe diz.

– Então ele vai?

– Também não disse isso.

Ela tenta outro caminho.

– E quantos homens ele tem? – ela tenta. – Este Redesdale?

– Não sei – Watkins retruca. – Quem é você? Alguma espécie de espiã?

– Marido! – a sra. Watkins exclama.

– Não sou, lhe asseguro – Katherine mente. – Só estou... preocupada que meu marido não seja pego no meio de uma... uma luta.

Watkins bate com o punho cerrado na mesa.

– Oh, todos nós estamos preocupados com isso! – ele diz. – Enquanto este maldito Robin de Redesdale estiver por aí brincando com esses idiotas filhos da mãe, todo homem por aqui correrá para o lado dele pela chance de alguma diversão e malditos jogos no sul, não é? E assim a maldita colheita não será feita, e eu terei que pagar o dobro, o dobro, me ouviu?, para arranjar alguém com dedos suficientes para tosar uma única das minhas malditas ovelhas! É com isso que eu estou preocupado!

Ele cai em silêncio e o criado vem outra vez com uma espécie de bolo e outro jarro de cerveja. Katherine não sabe o que dizer. Gostaria que fossem todos para a cama, mas três velas estão acesas, Watkins manda avivar o fogo também e, em seguida, ele sai, tropegamente, para se aliviar.

– Ele está de mau humor – diz a sra. Watkins. – Já perdemos homens para Redesdale. Parecem estar aderindo a ele aos montes. Às suas cores, quero dizer. Gente de longe, de toda parte. Dizem que há milhares de homens no vale de Mowbray, só aguardando a ordem.

– Milhares?

– Ah, sim. É uma pena que estejamos tão fora do caminho ou eu estaria vendendo minha cerveja aos tonéis. – Ela ri, tristemente. – De qualquer modo, não se incomode com o velho Watkins. Ele late mais do que morde. Mas o problema é que ele sente isso, sabe? Esteve com os homens de lorde Montagu no norte. Foi como ele conseguiu sua cicatriz. – Ela traça a cicatriz de seu marido em seu próprio queixo.

Katherine lhe diz que não deveria ter feito tantas perguntas.

– Ah, não – diz a sra. Watkins. – Ele gosta de conversar.

Ambas sorriem. Thomas começa a tossir. Katherine vai até o marido. Ele está deitado, aturdido, inconsciente a tudo, arquejando como um cachorro no cio. Ela umedece os lábios dele com cerveja. Ele os lambe e ela o coloca sentado para fazê-lo beber. Thomas é como um peso morto. Seus olhos, no entanto, se reviram para um estado mais consciente e ele bebe a cerveja.

– Que Deus a abençoe – ele diz com a voz rouca.

Ela sorri e o faz deitar-se outra vez. Ele fecha os olhos e volta a dormir antes que Watkins retorne e vire sua cadeira de frente para o fogo. Parece mais calmo do que antes, como se a explosão o tivesse acalmado, e seu sotaque, vacilante antes do jantar, parece ter se acomodado no tom honesto, rude de sua juventude.

– Vou lhe dizer uma coisa – ele diz –, espero que Northumberland não caia no truque de Redesdale.

Há uma ênfase diferente em sua voz, como se ele quisesse que ela fizesse mais perguntas.

– Por que não? – ela pergunta.

– Por que não? Vou lhe dizer por que não. Porque eu ainda estou ligado ao velho filho da mãe. Ainda tenho o casaco do seu maldito uniforme em algum lugar, se os ratos não o tiverem destruído, da última vez em que estive em campo com ele.

Ele afaga os pelos curtos da barba e é possível ver no brilho de seus olhos que ele está longe dali.

– Foi onde eu arrumei isto. É um arranhão, eu sei, nada além de um corte, embora, por Deus, o sangue jorrava como mijo, desculpe meu modo de falar.

– Oh, John, não continue. A sra. Everingham não quer ouvir suas velhas histórias.

– Não – Katherine diz. – Quero sim.

Watkins não presta atenção à conversa.

– Foi um sujeito grandalhão quem fez isto – ele diz. – Útil com seus punhos em uma taverna, posso jurar, mas estávamos em uma mina de carvão. Pode acreditar? Em uma maldita mina de carvão. Foi em 1464, depois da batalha de Hexham. Já ouviu falar?

Katherine balança a cabeça. Ela se lembra de Hexham, de que fugira com Thomas da confusão e de como estava mais doente do que já estivera antes ou depois.

– Mas foi depois – Watkins continua. – Quando estávamos perseguindo os desertores de Somerset, por Deus havia muitos deles, e estávamos na trilha de um grupo de cavaleiros, em Tynedale, na floresta lá. Mais ao norte.

Ele gesticula e ela acredita que conhece aquelas florestas. Talvez sejam as mesmas que eles tiveram que atravessar depois de terem fugido de Hexham naquele dia. Thomas saberia, mas ele dorme, sua respiração é um esforço regular. Estranho pensar que Watkins pode tê-los perseguido e tentado capturá-los.

– Nós os perseguimos pelo meio de uma infinidade de malditas árvores – Watkins continua – com uma infinidade de malditas folhas e eles nunca pensaram em esconder seus rastros, hein? Era como se estivéssemos perseguindo uma parelha de bois e um maldito arado. Então, não era difícil, e eles iam devagar porque estavam sobrecarregados.

Ele enrola a palavra “sobrecarregados” como se só a usasse em ocasiões especiais, talvez somente quando está contando esta história. A sra. Watkins suspira como se a tivesse ouvido mil vezes, descansando a cabeça na mão, o cotovelo na mesa.

– Assim, nós os alcançamos – Watkins continua – e eles estão de pé no meio de uma clareira, discutindo sobre alguma coisa, e há um nobre que está gritando com os outros, como sempre é o caso, dizendo-lhes isso e aquilo, e são cerca de dez, todos reunidos lá com seus cavalos e têm uma fila de mulas com eles.

Ele revive a cena como aconteceu, mas faz uma pausa para tomar um gole de sua cerveja, os olhos marejados com alguma emoção. Vergonha? Remorso? Ela não sabe.

– Bem – ele retoma a história –, como o nobre está gritando tanto e eles estão gritando de volta, nós temos tempo, então os cercamos, depois os atacamos e os pegamos de surpresa. Perdemos uns dois homens na luta, que Deus os tenha, mas matamos todos eles. Ou assim pensamos. Mas quando tudo terminou e todos aqueles corpos jaziam pelo chão, nós pensamos, Que estranho, as mulas não estão mais sobrecarregadas, não é? E para onde foi aquele nobre?

– Um mistério – murmura a sra. Watkins.

– Sim – Watkins concorda. – Somente então vemos aqueles rastros entrando no que parece ser uma espécie de caverna, mas um dos rapazes diz que se trata de um poço de mina, e então vemos que o pegamos e o que quer que as mulas estivessem carregando.

– O que elas estavam carregando? – Katherine pergunta.

Ele ergue a mão gorda.

– Tudo a seu tempo – ele diz, e toma outro gole da cerveja. – Começamos a gritar para que ele saísse, mas não saía. Sabia o que o esperava. Então, tínhamos que entrar. Ninguém queria ir, então tivemos que tirar no palitinho. E quem tinha que tirar o mais curto?

Ele aponta para si mesmo.

– Então tenho que ir primeiro. Uma rápida oração a Santa Bárbara, que alguém diz ser a santa a quem os mineradores de carvão rezam, e eu entro, me arrastando de quatro no chão. Não está escuro como breu, já que existe uma luz, um buraco no teto da caverna, graças a Deus, ou a Santa Bárbara, pode escolher. Mas antes que eu possa enxergar alguma coisa, vejo um vulto, sabe? Vindo para cima de mim com uma alabarda, gritando e berrando. Mas sua arma prende em alguma coisa, ou Deus em Sua misericordiosa sabedoria a desvia, e a lâmina faz assim... – ele corre o dedo ao longo da linha de seu queixo.

– Um milagre – sua mulher entoa.

Ele olha para ela antes de retomar a história mais uma vez.

– Bem, eu tenho uma adaga colhona – ele diz –, e num espaço como aquele, uma mina de carvão, lembre-se, não há nada melhor do que uma arma dessas, posso lhe garantir, porque, por meu Cristo, eu acabei com ele. Devo tê-lo apunhalado umas cem vezes. Mil. De tanto medo que eu sentia.

Ele precisa de outra bebida mais forte.

– Quando tudo terminou, ergui os olhos e pude ver que havia mais um deles escondido na caverna. Seu rosto estava naquele foco de luz que vinha de cima, e eu soube no mesmo instante que aquele era o nobre, o homem que estava liderando o grupo, o que estivera gritando, e pensei, Oh, Cristo, ele vai me matar agora, porque você sabe como são as pessoas dessa espécie. Eles praticam luta o dia inteiro. E assim eu estava prestes a gritar pela ajuda dos outros quando ele simplesmente... cedeu. Assim sem mais, nem menos. Não esboçou a menor reação.

“Assim, eu lhe digo para sair e ele sai. Então, depois que passou por mim e saiu ao ar fresco da clareira outra vez, ele fica lá parado, cercado por homens que o abateriam tão logo o vissem, e exige, sabe como eles são, ele exige ser levado à presença de lorde Montagu, naquele mesmo instante. Então, nós lhe perguntamos quem ele é e ele nos diz que é sir William Tailboys. Já ouviu falar dele?”

Katherine lembra-se vagamente do nome. Ele era sempre o mais altivo e distante no acampamento, não era? O que tinha as melhores tendas, aquele de quem todos os demais se ressentiam. Suas únicas lembranças da época são de estar doente, de vomitar e de querer dormir todas as horas. As demais lembranças são turvas, incompletas ou enlouquecidas pela fúria de tudo aquilo.

E agora Watkins continua a história sobre como resolveram que não iriam matar esse Tailboys, mas pedir um resgate e encher seus alforjes com o pagamento, embora a ideia de sequestrar um inglês desse um nó no estômago de todos.

– Mas não daria certo – ele diz, quase com tristeza –, porque o conde de Warwick queria mais era cortar a cabeça do sujeito, de modo que jamais conseguiríamos nosso dinheiro de qualquer forma. Mas naquela altura já não estávamos nos incomodando com nenhum resgate insignificante, entende?

Watkins olha para ela nesse instante com seus olhinhos brilhantes, como se tivesse sido muito esperto.

– Não? – Katherine pergunta.

– Não – ele diz. – Não, nós não quisemos. Porque você sabe o que havia naquelas mulas?

Mesmo contra a vontade, agora ela se vê envolvida pela história.

– Conte-me – ela diz.

Watkins inclina-se para a frente, quase saindo de sua cadeira, olha fixamente para ela e diz:

– Três mil marcos!

Katherine fica momentaneamente confusa. Três mil marcos. É impossível avaliar tal soma de dinheiro. Existe tanto dinheiro assim em todo o mundo?

– Três mil marcos? – ela confere. – Três mil marcos?

Watkins dá uma gargalhada.

– De onde... de onde veio tudo isso? – ela pergunta.

– Era o tesouro de guerra do velho rei Henrique! Tailboys carregou as mulas com o dinheiro depois da derrota em Hexham e o levou para a floresta para que não caísse em nossas mãos, entendeu? Não sei se ele já pretendia escondê-lo na mina e voltar Deus sabe quando, mas se assim fosse, nós o impedimos, não é?

– E... e o que vocês fizeram com tanto dinheiro?

Watkins ergue os olhos para as vigas escuras da mansão e faz um amplo gesto circular abrangendo o resto da casa, querendo dizer, Isto.

– Fizemos a divisão entre nós e o velho lorde Montagu, como ele era na época, ficou do nosso lado e disse que era um bálsamo para nossos problemas. É um bom homem, como costumo dizer. Como Carlisle. Assim, cada um de nós ficou com o suficiente, alguns para viver seus dias com conforto, outros para beberem até irem cedo para seus túmulos. Mas tudo que você vê aqui: esta mesa, esta louça, este saleiro, até mesmo estas roupas, tudo vem daquele único dia. Isso mudou minha vida. Fez de mim o que sou hoje e esta é a razão pela qual eu nunca mais voltarei a ser soldado. Jamais poderei superar aqueles dias. Jamais.

É tarde e o fogo está quase apagado. As velas piscaram até se extinguirem e a sra. Watkins ronca suavemente, a cabeça descansando sobre os braços gordos dobrados sobre a mesa, uma imagem pacífica à luz âmbar fraca. Watkins termina seu vinho, bate a caneca na mesa para acordá-la e, então, os criados vêm preparar o seu senhor e sua senhora para dormir. Os dois sobem para seu aposento no alto das escadas e os criados estendem os colchões. Por fim, o abafador é colocado sobre as brasas e a escuridão se instala.

Katherine permanece acordada, levando seus pensamentos para a estrada que Jack, John Stump e Nettie seguiram, e reza por eles, esperando que já estejam em York, ou talvez em uma estalagem ao longo do caminho. Mas não demora muito para começar a pensar na sorte, em como alguns a têm e outros não, e ela não é uma alma tão boa que não se ressinta da Roda da Fortuna, sempre girando contra ela, enquanto gira em favor de um homem como Watkins. Tenta imaginar como seria encontrar três mil marcos em um buraco no chão da floresta, mas não consegue, e adormece se perguntando se deveria contar a história de Watkins para Thomas ou não, decidindo então que provavelmente não deve: ele está sensível a respeito de dinheiro no momento e isso só iria mexer na ferida. Acima de tudo, ela quer que o marido seja feliz – na medida do possível.


8


Thomas acorda ao amanhecer em um sobressalto. Onde está? Katherine está com ele, Rufus também, ambos a salvo, mas ele não faz a menor ideia de onde está ou como chegou ali. Lembra-se do dia anterior, mas não de como terminou. Ele acorda Katherine. Ela senta-se. Explica. Ele deita-se outra vez e pressiona o rosto com as mãos.

– Santo Deus – ele diz.

Eles se levantam, fazem suas preces e se vestem. Em seguida, Katherine veste Rufus enquanto por todos os lados criados dos Watkins aprontam-se para o novo dia e, depois do café da manhã de pão e cerveja, eles retomam seu caminho, com um garrafão extra de cerveja da sra. Watkins e um rápido e rabugento pedido de desculpas do próprio Watkins.

– Desculpe-me por falar tanto ontem à noite – ele diz a Katherine. – Minha mulher já me passou um sermão.

– Não. – Ela ri. Thomas se pergunta sobre o que eles estão falando, pergunta a Katherine depois que agradecem e se despedem.

– Ah, nada – ela diz. – Ele falou sobre seus dias no exército de lorde Montagu. Ele esteve em Hedgeley Moor e Hexham, sabe? Mas não é um arqueiro, então não pode ser culpado pela perna de Jack.

Eles continuam cavalgando por mais algum tempo.

– É estranho, não é? – Thomas diz. – Que ele nos alimente, nos dê cerveja e nos deixe dormir junto à sua lareira, quando pouco tempo atrás estávamos tentando nos matar.

– Você preferiria que ele fosse coerente? – ela pergunta.

Thomas acha que não. Ele se sente triste e pensativo esta manhã, depois de sua indisposição no dia anterior. Vai ser mais um dia quente e suas sombras já se projetam nitidamente nas margens da estrada, a grama aparada pelas ovelhas. Thomas está ansioso, mas na periferia da vila eles encontram uma jovem ruiva sentada à sombra de uma casa, que é capaz, ali mesmo, naquela hora, de torcer as palhas de junco entre seus dedos ágeis e fazer chapéus de abas largas no tamanho de suas cabeças, cada um não levando mais tempo do que levaria para rezar um decenário do terço. Enquanto esperam, o sino da igreja toca, fazendo os pombos debandarem em uma revoada, e a jovem lhes diz que ele está tocando por São Pedro e São Paulo, porque é o dia deles.

– O tempo passa, hein? – ela diz. – Logo o inverno vai chegar com suas noites mais longas.

Neste calor, é impossível imaginar como deve ser o inverno ali.

Depois que a jovem terminou e colocou o chapéu de Rufus em sua cabeça, ela faz cócegas embaixo do queixo dele e eles continuam a viagem para oeste, agora sob a sombra de seus chapéus novos, seguindo a estrada conforme serpenteia pelo vale, na direção de um desfiladeiro entre as montanhas distantes.

Eles cavalgam aquela manhã inteira e Thomas percebe que Katherine o está vigiando. Para dizer a verdade, ele não se sente muito bem, e o cavalo está muito quente, mas continuam. Por volta de meio-dia, eles já subiram e atravessaram a passagem mais ocidental dos charcos, e abaixo, onde o declive das colinas termina, vê-se a vasta planície estendendo-se por muitos quilômetros em direção a uma linha distante de montanhas azuladas. Acima da planície, aparentemente ao nível dos olhos de Thomas, bolas brancas de nuvens se movem serenamente para o sul levadas por uma leve brisa.

– Como ovelhas atravessando um portão – Thomas observa.

Demoram-se um pouco ali, observando as sombras das nuvens conforme elas se movem pelos suaves campos abaixo. É muito verde lá embaixo, a maior parte coberta de bosques, exceto por uma distante mancha de fumaça sobre um ornato de estradas e trilhas, em formato de uma aranha, que se juntam no que deve ser uma cidade. Deve haver um rio um pouco mais além e duas ou três vilas menores ao longo de seu curso. Por todo o restante de área, o padrão de bosques e terras aradas, campos e cercados de animais – tudo é familiar, compreensível, alentador.

Mas ele não vê nenhum sinal de um exército escondendo-se em suas reentrâncias, nenhuma coluna de fumaça, nenhuma fileira de tendas, de cavalos ou colunas de homens a pé, caminhando pesadamente. Não há carroças, nenhuma aglomeração de seguidores de acampamentos enchendo as estradas como fariam, caso estivessem ali.

– Tem certeza de que Redesdale está lá? – ela pergunta.

– A não ser que ele já tenha se locomovido. Ou estamos perdidos?

– E quanto a Riven? – ela pergunta. – Ele estará lá?

– Só há uma forma de descobrir – ele responde.

Thomas passa a perna por cima de seu cavalo e salta, deixando Rufus empoleirado na sela. Ele afrouxa as amarras do machado de guerra, tira o arco e o curva ao redor do corpo, grunhindo com o esforço de encaixar a corda no arco. A doença, qualquer que tenha sido, deixou-o fraco. Espera que não tenha que usar a arma com fúria. Ele não a usa há semanas, mas agora, preparada, ela está viva em sua mão novamente, vibrando com aquela energia potente, e ele se pergunta se ousa atirar uma flecha e perdê-la, somente pelo prazer de fazê-lo. Então, se lembra do custo de cada e da ameaça de Riven. Imagine se ele vier a precisar só de mais uma?

Katherine observa-o com uma das sobrancelhas erguidas.

Assim, ele coloca o arco de volta sobre a sela, à mão, e com um passo tão decidido quanto possível, parte, Katherine e Rufus seguindo-o pela encosta abaixo até às refrescantes sombras do vale, onde somente Deus sabe o que os aguarda.

Quando o terreno fica plano, eles montam outra vez e encontram um caminho que atravessa o riacho, e cavalgam espirrando água, o que faz Rufus gorgolejar de prazer. Logo se veem no meio da floresta densa onde podem sentir o cheiro de carvoeiros em ação, mas não se vê ninguém. Após algum tempo, Thomas para, e eles olham fixamente para a extensão do caminho pressionado pelas árvores, onde a sombra é manchada de claros e escuros e os pássaros chilreiam, mas fora isso, tudo é silêncio.

Eles se entreolham, dão de ombros e continuam. Após algum tempo, a trilha os leva até uma estrada pavimentada de pedras, correndo de norte a sul pelo vale, vazia. Thomas está prestes a continuar e pegar a estrada, quando vê algo, embaixo, em meio ao saibro. Ele puxa as rédeas. O cavalo dá um passo atrás. Ele desmonta. Sob seus pés, na terra e areia da estrada, há muitas pegadas de cascos de cavalos se dirigindo para o sul e todas recentes. Entre elas, também, veem-se as longas linhas serpenteantes de aros de rodas e, depois, há dois sulcos largos de pegadas humanas, pés se arrastando. Juntos, significam apenas uma coisa: homens movendo-se como um exército.

Eles se entreolham.

– Quantos? – ela pergunta.

– Centenas? – ele supõe.

– Será Robin de Redesdale?

– Pensei que houvesse mais – ele admite.

Parte de Thomas sente uma redução de expectativas. Hastings não vai ficar muito interessado em saber que encontraram um exército que não passa de centenas de homens. Esse número o acompanhou quando ele veio a Marton, e isso para uma cavalgada no campo. Não. É óbvio que se é esse o exército de Redesdale, então ele não é nenhuma ameaça ao reino.

– Bem – Thomas diz. – Talvez Hastings goste da boa notícia?

Katherine balança a cabeça e esboça um meio sorriso.

– Vamos, então – ele diz. – É melhor partirmos logo e irmos ao encontro de Jack e John.

Ele está prestes a subir no estribo outra vez quando Rufus diz:

– Escutem.

Eles erguem os olhos para ele e veem que o menino exibe um sorrisinho ansioso no rosto. Então, param e ouvem.

– Tambores – Rufus diz.

E eles ficam paralisados, empertigados, esforçando-se para ouvir, e lá está, trazido pelo vento: uma reverberação desafinada de baquetas em peles esticadas. Um tambor. Mais de um. Vindos do norte. Katherine volta-se para Thomas, os olhos arregalados. Sabem o que isso significa: tropas. São as únicas pessoas que seguem tambores assim. Homens sob ordens.

Thomas salta para cima da sela, gira o cavalo e eles cavalgam de volta, chapinhando pelo riacho e subindo pela trilha, mantendo-se o mais baixo possível, o nariz pressionado contra a cernelha do animal, até alcançarem as árvores onde os carvoeiros estão trabalhando. Ele desce da sela e leva o cavalo para fora da estrada, agachando-se sob os galhos baixos de um loureiro, ao longo de uma trilha escura que serpenteia para dentro do coração verde da floresta.

Eles seguem por ela até o acampamento dos carvoeiros: um grande cepo de madeira no qual uma machadinha está enterrada, alguns potes enegrecidos e uma pilha de apetrechos cobertos com um pano rústico negro de fuligem, mais limpo do que ele havia imaginado de acordo com as histórias que as pessoas contavam sobre carvoeiros – e os dois homens ali, parados com seus facões na mão, não se parecem nada com as figuras das histórias de terror que se ouvem nas estalagens. São esqueléticos, fantasmagóricos, com orelhas de abano e muito mais amedrontados do que amedrontadores. Um deles usa apenas um casaco de soldado que vai até os joelhos enormes e nus, o outro um par de meias-calças enroladas até os tornozelos.

Há um momento de tensão.

– Que Deus lhes dê a sua bênção – Thomas diz.

O tambor ainda está soando. Cada vez mais alto. Cada vez mais perto.

Os carvoeiros também o ouvem e estão igualmente preocupados, o olhar saltando de um para o outro, as armas – se assim podem ser chamadas – seguradas com mais força. Thomas gesticula, pedindo para atravessar o acampamento. Os carvoeiros apenas continuam olhando fixamente para Thomas. Ele presume que tem a permissão e leva o cavalo para a outra extremidade do bosque, onde espera ter uma vista da estrada e dos homens nela. Katherine o segue, passando por pilhas de galhos já transformados em carvão, pela grande cúpula fumegante de seu forno subterrâneo, saindo sob céus mais límpidos em direção à parte sul da floresta, onde as árvores foram podadas. O riacho volteia por esta ponta, circundando-a graciosamente, e duas crianças pescam em águas turvas, ambas nuas, sujas e manchadas de fuligem de carvão. Suas barrigas são proeminentes e as pernas, arqueadas. Elas erguem os olhos grandes e não dizem nada.

Thomas olha por cima de suas cabeças, para oeste, na direção da estrada que corta para o sul. O tambor ainda está soando, mas agora ele pode ouvir mais de um, e há gaitas de fole também, igualmente mais de uma. Uma nuvem clara de poeira se contorce pelo céu da tarde.

E então, ele os vê. Uma coluna de homens e cavalos.

– Pelo amor de Deus – ele diz, soltando a respiração. – Olhe para eles. Deve haver milhares.

– De onde vieram? – ela pergunta.

Ele não sabe.

– Pode ver quem são?

Os olhos de Katherine são melhores do que os dele.

– Vermelho – ela diz. – Branco. Alguns pontos. Azul, também, mas... a maioria... você sabe. Uma mistura. Lã grosseira. Linho. Nada realmente. Nenhuma bandeira. São apenas... – Ela encolhe os ombros.

– Quem são eles, então? Podem ser de Warwick? Não. Não. Seus homens... bem, são soldados de verdade. Os de Montagu, também, não é? Lembra-se deles? Devem ser... devem ser de Redesdale.

Eles observam os homens em fileira ao longo da estrada, o sol se refletindo em um elmo aqui, em uma alabarda lá. Ele pode imaginá-los, assim como seus sentimentos desencontrados e como isso afetará a maneira como marcham. Um homem andará aprumado, orgulhoso, empolgado, ou arrastará os pés, perguntando-se exatamente em que, em nome de Deus, ele se meteu.

– Mas Watkins disse que Redesdale jamais entrará em campo, que estava fazendo tudo isso para obrigar Northumberland a sair de cima do muro, para um lado ou para o outro.

– Bem, Cristo, olhe para eles. Parecem dispostos a tudo. Olhe para aquelas carroças. Só Deus sabe com que estão carregadas.

Ele pode imaginar lingotes de ferro, pedras de amolar, pontas de flechas, couros, trigo, cerveja. Todo tipo de carga. Armas de fogo inclusive. Observam por um longo tempo, parados à sombra sob o olhar das crianças, enquanto os homens da estrada passam caminhando penosamente e os tambores soam, Thomas não se sente mais amedrontado, somente dominado por uma estranha tristeza. Katherine também.

– Então, tudo está começando de novo – ele diz.

Ela coloca a mão no ombro dele.

– Você não terá que estar lá – ela diz, finalmente.

Ele sente... o quê? Tristeza com tudo aquilo, mas também alívio. Tem algo para Hastings agora.

– Hastings – ele diz. – Temos que lhe contar sobre isso.

– Teremos que passar por eles – ela diz, indicando a estrada com um movimento da cabeça. – Sabe como são esses exércitos, não é? Lembra-se de quando a rainha Margaret foi a Londres? A ocasião em que ela derrotou Warwick no campo? Seu exército saqueou tudo num raio de mais de vinte quilômetros da estrada.

– Como fazer, então?

– Talvez... talvez possamos nos juntar a eles?

Ela aponta para os seguidores de acampamento que surgiram no campo de visão da estrada, esforçando-se para acompanhar o exército com seus bois e carroças, arrastando as tendas, panelas, sacas de aveia. Juntamente às mulheres e crianças, haverá padeiros, açougueiros e cervejeiros, fabricantes de arcos e flechas. Haverá aventureiros e ladrões também, padres, perdoadores e ladrões de bolsas. Haverá toda a mistura de vida humana em que um homem, sua mulher e filho podem se dissolver facilmente, se esse homem ao menos usar um casaco de uniforme apropriado ou estiver com amigos que possam responder por ele.

Mas até mesmo uma coluna como esta terá piqueiros cavalgando de um lado para outro, cada qual portando a longa lança da qual eles receberam seu nome, e se não acharem que ele é algum tipo de espião intrometido, o forçarão a entrar em sua própria companhia, e ele já passou muito tempo nessa situação.

Thomas está pensando em como passar pelo exército quando ocorre um distúrbio na estrada: uma trombeta estridente, tocada com força. Um estandarte é carregado no alto. Trata-se de algum nobre, tentando subir a estrada depressa, com metade de sua comitiva abrindo caminho e a outra vindo em seu rastro.

– Pode ver as cores? – Thomas pergunta.

– Fundo azul, com algumas curvas amarelas assim.

Ela desenha uma forma no ar. Nada significa para ele tampouco.

A coluna passa rapidamente. A esta altura, os filhos dos carvoeiros atravessaram o riacho de volta, subiram o barranco da margem e desapareceram de novo entre as árvores. O cavalo de Thomas defeca com cheiro forte. Rufus diz que está com fome. Ela também se sente repentinamente faminta.

– Existe alguma outra estrada para o sul? – ela pergunta. – Uma trilha ou algo assim?

– Será que estas pessoas saberiam? – Thomas pergunta, indicando os carvoeiros. – Algum caminho secreto?

Ele pergunta. Os carvoeiros não parecem falar inglês, ou apenas uma versão estranha da língua. Há muitos gestos apontando, mas se realmente sabem de uma outra estrada para o sul, eles não são capazes de dizer onde ela pode estar. É inútil.

– Que Deus lhes dê um bom dia – Thomas diz, ansioso para ir embora dali. Há um cheiro no ar que se agarra em sua garganta e o faz se sentir enjoado, mas a atenção de Katherine foi despertada: as crianças do riacho estão de volta sob o abrigo de linho. Não se pode chamar aquilo de barraca: é muito simples para isso. Elas estão curvadas sobre algo no chão, um bolo, e sua postura é suplicante e impaciente, como se estivessem preocupados com algo ou alguém. Estão oferecendo alguma coisa, as mãos estendidas. Poderia ser um dos peixes que acabaram de pescar? E poderia ser que... houvesse mais alguém ali? Então, ele pensa: a mãe. Onde ela está?

Katherine aproxima-se das crianças para ver o que estão fazendo. Os dois carvoeiros a seguem com os olhos. Há uma troca de palavras entre eles. Um está agitado, o outro procura acalmar. Thomas não consegue avaliar o quanto eles seriam perigosos. Katherine o preocupa ainda mais. Ele se vira e quase solta um gemido. Ela encontrou alguém que precisa de sua ajuda. Santo Deus. O que será desta vez? Ele se aproxima, um olho nos dois carvoeiros e o outro em Katherine.

Ele vê que estão reunidos em volta da cabeça do que vem a ser uma mulher inerte, tão imóvel que poderia estar morta. As crianças estendem o peixe, prateado na escuridão, para ela, mas seus olhos estão erguidos para Katherine. O mau cheiro sob o toldo faz Thomas se contrair: carne em decomposição e excremento sobre excremento. As crianças recuam, empurrando-se para trás com os calcanhares. Ambas ainda estão nuas. Uma mosca-varejeira pousa nos lábios dele antes que possa tampar a boca com a palma da mão.

Ele observa Katherine com uma sensação de desfalecimento conforme ela se agacha ao lado da mulher. A mulher se move finalmente, retraindo os dedos dos pés com um queixume. Não está morta, portanto. Ela está deitada de lado. Suas roupas são pretas, sua pele está preta.

– O que é? – Katherine pergunta à mulher.

Thomas leva um instante para ver que ela está segurando a bochecha imunda com as duas mãos. É bulbosa, tão inchada que preenche suas duas mãos e fecha seu olho acima, de onde as lágrimas abriram caminhos na fuligem. O outro olho está aberto, azul como o céu, observando furiosamente. Katherine faz menção de mover as mãos, mas a mulher sibila algo e dá uma guinada com o cotovelo. Katherine fita as crianças. Elas encaram fixamente com os olhos arregalados. Ninguém jamais tentou tocar em sua mãe.

Katherine tenta de novo.

– Eu posso ajudar – ela diz.

Mas novamente o cotovelo da mulher se ergue.

De repente, um dos carvoeiros está ali, dentro da tenda. Thomas agarra sua faca, mas o homem não constitui nenhuma ameaça. Ele está inclinado, olhando inquisitivamente para Katherine. Seu casaco se abre e – meu Deus! – também ele está nu. É grotesco. Katherine ignora isso e faz gestos lentos.

– Eu posso ajudar – ela diz. – Tenho remédios. Remédios?

Se o homem não entende completamente, entende o suficiente. Ele diz algo à mulher. Ela protesta com um gemido. Ele mostra-se ríspido com ela. Ele se inclina para a frente, segura seus cotovelos e os afasta. A mulher geme de dor e parece que o homem irá esbofeteá-la a qualquer momento. Katherine diz alguma coisa tranquilizadora e o homem segura as mãos da mulher, se ajoelha sobre elas e segura seu rosto, virando-o para Katherine. Ele enfia os dedos enegrecidos em sua boca e a força a abrir. A mulher o morde. Estão lutando, sem se moverem. Cada músculo de cada corpo está tenso contra o do outro.

Katherine espreita dentro de sua boca. Thomas pode ver que os dentes da mulher são terríveis, as gengivas negras e inchadas. Ele não pode deixar de murmurar uma expressão de nojo.

– Katherine – ele diz. – Será que não podemos simplesmente...

– Ela está sofrendo, Thomas – Katherine lhe diz.

– Posso ver isso – ele diz. – Mas você não é uma tira-dentes e nós...

– Eu tenho um unguento – ela diz. – E beladona.

– Tem?

– De um boticário em Lincoln. Isabella comprou quando soube que estávamos indo embora. Em um rolo na sacola no meu cavalo.

O rolo, dentro do alforje, é novo, de couro de bezerro. Dentro, há cinco garrafinhas com rolhas de madeira mantidas no lugar por tiras de couro. Há também alguns sacos de panos com vários pós e duas facas, embainhadas em couro. O cheiro é penetrante e purificador.

A mulher se debate.

– Quisera ter alguns... alguns instrumentos. Alicates. Algo assim. Eu poderia remover o dente. Limpar a ferida.

– Não temos tempo para isso – ele lhe diz.

Thomas não suporta ficar nem mais um instante sob o toldo, com as moscas alvoroçadas, o casal se digladiando, o mau cheiro da boca da mulher. Ele não compreende como Katherine pode suportar aquilo.

– Cristo – ele exclama e se vira, encontrando Rufus na ponta dos pés, tentando ver dentro da boca da mulher.

– Você também, não – ele murmura.

Ele se pergunta o que Katherine sabe sobre extração de dentes. O que há para saber? Nada. Você só tem que puxá-lo. Mas ela parece não estar conseguindo. Seus dedos não são fortes o suficiente. Ele pensa por um instante se teria algo parecido com um alicate. Claro que não. O que poderia ser, então? Ele se lembra de ter extraído um toco com Jack. Usaram uma corda e um boi. Arrancaram-no assim. Um deles cavava ao redor do toco, soltando-o, enquanto o outro conduzia o animal. Levou uma manhã inteira, talvez. Ele passeia sem pressa de volta ao riacho outra vez, onde a coluna ainda marcha. Quanto tempo, se pergunta. O sol ainda está alto. Duas horas? Estão se locomovendo devagar. Lembra-se de Katherine dizendo-lhe que levava um dia para cavalgar de uma ponta a outra da coluna de homens e carroças em movimento para lutar em Towton.

Katherine vai até ele e desce a margem para lavar o sangue de suas mãos. Está afogueada e com raiva.

– Qual é a cura? – Thomas pergunta. Ele está sendo paciente.

Ela suspira.

– Eu lhe dei um pouco de meimendro e de semente de papoula. Mas ela tem um grande buraco na base de um dente. Isso ou um verme.

– E agora?

– Um prego de ferro, gravado com as palavras Agla Sabaoth Athanatos, colocado embaixo do dente.

– E que bem isso fará? – Thomas pergunta.

– Nenhum, até ser pregado em um carvalho e uma prece for rezada.

– Você tem um prego de ferro?

– Não. Nem tenho uma perereca, o que também poderia funcionar.

– Uma perereca? Poderíamos achar uma. Aposto como os carvoeiros fazem sopa com elas.

Ela abana a mão.

– Não acredito nessas coisas. Bem. Talvez a perereca tenha alguma substância desconhecida que equilibre os humores dela, mas não consigo prender o dente para arrancá-lo.

Ele lhe fala do toco de árvore e do boi.

– Nós não temos uma corda. Nem um boi – ela lhe diz.

– Tenho uma corda do arco – ele diz.

Ela para de se lavar e olha para ele. Ele desenrola uma de seu pulso direito e a entrega. Ela pega a corda, torce-a, faz um laço e em seguida retorna para a tenda. Thomas a segue. Ele a observa se agachar, curvar as costas, tatear na boca da mulher, praguejar duas vezes, colocar um joelho no peito da mulher, e em seguida, dar um puxão para trás. Ele ouve o barulho e, depois, a mulher berra e se debate, mas um naco preto gira no ar e Katherine é sacudida e afastada pelo movimento brusco. A mulher chuta, grita e berra um pouco mais, mas a essa altura o meimendro e a papoula já começaram a funcionar.

Thomas volta a observar a estrada. Sente-se seguro em deixá-la na companhia dos carvoeiros agora. São como animais da floresta, ele pensa: esquilos, que devem comer, ou texugos. Talvez sejam os olhos brancos em meio aos rostos negros e ferozes? E conforme prosseguem com seus afazeres, emitem curiosos barulhos de comunicação um para o outro, mais parecidos com animais da floresta do que com seres humanos. Jesus, eles são estranhos. Katherine senta-se junto à mulher, e as crianças lhe oferecem aquele peixe, que ela não pode aceitar, mas um dos homens, então, lhe traz algo em um prato que ela acha que estão sugerindo que ela coma. Há um pouco para Thomas também: um pedaço grande de alguma coisa densa e fria, com um cheiro ligeiramente fúngico, mas eles a comem como pão, de modo que Thomas também o faz, quebrando-o ao longo de veios lenhosos com os dedos e, afinal, trata-se mesmo de cogumelo.

Quando terminam, a mulher está sentada e a coluna de tropas e seguidores de acampamento já passou.

– Bem – Thomas diz. – É isso.

Ele sente um curioso desespero.

– Sempre podemos alcançá-los – ela diz.

Ela segura Rufus junto a si e eles fazem menção de deixar o acampamento dos carvoeiros, mas um deles – o de casaco – agora está de pé. Ele busca alguma coisa entre seus parcos pertences. O que será? É como se quisesse lhes dar um presente, algo em agradecimento pela recuperação de sua mulher. Ele encontra o que está procurando, ali entre seus pertences, e o estende reverentemente, como se para ele fosse extremamente precioso. Ela vê por quê. Em um mundo negro de carvão, ali está algo vermelho. Um pedaço dobrado de linho vermelho-escuro, mantido assim, Katherine imagina, desde que ele o adquiriu. O homem o estende para ela, os dedos enegrecidos sujando-o, e o deixa cair, de modo que o pedaço de pano fica dependurado em suas mãos abertas: é uma peça de uniforme, um simples tabardo, duas peças de tecido costuradas juntas nos quadris e nos ombros, bastante grande para Thomas usar. No entanto, ele tem um pedaço de pano branco costurado no peito: um toco de árvore. A insígnia do conde de Warwick.

Ela olha para Thomas e Thomas para ela. Ele sorri.

– Isso deve ajudar – ele diz.

Há a inevitável mancha de sangue nas costas e o buraco em volta do qual se adere é redondo e esfarrapado: uma flecha que atingiu o homem talvez um pouco à direita de sua espinha dorsal. Ela se pergunta como o carvoeiro obteve aquele tabardo. Ele encontrou o corpo e o despiu? Se assim for, é algo estranho para guardar quando se pensa em todas as outras roupas que ele devia estar usando. Então, ela compreende. Aquele tabardo de uniforme vinha por cima do casaco de soldado que o homem está usando agora. Quando ela coloca o dedo pelo buraco e gesticula indicando o casaco dele, ele abre um sorriso sem dentes e se vira, e lá, de fato, em meio ao preto está um pedaço ainda mais preto em torno de um rasgo no linho de onde saem tufos de estopa. Então, ele aponta e diz algo sugerindo que isso aconteceu muito longe dali e que nada tinha a ver com eles, apenas encontraram o corpo, e talvez até o tenham enterrado.

– Aposto que o comeram – Thomas supõe.

Ele agradece ao homem e aceita o casaco de uniforme. O homem balança a cabeça vigorosamente e exibe um largo sorriso. A poeira se levanta de sua cabeça e as gengivas em volta de seus dentes podres são quase vermelhas.

– Podemos fingir que estou levando mensagens – Thomas diz a ela. – Eles vão dar passagem para um mensageiro, certo?

Ele se ajeita dentro do tabardo. Fica bem solto em seu corpo, já que não está usando o casaco acolchoado de um arqueiro, e não se parece em nada com o que ele imagina que seria um mensageiro do conde de Warwick. Levando os cavalos, ele se afasta dos carvoeiros – a mulher está de pé agora, com o arremedo de um sorriso, a saliva e o sangue tendo limpado seu queixo –, que os seguem até a margem da floresta, de onde observam Thomas levantar Rufus para cima da sela e montar em seguida. Thomas e Katherine param por um instante para agradecer aos carvoeiros, mas é difícil vê-los na obscuridade das árvores ao final daquela tarde de sol.

Eles refazem seus passos pela descida do caminho e atravessam o riacho para a estrada, onde as trilhas são mais marcadas pela passagem do exército e de seus seguidores. Em seguida, voltam-se para o sul, seguindo-os pela estrada antiga.

– Temos que tentar ultrapassá-los exatamente quando encontrarem um lugar para passar a noite – Thomas diz a ela. – Dessa forma, talvez a gente passe por eles sem sermos questionados.

É uma esperança vã, pois nenhum mensageiro do conde de Warwick viajaria com sua mulher e filho e, à primeira pergunta feita, a mentira ficará evidente, mas isso é basicamente tudo que podem fazer: ter esperança.

Conforme a tarde cai e se transforma em noite, eles chegam a um trecho longo e reto da estrada. Veem, ao longe, que ela está bloqueada pelos seguidores das tropas, mas estão com sorte, pois os seguidores estão empenhados em algum tipo de atividade, e Thomas conclui que só pode significar que encontraram o lugar certo para acampar. Assim, ele e Katherine desmontam e esperam alguns instantes para deixar os cavalos pastarem na margem, à sombra de uma enorme castanheira. Eles observam conforme as carroças e carroções são manobrados para o lado, lonas e utensílios de cozinhar descarregados. Esta é a hora em que todos ali estarão disputando espaço, lutando para ficarem perto da tenda da sentinela, perto da fogueira central, o mais longe possível do local onde os homens provavelmente irão se aliviar a noite inteira e pela manhã.

A qualquer momento haverá uma calmaria entre a hora em que os piqueiros se recolhem e antes que os vigias sejam mandados para seus postos – a hora entre o cão e o lobo –, e esse será o momento de passar por eles na estrada como se tivessem algo urgente a fazer.

– Bem – Thomas diz, preparando-se. – Aqui vamos nós.

Ela coloca a mão no braço dele e fala de um modo que Rufus não possa ouvir ou ficar assustado.

– Thomas – ela diz. – Sabe os riscos que você corre?

Ele puxa o tecido vermelho do tabardo.

– Isto?

Ela balança a cabeça.

– Eles vão saber que você não é um homem de Warwick e o enforcarão como espião.

– Que outra opção temos? Isso nos foi dado como... como um presente de Deus. É como ganhar um salvo-conduto. Temos que usá-lo.

– Desde quando carvoeiros são agentes de Deus?

– Tudo vai dar certo – ele diz. – Tudo vai dar certo.

Ela balança a cabeça outra vez, ele passa os braços a seu redor e a puxa para si. Permanecem assim por um longo instante até ela lhe dizer que não está conseguindo respirar.

Ele a solta e eles montam em suas selas.

– Quer que eu o leve? – Katherine pergunta a Rufus, e em seguida a Thomas: – Parecerá mais... apropriado, não?

Thomas concorda.

– Vá com sua mãe – ele diz ao menino. – E me veja fazendo esses homens debandarem.

Ele passa Rufus para Katherine e ela o acomoda em sua sela. Ele sorri para a mãe.

– Vamos – ele diz. – Agora é a hora. Tenho um recado urgente a entregar em nome daquele bastardo, o conde de Warwick, cuja palavra nunca deve ser adiada.

Ela ri para animá-lo.

– Fique firme agora – ele diz a ela –, mas depressa, sim? Não queremos cansar os cavalos, apenas chegar à próxima estalagem, ou melhor, estábulos, antes de anoitecer.

Ele empurra o chapéu de palha de Rufus para trás, afaga a cabeça do menino e depois recoloca seu chapéu. Sorri mais uma vez e a fita nos olhos. Em seguida, se vira e, imediatamente antes de começarem a subir a estrada a um passo razoável, confiante, ele faz o sinal da cruz e Katherine faz o mesmo.

Ele cavalga, Katherine e Rufus em seu rastro e um pouco para o lado, fora da linha de visão. Apesar de estarem viajando a maior parte do dia, os cavalos ainda estão vigorosos e apreciando o meio galope. Ao se aproximarem, ele vê do outro lado de cercas vivas e de cercas montadas que os homens estão agrupados em um campo: alguns estão armando suas barracas; a fumaça se ergue onde outros já fizeram suas fogueiras; alguns ainda estão começando a armar um toldo para a sua lenha. Seu olhar analisa rapidamente a cena. Ela o é familiar, mas não há nada que ele reconheça: nenhuma cor de uniforme, vislumbre de um estandarte ou bandeira.

Ainda há alguns homens na estrada, espalhados, observando enquanto outros cuidam que até o último boi seja retirado do caminho para a noite. Eles se viram e se deparam com Thomas e seus acompanhantes. Há uma certa hesitação, cada um olhando para seu vizinho em busca de uma orientação, e é então, neste momento, que as reações irão para um lado ou para o outro, e tudo que será necessário é algum homenzinho careca maldito que vai querer interferir por pura mesquinhez. Vai se adiantar e parar no meio da estrada com as pernas abertas e as mãos estendidas, desafiando Thomas a passar por cima dele. Ele vai gritar alguma coisa e todos os outros virão se postar ao lado dele, e então... tudo estará acabado.

– Abram caminho! – Thomas grita quando estão a vinte passos do mais próximo, que ainda hesita. Thomas gesticula, fazendo sinal para que se afastem. – Abram caminho! Tenho uma mensagem do conde de Warwick!

Há um longo momento em que os homens observam, imóveis, espreitando para ver o que ele está usando, e ele pensa, Eles não verão que estou usando o distintivo de Warwick porque estará escondido pela cabeça do cavalo. Assim, ele começa a cavalgar enviesado na estrada, estufando o peito para deixar que vislumbrem seu tabardo de uniforme e sua insígnia, e não parece haver ninguém entre eles que queira fazê-lo parar por causa disso, pois se apartam à sua frente e, quando passam, os homens reconhecem o distintivo e gritam:

– Um Warwick! Um Warwick!

Já faz algum tempo que ele ouviu isso. Então, alguns assoviam para Katherine, e Thomas pensa, Pelo amor de Deus, há uma criança com ela.

Mas já atravessaram o agrupamento de homens. Eles continuam, como devem fazer, e somente Rufus se vira para olhar para trás, porque Katherine e Thomas sabem que não devem fazer isso.

Eles continuam a cavalgar. Thomas ri.

– Viu a cara deles?

– Ao menos, podemos ter certeza de que contam com Warwick entre seus amigos – ela grita.

Mas, repentinamente, a euforia se esvai, pois do nada – um amontoado de carvalhos e três casas pequenas – surge uma guarda montada. A estrada à frente está bloqueada e não há como seguir, nem como voltar.


9


São seis homens. Dois ficam à frente, dois posicionam-se atrás e dois desmontam. Já fizeram isso antes, Katherine pensa. A dupla desmontada – um alto, o outro baixo – caminha com aquele trejeito lento de quem sabe que tem mais poder do que os outros. Para começar, Thomas mantém a calma, desempenhando seu papel como qualquer ator. Diz a eles que tem uma mensagem urgente do conde de Warwick, mas o mais alto dos dois, que tem um rosto descarnado e anguloso, apenas ri.

– Mensagem pessoal, é? Está vindo direto de Middleham, então?

Thomas não percebe a armadilha.

– Sim – ele diz.

O homem ri de novo. Os outros fazem o mesmo.

– É engraçado porque o conde de Warwick não está em Middleham, hein? Engraçado porque ele está na França.

Thomas recua.

– Uma mensagem da parte dele – ele diz.

– Não, não – diz o outro, virando-se para o companheiro mais baixo –, você ouviu o que ele disse, não ouviu, John? Disse que veio direto da cabeceira da cama do próprio conde. Faça-o descer do maldito cavalo.

E o outro homem, o mais baixo, com uma sobrancelha torta e um nariz quebrado e consertado como uma pedra redonda de calçamento, segura o braço de Thomas. Thomas se desvencilha e instantaneamente surge a lâmina de uma espada contra seu rosto. Thomas fica imóvel por um longo instante, e Katherine pode vê-lo avaliando se consegue lutar e se livrar deles. Ela olha para o rosto do homem segurando a espada e vê que conhece o tipo – sabe que não há nada que ele mais gostaria de fazer do que cortar o rosto de Thomas. E ela pensa, Meu Deus, não, Thomas, por favor, porque você não pode vencer esse tipo de homens. Você é o coelho, o urso, e eles são os furões e os cachorros.

Thomas toma a decisão certa.

– Eu vou descer sozinho – diz aos homens.

O primeiro homem vira-se para Katherine.

– Você também, dona – ele diz. – Desça do cavalo.

Ela mal consegue se mover. Não consegue soltar-se de Rufus.

– O que eles querem? – Rufus pergunta a ela.

O homem olha maliciosamente para o menino.

– O que queremos? – o homem repete. – Vou lhe dizer o que queremos. Queremos saber o que seu pai e mãe estão fazendo correndo pelos campos vestidos de um jeito quando eu acho que são de outro.

– Os homens negros deram o casaco vermelho para o meu pai – Rufus lhe diz.

Katherine sente um aperto no coração. Não, Rufus, você deve mentir.

– É mesmo? – O homem ri. – Os homens negros, hein?

– Deixe minha mulher em paz – Thomas lhe diz.

O homem volta-se para ele. Está furioso.

– Não cabe a você dizer-me o que fazer – esbraveja. – Se tentar outra vez, vou cortá-lo ao meio, das bolas às costeletas. Com isto.

Uma faca de açougueiro surge em sua mão como por mágica.

– Entendeu? – ele pergunta. – Entendeu, desgraçado?

Thomas não deixa sua expressão vacilar, nem quando a lâmina passa sobre seus lábios.

– Devíamos acabar com eles aqui – diz o mais baixo dos dois. – Agora mesmo. Aqui. Olhem, na vala. Ali.

Seus olhos brilham como os de um furão na armadilha do coelho e estão quase saltando só de pensar. O mais alto considera a ideia, pensamentos conflitantes refletidos nos músculos rijos e contraídos do rosto. Ele olha à sua volta: primeiro para a vala, em seguida para uma pequena multidão que começa a se formar. Homens com roupas rústicas, marrons, todos armados com alabardas toscas, e duas mulheres de vestido azul com os cordões o mais desamarrados possível. O mais alto tira o chapéu. Seus cabelos estão raspados dos lados, mas compridos e escorridos no topo da cabeça, como capim de verão que cresceu demais.

– Não – ele diz finalmente. – Eles têm uma história a contar e alguém vai querer ouvi-la primeiro.

O menor fica frustrado.

– E depois acabaremos com eles! – O mais alto ri.

– O garoto e tudo?

– Não, seu idiota. O garoto, não. Ninguém mata um maldito garoto. Cristo.

A multidão se aparta para deixá-los entrar no campo onde estão assentando acampamento. O menor dos dois vai à frente, o mais alto os segue com os cavalos e sua faca. Homens, mulheres e crianças desviam os olhos de seus afazeres – erguendo barracas, trazendo água, acendendo fogueiras, limpando coelhos – para ver o motivo da comoção. Katherine segura a mão de Rufus com força. Ela sente as pernas muito fracas. Aquilo a faz se lembrar da ocasião em que quase foi enforcada pelos homens do conde de Warwick por desertar de seu exército, há muito tempo, só que isso... isso é pior.

– Não diga nada – Thomas murmura ao seu lado. – Nem uma palavra. Compreendeu? Rufus? Sim?

Rufus balança a cabeça, assentindo. Não fica claro se ele entende o que está acontecendo.

– Bom menino – Thomas diz.

– Cale essa maldita boca – diz o alto.

Thomas para e se vira para ele.

– Não fale assim comigo – ele diz.

– Vá se danar – o outro homem diz.

Thomas olha para ele por um longo instante.

– O que foi? O que foi? – o alto o confronta. – Está me acrescentando à lista de homens que você vai matar? É isso? Bem, pode entrar no fim da maldita fila, belezinha, juro por Deus, porque já estive em mais de cem listas como essa e sabe o que todas elas têm em comum? Todas essas listas? Deixe-me lhe contar: todas foram encerradas, porque qualquer desgraçado que se atravessa em meu caminho acaba assim, sabe? Então, se você quiser cagar por um buraco só esta noite, e não por dois, se fosse eu, começava a caminhar agora.

Uma outra faca, diferente, aparece em sua mão. Uma adaga rondel: uma lâmina de aço longa e fina com um pomo de extremidade plana, de modo que um homem possa empunhá-la para penetrar para baixo – ou para cima – na carne de outro homem sem sentir nenhum desconforto.

Thomas não tem escolha. Ele se vira e todos continuam a caminhar. Há uma escolta seguindo-os agora, de homens e das duas mulheres, chamando seus amigos do acampamento para se unirem a eles. Adiante, estão as barracas maiores.

– Ouçam – Thomas diz. – Sou apenas um homem comum, tentando chegar a sua casa, tentando levar sua mulher e seu filho para um lugar seguro. Não representamos nenhuma ameaça para vocês.

– Então, por que está usando este velho casaco de uniforme? – alguém pergunta.

– É como o garoto disse – Thomas declara. – Os carvoeiros me deram.

– Foi pilhado – outro homem comenta. – Olhem.

Eles apontam para o buraco nas costas.

– Nós não perguntamos onde o encontraram – Thomas diz.

– Por que você o vestiu?

– Porque eu esperava que nos ajudaria a passar pela sua guarda.

– Bem, não funcionou, não é?

Isso arranca algumas risadas.

– Você é alguma espécie de espião? – outra pessoa pergunta. – Correndo para informar quantos somos ao rei Eduardo?

– Não – Thomas mente. – Sou como vocês me veem. Simplesmente tentando levar minha mulher e meu filho para a segurança de sua casa.

– Não finja que não é um arqueiro. Olhe só para você. Passou metade da vida no campo de treinamento.

– Todos nós passamos metade de nossas vidas nos campos de treinamento – Thomas diz.

– Eu não – diz uma das mulheres.

Isso também arranca algumas gargalhadas.

– Está bem, agora já chega – o mais alto dos guardas ordena. Agora, já chegaram às barracas maiores: simples tendas de linho, cada uma com capacidade para dez homens, manchadas pelo uso e desgaste. O mais alto dos dois guardas ajeita seu casaco, limpa a garganta, então abre a aba de linho da tenda e entra, deixando-a cair como uma cortina atrás de si. Ouve-se uma conversa lá dentro. O menor dos dois homens olha lascivamente para Katherine, que se sente zonza e segura a mão de Rufus ainda com mais força. Ela sabe que está recebendo mais apoio dele do que o inverso. Thomas coloca a mão em seu ombro.

– Foi uma boa ideia – ele diz – e não estamos derrotados ainda.

Mas ela pensa, Por Deus, estamos, sim. Estaremos balançando dos galhos das árvores que margeiam esta extensão de terras comunitárias antes que o sino faça soar o toque de recolher. Ela não pode deixar de colocar a mão na pele macia de sua garganta. O que acontecerá a Rufus? Santo Deus.

A seguir, a aba da tenda se abre. O guarda alto emerge primeiro. Parece satisfeito. Mau sinal. Ele segura a aba da tenda aberta e, após um instante, o comandante passa, agachando-se, pela abertura.

Ele se endireita: um homem alto, ombros largos, rosto comprido, sem gorro, instantaneamente familiar.

É, quem diria, John Horner.

Ele olha fixamente para eles, boquiaberto. Seus olhos se arregalam e Katherine pode sentir seus próprios pelos se arrepiando e ficando em pé.

– Por Cristo! – ele sussurra. – Por Cristo!

Ele abre um largo e caloroso sorriso.

– Thomas Everingham! – grita. – Maldito Thomas Everingham! Pensei que estivesse morto!

Ele dá um passo à frente e atira os braços em volta de Thomas. Thomas também abraça Horner. Seus tapas nas costas são suficientes para levantar poeira de suas roupas. O guarda cerra os lábios, contrariado. Após um instante, Horner afasta Thomas para poder olhar melhor para ele. Ela pode ver que Horner usa um casaco de uniforme azul com uma curiosa mancha amarela no peito. Viu alguns desses no meio da multidão. A quem pertencem?

– Por tudo que é sagrado! – ele grita.

Então, Katherine não consegue conter o soluço em sua garganta e as lágrimas banham seu rosto.

Horner volta-se para ela.

– Sra. Everingham! Não há necessidade de lágrimas! Esta é uma ocasião feliz!

– Sinto muito – ela diz. – Estou assim desde... desde que Rufus nasceu.

E Horner para antes de beijá-la. Abaixa os olhos para Rufus e dá um grito de alegria.

– Ele é igualzinho! – ri. – Igualzinho. Mas não sei dizer a quem! É um jovem Kit! É isso!

Agora ele a beija e ela vê que Horner adquiriu rugas profundas dos lados da boca, e seus cabelos estão grisalhos nas têmporas. Sente seus olhos percorrendo seu rosto, registrando as mudanças e Katherine se pergunta por um instante se ele ainda está imaginando se ela é Kit, ou Kit é ela, mas qualquer que seja a conclusão a que chegue, pouco importa porque ele não pode provar nada, ainda que quisesse.

Assim, Horner se agacha e olha Rufus nos olhos, no mesmo nível do garoto.

– Somos velhos amigos, eu e seu pai – lhe diz. – Passamos muitos dias longos encerrados em um enorme castelo e depois fomos juntos para a batalha, para lutar pelo direito do rei Henrique de governar seu reino. Perdemos daquela vez, mas não perderemos agora. Espere e verá.

Rufus parece preocupado, mas não diz nada e, após um instante, Horner se levanta e dá um tapinha em sua cabeça.

– Você é um bom menino – Horner diz. – Mas se parece muito com seu tio. Já o conheceu? É um excelente, excelente cirurgião. O melhor de que já ouvi falar.

Katherine sente um rompante de ansiedade, mas Rufus apenas sacode a cabeça devagar, os olhos grandes e redondos, e permanece em silêncio, como foi instruído, e isso, por enquanto, é suficiente.

– Acreditamos que você tivesse morrido depois da derrota e da confusão em Hexham – ele diz a Horner –, então voltamos para Bamburgh. Imaginamos que se tivesse sobrevivido, você também iria, não?

Horner mostra-se cauteloso. Vê que a plateia ainda espera.

– Venham – ele diz. – Deixe-me arranjar cerveja para vocês. E algo para comer, talvez. Vamos nos sentar e conversar. Venham. Venham.

Horner abre a aba da entrada da barraca para eles e a segura enquanto entram em fila. Dentro, há uma arca, um banquinho, três peles de carneiro e um jarro de cerveja. Duas canecas. Um pouco de pão velho em uma tigela e um garoto fazendo alguma coisa em uma placa de metal. Há duas lamparinas de junco ainda a serem acesas. Há muitos rolos de papel em uma tábua sobre cavaletes, nos quais estão escritos muitos nomes, como no livro-razão, Katherine pensa.

Eles sentam-se onde podem, Rufus no colo de Katherine, Thomas em outra pele de carneiro, e deixam o banquinho para Horner. No instante em que a aba da barraca é abaixada, os dois guardas são excluídos, embora ela possa ouvi-los e aos outros ainda reclamando, e Horner erguendo a voz, dizendo-lhes para levarem os cavalos para as linhas e que um deles – Taplow? – será responsabilizado por qualquer coisa que esteja faltando pela manhã.

Quando Horner retorna, ele envia o garoto para buscar mais cerveja e canecas e se instala em uma pele de carneiro.

– Então, aqui estamos nós! – diz. Ele lhes pergunta o que aconteceu depois da batalha de Hexham. Thomas descreve a queda de Bamburgh e como sir Ralph Grey, que fora lorde de Horner, fora derrubado por uma pedra de um canhão.

– E aquele velho desgraçado, Neville de Brancepeth, o fez virar a casaca, não foi? – Horner pergunta. – Meu Deus. Meu Deus, quisera ter estado lá. Eu teria impedido que isso acontecesse.

Apesar de tudo, Horner ainda parece gostar de Grey. Thomas não lhe diz que foi ele, Thomas, quem amarrou Grey ao seu cavalo e o enviou para fora do castelo, mas em vez disso, em poucas palavras, conta-lhe o que estiveram fazendo nos últimos cinco anos e, então, ele pergunta outra vez o que aconteceu a Horner na batalha de Hexham. Quando sua caneca de cerveja está novamente cheia, Horner confessa que se separou do resto dos homens de sir Ralph Grey e simplesmente continuou a correr. Tirou sua armadura, atirou o uniforme no rio e buscou asilo em uma abadia. Subiu na torre do sino, ele conta, e dali para o telhado.

– Em algum momento no segundo dia – diz –, eles levaram o duque de Somerset para a praça e o carrasco o matou.

Depois disso, relata que ele adoeceu. Achou que fora alguma coisa que pegara dos pombos, algum vapor que eles exalaram. Achou que ia morrer, e teria ficado feliz com isso, mas um padre o encontrou e cuidou dele até recuperar sua saúde. Mas àquela altura, ele já estava cansado de tudo e a ideia de voltar para encontrar Grey, se ainda estivesse vivo, o que ele duvidava, era insuportável. Assim, ele voltou para casa.

– E quando cheguei lá, eu não tinha nada. Menos do que nada. E então os homens de lorde Montagu apareceram, cada qual mais rico do que Creso, se vangloriando e andando emproados pelo lugar, comprando terras e construindo casas, e então, por Deus, eu soube que estivera do lado errado.

Horner estica suas pernas longas e rígidas. Está magro, ela vê, como se tivesse passado dificuldades nestes últimos anos. Suas roupas estão surradas e remendadas – com pouca habilidade, então talvez ele não tenha uma esposa – e suas botas precisam da atenção de um sapateiro. A comida chega com o garoto: pão que acabou de ser assado e uma boa sopa de feijão e bacon, os quais eles comem diretamente da tigela comunitária com suas colheres.

– Mas como veio parar aqui? – Thomas pergunta, limpando a boca.

– Quando meu contrato com Grey terminou, porque ele estava morto, eu precisava de outro senhor, e o homem que chamamos de Robin de Redesdale estava buscando expandir sua influência, assim... fiquei satisfeito quando a oferta apareceu. Pensei: é a minha chance. Para desfazer o que eu havia feito e para me vingar de lorde Montagu e seus desgraçados arrogantes. Vou lhe contar, têm sido uns anos muito difíceis.

Isso explica as rugas em seu rosto, Katherine pensa.

– E conseguiu? – Thomas pergunta. – Vingar-se dos homens de Montagu?

– Bem... veremos. No momento, ele não está fazendo nada, não é? Desde que foi nomeado conde de Northumberland, está menos inclinado a pular para o comando do conde de Warwick, mas Redesdale o deixa confuso, eu acho. Ele deixa todo mundo confuso, na verdade.

Katherine fica satisfeita em saber que este é definitivamente o exército de Robin de Redesdale. Se Horner não os mandar enforcar, disto ao menos eles podem ter certeza, caso vejam Hastings de novo.

– Então, onde está Redesdale? – Thomas pergunta.

– Ele já foi para o sul – Horner lhe diz. – Nós somos a retaguarda ou, mais honestamente, os retardatários. Robin é um homem impaciente: ansioso para entrar em ação.

– E quantos homens ele tem? – Thomas continua.

Horner dá de ombros.

– Quatro mil? E nós temos talvez um pouco menos da metade disso. – Ele indica os rolos de papel sobre a arca.

– Então, juntos...?

– Não é pouco – Horner diz, com um vestígio daquele seu velho sorriso. – E estamos atraindo mais a cada dia.

Ela se lembra dele em Bamburgh: sempre tão otimista, sempre esperando que uma centelha viria incendiar o país contra o rei Eduardo, jamais admitindo nem por um instante que a causa era perdida porque o rei Henrique era inútil. Agora, ao que parece, a lealdade de Horner ao velho rei ficou tão gasta quanto sua roupa, e ele se apegou à causa de destronar o rei Eduardo, sem se importar com quem vá tomar o seu lugar.

Rufus está cansado e se deita na pele de carneiro mais próxima. Eles o observam em um silêncio feliz, todos, enquanto o menino simplesmente adormece.

– E vocês? – Horner pergunta. – Você não está realmente viajando para o conde de Warwick, está, Thomas? Não está do nosso lado?

– Não – Thomas diz. – É como Rufus disse. Nós ajudamos uns carvoeiros que me deram isto. Eu o vesti, na esperança de que facilitasse minha passagem.

– Ah, você pensou sem considerar Taplow. Meu Deus, que sujeito desprezível. Eu uso manoplas para lidar com ele, sabe?

Há um momento de silêncio desconfortável.

– Então, para onde vocês estavam indo? – Horner pergunta.

Katherine lhe diz que tinham cavalgado para o norte na esperança de encontrar um lugar para viver.

– Mas não resultou em nada, então estamos voltando para Lincolnshire, onde nos colocaremos sob a caridade de outros.

– Juntem-se a nós! – Horner diz. – Por Deus! Tudo que precisamos agora é de Kit e daqueles outros dois, o sujeito de um braço só, e será como nos velhos tempos.

A hesitação de Thomas transforma-se em uma fisionomia mais carregada e sombria. Ele sacode a cabeça.

– Eu me uniria a vocês, mas tivemos sorte de sair com vida de Hexham, e depois novamente, quando Bamburgh caiu. Bem. Novamente, foi apenas pela graça de Deus que fomos poupados e, mesmo assim, não foi sem custo.

Katherine sente o olhar de Thomas deslizar pelo seu corpo e ela fecha sua mente à lembrança do pontapé de Giles Riven.

– Não é por mim que temo – Thomas continua. – Já provei isso duas, três, quatro vezes, mas colocar Katherine e Rufus em risco sem necessidade... não consigo conciliar isso com a minha consciência.

– Mais tarde, talvez? – Horner pergunta. – Depois que tiver encontrado refúgio para eles entre essas pessoas de Lincolnshire? Não demos permissão para os homens saquearem, como a rainha Margaret fez antes de Towton, para não antagonizar o sul, mas, como sempre, haverá a terça parte de tudo que vier para nós em batalha e, depois, oportunidades para um grande progresso! E desta vez, desta vez, venceremos.

– Você parece muito confiante – Thomas diz, e Katherine começa a se sentir desconfortável: eles estão pressionando Horner por informações para usar contra ele. Imagine se algum dia no futuro Thomas vier a se ver enfrentando Horner no campo de batalha? Como iriam se sentir?

Horner inclina-se para a frente e fala com ar conspiratório.

– Conversei com Robin de Redesdale, e ele disse que o conde de Warwick vai publicar um manifesto de Calais convocando o país inteiro a se rebelar contra o rei Eduardo. Vai convocar os homens de Kent para um levante, e um homem chamado Tudor está aportando no País de Gales para reunir tropas lá. É isso, não vê? A centelha!

É inacreditável. Ela não pode imaginar. Significaria o conde de Warwick desfazendo tudo que fez nos últimos dez anos.

– Então, ele saiu abertamente contra o rei Eduardo?

– Sim! Embora, bem, ele não veio a campo em pessoa, ao menos ainda não, porque está em Calais.

– Mas se ele está em franca rebelião, não deveria estar aqui na Inglaterra? – Katherine pergunta.

Horner ri.

– Mas é isso! – ele diz. – É isso mesmo! Vocês não imaginam o que ele está fazendo em Calais!

– Está publicando esse manifesto?

– Fora isso. Não? Bem, deixem-me lhes contar, mas não se pode falar nisso senão... senão mais tarde. Ele está casando a filha com o duque de Clarence! Contra um decreto específico do rei Eduardo!

Isso é muito confuso, logo Katherine abre a boca para tentar provocá-lo, mas Thomas fala primeiro.

– Então, essa é a extensão da rebelião? – ele pergunta. – Enquanto vocês estão em campo, arriscando a vida, ele está no casamento da filha com o irmão do rei Eduardo?

Horner recosta-se com um sorriso dissimulado.

– Pode não parecer muito, mas há outra coisa. Algo... algo que eu não posso, não devo, lhes contar: um plano mais profundo em andamento.

– E o que é?

– Surgiu um boato... – Horner começa, depois para de repente. Ele se vira e diz ao garoto para sair. O menino parece do tipo que só dará a volta por trás da barraca para ouvir do outro lado do linho, mas Horner está entusiasmado. Quer tanto que Thomas se junte a ele que se torna descuidado. Depois que o garoto sai, ele continua.

– Um boato de que o rei Eduardo é um bastardo.

Tanto Katherine, quanto Thomas fingem incredulidade e espanto.

– Não!

– Sim – Horner diz. – E há prova.

Há um momento de hesitação antes de Thomas tossir e perguntar:

– Que prova?

E com um gesto indicando os rolos de papel em cima da arca, aquelas listas de homens em serviço, Horner lhes fala de um registro de movimentos de tropas dos últimos dias do domínio inglês da Normandia que mostra que Ricardo, duque de York, supostamente o pai do rei Eduardo, estava a uma distância de mais de um mês da mãe de Edward, quando o garoto foi concebido.

Katherine pode sentir o sangue subir ao seu rosto.

– E essa prova... está à mão? – ela pergunta.

Horner franze o cenho.

– Não inteiramente – admite. – Mas estamos à sua procura... e estamos chegando perto. Quando for encontrada, será apresentada aos Lordes e aos Comuns, e ela mostrará que Eduardo não pode ocupar o trono. E quem, então, deveria tomar seu lugar? Seu irmão, Jorge, duque de Clarence, com quem, é claro, Warwick casou sua filha.

Ele ri da astúcia de tudo aquilo.

Katherine não consegue pensar em nada para dizer.

– Estão vendo? – Horner diz, virando-se para Thomas. – É melhor vocês se juntarem a nós! Estejam aqui no começo dos acontecimentos e verão aonde poderão chegar! Um cavaleiro! Um lorde! Um conde!

O cérebro de Katherine trabalha febrilmente.

– Mas se assim é, se Warwick pode destronar Eduardo dessa forma, então por que vocês estão marchando para o sul com um exército deste tamanho?

Horner fica pensativo.

– Não creio... não creio que Warwick soubesse que Robin de Redesdale estaria tão... tão ocupado? Não creio que soubesse que nós atrairíamos tal número e seríamos capazes de nos deslocar tão rapidamente. Quando sugeriu que Redesdale saísse contra o rei Eduardo, acho que pensou que ele fosse ficar em Richmondshire, e sua presença pudesse forçar um posicionamento de Montagu, de uma forma ou de outra. Além do mais, apesar dos nossos esforços, ainda não encontramos esse registro, o que prova a condição de bastardo de Eduardo, portanto...

Ele deixa a voz definhar encolhendo os ombros. Katherine sente uma pedra em sua garganta e não consegue engolir, mas Thomas pergunta que medidas estão sendo tomadas para localizá-lo, e quando Horner lhes diz que Edmund Riven foi encarregado de encontrá-lo, ele faz a conexão.

– Ele é filho do homem que Kit operou quando estávamos em Bamburgh! Lembram-se? Sir Giles Riven, lembram-se? Um desgraçado perverso, diriam, mas o filho! Deus nos livre, o homem é um pesadelo. Tem um antigo ferimento, aqui, que vaza pus, fétido, e quando ele fala, há algo solto em sua face que tremula, um pedaço de pele solta. Kit teria costurado aquilo em um instante, tenho certeza, mas ninguém fez nada por ele e isso o deixou amargo como cortiça.

Começa a escurecer agora, a luz do fogo lá fora brilha contra o tecido da barraca e as lamparinas de junco têm que ser acesas. Horner inclina-se para a frente, toma outro gole de sua bebida e continua.

– De qualquer modo, Riven agora está buscando a prova, esse livro-razão, entre aqueles que estavam com Ralph Grey nos últimos dias em Bamburgh. É onde foi visto pela última vez.

Permanecem em silêncio por um longo momento. Então, ele ergue os olhos com o cenho franzido.

– Mas... vocês também estavam lá? – ele pergunta. – Quero dizer, vocês voltaram, não foi?

– Sim, voltamos – Thomas concorda. Ele se mostra bem descontraído.

– E você viu algum... algum livro-razão? Alguma pessoa com alguma coisa assim?

Thomas sacode a cabeça.

– Como Grey disse que ele era? – Katherine pergunta.

Horner estalou a língua, em sinal de contrariedade.

– Ele estava enlouquecido, vocês se lembram? De modo que praticamente não conseguiu se lembrar de nada sobre isso. Só conseguia dizer a Warwick que ele o tinha, mas o perdeu. Não conseguiu sequer lhe dizer onde o obtivera. Bem, disse que o pegara de Giles Riven. Claro, isso não pode ser porque então, sem dúvida, Edmund Riven saberia a respeito, não é? Mas foi o que ele disse, aparentemente.

Ouvindo esse relato, Katherine sente uma grande onda de alívio. Se Grey tivesse dito a Warwick que havia obtido o livro de seu cirurgião, então ele teria passado essa informação para Edmund Riven, e Edmund Riven teria ido atrás de Thomas Everingham e aquele “cirurgião” a quem ele ajudava. Mas o que Grey disse era verdade: ele realmente o obteve de Giles Riven, mas somente porque Giles Riven havia, de fato, roubado o livro dela. Ela para um instante para agradecer a Deus pela memória falha de Grey. Ao que parece, Ele os está protegendo, afinal, a Seu próprio modo, mas também testando-os no fogo da desgraça.

– É um mistério – Thomas diz, como se isso encerrasse o assunto, mas Horner está menos sombrio.

– Oh, ele vai achá-lo, se não foi queimado ou algo assim. E ainda que tenha sido, Edmund Riven o encontrará. Ele andou entre os homens de Robin de Redesdale quando se reuniam em Richmond, sabe? Muitos deles são homens de Hungerford e de Roos, que estavam lá com Grey no fim.

Horner olha atentamente para eles agora.

– Estou surpreso que ele não tenha ido procurá-los – ele diz –, mas vocês terão o prazer quando chegarmos a York.


10


- Riven está em York – Katherine repete.

É a manhã seguinte e eles estão tomando banho no córrego acima do acampamento, a primeira vez que ficam sozinhos tempo suficiente para trocar algo mais significativo do que um rápido olhar intencional.

– Não pode estar – Thomas diz. – Simplesmente não é possível. Ele está em Pickering.

Mas de certa forma, ele espera estar errado. Se Riven estiver em York, ao menos Jack, John e Nettie terão escapado à captura. Mas, nesse caso, ele e Katherine, bem como Jack e John, estão indo direto para a rede dele.

– Podemos viajar com Horner até York e depois escapulir – ele imagina. – Horner já aceitou que não pretendemos nos unir a ele.

– É mesmo? Viu a expressão dele? E aquele homem, o de rosto anguloso, está sempre presente. Ele preferiria matá-lo a ver você ir embora.

Taplow tem estado sempre por perto, é verdade, mas será que Horner o mandou ficar de olho em Thomas? Ou seria pessoal? Algo que Thomas tenha dito que requeira vingança? Mas de qualquer modo, certamente eles serão capazes de se ausentar da coluna de Horner no emaranhado de vielas e becos que saem da estrada a partir do portão norte de York. Esse será o melhor lugar, desde que Taplow não esteja lá, atrás deles, vigiando, esperando, como ameaça fazer.

Assim, eles viajam com Horner conforme a coluna que ele comanda se move para o sul, através do vale de Mowbray, à velocidade dos mais lentos bois puxando a mais pesada carga: um grande canhão que precisa de dezoito homens com cordas para levantá-lo. A comida é farta, assim como a cerveja, e mais homens unem-se a eles conforme avançam. Reúnem-se à margem da estrada como se já tivessem um encontro marcado e, quando avistam York, o número de homens que podem ser chamados a lutar cresceu para dois mil ou mais, e o mesmo número os segue na retaguarda. A jornada tem sido animada por refregas entre as diferentes comitivas, embora sejam menores, e Horner tem que intervir todos os dias.

– Eu enforcaria alguns, se achasse que adiantaria – diz.

Eles são uma miscelânea, com poucos partilhando o mesmo uniforme, e embora em sua maioria pareçam homens que podem lutar em estalagens de beira de estrada e similares, isso não é o mesmo que lutar como soldado, e Thomas se pergunta o que acontecerá a este bando caso venham a enfrentar no campo de batalha os seguidores do rei Eduardo. Ele espera que fujam sem lutar, até mesmo Taplow, que quase nunca sai do lado deles, embora não seja um companheiro, e que agora está olhando para Katherine como se pretendesse desmembrá-la, parte por parte. Thomas ainda não sabe ao certo como irá fugir deles quando chegar a hora. Mas, conforme se aproximam das muralhas da cidade, chega um mensageiro de Robin de Redesdale para Horner. Ainda na sela, Horner a recebe e a lê sem mover os lábios. Ao terminar, permanece impassível e devolve o papel ao mensageiro para reutilização.

– Ele já partiu para o sul – ele lhes diz.

Horner mostra-se abatido, intrigado mesmo, mas Thomas não consegue deixar de sorrir: Riven não está em York.

Eles acampam nessa noite em um terreno público ao norte da cidade, sob alguns moinhos que encantam Rufus, na frente do portão Bootham Bar, com o rio à direita, e na Hora do Angelus todos param o que estão fazendo para ouvir os grandes sinos da cidade soarem através das várzeas alagadiças.

Na manhã seguinte, depois de o pão e a cerveja terem sido distribuídos, e depois de rezada a missa, Thomas encontra Horner vestido com sua armadura completa, preparando-se para desempenhar seu papel para os habitantes de York. O garoto está amarrando os últimos laços de um dos casacos de uniforme vermelho de Warwick ao redor da cintura cingida de aço de Horner.

– Impecável – Thomas diz.

– Obrigado – Horner responde.

– Nós o deixaremos aqui, John, se você não se importa – ele diz.

Horner olha para ele solenemente. É o efeito da armadura. Thomas já viu isso antes: Horner até mesmo fala com maior gravidade.

– Se é o que tem que fazer, que assim seja, Thomas – ele diz. – Mas espero vê-lo novamente. Robin de Redesdale está seguindo para Leicester. Sei que você quer instalar sua esposa, e invejo esse luxo, mas significaria muito para mim se você se juntasse a nós lá. Eu sempre me senti seguro com você às minhas costas quando estávamos em Bamburgh, Thomas.

O garoto termina de amarrar os laços do casaco e Horner o alisa sobre os quadris, então deixa o garoto atar os dois cintos onde irá pendurar suas diversas espadas e adagas. Por fim, ele estende a mão e aperta a de Thomas. Thomas quase se sente emocionado e segura suas costas com a mesma firmeza. Eles se olham nos olhos.

– Prometa-me, Thomas – Horner diz. – Prometa que você estará lá. Jure por Deus, por São Jorge e pela vida de seu filho.

Thomas é pego de surpresa. Pela vida de seu filho? Pela vida de Rufus? Mas não há espaço para escapar da situação. Não há espaço para mentiras. Horner está perto demais. Verá em seus olhos se ele desviá-los ainda que por um instante. Então, o que pode dizer?

– Sim – ele diz. – Eu juro.

Ele sente um pânico aterrador. Não. Não juro.

E Horner balança a cabeça com um movimento brusco.

– Ótimo – diz, depois se vira e monta em seu cavalo. De cima de sua sela, ele olha para Thomas.

– Que Deus o abençoe, Thomas. Eu o verei em Leicester. – Ele, então, aciona o cavalo com suas longas esporas, recém-compradas em Ripon, e se afasta do acampamento.

Thomas o observa partir antes de ir procurar seu próprio cavalo. Sente que o chão já não está tão firme sob seus pés. Olhar um homem nos olhos e fazer uma promessa como aquela... mas, meu Deus, que escolha ele tinha? Quando encontra seu cavalo, Taplow está lá parado, uma das mãos na anca do animal, examinando com ar de proprietário o machado de guerra, que ele removeu de sua sacola de oleado.

– Isso pode fazer um maldito estrago num homem – ele diz.

– Tire as mãos do meu cavalo – Thomas lhe diz.

Taplow deixa a sacola cair no chão.

– Falo a sério, sabe? Você pode ficar andando todo emproado por aqui com a proteção de Horner, como se fosse dono do lugar, mas me dê só um instante e eu vou estripá-lo como um porco na festa do Dia de São Martinho.

Thomas olha para ele. O homem é tolo como um cachorro.

– Taplow – ele começa –, por que sempre tem que ser assim? Por que você não consegue apenas... sei lá. Ser normal.

Taplow olha para ele de cima a baixo com olhos miúdos, pálidos.

– Você acha que merece tudo, hein? – ele pergunta. – Seu cavalo, sua mulher, suas roupas, tudo isso, e acha que aonde quer que vá, merece ir a salvo, como se estivesse na palma do próprio Deus. Mas e quanto ao resto de nós? E quanto a mim? E quanto ao Gradle? Não somos mais do que arbustos para você e os do seu tipo, não é? Apenas a maldita paisagem. Coisas das quais se desviar. Ou passar por cima. Ou passar pelo meio.

Thomas nem sabe o que dizer. Ele não imaginara que Taplow fosse capaz de tais pensamentos, assim provando que ele tem razão, é claro, mas também... Cristo! Imagine alguém pensando nele assim, com seu cavalo emprestado e sua bolsa vazia.

– Se você soubesse – ele começa.

– Ah, vá a merda – Taplow interrompe. – Não dou a mínima. Mas lembre-se de mim quando formos para o campo de batalha.

Isso é mais provável, mais esperado: uma simples ameaça.

– Sabe o que aconteceu com o último homem que me ameaçou? – Thomas pergunta.

– Contou a seu padre sobre ele?

Thomas pensa nos assassinos escoceses de Giles Riven que ele e Jack tiveram que matar naquela fétida guarita do portão posterior externo no Castelo de Bamburgh. Lembra-se do jato de sangue no teto de pedra e do homem contorcendo-se de agonia nas lajes de pedra do chão.

– Sim – Thomas diz. – Mas somente depois que ele estava morto.

Taplow fica satisfeito.

– Filho da mãe – ele diz. – Mas não se esqueça: quando chegar a hora, eu estarei lá. Apenas eu e isto.

Uma terceira faca aparece em sua mão, novamente como num passe de mágica: uma lâmina curta e escura, boa apenas para uma finalidade. Ele abre um sorriso forçado para Thomas e faz algo com a língua que Thomas não compreende muito bem. Em seguida, guarda a faca e se afasta de costas, ainda com seu sorriso maligno, os dentes grandes e amarelos e em condições surpreendentemente boas.

Thomas se pergunta se um homem como Taplow ameaça todos que encontra e se ele se tornou tão cruel porque já parecia cruel, ou se veio a parecer cruel porque era tão cruel? Será que o rosto espelha o caráter ou o caráter o rosto?

O exército de seguidores de acampamento de Horner se reúne para a partida. As carroças estão carregadas e amarradas aos bois, e todos estão um pouco mais atentos nesta manhã, porque poucos já viram uma cidade como York antes, quanto mais ficar dentro de tais muros. À medida que se aproximam, são silenciados pelo volume sólido e imponente da catedral, mas depois ficam aturdidos com o número de torres de igreja mais além.

“Onde fica a sua paróquia?”, perguntam. “Onde se ouve a missa? Aonde uma pessoa vai para rezar? Para falar com um padre? É aqui? Ou lá? É na igreja de São Martinho? Santa Helena? Ou Todos os Santos? Você simplesmente não sabe, não é?”

Thomas colocou Rufus em sua sela e caminha ao seu lado, conduzindo o cavalo pelas ruas estreitas e pelo ar pesado da cidade. Os habitantes saíram às ruas para vê-los passar, mas permanecem desinteressados, pois esta é a segunda vez em uma semana que veem um exército desfilar, este é menor do que o primeiro, e sofre com a comparação. A emoção dominante parece ser de pena.

– Eles parecem muito... conformados? – Thomas sugere. – Como se não se importassem nem com um lado, nem com o outro.

– Acho que já viram tudo isso antes – Katherine lhe diz. – Foi para cá que todos vieram depois de Towton.

Ele, é claro, não se lembra disso.

Eles começam a procurar por Jack e John depois que atravessam o rio, em Micklegate, que leva ao portão onde fincam a cabeça dos executados. É onde o duque de Somerset pregou as cabeças do irmão e do pai do rei Eduardo. Thomas se pergunta se Horner se lembrará disso quando pensa no assassinato do duque na praça do mercado em Hexham.

– E se eles não estiverem aqui? – ele pergunta a Katherine.

– Teremos que arranjar um alojamento e esperar até amanhã.

Thomas se contrai, ao pensar em dinheiro novamente. Outra ansiedade a consumi-lo quando tem outros problemas com que se preocupar.

Micklegate tem apenas algumas centenas de passos de comprimento e, quando finalmente chegam à guarita e passam sob a sombra de seu portão, saindo no barbacã, ele percebe que Jack, John e Nettie não estão ali.

– Ainda não é meio-dia – ela diz.

É então que veem a jovem de avental. Ela está em pé no chão da carroça deles, completamente carregada com as arcas, sacas e tudo mais que possuem, à margem da estrada. Sozinha, esperando. Parece cansada e há uma mancha roxa embaixo de seu olho direito. Seu avental desapareceu, e quando ela os vê, parece recuar um passo e engolir em seco. Thomas, então, pensa, Oh, Senhor! Estão mortos.

Mas não estão.

– Riven os levou – a jovem diz antes de sequer poderem perguntar. – Ele nos alcançou antes de chegarmos a Kirby. Estava à procura daquele livro de que sempre fala e Jack disse que não sabia sobre o que se tratava, mas Riven tinha um homem consigo que reconheceu John, reconheceu pelo toco do braço. Disse que ele tinha estado em um castelo e vira o braço ser cortado por um garoto com uma faca de cozinha. Disse que vira isso com os próprios olhos. E foi então que o livro que ele procura se perdeu.

– Mas disseram que Riven estava com Robin de Redesdale! – Thomas diz.

– Bem, ele pode ter estado, e pode estar agora, mas não estava naquela noite. Estava na estrada para Thirsk com aquele seu maldito gigante.

– Ele tem um gigante? – Katherine pergunta.

– Sim – a jovem diz. – Ele o mantém como um urso, só que fede mais do que um.

– Seu pai também costumava ter um – Katherine diz. Ela ficou pálida com a lembrança. – Era um monstro.

– Não pode ser o mesmo, não é? – Thomas pergunta.

– Ele é jovem, eu diria – a garota lhes diz. – Mas um monstro também.

– Por que ele o mantém? – Thomas pergunta.

– Para executar suas ordens – diz a garota, dando de ombros.

– Mas para onde ele os levou?

– Para Middleham – a jovem imagina. – É onde ele mantém seus prisioneiros.

– E quanto a você? – Katherine pergunta. – Por que não a levaram?

– Riven me conhece – ela admite. – Conhece meu pai.

– O que aconteceu com seu rosto?

A jovem comprime os olhos e ergue o queixo para ela. Parece furiosa lá em cima da carroça, apesar do vestido rasgado e do rosto machucado.

– Ele fez o que tipos como ele sempre fazem – ela lhes diz.

Faz-se um longo silêncio.

Então, a jovem sorri para Rufus.

– Olá, garoto – ela o cumprimenta.

– Olá, Liz – Rufus retribui.

Então, esse é o nome dela.

– Como é Middleham? – Thomas pergunta.

– Eu nunca estive lá, é claro, por que teria ido? Mas meu pai diz que é como qualquer castelo, só que talvez maior.

– É... fácil de ir e vir? De entrar e sair, quero dizer.

Ele não sabe ao certo o que quer dizer. Só consegue pensar em Jack, John e Nettie em um castelo, por causa dele, sofrendo por ele.

– Thomas – Katherine diz –, você não pretende... Não pretende ir lá e... o quê? Resgatá-los?

– Você não conseguirá fazer isso – Liz o informa. – Não.

– Não – Katherine concorda, quase suplicando. – Você não deve nem pensar nisso. Santo Deus. Sabe como são esses lugares. Só podemos... só podemos esperar que... que Robin de Redesdale seja derrotado e que Warwick seja também. Somente então, somente então poderemos esperar vê-los sair de lá.

– Estarão mortos, a essa altura!

– Sim, talvez – Liz concorda. – Mas não há nada que você possa fazer sobre isso agora, e sozinho.

Eles olham fixamente para ela. Ela devolve o olhar, depois se vira e sorri para Rufus outra vez.

– Andou se divertindo, garoto? Viu os moinhos quando estava chegando? Eu mesma os vi e pensei em você.

Rufus se ilumina de prazer.

– Mas e se... se o exército de Robin de Redesdale derrotar o do rei Eduardo? – Thomas pergunta. – O que acontecerá?

– Bem – Katherine diz. – Teremos que rezar.

– Ha! De muito isso vai adiantar – Liz diz.

– Bem – Thomas se volta para ela –, o que sugere?

– Você poderia matar um ou dois deles agora – ela diz. – Aquele lá. Basta olhar para ele para ver que é um desgraçado com uma faca na manga.

Ele se vira para onde a cauda desgarrada da coluna de Horner vai passando e vê que ela está apontando para Taplow.

– Você podia segui-los com esse seu enorme arco e podia matá-los, um a um.

Distraidamente, ele tenta imaginar isso. Quanto tempo levaria? Quantas flechas?

Mas Katherine tem razão. A única coisa que ele pode fazer é avisar Hastings e o rei Eduardo do que está para acontecer. Se puder levar homens como John Brunt – o padrinho de Rufus – para a luta, então há uma chance de que ele e o rei Eduardo possam derrotar esta multidão de assassinos de aldeia.

– Tudo bem – Thomas diz. – Tudo bem. Mas então temos que ir agora. Para Londres, ao encontro de Hastings. E teremos que viajar depressa para ultrapassar este pessoal, e Redesdale também.

– E como nós conseguiremos isso? – Liz pergunta.

– Nós?

– Sim – ela diz. – Nós. A menos que pretenda deixar tudo isso aqui – ela bate um dos tamancos na arca – e não se importar que eu leve para o mercado e me estabeleça como uma elegante senhora.

Ele olha para a carroça. É a soma total de todos os seus – deles – bens terrenos.

– Vocês não vão poder se mover bastante depressa com isso a reboque – Liz continua. – Então, têm que levá-la para algum lugar, não?

– Marton – Katherine decide. – Temos que levar isso de volta para Marton.

Liz fica satisfeita ao ver que alguém está falando com bom senso.

– Certo – ela diz. – Onde fica esse lugar, Marton? É longe?

Eles lhe explicam.

Thomas sabe o que deve ser dito e feito em seguida, mas não consegue reunir coragem para sugerir. Liz, porém, consegue.

– Você virá comigo, então, senhora? Você e Rufus? Podemos deixar Thomas aqui sozinho para encontrar seu caro lorde? É mais rápido assim, e mais seguro também.

Katherine não pode deixar de sorrir para Liz.

– Você arranjou tudo muito bem – ela diz.

– Não vale a pena fazer confusão, não é?

Thomas fica parado, pensando o que mais ele precisa acrescentar.

– Comprei um pão – Liz diz. – Dois, na verdade. Um para você e um para nós. O rapaz, Jack, me deixou seu dinheiro. Você o quer de volta?

Ela estende um punhado de moedas. As mesmas que ele deu a Jack. E com isso, ela cimenta sua confiança.

Thomas se despede de Katherine e Rufus, enquanto Liz vira-se de costas e finge estar fazendo alguma coisa com o cavalo amarrado à carroça.

– Você vai ficar bem? – Thomas pergunta.

Katherine revira os olhos em direção às costas de Liz.

– Espero que sim – ela lhe diz. – Sinto que fomos recrutados.

Ele se oferece para viajar com elas de volta a Marton.

– Não – Katherine lhe diz. – Liz tem razão. Você deve encontrar Hastings. Londres fica a quantos dias de viagem? Cinco? Seis?

Ele dá de ombros. Não tem certeza. Mais ou menos isso.

– E de qualquer forma – ela continua –, não há como saber se Isabella, ou seus filhos, nos aceitarão de volta.

Ela deixa no ar a ideia de que é menos provável que o façam se Thomas estiver lá com eles, e Thomas balança a cabeça, aceitando a verdade.

– Conhece a rota?

– Seguimos este pessoal para o sul, para Doncaster, e de lá, acho que agora já sei o caminho.

– E você explicará para Isabella? Vai lhe contar o que aconteceu?

– Claro.

– Ela a aceitará de volta, tenho certeza.

– É uma boa mulher.

– E depois que eu tiver encontrado Hastings – ele começa a dizer, mas para. Não sabe o que Hastings dirá quando o encontrar, embora não seja difícil imaginar.

– Irei ao seu encontro lá – ele lhe diz. – Assim que eu puder.

Ela balança a cabeça, assentindo.

– Estarei à espera – ela diz. – Todos os dias. Rufus e eu. Iremos à estrada para ver se você está chegando.

Thomas ri.

– Thomas – ela diz. – Não se deixe arrastar para nada pelo bem de William Hastings. Não se deixe arrastar para nenhum conflito. Essa luta não é sua. E Deus nos livre que alguma coisa lhe aconteça. Eu não estarei lá e, dessa forma, você não ajudará Jack, John e Nettie.

É a vez de Thomas assentir.

– Então, vá – ela diz. – Vá e volte a salvo. E que Deus o acompanhe.


PARTE TRÊS


Depois da Visitação,
verão de 1469


11


Thomas segue uma estrada diferente da que Horner e seu exército seguiram, um caminho que o desvia para oeste, para que ele possa ultrapassar a coluna e – assim espera – Robin de Redesdale, antes de retomar a estrada para Londres mais ao sul. Thomas cavalga depressa, e logo a cidade desaparece às suas costas, mas à medida que avança, é tomado por uma angustiante sensação de horror. Cavalga por algum tempo com lágrimas nos olhos que nada têm a ver com o vento e pensa que são porque ele deixou Katherine, mas também não é por isso. É quando olha ao seu redor para os campos cultivados, para as árvores e a terra suavemente ondulada que essa sensação se aprofunda, e quando alcança o alto de uma encosta, ele quase é derrubado de seu cavalo e mal consegue encontrar forças para respirar, porque sente o peito esmagado.

Ele desce de sua sela e segue, cambaleante, pela estrada, na direção oeste, para a borda da escarpa, onde ela se precipita em um vale íngreme e estreito. A grama é viçosa e alta sob seus pés e ele fica ali parado, com as lágrimas inundando seus olhos e se derramando pelas faces. Ele fita o vale, o sinuoso regato da montanha que abre seu caminho através de amieiros e espinheiros retorcidos. Um vento suave sopra do sul e gordos corvos e gralhas empoleiram-se na copa das árvores, mas ele não vê nada disso, apenas sente uma tristeza desesperadora, uma tristeza que pode fazê-lo cair de joelhos e rezar em voz alta. E não melhora quanto mais tempo ele permanece ali, então ele se vira e volta andando até seu cavalo, cambaleando, aflito. Tropeça em alguma coisa na grama e cai de joelhos, virando-se para pegá-la. É uma placa de metal enferrujado e retorcido – um pedaço de uma velha armadura – com uma grande marca no meio. Quando a solta do solo, o pedaço de metal libera um cheiro muito antigo. Ele olha à sua volta: para o campo suavemente inclinado e o espinheiro solitário, em seguida atira o metal fora, sobe em sua sela, atiça o cavalo e desce a colina, afastando-se do lugar em direção a uma aldeia erguida em torno de uma igreja minúscula.

Ele encontra um menino que lhe diz que o nome da aldeia é Lead.

– E o que tem para lá? – Thomas aponta para os campos que ele acabou de atravessar.

– Lá é caminho para Towton – diz o garoto. – Não vamos mais lá. Não mais.

Thomas alcança Doncaster no final da tarde e ouve notícias de Robin de Redesdale através dos padres da Ordem do Carmo, que lhe dão uma cama para passar a noite.

– Quantos homens? – ele pergunta ao esmoler.

– Cinco mil – o homem lhe diz em troca de uma das últimas moedas de Thomas.

– No total?

– Isso somente de homens para lutar. Ao todo, talvez dez mil.

Thomas não sabe se pode acreditar nele, mas não vê razão para duvidar.

– Para onde se dirigem?

– Como eu poderia saber? – diz o homem. – Mas eles partiram por volta do Santo Sepulcro, pela estrada para oeste.

Oeste? Thomas não compreende por que Redesdale iria para oeste, quando seu objetivo deve ser para o sul, mas fica satisfeito, de qualquer modo, pois isso significa que a estrada está desimpedida para ele encontrar Hastings. Assim, ele atravessa o portão sul de Doncaster e sai para a estrada de Londres, seguindo um pequeno grupo de peregrinos a caminho de Lincoln, tentando decifrar o enigma por si mesmo. Horner dissera alguma coisa sobre uma pessoa... Tudor? Teria sido isso? O nome lhe é familiar – insurgindo o País de Gales contra o rei Eduardo, e assim talvez, Robin de Redesdale e esse Tudor pretendam se unir e entrar em Londres pelo oeste? Será provável? Possível, mesmo? Thomas não faz a menor ideia. William Hastings saberá, ele acha, ou conhecerá alguém que sabe.

Os peregrinos viram para leste, em direção a Gainsborough, pela mesma estrada que leva a Marton, mas ele continua para o sul pelo começo da tarde, até alcançar Newark, onde acha que terá que trocar de cavalo. Mas antes mesmo de atravessar a nova ponte de madeira, ele percebe que alguma coisa está acontecendo: há homens hasteando uma bandeira nas ameias do castelo e, na extremidade oposta da ponte, há um grupo de uniforme azul e roxo, mais do que poderiam compor a habitual guarda da cidade, e muito mais armados. São os homens do rei Eduardo.

Thomas está em parte aliviado, em parte decepcionado. Queria que suas notícias chegassem como uma surpresa, mas parece que o rei Eduardo já deve saber.

– O que estão fazendo aqui? – ele pergunta. Há cinco ou seis deles, são homens grandes, saudáveis, do tipo que ele conhece bem, e estão fortemente armados, mas há também algo descontraído em relação a eles, como se fosse um dia de domingo no campo de treinamento de arqueiros, não como se estivessem indo para o norte para sufocar uma rebelião armada contra seu rei.

– Posso perguntar o mesmo de você – um deles, aquele a quem os outros parecem obedecer, pergunta. – Quer descer daí?

Thomas passa a perna por cima da traseira de seu cavalo e salta para o chão. Todos vestem casacos novos e seus elmos são polidos como se tivessem acabado de ser cunhados. Será que é assim com os homens do rei Eduardo? Um deles ergue o queixo para indicar o arco e o machado de guerra de Thomas.

– Você é homem de combate, não? – ele pergunta.

Thomas lhes diz que ele é um dos homens de William Hastings.

– Bem, ele não está aqui – eles lhe dizem.

– Onde ele está?

Eles não sabem e ficam intrigados com a pergunta. Mas deveria estar, Thomas sabe, se o rei Eduardo está se deslocando para o norte para lutar contra Robin de Redesdale.

– Mas o rei Eduardo está aqui?

– Está – o homem responde. – O que você tem a ver com isso?

Thomas lhes conta que viajou desde Doncaster hoje de manhã.

– Eu vi o exército de Robin de Redesdale.

Um outro ri.

– Ah, aquele vilão! Estamos esperando para lhe dar umas palmadas!

– Quantos vocês são? – Thomas pergunta.

– Mais de mil – o mais jovem se vangloria. – Com mais a caminho.

– Mas Robin de Redesdale tem um exército de cinco, não, sete mil. Soldados e arqueiros.

Há um momento em que suas bocas ficam tão abertas quanto seus olhos arregalados.

– Pelo sangue de Cristo! Você não... está falando sério, não é?

– Estão bem do outro lado do rio – Thomas diz a eles. – Vocês não sabiam?

Com isso, eles se tornam mais ativos. Thomas é levado à presença de um oficial – um homem alto, jovem, bem-vestido, pele de quem não se expõe às intempéries, o filho de alguém – que recebe suas notícias com uma incredulidade que dá lugar ao ceticismo, depois se torna um pânico descontrolado. Thomas é levado a um superior, uma espécie de intendente, que anda acompanhado de seis homens entediados de uniforme azul e roxo, cada qual armado com uma alabarda idêntica. Mais uma vez, suas notícias são recebidas com escárnio, depois dúvida, depois uma aceitação tomada de pânico, e assim ele é passado a outro intendente – ainda mais jovem, ricamente vestido com meia-calça vermelha justa, sapatos pontudos e mangas de seda fofas, que lembra Thomas de um dos filhos de Isabella – que lhe diz que o rei Eduardo está passando a tarde com seus falcões.

Dez homens em imaculados uniformes azuis e roxos acompanham Thomas de volta ao seu cavalo e para as várzeas alagadiças rio acima, ao encontro do rei Eduardo. Ele fica nervoso, é claro, ao ver o rei. Já o viu antes, já falou com ele antes – tendo sido abraçado por ele, segundo lhe disseram – mas não se lembra disso e agora, conforme cavalgam por planícies encharcadas ao seu encontro, Thomas é tomado pela ansiedade.

Eles o encontram a cavalo, em uma ilhota de lama preta, orlada de junco, cercado por um grupo de cavalheiros. Um pouco afastado, vê-se outro grupo de cavalheiros menos importantes e, mais afastado ainda, um pequeno exército de criados carregando sacolas, caixas de vime e aquelas armações para os falcões. Os zeladores dos cães também estão por ali, seus animais enlameados nadam pelas águas turvas e emergem nas margens para se sacudirem. Enquanto uns estão achando aquilo bastante divertido – quem vai ficar ensopado? –, outros estão atentos ao céu, seguindo os pontos distantes dos falcões, conforme fazem o que têm que fazer. A tarde está pesada e quente, e os insetos formam nuvens no ar.

Thomas recebe ordem para permanecer onde está, pois não deve se aproximar do rei, e ele se senta pacientemente enquanto várias negociações são empreendidas com membros de um grupo indo ao próximo, e toda vez ele vê a descrença e os pescoços esticados, enquanto ele é estudado. Em seguida, cavalheiros sucessivamente mais graduados vêm em sua direção chapinhando pela água para lhe fazer as mesmas perguntas, até que finalmente alguém alerta o rei Eduardo, que está em cima da sela de seu belo cavalo salpicado de lama, mais alto do que todos eles, a mão calçada de luvas sombreando os olhos e, na cabeça, um gorro grande com uma pena extravagante.

Ele se vira em sua sela quando ouve o que é dito e exige que a informação seja repetida antes de olhar na outra direção. Ele tem que proteger os olhos outra vez e, quando vê Thomas, parece ter um sobressalto e gesticula dizendo que Thomas deve ser levado à sua presença, imediatamente, e todos os criados e cavalheiros mais e menos graduados recuam um passo, de modo que uma avenida se abre entre eles. Thomas adianta-se, chapinhando na lama, e o rei Eduardo o encontra no meio do caminho, inclinando-se para a frente, os falcões esquecidos, a expressão de seu rosto feroz e determinada.

– Santo Deus! – exclama o rei Eduardo. – Eu o conheço.

Thomas balança a cabeça, confirmando, porque sabe que isso é verdade, embora ele mesmo não consiga se lembrar.

– Vossa Graça – ele diz, e sabe que deve retirar o chapéu e apertá-lo junto ao peito, enquanto abaixa a cabeça, imitando todos os outros criados e cavalheiros menos graduados.

O rei Eduardo passa a perna por cima da frente de sua sela e cai pesadamente na lama. Ao fazê-lo, todos os demais desmontam. Ele é um homem alto, mais até do que Thomas, de ombros largos e bem acolchoado de músculos, mas também com uma camada de gordura que revela o tempo gasto à mesa dos jantares. Seus olhos são pequenos no rosto largo e sua boca, pequena e macia, os lábios ligeiramente franzidos, como se estivesse no meio de uma piada autodepreciativa. E no entanto, é o vencedor de Towton, um rei guerreiro, sir John costumava dizer, comparável aos vencedores de Agincourt ou quaisquer das outras batalhas vencidas nas guerras com a França.

Entretanto, será que ele também se parece a um bastardo?, Thomas se pergunta. Filho de outro homem que não seu pai?

– Thomas Everingham – diz o rei Eduardo. – Santo Deus. Fico feliz em ver que está vivo.

Ele estende a mão calçada de luva, cravejada de anéis, e Thomas não sabe se deve apertá-la ou beijá-la. Ele opta pela primeira e o rei Eduardo parece bastante satisfeito. Um círculo de rostos se formou ao redor deles e o rei arqueia uma das sobrancelhas.

– E então? – ele pergunta. – O que tem para mim?

Thomas lhe conta sobre o exército de Robin de Redesdale.

O rei Eduardo fica surpreso, assim como os demais, que se entreolham buscando alguém a quem culpar.

– Isso é mais do que o triplo do que nos disseram! – ele diz. – Como é possível?

Ninguém se manifesta.

Então, alguém diz:

– É meramente pior do que temíamos.

– Mais de três vezes pior! – o rei Eduardo esbraveja. – Três vezes! Santo Deus!

– Podemos levantar mais homens, Vossa Graça, se andarmos depressa, esmagar esse Robin de Redesdale e ter sua cabeça espetada em uma estaca antes de o mês terminar.

O rei Eduardo olha para este homem por um longo instante, acalmando-se, extraindo encorajamento de suas palavras, e depois lhe agradecendo por sua firmeza, chamando-o de William. Ele é um homem grande, com uma barba cheia e faces secas e rachadas, castigadas pelo tempo, o que parece incomum em tal reunião de nobres de pele macia.

Um outro fala. Um homenzinho garboso, com um chapéu de seda e olhos escuros que ele fixa no homem de barba com evidente antipatia.

– Quantos homens milorde de Pembroke pode esperar recrutar em tão pouco tempo? – ele pergunta.

O homem grandalhão, de barba – Pembroke – diz que já mandou ordens às suas propriedades para dois mil homens, mas agora sabendo da gravidade da crise, ele se compromete a levantar mais mil homens, totalizando três mil.

– Soldados?

– A maioria.

– Então, vou igualar esse número com arqueiros – o homenzinho bem-apessoado diz, com uma espécie de mesura ao rei Eduardo.

O rei Eduardo mais uma vez se mostra agradecido, chamando-o de milorde de Devon.

Outros oferecem seus próprios homens, mas poucos podem igualar tais números. Após um instante, Pembroke pede licença, já que quer partir imediatamente, e o rei Eduardo lhe concede. O homenzinho garboso, Devon, faz o mesmo.

– Apressem-se – o rei Eduardo lhes ordena. – Nós nos reuniremos em Nottingham daqui a dez dias, a menos que eu mande uma mensagem em contrário.

Thomas observa Devon e Pembroke se afastarem chapinhando na água, cada qual arrastando uma comitiva do grupo de nobres menos importantes e de servidores comuns.

O rei Eduardo volta-se para outro homem.

– Envie cartas hoje – ele diz. – Envie-as agora. Para todas as pessoas que conseguir se lembrar. Cidades também. Coventry. Gloucester. Norfolk. Para todos os lugares. Diga-lhes para enviarem homens ao meu encontro em Nottingham. Preciso de arqueiros. Cem cada um e mais se puderem, para serem enviados a mim imediatamente. Danem-se os custos. Você sabe o que dizer.

O homem balança a cabeça, assentindo, passa seu falcão para outro e afasta-se às pressas, seguido por três criados.

– E quanto a milorde de Northumberland? – o rei Eduardo pergunta. – Ele não saiu contra este... este vilão Redesdale, nem mandou nenhuma mensagem.

– Dizem que ele está em cima do muro – Thomas lhe diz.

– Miserável mal-agradecido – diz o rei Eduardo. – Vou colocá-lo de volta no seu lugar.

O sol está opressivo agora e os pássaros estão retornando, batendo as asas, atraídos de volta pelos seus zeladores. Eles vão sendo encapuzados e a notícia de que o esporte do dia acabou já se espalhou. Mas aparentemente não sabem nada sobre o envolvimento de Warwick.

– Homens com o uniforme dele passam livremente entre os homens de Robin de Redesdale – Thomas diz. – É quase como se ele estivesse do lado deles.

O rei Eduardo fica surpreso.

– Não! – exclama. – Isso pode ser verdade? Os homens de milorde Warwick estarem entre eles?

Thomas olha para o rei por um longo instante, tentando ler algo naqueles olhos evasivos. Ele se lembra de Hastings dizendo-lhes, o que parece ter sido há muitos anos, que o rei Eduardo não queria ouvir nada de mal sobre o conde de Warwick e por isso, talvez, ninguém tivesse lhe contado? Será que ele sabe que Warwick casou sua filha com o duque de Clarence, o próprio irmão do rei Eduardo? Que Warwick vai enviar uma proclamação conclamando o país a se rebelar contra os conselheiros do rei Eduardo? Que Warwick vai aportar em Sandwich e sublevar os homens de Kent? Será que ninguém contou nada ao rei?

– Vossa Graça – Thomas começa, e ele lhe conta tudo que ouviu sobre o casamento entre seu irmão, o duque de Clarence, e a filha de Warwick, e o manifesto publicado em Calais. Enquanto Thomas prossegue com seu relato, o rei Eduardo permanece de pé, em silêncio, enquanto atrás dele seus cavalheiros praguejam, suspiram e desgrudam suas botas, mudando o peso de um pé para o outro, mas Thomas prossegue. A expressão do rei Eduardo se endurece: sua boca se torna fina como a casa de um botão, e seus olhos meros furos de agulha de fúria. Ele também parece crescer em estatura, se enfunar, elevar-se acima de Thomas. Agora este, Thomas pensa, este é o vencedor de Towton, o homem suficientemente implacável para ordenar que o povo não fosse poupado, o homem que colocou os ingleses para matar outros ingleses até ficar escuro demais para poder enxergar. Uma onda de horror se avoluma dentro dele e ele recua um passo.

E o rei Eduardo deu um passo em sua direção. Sua mão está no punho de sua adaga e Thomas vê que ele está tão furioso que poderia matá-lo agora e voltar a faca para qualquer homem que dissesse alguma coisa para impedi-lo. Thomas engole em seco e se prepara para a dor da facada, pois sabe que não pode – não deve – defender-se contra isso. Nesse instante, porém, a absoluta raiva do rei Eduardo é esfriada por uma expressão mais dura, mais cruel e mais calculista, que é ainda mais assustadora, e Thomas se sente nu e inteiramente vulnerável diante do poder daquele homem. O rei Eduardo afasta a mão lentamente de sua adaga e olha fixamente para Thomas, interessado em sua reação agora, e diz através de lábios cerrados, muito devagar, muito tranquilamente, mas com muita clareza:

– Você sabe como punimos sedição?

Todos agora permanecem imóveis. Já não se trata mais de um impasse entre dois homens na lama. Trata-se de um homem contra um rei. A boca de Thomas fica seca. O rei Eduardo aguarda, seu olhar imobiliza Thomas.

– E então?

Thomas está prestes a sacudir a cabeça, porque, pelo amor de Deus no céu, ele nem sequer sabe o que sedição quer dizer. Entretanto, ele tem que dizer algo, e sabe que seja o que for, sua vida depende disso. Ele se pergunta o que dizer e se decide pela verdade.

– É a verdade, senhor, como me contaram.

O rei Eduardo está a um palmo de distância dele. Ele está rígido, o rosto vermelho de raiva. Thomas sente como se estivesse olhando nos olhos de um daqueles cachorros de rinha de ursos, e se lembra, Mantenha a calma. Não demonstre nenhum medo. Assim, ele enfrenta o olhar do rei Eduardo, olhos nos olhos. E pensa, Só porque você pode mandar-me matar com um estalar de seus dedos, você não o fará, porque sabe que seria um pecado. E o olhar do rei Eduardo, que tinha sido tão constante, agora salta pelo seu rosto, como se estudasse Thomas pela primeira vez, vendo-o de novo e se surpreendendo com o que está ali, mas o confronto, por enquanto, está terminado. Thomas sente não só alívio, mas uma espécie de triunfo. O rei Eduardo aponta para o tufo de cabelos brancos.

– O que é isso? – ele pergunta.

– Uma lembrança de Towton – Thomas lhe diz.

O rei Eduardo balança a cabeça, mas após algum tempo diz:

– Já vi pior.

Thomas não diz nada. Ele nunca se vangloriou disso.

– Então, você vem aqui – o rei Eduardo continua – derramando mentiras sobre meus amigos e meus parentes, e sobre... sobre manifestos, e é como se você fosse capaz de ver o futuro?

– Só conto o que me contaram. Pode não acontecer. Não sei nada além disso. Não sei nada sobre como deveria ser, como se espera que seja, o que nada disso significa. Só estou contando o que me contaram.

– É o que você não para de dizer – diz um dos cavalheiros do rei Eduardo. Ele ainda tem seu falcão pousado no punho. O peito da ave está ensanguentado e há restos de carne rosada em suas garras. Ele e o animal se parecem, ambos de olhos escuros e nariz adunco.

– O que deveríamos fazer com ele, milorde de Worcester? – o rei Eduardo pergunta.

– Para obter a verdade, senhor? Ou para castigá-lo?

Thomas está perplexo.

– Eu só digo o que me contaram – ele repete. De repente, ele se sente muito ingênuo. Há alguma coisa ali que ele não compreende. Santo Deus! Quisera nunca ter ido ali, nunca ter tentado ajudar. O rei Eduardo continua olhando para Thomas.

– Não – ele diz, após um instante. – Vamos aguardar alguns dias. Lembro-me que você é um homem de William Hastings. Vamos esperar sua chegada e ver o que ele sugere.

O homem com cara de falcão, vestido com um curioso casaco de plaquetas de couro superpostas em camadas que caem como penas de pássaro pelo seu peito, parece decepcionado. Ele perdeu sua presa. O rei Eduardo faz um sinal secreto que Thomas não vê. De repente, Thomas é cercado por homens corpulentos nas cores azul e roxa. Eles vão fechando o cerco em torno dele em silêncio e ele não pode sequer mover os braços. Permanecem ali à sua volta enquanto o rei Eduardo e seus cavalheiros sobem em suas selas e retornam pela lama e pela água para o terreno seco junto ao castelo.

Primeiro, ele é levado para o canto de uma cela caiada de branco na guarita do castelo e deixado lá, sentado, enquanto se ouvem muita correria e gritaria no pátio do lado de fora. Portas são batidas. Cascos de cavalos causam uma barulheira nas pedras do calçamento e homens vão e vêm. Ele tenta entender por que tudo deu tão errado.

– Enfiou seu membro em um ninho de vespas, não foi? – um dos guardas de azul e roxo lhe diz quando trazem pão e cerveja. – Ainda assim, teve sorte de o velho Worcester não levá-lo com ele. Ele teria feito uma corda de arco de suas entranhas.

Thomas recebe um cobertor e dorme nas lajotas de pedra do chão. No dia seguinte, devolvem seu cavalo – embora o arco e o machado de guerra já estejam na sela de outro homem – e ele cavalga na companhia deles rumo à cidade de Nottingham. O rei Eduardo está lá, bem à frente da coluna, e os mensageiros vão e vêm a meio galope. Um tambor soa e a atmosfera geral é melhor, Thomas pensa, embora só Deus saiba o quanto ele gostaria de estar em outro lugar.

Ele pensa em Katherine e Rufus e espera que estejam a salvo em Marton. Tenta imaginar como seria caso estivessem ali com ele. Katherine teria sabido como não pressionar o rei? Provavelmente. Depois pensa em Jack, Nettie e John Stump e quase estremece ao pensar em Edmund Riven e em tudo que ouviu sobre ele, e tenta imaginar o que talvez tivesse feito para salvá-los. Mas essa era realmente a única maneira? Não se poderia esperar que o rei fosse reagir desse modo, não é? Não é? E assim seus pensamentos sempre voltam para si mesmo e seu próprio drama.

Eles chegam a Nottingham tarde no dia, sobem para o castelo no alto de seu penhasco rochoso e, novamente, Thomas é colocado em uma cela na guarita do castelo e agora, sendo inofensivo, é praticamente ignorado. Os guardas vêm e vão, e sua conversa é familiar e calmante. Thomas ouve e sabe quase exatamente o que cada um dirá em seguida e a resposta que obterá dos outros. Eles bisbilhotam e fazem especulações sobre as criadas, é claro, e zombam dos virgens entre eles. Gabam-se de suas façanhas, sexuais e marciais, e depois discutem os méritos relativos de suas cidades e condados – eles vêm de diferentes pontos do país – e o que acham que acontecerá em seguida: para onde serão enviados, contra quem terão que lutar e o que farão aos homens com quem lutarem.

Conforme aquele primeiro dia se transforma em tarde e depois em noite e na manhã seguinte, Thomas é um dos primeiros a ouvir em que pé está a situação: como o rei Eduardo enviou batedores à frente, do outro lado do rio, para ver se os rumores são verdadeiros, e quando, depois do meio-dia, os escoteiros retornam com a notícia de que não viram nenhum sinal de nenhum exército, muito menos um grande exército, os guardas riem, em parte aliviados, em parte decepcionados. Então, eles se lembram de que Thomas foi a fonte dos boatos e, assim, viram-se para zombar dele e predizem uma visita do conde de Worcester, de quem todos têm pavor, mas Thomas permanece inflexível e, por fim, eles parecem aceitá-lo como uma espécie de lunático, influenciado pela lua, talvez, lhe dão pão e cerveja e começam a tratá-lo como um mascote idiota ou um animalzinho de estimação. Outros homens são trazidos para darem uma olhada nele, lá sentado, e talvez alguém tivesse até afagado seus cabelos se ele não fosse tão grande.

Os guardas ficam satisfeitos quando batedores mais aventureiros retornam de mais longe à noite, tendo descoberto um exército, só que não se trata de nada tão grande como se temia, e a ideia de derrotar esse pequeno exército é recebida com muito agrado. Mais tarde ainda, outro par de batedores traz a notícia de que esse pequeno exército é apenas a retaguarda de outro muito maior, e os guardas ficam desalentados.

Thomas se sente vingado, mas ainda está na guarita na noite seguinte e se torna menos popular conforme os homens começam a compreender que eles definitivamente terão que lutar contra esse enorme exército. O mais velho expressa a esperança de que os duques de Devon e de Pembroke voltarão com os prometidos reforços antes que esse Robin de Redesdale faça seus homens se voltarem para o sul.

– O que acha, Thomas? Você parece saber tudo.

Thomas não sabe, é claro, mas ainda assim eles lhe perguntam e ele começa a assumir um curioso papel de talismã na companhia.

– E quanto ao conde de Warwick? Ele vai trazer seus homens?

Mais uma vez, Thomas não sabe, e ainda que soubesse com certeza se Warwick iria ou não trazer suas temidas tropas, ele não pode dizer ao certo de que lado iriam lutar. Ninguém nas diferentes salas da guarda acredita que o conde de Warwick seja culpado de traição, como dizem os boatos, certamente não o mais velho deles, que o conheceu quando lutava ao lado do rei Eduardo em Northampton e Towton.

Mas um dos mais jovens havia montado guarda com alguns daqueles homens grandalhões, barbados, do conde de Pembroke, e diz que todos eles estão comentando sobre como o conde de Warwick detesta a rainha do rei Eduardo e toda a sua família, especialmente seu pai e seu irmão, e de como o conde de Pembroke frustrou os planos de Warwick no País de Gales, enquanto o conde de Devon fez algo terrível aos seus interesses em outra parte.

– Então é tudo uma dança das cadeiras.

E Thomas se pergunta para quê, em nome de Deus, é tudo isso.

No dia seguinte, um mensageiro recém-chegado entra na sala da guarda em busca de cerveja e algo para comer. Ele está vermelho do sol e suado da cavalgada. Tira o casaco e deixa-se cair pesadamente em um banco, ignorando Thomas enquanto bebe de seu próprio recipiente de couro. Thomas só então vê que ele tem uma insígnia que lhe é familiar, costurada nas dobras de seu casaco – uma cabeça de touro negro.

– Você é homem de Hastings?

Ele olha para Thomas e resmunga, confirmando.

– Chegando de Londres com uma mensagem para o rei – ele diz. – Nossa, como está quente.

– Hastings está aqui? – Thomas pergunta.

O homem sacode a cabeça.

– Vem amanhã – ele diz. – Muito trabalho a fazer em Londres, acredite.

Antes que ele possa explicar, um dos outros guardas retorna.

– Ei, você, vamos – ele diz a Thomas. – Está sendo chamado.

Outros dois homens em azul e roxo aguardam para escoltá-lo pelo pátio interno até o salão da torre principal, onde ele é passado a um terceiro intendente e depois a outro, que o conduz a uma porta onde ele bate e abre uma fresta, enfiando a cabeça pela abertura. Em seguida, depois de uma conversa sussurrada, a porta se abre de par em par. Ali dentro, estão alguns dos homens da caça no outro dia, embora em número menor, e o rei Eduardo está afastado, os olhos fixos através da janela, um pedaço de papel na mão. Todos se viram e olham atentamente para Thomas quando ele entra.

– Ah – diz o rei Eduardo. – Thomas Everingham.

Ele se aproxima rapidamente de Thomas. Hoje, está vestindo azul, com sapatos baixos e pretos, não muito pontudos, e à sua cintura há uma espada em uma longa bainha vermelha, o que parece estranho dentro de casa, Thomas pensa, mas talvez esteja ali como um sinal de sua determinação.

– Quis que você estivesse aqui – ele diz – quando eu retransmitisse as notícias enviadas hoje de Londres pelo nosso amado William, lorde Hastings.

Ele agita a folha de papel. Há somente umas poucas linhas escritas. Nenhum selo. Thomas sabe que isso significa que a mensagem foi escrita às pressas.

– Portanto, milordes – ele diz, voltando-se para sua plateia e batendo no papel com as costas dos dedos –, nosso lorde Hastings escreve hoje com excelentes notícias, das quais podemos ter tido o anúncio, graças ao nosso leal amigo Thomas Everingham aqui presente, que chegaram até ele em Londres de nossa cidade de Calais, onde ao que parece nosso irmão Jorge, milorde Clarence, esta semana foi abençoado em sagrado matrimônio!

Os cavalheiros evitam olhar uns para os outros, e o rei Eduardo tem que esperar um longo instante antes de as primeiras palmas indicarem uma demonstração formal de sua satisfação com as notícias.

– E quem é a feliz noiva? – o rei Eduardo pergunta a si mesmo. – Ora, ninguém menos do que lady Isabel Neville, filha de nosso muito leal primo, milorde de Warwick. Suponho que agora devemos nos acostumar a chamá-la de duquesa de Clarence.

Há uma série de cenhos franzidos.

– Mas, Vossa Graça – o conde de Worcester, ainda em seu casaco que parece as penas do peito de um falcão, começa a dizer –, o senhor proibiu expressamente a união.

– Sim, sim, milorde, achei que o tivesse feito, mas evidentemente não fui absolutamente claro a todas as partes envolvidas.

O sorriso do rei Eduardo parece vidrado.

– E o papa concedeu sua licença? – Worcester continua. – Sem isso, é...

– Em março – o rei Eduardo o interrompe, brandindo o pedaço de papel. – Foi concedida em março.

– Em março! – Worcester exclama, soltando a respiração. – Há quatro meses e... Santo Deus! E quem os casou?

O rei Eduardo fica satisfeito com a pergunta.

– Ah – ele diz. – Foi o tio da noiva, milorde arcebispo de York.

– E o conde de Warwick estava lá? – Essa pergunta é feita pelo mais jovem do grupo.

– O pai da noiva dificilmente perderia a ocasião, não acha?

Faz-se um longo instante de murmúrios entre os presentes.

O rei Eduardo volta-se para Thomas.

– Portanto, meu amigo, fica claro que você tinha razão – ele diz. – E eu estava errado, pelo que sinceramente lamento muito. Eu o acusei erroneamente de algo no outro dia e, embora rei, sou suficientemente humilde para admitir meu crime diante desta audiência. Espero que Deus perdoe meu orgulho e minha raiva, e que você me perdoe por qualquer inconveniência a que tenha sido submetido. Eu não o culparia se você agora preferisse se virar e seguir seu caminho, já tendo me prestado um grande favor, mas posso aproveitar a oportunidade de fazer as pazes e recompensá-lo de alguma forma?

Thomas pode sentir seu rosto se reanimando.

– Não fiz nada pensando em recompensa – ele mente.

O rei Eduardo percebe a verdade sem nenhum esforço.

– Bem, discutiremos isso depois em uma hora melhor. Mas, por favor, você mencionou... um manifesto?

Thomas pouco mais tem a acrescentar ao assunto do manifesto, mas o conde de Worcester adianta-se para perguntar-lhe quando e como ele ouviu falar disso. Embora Thomas esteja cansado e com fome, está encantado com o reconhecimento que recebeu, e assim fala sem pensar como cada frase terminará, sem pensar como cada final construirá uma história e como essa história terminará, e ele fica ali de pé diante daquele homenzinho feroz de olhos escuros e nariz adunco, e fala sem parar. Ele não nota a transformação das feições do homenzinho, cada vez mais aguçada à medida que ele conta a história de seus poucos dias no norte, nem presta atenção ao escrivão de pé ao lado de Worcester, que está anotando os nomes de Horner e Riven, até mesmo o de Campbell. Então, Worcester quer saber onde Katherine, Jack, Nettie e John Stump estão, Thomas lhes conta e é quase tarde demais para recuar quando Worcester sorri finalmente e diz:

– Por que fugiu da estalagem tão precipitadamente?

E Thomas tem que lhe dizer que tinham medo de Edmund Riven.

– Mas por que vocês tinham medo de Edmund Riven?

– Ele... ele queima pessoas – Thomas diz. – Pega duas, uma mãe e o filho, digamos, e queima um para que o outro fale.

Worcester para a fim de imaginar a cena, depois sorri apreciativamente.

– Oh, sim – ele diz. – Isso é bom. Mas esse Edmund Riven faz isso com todo homem que encontra? Claro que não! Ora, se o fizesse, seria o homem a trabalhar mais duro em toda a cristandade.

– Não – Thomas diz. – Todo mundo, não.

– Então o que – Worcester continua sondando – o torna tão especial para que esse Riven queira queimá-lo?

E finalmente Thomas vê a armadilha que construiu para si mesmo, mas é tarde demais. Agora, o olhar de Worcester parece esfolá-lo, arrancar toda a sua proteção, e a voz do conde parece deslizar entre suas juntas e raspar seus nervos.

– E então?

– Não sei – Thomas admite. – Eu só tinha medo dele. Eu tinha mulher e filho.

– Mulher e filho. Mulher e filho. E você durante esse tempo naquelas zonas do norte ficou sabendo quem, ou o quê, esse Edmund Riven estava procurando?

E Thomas agora pede a Deus para que estivesse em casa com Katherine ou que ela estivesse ali com ele, pois ela saberia o que dizer, e que este... este predador não estivesse voando em círculos acima dele, com seu peito coberto de crostas de sangue e restos de carne vermelha como vermes em suas garras, e essa expressão no olho.

– Não, não fiquei – Thomas diz, respirando com dificuldade. – Eu estava mais preocupado em saber que havia um exército de rebelião contra o rei Eduardo.

Worcester abre a boca para dizer algo terrivelmente sarcástico, mas o rei Eduardo já está farto daquilo.

– Deixe-o, Worcester, por favor – ele diz. – Você está começando a assustar até a mim.

– Mas, senhor...

O rei Eduardo ergue a mão. Basta. E, naturalmente, Thomas vê, Worcester não pode continuar e explicar o que quer dizer, porque o rei Eduardo não sabe a respeito do livro-razão e o segredo que todos estão lutando para esconder, mas ele, Worcester, sabe.

Nessa noite, Thomas tem permissão para deixar a sala da guarda como um homem livre, e um intendente vem para levá-lo a se instalar no grande salão onde há muita carne e peixe temperados com especiarias e um brilhante vinho tinto que, no começo é tão cáustico quanto urtiga, mas ele se acostuma a isso muito rapidamente. Senta-se entre dois cavalheiros que estavam talvez no segundo grupo de falcoeiros naquele dia, aqueles que não têm permissão de acesso ao rei, e eles ficam, no começo, ofendidos por se sentarem com um homem que está usando roupas de viagem com as quais obviamente dormiu, enquanto eles haviam feito algum esforço por uma aparência melhor. Mas logo se rendem e passam a tentar tirar informações de Thomas sobre o exército de Robin de Redesdale. Ambos ficam ansiosos à ideia de entrar em combate contra um exército três vezes maior.

– Mas e quanto àqueles condes que prometeram três mil homens cada um? – Thomas pergunta.

– Se milordes de Pembroke e de Devon levantarem esse número, eles só vão colocá-los uns contra os outros – diz um deles. O outro concorda.

Não é de admirar que o humor na sala esteja silencioso. Thomas olha para o rei Eduardo, sentado na extremidade do salão, como sempre mais elevado no estrado, semioculto pela prataria, cercado por seus cavalheiros, cercado de criados, em um silêncio taciturno enquanto belisca sua comida. Ele senta-se com seu mais jovem cavalheiro do lado direito e o conde de Worcester, com seu nariz de falcão, um pouco mais adiante. Mais ou menos no meio da refeição, o rei Eduardo envia um prato a Thomas – carne bovina com ossos em canela – e ergue sua caneca em um brinde. Thomas sente-se honrado, mas surpreende o olhar do conde de Worcester com uma guinada e se vira depressa, e ele sabe sem olhar outra vez que Worcester está sorrindo para si mesmo e que ele se entregou. Thomas permanece sentado, olhando o prato de carne. Sente-se nu, exposto e com medo do que Worcester agora pretende.

Além do mais, será esta toda a extensão da recompensa que o rei Eduardo prometeu? Um prato de ossos de boi?

O homem a seu lado parece compreender.

– Belas palavras não dão camisa a ninguém – ele diz, inclinando-se para a frente para espetar um pedaço de carne do tamanho de um punho cerrado e transferi-lo para sua própria tigela.

A manhã seguinte nasce ensolarada outra vez e Thomas tenta ir embora de Nottingham, voltar para Marton, se distanciar de Worcester, mas se retarda procurando seu cavalo e, quando finalmente o encontra, não nos estábulos, mas entre as fileiras no pátio do castelo, ele tem que negociar com um cavalariço mal-humorado, relutante em abrir mão de qualquer montaria. Em seguida, tem que encontrar seu arco e a aljava de flechas, seu machado de guerra, sem o qual não partirá, já que somente um tolo sairia desarmado pelas estradas quando há exércitos circulando, e de qualquer forma, ele não pode nem imaginar onde encontrará o dinheiro para adquirir um novo.

Quando finalmente acaba de fazer tudo isso, o castelo está um caos, com homens indo e vindo, e os portões estão com o tráfego congestionado, assim como as ruas embaixo, por todo o caminho até a ponte que atravessa o rio para o sul, onde as estradas se tornaram intransitáveis com carroças trazendo tudo que um exército precisa para travar uma guerra. Existem rebanhos de ovelhas, bois e vacas bloqueando os caminhos também, assim como soldados entediados e ansiosos, com armas afiadas e cerveja na barriga.

Em meio a tudo isso, vindo do sul, aproxima-se William, lorde Hastings, com quinhentos homens em bons cavalos. Por causa do número esmagador de soldados dentro e em torno do castelo, Hastings tem que deixar a maioria de seus homens armando um acampamento nas terras públicas do outro lado da ponte e segue abrindo caminho pela multidão com apenas um punhado de homens, emergindo do portão da guarita com um aspecto angustiado e enfurecido, exatamente quando Thomas está tentando sair.

Os dois se encaram fixamente.

– Milorde – Thomas diz. Ele tem que elevar a voz acima do barulho de homens e cavalos.

– Thomas – Hastings chama. – O que em nome de Deus você está fazendo aqui? – Ele força o cavalo através da multidão.

– Vim à sua procura, mas em vez disso encontrei o rei.

Hastings desmonta e passa as rédeas para um intendente.

– Você tem novidades?

– Nenhuma que o senhor já não tenha ouvido – Thomas diz –, exceto que o conde de Warwick está prestes a emitir um certo manifesto de Calais, conclamando todos os verdadeiros homens da Inglaterra a se rebelarem contra o rei Eduardo.

Hastings balança a cabeça.

– Eu o tenho aqui – ele diz, indicando a bolsa pendurada no ombro de um dos homens da escolta. Hastings tem um ar sombrio. – Como o rei Eduardo recebeu a notícia do duque de Clarence? – pergunta.

– Ele me acusou de sedição.

Os olhos de Hastings se arregalam.

– Sedição! – ele diz. – E milorde de Worcester está aqui, por acaso?

– Está.

– Mas você está livre para ir?

– As notícias que eu trouxe foram confirmadas e o rei me brindou com vinho ontem à noite.

Hastings ri.

– Você sempre tem sorte, Thomas. Agora, onde está o rei?

Thomas indica o salão, onde supõe que ele esteja.

– Venha comigo, Thomas – Hastings ordena. – Preciso aproveitar a sua sorte.

Thomas tenta explicar.

– Não adianta tentar ir embora agora – Hastings lhe diz. – Nunca vai conseguir atravessar a multidão. Uma carroça está emperrada na ponte, com um eixo quebrado. O carroceiro não vai deixar ninguém virá-la para dentro do rio, a menos que lhe paguem por ela e pela carga de penas de ganso.

Thomas hesita. Não quer enfrentar Worcester de novo.

– Ela não flutuaria? – ele pergunta.

Hastings ri.

– Venha, por favor. Use meu uniforme. Só por hoje. Isso me tornará invencível!

Ele faz o homem que carrega as mensagens entregar a bolsa e seu casaco a Thomas e espera enquanto Thomas o veste. Em seguida, sobem juntos as escadas, ao encontro do rei Eduardo. Há uma multidão que eles têm que atravessar.

– É como nos velhos tempos, Thomas – Hastings diz. – Lembro-me de estar com você em Westminster, com o velho sir John Fakenham, que Deus tenha sua alma, à espera de uma audiência com o falecido pai do rei Eduardo. Foi a noite em que o conde de Rutland disse a Warwick para calar a boca. Ha! Já faz muito tempo. Chegamos.

Mas ele hesita.

– Oh – ele diz, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. – Antes de entrarmos. Thomas, você falou alguma coisa sobre aquela outra questão que mencionamos?

O livro-razão. Pelo amor de Deus, Thomas pensa. Por que tudo sempre volta para o livro-razão?

– Não – ele diz, sacudindo a cabeça com tristeza e vendo a testa de Hastings se franzir.

– Não? – ele pergunta. – Tem certeza?

Thomas balança a cabeça.

– Sim, senhor. Não ficamos em Senning muito tempo.

Hastings, por sua vez, também balança a cabeça, mas há uma sombra de tristeza em sua expressão, Thomas vê que ele não acredita inteiramente, e assim tudo fica um pouco pior. Um dos outros homens de Hastings abre a porta, eles retomam sua pressão para chegar ao centro do salão e Thomas se vê parado ligeiramente atrás do ombro direito de Hastings, inclinando a cabeça diante do rei Eduardo pela segunda vez em dois dias. A luz do sol se filtra através das janelas altas, incidindo em vermelhos e azuis sobre o rei e seus cavalheiros sentados em grupos apertados, encolhidos e tensos.

– William! – o rei Eduardo chama. Ele avança, desce os degraus e abraça o velho amigo. Pode-se notar alguma leveza retornando a ele com este encontro. Hastings cumprimenta os outros cavalheiros, inclusive um jovem, que é o duque de Gloucester, e naturalmente o conde de Worcester, que sorri para ele e aperta sua mão por um tempo um pouco longo demais, de modo que Hastings tem que desvencilhar-se dela.

– Trouxe o manifesto? – o rei Eduardo pergunta.

– Trouxe, sim.

Thomas retira-o da bolsa que ele havia lhe dado e o passa a Hastings. É um grande quadrado de papel de boa qualidade, amaciado pelo manuseio recente. Hastings o segura e passa ao rei Eduardo, que o desenrola e começa a ler em silêncio, os lábios movendo-se rapidamente. Ele franze ainda mais o cenho.

– Aquele rato maldito – diz o rei Eduardo. – Vou acertar as contas com ele. Ah, vou. Vou acertar as contas. Ainda que seja a última coisa que eu faça. Vou acertar as contas com ele.

– É a caligrafia de Warwick, não é? – Hastings pergunta.

– É claro que é a letra dele! Você leu? Olhe para isso! É igual ao que publicamos lá atrás, em 1460, quando voltamos de Calais e queríamos que o povo da Inglaterra se rebelasse contra o velho e sanguinário rei Henrique. Sim, sim. “Viemos não para destronar o rei, mas seu conselho traiçoeiro e cobiçoso, a quem ele tem favorecido com magnanimidade nos últimos anos.” Como se eu não tivesse lhe dado tudo que pude e ainda mais! “E por causa disso, o país está mergulhado em tumulto, e a lei e a ordem foram destruídas.” Como se não fosse ele o responsável por sua destruição, o miserável! Sim. Sim. Está tudo aí. E olhem! Olhem para essas condições! Não venham me dizer que algum imbecil de Yorkshire, como Robin de Redesdale, está preocupado que alguém esteja desviando cargas ou a maldita verba de manutenção dos mares! Ele está por trás disso! É claro que está, a maldita cobra escorregadia, sorrateira, mercenária!

O rei Eduardo embola o papel e o atira no chão, depois o empurra para o fogo da lareira.

– E tem mais, lamento dizer – Hastings lhe diz. – Um adendo.

Ele abre a bolsa que Thomas segura e retira um pedaço menor de papel que passa ao rei com um arrepio de arrependimento.

– Não é nada de que já não suspeitássemos – ele diz.

O rei Eduardo segura o papel, abre-o, lê as poucas palavras uma vez, franze o cenho, olha outra vez. Fica incrédulo por um instante, segurando o papel com dedos frouxos, olhando à distância com uma expressão vazia.

– Santo Deus Misericordioso – ele murmura. – Santo Deus Misericordioso. Jorge! O que você fez? Você... você, seu maldito idiota.

Ninguém diz nada. Eles esperam.

Após um instante, o rei Eduardo se recompõe e se vira primeiro para Hastings.

– Você leu isso também?

Hastings balança a cabeça.

Em seguida, ele olha para o cavalheiro mais jovem, o duque de Gloucester, a quem diz:

– É Jorge outra vez.

E o rapaz – não tão novo quanto parece, na realidade, mas de compleição pequena – sacode a cabeça com tristeza.

– O que foi desta vez? – ele pergunta.

– Creio que foi o pior até agora – diz o rei Eduardo. – Nosso irmão Jorge uniu suas forças com milorde de Warwick e juntos pretendem vir com seus exércitos e me forçar a aceitar esses... esses termos. – Ele dá outro chute no primeiro papel em meio à palha de junco.

– O que vamos fazer? – Gloucester pergunta.

E o rei Eduardo fica em silêncio por um instante, porque, por mais enfurecido que esteja, não consegue dizer a um irmão que, juntos, eles devem matar o outro.


12


Katherine, Rufus e sua nova companheira, Liz, atravessam o rio em Gainsborough sob um sol brilhante e uma brisa leve. Katherine barganha com o barqueiro e consegue um bom preço, vendo que são duas mulheres sozinhas, mas Liz não fica satisfeita e, depois de mais discussão, o preço cai ainda mais. O barqueiro se oferece para conduzir a carroça para dentro de sua embarcação, mas Liz lhe diz que preferiria vadiar com um porco do que entregar as rédeas a ele. Ele se recusa a olhar para as duas depois disso, enquanto elas levam o cavalo e a carroça a bordo, mas outros as admiram mais e ficam felizes em dizer isso, até que Liz vira-se para eles, que rapidamente viram-se de costas e ficam observando o rio agitado, sem fazer mais nenhum comentário.

Katherine também fica olhando fixamente para as águas turbulentas e turvas, até que Liz lhe diz para não se preocupar com Thomas.

– Ele parece um homem capaz de lidar consigo mesmo.

Katherine não tem tanta certeza.

– A última vez em que o vi partir assim, eu o perdi por dois anos.

– Mas ele voltou, no final – Liz diz. – Muitos não voltaram.

E Katherine supõe que isso seja verdade.

Liz já lhe contou sobre como Riven os capturou. Vinte homens bem armados em cavalos grandes e rápidos os alcançaram com facilidade, como eles temiam. Jack e John Stump nem sequer tentaram lutar. Foram simplesmente engolidos.

– Jack tentou impedi-los, levando-me para o meio do mato, mas Edmund Riven segurou uma lâmina na garganta da garota grávida e lhe deu a escolha. Era eu ou ela. Eu me ofereci no final só para fazê-la parar de chorar e ele ter que fazer a escolha. Não foi a primeira vez, então eu sabia o que esperar. E no final, foi apenas um deles, um desgraçado nojento, mas ao menos não foi aquele maldito gigante deles.

– Ele mantém o gigante em memória do pai ou algo assim? – Katherine pergunta.

– Talvez seja uma tradição familiar, não? – Liz supõe. – Sabe como essas famílias são.

– Ele... ele arranca os olhos dos homens?

Liz franze a testa.

– O gigante? Não que eu saiba, mas Riven é conhecido por cortar fora o nariz dos outros. – Ela corre o dedo pela extensão de seu nariz.

– Você teve sorte – Katherine lhe diz.

– Sim – Liz é rápida em concordar. – Mas ele sabia que eu era apenas alguém do local, já que conhece meu pai, assim não ficou tão empolgado em me encontrar, mas ficou todo agitado em relação aos outros, e quando descobriu que deixou vocês escapulirem por entre os dedos, bem... ele... nunca vi nada parecido.

Katherine engole em seco com força. Santo Deus.

– Mas de nada adianta você se preocupar – Liz lhe diz. – Vocês fizeram o que puderam. O resto depende deles. Eles compreenderam isso.

Katherine balança a cabeça e pensa que gostaria de poder acreditar nela.

– Então, que lugar é este para onde estamos indo, Kate? – Liz pergunta.

Ninguém nunca a chamou de Kate antes. Soa estranho, mas também, vindo de Liz, parece reconfortante.

– É nossa casa – Rufus diz a Liz. Ele está agarrado ao pequeno arco que John Brunt lhe deu e, com seu casaco azul e a meia-calça marrom-avermelhada, parece uma versão pequena, infantil, de Thomas. Katherine coloca a mão em sua cabeça coberta com o gorro.

– Está sendo estranha esta jornada, não é, Rufus?

Ele balança a cabeça, mas não diz nada. Depois de saírem do barco, tomam a direção sul, passam por uma grandiosa mansão recém-construída e os homens observam as duas mulheres com uma criança na carroça. Eles abrem a boca para dizer alguma coisa, mas Liz geralmente é mais rápida do que eles. Um frade em uma mula descansa à sombra de um carvalho e lhes diz que se admira de ver tal cena, embora se pergunte se é do agrado de Deus. Liz lhe diz para cair fora e ir plantar batatas.

Elas seguem os meandros do rio até chegarem a Marton. Tudo está luxuriante, saturado de vida, florescente e verdejante, e a beira da estrada está repleta de rosas selvagens e amieiros, há borboletas embaixo e andorinhas no alto, e o ar quente é perfumado por limoeiros e ulmárias. Rufus grita que ele viu um martim-pescador.

Mas Katherine sente um mal-estar, como uma espécie de náusea. Será que Isabella irá aceitá-los de volta? Ela já deve ter se afastado de suas obrigações completa e definitivamente, como disse que faria, e deve ter deixado as decisões a cargo dos filhos. O que eles dirão quando a mulher e o filho do homem que matou seus cães chegarem de volta, suplicando caridade? E quanto a Borthwick? Os filhos de Isabella mandaram-no embora depois que os cães foram mortos, já que não havia mais nada para fazer, mas talvez tenham novos cachorros e o tenham chamado de volta.

Elas chegam ao vilarejo pelo norte, passam pelo moinho que sir John mandara construir em uma pequena elevação acima do rio, e Rufus pergunta se podem parar para falar com o moleiro como ele fez no passado. Katherine geralmente fica feliz com o prazer que ele encontra em moinhos, embora não o compartilhe com ele, pois de perto as amplas velas de pano parecem vivas e a fazem lembrar das asas do dragão em um mural que um dia viu em uma igreja chamada St. George. Thomas, é claro, estava lá para dizer-lhe que na verdade era o contrário: que as asas deviam fazê-la lembrar das velas dos navios, porque o pintor pintou as asas para se parecerem com velas.

De qualquer modo, hoje as velas estão móveis, e quando se aproximam, veem que o moleiro está ausente.

– Onde ele está? – Rufus pergunta.

– Não sei – Katherine diz. Embora, é claro, em um dia como este, ele deveria estar no trabalho, moendo os grãos.

Eles ficam parados no alto do outeiro, enquanto Liz espera com a carroça embaixo. Eles olham a vastidão do que um dia foram as terras de sir John, e fatos estranhos chamam a atenção de Katherine. A plantação de ervilhas não foi colhida e os esqueletos marrons das plantas quebradas estão apinhados de pássaros, quando deveria haver um garoto com uma vara para mantê-los afastados. E o feno nas pastagens mais além – que certamente já deveria ter sido cortado – permanece lá, batido e secado em partes, apodrecendo em outras. E onde está o rebanho? Katherine tenta se lembrar quanto tempo faz desde que partiram. Parece que foi há séculos, pois passaram por muitas dificuldades, mas certamente não pode ter sido mais de um mês, não é? E no entanto, olhem para o lugar: está abandonado exatamente na época do ano em que há mais serviço a ser feito. Ela protege os olhos e espreita as árvores que encobrem parcialmente a mansão daquele ponto, e fica aliviada ao ver uma fumaça pálida erguendo-se da chaminé.

– Vamos – Katherine diz a ele. – Vamos procurar Isabella.

Quando chegam à mansão, ela fica perplexa.

– Onde está todo mundo?

As portas dos estábulos estão fechadas, como as portas da mansão, e há uma sensação de abandono empoeirado, seco, em torno do lugar, como se ninguém aparecesse ali há meses. No entanto, um fiapo de fumaça escapa da chaminé que Thomas, Jack e John tiveram tanto prazer de construir, e portanto deve haver alguém lá dentro. Katherine bate na porta. Faz-se um longo instante de pesado silêncio.

Katherine grita.

– Sou eu, Katherine Everingham. Quem está aí dentro?

Ouvem-se, então, o barulho de pés se arrastando, um rangido e a trava da porta sendo retirada, mas parece que alguém está tateando. Há uma certa hesitação, ou fraqueza, ao custo de algum esforço e, então, a porta se abre em dobradiças rangentes e um rosto surge na fresta. É Isabella, abrindo sua própria porta. Seu rosto está pálido e seus olhos arregalados e inexpressivos estão vermelhos de tanto chorar. Ela solta a respiração quando vê Katherine, como se não pudesse acreditar que fosse realmente ela. Em seguida, escancara a porta e puxa Katherine para um abraço desesperado.

– Isabella! O que houve? O que aconteceu?

Isabella a mantém apertada em um abraço sufocante, soluçando inconsolavelmente.

– Katherine, Katherine – ela diz. – Oh, meu bom Deus, obrigada por vir.

Depois que ela se acalma um pouco, Katherine entra onde tudo está como havia deixado – quase exatamente como havia deixado. Nada mudou, nada foi deslocado, nada foi retirado. O ar está pegajoso. Restam alguns poucos pedaços de lenha a serem queimados da enorme pilha que geralmente enchia o compartimento e veem-se algumas crostas de pão velho, pequenas, queimadas, bolorentas, como cascas de nozes, criando mofo na mesa que, no passado, fora palco de tantos banquetes e discussões. A própria Isabella é um filamento encolhido, curvado e ressequido, com alguma afecção, talvez. Ela vira-se de costas para Katherine e se cobre para não ser vista, para que não olhem para ela.

– Oh, Isabella – Katherine diz, tomando-a nos braços. – O que há de errado, o que aconteceu? Por que está aqui sozinha? Onde estão todos?

Rufus chega até a porta, mas para no vão de entrada, horrorizado com o estado do lugar e com o cheiro. Liz aparece atrás dele.

– Venha, rapaz – ela diz. – Deixemos essas duas. Me mostre o lugar.

Mas Rufus escapa, corre para Isabella e atira os braços à sua volta. Ela quase cai, mas Katherine a segura, e Rufus a faz chorar com mais desespero ainda. Eles a conduzem de volta à cadeira em que sir John costumava se sentar e a ajudam a se acomodar. Seus ossos parecem os de um passarinho e, ao abaixá-la no assento, Katherine pode senti-los estalar e ranger sob as palmas de suas mãos.

Liz observa por alguns instantes, depois se vira e Katherine sabe que ela foi buscar cerveja e pão na carroça. Isabella murmura alguma coisa. É necessária alguma suave persuasão para fazê-la repetir o que disse de modo que Katherine possa ouvi-la.

– Estou tão envergonhada – ela sussurra.

Katherine tem dificuldade em conter as lágrimas.

– Por quê? – ela pergunta. – O que aconteceu?

Katherine agacha-se ao lado da velha senhora, que está revolvendo um rosário de contas escuras em seu colo com dedos nodosos como raízes, enquanto as lágrimas caem no tecido escuro e empoeirado de seu vestido, e Katherine compreende de quem é a culpa.

– Onde eles estão? – ela pergunta. – Onde estão William e Robert? Para onde foram?

Isso desencadeia um novo acesso de choro. A história vem à tona devagar durante as horas seguintes. Depois que Thomas partiu, seu conhecimento da terra foi embora com ele, ou sua facilidade de lidar com ela, de lidar com os arrendatários também, e ele foi substituído pelo zelador de cachorros Borthwick, logo ele, que não estava de modo algum capacitado a atuar como administrador. Então, soube-se que seus filhos já tinham previamente vendido partes das terras de sir John e algumas – muitas – de suas benfeitorias também, inclusive o moinho, os lagos dos patos e o rebanho. Assim, quando chegou o Dia de São João, quase não havia aluguéis a receber, pois os rapazes haviam vendido a maior parte das terras e, o pouco dinheiro arrecadado, verificou-se, era devido em outro lugar, por conta de falcões, roupas e joias vistosas e a homens em Londres por despesas que Isabella mal podia imaginar.

Seus filhos fizeram todo tipo de novas exigências sobre suas economias, que ela atendeu, mas quando perguntou sobre a plantação de ervilhas, sobre a produção de feno, eles gritaram com ela, dizendo que não era de sua conta.

– São como gafanhotos – Isabella diz. – Uma praga. Pegaram tudo que puderam e venderam em troca de roupas espalhafatosas e armaduras. Armaduras! Para que acham que vão precisar disso? Eu não sei. Nunca pensei que fossem esse tipo de rapazes. Eles, bem... E todo o trabalho de sir John, e todo o seu trabalho! Tudo isso simplesmente... Não restou nada, a não ser esta casa e seus jardins.

Isabella não está tão triste pela perda daquelas lavouras e propriedades espalhadas que sir John havia amealhado durante sua vida inteira, já que se tratava apenas de receita, mas está envergonhada com a maneira como os colonos foram tratados e de como Thomas e ela – Katherine – foram expulsos, pelo que ela culpa a si própria, e sente-se humilhada pela maneira insensível de como seus próprios filhos a trataram. O comportamento dos garotos estraçalhou tudo que lhe era caro, Isabella lhes diz. Ela chora constantemente e o rosário de contas que revira incessantemente nas mãos serve mais como um conforto do que como um objeto de oração.

Sua visão se deteriorou também, e ao que tudo indica, a catarata agora é como pingos de leite em suas pupilas, ali colocados por um Deus desnecessariamente cruel.

– Ainda enxergo um pouco – Isabella diz –, e isso não me incomoda quando eu penso que me poupará de mais sofrimento no purgatório. Só lamento não ver a hóstia ser erguida na missa e sinto falta de poder admirar a pintura de São Cristóvão que mandamos fazer na igreja.

No entanto, o que mais faltou dizer? O salão está imundo, isso nota-se, outro problema é que sob a pele envelhecida das mãos de Isabella e, especificamente, seus pulsos, manchas roxas florescem. Ela está sempre batendo nas coisas, ela diz, mas Liz sacode a cabeça ao ver as manchas. Diz a Katherine que são marcas de dedos, onde Isabella foi agarrada, e ela mostra uma em seu próprio pulso, de quando foi levada por Riven e que agora já está esmaecendo.

Katherine se pergunta se algo pode ser feito, além de prestar muita atenção aos movimentos da velha senhora. Lembra-se de Mayhew dizendo-lhe como se pode remover uma catarata, mas ela não prestou muita atenção, já que estavam envolvidos em remover flechas dos feridos, e ele disse que a cirurgia curava a cegueira em somente dois casos em cada dez.

Ainda assim...

Isabella pergunta por Thomas e por que eles retornaram. Ela leva as duas mãos ao rosto ao pensar em Jack e John Stump levados durante a noite, mas principalmente em Nettie, é claro, que logo estará na hora do parto. Ela ouvira falar de Edmund Riven, mas nunca o mencionou porque sir John não permitiria.

– O que podemos fazer? – ela pergunta.

Katherine lhe conta sobre Thomas e sua missão.

Isabella não está convencida, mas está tão enfraquecida que só consegue gemer tristemente e lamentar que tivesse que viver para ver tais acontecimentos. Após um instante, entretanto, tem uma ideia melhor.

– Enviarei uma mensagem ao meu primo – ela diz finalmente. – Bem, ele é primo de meu marido, barão Willoughby. É um forte aliado do conde de Warwick e eu vou pressioná-lo por informações sobre eles. Tenho certeza de que ele ajudará, se puder.

Assim, juntas escrevem uma carta a este barão Willoughby do Castelo de Tattershall, no condado de Lincoln, mas sem ninguém para entregar a carta pessoalmente uma vez terminada, Katherine deve ir para a estrada que leva ao sul, ver se alguém está indo naquela direção e se pode ou não levar uma mensagem. A iniciativa está carregada de incertezas, mas fora a possibilidade de elas mesmas a levarem, não há alternativa. Katherine espera, deixando um grupo de soldados passar, antes de se aproximar de um tropeiro com uma longa fileira de mulas e burros carregando só Deus sabe o quê. Ela já vira esse homem antes, nessas estradas, e presumira que veria de novo. Ele concorda em levar a carta e calcula que levará três dias antes de entregá-la em Tattershall “por causa das estradas, que estão alagadas por lá”.

Nos dias seguintes, Katherine e Liz dedicam-se a trabalhar na mansão, colocando-a novamente em ordem, em parte porque precisa ser feito, em parte para se manterem ocupadas, embora durante os trabalhos, Katherine não possa deixar de descer o caminho a cavalo, até a estrada, para esperar Thomas e para abordar viajantes em busca de notícias do sul e desse barão de Isabella. Entretanto, nessas viagens diárias, ela não vê nem Thomas, nem o tropeiro, nem ouve nenhuma notícia do que esteja acontecendo no resto do país. Nas horas de oração, o nome de Thomas está sempre em seus lábios, e toda vez que ouve um barulho lá fora, sente uma pontada de esperança de que seja ele voltando ou ao menos o tropeiro com novidades.

Após alguns dias, a mansão volta a ser como Katherine se lembrava. Ela e Liz colocaram a roda de fiar para funcionar outra vez e sentam-se ao sol tentando produzir algum fio, mas é inútil porque a lã não foi bem cardada. Isabella senta-se em seu banco habitual, à sombra. Elas andaram conversando novamente sobre seus dois filhos, William e Robert, e de como Isabella acha que o pai deles, que foi morto lutando pelo rei Henrique na primeira batalha de St. Albans, fora o culpado por sua falta de compaixão.

– Ele era um homem cruel – ela diz. – Colérico quando não podia compreender algo e orgulhoso de ser bom em apenas uma coisa, que era lutar.

– E não era muito bom nisso, não é? – Liz diz. – Se ele foi morto.

Faz-se um momento de silêncio enquanto verificam a lã.

Então, Liz lhes conta como sua mãe morreu de parto e como seu pai nunca se casou novamente porque ele dizia que já tinha mulheres demais em sua vida com quatro filhas, embora uma delas tenha morrido também. Quando tiveram um ano ruim, o centeio ficou úmido no celeiro e ela perdeu a perna. Ela gosta de seu pai, ainda; é óbvio.

– Você tem família, Katherine? – Isabella pergunta.

Katherine é pega de surpresa. Ela não previra isto.

– Tenho, Thomas e Rufus – ela diz.

– Não – Isabella pressiona. – Quero dizer, sua família. Seus pais? Onde você nasceu?

Katherine diz-lhe que não sabe. Ao fazê-lo, sente uma espécie de precipitação em seus ouvidos, uma crescente pressão interna, que no longo silêncio que se segue aumenta até quase um rugido, e sente que pode gritar ou desabar no chão, apenas para parar o fluxo daquela conversa. Ela sabe o que está por vir. Já sentiu isso antes – com Thomas, insinuando, indagando, supondo, sugerindo que ela encontrasse sua família –, e ela preferia estar em qualquer outro lugar no momento que não fosse ali, só que não pode sair. Não é porque esteja segurando o fio (embora esteja), mas porque Isabella é tão frágil, capaz de quebrar a qualquer palavra mais áspera, particularmente vinda dela, pois Katherine se tornou quase tudo que Isabella possui no mundo no momento.

E agora ali está Isabella, olhando para ela com aqueles terríveis olhos tristes, e Katherine sabe que Isabella vai dizer algo sábio. Vai retransmitir algo que aprendeu através de uma experiência duramente conquistada, e Katherine sabe que ela provavelmente vai ter razão, mas não suporta ouvir se for acerca de sua própria família, com quem ela ainda sonha quando está completamente exausta: aquele mesmo sonho recorrente, maldito, que não a leva a lugar nenhum, da lareira de pedra e da janela envidraçada, e, depois, da entrega de uma sacola de cartas e uma bolsa de dinheiro a uma velha mulher de preto, que ela sabe que devia ser a prioresa antes de sua prioresa, que parecera nervosa, mas bondosa, e que a levara para dentro, e depois... nada, apenas um vazio terrível.

Assim, ela sente uma espécie de horror quando Isabella olha para ela intensamente, Liz interrompe para dizer-lhes que ela acredita que uma mulher deva conhecer sua própria mãe, se não quiser repetir os mesmos erros tolos que a mulher cometeu e casar-se com um homem com um peito côncavo como seu pai, e Katherine espera que isso seja suficiente para quebrar a tensão que ela sente. Mas não é. Isabella continua a olhar para ela com aqueles olhos e Katherine não consegue mais resistir.

– Fui criada como uma oblata – ela diz. – Não conheci meu pai, nem minha mãe.

Pronto. Ela lhes contou. Contou a alguém. E pelo espaço de tempo de alguns batimentos cardíacos, ela está livre. Aquilo que escondeu por tanto tempo foi revelado e não significa nada. Essa grande vergonha secreta que tanto a pressionou, que ela escondeu de si mesma, assim como dos outros, todo o seu poder desapareceu. Ela é igual a qualquer outra pessoa. Qualquer outra pessoa.

Mas Isabella inclina-se para a frente e sussurra:

– Pobre criança.

Katherine não pode suportar aquilo. Ela atira a lã longe e sai a passos largos do pátio, deixando o carretel no chão e as duas mulheres em silêncio. Dirige-se para a casa que ela e Thomas construíram, vazia agora, embora sólida e seca por dentro. Abre a porta com um empurrão e fica sozinha com seus pensamentos, a poeira, as aranhas e as folhas secas trazidas pelo vento. Ela permanece ali o resto do dia até ouvir o sino da Hora do Angelus, metálico e distante, quando Liz vem ao seu encontro.

Ela não menciona o que se passou e juntas encontram Rufus observando algumas borboletas vermelhas nos galhos mais baixos de um arbusto florido de folhas brilhantes. Ele diz a Katherine que eles foram à vila para comprar cerveja, mas que a mulher de sempre está morta, de modo que têm que aprender a fazer a cerveja eles mesmos e, até lá, terão que beber água.

– Não é tão ruim assim – ele diz.

Mas há vinho com a sopa naquela noite, um pouco que sir John deixara guardado onde os filhos de Isabella não o encontraram, quase como se ele soubesse que uma noite como essa chegaria. Elas acenderam velas, sentaram-se, comeram e beberam, e Katherine sente-se à vontade por algum tempo, mas logo começa a sentir o lento desenvolvimento daquelas pequenas pausas, aqueles pequenos embaraços à medida que o vinho faz Isabella e Liz não se importarem mais em disfarçar o que estão pensando sobre o que aconteceu hoje e, finalmente, o silêncio que cai é profundo demais para ser negligenciado.

– Bem – Liz diz.

Katherine sabe que deveria se desculpar e explicar, mas não o fará. É algo sobre o qual não quer falar. Só que Liz não vê a questão da mesma forma.

– O que a fez sair correndo daquele jeito? – ela continua. – Você tem algum passado secreto ou algo assim? É filha de um padre? É isso? Um padre e uma freira? Embora, olhando para você, eu diria de um bispo e uma abadessa. Mas eles fazem isso o tempo todo, já que não têm realmente um trabalho com o qual ocupar as mãos e as mentes.

Isabella finge estar chocada, mas não consegue esconder um leve sorriso.

Katherine não diz nada. Ela se sente engaiolada, pressionada contra uma parede.

– Por favor – ela começa, mas Isabella não vê sua expressão, é claro, e continua.

– É raro, hoje em dia, que uma criança seja entregue a um mosteiro.

– Por que alguém faria isso? – Liz pergunta. – Imagine mandar Rufus embora agora para ser criado em um mosteiro.

– Só é feito em circunstâncias excepcionais – Isabella lhes diz.

– Como o quê? – Liz pergunta.

Isabella reluta em especular, pois tal especulação é quase uma acusação.

– Não sei – ela diz. – É possível que uma criança nasça e não seja desejada?

– Mas muitas nascem bastardas – Liz diz. – Isso não importa.

– Não – Isabella diz. – Não importa em alguns lugares, em algumas regiões. Mas em outras, sim. Mas pode não ser isso. Pode ser que uma criança seja retardada, que a ideia de mais uma menina seja demais, ou talvez a mãe tenha morrido no parto. Pode ser por qualquer motivo.

Katherine não está interessada. O bloco que colocou em seus pensamentos sobre quem ela é, por que ela é como é e por que está onde está, é arraigado demais para ser removido por uma conversa regada a vinho entre duas mulheres.

– Você não está interessada, nem mesmo por Rufus? – Isabella pergunta.

Katherine não pensou nisso. Ela deixa a questão de lado por enquanto, mas retornará ao assunto mais tarde, pensa, talvez quando Thomas estiver de volta. Se ele voltar.

– Você sabe se Kate é sequer seu nome verdadeiro, Kate? – Liz pergunta.

– Por favor – Katherine diz. – Não quero pensar nisso. Não agora.

– Então não sabe – Liz continua.

– Eles costumavam dar o nome da mãe à criança – Isabella diz a Liz, como se Katherine não estivesse ali.

– E Katherine é um nome comum entre essas pessoas?

– Essas pessoas?

– Essas que têm dinheiro para despachar uma criança para um convento dessa forma. É preciso pagar por isso, não estou certa?

– É verdade. Eu não tinha pensado nisso – Isabella diz. – Só pessoas muito ricas podem se dar ao luxo e, como a prática é tão desaprovada pela Igreja, deviam ter grande influência sobre quem quer que a tenha acolhido, quem quer que fosse.

– Muito empolgante, na verdade – Liz diz. – Onde você foi colocada, Kate?

As duas mulheres estão olhando para Katherine, esperando, Liz com seu olhar penetrante, Isabella espreitando através das nuvens em seus olhos, ouvindo mais do que vendo.

Katherine não diz nada. Sente apenas um curioso vazio.

– Vai nos dizer – Liz pergunta – ou o quê?

Katherine respira fundo.

– Foi no Priorado de St. Mary, em Haverhurst.

Ela sacode a cabeça, franzindo os lábios.

– Nunca ouvi falar – ela diz, como se isso fosse culpa de Katherine.

Mas Isabella, sim.

– Santo Deus do Céu – ela diz, soltando a respiração. – Se tivessem desejado colocá-la em um lugar mais deplorável, não teriam conseguido. Até mesmo os monges cistercienses fugiram de lá.

– Como você conseguiu sair? – Liz pergunta.

– Fugi – Katherine responde. Ela não conta como, nem por quê. Nunca falou nisso, nunca compartilhou com mais ninguém, e agora é como se o acesso à memória daquela época estivesse calcificado, encoberto de mato ou trancado pela ferrugem, e tudo que consegue fazer é sacudir a cabeça quando tentam pressioná-la ainda mais. Então, Liz e Isabella percebem que ela está chorando, e nada mais é dito sobre o assunto.

Nessa noite, Katherine sonha com o priorado. Não é a primeira vez que isso acontece desde que saiu pela segunda vez, mas agora os sonhos são mais vívidos e ambientados mais cedo, quando ela era uma criança, e é como se agora pudesse ter uma visão mais clara daquela época. Vê a si própria sendo entregue e também o que está usando, vê as cartas entregues e muitos detalhes incidentais. Pela manhã, quando acorda, não se lembra de mais nada.

Quando vê Isabella, ela se pergunta por que não tiveram resposta de seu primo, o supostamente aliado próximo do conde de Warwick.

– Por que não vamos ver esse nobre cavalheiro – ela sugere –, para que possamos nós mesmas lhe contar?

– Ah, mas ele mora ao sul de Lincoln – Isabella diz, como se isso inviabilizasse o plano.

– Mas temos um cavalo e uma carroça – Liz lhe diz. – Poderíamos levá-la.

Katherine olha para Liz. Ela é uma jovem surpreendente em certos aspectos.

– Mas, e quanto às estradas? Pode haver problemas.

– John deixou sua besta – Liz diz. – É preciso um pouco de força, mas uma vez preparada, pode lançar um dardo através de uma árvore. Mostre uma e ninguém se aproximará a menos de cinquenta passos.

– Mas meus olhos... – Isabella diz.

– Você não terá que conduzir a carroça, nem atirar com a besta.

– Temos que fazer alguma coisa por Jack, John e Nettie – Katherine lhe diz. – Imaginem se tudo que ouvimos dizer de Riven for verdade?

– E é, Kate, então, vamos – Liz diz. – O que vamos perder, senão tempo?

Por fim, Isabella concorda com a ideia da viagem e elas partem na manhã seguinte. Um dia cinzento, com chuva fina e intermitente vinda do leste, que elas esperam que já ter passado por volta do meio-dia. Isabella senta-se na carroça, no velho baú de sir John, e juntas as três mulheres olham para a besta de John como olhariam para uma cobra enroscada. Está preparada para ser usada, com o mecanismo em forma de um pé de cabra, e a aljava de dardos ao lado.

– Estaremos em Lincoln até o meio-dia – Katherine lhes diz. Elas prosseguem pela estrada, e ela em parte espera encontrar Thomas vindo na direção delas, mas não encontram. As mulheres avistam os pináculos da catedral e a torre do castelo exatamente quando o sino, assinalando a sexta hora do dia, soa. Passam sob o arco de Newport onde Isabella tem que pagar uma taxa a um velhinho minúsculo com um único dente nas gengivas, o que é presenciado por um grupo de homens com alabardas e elmos de fendas enferrujados, que formam a guarda. Quando atravessam o movimentado corredor do portão de entrada da cidade, encontram cinco homens de uniformes verdes, um deles portando uma bandeira, que abrem caminho para a passagem de uma carruagem com dossel.

– Saiam da frente – eles gritam, e esperam ser obedecidos, não somente porque têm cavalos e armas, mas porque todos normalmente obedecem. Por um instante, Katherine acha que Liz não o fará, que ela irá fazer valer algum direito à passagem igual ou anterior, mas não, após um instante, Liz manobra a carroça para um dos lados da passagem, gritando com um garoto com um carrinho de mão para que saia do caminho se não quiser que ela o atropele, e elas observam os soldados e os eixos de ferro da carruagem passarem rangendo. A carruagem está recém-pintada de verde e amarelo, e o dossel é de um material claro e transparente como gaze que se infla e ondula como seda. Dentro da carruagem, estão três mulheres, talvez como Liz, Isabella e ela, viajando na direção oposta, e atrás se veem mais cinco homens a cavalo e outra carroça, puxada por quatro cavalos.

Liz ri.

– Poderiam ser suas irmãs.

Katherine não diz nada. Elas retornam ao meio da rua e continuam em meio aos prédios apinhados até o pátio entre o castelo e a catedral, onde Liz fica perplexa, quase amedrontada, conforme seu olhar se move da base larga da catedral pela enorme altura, até à ponta dos pináculos, de modo que seus cata-ventos de previsão do tempo se perdem em nuvens. À volta delas, as ruas estão movimentadas de frades e sacerdotes, mas Isabella está determinada a fazer suas orações na catedral e a acender uma vela para cada um – Thomas, Jack, Nettie e John Stump.

Assim, elas deixam a carroça com um garoto de aparência razoavelmente confiável, atravessam o pátio e sobem os degraus pela porta oeste, entrando na ampla escuridão aromatizada da nave onde centenas de homens de preto, cinza e branco vão e vêm. Liz e Rufus param no meio da multidão, que se movimenta rapidamente de um lado para o outro, como se estivesse perdida, atordoada pela luz que entra pelas rosáceas, Liz com a boca aberta como um peregrino ingênuo que veio de longe.

Após um instante, um homem se aproxima de Isabella, tira o chapéu e tenta conversar com ela. Liz é sacudida de seu torpor pelo odor do homem, um terrível mau cheiro, pois ele parece alguém que não toma banho há um mês. Liz vira-se para ele e sussurra algo feroz em seu rosto, e ele cambaleia para trás como um cão escorraçado, desaparecendo nas sombras.

– Quem era? – Katherine pergunta.

– Alguém que devia ser enforcado – Liz responde.

– Você o conhece?

– Gente da espécie dele. Ele está reivindicando perdão de suas dívidas, provavelmente pela aparência.

Elas encontram uma capela lateral onde Isabella compra quatro velas caras de sebo, que elas acendem em continuação a uma fileira de outras, já acesas, e as colocam diante do pequeno altar e da imagem de Nossa Senhora. Elas se ajoelham, observadas por um monge, e cada uma reza por seu marido, pai, amigos desaparecidos.

Eles não veem mais o homem que buscava refúgio e, quando terminam, saem para o pátio novamente e Katherine se lembra de quando estiveram ali pela primeira vez, como ainda tinha pavor dos clérigos, imaginando que veriam através de seu prosaico disfarce. Lembra-se das barracas dos vendedores de material de escrita e pintura, erguidas junto ao muro, e vê que ainda estão lá, mais atarefados do que nunca talvez, com novos comerciantes – vendedores de tintas, de penas de escrever – andando devagar com suas bandejas, anunciando suas mercadorias. Estão no mesmo local em que Thomas um dia comprou um livro de um velho comerciante que lidava com livros de Bruges, ela se recorda, e que fungou com desdém quando eles lhe mostraram o livro-razão, decretando que aquilo era lixo. No entanto, ele tentou comprar o desenho de Thomas da rosácea da Catedral de St. Paul em Londres, e ela sente prazer nessa revisitação como um elo frágil na longa cadeia até seu marido ausente.

Ela deixa Rufus com Liz e conduz Isabella até a barraca para ver se o vendedor ainda está lá, mas não está, somente um homem muito mais novo, vestido com um casaco preto mal tingido que mostra algumas partes em verde. Seu estoque de material é igualmente variado: ele possui uma ou duas capas finamente gravadas, alguns livros de desenho mais simples e muitos panfletos de lombada costurada. Ela sempre se sentiu atraída pela natureza inacabada desses tipos de materiais, que no seu entender parecem parte de uma conversa em andamento, ao passo que se um homem encaderna um livro, prende-o em capas duras, é como se ele estivesse dizendo, Tome, esta é minha palavra final sobre o assunto e eu estou certo. Apesar de que, Katherine pensa, o que lemos em tais livros encadernados geralmente está errado.

– Ah! – o vendedor exclama, vendo-as vibrarem com o material sobre sua mesa. – Sim. Vejo que têm bom gosto.

O livreiro lhes diz o que ele tem e do que elas poderiam gostar, começando naturalmente com o segundo livro mais caro – um exemplar do Livro das Horas feito em estilo flamengo – e descendo para os textos mais grosseiros, meramente costurados com o que parece corda de arco, o tempo todo deixando de mencionar o livro mais fino e mais caro, ali em um ninho de veludo escuro, e a cada instante que se passa, ele assume uma importância maior. Isabella tenta vê-lo melhor, olhando bem de perto, depois de esguelha, tentando enxergar pelas bordas do miserável disco embaçado em seu próprio olho. O livreiro continua falando, sem parar. Novos métodos de produção. Viagens a Bruges. A melhoria da qualidade do papel – como podem ver no seu estoque – e a escassez de velino bom atualmente. Isabella não ouve nada disso. Finalmente, ela pergunta o que é aquele livro e o homem não consegue disfarçar um sorriso.

– Eu não disse assim que as vi? – ele pergunta. – As senhoras têm um gosto excelente.

Ele pega o livro com um cuidado exagerado. É um breviário. Menor do que o primeiro, do tamanho da mão de uma mulher, é encadernado em olmo, com dobradiças ornamentadas e presilhas de prata polida. Dentro, o papel é muito fino, as cores vívidas, as cenas magnificamente pintadas, as letras regulares, precisas, fluidas.

– Um belo livro, não é? – o livreiro pergunta.

Katherine pode ver que Isabella está chocada.

– O que foi? – Katherine pergunta.

– É meu – Isabella diz com um soluço. – Sir John... ele o deu para mim quando nos casamos. Pensei que o tivesse escondido a salvo.

O livro parece desaparecer no ar e a expressão do livreiro se fecha imediatamente.

– O que está dizendo, sua bruxa velha e cega? Está me chamando de ladrão?

Isabella quase desmaia. Katherine tem que ampará-la.

– Foi um dos meninos – Isabella afirma com um gemido. – Eles o roubaram e venderam para suas... suas dívidas do jogo de dados ou seus falcões.

O livreiro, vendo que não é mais o acusado, começa a falar.

– Foi um rapaz com barba curta – ele informa, indicando o queixo. – Vestido como um principezinho ou um doge.

E Isabella soluça novamente.

– Como ele pôde fazer isso? Foi um presente de casamento.

– Paguei um bom preço por ele – diz o livreiro.

E elas não podem se permitir comprá-lo de volta, embora ele o ofereça pelo preço que comprou.

– Guarde-o para nós – Katherine pede.

Ele diz que o fará, por duas semanas, até a Festa dos Sete Dormentes de Éfeso, no final do mês.

– Devo ganhar um bom dinheiro então.

Elas começam a se afastar quando ele chama Katherine de volta.

– Tenho algo que pode lhes interessar nesse meio-tempo – ele diz, e lhe dá um punhado de folhas grosseiramente amarradas de papel de bordas serrilhadas, cobertas com minúsculas letras desde o topo da primeira página até o pé da última, exceto, na quinta ou sexta folha, um desenho do olho de um homem, ou talvez seja até um bode – não está muito claro – e o homem/bode possui o que parece uma língua de diabo, mas o que é interessante é que em volta de todo o olho há vários círculos marcados.

– Um tratado sobre doenças dos olhos – ele anuncia.

Isabella continua parada, muda, chocada demais para prestar atenção no que quer que esteja sendo dito, muito menos falar. Katherine olha do papel para os olhos de Isabella, com aqueles discos opacos, e de novo para o papel.

– Quanto? – ela pergunta.

Ele diz um preço. Ela sente avolumarem-se dentro dela a determinação, a intenção, até mesmo a empolgação. Paga ao vendedor metade do que ele pediu e ele aceita. Então, o sino das horas soa nas torres e mil pombos irrompem pelo céu. Ela conduz Isabella de volta à carroça onde Liz as aguarda, já montada. Ela ajuda a velha senhora a subir e estão prestes a tocar o cavalo quando um pensamento ocorre a Katherine. Ela volta ao livreiro.

– Não vou aceitar o livro de volta – ele diz.

Não é isso o que ela quer. Ela quer saber sobre o antigo livreiro, que costumava ficar ali.

– Meu pai – o homem conta. – Fico feliz que se lembre dele. Ele tem um olho muito bom para livros.

– Ele ainda está conosco?

O livreiro sorri.

– Sim, está. Ele está do outro lado do Canal da Mancha, em Strasbourg, na feira de livros.

– Quando você acha que ele vai retornar? Gostaria de falar com ele sobre um assunto.

– É para comprar ou vender?

– Nenhum dos dois. Uma velha questão.

O livreiro parece desapontado.

– Minha mãe reza para que ele esteja de volta antes da Festa de São Miguel e que não tenha que viajar no inverno.

– Voltarei na ocasião – Katherine lhe diz.

– Quem devo dizer que esteve à procura dele?

– Ele não vai se lembrar de mim – ela diz.

– Guardarei seu breviário – ele declara. – Até a senhora poder comprá-lo.

Ela agradece e o deixa com a esperança de que a viagem de seu pai seja abençoada por Deus, assim como o resto de seu dia.

Quando chega de volta à carroça, Liz está preocupada com Isabella.

– E o que foi que você fez a ela, Kate?

Isabella está muda de tristeza, a boca curvada para baixo como a agulha de um sapateiro, as mãos abanando e alisando o linho de seu vestido porque deixou seu rosário de contas em casa. Katherine conta a Liz sobre os dois filhos e Liz abre a boca para insultá-los, mas todo insulto que lhe vem à mente – filhos da mãe, ou pior, filhos da puta – recai sobre Isabella, assim só lhe resta ranger os dentes e rosnar.

– Você não trataria sua velha mãe desse jeito, não é, Rufus? – Liz está perguntando e Rufus está sacudindo a cabeça, embora Katherine não tenha certeza do quanto ele compreende.

– Para onde vamos? – ela pergunta a Isabella, que consegue apontar para o sul, encosta abaixo, enquanto continua a chorar. Katherine se pergunta se as lágrimas poderiam levar embora a catarata e percebe que ela ainda está segurando o panfleto que o livreiro lhe vendeu. Assim, ela o enfia dentro da bolsa, verifica se Rufus está em segurança dentro da carroça e, então, ela e Liz conduzem o cavalo pelo pátio e seguem em frente, descendo a íngreme rua calçada de pedras que as levará para o rio e os portões da cidade.

Ela já percorreu esta rua antes, é claro, com Thomas, muitas vezes, mas a primeira foi há quase dez anos, quando ficou parada bem aqui e ele parado bem lá, e um mensageiro veio correndo encosta acima, do sul, sem se incomodar com as pedras do calçamento. Vinha dizer ao bispo ou a quem quer que fosse que Ricardo de York havia aportado na Inglaterra, para tentar tirar o velho rei do trono e tomá-lo para si mesmo. Eles haviam olhado um para o outro e ela compreendeu que as guerras iriam recomeçar, embora ele não acreditasse nela. E agora ali estavam elas, dez anos depois, e as guerras estão vindo de novo, de novo.

Ali embaixo está a casa do perdoador onde ela foi naquele dia com Thomas para devolver o livro-razão. Santo Deus. Se ao menos a viúva do velho homem tivesse ficado com ele! Quantos problemas isso teria lhes poupado! Não teriam Edmund Riven queimando seus amigos por um lado, nem esse sanguinário Hastings pressionando-os do outro. Como suas vidas seriam mais fáceis então!

A velha casa não mudou nada: as paredes brancas de cal talvez mais escorridas de verde, e as janelas do andar térreo mais sujas de poeira e teias de aranha, e talvez o madeiramento aparente esteja um pouco mais descascado. Sua viúva ainda poderia estar ali? Katherine sai da estrada e olha para o andar superior da casa, projetado um pouco para a frente da fachada, e seu coração parece subir até à garganta. Lá, à janela, está a mulher, olhando para baixo, como se estivesse esperando Katherine há dez anos, o rosto pálido como sempre. E depois, de repente, ela desaparece. Mas não é como se tivesse dado um passo para trás. Ela simplesmente... desaparece. Como se nunca tivesse estado lá.

Katherine não consegue conter um calafrio. Ela o sente reverberar pela sua espinha dorsal, até o pescoço e para o couro cabeludo. Benze-se duas vezes e suplica a Deus que a salve. Por Deus! Teria sido sua imaginação? Devia bater na porta, exigir uma explicação, mas... mas está apavorada. Há alguma coisa estranha naquela casa. Ela se vira e corre atrás da carroça onde Isabella ainda está chorando silenciosamente, e Rufus afaga seu braço, lhe diz para não chorar e que logo estarão em casa.

Depois de passar pelo portão e atravessar a ponte alta, todos sobem de novo na carroça e viajam para o sul através de um terreno muito alagado nesta época do ano, e embora seja julho, a lama na estrada é espessa, e há longas extensões onde ela é apenas uma sugestão em meio a faixas de juncos sob uma sopa agitada de água lamacenta. As carroças que vêm na outra direção estão salpicadas de lama e encharcadas, e qualquer um que esteja caminhando para o norte está molhado até os joelhos e ansioso para alcançar a região elevada da cidade. O rei Eduardo é culpado pela maior parte da inundação, mas ninguém relata nenhum problema mais ao sul e devem agradecer a Deus por isso.

– Para onde agora? – Liz pergunta.

E Isabella finalmente acorda para o mundo.

– Para a mansão de Tattershall – ela diz. – Fica a leste daqui. Há uma virada mais adiante em algum lugar. Alguns quilômetros ainda, eu creio, e então haverá um marco de pedra. Vocês terão que ficar atentas a esse marco, considerando toda esta água.

– Já esteve lá antes? – Katherine pergunta.

– Há muitos anos – ela diz. – Minha família... somos ligados aos Willoughby, e eu fiquei com Joan Willoughby por algum tempo, antes de ir para a propriedade do meu primeiro marido. Ela já morreu, mas seu marido, o barão Willoughby, ainda está vivo e a verdade é que o conde de Warwick o considera muito.

– Conde de Warwick – Liz repete. – Eu gostaria de jogá-lo aos porcos.

Elas continuam viajando sob o céu pálido, ao sol já inclinado, através de quase dois quilômetros de juncos que logo serão colhidos, e Katherine pensa no caçador de enguias que ela um dia aceitou na propriedade quando estavam em Cornford e que levou com ele o bebê de Eelby. Ela se pergunta o que teria sido dele. Deixa-se levar por uma espécie de sonho acordado, lembrando-se daqueles dias em Cornford, e ela ergue os olhos exatamente quando Liz vira a carroça para fora da estrada e pega um caminho que leva para leste.

E repentinamente ela sabe para onde estão indo.

– Não! – exclama. Ela fica em pé na carroça, quase caindo.

– Sente-se, sua doida – Liz a repreende. – Vai assustar o cavalo. Por Nossa Senhora.

– Este caminho – ela diz. – Ele passa pelo... pelo priorado. Eu não vou passar por aqui.

Liz faz o cavalo parar. Veem-se apenas um charco raso de água salobra por ali e, pelo meio dele, algumas ilhotas de junco verde vívido e encimado de penachos. É impossível permanecer naquele local.

– Nós não vamos entrar no priorado, Katherine – Isabella lhe diz. – Mas esta é a única estrada para Tattershall e, assim, deve passar por isso.

– Você acha que a prioresa ainda está por aí à sua procura, Kate? É isso? Que estará lá nos juncos com um exército de freiras furiosas esperando para saltar com suas pás de bater roupa e arrastá-la para dentro por causa da vergonha que você lhes trouxe?

Liz está rindo. Isabella tenta parecer solidária. Katherine quer dizer a Liz que ela não faz a menor ideia de como foi, mas Liz já passou por coisas piores, sem dúvida, e as palavras soam tão tolas em seus dentes que ela as engole. Ela vira-se de costas para as mulheres e para Rufus, que está mais confuso do que nunca, aperta sua capa ao redor do corpo e fica olhando fixamente para o sul enquanto Liz faz o cavalo prosseguir. Elas seguem o caminho para leste e Katherine pode sentir o priorado se aproximando, como se ela própria estivesse sendo caçada, e sente isso como uma espécie de clamor, um tumulto em seu interior, até que finalmente não suporta mais aquilo. Está prestes a atirar sua capa fora e sair correndo, correr pela trilha acima através das águas agitadas e de volta a Lincoln, quando Liz exclama:

– Pelo sangue de Cristo, olhem para isso!


13


Thomas está no pátio de treinamento de arco e flecha quando a convocação chega. Está sentado em um tronco de árvore caído, bem polido pelos milhares de traseiros ao longo dos anos, perto do rio, fora da cidade de Nottingham, observando homens de uniforme azul e roxo lançarem flecha após flecha de seus arcos para penetrarem com um baque surdo nos montículos de terra úmida a duzentos passos de distância. O ar está carregado do barulho de cordas limpas e palavrões ardorosos. Ele está com os homens de William Hastings, o padrinho de Rufus, John Brunt, entre eles, e já tiveram sua vez. Agora, estão vestidos somente com suas meias-calças e gibões, ainda afogueados por seus exercícios, comendo pão e tomando cerveja, e observando os homens do rei Eduardo fazerem o melhor que podem.

Não é muito ruim, Brunt pensa.

O mensageiro que vem é um jovem, ainda não tem quinze anos, com faces vermelhas e rechonchudas e um sotaque ininteligível. Ele diz a Thomas que lorde Hastings mandou buscá-lo e que deve ir à torre de menagem do castelo o mais rapidamente possível. Thomas pega seu casaco e seu arco.

– Boa sorte, Thomas – Brunt lhe diz –, e que Deus o acompanhe.

Brunt e os outros sabem que Thomas vem pedindo a William Hastings que o deixe retornar para Katherine, mas Hastings tem estado encerrado com o rei Eduardo e outros no castelo nos últimos dias e tem tido pouco tempo, exceto para lhe dizer que o rei Eduardo não está disposto a deixar nenhum de seus homens partir neste momento. Ninguém fica surpreso com isso, porque agora é do conhecimento geral que o conde de Warwick e Jorge, o irmão do rei Eduardo, duque de Clarence, retornaram de Calais e, como temido, levantaram o povo de Kent em rebelião contra o rei.

Assim, agora, Thomas pode ver, não há menos de cinco exércitos em terra reunindo-se quem sabe onde. Um deles é conduzido pelo conde de Pembroke, aquele de barba e da promessa extravagante de muitas tropas, e este exército, pelo que dizem, compreende três mil soldados treinados, leais ao rei Eduardo. Outro, com um número semelhante de arqueiros, marcha sob a bandeira de Humphrey Stafford, o pequeno e garboso conde de Devon, também leal ao rei Eduardo. Um terceiro – um número desconhecido de homens sob o comando de Robin de Redesdale – vem do norte com a intenção expressa de destronar o rei. O quarto, sob o comando de um antigo aliado do rei Eduardo, o conde de Warwick, converge a partir do sudeste e deve ser grande o suficiente para derrotar as poucas tropas que o rei tem com ele em Nottingham e que compõem um exército de talvez mil e quinhentos.

Com o conhecimento de tudo isso, a atmosfera na cidade se torna cada vez mais exacerbada à medida que os dias passam. Todos, do rei ao valete, estão à espera de notícias de outras partes que orientarão suas vidas, de uma maneira ou de outra, e todos procuram se distrair da melhor forma que podem. Açougueiros, mercadores de vinho e mulheres jovens e robustas que parecem nunca ter tido um dia de trabalho em toda a vida têm andado ocupados satisfazendo as ordens do rei Eduardo no castelo, enquanto homens como Thomas permanecem no campo de treinamento de arco e flecha ou lá fora, nos campos, simulando uma luta com armas acolchoadas. O ruído dos ferreiros é constante e o ar está repleto da fumaça ácida e do cheiro de metal na pedra, de carvão em brasa, suor, dejetos humanos, sangue, entranhas de animais e cerveja recém-fermentada. Garotos correm por toda parte. Carroças e charretes estão estacionadas por falta de espaço na cidade e os mensageiros têm que abrir caminho à força de um lado para o outro. Companhias de homens de uniforme continuam chegando, mas nunca em grandes números, e embora muitas barracas estejam despontando em torno das muralhas da cidade como cogumelos no outono, não há notícias dos homens de Devon, nem dos homens de Pembroke, e, no lugar de notícias, os boatos prevalecem.

– Estão a um dia de marcha de distância.

– Caíram uns sobre os outros e todos estão mortos.

– Eles aderiram a esse Robin de Redesdale.

– Warwick já os destruiu.

– Estão vindo matar todos nós.

Como é costume em momentos de crise, o pátio do castelo é entregue aos cavalos e criados do entourage doméstico do rei Eduardo, e o ambiente fica tenso conforme cada homem marca seu território e o mantém livre de invasão. As armaduras estão sendo limpas, as armas amoladas e, quando Thomas atravessa o portão, uma entrega de lenha está sendo feita e há uma escaramuça quando ele abre caminho à força pela multidão.

Ele encontra Hastings em um dos solares, jogando dados desanimadamente com três outros homens vestidos com roupas finas, embora não lavadas, e cabelos recém-cortados ao estilo militar: raspado nas laterais, deixados compridos no alto da cabeça. Hastings está lendo mensagens que outro homem – um secretário – de pé atrás de seu ombro não para de deslizar para cima da mesa, entre as canecas e as tigelas à sua frente, e de vez em quando pragueja baixinho. Enquanto isso, o ar tem um cheiro viciado, um filhote de lurcher está caçando seu próprio rabo na forração de junco em frente à lareira, parcialmente ignorado, e a luz do sol que atravessa as janelas cai pesadamente, como uma força física.

– Ah, Thomas – Hastings o cumprimenta. – Fez bem em trazer seu arco.

Parece um pouco tolo levá-lo para dentro, mas ele não o deixaria do lado de fora com todo o pessoal ao longo da parede para alguém roubá-lo. Hastings parece esgotado, pálido, com olheiras sob os olhos. Hastings tem um trabalho para ele, Thomas imagina, como já fez antes, mas mesmo assim ele pergunta:

– Milorde, peço licença para perguntar...

– Deixe isso pra lá – Hastings diz. – Você conhece a situação. Preciso que algo seja feito e você é a pessoa perfeita para isso. Depois, quem sabe? Talvez o rei Eduardo o deixe partir.

Thomas sabe que é melhor não argumentar. Hastings pergunta a ele como está o moral no acampamento e Thomas lhe diz que parece bastante bom, embora estaria melhor se os homens soubessem quando as tropas dos condes de Devon e de Pembroke chegarão e que esse momento seja antes de que os homens de Kent do conde de Warwick apareçam por aqui.

Hastings balança a cabeça.

– Todos nós queremos saber isso – ele diz.

– Pembroke e Devon não estão enviando relatórios de seu progresso?

– Estão. Mensagens dizendo que estão aqui, ali e acolá, mas acho que estão mentindo, dizendo aquilo que o rei Eduardo quer ouvir, na esperança de ganhar vantagem sobre o outro para as coisas de costume. O rei Eduardo está... bem, ele acredita que eles cheguem antes desse tal de Redesdale, mas eu gostaria de ter certeza. Pembroke atravessou o Severn em Gloucester, que eu saiba, mas onde está agora? Devon... pffft. Ele poderia estar em qualquer lugar.

Thomas pode ver aonde esta conversa vai levar.

– Eu não conheço bem a região – ele ressalta.

– Não. Não. Bem. Tenho um guia para ir com você. Alguém que conhece as estradas. Ou ao menos possui terras perto de Oxford.

– Por que simplesmente não mandá-lo?

Hastings parece ligeiramente envergonhado.

– Ele não é... tão confiável quanto você.

Aquilo não soa bem, Thomas pensa.

– E na verdade, eu preciso dele fora do caminho – Hastings continua.

O que aquilo significa?, Thomas se pergunta. Fora do caminho significando fora do castelo? Ou fora do caminho caso haja alguma luta? Thomas espera que seja esta última hipótese, mas suspeita da primeira. Hastings balança a cabeça para o secretário, que sai rapidamente. Quando volta, traz com ele um jovem alto, surpreendentemente bem-apessoado e bem-vestido, que ele apresenta como sir John Flood.

Flood exibe um sorriso exuberante para Hastings com uma afeição genuína, mas Hastings parece pouco à vontade em sua companhia, envergonhado, sem conseguir encará-lo. Sir John Flood é ligeiramente mais alto do que Thomas, em pleno esplendor de sua juventude, com o maxilar quadrado, cabelos louros cortados no mesmo estilo militar e olhos azul-claros. Thomas fica desconcertado. Flood é o ideal cavalheiresco, ele vê: o cavaleiro gentil perfeito.

Flood diz a Thomas que tem prazer em conhecê-lo e que ouviu um pouco sobre suas proezas através de seu primo. Ele indica Hastings. Hastings se remexe desconfortavelmente em seu banco.

– Então, John – Hastings diz. – Você deve ir com Thomas e quatro outros homens de sua escolha, deverá encontrar Pembroke e perguntar-lhe por que ele está perdendo tempo. Bem, não exatamente isso, mas tentar apressá-lo. E depois que tiver entregue as mensagens que eu lhe darei, volte aqui com as mensagens que ele tiver para nós. Está compreendido?

Flood balança a cabeça, assentindo. O secretário lhe dá diversos pedaços de papel de que ele vai necessitar – passes para pontos de controle, um bilhete para obter cavalos com o cavalariço e assim por diante – e uma bolsa de moedas cheia e, depois, eles são dispensados.

– Fique de olho nele, Thomas, sim? – Hastings pede. – A mãe dele jamais me perdoaria se alguma coisa acontecesse ao filho.

Então, é isso, Thomas pensa. Ele se sente explorado. Não quer ter que tomar conta de Flood quando deveria estar tomando conta de Katherine e Rufus.

Flood está esperando por ele na passagem.

– Gostaria de levar meu criado – ele diz. – Então, você só precisa arranjar mais três da sua escolha. Homens em quem confia, não?

Eles combinam de se encontrar no pátio interno do castelo quando tiverem os homens e o material de que irão precisar, e Thomas corre de volta para o centro de treinamento de arco e flecha para convocar Brunt e mais dois homens de sua escolha: Caldwell, o melhor amigo de Brunt, uma cabeça mais alto do que o segundo homem mais alto e extraordinariamente desengonçado, mas capaz de atirar uma flecha mais longe do que qualquer outro homem que Thomas já tenha conhecido; e O’Driscoll, que é compacto e flexível, com músculos adquiridos por ter trabalhado a vida inteira na forja de seu pai. Ele caminha pisando nos calcanhares, com o queixo e o peito empinados, e é irlandês, o primeiro irlandês que Thomas conscientemente já conheceu.

– Não parece que vai ser muito divertido – Caldwell diz. Seu pomo de adão é tão grande quanto um punho cerrado e salta quinze centímetros para cima e para baixo de seu pescoço comprido.

– Não estou lhe prometendo isso – Thomas concorda.

– E seu homem Flood! – O’Driscoll diz. – Ele é mais adequado a um pátio de justas do que a uma taverna.

– Mas você viu a mulher do sujeito? – Brunt pergunta. Ele ergue as sobrancelhas três ou quatro vezes e O’Driscoll ri com um ruído lascivo. E lá está ela quando se encontram com Flood e seu criado no pátio. Todo homem presente está parado no momento, dando espaço a ela para que ele possa ficar mais afastado e vê-la melhor. Até mesmo Thomas sente a boca ficar seca. À volta da mulher, os homens reagem de diferentes modos, alguns adotando sorrisos vagos, distantes, outros procurando se mostrar com risadas rouquenhas e exibições de força física, outros parados, fitando-a boquiabertos. Há algo coletivamente predatório a respeito da cena e Thomas não inveja a pobre jovem, que mantém a cabeça baixa, com as faces ardendo, os grandes olhos de gazela fixos somente em Flood, e pode-se ver por quê. Agora que está vestido para cavalgar, ele parece saído de uma tapeçaria, a personificação de um jovem Alexandre ou César talvez, que ganhou vida com tal simetria e graça, que ele exerce um efeito sobre os homens também. Está usando placas de metal nas pernas e nos pés, com longas esporas, e uma couraça cor de vinho, bem ajustada, cravejada de metal, ao redor do corpo, com dois cintos nos quadris, de onde se penduram suas adagas e espadas em bainhas ricamente trabalhadas. Seus cabelos formam um elmo dourado e a luz do sol parece emanar dele, de modo que se sua mulher fosse um pouquinho menos bonita, ela poderia se tornar um mero adorno.

– Unha e carne – Brunt murmura.

Ver os dois se despedirem é realmente doloroso.

– Há quanto tempo estão casados? – Thomas pergunta ao criado, um homenzinho curvado com um gorro parecendo um pão.

– Uma semana – ele lhes diz, revirando os olhos.

Thomas se pergunta se Hastings estará lá para vê-los partir, e olha ao seu redor. Ele vê em uma janela superior, não Hastings, mas o rei Eduardo, olhando para Flood e sua mulher, e Thomas nota sua expressão e sabe agora que estava errado sobre por que Hastings queria o rapaz fora do caminho. Há alguma coisa que ele possa fazer sobre isso? Levá-la com eles, imagina, mas não pode fazer isso.

– Vamos – Thomas diz. – Quanto mais cedo acabarmos com isso, mais cedo traremos você de volta.

Eles tiveram acesso aos estábulos e aos depósitos, escolheram cavalos bons e fortes e cada um tem uma reserva de pão fresco e um grande cantil de cerveja. Todos têm dois arcos no lombo de seus cavalos e dois feixes de flechas cada um. Têm elmos com fenda e couraças, embora nenhuma tão fina quanto a de Flood, e cada um recebeu um tabardo do uniforme de Hastings em um tecido de boa qualidade. Eles conduzem seus cavalos – o de Flood é branco, os outros são castanhos – pelos portões da cidade e continuam para a ponte, atravessando o rio em enxurrada. Flood quer fazer uma oração na capela e Thomas dá permissão. Ele fica parado na ponte, fitando as águas, conforme elas giram pelos inúmeros pilares embaixo. Ele acha estranho que o mar consiga vir até a esta distância no alto do rio e mais estranho ainda que se ele se deixasse levar pelo fluxo das águas, seria levado de volta, norte e leste, para Marton.

Quando Flood retorna de suas preces, Brunt pergunta onde eles irão encontrar esse conde de Pembroke.

– Lorde Hastings diz que o conde atravessou o rio Severn em Gloucester e está se deslocando ao longo da estrada oeste em nossa direção, e que o conde de Devon está vindo com seus arqueiros de mais ao sul. As estradas se encontram em Oxford, a dois dias de viagem daqui.

O’Driscoll faz uma piada sobre cavalgar por dois dias que toca tangencialmente na mulher de Flood, mas Flood não se dá ao trabalho de tentar entender. Thomas se pergunta se deveria contar a Flood sobre o tipo de homem que é o rei Eduardo, mas não o faz. Não cabe a ele. Flood sobe agilmente em sua sela e eles partem outra vez. Flood cavalga graciosamente, homem e cavalo movendo-se sincronizadamente, como se ambos tivessem grande prazer naquilo. Ele poderia cavalgar para sempre sem se cansar, Thomas pensa. Os outros, inclusive Thomas, o seguem sacolejando como sacas em suas selas. Flood sabe o nome de cada planta por que passam e de cada pássaro que veem. Sabe assoviar o canto de alguns e se encanta com cada igrejinha por que passam, sempre encontrando algo para louvar. Thomas tem que impedi-lo de entrar em toda igreja, acender uma vela para este ou aquele parente que ou morreu, ou está doente ou está, em um dos casos, infeliz. Ele fala ternamente de sua mulher, Maude, e sempre que passam por uma capela ou uma igreja, Flood insiste que parem e ele acende uma vela para ela. Uma vez, Thomas faz o mesmo, esperando contra toda probabilidade que ela encontrará forças para resistir ao assédio do rei Eduardo.

Eles seguem a estrada para o sul pelo resto do dia a uma boa marcha, até alcançarem os portões de Leicester, onde, antes de poderem encontrar uma estalagem, Flood novamente os faz parar para poder rezar na catedral.

– Ele é do tipo devoto, não é? – Brunt pergunta ao criado.

O criado revira os olhos outra vez.

Na hospedaria, a atenção que Flood recebe é enervante. Todo homem, mulher, criança e cachorro afluem para ele, o rodeiam, fazem o que podem por ele. Só precisa sorrir e consegue tudo. Está sempre sorrindo e consegue tudo que quer, o que faz Thomas pensar em Taplow, com suas facas, e se pergunta o que teria a dizer a Flood, mas Flood não parece notar que os favores que lhe são feitos não são oferecidos a mais ninguém, e pode-se ver que ele acha que a vida é assim para todo mundo. A questão chega ao auge ao fim da noite, quando ele paga pela comida e pela cerveja de seu próprio bolso, e em seguida não aceita nenhuma das três jovens em sua oferta de uma cama para passar a noite.

– Criiiiisto – Brunt resmunga.

Na manhã seguinte, eles se levantam e partem antes do amanhecer. O sol se levanta lilás e dourado, e logo brilha quente em seus rostos. Thomas os faz parar para comprar alguns dos chapéus de palha de abas largas e, embora sejam usados apenas por homens e mulheres na lavoura, quando Flood o coloca isso não o faz parecer um camponês, mas lhe cai bem, e ele compra um para levar para Maude e todos os outros homens desviam o olhar.

Eles cavalgam a manhã inteira – passando por Rugby e Daventry – até o começo da tarde, quando se deparam com os primeiros sinais de algo errado: uma carroça, puxada por dois bois, conduzida por um garoto, com um padre gordo sentado ao fundo, com suas caixas e baús. Eles têm que sair da estrada para dar passagem à carroça. Ao passar, o padre, de hábito marrom, agarra algo contra o peito e olha para eles aterrorizado.

– Do que está fugindo? – O’Driscoll pergunta, com ar de zombaria.

O padre não diz nada, apenas abraça com mais força o que quer que esteja segurando, e a carroça prossegue para o norte. Vendo isso, porém, Thomas os faz tirar o chapéu de palha e colocar os elmos. Eles amarram os tabardos do uniforme e se certificam de que o distintivo do touro preto possa ser visto. Thomas afrouxa as amarras do machado de guerra em sua sela.

– Por quê? – Caldwell pergunta.

– Ele está fugindo de um exército, não está? – Thomas lhe diz. – Mas não se sabe de qual, não é?

Caldwell entende e desmonta para preparar seu arco.

– O que os homens de Pembroke usam?

– No brasão, esmalte azure e gules – Flood lhes diz, significando azul e vermelho.

– E Devon?

– Azure e vert. – Azul e verde, ele responde.

Eles encontram os primeiros piqueiros no final da tarde, quando o calor do dia já se abrandou, no final de uma trilha que corta um vilarejo. Vestem azul e vermelho: homens de Pembroke, de armadura completa e fortemente armados, como se esperassem problemas.

– Quem são vocês? – o primeiro pergunta.

Thomas explica e lhe mostra os salvo-condutos e as cartas de Hastings. O homem não sabe ler, mas está influenciado pela presença de Flood.

– Venham, então – ele diz. – Apesar de que, se tiverem uma mensagem para o maldito conde de Devon, já o perderam.

– Perdemos?

– Ele reuniu seus homens e foi para não sei onde. Não estava satisfeito com alguma coisa. Vem discutindo com Pembroke desde que deixamos Oxford.

– Então... o quê? Ele simplesmente... se foi?

– É o que estou dizendo. Eu não sei. Eles discutiram por causa de alguma coisa e agora ele se foi, levando seus arqueiros.

– Mas ele ainda virá, não? – Flood pergunta. – Quero dizer, o rei Eduardo... precisa deles. Está contando com eles! Robin de Redesdale está por aí com dez mil nortistas e agora o conde de Warwick! Ele também está contra Sua Graça!

O piqueiro desconhecia esta notícia.

– Warwick está agora contra o rei Eduardo? Maria, mãe de Jesus, nunca imaginei que veria isso. Quantos homens ele tem?

– Ninguém sabe – Flood lhe diz. – Mas está vindo de Londres para se unir a Redesdale, e sem os arqueiros de Devon estamos...

– Fritos.

Thomas intervém.

– Onde está Pembroke? – ele pergunta.

– Está acampado ao largo da estrada, naquela colina lá. – O piqueiro balança a cabeça, indicando um monte distante ao sul. Por todo o resto da região, a terra é plana, umas poucas árvores, campos e boa pastagem para os rebanhos. Há um rio sinuoso, assinalado por alguns poucos bordos, freixos e salgueiros, e talvez um outro vilarejo para sudeste.

– Quantos você tem? – Thomas pergunta.

– Quase quatro mil – o piqueiro estima.

Eles cruzam o rio a vau e em seguida pegam uma trilha na direção do acampamento.

– Você acha que Devon voltará? – Flood pergunta.

O piqueiro não sabe de nada.

– Ele pode ter ido para casa, pelo que eu saiba. Vocês talvez sejam nossos únicos arqueiros.

Ninguém ri. O acampamento é caótico. Há apenas algumas barracas, e a maioria dos homens está se preparando para dormir ao relento, enrolados em suas capas. Por isso eles escolheram um terreno alto, para não acordarem ocultos em neblina e ensopados de orvalho, mas a barraca de Pembroke é a única em terreno plano, enquanto as outras estão no declive. Os pinos de fixação das tendas cedem na terra macia da encosta e por isso, em seu lugar, tiveram que usar as flechas que possuem.

– A vegetação é viçosa por aqui, hein? – opina um dos escudeiros de Pembroke.

Eles ficam esperando o conde e, de seu ponto privilegiado, podem ver muitas léguas de terreno suave cortado pela estrada que vai para o norte, para Leicester e mais além, e abaixo deles, o rio sinuoso. É uma terra muito boa, eles concordam. Pembroke surge, com um ar tempestuoso, e mostra-se imune aos encantos de Flood. Mas ele reconhece Thomas.

– Tem mais alguma boa notícia para nós? – ele pergunta.

Thomas lhe conta sobre a chegada de Warwick da França e Pembroke literalmente rosna.

– Onde ele está? – pergunta.

– Partiu de Londres há três dias.

Pembroke calcula e em seguida esfrega a testa.

– Santo Deus – ele diz. – Ele poderia estar em... poderia estar em qualquer lugar. E se ele e o maldito Redesdale juntarem as forças... – Ele quase estremece.

Flood lhe pergunta sobre o conde de Devon.

– Nem fale nesse filho da mãe – Pembroke lhes diz. – Maldito seja. Sabem o que ele fez?

– Ouvimos dizer que ele levou seus homens daqui.

Eles sacodem a cabeça. Pembroke aponta para sua barraca com o dedo em riste.

– Porque a minha barraca está em terreno plano, enquanto a dele ficaria no declive. Por causa disso. Por causa disso, ele levou seus homens embora como se... como se... eu não sei. Como se eu tivesse lhe tirado a sua boneca!

– Ele o deixou sem nenhum arqueiro porque o senhor... porque o senhor tem a melhor barraca?

– Exatamente.

Há um momento de silêncio enquanto eles tentam compreender o que foi dito.

– Mas ele ainda está levando seus homens para o rei Eduardo, não é? – Flood pergunta.

– Você vai ter que perguntar isso a ele.

– Onde ele está?

– Quisera saber. Foi naquela direção. – Pembroke aponta um dedo curto e grosso para o sul.

– Mas essa não é a direção para o rei Eduardo! – Flood diz. – Isso é se afastar dele.

Pembroke não diz mais nada, mas pega as cartas de Hastings e se retira para a sua barraca, deixando-os às voltas com os preparativos para acender o fogo para cozinhar.

– O que devemos fazer? – Flood pergunta.

– Devemos voltar para o rei Eduardo – Thomas lhes diz.

– Esta noite?

– Ainda há luz do dia suficiente para alguns quilômetros.

Fica combinado. Eles estão levando seus cavalos de volta colina acima quando veem alguns cavaleiros vindo depressa do leste. Um grupo de piqueiros. Um – não – dois estão curvados como se estivessem feridos e há uma sela vazia. Thomas e os outros saem da estrada e os deixam passar. Um tem um corte profundo no ombro e mantém o braço apoiado no colo, o outro tem sangue por todo o rosto, e o cheiro comum de cavalos e suor está manchado pelo cheiro de sangue.

– Redesdale! Redesdale! – grita um deles. – Lá embaixo. Do outro lado do rio.

Teria Robin de Redesdale vindo do sul até ali tão depressa?

– É melhor irmos embora – Thomas diz.

Eles concordam, mas Flood se opõe.

– Se este pessoal tiver que enfrentar uma batalha – ele diz, gesticulando e indicando os homens de Pembroke –, irá precisar de nossa ajuda. Temos que nos unir a eles.

– Você nunca esteve em uma batalha antes, esteve? – Brunt pergunta.

Flood nunca esteve.

– Agora não é o momento perfeito para isso – Thomas lhe diz.

Ainda assim, Flood não arreda pé e, antes que possam persuadi-lo, outro grupo de piqueiros retorna do norte e a fuga é impedida.

– Vamos – diz o comandante. – Vocês são todos os arqueiros que possuímos!

Eles retornam resmungando para o acampamento de Pembroke. Os piqueiros feridos estão contando aos que quiserem ouvir que encontraram rastros de um exército e os seguiram até se depararem com um grupo de dez cavaleiros de azul, com um distintivo amarelo no peito – “como uma mancha” – e eles os atacaram, apesar de estarem em menor número.

– Eles estão logo do outro lado do rio!

Mensageiros são enviados para buscar Devon, para trazê-lo de volta, mas a essa altura já é hora do crepúsculo. Alguns homens descem para o rio, onde há uma ponte, e Pembroke envia outro grupo para apoiá-los. Duzentos ao todo. Ele manda seus homens construírem grandes fogueiras e mantê-las vivas, para fazer Robin de Redesdale acreditar que Devon está com eles, mas diz aos seus comandantes que devem estar prontos à primeira luz da manhã.

– Nós os pegaremos desprevenidos – Pembroke diz. – Antes de saberem que não temos arqueiros.

Thomas e os outros devem sentar-se com o primeiro grupo de piqueiros que encontraram, todos irlandeses, e deverão manter o fogo aceso a noite toda. Eles cantam canções incompreensíveis e um deles recita um poema infindável em sua própria e estranha língua. Torram seu pão no fogo e em seguida colocam fatias de queijo sobre ele e, na realidade, isso não é nada mau, Thomas pensa, se ao menos calassem a boca.

Thomas fica com o último turno da vigia, com as cinzas esfriadas da fogueira, e o campo ressoa com o canto dos pássaros. Ele vê a aurora surgir primeiro como uma mancha pálida, muito comum, e abaixo há uma névoa erguendo-se onde o rio serpenteia pelos prados. Ele se ajoelha na grama molhada, oferecendo preces a Deus por sua própria segurança para que possa retornar para Katherine e Rufus, quando a quietude da manhã é rompida por uma gritaria distante e pelos golpes de armas que vêm lá de baixo, de perto da ponte.

É assim que começa.

O acampamento entra em erupção à sua volta. Os homens se põem de pé num salto. Livram-se de suas capas e outros chamam por criados, escudeiros, cerveja, pão e suas próprias botas. Pembroke está lá entre eles, berrando a plenos pulmões, gritando para que mensageiros sejam enviados a milorde de Devon, exigindo que seus cavaleiros e cavalheiros menos graduados coloquem ordem no acampamento e reúnam seus homens. O acampamento ressoa com os galeses gritando uns com os outros e, pairando acima de tudo, o cheiro de torrada com queijo. Há poucas mulheres seguindo o exército, porque os homens foram reunidos tardiamente e às pressas, e assim eles são apenas um bando de homens de cabelos escuros e desgrenhados, amarrando suas armaduras, reunindo suas alabardas, lanças, machados e espadas, e procurando encontrar seus amigos entre tantos que fazem o mesmo e parecem tão semelhantes uns aos outros.

Entretanto, é surpreendente a rapidez com que se organizam e, antes que o sol tenha nascido por completo, estão enfileirados no campo. Há talvez três mil homens formados em três grupos. Pembroke anda em grandes passadas diante deles. Está vestido em sua armadura completa, com um machado de guerra. Seu escudeiro carrega seu elmo e seu protetor da boca e do pescoço. Outro tenta amarrar uma tira em sua panturrilha, mas Pembroke não interrompe sua ronda.

O barulho do combate embaixo é uma algazarra irregular e constante. Já se veem homens se afastando, mancando, para desmoronar na grama ou tentando se arrastar colina acima. As árvores escondem o que está acontecendo na própria ponte, mas conforme a neblina se desfaz, Thomas pode ver uma horda de homens arremetendo-se pelos campos do outro lado do rio, dirigindo-se para a ponte, e ouve-se uma grande onda de som conforme avançam. Thomas se pergunta por que Pembroke não os faz parar na ponte. Então, pensa que o conde não está tentando pará-los. Quer que a atravessem, entrem em formação e, então, ele enviará seus homens para atacá-los e matá-los.

Mas e quanto a arqueiros? De nada adianta ter a vantagem da altura se você não tem arqueiros.

Pembroke para, vira-se de costas para a luta e de frente para seus homens. Ele é grande, alto e corpulento, ainda maior por causa da armadura, e seu rosto também é largo e, agora, manchado, seco e rachado pelas intempéries, com os cabelos em pé. Ele apela a seus homens.

– Homens do País de Gales! – ele berra. – Homens do País de Gales, agradeço a Deus por estarem comigo hoje. Aqui neste lugarzinho miserável desta miserável Inglaterra. Eu não poderia estar em melhor companhia. Não poderia haver homens melhores, mais corajosos, ao meu lado. Agradeço a Deus por isso. Estão me ouvindo? Agradeço a Deus por vocês, filhos de Davi, estarem comigo. Cada um de vocês. Você. – Ele aponta. – Você. – Ele aponta para outro. – E você. – Para outro mais além.

“Hoje vocês são meus irmãos. Hoje todos nós somos irmãos. Todos nós aqui. Todos nós nesta linha. Somos irmãos. Somos uma família. Uma nação. Uma raça. Uma raça de homens. Uma raça de homens que o mundo passou a temer. Uma raça de homens que o mundo tem razão de temer. E neste dia escreveremos outra lenda nos anais da história de nossa nação altiva. Outro capítulo.”

Thomas se pergunta onde homens como Pembroke aprendem todo esse tipo de palavreado. Será que a retórica faz parte de sua educação juntamente com o treino no uso da espada longa e do machado de guerra?

Pembroke continua. Ele admite que Devon ainda não está lá, mas diz às suas tropas que agora é a hora de se portarem como homens e que, quando a batalha tiver terminado, Devon e os seus irão se arrepender de sua petulância e que eles, sendo ingleses infiéis, irão mentir sobre este dia e dizer que estavam aqui neste campo e viram o que os filhos do País de Gales podem fazer.

Há uma grande gritaria e aceno de armas.

Thomas e os poucos outros que compõem os arqueiros de Pembroke permanecem ligeiramente à parte, no lado direito das tropas. Eles preparam seus arcos, ajeitam as penas das flechas e começam a movimentar os ombros para aquecê-los.

– Temos que defender o flanco – Thomas murmura. Seria cômico se não fosse trágico, ele pensa.

Flood está com sua armadura completa agora, e naturalmente alguém gastou dinheiro com um fabricante de armaduras para fazer a dele a mais perfeita que se possa imaginar. Assim preparado, ele inspira respeito e admiração. Movimenta-se com tanta facilidade que, embora Thomas saiba que certamente existem os pontos fracos habituais – a virilha e as axilas –, é impossível imaginá-lo parado por tempo suficiente para alguém conseguir atingi-lo em tais locais. Ele possui um machado de guerra tão bom quanto o de Thomas e um martelo de cavaleiro no cinto. Seu criado retirou as bainhas da espada e da adaga, que se penduram de aros.

– Você não vai lá embaixo – Thomas lhe diz.

Flood olha para ele com aqueles olhos azuis afastados e, por um instante, Thomas sente que está se deixando atrair por eles. Flood tenta apelar.

– Thomas – ele diz. – Thomas, senhor?

– Não – Thomas diz. – Lorde Hastings me encarregou de levá-lo de volta são e salvo. Não me interessa se você é muito bom nisso e o quanto esteja querendo ensanguentar sua armadura. Você não vai arriscar seu pescoço aqui e agora. Haverá muitas oportunidades para isso mais tarde.

Flood pisca.

Thomas vê que ele tem um pedaço de tecido leve e transparente amarrado ao seu machado de guerra. Poderia ser de Maude? É. Oh, Santo Deus. Será que ele sabe o que essa arma fará a um homem? Será que ele quer deixar algo tão puro banhado em sangue? Com pedaços de cérebro? Com tudo que se derrama de entranhas rasgadas? Será?

– Me dê seu machado – Thomas diz.

– Não.

Pembroke ainda está gritando, mas em galês, e os galeses gritam algo em resposta. Os homens na ponte ainda estão lutando, mas logo os homens de Robin de Redesdale forçarão a travessia. É apenas uma questão de tempo.

Thomas estende a mão para o machado de guerra de Flood.

– Esta luta não é sua – Thomas lhe diz. Estas são palavras que o persuadiriam, mas Flood é jovem. Ele ainda não lutou em lugar algum além do pátio de justas.

– Vamos – Thomas diz, e coloca a mão no machado de guerra cerrando os dedos em torno da haste. Flood não solta a arma. É uma situação estranha. Se Flood quisesse matá-lo agora, poderia fazê-lo. Thomas o observa considerar a possibilidade. Mas Brunt e Caldwell movem-se um pouco para trás do ombro de Flood, Flood vê o movimento e vira-se para eles, um de um lado, o outro do outro. Eles sorriem inocentemente para Flood, mas todos os quatro sabem exatamente o que aconteceu. Flood, então, olha novamente para Thomas e sorri.

– Muito bem – ele diz, deixando que tome o machado de guerra. – Mas mantenha-o por perto.

Pembroke terminou de animar sua turba, os homens na ponte foram finalmente dominados e agora estão se dispersando pelo sopé da colina, perseguidos pelos homens de Robin de Redesdale, que tomaram a ponte pela vantagem de estarem em muito maior número e agora estão se espalhando pelo campo embaixo.

– Vamos – Caldwell murmura. Ele tem uma flecha longa preparada em seu enorme arco e, se Pembroke desse o sinal, ele poderia atirá-la no meio daqueles que até agora estão matando os homens feridos.

Pembroke dá o sinal. Ele dá um passo atrás e aponta seu martelo para Thomas e seu pequeno grupo, em seguida abaixa a arma, e assim Thomas deixa o machado de Flood cair na grama ao lado do seu próprio, pega seu arco e encaixa uma flecha. Caldwell já atirou aquela primeira flecha para baixo da colina, cuidadosamente apontada, no peito de um homem com um martelo, pronto para despachar outro homem ferido que se arrastava pelo capim alto. Brunt ri. O’Driscoll comemora. É assim que deve ser, Thomas pensa. Eles são somente quatro arqueiros e têm menos de cinquenta flechas cada um, de modo que lançar uma salva de flechas de nada adiantará. Têm que escolher seus alvos e atirar com precisão.

Ele se tornou juiz e executor.

Ele vê um homem, decide que não gosta dele, prepara seu arco e lança uma flecha zunindo pelo declive abaixo para matá-lo. Com base em quê? Nunca gostou daqueles elmos com proteção das faces. Barbutas, são chamados. Ele escolhe um homem com uma barbuta, aponta e atira. O homem é arrancado do que está fazendo – tentando organizar seus homens – e retrocede, cambaleando. Ele vê um outro instando seus homens para que prossigam em frente, mas ele próprio permanece parado. Esse ele atinge no elmo. Pode não estar morto, mas não vai se levantar tão cedo. Ele imagina ter visto Taplow, ou alguém muito parecido – mas existem tantos parecidos com ele lá embaixo! – e atira uma flecha mirando em seu peito e fazendo-o sair cambaleando para trás. Em seguida, há um outro Taplow, e ele atira nele também. Então, lembra-se de Horner, lá embaixo, apenas tentando ganhar a vida, e hesita, lembrando-se de sua promessa de não lutar contra ele, mas pensa, Bem, não há nada a fazer. Ele faz o que tem que fazer e tem que enfrentar as consequências conforme elas vêm.

E ele aponta e atira. Não conhece aqueles homens. É melhor não especular. É melhor atirar como se ele fosse um pisoador: subindo e descendo, puxando e soltando. Ele simplesmente para de pensar e se concentra apenas em atirar flechas tão bem quanto pode: flecha após flecha, nos rostos daqueles que estão tentando subir a colina para matá-lo.

Mas eles estão longe de ter um número sequer suficiente de flechas. E logo flechas são lançadas de volta na direção deles. Uma nuvem escura. Uma mancha suja no céu da manhã. Um homem é abatido na linha de frente, à distância de um braço de Pembroke, e ao longo de todos os grupos de combate há um recuo, um encolhimento, um retrocesso, conforme a linha de frente recua das flechas que vêm cortando o ar e penetrando onde bem entendem. Um homem grita. Ouvem-se um berro, um balido e um outro corre por alguns instantes antes de cair, se debatendo. Pembroke permanece onde está, parado com o braço levantado, sem demonstrar nenhum medo, e Deus lhe dá sorte, mas todos sabem que se resistirem por muito tempo, sem os arqueiros de Devon, ele não poderá manter o controle de sua colina. Assim, ele grita acima do barulho:

– Por Deus! Pelo rei Eduardo! E São Davi!

E seus galeses se arremetem para a frente com um rugido estrondeante. Lançam-se colina abaixo em direção ao local onde Robin de Redesdale está formando suas tropas. Thomas atira sua última flecha e vê com admiração como Pembroke programou bem seu ataque, pois os arqueiros de Robin de Redesdale não tiveram tempo para causar maiores danos e nem seus soldados estão prontos para receber este massacre. Os homens de Pembroke chegam em uma frente ampla e sólida, com momentum por trás deles, e rompem a frouxa formação embaixo. O barulho é terrível, um ronco contínuo de metal contra metal. Os gritos virão mais tarde. Os homens de Robin de Redesdale são empurrados para trás, para o meio das árvores, para dentro do rio, os de mais sorte de volta pela ponte.

Thomas, Brunt e os outros estão inclinados para a frente com as mãos nos joelhos, os rostos afogueados como casca de maçã, respirando com dificuldade, exalando vapor no começo da manhã como os rebanhos, observando os acontecimentos embaixo.

É somente então que Thomas vê que Flood não está lá.


14


O priorado está destruído pelo fogo, um amontoado de tocos enegrecidos, um tumor canceroso em uma ilhota baixa no meio do charco invasor. A torre da igreja está tostada e inclinada, os telhados desmoronaram e o muro externo transformou-se em escombros de pedra e argamassa. O ar úmido cheira a fuligem e cinzas, gaivotas perturbadas circulam no alto, com gritos esganiçados.

– Sempre foi assim? – Liz pergunta, deixando o cavalo parar na estrada embaixo. Katherine não responde. Ela apenas estremece. Agora que finalmente o viu outra vez, não consegue desviar os olhos. Este é o lugar onde ela cresceu, o lugar que lançou uma sombra de dor em sua vida desde então, que tem povoado seus pesadelos e às vezes seus infernos acordada. Acabou. Simplesmente. Ela não consegue compreender.

– Que lugar é este? – Rufus pergunta.

Isabella e Liz olham para Katherine em busca de uma resposta e quando ela vem surpreende a todos, inclusive a si mesma.

– Um dia foi meu mundo – ela diz.

– Não era muito bom – Rufus diz.

Liz sorri.

– Houve um incêndio? – ele pergunta.

– Um grande incêndio, ao que parece – Liz responde.

Por toda parte, tudo está negro. O lugar inteiro, do portão às grades, do piso ao pináculo da torre, tudo, desmoronado e coberto com camadas de fuligem.

– Que lástima – Isabella murmura. Ela não pode suportar o desperdício.

Katherine não diz nada.

– Vamos subir e ver? – Liz pergunta.

– Ver o quê? – Katherine pergunta. – O que há para ver?

Mas elas sobem. Deixam Katherine com o cavalo lá embaixo no caminho e ela fica observando-as subir.

Rufus lhe diz para não ficar triste e ela diz que não está.

– Então, por que está chorando?

E Katherine percebe que está. Fica parada, olhando, por um longo tempo. Faz frio hoje. Nenhum sinal do sol, o vento agita a água ao redor e os juncos sussurram conforme se movem. Ela estremece como se seu vestido estivesse molhado.

Após algum tempo, as duas mulheres saem pelos portões outra vez. Seus vestidos azul e verde e as toucas de linho branco são toques de cor contra o monótono mundo preto. Elas descem o caminho. Liz tem fuligem no cotovelo e no ombro, e suas botas estão pretas também.

– Nossa, que lugar – Liz comenta.

– Era pior antes do fogo – Katherine lhes diz.

Liz ri, mas Katherine pode ver que elas esperavam encontrar alguma coisa. O quê? Uma arca cheia de papéis referentes à sua família?

– Tem certeza de que não quer subir lá? – Isabella pergunta. – Pode ser melhor para você. É... não há mais nada de pé. Até o piso da igreja está destruído.

Katherine sacode a cabeça. Elas sobem na carroça outra vez. Liz se acomoda e toca o cavalo em um passo lento.

– Ninguém esteve lá desde o incêndio – ela diz. – Estranho, sabe? Porque há madeira aproveitável e pedras para construção.

– Quem está construindo aqui?

Elas olham à volta. O moinho está lá, mas também abandonado – sua roda está dobrada e as telhas deslizaram do teto.

– Como se fosse feito de queijo – Liz observa.

Fora isso, não há mais nada.

– O Castelo de Cornford fica naquela direção – Katherine lhes diz. Ela está pensando em voz alta, na verdade. Lembrando-se de sua vida passada. Isabella solta um longo suspiro.

– Vamos deixar isso para outro dia, está bem?

Katherine estica o pescoço e vira-se para trás, a fim de ver o priorado desaparecer de vista. Ela agora pode ver a parte do priorado que pertencia às freiras. O campo onde encontrou os Riven pela primeira vez, e Thomas, é claro. Há dez anos, mais ou menos. Santo Deus. E conforme avançam, ela começa a sentir que agora algo está faltando do meio de sua vida. E começa a sentir como se estivesse flutuando – ou caindo; não consegue decidir qual a sensação. Não consegue acreditar que o priorado não existe mais.

– O que terá acontecido com todos os monges? – Liz pergunta.

– Devem ter escapado das chamas – Isabella imagina.

– Tinha uma atmosfera ruim – Liz retruca.

– Sempre teve uma atmosfera ruim – Katherine diz.

– Talvez o barão Willoughby saiba, não é? – Isabella indaga.

Mas quando finalmente chegam a Tattershall, o barão Willoughby se foi e, com ele, todo homem fisicamente apto, e a maioria das mulheres também, de modo que, de todo o pessoal da propriedade do barão, restam apenas os idosos, os enfermos, algumas mulheres e um velho padre com olhos rodeados de vermelho como um cachorro. Quando Isabella pergunta sobre o priorado, ele se benze, dá três voltas sobre si mesmo e cospe no chão.

– O próprio diabo se apoderou daquele lugar – ele lhe diz através dos lábios flácidos, mas isso é tudo que se dispõe a contar, porque elas são mulheres, Katherine imagina, e ele não quer chocá-las. Liz, que primeiro vai para as cozinhas, lhes conta depois, embora somente uma vez ela tenha tampado os ouvidos de Rufus.

– A prioresa enlouqueceu pelo amor de outra freira! – ela lhes diz mais tarde. – E esta irmã ficou tão escandalizada que foi levada a se afogar no rio onde lavavam as roupas. O Prior de Todos foi investigar, mas nada pôde ser provado, mas ainda assim ele enviou a prioresa de volta para o lugar de onde veio.

– Isso é tudo?

Liz dá de ombros.

– Dizem que o Prior de Todos tinha pavor dela. E tinha motivo para isso, porque disseram que antes de ir embora a freira amaldiçoou o lugar. Rogou praga contra os cônegos e as irmãs, mandou todos eles para o inferno e tudo o mais.

Rufus se desvencilha de Liz.

– Um mês depois, eles foram visitados por um mendigo cego de um olho que veio pedir esmola – Liz continua –, só que ele trouxe a peste com ele.

– Santo Deus. – Isabella se benze à menção da peste.

– E até o final do mês, todos os monges estavam mortos, exceto um. Pode imaginar o que deve ter sido? Preso lá dentro? Sozinho e apenas esperando que os pontos negros espocassem em sua pele? Enterrando um corpo todo dia? Bem, ele enlouqueceu também, é claro, esse monge, depois de um mês e pouco.

E ela agarra Rufus outra vez, mais do que por simples brincadeira. Pressiona o menino contra si e tampa seus ouvidos outra vez.

– E ele colocou fogo no lugar inteiro. Disse que o local estava amaldiçoado, como todos sabiam, e que todos lá dentro também estavam. Bem, estavam, depois disso, sem dúvida, porque o fogo se alastrou e as freiras do seu lado não puderam sair, porque a prioresa havia colocado trancas, já que alguém um dia havia fugido, e ela levou as chaves consigo, é claro. E antes de isso acontecer, o Prior de Todos dissera que não havia necessidade de elas saírem do priorado de qualquer modo, que deveriam tentar ser como as primeiras freiras desta ordem e viver em total isolamento. E como não havia nenhum contato entre as irmãs e os cônegos, pensaram que elas não pegariam a peste. Assim, quando o fogo se alastrou, todas foram queimadas vivas. Não sobrou nenhuma.

Faz-se um longo silêncio.

– Santo Deus – é tudo que Isabella consegue repetir.

– A não ser a prioresa – Katherine diz.

Liz ergue os olhos para ela.

– Sim. A não ser ela.

Elas passam aquela noite no castelo em Tattershall. É um jantar escasso, à meia-luz, durante o qual o padre fica bêbado e depois do qual preces são rezadas pelo barão Willoughby e os homens que ele levou consigo como soldados pelo país. É crença geral dentro do castelo que todo mundo sabe que os homens foram para oeste para ajudar o conde de Warwick a eliminar os conselheiros corruptos do rei Eduardo de seu lado e restabelecer o conde nessa posição. Embora Katherine não tenha dito uma única palavra a noite inteira, ela ergue os olhos nesse momento, surpresa de ouvir a empreitada ser dita assim tão abertamente, já que imaginara que isso seria considerado traição.

– Ele vai conseguir? – ela pergunta ao padre.

– Oh, sim – ele responde.

Mas tudo em que ela consegue pensar é no fogo devastando o priorado. Pode imaginá-lo devorando as irmãs e se lembra da vez em que se reuniram na nave, quando pensaram que estavam sendo atacadas pelos homens que vieram a saber que eram os Riven. Como tinham se encolhido, choramingando, esperando para ser... o quê? Ela estremece só de pensar, mas não consegue livrar a mente das imagens. Vê as freiras arranhando as paredes, deixando marcas das unhas na argamassa. Ela as imagina tentando escapar por aquelas janelas estreitas. E o tempo inteiro, as chamas se aproximando. O calor. Santo Deus. E pior. Depois. Pode imaginar o depois. Sangue fervido, gordura endurecida, ossos enegrecidos. Seus crânios espalhados, cheios de fuligem, com os dentes arreganhados, e suas espinhas dorsais curvadas em agonia.

Mas não a prioresa.

Mais tarde, Katherine, Rufus e Liz deitam-se no salão com os outros criados, enquanto Isabella, em função de quem ela lhes diz que é, recebe um aposento com uma cama de verdade, de cordas, na parte sul do castelo, onde as pedras retêm o calor do sol, até mesmo durante a noite. Katherine fica deitada acordada, com medo demais de fechar os olhos por causa dos pesadelos que sabe que virão, e quando o dia finalmente amanhece, e os criados começam seu dia, ela se levanta com eles conforme acendem as lareiras com feixes de espinheiro. Agradece a Deus por guiá-la através da vigília solitária, pois ela, naquelas curtas horas, descobriu algo sobre si mesma que há muito tempo estava se anunciando.

Na volta de Tattershall no dia seguinte, elas têm que passar outra vez pelo priorado. Os aros de ferro das rodas da carroça rangem pelo terreno alagado de Lincolnshire, e todas permanecem sentadas em silêncio e olham fixamente para o local conforme passam, até mesmo Rufus, que ouviu parte da conversa da noite anterior, virando a cabeça para vê-lo ficar para trás. Conforme avançam, as temíveis lembranças de Katherine parecem abandoná-la, como retalhos ao vento, e ela começa a acreditar que, depois que ele desaparecer, quando não puder mais vê-lo, ficará livre dele. Na realidade, durante a noite, o que veio a compreender foi que o priorado não era um castigo enviado dos céus para um pecado que ela nunca conseguiu se lembrar de ter cometido, como sempre acreditara, mas que era meramente um mundo da criação da prioresa, um reflexo dela, e de nada mais além disso.

Seu passado, por tanto tempo uma fonte de vergonha, mostrou não ser nada que ela precisasse esconder dos olhos de Thomas, Rufus, Isabella ou mesmo de Liz. Foi uma época em que ela estava sob o poder de outra pessoa, alguém que a maltratava e não por sua culpa.

Assim, agora, Katherine está com os outros no chão da carroça, e ela se vira e observa o priorado conforme ele diminui, se encolhe e finalmente declina atrás da linha do horizonte, e ela se sente exultante. Tem vontade de gritar a plenos pulmões que vai ficar tudo bem, tudo vai ficar bem.

– Mas agora você nunca vai descobrir quem você é – Liz retruca.

– Não me importo! – ela lhe diz. – Não me importo.

Mas Liz parece cética, como se devesse se importar, e assim todas resvalam em silêncio, perdidas em seus pensamentos separados e, quando chegam a Lincoln, o sol já surgiu, brilhando em suas costas. Quando avistam a mansão em Marton, suas sombras estendem-se no lado direito do caminho e Isabella cochila, a cabeça pendente como um bulbo de fritilária.

É quando veem os homens e cavalos, à porta da mansão, cinco ou seis deles.

– Está esperando alguém, milady? – Liz pergunta.

Isabella acorda e fica em pânico. Não, não está.

Katherine sente uma onda de alegria.

– É Thomas! – ela diz.

– Ah, bom – Liz exclama, satisfeita, e chicoteia levemente o cavalo.

Mas não é Thomas. São os filhos de Isabella, William e Robert, e até têm Borthwick com eles, embora nenhum novo cão de caça, e o falcoeiro também está lá com suas cargas. Ela não os esperava, mas fica feliz por estarem de volta apesar do que fizeram. Eles cumprimentam sua mãe com um tenso comedimento. Querem saber por que ela estava fora e aonde foi. Isabella lhes diz. Há um ligeiro choque quando lorde Willoughby é mencionado.

– Ele não estava lá?

Ela lhes conta que ele seguiu o estandarte de Warwick.

– Ele disse que nos convocaria – um deles choraminga. – Se ele fosse seguir as cores de Warwick, nos chamaria. Nós... somos seus empregados por contrato!

– Ele prometeu que mandaria nos buscar! – o outro diz.

– Bem, fico feliz que não o tenha feito – Isabella diz. – Já vi muitos homens que amo partirem e serem... se perderem nessas guerras estúpidas.

Os rapazes estão com raiva e envergonhados. Voltam-se para Isabella.

– Ele não nos chamou porque sabia que só poderíamos fornecer um punhado de homens, foi por isso.

– Aliás, um punhado de homens mal armados.

– Precisamos de mais dinheiro.

Isabella lhes diz que não tem nenhum de sobra.

E, por enquanto, isso é tudo.

Dali em diante, entretanto, as cordas do triunvirato das três mulheres são rompidas, conforme Katherine e Liz se tornam criadas outra vez, banidas da proximidade da lareira, enquanto os filhos permanecem sentados ociosamente, e Isabella suspira e torce seu rosário no colo, assustada demais para tocar no assunto de seu breviário, tentando pensar no que mais pode fazer para agradá-los.

– São dois vermes – Liz comenta, depois de observá-los por alguns dias. – E ela está tão cega que não consegue ver quem eles realmente são!

Ela carrega um largo balde de madeira cheio de tigelas e canecas novamente em direção ao pátio e Katherine lhe diz para ter cuidado com Borthwick.

– O gorducho que cheira a cachorro? Já dei um jeito nele.

Katherine inveja a facilidade de Liz. Se ela a tivesse, em vez de recorrer àquela faca de mesa cega, então... então as coisas teriam sido diferentes.

– O que acha que eles querem? – Liz pergunta. – Não há muito mais que possam levar, não é?

Katherine concorda. Mas há uma tensão no ar. Os rapazes estão definitivamente tramando alguma coisa.

O que eles estão realmente pretendendo se revela aos poucos: na semana posterior à Festa dos Sete Dormentes de Éfeso, no final de julho, o dia até quando o livreiro concordara em guardar o breviário de Isabella. Velas foram trazidas e lamparinas de junco compradas. O rapaz de barba sugere que Isabella está vivendo como uma camponesa e que não deveria ser assim. Isabella concorda. Há um tom cortante em sua voz, carregado de significado, mas não para seus filhos. Katherine ouve de trás da cortina quando eles perguntam a ela por que aceitou Katherine de volta. Isabella lhes diz que Katherine é mais útil para ela do que qualquer outra pessoa jamais foi. Mais uma vez, o significado implícito não é percebido.

– Achamos que é hora de vender este lugar – um dos rapazes diz.

– Vender?

– Enquanto ainda vale alguma coisa.

– E onde eu vou viver?

– Você poderia se mudar para um convento. Um priorado.

– Não quero fazer isso.

– Não pode se dar ao luxo de viver aqui!

– Posso, sim. São vocês que estão acima de minhas posses.

– Mas nós vivemos de nada! Você não nos dá nada.

– Eu lhes dei tudo que pude.

– Ha!

Liz está prestes a entrar intempestivamente na sala e soltar a língua em cima dos dois rapazes, que provavelmente merecem isso, mas Katherine agarra seu pulso e proíbe que ela o faça, e desta vez Liz aceita seu conselho. Na manhã seguinte, Robert e William levam suas aves para caçar e Isabella permanece preocupada e exausta de seus esforços de defesa.

– Talvez eles tenham razão – ela diz a Katherine.

– Você quer ir para um convento?

– Claro que não, mas este lugar é grande demais para mim sozinha agora. Não consigo administrá-lo. Não com os meus olhos neste estado. E se Robert e William precisam do dinheiro...

– Eles não têm suas próprias funções? Cargos e coisas assim? – Liz pergunta.

Isabella franze os lábios.

– Falou-se em alguma posição – ela diz. – Mas acabou indo para outro homem, preferido da rainha.

É sempre culpa de alguém, Katherine pensa.

– Então, você o faria?

Faz-se um longo silêncio. Isabella contrai o rosto e seu queixo treme.

– Talvez seja para melhor – ela diz.

Então, está resolvido, Katherine pensa. Já perdeu sua casa antes, é claro, e jamais deveria ter alimentado esperanças. Pensa naqueles rapazes com suas roupas escarlates e seus falcões, pensa em si mesma, em Thomas e no pequeno Rufus, e sente vontade de chorar. Pensa em Senning, tão perfeito, e em Watkins, o homem que encontrou sir William Tailboys e todo o seu dinheiro escondido em uma caverna. Por que alguns homens pegam a Roda da Fortuna quando está em ascensão e outros somente quando já passou por cima do topo e está na descida?

Depois disso, é difícil passar os dias com Isabella, embora Katherine possa ver que ela está presa no vão entre o amor de mãe por seus filhos e seu julgamento deles como homens. Isabella chora constantemente e se torna tão impotente que não consegue fazer nem as tarefas mais simples, de modo que Katherine recorre a passar mais tempo sozinha na pequena casa que ela e Thomas construíram. Está vazia: toda a mobília que Thomas conseguiu fazer e toda tigela, jarro, cobertor e mesa foram levados para uso em outro lugar, talvez por Borthwick. Assim, ela se senta no chão e pensa – no priorado e na prioresa, em Jack, Nettie e John Stump presos a sete chaves em alguma torre funesta. Tenta pensar no que poderiam ter feito de maneira diferente e vê que há muitas coisas, se ao menos soubessem.

Seu olhar percorre a pequena cabana, repositório de tantas pequenas lembranças dos anos bons entre sua volta de Bamburgh e a morte de sir John, mas ele volta, como sempre, para a lareira, feita de pedras assentadas de lado, de forma a fazer uma sequência de arestas na mistura de barro e leite azedo com que Thomas fez o assoalho.

Embaixo dela, enrolado em linho e oleado, está o livro-razão.

Ela permanece sentada em silêncio e pensa no livro, e enquanto o faz, ele parece surgir ainda maior em sua mente, de modo que ela pode vê-lo lá, embrulhado, e parece estar em comunicação com ela, como se diz que os ossos de alguns santos se comunicam com os iniciados chocalhando ou deixando vazar sangue quando eles estão por perto. O livro-razão está gritando por ela, Katherine pensa, e então ela compreende que a maneira de salvar Jack, John e Nettie não é fazendo Thomas tentar provocar a destruição do conde de Warwick através de Edmund Riven, mas dando-lhes o que eles querem: o livro-razão. Ela deve levá-lo a Edmund Riven, onde quer que ele esteja, e deixá-lo descobrir isso por si mesmo.

Ela se põe de pé num salto. É isso! É isso! Vai fazer isso. Ela se abraça, passando os braços ao redor de si mesma, e arrasta os pés com os solados de couro no chão de terra batida. Meu Deus, que falta sente de Thomas em momentos como este.

Mas logo ela pensa, E depois?

Depois que tiver feito isso e que Thomas tiver retornado para ela, o que acontece? Para onde todos eles irão? Se Isabella vender este lugar que foi seu lar até então e Hastings não mais precisar dos serviços de Thomas – porque, afinal de contas, o que acontecerá com ele se o rei Eduardo for declarado ilegítimo? – então... então, o que acontece a ela, a Thomas e a Rufus?

De volta à mesma maldição: dinheiro.

Ainda assim, podem se preocupar com isso quando chegar a hora. Primeiro, têm que pensar em Jack, Nettie e no pobre John Stump, com quem ninguém realmente se importa. Antes de tudo, eles têm que ser libertados de sua prisão. A perda do livro-razão é meramente o preço que vale a pena pagar, um preço que ela pagará com prazer.

Ela encontra uma picareta e começa a trabalhar no assoalho. O barro é um bom piso para o uso diário, mas é bastante fácil de ser quebrado, e logo ela chega ao buraco ao lado da lareira, fundo o suficiente para encontrar as bordas do volume de oleado preto, com alguns torrões de barro seco, que está enterrado ali talvez há três anos. Ela o puxa para fora e vê que suas precauções funcionaram. O pacote parece leve, como se o conteúdo ainda estivesse seco. Ela o segura por um longo tempo, apenas fitando-o.

Cristo, os problemas que aquilo lhes trouxe.

Ela está prestes a desembrulhar o pacote, cortar os pontos cuidadosamente costurados, inspecioná-lo, quando a sombra de Liz preenche o vão da porta.

– O que você está fazendo toda coberta... o que está fazendo, Kate?

Katherine é flagrada. Suas opções desfilam rapidamente por sua mente, mas ela está segurando o pacote como uma ladra pega em flagrante.

– O que você tem aí? – Liz continua.

Katherine resolve contar-lhe.

– É... é o motivo de toda essa confusão. É o que Edmund Riven está procurando. Não pergunte o que é, porque eu não lhe direi e é melhor que você não saiba.

– Isso? É ouro ou algo assim?

Katherine hesita.

– Sim – ela mente. – Ouro.

– Não parece muito pesado.

– É ouro muito trabalhado. Um livro. Um manuscrito. Com iluminuras. Em Bruges. Feito pelo melhor e mais habilidoso monge que já existiu.

Liz sabe que ela está mentindo.

– Então, o que você vai fazer com ele, agora que o encontrou?

– Vou levá-lo a Edmund Riven. Vou dar a ele, para que não tenha mais motivo para manter Jack, Nettie e John presos.

Liz olha para ela pensativamente.

– Então, você o tinha o tempo todo? Enquanto ele vasculhava o norte atrás disso, estava bem aqui, enterrado embaixo da sua lareira? Como você o conseguiu?

Katherine lhe diz que é uma longa história.

– Temos tempo de sobra – Liz retruca.

– Não – Katherine lhe diz. – Esta é a questão. Não temos. Pense em Nettie. Ela vai ter o filho a qualquer momento.

Liz se surpreende.

– Então... você pretende pegar a estrada outra vez, viajar até Middleham, em época de guerra, para dar este livro a esse Edmund Riven e, então, o quê? Fazer o parto do bebê da Nettie?

– Não sei – Katherine diz. – Mas Nettie não pode ter a criança em alguma masmorra imunda. Nós... eu...poderia ao menos tirá-la de lá. Levá-la a um convento ou a um hospital, se houver. Uma hospedaria, talvez. A do seu pai?

Liz balança a cabeça, assentindo.

– E quanto a Isabella? – Katherine pergunta. – Não podemos deixá-la assim, não é? Sozinha com aqueles filhos. Eles vão colocá-la em algum priorado. – Ela olha para Liz. – Você poderia ficar? Para cuidar dela? Se eu tiver que ir?

Liz parece pouco à vontade.

– Seria estranho – ela diz. – Eu aqui, você lá.

– Então você iria comigo?

– Sim – Liz responde.

– Mas e quanto a Thomas? – Katherine se pergunta. – Temos que esperar por ele.

Agora Liz fica pensativa.

– Mas talvez... – ela começa, hesitante. – E se fizéssemos isso rapidamente? Deveríamos, com Nettie prestes a dar à luz, e então poderíamos estar de volta aqui quando Thomas vier?

É uma boa ideia.

– Mas ainda assim há Isabella – Katherine diz.

– Bem – Liz continua. – Pense no assunto. Mas enquanto isso é melhor guardar este maldito livro. – Ela aponta para o livro-razão. – Se for tão valioso quanto diz que é, os dois rapazes vão tirá-lo de você e apregoá-lo pela cidade antes que você possa abençoar o sangue e a carne de Nosso Sagrado Senhor Jesus Cristo.

Katherine sente-se repreendida. Está prestes a deslizar o pacote do livro-razão de volta ao seu buraco de barro sob a lareira com outras miudezas próprias, inclusive com os papéis que o livreiro lhe vendeu, quando uma ideia lhe ocorre.

Ela retira os papéis novamente, deixa-os de lado enquanto conserta o estrago feito no assoalho da melhor maneira possível, e em seguida os pega e segue Liz para fora, na luz do sol do final de tarde. Senta-se em um tronco de árvore que Thomas serrou com este propósito e vai tentando entender a caligrafia muito junta do maço de papéis. Logo chega à seção onde o autor – anônimo – lida com extração de cataratas. Ele – decerto trata-se de um homem – sugere que um cirurgião corte a lente do olho com um espinho, da base ao topo, e empurre o disco que está bloqueando o olho para baixo na direção da face, tirando-o do caminho. Não diz de que o disco é feito, nem por que ele se formou, somente que pode ser removido. Mas um espinho? E como se lavaria o olho? Óleo de rosas, ela imagina, em vez de urina.

– Por Nossa Senhora – Liz exclama quando vê os papéis. – Isto é um bode ou um homem?

Katherine não tem certeza. Imagina se isso teria importância. Será que os bodes têm o mesmo tipo de olhos que o ser humano? Eles têm uma conformação diferente, mas fazem o mesmo trabalho, não é? Liz está escandalizada e a lembra de que a humanidade é feita à semelhança de Deus, e não de um maldito bode.

E como ela iria fazer para que o corte não doesse? Ninguém poderia suportar que algum objeto – quanto mais um espinho – fosse introduzido em seu globo ocular sem lutar. Se ela fosse fazer isso, precisaria que Isabella ficasse inconsciente. Como? A sra. Popham tinha uma poção anestésica que certa vez deixou sir John quase morto por três dias. Como a sra. Popham fez isso? Tinha algo a ver com sementes de papoula e meimendro. Tais substâncias poderiam ser obtidas localmente, mas seria preciso dinheiro, o que, é claro, ela não tem. Está ponderando isso quando ouve Isabella chamando por ela do pátio. Katherine suspira e vai ao seu encontro.

Quando a alcança, ela a conduz de volta à mansão, onde Isabella retoma seu assento na obscuridade junto a um fogo quase apagado e então pega uma bolsa que havia escondido sob a cadeira. Parece cheia. Ela diz a Katherine que o breviário que seus filhos venderam tem estado sempre em sua mente nos últimos dias e que lê-lo outra vez a levará de volta a épocas mais felizes. Pede a Katherine que pegue o dinheiro, volte a Lincoln por ela e talvez possa comprar o breviário de volta. Katherine não lembra a Isabella que ela não pode ler, pois sua visão está muito ruim, porque Katherine pode entender que não é a verdadeira leitura do breviário que lhe trará conforto, mas o simples fato de tê-lo nas mãos. Mas ela a relembra de que o livreiro prometeu guardar o breviário somente até a Festa dos Sete Dormentes, uma semana atrás.

– Ainda assim – Isabella choraminga. – Sinto que Deus o guardou para mim.

Ela lhe estende a bolsa e, após um instante, Katherine a toma.

– Por favor, não conte aos meus filhos – ela pede. – Não quero que saibam que eu sei que eles me enganaram.

Ao dizer isso, Isabella começa a chorar. É de cortar o coração, e Katherine não pode suportar aquilo nem mais um instante. Ela deixa Rufus com Liz e cavalga sozinha, enrolada em uma velha capa de viagem, sentada de lado na sela, e vai depressa. Está tão indignada pela situação de Isabella que não faz nenhuma pausa para pedir notícias a nenhuma das pessoas por quem passa, mas ainda assim, quando chega a Lincoln, o livreiro não está lá.

– Onde ele está? – ela pergunta ao homem da barraca ao lado, de rosto rechonchudo e barba pegajosa, vendendo produtos relativos a abelhas dos quais ninguém necessita.

– Ele foi para Londres – o homem lhe diz. – Para apelar da prisão de seu pai.

– Prisão?

O homem dá de ombros.

– Ninguém sabe – ele diz.

Ela conduz seu cavalo de volta em direção ao arco do portão norte. O que aquilo pode significar? Poderia ter algo a ver com esse cão de caça de Hastings. Ainda não consegue ver que uma conexão possa ser feita entre o livreiro que um dia viu o livro-razão – e que, até onde ela pode se lembrar, nem sequer o tocou – e ela e Thomas. Mas Katherine é assaltada por temores. A coincidência é grande demais.

Ela também está com fome, percebe, e ao longo da rua há uma ou duas barracas de alimentos. Ela para e compra ervilha na manteiga e cerveja, senta-se, come e bebe da caneca suspeitamente pesada, e em seguida, caminha devagar, passando por uma loja acima da qual está pendurada uma placa cortada no formato de uma botija com duas asas. Um apotecário. Sua janela, uma espécie de escotilha, está abaixada e está escuro lá dentro, mas suficientemente claro para ver as fileiras de jarros de cerâmica e garrafas tampadas. O apotecário – idoso, com um rosto muito redondo encimado por um chapéu curiosamente pequeno e limitado na parte inferior pela barba fina e comprida – está desintegrando algo em um pó com dedos longos e fortes.

– Pulmão de raposa seco – ele lhe diz. – Bom para problemas respiratórios. Em que posso ajudá-la?

Sim, ele tem óleo de rosas. Sim, ele tem fel de javali. Tem o unguento universal para todos os ferimentos, feito do número exato de diferentes ingredientes quanto eram os apóstolos. Ele a deixa cheirar a botija e isso a leva flutuando diretamente para o perdoador, que certa vez tratou um ferimento na cabeça de Thomas com algo exatamente assim, e deve até ter comprado o unguento deste homem há tantos anos. Ele tem sementes de papoula e meimendro, e tem um anestésico de beladona que ele jura que pode deixar um homem inconsciente por uma semana sem nenhum dano de longo prazo.

Mas tudo isso custa dinheiro.

Ela calcula o custo, em seguida tira a bolsa escondida sob seu vestido e passa as moedas ao boticário. Sente-se curiosamente acalorada e ofegante, fazendo algo que sabe que é errado.

– Que Deus me perdoe – ela murmura.

O apotecário embrulha a mercadoria em minúsculas tiras de papel e a coloca em uma pequena botija de cerâmica selada com cera. Ele pergunta o que seu mestre tem em mente e, sem se importar em corrigi-lo, ela lhe conta sobre os olhos de Isabella. Ele tenta vender-lhe um creme que veio da Rússia e que é feito de carcaças de lobos em decomposição.

– E funciona? – ela pergunta.

– Ainda tem que ser provado – ele admite.

Ela não compra o creme. Mas leva uma pequena faca, tão afiada que corta através do linho, mesmo quando o tecido está jogado em uma pilha.

– Melhor do que um espinho – ele lhe diz. – E você vai precisar de uma agulha. Esta. É de prata.

É quase impossivelmente cara, mas ela a compra mesmo assim, bem como o pequeno frasco de uma tintura de meimendro que ele insiste para que leve. No final da compra, resta-lhe bem pouco do dinheiro que Isabella lhe deu e, assim, ela volta para casa com o coração martelando forte contra sua caixa torácica. Quando retorna, ela fica, desta vez, satisfeita de ver que os filhos de Isabella estão ali, ao lado de sua idosa mãe, porque isso significa que Isabella não pode lhe perguntar pelo dinheiro ou pelo breviário. Entretanto, o ambiente está carregado e tenso. Nenhuma palavra é dita.

– Eles tiveram outra briga – Liz lhe diz. Ela está dando banho de água morna em Rufus, usando o resto do sabão preto que levaram para o norte e trouxeram de volta. – Querem que ela se case com um novo marido.

– Mas ela é uma reclusa!

– Eles dizem que ela pode quebrar os votos a qualquer momento que quiser.

– Mas por quê?

– Tem algo a ver com sair para o mundo. Você sabe como eles são.

– Mas o que um marido ganharia casando-se com ela?

– Vender o lugar e ficar com o dinheiro, imagino.

– E ele iria querer uma... uma mulher velha e cega? – Katherine pergunta.

– Eles disseram que qualquer homem prefere assim.

Santo Deus, Katherine pensa, estão dando a mãe como uma ovelha velha. Mas quanto vale uma ovelha velha? Não muito.

Ela conta a Liz sobre o anestésico e o óleo de rosas.

– Pelo sangue de Cristo, não está falando sério! Você?

Katherine abaixa a voz e lhe diz que já operou muitos pacientes, salvou centenas de vidas.

– Mas um globo ocular? Já cortou algum?

Ela admite que não.

– Mas isso não é razão para não o fazer.

E assim ela o faz, no dia seguinte, quando William, Robert, Borthwick e o falcoeiro saíram para passar o dia caçando.

– Você nem sequer vai dizer a ela? – Liz pergunta.

– Será mais fácil assim – Katherine lhe assegura. – E terá terminado antes que ela perceba. Não demora mais do que rezar o pai-nosso.

E ela tem razão, pensa, já que Isabella colocaria todo tipo de razão pela qual não deveria ser curada. Dirá que sua cegueira é vontade de Deus, que os discos que bloqueiam sua visão são uma descarga de uma alma impura e que a prece e o jejum são as maneiras de remediá-los, e se ainda não desapareceram, é somente porque ela ainda não rezou, nem jejuou o suficiente. Katherine pode colocar a beladona em sua cerveja. É simples assim. Liz ainda está em dúvida, mas somente, como se verifica, porque colocar o analgésico na cerveja é muito simples, já que Isabella está cega.

– Não parece justo – ela diz.

Elas ficam sentadas com Isabella até sua cabeça pender. Liz a segura quando ela começa a escorregar do banco.

– Como um saco de gravetos – Liz comenta.

Por um instante, Katherine pensa que vai desmaiar com tudo aquilo. Está em uma espécie de estado eufórico: as cores são mais intensas, os sons mais agudos. Mas, em seguida, ela é tomada por um sentimento de determinação. De repente, sabe o que fazer, e não tem mais dúvidas.

Juntas, elas levantam o corpo velho e frágil de Isabella para a tábua da mesa e a carregam para fora, para o pátio. É o dia perfeito para isso: o sol está luminoso e não há vento. Colocam a tábua em cima dos tocos de árvore em que sir John costumava jogar xadrez. É um pouco baixo para uma mesa, mas Isabella parece confortável.

– Ela está morta? – Rufus pergunta.

Katherine olha para seu filho. Que Deus me perdoe, ela pensa, pois havia se esquecido dele.

– Não – ela lhe diz. Mas ela não se esquece de pôr a tigela de água em seu peito, para que ao menos possa ver se a mulher ainda respira.

Ele pergunta o que elas estão fazendo.

– Estamos salvando os olhos de Isabella – ela diz. – Para ela poder enxergar direito outra vez.

Rufus aceita a resposta como se ela tivesse dito que estavam consertando um cesto.

– Ela vai gostar disso – ele diz. – Vai haver sangue?

– Não.

Ele se aproxima para observar.

– Não toque em nada – Katherine lhe diz, gesticulando para que ele se afaste do pote de óleo de rosas, do vinho, da faca e da agulha que ela colocou em uma tira de linho limpo. Isabella está deitada de costas, a boca aberta, a pele flácida de seu rosto desprendendo-se em direção às orelhas. Seus dentes são compridos e amarelos, e ela parece extremamente velha e vulnerável.

– Como vamos fazer isso? – Liz pergunta.

Na verdade, é muito simples.

Katherine fica de pé junto à ponta da tábua, acima da cabeça de Isabella, e inclina-se sobre ela, com sua sombra recaindo sobre seu rosto. Suas mãos estão escorregadias com o óleo e ela as limpa em um pano de linho limpo. Em seguida, segura a faca.

– Tem certeza, Kate? – Liz pergunta.

E então há um momento em que ainda não é tarde demais.

Mas Katherine balança a cabeça.

– Tenho – ela diz.

– Talvez não fosse querer que você fizesse isso – Liz sugere. – Não acha que caberia mais a ela decidir? É errado curar alguém assim se ela acredita que seu sofrimento foi enviado pelos céus. Você está extirpando a obra Dele.

Katherine faz uma pausa. A faca está a talvez sete centímetros do olho direito fechado de Isabella. Os dedos da mão esquerda de Katherine estão curvados em um leve beliscão e ela mostra exatamente o que irão fazer, como o farão e como será conforme cortam a pele macia do olho. Mas as palavras de Liz a fizeram erguer os olhos.

O que ela está fazendo?

– É como se você estivesse sendo Deus – Liz continua.

Katherine abaixa os olhos para Isabella, serenamente deitada ao sol, e é assaltada pela dúvida. E se Liz estiver certa? Ela endireita-se. A faca está segura com mão firme e ela olha para Liz e pensa, Não. Eu posso fazer isso. Posso fazê-la enxergar outra vez. Será um milagre, mas ao mesmo tempo não será um milagre.

Ela pega a tintura que o boticário lhe vendeu, abre o lacre do jarro e em seguida, curvando-se sobre Isabella, puxa para trás a pálpebra direita primeiro. Observa o círculo turvo no meio do círculo azul contrair-se a um minúsculo pontinho. Assim, ela faz como o apotecário aconselhou e pinga uma gota da tintura de meimendro do bico da jarra na bola cega do olho de Isabella. Quando a gota atinge o tecido, há uma ligeira resistência na pálpebra, como se Isabella estivesse tentando piscar. Ela faz o mesmo com o outro olho. A sensação de estar explorando um lugar tão privado não é menos estranha. Ela recua um passo.

– Acabou? – Liz pergunta.

– Não – Katherine lhe diz. – Devemos esperar pelo tempo que leva para rezar uma ave-maria.

Um instante depois, ela verifica o olho, puxando a pálpebra para trás, e fica perplexa com o que vê. O círculo escuro no centro tornou-se enorme e o azul do olho agora se transformou em um minúsculo aro fino ao seu redor. E lá, em seu centro escuro, está a catarata à vista. Parece uma pedrinha de giz ou um botão muito fino de senhoras.

Katherine estende a mão para a agulha.

– Oh, meu Deus – Liz diz, incapaz de olhar para aquilo.

Por alguma razão, Katherine fica satisfeita de ver Liz tão melindrosa.

Ela lava a agulha no vinho morno e a lubrifica com óleo de rosas. Em seguida, vira-se e inclina-se sobre Isabella pela lateral, tão perto que pode ver sua respiração agitando os pelinhos finos na face da velha senhora, e sua mão está surpreendentemente firme, considerando-se a rapidez com que seu coração está batendo.

– Segure a pálpebra dela – ela pede a Liz. – Aberta, assim.

Liz está temerosa, mas faz o que lhe é pedido. Em seguida, Katherine se prepara, pega a agulha e a desliza pela frente do olho, dentro do fino aro azul. É como empurrar a agulha através da pele de uma uva, ou de uma nêspera madura, e dentro, embaixo da capa resistente, a polpa é um líquido espesso. Ela temia que houvesse sangue, mas não houve nenhum. Isabella a surpreende ao roncar repentinamente, mas em seguida se aquieta outra vez.

Katherine avança a agulha até poder sentir sua ponta contra a lente sólida, opaca. Empurra a agulha experimentalmente e a lente recua, mas logo retorna quando ela afrouxa a pressão. Ela avança a agulha outra vez, agora empurrando com firmeza na borda da lente onde está presa. Ela retira a agulha, posiciona-a em novo ângulo e a empurra de modo similar do outro lado da lente. Novamente, ela empurra no meio da bola leitosa. Empurra com firmeza e, de repente, para sua alegria, a lente salta para o fundo do olho e desaparece por trás da parte inferior do aro do buraco que agora parece negro.

Katherine, muito devagar, retira a agulha. Com uma gota do óleo de rosas, ela umedece o globo ocular, depois deixa a pálpebra se fechar.

Ela ergue os olhos. E respira.

– Só isso? – Liz pergunta.

– Para este olho – ela diz.

– E funcionou?

– Creio que sim.

– Pelas barbas de Cristo! – Liz exclama, e logo se endireita porque podem ouvir cascos de cavalo se aproximando no caminho distante e, instantes depois, William e Robert retornam, Borthwick e o falcoeiro seguindo-os. Os quatro homens param, lado a lado, olhando fixamente para elas, em silêncio.


15


Onde ele está? Onde ele está?

– Flood! Flood, seu idiota!

Mas se existe algum sinal dele, é impossível ver. Flood apoderou-se de seu machado de guerra e saiu correndo, colina abaixo, com o resto dos homens de Pembroke. Agora, ali está Thomas, parado no alto da colina, suando por seus esforços, mal armado e com a pouca proteção da armadura incompleta, transformando-se em um alvo ostensivo para qualquer arqueiro arrojado dos campos do outro lado do rio ou ao pé da colina.

– Temos que descer – ele diz a Brunt.

– De jeito nenhum – Brunt discorda.

Nenhum deles está com armadura suficiente para este tipo de peleja. Os casacos e meias-calças de lã dos arqueiros são quase inúteis onde há martelos, adagas e alabardas.

– Deixe-o – O’Driscoll avisa. – Ele não está se divertindo? Este não é o melhor momento de sua vida?

– Eu prometi a Hastings – Thomas lhes diz.

– Ele compreenderia. – Caldwell fala com segurança. – E se ele quisesse que fôssemos lá embaixo e lutássemos, teria nos dado mais do que isto. – Ele bate os nós dos dedos em seu elmo.

Thomas não tem tanta certeza. Não quer ir lá embaixo, quanto a isso não há dúvida. Ele se vira e juntos os homens observam a luta ao pé da colina. O sol se levanta, a névoa está recuando para o rio, e assim a visão deles fica ainda mais nítida. Ao que parece, os dois lados estão empatados, mas é difícil julgar. Pembroke agiu corretamente, saindo da colina quando o fez, Thomas pensa. Neutralizou os arqueiros de Robin de Redesdale, que os teriam massacrado se tivessem permanecido ali em cima, e ele se aproveitou do ímpeto conforme seus homens se arremeteram encosta abaixo para colidir com a linha de Redesdale.

Ainda assim, Thomas começa a recolher todos os seus apetrechos e vê que os outros estão fazendo o mesmo. Se a batalha se voltar contra Pembroke, eles têm que partir e depressa.

Mas e quanto a Flood?

– Consegue vê-lo? – ele pergunta.

Simplesmente não é possível. Há uma multidão de homens, de costas, as linhas escuras de suas armas erguendo-se e abaixando-se, espetando e talhando os outros homens da multidão, os rostos voltados para eles, mas ocultos pelos elmos, as linhas escuras de suas armas cruzando-se com as dos homens de Pembroke. Não é possível ver nenhuma luta individual ou nenhum combate em particular: tudo se resume em um único embate atritado e terrível quando se pensa no que os homens naquelas fileiras estão enfrentando e no que estão fazendo. A linha oscila, se dobra e se comprime. Homens feridos caem da retaguarda e saem rolando, segurando partes de seus corpos, em geral o rosto. Alguns têm que ser arrastados para fora do combate, enquanto outros são simplesmente deixados onde quer que desabem, talvez já mortos.

Thomas vê um grupo de homens de Redesdale correndo por trás das costas de seus próprios companheiros. Há talvez uns trinta deles – homens de algum senhor de terras – e estão vindo para tentar flanquear a linha de Pembroke embaixo de onde ele e Brunt estão. A luta está tão próxima que algo assim vai virar a situação irreversivelmente a favor de Redesdale. E lá está ele! Flood! Thomas tem certeza. Ele está no flanco direito. Precisamente para onde esses trinta homens estão apontando suas armas agora.

– Oh, Jesus Cristo – Thomas diz. – Venham!

Ele começa a descer a encosta, mas para e deixa seu machado de guerra de lado. Pega uma flecha que um dos arqueiros de Robin de Redesdale lançou, a encaixa e mira cuidadosamente com o primeiro levantamento de seu arco, depois atira com o segundo movimento, lançando a seta, que zune declive abaixo, passando a trinta centímetros acima da cabeça de Flood. Ela estala no rosto do homem que está diante dele, derrubando-o e fazendo-o rolar pelo chão.

– Ha! – Brunt diz. – Você é o anjo da guarda dele.

Ele também pega uma flecha e a atira encosta abaixo.

– Jesus, é um idiota, esse garoto – O’Driscoll diz –, mas é impossível deixar de gostar dele, hein?

A menos que acabe causando a morte de todos nós, Thomas pensa.

Mas ele é grato pela presença dos outros. Cata mais três flechas e as enfia no cinto, às suas costas. Depois começa a descer, em meio ao capim alto. O cheiro de homens lutando chega até ele: o travo metálico de sangue, o odor de cebola no suor, do vinagre que usam para limpar suas armaduras, da lã molhada e do aço lascado, e o bafejo fecal. Graças a Deus eles não têm...

O primeiro tiro de artilharia eclode com um estrondo ensurdecedor. Uma nuvem de fumaça eleva-se nas fileiras e a linha de batalha repentinamente se abre e se desfaz. Naquele momento suspenso no ar, quando os homens param de se digladiar uns com os outros, Thomas ouve os primeiros urros de dor. Então, o barulho recomeça, como uma grande onda quebrando-se nos cascalhos da praia. Ele encontra outra flecha, aponta e atira. Flood está a apenas cinquenta passos, brandindo o seu machado, tentando achar alguém para golpear. Thomas para e se prepara para os homens que estão vindo pela lateral, quando uma flecha passa zunindo junto ao seu nariz, vinda dos arqueiros nas árvores à direita.

– Pelo sangue de Cristo! – Ele havia se esquecido deles.

Então, uma bala de canhão disparada do meio das árvores atinge O’Driscoll e o lança a distância, rolando pela grama. Ele fica deitado de rosto para baixo, como se tivesse sido esfregado na terra, e ele se debate e se contorce. Eles param para olhar para o amigo, mas não há nada que possam fazer.

Brunt e Caldwell viram-se e correm, de volta encosta acima.

Thomas grita às costas deles, mas eles continuam subindo. Outra flecha passa zunindo junto ao seu rosto. Ele entende que é como um pato parado na água. É surpreendente que não o tenham atingido ainda. Ele corre colina abaixo aos saltos e se lança na linha de batalha. Ali, grita aos homens para que se virem para a direita, de frente para os arqueiros e os inimigos que tentam flanqueá-los, mas eles estão tão envolvidos em suas próprias refregas, dominados pelo desejo de ao menos acertar um golpe em um inimigo, que ainda acham que estão na frente. Thomas tem que puxá-los pelo peitoral, pelas tiras dos ombros, tem que gritar em seus rostos, mas os olhos deles só se concentram na frente de batalha, de onde vem o fragor de armas em combate. Então, ele vê Flood cair. Não vê o que o atingiu, somente que foi derrubado para trás. Ele o vê levantar a mão, como se fosse parar um torneio, como se estivesse se rendendo no pátio de justas, mas não é assim que funciona na batalha. Alguém vai matá-lo a qualquer momento. Uma alabarda de lâmina grossa no rosto desprevenido. Uma adaga na virilha. Ou será simplesmente espancado até a morte.

Thomas tem que agir rápido agora ou sua louca descida para salvar Flood terá sido em vão, e até mesmo suicida. Invade a linha onde os homens lutam sobre o corpo inerte de Flood e ele continua lá, deitado, com a mão erguida, sem esperar ser morto como qualquer outro homem poderia ser, mas esperando ser salvo. Esperando ser retirado dali. Um homem pisa nele para poder melhor golpear seu inimigo e Thomas pensa que se Flood agarrar o tornozelo do homem, o homem o matará.

Thomas abre caminho à força. Ele é um tolo! Um tolo! Nem sequer tem luvas. Atravessa a cena de luta em diagonal e alcança Flood exatamente quando ele agarra o tornozelo do homem que está pisando nele. O homem olha para baixo e está prestes a perfurá-lo com o gancho de sua arma quando é golpeado por outro atacante. Thomas o empurra para a frente, bloqueando as alabardas e espadas que se agitam e atacam, e arrasta Flood para longe dos pés que se movimentam como se estivesse resgatando um boneco.

Ele vai tirando os homens de sua frente aos golpes e empurrões, puxando Flood atrás de si. Os homens chutam e empurram Flood, mas Thomas finalmente consegue tirá-lo da linha de batalha, onde há espaço. Ele arrasta o peso morto do corpo de Flood, deslizando-o pelo capim longo e molhado. Cinco, dez, quinze passos.

Então, ele para. Vira Flood de costas e ergue seu visor. Os olhos do rapaz estão fechados, mas ele está respirando. Thomas verifica sua armadura para ver se há algum dano visível. Há uma mossa em seu elmo. Qual a gravidade? Thomas não sabe. Ele começa a tirar a armadura. Desafivela o gorjal, atira-o para o lado, corta a tira que prende o elmo sob o queixo, desliza a faca pelo couro e por alguns pontos do peitoral e corta todas as demais amarras. Atira fora as várias placas de metal com um distante pesar pelo desperdício. Alguém vai se dar bem hoje, mas não será ele. Quando deixa Flood apenas com seu casaco acolchoado, ele o levanta e o coloca sobre o ombro. Thomas abandona seu arco com um grande remorso, mas não deixa o machado de guerra. Ele se levanta. Cristo. Flood é pesado.

Com um último olhar para a luta, ele começa a subir a colina. Deve haver alguém lá em cima – um cirurgião – para examiná-lo. Mas não há sangue, então o que um cirurgião vai dizer? Por Deus, ele é muito pesado. Imagine-o em sua armadura! Thomas recebe uma espécie de misericórdia dos arqueiros e dos artilheiros por trás das árvores, que desviaram sua atenção para outro lugar, talvez, ou são ingleses cristãos. Então, ele vê que Brunt e Caldwell pararam acima dele e estão lançando flechas zunindo para o meio das árvores para impedir que os arqueiros mirem em sua direção. O suor faz seus olhos arderem. Quisera não estar usando este maldito elmo. Vamos, ele diz a si mesmo. Vamos. Só mais alguns passos. Uma flecha passa zumbindo por ele.

– Brunt! – ele grita.

Brunt atira uma flecha acima de sua cabeça, Caldwell dá um grito de empolgação e atira a dele. Eles catam flechas perdidas na grama e estão correndo perigo. Ao menos, têm a decência de parecerem envergonhados com sua covardia, ou cautela, e quando Thomas se aproxima deles, abandonam sua busca por flechas de segunda mão e descem correndo para ajudar.

– Que idiota ele é!

– Está vivo?

Thomas deixa Flood escorregar para o chão e fica parado, ofegante. Caldwell dá uns tapas nas faces pálidas do rapaz.

– Vamos, seu desgraçado maluco, acorde.

– Deixe-o um pouco – Brunt diz. – Ele vai despertar.

Eles ficam parados acima de Flood e olham por cima de seu corpo para a luta que continua a se desenrolar lá embaixo. Já está em andamento há talvez meia hora. O sol está alto, a neblina se evaporou, o dia está excelente agora.

– Esse lugar aqui é muito bonito – Brunt diz.

Caldwell parece concordar.

Ao pé da colina, os homens de Pembroke parecem estar em vantagem. Mas ainda é mínima e Thomas sabe que quando situações como essa viram, elas viram muito rapidamente, e as forças de Robin de Redesdale – que estão na estrada há semanas e são compostas das mais diferentes unidades familiares e associações – devem estar cansadas e são menos unidas. O único fator a mantê-los juntos quando chegar a hora será o desespero e a vontade de viver.

E agora, enquanto estão ali observando, Thomas vê que os homens de Redesdale recuaram. Repentinamente, vê-se uma ampla dispersão deles. Alguns foram feridos e estão se dirigindo à retaguarda, mas pequenos grupos de não feridos estão se desgarrando das linhas e os que deveriam estar se unindo à elas se mostram hesitantes, como se estivessem avaliando a situação, e pode ser que logo eles tentem fugir dali.

– Onde estão todos os malditos arqueiros que Devon prometeu? – Caldwell pergunta. – Quando chegarem aqui vai ser um massacre! Como Towton! – Ele continua atirando flechas em direção às árvores. Está tentando vingar O’Driscoll.

Flood resmunga.

– Ah! – Brunt diz. – Ele está vivo!

– É melhor ficar de olho nele – Caldwell sugere. – Ele vai fugir lá para baixo para tentar a sorte outra vez.

Há uma espécie de atmosfera de dia de festa no alto da colina. Não se assemelha a nenhuma outra batalha que Thomas já tenha vivenciado. Ele se lembra de apenas duas – em ambas ele estava do lado perdedor e foi obrigado a fugir. Nesta parece que vai estar do lado vencedor e não pode deixar de ficar satisfeito. Ele se pergunta se, de algum modo, terá algum benefício. Os despojos de guerra são tradicionalmente divididos em terços. Mas sob qual comando ele está?

É algo sobre o qual Brunt e Caldwell também estão preocupados, quando há uma agitação no topo da colina, onde os homens gritam e apontam para leste, para um ponto atrás da linha fraturada de Redesdale.

– Lá vem ele! – Caldwell grita. – Devon, finalmente!

– Agora vamos nos divertir – Brunt diz.

– Mas por que ele está vindo daquela direção? – Thomas se pergunta. – Disseram que estava ao sul daqui.

– Ele deve ter dado a volta – Brunt diz.

– Está vindo bem por trás deles! – Caldwell diz, rindo. – Verdade de Deus! Isto vai ser um massacre!

Mas os homens no alto da colina não estão comemorando. Estão jogando fora seus pertences e correndo para seus cavalos. As barracas são abandonadas.

– O que é isso? – Caldwell pergunta, parando no ato de preparar o arco.

Então, eles ouvem que não se trata de Devon.

É Warwick.

E assim o dia muda.

– Aqueles desgraçados de Kent! – Brunt grita. – Por Cristo! Vamos, Thomas, já fizemos tudo que podíamos aqui.

A notícia se espalha rapidamente colina abaixo até os homens que ainda estão lutando, pressionando os de Robin de Redesdale de volta por cima da ponte, homens que achavam que estavam vencendo uma batalha. Com a difusão da notícia, o espaço também se abre, porque os que estão na retaguarda já não pressionam os que estão no front do pequeno exército: eles se viraram e agora correm encosta acima, despojando-se de tudo de que não precisam imediatamente. Elmos e armas de haste primeiro. Os homens mantêm apenas o mínimo para sobrevivência. Há os empurrões, os escorregões e os tombos de sempre. Estão aterrorizados. Novamente, o mais forte tira o mais fraco da frente, da mesma forma que haviam feito para chegar ao local da luta lá embaixo.

E as aclamações! O exército de Robin de Redesdale também ouviu a notícia, e agora os que estão na retaguarda, considerando suas opções e esperando se misturar e fugir do confronto, se sentem revitalizados para a luta e avançam, pressionando por trás dos que estão na ponte. O barulho chega até Thomas em grandes ondas conforme gritam: “Warwick! Warwick!”

Agora os homens estão passando por eles a toda a velocidade. A obstrução da ponte foi desfeita e os homens de Robin de Redesdale entraram no campo de batalha outra vez, golpeando todos que conseguem alcançar. Um grupo está travando uma luta – homens de Pembroke, Thomas tem que supor –, mas os flancos se desmantelaram, a retaguarda desapareceu e o diabo está à vontade para levar o que ficar por último.

– Venham – ele diz. – Me ajudem.

Eles colocam Flood de pé, mas de nada adianta. Está completamente inerte.

– Deixe-o – Brunt diz.

– Ou mate-o agora – Caldwell sugere.

Thomas corta as amarras das últimas placas da armadura e arranca seu casaco acolchoado e sua meia-calça, que cairá de qualquer modo sem ele, de modo que fica de calção de baixo e camisa.

– Me encarrego do primeiro turno – Thomas diz.

Brunt e Caldwell trocam um olhar antes de concordarem. Brunt segura o machado de guerra de Thomas. Thomas ergue Flood e o coloca nos ombros, depois começa a subir a colina, vacilando, para chegar ao cume e seguir adiante. Não tem nenhum destino em mente, apenas qualquer lugar longe dos homens de Robin de Redesdale. Ele imagina que subirão a colina atrás deles, cortando o tendão de qualquer um que ainda esteja correndo ou lançarão flechas, derrubando-os como peças de boliche. Por um instante, fica satisfeito de ter o peso de Flood sobre os ombros, oferecendo ao menos alguma proteção.

Eles ultrapassam o cume do monte – o momento mais perigoso, quando se tornam silhuetas para arqueiros atingirem – e começam a descer a ensolarada encosta sul. Por um instante, a descida é mais fácil. Mas logo o peso de Flood só parece aumentar.

– Deixe-o, Thomas – Brunt grita mais abaixo do declive. – Não vão matá-lo.

Mas podem, sim, matá-lo, e assim Thomas prossegue, cambaleando, enterrando os calcanhares na relva encharcada, as solas lisas de suas botas escorregando e deslizando na aquecida grama de verão. Ao sopé da colina, eles param. Muitos homens os seguem desde o cume do monte, todos correndo para o sul, deixando um rastro de placas de armadura, armas e roupas manchadas de sangue descartadas, como se fossem destroços de uma inundação. Alguns estão feridos, agarrando os braços ou o rosto, tropeçando e cambaleando. Um deles cai e fica lá deitado, tremendo. Thomas passa por cima dele.

Há um pequeno riacho à esquerda que os tirará do caminho trilhado pelos remanescentes de Pembroke em fuga.

– Por aqui – Thomas diz.

Eles o seguem, mantendo-se sob o abrigo das árvores. O riacho os leva mais para leste, para longe do resto do exército. Serão seguidos? Só podem rezar para que não sejam. Flood está muito pesado agora.

– O que há de errado com ele? – Caldwell pergunta. Ele se recusa a carregá-lo. Brunt se mostra relutante. Thomas se pergunta se já se afastaram o suficiente para poderem descansar. Precisa disso, de qualquer modo. Não ouvem mais nenhum grito nem aqueles assustadores embates de armas. Somente pássaros nos espinheiros e o gorgolejar suave do riacho embaixo. Ele coloca Flood apoiado contra um robusto tronco de carvalho, à sombra, e em seguida abre caminho através das árvores espinhosas e raquíticas até o riacho, onde a água flui doce e pura. Ele bebe, depois enche seu chapéu e o leva de volta até Flood. O rapaz continua inconsciente. Thomas tateia pelo seu couro cabeludo, mas não encontra nada errado além de um calombo no lugar da pancada. Cristo, gostaria que Katherine estivesse ali, em vez de Brunt e Caldwell. Despeja um pouco de água nos lábios de Flood. Ele os move querendo mais e Thomas toma isso como um bom sinal.

– Para onde estamos indo, Thomas? – Brunt pergunta.

– Não sei. Mas se seguirmos este riacho, chegaremos a algum lugar. Talvez possamos arranjar um cavalo, não?

– Para ele?

– Por que não?

– Por que não para nós? Corremos o mesmo risco de sermos mortos.

– Caldwell, eu mesmo o matarei, agora, se você continuar a falar. Pelo amor de Deus, quer voltar para Hastings com um garoto morto?

– Eu preferia nem voltar – Caldwell diz. – Se Pembroke for derrotado, quanto tempo vai levar até se voltarem sobre o rei Eduardo, Hastings e todos os outros?

– E ele está nos atrasando! – Brunt diz. – Vamos! Todos nós seremos apanhados com ele assim. Vão vir e nos trucidar em pedacinhos. Vamos deixá-lo aí.

Thomas sabe que eles têm razão. Mas como vai viver consigo mesmo se fizer isso?

– Vocês vão, então – ele lhes diz. – Estou farto de suas lamúrias.

Ele não sabe ao certo o que espera que façam, mas eles se entreolham e balançam a cabeça, e talvez Brunt vá dizer alguma coisa, alguma admissão de vergonha, mas Thomas sacode a cabeça. Ele não quer ouvir. Assim, eles deixam o abrigo das árvores e começam a atravessar o campo correndo em direção ao sul.

Thomas observa-os partir. Eles parecem o tipo de homens que seriam capazes de roubar uma sepultura. Enquanto observa, quatro cavaleiros de uniforme vermelho arremetem-se pelo campo com todo o ímpeto. Cada qual possui uma lança longa – um pique – e quando Brunt e Caldwell os veem, eles começam a correr, mas estão no meio do campo e não há nenhum lugar onde se esconder. O primeiro cavaleiro alcança Caldwell e o perfura tão profundamente que a lança é arrancada das mãos do cavaleiro e Caldwell é atirado ao chão. Um dos outros cavaleiros não acerta Brunt, mas ele tropeça, e quando está de volta sobre os pés e correndo para a cerca viva, outro cavaleiro o alcança e o derruba com um martelo de guerra na parte de trás de sua cabeça. Só foi necessário o tempo que uma flecha leva para voar trezentos passos e agora ambos estão mortos.

Thomas permanece imóvel.

Um dos cavaleiros volta e desmonta para recuperar sua lança. O outro, o que brandia o martelo, nem sequer se dá ao trabalho de desmontar. Faz seu cavalo dar meia-volta e olha para o corpo de Brunt de cima de sua sela. Em seguida, olha para a ponta aguçada do martelo, para ver se por acaso foi danificada. Em seguida, ele a mostra para um dos outros cavaleiros e a risada deles chega até Thomas em seu esconderijo. O segundo desses dois cavaleiros imita o golpe do primeiro. E novamente a risada. O terceiro se une a eles e sacode o primeiro pela mão, parabenizando-o. Eles andam um pouco por ali, olhando Brunt morrer, e depois, quando já está morto e não resta mais nada a fazer ali, eles vão embora.

Thomas os observa enquanto se afastam e não sente absolutamente nada.


16


Na manhã seguinte, Thomas é acordado por um grande porco vermelho. Ele estava exausto na noite anterior, tendo caminhado o dia inteiro com Flood nos ombros e, na falta de um abrigo melhor, cambaleou para fora da trilha, deitou-se e cobriu a si mesmo e a Flood com folhas, e agora este porco veio desenterrar castanhas.

Thomas enxota o animal e volta-se para Flood.

Seus olhos estão abertos.

– Graças a Deus – Thomas diz.

Flood lhe pergunta onde estão. Thomas não sabe.

– Pode se mover? – ele pergunta.

Flood ergue uma das mãos.

– Vamos, então – Thomas lhe diz. – É melhor irmos andando.

– Para onde estamos indo?

– Para Nottingham, imagino. Onde quer que o rei Eduardo esteja.

Flood balança a cabeça e em seguida solta um gemido. Pergunta o que aconteceu e onde estão Brunt e Caldwell.

Thomas conta a ele sobre a chegada do exército do conde de Warwick derrotando o de Pembroke, e sobre Brunt e Caldwell terem sido mortos.

Flood fica melancólico.

– Mandarei rezar missas por suas almas – ele diz.

– Eles vão precisar de suas preces – Thomas comenta.

Flood tenta se levantar muito lentamente.

– Meu Deus, isso dói – ele diz.

Ele mal consegue andar de tanta dor. Eles conseguem dar alguns passos, o braço de Flood apoiado no ombro de Thomas, mas após alguns instantes, ouvem cavalos na trilha através das árvores e ficam imóveis. O porco continua fuçando por ali. Em seguida, os cavalos se afastam. Eles se entreolham.

– Silenciosamente, então – Thomas diz. A cada passo, Flood suspira, ofegante de dor, e mal deram trinta passos, quando ouvem os cavalos outra vez. Uma voz alta. Alguém está reclamando. Não há outra coisa a fazer: Thomas levanta Flood e parte pelo meio das árvores em uma corrida lenta.

Flood geme constantemente.

– Preferia que você ainda estivesse inconsciente – Thomas lhe diz.

– Eu também – Flood concorda.

Mas qual é seu plano? Não faz a menor ideia. Fugir. Os cavaleiros não o perseguem. Ele mantém o riacho à sua esquerda. O riacho dá voltas e Thomas atravessa os campos para cortar caminho. Finalmente, pouco antes do meio-dia, chegam a um rio. Não é particularmente largo ou de correnteza, mas é uma boa barreira.

– Podemos atravessá-lo? – Flood pergunta.

Thomas está exausto. Não sabe se será capaz de atravessá-lo, quanto mais carregar Flood até a outra margem. Mas tem que fazer alguma coisa. Ele se volta para o rio abaixo, na direção nordeste. Flood começa a lhe fazer perguntas. Sobre onde foi criado. Quem é o seu povo. Se ele já esteve em Londres. Calais. A que distância consegue atirar uma flecha.

– Por favor, Flood – Thomas diz. – Já chega.

Flood se desculpa. Ele lhe conta sobre sua infância em um lugar do qual Thomas nunca ouviu falar e como ele e Maude ficaram noivos quando tinham seis anos, mas na época se detestavam. Diz a Thomas que ele iria gostar de Maude e que ela gostaria dele. Pergunta se ele é casado e como é Katherine. Thomas se pergunta o que ela pensaria de Flood e se vê rindo. Após alguns instantes, a risada se desvanece e ele deseja que não estivesse trilhando aquela maldita margem de rio, carregando um homem nos ombros, e deseja que estivesse de volta a Marton, com Katherine e Rufus, e que sir John ainda fosse vivo e seu cão Lurcher também estivesse lá.

– Anime-se, Thomas – Flood diz. – Olhe, um barco.

Thomas quase deixa Flood cair. Lá, entre os juncos, amarrado a um toco ressequido, está um barco de fundo chato usado pelos fazendeiros.

– Vamos, então – Thomas diz. Ele pega Flood outra vez e o ajuda a entrar no barco. Está velho e quebradiço, as tábuas esbranquiçadas com fungos ou algo assim, e há uma porção de água cor de cerveja no fundo, mas ele não afunda.

– Não há nada para remar – Flood se queixa.

– Eu tenho isto – Thomas diz, e ele desamarra a corda, entra no barco e o empurra usando o cabo do machado de guerra. Flood deita-se em uma das extremidades do barco, Thomas fica na outra ponta.

– Como você veio a servir lorde Hastings? – Flood pergunta.

Thomas informa que simplesmente aconteceu.

Flood lhe diz que acha que lorde Hastings pode ser seu pai.

Thomas já imaginara.

– Ele é um bom homem – ele diz a Flood.

A correnteza não é forte. Eles vagueiam pelas curvas largas e pelas águas vagarosas do rio, depois aceleram quando deslizam por margens apertadas. Chegam a outro vilarejo e deslizam diretamente por cima da parte rasa do rio, vigiada por três garotos. Não há nenhum sinal de cavaleiros e tudo parece comum e rotineiro.

– De quem você acha que é este barco? – Flood pergunta. – Devíamos ter lhes deixado alguma coisa.

– Como o quê, por exemplo?

Ele fica em silêncio por alguns instantes.

– Onde você acha que iremos parar? – ele pergunta, então.

Thomas olha à volta. Já passa bastante de meio-dia e ele imagina que o rio esteja fluindo em uma grande volta, mas ainda parece estar levando-os para nordeste, embora muito devagar. Ele dá de ombros.

– Não sei – ele diz. – Desde que não seja em direção a Warwick ou Redesdale.

Ele pensa em Brunt e Caldwell, que lutaram pela própria vida para acabarem mortos em um campo lamacento. Seria esse o plano de Deus para eles ou eles eram parte de Seu plano para os homens que os mataram? Alguma coisa virá daquilo que aqueles piqueiros fizeram naquele dia? Um deles sentirá remorso, digamos, e deixará de matar uma outra pessoa que depois irá fundar uma capela? Construir uma ponte? Será isso?

E quanto a Jack, Nettie e John Stump? Agora que Warwick venceu esta batalha, o que vai acontecer com eles? Ele pensa em cada um individualmente: em Jack, a quem falhou não por sua própria causa, e em Nettie, que pode estar dando à luz naquele exato momento em que ele está ali sentado, e pensa em John Stump, que queria atravessar o Canal da Mancha para lutar ao lado do duque de Borgonha, mas que agora jamais terá essa chance. Ele vê que já perdeu a esperança de ver seu plano dar certo. Vê que desistiu deles e que eles já estão, em sua mente, mortos.

Mas de repente ele para de pensar assim e senta-se direito. Está vendo a questão de maneira errada. Está olhando para ela, percebe, como se eles tivessem ido passivamente para as suas mortes, quando não é este o caso. Se estiverem mortos, é porque foram assassinados. Assassinados por Edmund Riven.

Cristo! Os males pelos quais é preciso fazer esse homem pagar!

Por um instante, ele se permite ser tomado por uma raiva assassina, e imagina a si mesmo repetindo ao filho o que ele fez ao pai – com aquele mesmo machado de guerra. Após algum tempo, a desesperança de sua situação o acalma. Não há nada, absolutamente nada, que ele possa fazer enquanto estiver preso naquele barco, naquelas águas, com Flood.

Thomas tenta se manter vigilante. Os piqueiros de Warwick podem estar em qualquer lugar, mas ele está cansado. Seus olhos estão se fechando. Ele acorda Flood, que por um instante não o reconhece, e tenta saltar do barco.

Quando se acalma novamente, Thomas lhe diz que ele tem que ficar de vigia.

– Se algum cavaleiro aparecer, você me acorda – diz ao rapaz.

Flood balança a cabeça, assentindo. Após algum tempo, Thomas encontra uma posição confortável com os pés para fora da água no fundo do barco, e adormece. Quando acorda, Flood também está dormindo e eles estão presos em águas rasas embaixo de um salgueiro, onde o cheiro da lama do rio e de raposa se mistura com um efeito esmagador, e a luz é de um verde sombreado. Ele separa as folhagens e vê que entraram em um lago amplo. Há vestígios de fazendas de enguias projetando-se acima das águas e, do outro lado, onde densas nuvens de insetos giram no ar úmido e abafado, estão cinco ou seis homens, cortando e enchendo seus barcos com feixes de juncos verdes e frescos até parecer que irão afundar. Thomas observa-os por alguns momentos. Flood acorda.

– Desculpe – ele diz. – Devo ter adormecido.

Ele está melhor agora, embora ainda se queixe quando se move para se juntar a Thomas observando os cortadores de junco.

– Onde é que dói? – Thomas pergunta.

Flood pensa por alguns instantes.

– O único lugar que não dói é aqui – ele diz, apontando para seu braço esquerdo.

– Consegue andar?

– Certamente – ele diz, mas não consegue.

Eles observam os cortadores em seu trabalho por alguns momentos em silêncio.

– Estão ocupados por aqui, hein? – Flood diz.

Thomas resmunga. Está pensando exatamente nisso. Está pensando que devem permanecer onde estão, escondidos pela árvore e prosseguir somente depois que escurecer. Comida e bebida serão um problema, mas... bem, estão em um rio, podem beber a água, e não é como se já não tivessem passado fome antes. Ele fecha os olhos outra vez e é acordado, quando o sol se põe, por Flood cantando uma canção sobre cerveja. Ele não quer nenhuma torta, nenhum carneiro ensopado, somente uma boa cerveja trazida para ele e seus amigos, e a quer agora. Ele possui uma bela voz.

Quando fica completamente escuro, com uma lua crescente ainda muito fina sorrindo acima das copas dos salgueiros, Thomas os empurra para fora do lago para tentar encontrar a corrente preguiçosa que serpenteia através do lago. Este é tão raso que Thomas pode usar o cabo do machado para empurrá-los pelas águas, mas a corrente é enganosa e é difícil ver para onde devem se direcionar. Frequentemente, seu caminho é bloqueado pelas bordas de um banco compacto de juncos e eles têm que refazer seus passos. Após um longo tempo, Thomas desiste. Ele tira as botas, gibão e meia-calça, e se lança na água fria, até à cintura, e assim conduz o barco, os dedos dos pés na lama e nas raízes.

Flood está, de forma tocante e inutilmente, preocupado com ele.

Por fim, Thomas encontra a saída do rio. A esta altura, seus dentes estão batendo e ele está congelado até a medula. Sobe para o barco outra vez e começa a se enxugar com força, enquanto o barco é levado pelo meio dos bancos de juncos para dentro de um canal estreito entre mais dois salgueiros. Ele se veste. Não é fácil no escuro e em um barco. Depois que está seco e um pouco mais aquecido, ele percebe que está realmente faminto.

– É como a quaresma em um único dia – Flood concorda.

Eles se deixam levar pela corrente durante toda a noite, até que o canto dos pássaros começa e a aurora emerge com uma luminescência pálida, e em seguida com um belo clarão magenta e prata, à frente e ligeiramente para a direita, de modo que eles sabem que ainda estão indo para nordeste. Thomas imagina que logo eles deverão buscar um lugar para passar as horas do dia, mas, por outro lado, pensa que certamente eles já foram bem longe. O rio continua deserto naquela hora do dia. Sua superfície verde é oleosa e lisa, mas conforme o sol se levanta, ela começa a cintilar. Dois cisnes passam deslizando suavemente. Seus filhotes, ainda cinzentos e felpudos, seguem em fila. Thomas pensa em Katherine e Rufus. Sua fome está corroendo seu estômago. Flood também parece pálido e constantemente lambe os lábios.

Eles fazem suas orações.

Então, avistam uma ponte, a primeira que encontram. Onde há uma ponte, haverá alguém para cobrar pedágio, tanto para atravessá-la, quanto para passar por baixo dela, e onde há alguém para cobrar o pedágio, há uma vila.

– Temos que encontrar alguma coisa para comer – Thomas diz a Flood.

– Cristo, sim – Flood concorda. – Eu poderia matar por uma tigela de sopa, sabe? Com um bom pão branco? E cerveja. Ou vinho. E talvez um coelho, assado? Ou mesmo uma galinhola? Dois de cada, talvez?

Thomas finca seu machado na água e o usa como um leme para direcionar o barco para a margem norte, onde há até mesmo um pequeno cais. Ele encosta o barco e salta. Ele o amarra e ajuda Flood. O rapaz está melhor, mas duas noites ao relento não ajudaram o que quer que o aflige e ele ainda está muito hesitante. Thomas passa o braço ao seu redor e eles vão andando tropegamente pelo cais e pelo caminho entre faixas de terra lavrada. Há uma névoa e, do outro lado de mais terrenos públicos, onde uma única vaca de chifres longos está pastando, vê-se um agrupamento de construções baixas, de pedra, reunidas sob a ponta de uma torre de igreja.

Um garoto grita para eles não se aproximarem muito da vaca. Ela é capaz de atacá-los.

– Onde estamos? – Thomas pergunta.

– Olney – o garoto responde.

– A que distância estamos de Nottingham?

– Nottingham? Onde fica isso?

Os sinos da igreja tocam do leste.

– Pode nos arranjar um pouco de comida? – Flood pede. – Viemos de longe.

O menino que cuida da vaca ri.

– Não tem muito disso por aqui agora.

– Por que não?

– Por que não? O exército do rei levou tudo, não foi? Tudo que não estava escondido foi para seus estômagos. Os desgraçados levaram o resto das minhas vacas. Só a deixaram porque ela estava sendo muito difícil de controlar.

Thomas olha para a vaca. Ele a teria matado com uma única flecha. Ainda poderia, tal é a sua fome. Mas ele não tem mais um arco.

– Quando o rei passou por aqui? – ele pergunta ao garoto.

O garoto diz com sarcasmo:

– Ainda está aqui. Apoderou-se da estalagem.

Ele faz um movimento com a cabeça indicando o vilarejo. Thomas só pode acreditar que o garoto está mentindo ou está louco. Flood fica sem fala, desta vez.

Eles deixam o garoto e se dirigem à igreja. Nenhum dos dois diz nada. O rei Eduardo estaria realmente ali?

São parados por dois homens de azul e roxo, com elmos de fenda e alabardas. Homens do rei Eduardo, sem dúvida.

– Esqueceu-se de se vestir? – um deles pergunta.

– Nós acabamos de chegar de... de lá – Thomas lhes diz. – Do conde de Pembroke.

Os guardas acham graça. Acham que Thomas é retardado.

– Oh, claro – diz o mais velho dos dois. – E como ele está?

Thomas é tomado pelo mesmo senso de incredulidade que sentiu quando levou a notícia de que o exército de Robin de Redesdale tinha o triplo do tamanho previsto e estava muito mais perto do que imaginavam.

– Bem, provavelmente já está morto a esta altura.

Os guardas continuam rindo.

– Morto? O que quer dizer?

– Não souberam? – Flood pergunta.

E mais uma vez o choque de incredulidade é o mesmo, e mais uma vez o mesmo processo é repetido, conforme são passados pela cadeia de comando, mas toda vez que contam a história, Thomas vê que eles estão deixando algo em seu rastro: os homens que acabaram de receber as notícias trocam olhares informalmente, sinais de cabeça disfarçados. Conforme ele e Flood são conduzidos de uma sala a outra, de um prédio a outro, deixam um rastro de homens saltando de um lado para o outro, num frenesi de arrumar seus pertences. Ouvem-se as batidas de tampas de arcas sendo fechadas com força. Cavalos são chamados às pressas.

Finalmente, são levados à presença de lorde Hastings, que apossou-se de um quarto em uma hospedaria de pedra à sombra da torre da igreja.

– O que em nome de Deus aconteceu agora? – ele quer saber antes de ver quem são eles. Parece cansado, mas não especialmente irritado, até reconhecê-los. Então, exclama: – Santo Deus!

Ele manda buscar cerveja e pão, enquanto Flood explica sobre a batalha. Ele lhe conta sobre o fato de Devon ter dividido o exército levando seus homens embora, de modo que Pembroke teve que enfrentar arqueiros sem nenhum a seu lado, e como mesmo assim a batalha já estava quase ganha, até a chegada do exército do conde de Warwick. Hastings empalidece e envelhece diante dos olhos deles.

– Isto... é verdade, Thomas? – ele pergunta. – Não é resultado de... de não sei o quê?

Thomas consegue apenas balançar a cabeça, confirmando. Hastings se levanta e se aproxima da janela com passadas largas. Olha para baixo, para o pátio. Agora podem ouvir os cascos de cavalos e os gritos dos homens preparando-se para ir embora.

– E você contou a eles? – ele pergunta, indicando os homens lá embaixo.

– Eles não nos deixariam vir à sua presença se não tivéssemos contado – Flood diz.

Thomas junta-se a Hastings à janela. Abaixo deles, os homens correm de um lado para o outro como formigas. Hastings funga.

– Cristo – exclama. – Onde andaram dormindo?

Um criado chega com uma torta e um pouco de cerveja. Flood parte a torta e passa um pedaço a Thomas. Está incrivelmente deliciosa. A cerveja também.

– O que em nome de Deus diremos ao rei? – Hastings murmura. Ele ainda está à janela, esticando o pescoço para ver a cena abaixo. Thomas percebe que ele está guardando na memória os nomes daqueles que ele vê descartando seus casacos e distintivos do uniforme, empacotando seus pertences e preparando-se para abandonar seu rei.

– Todos eles irão embora? – Thomas pergunta.

– A maioria. Não os culpo. Sem Pembroke ou Devon, não temos nem um quinto do contingente de Warwick.

– Então, acabou?

Hastings balança a cabeça.

– Fomos tolos – ele diz. – Erramos em nosso julgamento a respeito de tudo. Já devíamos ter percebido há mais tempo. Santo Deus. Até mesmo o conselheiro municipal de Londres sabia! Eles proibiram que qualquer arma deixasse a cidade no mês passado. E ainda assim não fizemos nada. Não, não é inteiramente verdade. Encomendamos alguns casacos e saímos em peregrinação. Enquanto isso, Warwick estava reunindo homens e casando sua filha com o maldito duque de Clarence. Ele estava dez, vinte passos à nossa frente. Desgraçado.

– E quanto a você? Você vai embora?

– Não – Hastings diz com um suspiro. – Estou com Eduardo. Tudo que tenho, eu devo a ele. E além do mais, é da família da rainha que Warwick está atrás. Deles e do pobre e velho Pembroke. Ele não é um tipo ruim, realmente, Pembroke. Imagino se ele se rendeu ou foi abatido na refrega.

– Eu não o vi fugir.

– Não. Bem. Para o bem dele, espero que tenha morrido lutando.

– Warwick não faria nada a ele, não é? Ele estava lutando pelo rei.

– Talvez você não conheça bem o milorde de Warwick. Não é alguém capaz de perdoar, esquecer, ou deixar passar. E ele sente que foi desprezado. Portanto...

– E quanto ao rei Eduardo? O que ele fará?

– Bem – Hastings diz –, Warwick provavelmente o colocará na Torre junto com o velho rei Henrique. Ha! Dois reis encarcerados por ele! Como ele vai ficar satisfeito com isso.

– Ele se nomeará rei, então?

Hastings move a cabeça, pensativo.

– Não – conclui. – Ele nem tentaria isso. Não. Deve estar pensando em Jorge, seu novo genro. Se ele puder provar...

Ele para, atingido por um pensamento, e volta-se para Thomas.

– E você tem certeza de que não teve nenhuma sorte com aquela... aquela outra tarefa?

Thomas leva alguns instantes para se lembrar do livro-razão. Ele está satisfeito. Faz sua negativa parecer ainda mais convincente. Enquanto isso, Flood sentou-se junto à lareira e fechou os olhos. Ainda está vestido com seu calção enlameado. Ele consegue parecer ainda mais bonito do que normalmente.

– Obrigado por trazê-lo de volta, Thomas.

Thomas não consegue pensar em nada para dizer em resposta. Não foi nada fácil.

– Posso ir agora? – ele pergunta. – Minha mulher...? – Ele gesticula, como se Hastings certamente pudesse entender sua necessidade de estar com Katherine. Mas Hastings franze a testa.

– Você certamente não vai embora também, não é? – ele pergunta.

– Todo mundo vai.

Hastings balança a cabeça.

– Imagino que sim, mas... alguém tem que ficar.

Thomas sente-se em pânico.

– Não eu, certo? O rei Eduardo... ele tem todos os cavalheiros com ele, não é?

Hastings balança a cabeça para a janela, através da qual pode ver os cavalheiros do rei desertando-o.

Há um barulho à porta.

– William? Pelo amor de Deus, onde estão todos? Estou ouvindo gritos há cerca de uma hora e ainda assim ninguém vem até mim?

É o rei Eduardo. Ele está de camisolão de dormir, parado à porta que dá para o outro aposento. Parece inchado, dissoluto, desgrenhado e afogueado. Seu foco aguça quando se fixa em Thomas.

– Everingham? – ele diz. – O que o traz aqui? Não são mais notícias ruins, não é?

Nesse momento, as palavras abandonam Thomas.

– Lamento dizer que sim, Vossa Graça – Hastings diz, e lhe conta a respeito de Pembroke. O rei Eduardo senta-se ao lado de Flood. Flood não abre os olhos nem quando o rei Eduardo pega sua caneca de cerveja e bebe diretamente dela.

– Pembroke? – o rei Eduardo murmura. – Ele foi... destruído?

Thomas não pode acreditar que seja o primeiro a estar trazendo estas notícias. Então, ele pensa, meu Deus, o exército de Pembroke deve ter sido completamente dizimado se não veio ninguém aqui trazer esta mensagem.

– E quanto a Devon? Onde ele está?

– Nós não o vimos mais – Thomas lhe diz.

Eduardo fica espantado. Ele olha para Hastings.

– Não Devon também, não é?

Hastings mostra-se cauteloso.

– Não ouvimos nada – ele diz. – Ele pode ter chegado tarde demais para ajudar. Isso é possível, Thomas?

Thomas balança a cabeça, confirmando.

– Nesse caso, ele não terá se envolvido, não é? – Hastings continua. É o que ele quer acreditar.

– Você está querendo dizer que ele teria voltado correndo para aquele buraco horrível em que vive? – o rei Eduardo pergunta.

Hastings encolhe os ombros.

– Minehead – ele diz. – Sim, é possível.

Faz-se um longo silêncio. O barulho do lado de fora começa a arrefecer. O rei ergue os olhos.

– Todo mundo se foi? – ele pergunta.

Hastings espreita pela janela outra vez.

– Parece que sim – ele diz.

Cristo, Thomas pensa, ele está testemunhando o colapso do mundo do rei. Este é um homem que até agora tinha uma lista de criados para tomar conta dele enquanto dormia, para preparar suas roupas, para passar uma esponja nele depois de ter defecado. E agora não tem ninguém. Foi traído por seu irmão, seu mais próximo e antigo aliado, e agora todo o seu exército. Quem lhe resta? Apenas Hastings e alguns dos seus homens, e Thomas e Flood. Neste exato instante, o homem que Thomas reconhece como o irmão mais novo do rei Eduardo entra. Ele parece abalado.

– Onde está todo mundo?

– Escafederam-se – diz o rei Eduardo.

Gloucester endireita-se desajeitadamente.

– Oh – exclama.

Faz-se novamente um longo silêncio.

– Ricardo – o rei começa. – Não quero que você perca a calma, mas houve uma espécie de revés. – Ele conta a Gloucester o que aconteceu.

– Por todos os santos – Gloucester exclama. – Nós vamos lutar?

Ele está vermelho, furioso. O rei Eduardo tenta acalmá-lo.

– Sei que você gosta de um desafio, mas acho que deve haver gente demais contra nós para isso – ele diz.

– Então, o que vai ser?

– Então, temos que esperar para ver – ele diz.

Eles não têm que esperar muito. Antes do meio-dia, um grupo de cavaleiros de uniforme vermelho entra no pátio da estalagem. Thomas une-se a Hastings à janela. Um deles exibe uma armadura perfeita, a espada em riste, o visor abaixado. Até mesmo Hastings tem que assoviar em admiração quando o homem desmonta. Ele possui esporas longas, uma clava com rebordos e está todo protegido por uma armadura de aço, mas ainda assim consegue ser elegante ao parar no pátio, erguer os olhos para eles e, em seguida, abrir seu visor. É uma forma de saudação. O rei Eduardo está junto ao ombro de Thomas, também olhando para baixo, e resmunga ao ver de quem se trata.

– Quem é? – Thomas pergunta.

– Sua Graça, o arcebispo de York – diz o rei Eduardo. – Ele veio nos prender.

Ele se volta para a porta e se prepara para o cativeiro.


PARTE QUATRO


Antes e depois da Assunção,
verão de 1469


17


Thomas fica parado com lorde Hastings a cerca de dez metros do rei Eduardo, ligeiramente atrás de seu ombro direito. Chove e eles estão em um lugar conhecido como Gosford Green, onde têm estado desde o amanhecer, parados diante de um cadafalso forrado de palha onde se encontra um tronco de teixo verde. Quando o viram, todos acreditaram que fosse para o rei Eduardo, e Thomas viu o rosto do rei empalidecer, mas o intendente de Warwick, um padre pequeno, gordo e idoso, com orelhas de abano e incapaz de pronunciar a letra R, assegurou-lhes que não era para o rei. Ele sorriu afetadamente, saltitou e riu da ideia, e seu criado ofereceu ao rei um doce e uma caneca de algo que o rei pegou e tomou de um só gole. A mais absoluta ordem foi mantida desde o instante em que o arcebispo de York – que, vieram a saber, era irmão do conde de Warwick – colocou o rei Eduardo sob sua custódia no pátio daquela estalagem em Olney. Joelhos se dobraram, louvores foram esbanjados. Hastings diz que o rei Eduardo tem comido uma comida melhor e bebido um vinho mais fino do que antes de ter sido preso, e o rei Eduardo, agora desobrigado do dever, brincou que o cativeiro tem muito a ser enaltecido.

Mas isto é sombrio.

Há algo estranho no ar e, embora seja final de verão, um vento úmido e tempestuoso sopra do oeste. Há cerca de quinhentos homens de Warwick nas proximidades, todos usando suas cores, bem equipados, dispostos em fileiras, de modo a deixar três lados de um quadrado ao redor do rei Eduardo e do cadafalso. Atrás, há uma grande multidão do povo, esticando o pescoço para ver o que se passa. Há cinco tocadores de tambor na praça que vêm mantendo uma batida baixa e surda há algum tempo, e o rei Eduardo tem que ficar ali de pé, sozinho, aguardando.

Hastings murmura alguma coisa sobre andarem logo com aquilo e, finalmente, vê-se algum movimento: o grupo de execução, liderado por dois padres, um balançando um incensário, e seis soldados, vindos da capela atrás deles. Os tocadores de tambor aceleram o ritmo. Atrás dos seis soldados vêm dois homens sem chapéu, usando apenas gibões bem cortados, meias-calças de boa qualidade e sapatos que parecem pertencer a outro homem.

– Santo Deus – Hastings diz, soltando a respiração.

O rei Eduardo se vira. Ele abre a boca e fecha os olhos, como se não pudesse acreditar no que está vendo. Então, abre os olhos e fecha a boca em uma linha firme e apertada. Seus punhos se cerram como dois martelos. Os soldados mais próximos dele – os mais bem-vestidos, com armaduras polidas sob os casacos do uniforme – movem-se levemente, um movimento quase imperceptível. Portam armas de guerra, é claro. O rei está com roupas comuns e desarmado.

Os dois homens são conduzidos passando por Thomas, em seguida por Hastings e depois pelo rei Eduardo. Um deles é idoso, barrigudo, alguém que teve uma boa vida. O outro tem a idade aproximada de Thomas, só que com os cabelos à moda de guerra. Há uma semelhança de família. Devem ser pai e filho. Cada um olha para o rei Eduardo ao passar. Pode-se ver o pomo de adão de cada um deles subir e descer conforme engolem em seco, e eles acenam com a cabeça para ele e, após um instante de hesitação, ele responde ao cumprimento. Seu rosto inteiro está crispado. Os músculos de seu maxilar flexionam-se sob a pele pálida.

Atrás dos dois condenados vem o carrasco: um sujeito enorme, com braços longos que alcançam seus joelhos e, nas pontas, as mãos de um lutador de luta livre. Ele também usa apenas seu gibão, mas possui um par de finas botas de montaria, de couro, que deve ter trocado com um dos dois homens que está seguindo. Atrás dele vêm mais soldados, todos com as cores de Warwick.

– Quem são? – Thomas pergunta.

– O mais velho é o conde Rivers – Hastings lhe diz. – John Woodville, o mais novo. O pai e o irmão da rainha, respectivamente.

Thomas observa enquanto os dois são levados ao pé do cadafalso, onde um tronco serve de degrau. Os soldados dão um passo para o lado para formar uma estreita passagem pela qual os dois homens devem caminhar. Há um momento em que ambos param. O pai volta-se para o filho. Eles se abraçam, peito contra peito, depois se seguram pelos braços, e há lágrimas nos olhos de ambos quando se separam. O pai vai primeiro: nenhum homem aguentaria ver o filho morrer assim. Há um instante depois que ele para de olhar para o filho, depois de ter subido ao cadafalso, no qual parece não pertencer mais a este mundo, embora ainda esteja nele.

Ele mantém o olhar fixo no cepo e aproxima-se obliquamente. Em seguida, ergue os olhos para o carrasco e quase parece pedir permissão a ele para se aproximar, erguendo a sobrancelha e indicando o cepo com a cabeça. O carrasco também balança a cabeça. O conde Rivers fica de pé acima do cepo, olhando para baixo, para ele, como um homem prestes a saltar de uma grande altura, e respira fundo. Levanta a cabeça e olha à volta, para todos que estão ali reunidos. A expressão de seu rosto é indecifrável. Ele permite que o padre se aproxime e se ajoelha diante dele, repentinamente de modo muito brusco, e aceita a bênção do clérigo, cujo canto abafado é quase inaudível acima do barulho de pés se arrastando e das rajadas de vento. Sem ser visto por ele, o carrasco recuou e pegou o machado de baixo da palha onde estava escondido.

Quando o padre faz o sinal da cruz acima dele, o conde Rivers também se benze e, em seguida, se instala no cepo, virando um pouco a cabeça para maior conforto, de modo que fica olhando para o outro lado do rei Eduardo. O padre recua um passo, afastando-se, e o carrasco age rapidamente: com três passadas rápidas, ele salta pela palha e gira o machado. Há um estalo surdo e um jato de sangue sobre a palha, a multidão prende a respiração coletivamente, mas a cabeça do velho senhor ainda está presa ao pescoço por um feixe de algo retesado, gorduroso e rosado. O carrasco decepa de vez a cabeça com um segundo golpe curto e ela cai na plataforma embaixo. O corpo desliza para trás com um breve estremecimento e o sangue continua a escorrer.

Há um instante de confusão inesperada antes de seis soldados subirem no estrado, deixando o filho sozinho, pegam o corpo pelas suas roupas e o levam para o lado. Sob o cadafalso há um caixão simples de madeira. Um deles o arrasta para fora e eles rolam o corpo do conde Rivers pela borda da plataforma para dentro do caixão. Dobram seus braços e um homem recolhe a cabeça pelos cabelos brancos empapados de vermelho, a coloca junto com o corpo e eles fecham a tampa. Há impressões digitais vermelhas por toda a madeira clara do caixão e o sangue goteja de uma fresta entre duas tábuas.

Vendo o que viu, o filho agora está menos cooperativo e tem que ser empurrado degraus acima. Mais palha é espalhada, mas o cheiro do sangue de seu pai é forte, e John Woodville começa a recuar e desviar a cabeça. Eles amarraram suas mãos. Talvez já soubessem que, quem quer que fosse o segundo, reagiria assim? Ele está fincando os pés no chão, mas a plataforma está escorregadia com a palha molhada de sangue, e seus sapatos escorregam quando dois soldados o empurram para a frente. Eles o colocam parado acima do cepo e têm que forçá-lo a se abaixar e posicionar a cabeça sobre a madeira. Ele resiste até o instante em que é pressionado no sangue de seu pai, e isso, ao que parece, é o que mais o está incomodando, pois quando acontece, e a frente de sua camisa e seu gibão estão sujos, ele para de resistir e, em vez disso, torna-se quase cooperativo demais. Coloca a cabeça em um ângulo igual ao que seu pai colocou e soluça, lágrimas grossas derramando-se de seus olhos. Ignora o padre, que reza acima dele e depois recua um passo para deixar o carrasco posicionar-se. As mãos do executor seguram frouxamente o cabo do machado, mas em seguida apertam-no com força quando ele gira a arma para cima e afunda a lâmina no pescoço até o cepo, deixando um grande fluxo de sangue derramar-se em suas botas novas. A cabeça rola livremente, quicando uma única vez, e o corpo sacode-se com três ou quatro espasmos. O sangue jorra do toco de pescoço na lâmina do machado enterrada no cepo, respingando para trás e para os lados, e todos os soldados e até os padres são manchados por ele.

– Cristo – Hastings murmura.

Depois que os corpos são levados, o grupo do rei Eduardo, que inclui o duque de Gloucester, é escoltado em silêncio de volta a seus cavalos. É onde Thomas supõe que poderá dizer adeus a Hastings e começar a viagem para Marton, pois, dos que foram deixados vivos, é somente o rei que o conde de Warwick insiste em manter refém.

Mas Hastings reluta em deixá-lo partir.

– O rei quer você ao lado dele – Hastings lhe diz.

– Mas eu tenho uma mulher e um filho – Thomas retruca.

– Eu também – Hastings diz. – Ele também tem uma esposa, de qualquer modo, mas olhe, Thomas, Eduardo é o rei. Todos lhe dão o que quer, exceto obviamente o conde de Warwick, que tem outras ideias, e é assim que está arranjado. Ele quer a sua presença. Assim, você está com ele. Ele diz que você lhe dá sorte.

Thomas dá um arremedo de risada. Não trouxe nada além de azar ao rei Eduardo até agora.

– É a Roda da Fortuna, não é? – Hastings continua. – Você estava lá quando ele estava em ascensão, não é? Em Newnham, ele diz, e depois em Northampton e mais tarde em Mortimer’s Cross, quando você salvou o dia outra vez. Ele diz que se mantiver você com ele agora, quando está no fundo do poço, então a subida será muito mais rápida.

– Mas isso não faz sentido – Thomas diz.

– Quer dizer isso a ele você mesmo? Ele ficou muito abalado com aquelas mortes. Gostava do conde Rivers e agora terá que contar à rainha, e à mãe dela, Santo Deus, que o conde de Warwick assassinou seu pai e seu irmão. Não vão gostar disso.

– Mas eu deixei minha mulher em uma situação incerta – Thomas diz a Hastings.

– Incerta! Ora, vamos, Thomas, a sra. Everingham não é alguém para se deixar intimidar por uma pequena incerteza, não é?

– Mesmo assim.

– Mas pense na caçada! Milorde de Gloucester diz que Middleham tem a melhor do país!

– Eu não caço como você... O que foi que disse? Para onde estão nos levando?

– Milorde de Warwick não confia em nos ter sob o mesmo teto aqui – Hastings lhe diz –, então está levando o rei para seu refúgio ao norte, em Middleham, de onde não há possibilidade de fuga e de onde nenhum dos amigos do rei Eduardo será capaz de conspirar para libertá-lo.

Tudo que Hastings diz tem um lampejo de sarcasmo, Thomas pensa. É como se nada daquilo fosse a sério. No entanto, eles acabaram de ver dois homens terem a cabeça decepada.

– Então o rei Eduardo realmente estará no Castelo de Middleham? – Thomas pergunta.

– Sim – Hastings diz. – Você o conhece? Já foi hóspede de milorde de Warwick? Já jantou no grande salão do qual ele tanto se orgulha? Assistiu a alguma missa na capela nova? Ou sentou-se em uma de suas muitas, muitas latrinas?

Hastings ri ironicamente. Então, ele para.

– Thomas, você está bem? Está afogueado. Um desequilíbrio de humores?

Middleham. Onde Jack, Nettie e John Stump ainda estão presos ou onde foram mortos. Santo Deus. O que deve fazer? Se ele for... mas não pode. Ele tem que encontrar Katherine e Rufus. Mas se não for, os outros ainda estiverem vivos e depois forem mortos... como poderá conviver com isso? Como poderá perdoar a si mesmo? E Katherine, o que ela pensaria se ele tivesse voltado para ela, em vez de ir encontrar aqueles amigos que se sacrificaram por ele?

E Riven estará lá também. Edmund Riven.

Thomas sente-se arder. Está febril com tudo aquilo. Seus dedos estão formigando. Ele transmite seu nervoso ao cavalo, que se move inquieto na estrada ao seu lado, puxando a brida.

– Eu vou com você – Thomas declara.

– Esse é o espírito – Hastings diz, mas depois parece envergonhado –, só que eu não estarei lá.

Thomas não consegue acreditar. Com que rapidez ele passou a confiar em Hastings!

– Warwick não o está detendo?

– Não – Hastings responde. – Nem a Gloucester. Estamos tão surpresos quanto você. Acho que milorde de Warwick foi tomado pelos acontecimentos. Por Robin de Redesdale movendo-se tão depressa e depois destruindo Pembroke no campo. Não tinha se preparado para tal sucesso, entende? E a verdade é que ele gosta de mim. Eu sei. Ele me quer do seu lado. O mesmo com Gloucester. Gosta dele também. Quer continuar sendo seu amigo. Ele não é tolo, o velho Warwick, ainda que tenha agido como um neste caso.

Hastings, então, inclina-se para mais perto e mais uma vez assume um tom confidencial. Thomas imediatamente fica ansioso outra vez.

– Além do mais, veja – Hastings murmura –, eu tive notícias daquele agente na França. Que estava procurando o registro, lembra-se? Ele diz que o cerco está se fechando. Reduziu os nomes de seu comerciante a cinco ou seis e eu preciso estar lá quando o momento vier, entende? Isso tem que ser conduzido como se fôssemos um cidadão afogando gatinhos. Nem um pio pode escapar.

Thomas não consegue dizer nada.

– Não fique com essa cara, Thomas, por favor. Não vai demorar muito e, além do mais, eu vou enviar Flood com você.

– Flood?

Thomas gosta de Flood, é claro, mas ele é uma responsabilidade, mais do que um trunfo.

– Sim – Hastings diz. – Temos que afastá-lo de casa. Ele vai ficar angustiado, mas também se apegou a você. Disse que você salvou a vida dele. Portanto, aí está. Nunca mais você vai fazer isso, não é?

Thomas provavelmente não, ele pensa.

– Agora – Hastings continua –, o rei Eduardo. Ele é determinado, é claro, mas não é nenhum tolo. Se... se desenvolver algum plano para se livrar das garras de Warwick, fique de acordo com ele, está bem? Ele forçará os limites sempre que puder, eu sei, mas é o rei, portanto tenha fé nele e sirva-o bem.

Thomas observa Hastings beijar o rei Eduardo em despedida, com algumas palavras sussurradas de encorajamento, e em seguida parte com seus próprios homens com o ar de alguém a quem o diabo devolveu a vida.

Eles cavalgam o dia todo. Cerca de cinquenta homens de Warwick na estrada à frente e cinquenta atrás e, entre eles, o grupo do rei Eduardo, liderado pelo próprio em um cavalo baio, acompanhado por um lorde e vários sirs, que estão ali para entregá-lo são e salvo a Middleham, e um padre sem queixo, que lhe foi enviado pelo arcebispo de York. Thomas e Flood cavalgam lado a lado e, atrás deles, os poucos criados que Warwick lhe permitiu.

– Ao menos, não vamos ter que vesti-lo ou passar a toalhinha molhada nele – Thomas diz a Flood, que o encara como se isso fosse algo a ser lamentado.

São necessários quatro longos dias de marcha regular para atingirem o castelo do conde de Warwick no norte e, durante todo esse tempo, o rei Eduardo mal fala. Não solicita companhia, nem ergue os olhos da cerneira do seu cavalo. Perguntou que direito o conde de Warwick tinha de ordenar as mortes do conde Rivers e de John Woodville, mas ninguém tem uma resposta muito além de que não há nada que se possa fazer sobre isso agora, de qualquer modo. Assim, sua humilhação foi completa e ele cavalga com o queixo enfiado no peito, como o velho rei Henrique deve ter feito depois de sua primeira e segunda capturas, embora o rei Eduardo não tenha buscado consolo nas preces e no jejum. Em vez disso, vem bebendo excessivamente desde Olney, e agora seus olhos estão pesados e sublinhados por olheiras escuras e inchadas.

As terras ao longo do caminho são familiares a Thomas por já ter estado ali com Katherine, e ela está em sua mente quase o tempo todo quando ele não está tentando imaginar o que encontrará quando chegar ao Castelo de Middleham. Hastings pagou para que ele mandasse mensagens a Marton Hall, para dizer a ela que está vivo e bem, onde está e para onde está indo. Também lhe enviou dinheiro, que Hastings lhe deu. Ele é um homem generoso, mas parece sempre surpreso com o fato de Thomas não ter dinheiro próprio, nem nenhum acesso a ele.

Eles não se hospedam em estalagens, nem em monastérios, nem nas margens de estradas como Thomas fez quando viajava no passado, mas em grandiosos castelos de pedra ao longo do caminho. É surpreendente viajar deste modo, sem as dificuldades e incertezas de viagens anteriores, mas cada castelo possui alguma lembrança ou significado ímpar para o rei Eduardo, alguns bons, outros ruins – especialmente em Sandal, onde seu pai foi morto, e depois em York. E em cada lugar, Thomas deve dormir com Flood e o padre sem queixo nos aposentos imediatamente ao lado do ocupado pelo rei Eduardo, que por direito despeja o anfitrião para ficar com a melhor cama, no melhor aposento, de cada castelo. Jovens mulheres às vezes são levadas e trazidas de seu quarto por um camareiro, e há muita comida e bebida, mas, ao que parece, o rei Eduardo apenas bebe, em geral sozinho, e normalmente até tarde da noite.

– Ao menos, eles o estão tratando como um rei – Flood diz. – E neste tempo também está nos tratando bem.

Eles cavalgam de volta pelo vale de Mowbray, seguindo as mesmas estradas que Thomas percorreu com Katherine e Horner. Ele se pergunta o que teria acontecido a Horner. Deseja-lhe sorte, qualquer que seja. Se pensa na promessa que fez de não lutar contra Horner, é com um lamentável dar de ombros, porque, afinal, ali está Thomas, separado de sua mulher e de seu filho, cavalgando para o norte, como prisioneiro do homem a quem Horner serviu.

Eles chegam a Middleham ao anoitecer do quarto dia. Todos estão cansados de ficar em cima de uma sela por quatro dias, mas Thomas cavalga com as costas retas, seu coração bate acelerado e sua boca está seca. Ele constantemente toca atrás de sua sela, como se fosse encontrar o machado de guerra, o seu machado de guerra, e toda vez que o faz, sente sua falta e é tomado de assalto por uma ansiosa sensação de perda quando se lembra de que ele não está ali. Um dos membros da comitiva do arcebispo de York tirou-o de seus dedos com ameaça de força e não há nenhuma possibilidade de recuperá-lo, não uma segunda vez. Mas agora – quando ele está prestes a se deparar com Edmund Riven – é quando mais precisaria de sua arma, e o que ele tem em seu lugar? Nada além de uma faca de cozinha cega.

Mas conforme sobem a encosta em direção à cidade e acima dela o castelo, os topos de suas torres mostrando pontos de luz de lampiões na obscuridade do final de tarde, Thomas vê o rei Eduardo, também sentado agitado e preparado em sua sela, os ombros rígidos, o maxilar trincado, as rédeas agarradas com punhos cerrados. Ele também está pronto para seu confronto com seu antigo aliado e agora inimigo extremamente poderoso.

As ruas da cidade nortista de Warwick estão apinhadas de gente esperando para ver o grupo do rei Eduardo subir a colina em direção a elas. Thomas se pergunta se gritarão, lançarão vaias e insultos, atirarão fezes e tijolos, mas a atmosfera é mais incerta do que agressiva, e enquanto uns parecem satisfeitos em ver o inimigo vencido, outros gritam para o rei Eduardo, abençoando-o em nome de Deus, e muitos rostos parecem intrigados ao vê-lo assim tão diminuído, quando da última vez em que o viram foi de pé sob seu estandarte, talvez em sua armadura suja de sangue, após a grande batalha de Towton. É algo certo e apropriado ter o rei da Inglaterra ungido por Deus sob a chave de alguém? É certo e apropriado agora ter dois reis?

Eles continuam atravessando a cidade em direção ao castelo, onde a ponte está arriada sobre o fosso e os portões submersos da torre do canto estão abertos. Um grupo de recepção, de talvez mais uns cinquenta homens com casacos de uniforme em vários tons de vermelho, os aguarda com lampiões acesos. Alguns deles, ao fundo, também carregam alabardas, como os guardas na Torre de Londres.

Thomas inclina-se para a frente em sua sela e inspeciona a multidão, à procura do homem com o olho lacrimejante.

No começo, ele não o vê e sente-se abater, em parte de alívio, em parte de decepção.

No entanto, de repente, sente uma pontada de medo, misturado a nervosismo e boca seca, pois lá... lá está ele.

Edmund Riven.

Só pode ser ele. Alto como seu pai, está a três passos atrás da multidão, sempre afastado, impopular, banido, mas sempre vigilante, observando, com um pedaço de pano branco pressionado contra a face direita, o polegar esquerdo preso no cinto junto à fivela, o corpo inclinado, talvez para expressar ressentimento por ser obrigado a sair e se unir ao grupo de recepção. Na semiescuridão, não é possível ver mais nada.

Thomas sente-se tanto ardendo em febre como congelado. Ele já viu Edmund Riven antes, mas lembra-se apenas de uma vez e, assim mesmo, apenas um vislumbre fugaz depois da queda de Bamburgh, em um momento em que achava que Katherine estava morrendo e, portanto, salvar sua mulher era mais importante do que matar um homem, qualquer um. Quando soube que Katherine iria viver, Edmund Riven havia ido embora há muito tempo, e embora tenha sido ele quem primeiro a atacou, há tantos anos na neve nos campos embaixo do priorado em Haverhurst, e embora Riven tivesse matado muitos amigos de Thomas desde então, Thomas nunca tivera a chance de vingá-los. E agora acontecia o mesmo. Não pode matá-lo ali, agora, cercado por seus próprios homens, no castelo do conde de Warwick, e esperar sair vivo. Portanto, Riven, por enquanto, também viverá, e Thomas olha para ele como um homem a ser temido, como um homem a ser contornado, se quiser que Jack, Nettie e John Stump sejam tirados de seu sofrimento e devolvidos ao mundo.

Quando isso tiver sido feito, diz a si mesmo, ele cuidará de Edmund Riven.

O rei Eduardo desmonta. Ouvem-se saudações, chapéus são removidos, mesuras feitas, formalidades observadas e, uma vez terminada a recepção, o rei pergunta pelo lorde de Warwick. O comandante de infantaria, sir John Bellman, lamenta e diz que seu senhor não esperava que se adiantassem tanto e permanecia em Londres, mas diz que ele é esperado em pouco tempo. Nos quatro dias em que estiveram cavalgando, o rei Eduardo recuperou parte de sua truculência e havia se preparado para uma conversa com o conde, de modo que agora, vendo que isso lhe fora negado, não pôde deixar de apertar os lábios. É óbvio, pelos zumbidos e cochichos que se seguem, que Bellman e seus homens têm alguma simpatia com essa visão.

Quando terminam, Bellman os conduz através das alas afastadas da companhia que os aguardava, passando por Edmund Riven, que recua um passo e olha com desdém, embora seja difícil dizer na obscuridade, com o pano contra a face. Eles atravessam a ponte levadiça, passam pela casa da guarda, até o espaço estreito do pátio do outro lado. Ali, a torre de menagem assoma, maciça e volumosa, as janelas altas iluminadas por velas e lareiras, e os prédios anexos, sólidos contra a cortina – as muralhas mais internas do castelo, ao redor do pátio – são tantos que deixam apenas uma pequena área de chão de cascalhos onde se reunir, ao contrário de um pátio interno normal. Há cães ali e alguns garotos treinando luta com fardos de feno amarrados, mas a ausência do mau cheiro comum aos castelos chama atenção e Thomas lembra-se da menção de Hastings às muitas, muitas latrinas de Warwick.

À direita, há escadas cobertas através do alojamento de um porteiro, que leva aos grandes aposentos da torre de menagem, e à frente há um prédio que se assemelha a uma capela. Thomas busca sinais de um calabouço ou de uma masmorra, ou de alguma câmara terrivelmente manchada de sangue onde Riven costuma fazer seu trabalho, mas há tantas possibilidades neste castelo tão profusamente equipado que, se estiverem ali dentro, Jack, Nettie e John poderiam estar praticamente em qualquer lugar. Poderiam agora mesmo estar em alguma torre, olhando para fora pela fresta de algum respiradouro, capaz talvez de vê-lo, Thomas, ali parado com o rei Eduardo. Ele tenta ouvir algum grito, mas há tanto barulho de pés, cascos de cavalos e de risadas nervosas dos homens, que é quase impossível ouvir qualquer outra coisa.

Criados aguardam para levar seus cavalos e suas bagagens e, em seguida, o comandante conduz o rei Eduardo para dentro da torre de menagem. Thomas e Flood os seguem e, conforme sobem as escadas, ouvem um ruído rangente atrás deles à medida que a ponte é erguida, os portões externos se fecham com estrondo e o de grade de aço cai. É evidente que agora estão trancados ali e não apenas para passar a noite.

O jantar é constituído de capão, codorna e metade de um boi. Há vinho quente e cerveja. O pão é branco. Mais tarde, estranhas formas açucaradas – de São Jorge cortando a cabeça do dragão e do próprio castelo – são colocadas diante do rei Eduardo, que não resiste a elas, e servem hipocraz e depois mais vinho e música. Eles jantam no grande salão da torre de menagem. É o maior salão além de uma nave de catedral em que Thomas já esteve, com uma lareira no centro, piso de lajotas pretas e brancas, vívidas tapeçarias em duas paredes e janelas altas nas outras duas. Criados correm das cozinhas para o salão e de volta, e os comensais sentam-se a mesas arranjadas ao redor das paredes. O rei Eduardo está sobre o seu estrado com sir John de Tal e alguns outros cavalheiros, além de duas jovens que não se encaixam muito bem no ambiente. Flood está aborrecido de ser relegado com Thomas às sombras.

E Riven está lá também, em outra mesa, logo abaixo do palanque do rei, a segunda mesa mais alta, com rapazes e moças bem-vestidos, que se inclinam para longe enquanto ele permanece sentado em silêncio, sozinho, vigilante. Ele está fora do círculo de companheirismo humano, excluído, talvez satisfeito com isso, e permanece completamente imóvel, a não ser por seu olhar que salta pelo salão, o foco se aguçando naquilo que chama sua atenção antes de relaxar e seguir adiante. Ele não olha para Thomas nem uma vez e, após alguns instantes, Thomas não consegue mais se conter. Por razões que não consegue explicar nem para si mesmo, ele quer sentir o cheiro daquela ferida, sentir se tudo que dizem sobre ela é verdade – que é capaz de talhar o leite, provocar abortos, fazer gatos latirem.

Ele pergunta ao homem ao seu lado se ele conhece Riven e o homem demonstra ansiedade.

– Ouvi falar – ele diz, e vira-se de costas para Thomas, fazendo menção de pegar um pouco de carne.

Quando o jantar termina, Riven já se foi.

Thomas e Flood devem dividir um aposento não na torre de menagem com o rei Eduardo, mas em um dos anexos residenciais na muralha oeste, onde geralmente ficam os seguidores mais próximos do conde, mas que foram levados para outro lugar enquanto os homens do rei estiverem ali. O aposento fica no terceiro andar, é grande, possui uma janela que pode ser bloqueada com um pedaço de madeira, uma porta que não pode ser trancada e, ao longo da passagem, há uma das latrinas que Hastings mencionou. As lajotas do piso são arenosas e a pedra das paredes, mesmo no alto verão, são suficientemente frescas para entorpecer a dor.

Thomas dirige-se à janela e olha para a torre de menagem do outro lado do pátio. Ele não sabe o que imagina que verá. Flood, enquanto isso, estende-se na cama e solta um gemido. Seus pés exalam um forte mau cheiro, mas eles têm a promessa de banho com água perfumada pela manhã e, além do mais, Thomas sabe que também cheira mal.

Eles são acordados pela manhã pelos sinos da igreja da cidade. Pouco depois, um criado de pernas arcadas passa pela porta com uma canga de onde se penduram dois baldes de água quente e os chama para que o sigam se quiserem tomar um banho. Thomas o segue pela passagem até um recinto onde há fogo aceso em uma lareira junto à parede e, diante dela, uma longa banheira que deve ter sido feita por um aprendiz do melhor tanoeiro de toda a Inglaterra.

Thomas pergunta se há um calabouço no castelo.

– Um calabouço? Não está satisfeito com suas instalações?

– Não é isso – Thomas diz.

– Bem, ótimo, porque não temos essas coisas aqui.

Thomas fica surpreso.

– Eu pensei... E quanto a sir Edmund Riven?

O criado prende a respiração subitamente.

– Oh, sim – o criado admite. – Nós o temos conosco, sim, mas se o que está procurando é ser trancafiado a noite toda e ter seus ossos esticados, ou sua pele chicoteada pela manhã, então é melhor entrar na fila, porque ele é como um gato caolho, aquele ali, arrastando metade dos feridos do condado para cá e enchendo aquela sua torre com aleijados e tudo o mais. Deixa o auditor maluco, tendo que alimentar todos eles também. Dizem que alguns vêm para aproveitar: eles começam agradecidos por uma barriga cheia de sopa, depois já contam com isso e depois passam a exigir.

O criado despeja a água na banheira de madeira. O vapor sobe. Está perfumada com erva-ulmeira e aroma de madeira, e há um pouco daquele sabão tão precioso que Isabella lhes deu um pedaço como presente de casamento. Thomas tira suas roupas usadas por tanto tempo e coloca os dedos dos pés na água. O choque da água quente em seu pé é absolutamente maravilhoso. Não se lembra da última vez em que tomou um banho quente, tendo sempre se lavado em barris, rios, lagos, sempre água fria, às vezes gelada. Isto... isto é incrível.

Ele deixa-se afundar, deita-se, e a água cobre seu peito. O criado desce para buscar mais água. Flood vem e quer entrar na água com ele, mas não há espaço na banheira, de modo que fica esperando, o corpo muito branco, músculos longos e lisos, sem nenhuma cicatriz, muito maiores do lado direito. Depois que Thomas se lava e o vapor pinga do teto e das paredes, e vê-se uma espuma cinzenta na água agora mais fria, ele sai, com relutância. O criado de pernas arqueadas chega com mais água. Tira o primeiro balde da água do banho, entorna-a em um dreno e ela desaparece, gorgolejando, por um buraco. Ele enche a banheira com nova água e Flood entra na água, enquanto Thomas se seca com uma toalha de linho.

– Santa Mãe de Deus – Flood exclama, com um gemido.

Ele também há muito tempo não toma um banho quente.

– Qual é a torre de Riven? – Thomas pergunta ao criado.

– Sudeste – ele diz. – Para que suas vítimas possam ter uma bela vista de sua última aurora.

– E você sabe quem está na torre agora? – Thomas pergunta. – Alguns amigos meus foram aprisionados. Há mais de um mês, talvez. Um homem de cabelos escuros, sua mulher, que está grávida, e um homem com um braço só, assim. – Ele demonstra e o homem prende a respiração de novo.

– Nunca os vi por aqui, já que isso é feito pelo portão leste, mas ouvi uma conversa sobre um homem de um braço só. Riven querendo ver se perder um braço o faria temer ainda mais perder o outro, ou algo assim.

Por um instante, Thomas não compreende exatamente o que está sendo dito. Então, compreende. Ele para de se enxugar.

– Ele queria cortá-lo fora?

– Não, não. Apenas queimá-lo um pouco. É o que ele faz. Dizem que os gritos são de arrepiar. Não que eu mesmo os tenha ouvido, para ser franco. Coloquei calções e meias-calças limpas para vocês na cama. Devem caber.

Thomas tem que caminhar de volta ao seu aposento, onde há duas pilhas de roupas dobradas. Nada é velho ou usado, tudo é limpo e, ao que parece, perfumado. O gibão tem o distintivo do toco de árvore bordado no peito. Ele veste seu calção, camisa, gibão, em seguida amarra sua meia-calça e aperta os cadarços de sua braguilha. Flood entra.

– Muito bem – ele diz.

Eles assistem à missa na capela junto à muralha leste. O rei Eduardo não está lá – ele assiste à missa em uma capela particular em algum lugar da torre de menagem –, mas Riven está. Ele está vestido de modo simples, como se estivesse a trabalho, e novamente fica um pouco afastado de todos, com aquele pano pressionado contra a face. Thomas vai abrindo caminho pela multidão e para junto a ele, o suficiente para finalmente sentir seu cheiro, e quando o faz – pronto – suas entranhas se revoltam: é carne em decomposição, ovos podres, fezes de cachorro, tudo misturado. É como encontrar um cadáver de um mês subindo à superfície de um barril de curtidor de couro. Suas bochechas se inflam, o conteúdo de seu estômago sobe à garganta e ele se afasta, cambaleando.

Riven se vira e Thomas não pode deixar de olhar para trás, diretamente naquele único olho escuro. Por um instante, é como se ele conseguisse ver através de Thomas, diretamente em sua alma, e Thomas vacila, mas nesse instante sua expressão parece mudar e é possível ver sofrimento ali, misturado a resignação e tristeza, enquanto Riven se vira novamente, de volta ao padre que está solenemente gorjeando pela eucaristia.

Então, repentinamente, surge um homem enorme diante de Thomas, entrando entre ele e Edmund Riven, e algo dentro de Thomas quase sucumbe, algo no fundo de seu ser. Não sabe por quê, mas é causado pela visão daquele homem descalço, mesmo na igreja, e pelo fato de sua meia-calça estar rasgada e desfiada, e ele usar apenas camisa e gibão. Possui barba preta e desgrenhada, e cabelos rebeldes que saltam para fora em toda volta do sujo gorro para elmos amarrado sob o queixo. Ele provoca uma reação em Thomas que Thomas não compreende, um misto de terror e ódio. O homem resmunga, o rosto distorcido, e murmura algo ininteligível, em seguida o empurra para trás com a mão enorme que cobre o peito de Thomas. Thomas é lançado através da multidão, agarrando-se às pessoas conforme cambaleia e só parando quando colide com Flood, que o segura, endireita-o e o encara com um olhar penetrante.

Mas Thomas não consegue ficar nem mais um instante dentro da igreja. Tem que sair para o ar fresco. Ele abre caminho à força pela multidão, atravessa as portas da igreja, desce as escadas, atravessa a torre de menagem e chega de volta ao pátio interno onde se reuniram à noite anterior.

Sua cabeça está girando e ele tem dificuldade em respirar. O que há de errado? Por que aquele homem, aquele gigante, o deixou neste estado? Ele vagueia pela torre de menagem, passa pela casa da guarda, ainda fechada, mas já guardada por cerca de dez homens, e segue para a esquerda, ao longo da muralha norte. Passa pelas instalações do auditor, em seguida vira à esquerda novamente, passa embaixo de seu próprio aposento e depara-se com uma ponte acima dele, ligando a torre de menagem com a muralha. Ele prossegue, passando pela padaria, onde o aroma é estonteante, e vira na esquina seguinte. E lá está ela: a torre sudeste.

A torre de Riven.


18


- Que bom que você conhece o caminho tão bem – Liz observa.

– Você não precisa vir conosco – Katherine lhe diz. – Ficaremos bem, sozinhos.

– Não tenho tanta certeza disso – Liz zomba. – E de qualquer forma, quero ver o que você fará em seguida.

Os três estão a pé, de costas para Marton Hall, caminhando para o norte. Katherine tem um cajado, uma capa de viagem de tecido rústico marrom-avermelhado, uma sacola com seus poucos pertences, inclusive o livro-razão, ainda embrulhado como um cadáver, e um pouco de dinheiro que sobrou daquele que Isabella lhe deu para comprar de volta o breviário. Rufus também tem sua capa e carrega o arco de praticar que John Brunt lhe deu (embora tenha perdido a corda) e ele vai batendo a ponta do arco de leve no chão conforme anda, estragando o encaixe de chifre – mas esse é o menor de seus problemas. Liz também tem sua capa, e seus grandes tamancos vão batendo ruidosamente nas pedras. Eles quase poderiam se passar por um grupo comum a caminho do mercado, não fosse pela besta de John Stump que Liz carrega curvada sobre o ombro.

Katherine mal sabe o que fará em seguida, mas está satisfeita por Liz permanecer com eles. Este último exílio foi tão pouco planejado quanto repentino, e assim ali estão, caminhando em direção a Gainsborough outra vez, pretendendo atravessar o mesmo rio pelo qual vieram há apenas mais ou menos um mês e, daqui, de volta ao norte.

– Papai vai estar lá? – Rufus pergunta.

Katherine detesta dizer que não, mas é preciso dizer.

– Ele irá ao nosso encontro. Vai nos alcançar provavelmente – ela diz. – Em um ou dois dias.

Rufus parece ficar razoavelmente satisfeito e, assim, elas apertam o passo sob o sol, embora as duas mulheres troquem um olhar entre si, pois já ouviram tantos informes impossíveis e conflitantes de comerciantes, mercadores e peregrinos de passagem que é impossível saber qual é a situação no sul. Um homem lhes disse que houve uma batalha após a qual o rei havia decepado a cabeça do conde de Warwick, outro que havia sido o contrário. Alguns disseram que Robin de Redesdale fora morto nessa batalha, outros que tinha sido seu pai, ou irmão, ou filho. Alguns disseram que a própria rainha estava morta, ou em um santuário, como o homem que havia incomodado Isabella na catedral, enquanto outros contaram ainda que o rei Eduardo havia sido abandonado por seus homens e caíra nas mãos do conde de Warwick, e que estava em uma masmorra na Torre ao lado do antigo rei.

A cada notícia, e a cada visão do que podia significar para as pessoas comuns, Liz se torna mais impaciente.

– Deixe-os continuar com isso – ela diz –, desde que não nos incomodem.

E o efeito da luta dos nobres torna-se evidente à medida que seguem a estrada para o norte. Elas passam por homens com ferimentos estarrecedores. Há rostos afundados, com martelos de guerra, Katherine imagina. Alguns têm mãos mutiladas, levadas como se seus donos acreditassem que, com a oração certa, os dedos cresceriam outra vez. Há mulheres e crianças, também, retornando para casa sem seus homens, os rostos cinzentos sujos de muco e lágrimas, se preparando para enfrentar só Deus sabe que espécie de futuro. Ela, Liz e Rufus juntam-se a esses tipos de grupos, avançando devagar, é verdade, mas em segurança, sem serem incomodados pelos homens que perderam as boas graças do rei e que dizem estar assombrando as florestas ao longo dos trechos mais desertos da estrada.

– É engraçado como justamente aqueles que estiveram lá são os que sabem menos, não é? – Liz observa.

É verdade. Ninguém sabe realmente nada. Eles sabem da batalha que ocorreu mais ao sul e que um conde de Pembroke estava lá, que seus galeses lutaram bravamente, que na luta muitos nortistas foram mortos, e podem nomear muitos deles, nenhum dos quais é conhecido por Katherine ou Liz. Um homem com um ferimento de flecha na coxa lhes conta que o conde de Pembroke se rendeu, apenas para ter a cabeça decepada no dia seguinte, embora ninguém saiba ao certo por quê, já que estava lutando pela causa do rei Eduardo, que é o rei ungido, e portanto não pode ser traição. E ninguém sabe o que aconteceu desde então ao rei, mas têm certeza de que ele não estava lá. Ninguém diz ter visto algum sinal de lorde Hastings tampouco, ou de nenhum de seus homens com o distintivo da cabeça de touro, exceto um – um garoto que descreveu um cavaleiro com uma armadura brilhante, que ele viu ser derrubado. Mas esse não se parece com Thomas, Katherine pensa.

– Bem – Liz supõe –, isso já é alguma coisa.

Continuam então a caminhar penosamente, cautelosas e pesarosas, pelas intermináveis florestas em direção a York, e Katherine pensa que a estrada parece ficar cada vez mais longa toda vez que a percorrem e se pergunta se estariam perdidas. Ela pensa em Thomas e onde ele poderia estar. Liz faz o mesmo.

– Como ele vai conseguir nos encontrar? – ela pergunta.

Katherine não sabe. Se ele retornar a Marton, como disse que faria, será que os filhos de Isabella sequer vão deixá-lo pisar na terra? Ou simplesmente o expulsarão? Cristo, ela pensa, o que eles farão a ele vai depender de Isabella acordar ou não. E se ela acordar capaz de enxergar com o olho que Katherine operou. Tudo vai depender de algo que Katherine já fez! Ela não pode mais mudar o que foi feito. Tem que aguardar para ver. Mas o pior é que ela não verá, porque agora está a muitos quilômetros de Isabella e, portanto, só saberá se foi bem-sucedida quando Thomas lhe contar, ou outra pessoa.

Oh, meu Deus, por que ela foi fazer isso? Por que colocou em sua mente operar Isabella, sem dizer nada a ela e sem mencionar sua intenção a ninguém, de modo que tudo pareceu um capricho, algo que resolveu fazer na hora? Ela olha para as mãos, uma segurando sua capa, a outra segurando o cajado, como se de certo modo a tivessem traído, como se fosse culpa delas meter na cabeça a ideia de fazer algo tão idiota. Ela nem pode dizer que não foi alertada. Liz lhe disse que nada de bom adviria daquilo, e agora ela deixou Isabella deitada, inconsciente, com um olho cego e o outro operado, a ser cuidada por aqueles dois rapazes, tão decididos a vê-la fora de sua casa que serão capazes de deixá-la em algum tipo de masmorra enquanto destroem o que restou da propriedade de sir John.

Rufus se tornou quase mudo outra vez, perguntando apenas por Thomas, como se ela o tivesse traído e ele não confiasse mais nela. Ele mal disse uma palavra desde que os filhos de Isabella retornaram e encontraram sua mãe inclinada sobre a deles, inconsciente e com o rosto sujo de sangue, com uma faca e uma agulha nas mãos.

Ela tentou explicar o que estava fazendo, assim como tentou explicar a William e Robert, mas como eles, o garoto não parece ter compreendido. Os filhos de Isabella queriam que Katherine fosse morta e quando ela pensa nisso agora, ainda treme de medo. Se Liz não estivesse lá e não tivesse parecido saber quase precisamente o que iria acontecer antes que acontecesse, e ter que manejar aquela besta, aberta e com um dardo encaixado, então tudo teria acontecido de modo muito diferente.

Quando os filhos de Isabella ficaram ali parados, fitando-a, ela se sentiu levada de volta à ocasião em que abrira o ventre da mulher de Eelby, ele entrara e vira o sangue por toda parte, e ela não sentira nenhuma culpa, como era de se esperar, ou ao menos não na ocasião, mas sentira-se flagrada. Descoberta. Perturbada. Ficara com raiva por não ter conseguido terminar o que havia começado. Sentira que se eles ao menos tivessem ficado fora até o anoitecer, então – bem, teria havido uma chance de que ninguém, exceto ela, Liz e Rufus, jamais soubesse o que tinha acontecido.

Isabella poderia ter ficado com algum desconforto por alguns dias – Katherine se preparara para isso –, mas certamente teria desconsiderado isso e atribuiria sua visão restaurada a um milagre enviado por Deus. Katherine havia até se preparado para encontrar alguma diversão nisso – teria sorrido diante do piedoso encanto de Isabella – e aquilo teria se tornado uma piada secreta entre ela e Liz. Havia até mesmo imaginado o momento em que eles a veriam rezando, agradecendo a Deus pelo milagre de sua visão restaurada, e elas trocariam um olhar significativo e nunca mais mencionariam o caso.

Mas isso foi antes, e agora, após noites aparentemente intermináveis passadas à beira da estrada, enrolados em suas capas, ela passou a ver esses pensamentos como vergonhosos e como prova de uma forma extrema de orgulho, e sabe agora que esta caminhada incerta pelas estradas da Inglaterra é um castigo por isso. O fato de Rufus também estar sofrendo – de ter ficado sem casa e estar agora caminhando penosamente a seu lado – parece acontecer apenas para tornar seu castigo maior.

E ela ainda não sabe como irá encontrar Thomas outra vez.

– Ele deve estar com William Hastings – ela diz a Liz. – Depois que tivermos libertado Jack e Nettie, então podemos ir à procura de Hastings, que será mais fácil de achar do que Thomas, isto é certo, e se o encontrarmos, encontraremos seu marido.

– E se esse tal de Hastings for um daqueles que tiveram a cabeça decepada? – Liz pergunta.

– Não sei – Katherine admite.

Quando já estão próximos a York, Liz pergunta sobre Isabella e sua visão.

– Foi como dizia no livro – Katherine lhe diz. – Cortei a cobertura, lá estava o disco e eu o empurrei para fora, exatamente como sugerido.

– Mas você não pode ter certeza de que funcionou?

– Não, enquanto ela não acordar.

– Já deve ter acordado agora – Liz observa.

– Sim – Katherine imagina e não pode deixar de olhar para trás outra vez, caso os filhos de Isabella tenham enviado Borthwick ou o falcoeiro atrás dela para chamá-la de volta para operar o outro olho, se o primeiro tiver sido curado, ou matá-la se não tiver. Mas não há nada de estranho à vista, nada além do rangido lento de homens e carroças voltando para o norte. Esse desconhecimento é tão perturbador quanto não saber onde Thomas pode estar, ou o que ela fará quando chegar ao Castelo de Middleham, onde Liz diz que Jack e Nettie estão sendo mantidos.

Os três passam pelo ponto em que se reuniram naquele dia há apenas algumas semanas antes, ao sul do Micklegate Bar, em York, e Katherine vê que há algumas cabeças novas nas estacas acima, embora não queira perguntar ao sentinela a quem elas pertenciam por medo de chamar atenção. Nesta noite, eles permanecem em uma estalagem inóspita fora dos muros da cidade, onde recebem camas junto ao beiral do telhado e, ainda assim, todo o prédio estremece quando os sinos da igreja da cidade tocam ao alvorecer.

Depois de um café da manhã escasso, eles saem e começam a atravessar a cidade. Conforme se aproximam do convento, Katherine em parte espera que Liz os deixe, pois sabe que a estrada para a casa de Liz fica para o norte, atravessando Monkgate, ao passo que a estrada para Middleham a leva pelo outro portão, Bootham Bar, na direção noroeste e através do vale de Mowbray.

Mas Liz ainda está determinada.

– É como eu lhe disse – ela diz. – Estou esperando para ver o que você vai fazer em seguida.

Katherine agradece a ela, e juntos eles seguem a estrada ao longo da margem sul do rio, na direção oeste, que lhes informaram que os levará a Harrogate, só que se tiverem chegado até lá, então estão perdidos, pois têm que pegar a estrada para o norte que os levará até Richmond e Darlington.

– Eu não vou até lá, isso eu lhe garanto – Liz afirma.

Eles levam dois dias de caminhada até o castelo do conde de Warwick, em Middleham, para oeste da estrada norte, aninhado em uma concavidade naquelas colinas. As casas ao longo do caminho são de sólidas pedras cinzentas, quadradas e assustadoramente defensivas.

– São os escoceses, não é? – Liz pergunta. – Eles vêm aqui e tentam roubar o que podem. Levam nossos porcos para suas esposas.

Eles caminham o dia inteiro, e Katherine e Liz se revezam carregando Rufus quando está cansado demais para prosseguir sozinho. A dor do seu peso faz seus ombros e suas costas arderem, mas elas não param. Um negociante de linho oferece ao menino uma carona em sua carroça, e elas caminham ao lado dele por alguns quilômetros, dirigindo-se a uma cidade onde o homem pretende parar e vender sua mercadoria.

Ele conhece a estalagem do pai de Liz, pois sua rota comercial o leva até Scarborough, à feira de lá, e Liz pergunta por seu pai.

– Ele tem dois rapazes trabalhando para ele agora – o homem diz.

Liz diz que suas irmãs – as duas outras garotas de avental – foram mandadas para longe “para sua própria segurança”.

– Seu pai não ficou satisfeito – diz o comerciante. – Mas ao menos a mansão será ocupada outra vez.

Katherine sente uma pontada de tristeza em sua alma. Ela adorara a ideia de ir morar naquela mansão senhorial.

– Quem a ocupou? – ela pergunta.

– Um conhecido do conde de Warwick – o negociante lhe diz. – Bem, isso foi o que o mestre Campbell me disse, embora como ele veio a tomar conhecimento disso, eu não saiba dizer.

– Ouve-se de tudo numa hospedaria – Liz comenta.

Quando o comerciante os deixa, ele lhes promete dar lembranças suas a seu pai e assegurar-lhe que ela está bem.

– Uma pena – Katherine diz. – Sobre a mansão.

Liz resmunga, sem se comprometer.

– Sempre houve gente querendo viver lá – ela afirma.

Katherine supõe que Hastings deve ter enviado alguma outra pessoa ou talvez o conde de Warwick a tenha tomado dele? Ela só saberá quando tiverem encontrado Thomas.

Conforme caminham, elas conversam e, por fim, Liz muda de assunto para um que parece não ter saído de sua mente desde que o ouviu pela primeira vez.

– Então, essa prioresa... – ela começa a dizer.

Um mês atrás, tal expressão teria feito Katherine sentir-se mal de tanto nervosismo, mas o fim do priorado a mudou, ao menos um pouco, e agora ela sente apenas um aperto na garganta e a vontade de mudar de assunto.

– Não posso pensar nela – ela diz. – Só consigo pensar em Thomas e se ele conseguiu sair vivo dessa batalha de que os homens estão falando, ou em Nettie dando à luz na escuridão sobre uma palha imunda, só com a presença de Jack.

Liz reconhece que essas são preocupações graves, mas se mostra implacável.

– Você sabe alguma coisa sobre ela? – Liz continua. – Quero dizer, ela deve ter ido para algum lugar. Que tipo de sotaque ela possuía? Era de Lincoln ou do norte, digamos? Ela alguma vez falou de onde veio?

– Ela só falava de um lugar chamado Watton – Katherine admite, de má vontade.

– Watton? Já ouvi falar de Watton. Fica a leste daqui. Entre aqui e o mar. Não é um grande lugar.

Katherine não sabe se a prioresa é de lá, mas lembra o motivo pelo qual o nome ficou gravado em sua mente: a história de uma freira do priorado – uma oblata, como a própria Katherine – que engravidou e que foi torturada quase até à morte pelas outras irmãs antes de ser obrigada a castrar o irmão leigo que a colocara naquele estado. O fato de ter perdido a criança foi considerado um milagre.

– Não tenho a menor vontade de conhecer o lugar – ela diz a Liz.

– Nem mesmo se você descobrisse quem é sua família?

– Por que ela saberia?

Liz dá de ombros.

– Ela pode não saber, mas agora é a única pessoa com probabilidade de saber, não é? Você tem que começar por algum lugar.

– Mas talvez eu simplesmente nem queira começar.

– Nem mesmo pelo garoto? – Liz pergunta, indicando Rufus com um movimento da cabeça. Rufus permanece sentado na carroça, em silêncio, seu olhar ansioso sempre fixo em Katherine. – Nem mesmo se houver dinheiro nisso?

– Não – Katherine diz –, e de qualquer modo, não se sabe se ela veio de Watton.

– Bem, então por que ela falava sobre o lugar?

Ela conta a Liz a história da freira de Watton.

– Que história terrível – Liz exclama. – Mas você já a ouviu em algum outro lugar?

Katherine responde que não.

– Portanto, ela deve ser daquelas bandas – Liz conclui.

No segundo dia depois de York, cai uma chuva fina conforme eles rodeiam as colinas a oeste e andam o dia inteiro sob ela, até que pare no final da tarde e o sol apareça, fazendo a água da chuva se evaporar. Seguem uma estrada sinuosa com o sol poente em seus rostos, passando por campos férteis e uma abadia, e então finalmente avistam o castelo a uma distância de alguns quilômetros, situado acima das terras dos seus arrendatários, que no inverno devem ficar apinhadas de ovelhas, mas que agora exibem apenas a palha curta e dourada. Há uma ou duas mulheres terminando o trabalho do dia, começando a voltar para a cidade que abraça a base do castelo, mas a escassez de homens é esperada: todos devem estar ao sul, Katherine pensa, com o conde de Warwick, ou Robin de Redesdale, por motivos nada bons. Eles continuam andando e, conforme se aproximam, ninguém tira os olhos do castelo, nem mesmo Rufus; é como se o castelo, de certo modo, os estivesse atraindo.

É uma grande caixa de pedra cinzenta, ali plantada, e a subida e a descida de suas pequenas torres e de suas cortinas, ou muralhas internas, são estranhamente agradáveis. No entanto, conforme se aproximam, Katherine não consegue deixar de pensar que Edmund Riven deve estar lá dentro, talvez naquela torre lá, ou naquela outra, e ela está indo em sua direção, levando para ele o que ele mais deseja, e está desarmada, desprotegida e sem Thomas, e não consegue reprimir um calafrio. É como se estivesse entrando no mundo de Riven, um mundo soturno, e é então que ela tem a repentina e aterrorizante ideia de que ele sabe que ela está a caminho. Sabe que ela está lhe trazendo o livro-razão. O pensamento a deixa sem ar.

Olhando para o castelo conforme chegam mais perto, vendo suas torres, suas muralhas, suas ameias guardadas por sentinelas, ela começa a ter esperança de que Jack, Nettie e John Stump estejam mantidos em outro lugar. Já esteve nesta posição antes, é claro, quando tentavam trazer o livro-razão à atenção do velho rei Henrique, instalado em um castelo como este, embora na época eles quisessem crédito e reconhecimento por levar o livro a ele, ao passo que desta vez ela quer deixá-lo, anonimamente, onde Riven o encontre.

Rufus está exausto, quase se dependurando em sua mão, esgotado, e ainda mal disse uma palavra desde que deixaram Marton, exceto para perguntar por Thomas. Seu rosto está inexpressivo, de certo modo, impenetrável, mas seus olhos movimentam-se rapidamente pelo campo, buscando o quê? Ameaças, ela imagina.

E assim que entram na cidade, a primeira delas emerge de uma hospedaria, logo depois da primeira casa com que se deparam. Dois homens de vermelho, com aquele distintivo branco de um toco de árvore e um urso costurado no uniforme, saem de dentro, cambaleando de bêbados, e enquanto um para a fim de urinar na beira da estrada, o outro ri para elas e pergunta o que têm ali.

Graças a Deus, Liz está ali para chamá-lo de um barril de gordura suado e filho de uma prostituta. Ele fica momentaneamente em silêncio; ela e Katherine compreendem que não devem ficar naquela estalagem e continuam andando, passando pelos dois homens, tão rapidamente quanto Rufus lhes permite, e chegando a outra – a White Swan – mais adiante, depois do marco que assinala o local de realização do mercado dos produtores das redondezas com o distintivo de Warwick feito de pedra acima da porta. Mesmo ali, entretanto, o ambiente no salão iluminado à luz de velas é turbulento, comemorativo, cada homem, mulher e mesmo criança com os olhos vidrados de bebida, e até o estalajadeiro, um bobalhão de rosto vermelho com uma barba ruiva, vestindo um gibão suado, parece ter bebido demais.

– Vocês estão todos bêbados – Liz lhe diz depois que ele encontrou um lugar para eles se sentarem e trouxe para cada um uma tigela de sopa e uma caneca de cerveja. O estalajadeiro não se ofende e abre um largo sorriso para ela.

– Porque temos razão para isso, hein?

– E qual é a razão?

– Nosso conde! – ele diz. – Ele destronou outro rei!

– Ele... destronou outro rei?

– Sim! Ele o tem sob sete chaves, exatamente como fez com o antigo rei!

Há um rugido entre o bando reunido em torno do fogo – alguém fez alguma coisa engraçada, tal como derramar uma bebida em um cachorro ou algo assim – e Katherine está achando difícil se concentrar.

– Diga isso de novo – ela diz ao estalajadeiro.

Ele olha para ela com estranheza, um pouco desconcertado com seu sotaque, talvez, que não é local. Ele se cala, mas Katherine continua a pressioná-lo e ele confirma as notícias da batalha no sul, na qual os homens de Robin de Redesdale derrotaram os homens do conde de Pembroke. O conde de Pembroke, que estava entre os conselheiros mais cobiçosos e gananciosos do rei Eduardo, era um traidor do povo da Inglaterra e mais especialmente um desafeto do conde de Warwick, teve a cabeça decepada em Coventry. O outro, o conde de Devon, foi posteriormente capturado e enforcado em algum lugar em West Country, de modo que agora, o conde de Warwick, que Deus o proteja e abençoe, teve sua posição restaurada ao lado do rei Eduardo. Em consequência, o bem público foi restaurado à saúde, à riqueza e à felicidade.

– E isso não é bom?

Liz balança a cabeça, embora esteja estranhamente contida e tenha que tolerar que o homem passe o braço por seus ombros e a pressione contra ele.

– Mas Warwick não foi realmente reconduzido ao lado do rei Eduardo, não é? – Katherine diz. – Se o mantém em uma masmorra, hein?

– Oh, ele não está em nenhuma masmorra – o homem informa. – Não! Não! Ele está bem aqui, na melhor acomodação do castelo.

Ele aponta para o outro lado do pátio, para o castelo que encontraram. Katherine presume que ele seja maluco, esteja brincando ou seja um mentiroso.

– Mas é verdade! – ele insiste. – O rei Eduardo está aqui! Nós o vimos atravessar a cidade a caminho do castelo, sem aqueles que vivem a vida à custa dos outros, e agora que está sob nossos cuidados, e não sob os cuidados da rainha e sua família, podemos ter certeza de que ele vai corrigir seus modos e voltar a ser como antes.

Ouve-se um novo rugido das pessoas junto à lareira, o estalajadeiro pede licença e corre para reprimir sua algazarra – ou para se juntar a ela – e Katherine e Liz ficam frente a frente, com Rufus quase adormecido, a cabeça no colo de Katherine.

É um choque. Se o conde de Warwick tem o rei Eduardo sob seu comando, então ainda estaria à procura do livro-razão? Katherine estende a mão e toca-o em sua bolsa.

– Ainda está aí – Liz observa, secamente.

Katherine não consegue entender a situação. Teria o livro-razão, com este golpe, perdido o valor para o conde? Será que ele acha que já não precisa mais dele e já terá desistido de procurá-lo? E se desistiu de procurá-lo, haveria alguma razão para manter Jack, Nettie e John Stump presos? Certamente ele vai soltá-los, não? Ela fica satisfeita com o pensamento.

– O quê? – Liz pergunta.

– Pode ser que não tenhamos que entregar isto a Riven – ela diz, e novamente estende a mão para tocar o livro-razão.

Liz ergue uma das sobrancelhas.

– Veio até aqui – ela questiona após um instante – para nada?

– Não é para nada – Katherine diz. Por Jack, Nettie e John.

Liz está confusa. Katherine lhe explica o que a captura de Eduardo significa.

– Eles podem ser libertados a qualquer momento – Katherine diz.

Liz parece estar pensando rápido, seus olhos escuros movem-se rapidamente à luz do fogo.

– Talvez já tenham sido – ela arrisca.

Katherine não havia pensado nisso.

– Como vamos saber? – ela se pergunta em voz alta.

– Poderíamos perguntar – Liz responde.

– A quem, sem implicar que estamos interessadas?

– Temos que voltar àquela outra estalagem, aquela do gordo e seu colega urinando na estrada. Perguntar a eles sobre isso.

Katherine vê o que ela está sugerindo e recosta-se na cadeira.

– Eles vão querer alguma coisa em troca – ela diz.

– Ha! – Liz exclama. – Podemos sair correndo antes disso. Eles são homens. Idiotas. Esse tipo é lixo.

Mas, por Cristo, Katherine não quer fazer isso e Liz compreende.

– Eu farei isso – ela diz. – Você fique aqui. Cuide de Rufus.

Há algo a respeito de Liz agora, sob esta luz, neste lugar, que é extraordinariamente brilhante. Há uma força inquebrantável nela agora, uma dureza de sílex. Katherine lhe diz que não precisa fazer isso e que não deve ir sozinha, mas Liz não lhe dá atenção.

– Quem mais poderá ir comigo? – Ela esvazia sua caneca e se levanta. Quanto mais cedo acabar com isso, melhor. Em seguida, se inclina e afaga a cabeça de Rufus. – Ele é um bom menino – ela diz. Seus olhos estão marejados de lágrimas.

– Oh, Liz – Katherine diz. – Você não precisa fazer isso.

Mas Liz insiste.

– Sim – ela diz. – Mas preciso, sim. – Ela afrouxa todos os cadarços de sua blusa, dá um último sorriso forçado a Katherine e desaparece.

Katherine fica sentada na semiobscuridade com Rufus ainda dormindo em seu colo. Faz o melhor que pode para não chamar atenção e para não pensar no que Liz está tendo que aturar por ela. Ela afaga os cabelos de Rufus. Ele é um bom garoto, ela pensa, sim, Liz tem razão. Tendo aguentado tanto. Tendo andado para tão longe com suas perninhas tão curtas. Thomas vai sentir orgulho dele.

Ela observa os homens e mulheres na estalagem, celebrando a vitória de seu lorde, e tenta imaginar como deve ser descobrir que sua cidade está de repente no centro do mundo. Saber que o país inteiro está sendo governado de um ponto a apenas cem passos de distância. Devem estar orgulhosos de seu conde, ela imagina. Orgulhosos de saber que ele se ergueu acima de tudo e de todos, e que toda vez que um mensageiro passa pela rua fazendo barulho, as cartas que leva a seu lorde vêm dos homens mais poderosos de todo o território, os mais poderosos até mesmo de toda a cristandade.

Então, ela tenta imaginar como seria se Jack, Nettie e John entrassem pela porta neste momento, libertados das garras de Riven. Se fizessem isso, ela acha que poderia atirar o livro-razão no fogo no mesmo instante e acabar com tudo aquilo. Em vez disso, sua mão desliza para ele outra vez e ela pensa consigo mesma que isso é exatamente como fora quando ela e Thomas levaram aquele livro maldito para Bamburgh pela primeira vez! Primeiro, eles tinham que dá-lo ao rei Henrique e, em seguida, não deveriam mais entregá-lo a ele.

Assim, ela começa a imaginar o que ela e Liz farão se Jack, Nettie e John não tiverem sido libertados. O que irão fazer se Riven ainda estiver atrás do livro-razão? Porque, afinal, por que o conde de Warwick iria desistir de procurar por isto, somente porque tem o rei Eduardo trancado a sete chaves? Não seria melhor – do ponto de vista de Warwick – ter tanto o rei Eduardo quanto o livro-razão? Assim, Warwick teria o corpo e a mente do rei em suas mãos.

Nesse caso, o conde de Warwick estará ainda mais interessado em encontrar o livro-razão, para que ninguém mais possa ganhar o controle sobre seu prisioneiro ou – pior! – provar que ele não serve para ser rei e, portanto, na verdade, não vale nada. Assim, não só Riven estará mantendo Jack, Nettie e John Stump onde quer que os tenha encarcerado, como terá rompido cada tendão de seu corpo para se apoderar do livro-razão e continuará fazendo isso até colocar as mãos nele. Meu Deus, ela pensa, ele ficará perplexo ao saber que ela e Liz o trouxeram para ele.

Ele não poderia, para dizer a verdade, ter planejado isso melhor, ainda que tivesse tentado.

Nesse momento, alguém entra no salão – uma mulher jovem – e ouve-se um alarido de saudações de boas-vindas. Katherine pensa em Liz e murmura uma prece por sua segurança enquanto lembra a si mesma que jovem extraordinária ela é por ter feito tudo que fez por ela, Thomas e o pequeno Rufus: como lhes levou a carroça, levou-os para o sul e continuou ao seu lado quando voltou para o norte. E agora isto: sair sozinha para se misturar exatamente com o mesmo tipo de homens que a estupraram à beira da estrada perto de Senning, arriscando-se a tudo isso outra vez! De que material ela é feita?

Mas enquanto pensa isso, ela sente uma espécie de tontura. Novos pensamentos se encaixam em lugares desconhecidos, antigas ideias se reorganizam, dúvidas novas emergem e ela se vê dizendo isso outra vez: Riven não poderia ter planejado isso melhor, ainda que tivesse tentado. Então, pensa, E se ele realmente planejou tudo desta forma? E o que realmente aconteceu a Liz à beira daquela estrada perto de Senning?


19


Thomas fica ali parado no ar fresco da manhã, observando o vaivém e tentando imaginar como contornar a impossibilidade de resgatar três pessoas de uma torre em um castelo onde está sendo mantido, em uma região que não conhece e onde não pode encontrar nenhuma ajuda. Não tem sorte. Não há nenhum modo, é claro, e é por isso que estão na torre, e ele está no castelo e o castelo está onde está.

Por fim, três homens de vermelho chegam, batem com força na porta e algum tempo se passa até que ela é destravada por dentro. Os homens marcham para dentro. Um instante depois, outros marcham para fora. É uma troca de guarda, Thomas conclui, pois este segundo grupo parece exausto. Eles partem, cambaleando, para suas camas. Thomas fica se perguntando se não seria melhor descobrir o mais depressa possível se Jack, Nettie e John estão ou não na torre e tentar fazer isso antes que seu rosto se torne conhecido pelo castelo. Agora que Riven o viu, vai se lembrar dele. Então, é preciso que seja agora, pensa, repentinamente tomado pela ideia, enquanto ele e aquele gigante estão na missa.

Ele se prepara para a tarefa, alisa seu gibão e dirige-se a passos largos para a porta da torre sudeste, sobe as escadas e bate com força nas tábuas da porta. Ele aguarda, tentando parecer entediado, e, após um instante, ouve o barulho de pés se arrastando nos degraus de dentro e a trava da porta é levantada. Um rosto surge e parece inexpressivo. Thomas não diz nada. Inclina o corpo para entrar e, após um instante, o homem abre mais a porta. Thomas entra. Silêncio é o segredo, ele pensa. Silêncio e ousadia.

– O que é? – o homem pergunta. Ele também está só de gibão e meia-calça. As mangas de sua camisa estão enroladas para cima e há uma mancha – sangue? Fezes? – na parte interna de seu braço pálido.

– Edmund Riven me disse para esperar por ele aqui – Thomas diz ao homem, passando por ele e começando a subir a escada circular. Isto está sendo muito mais fácil do que havia imaginado.

Esta é a parte antiga do castelo e, ao subir, o teto é bem baixo e o piso irregular. Mas enquanto caminha, é assaltado por outro fator: o cheiro. No começo, é alarmante, um indício do que está por vir, e ele quase tropeça.

– Por Deus!

Thomas prende o nariz, tenta não respirar. O cheiro é como uma secreção recobrindo sua boca, sua língua, seus pulmões.

– Horrível, não? – diz o homem atrás dele. – Mantemos o pobre-diabo lá fora, na passarela.

Mas esse não é o cheiro de Edmund Riven e seu olho putrefato. É um cheiro mais antigo e ainda pior. É o fedor adocicado e nauseante da podridão negra, e o mais leve traço leva Thomas de volta a outro castelo, uma guarita, no Castelo de Alnwick, onde certa vez encontraram John Stump em seu leito de morte, o braço direito consumido por esta mesma podridão depois de ter sido ferido em uma luta com homens de lorde Montagu.

– Não vai demorar muito agora – o homem diz. – Vai ser uma bênção para ele, o pobre coitado.

A escada circular passa por uma porta fechada e continua até um terceiro andar. O mau cheiro fica mais denso até ser quase impossível respirar. Ele pode ouvir homens chamando uns aos outros com vozes abafadas.

– O que aconteceu? – Thomas pergunta ao homem que o segue.

– Sir Edmund o queimou. Seu outro braço. Carvão em brasa. Só para ver. O desgraçado nunca disse nem uma palavra, mas se borrou todo. Portanto, ou ele não sabe por onde está o que quer que sir Giles procura ou tem os colhões de um burro.

Thomas recebe cada palavra como um soco. John Stump, queimado. E por quê? Por causa deles. Ele se volta para o homem e o fita nos olhos. Não sabe com que esperava que um torturador se parecesse, mas este parece um homem comum e, no entanto, ali está falando do que fez como se não fosse nada mais do que uma discussão sobre castrar porcos.

Quando chegam ao terceiro andar, não há nenhuma porta a ser fechada, somente um recinto caiado de branco, uma câmara com teto em abóboda, onde há correntes presas à parede e uma mesa grande – como uma bancada de açougueiro – no meio, sobre o chão coberto de palha.

Thomas não diz nada quando os vê. Ele não consegue falar.

Jack ainda está vivo, mas, meu Deus, com uma aparência terrível. Está caído contra a parede, os pulsos acorrentados juntos acima do ombro. Ele não ergue os olhos quando Thomas entra. Está subnutrido e suas roupas imundas caem, folgadas, de seu corpo. Nettie está a seu lado, igualmente acorrentada, embora tenha direito a um banquinho, e Thomas não sabe se está aliviado ou não de ver que ela ainda está grávida. Há dois homens, também sentados em banquinhos, sem fazer quase nada. Um deles usa a faca para limpar algo que parece um mecanismo para uma besta. Eles erguem os olhos para Thomas.

– Quem é você?

Thomas não sabe o que dizer e de qualquer forma não consegue falar.

A porta para a muralha sul está aberta. Através dela, ele pode ver John Stump deitado na passarela, como se tivesse sido atirado lá fora por um coletor de fezes e deixado ali para morrer.

– Sou o cirurgião – Thomas diz. É tudo em que consegue pensar.

– Não parece um – o primeiro guarda diz.

– Não – Thomas concorda. Ele empurra a porta, abrindo-a mais, e sai para a passarela da muralha sul. Olha para baixo, para John. Ele já o viu assim antes, é claro, há cinco anos. Apesar do vento que desce das montanhas atrás, o cheiro é suficiente para fazer qualquer um ter ânsias de vômito. John está encolhido em um canto, seu único braço como um galho de árvore, mantido longe do corpo como se ele também se sentisse enojado. Está envolto em linho manchado, talvez um par de meias-calças velhas. Ele sua profusamente, mas seus dentes estão batendo, mesmo que seja mais um dia quente. Thomas dobra o braço sobre a boca e se agacha ao lado de John.

– John – ele chama. – John.

Os olhos de John estão saltando por baixo das pálpebras. É impossível saber se ele consegue ouvir ou se sabe o que está sendo dito. Thomas toca seu ombro bom e diz seu nome outra vez. Desta vez, as pálpebras estremecem, e a poeira e a secreção que se acumularam ali do choro e do suor nos últimos dias se esfarelam e John pisca dez, vinte, trinta vezes. Seus dentes chocalham.

– Thomas? – ele diz, o hálito fétido e a língua espessa.

– Sou eu – Thomas diz.

– Katherine? Onde ela está? Onde está Kit?

Thomas não sabe o que dizer.

– Está vindo – ele diz.

– Será que ela... ela vai poder...?

– Vai, sim – Thomas mente.

John gesticula com seu toco de braço. Thomas sabe que se John tivesse mão ele o agarraria.

– Graças a Jesu – John diz.

– Amém – Thomas diz.

John resvala para seu delírio outra vez. Thomas fica em pé e observa-o por um instante. Pensa naquela ocasião na guarita em Alnwick. Katherine havia dito que tinham que cortá-lo imediatamente se quisessem salvar sua vida. Ela nem sequer esperara a comida antes de operá-lo. Ele abaixa os olhos para suas próprias mãos – para seus dedos nodosos, suas palmas calosas. Não há como operar John, ainda que pudesse se lembrar de como ela fez isso. Ele se lembra de uma faca, uma serra, uma vela. O que mais? Óleo de rosas, fio de linho para costurar, urina. Bastante disso, ele supõe, com as recém-construídas latrinas de Warwick.

Mas não. Ele não pode fazer isso. Precisa de Katherine. Cristo. Onde ela está? Ele poderia enviar uma mensagem? Ela poderia chegar a tempo? Ele olha atentamente para o membro apodrecido. O brilho rosado está subindo em direção ao cotovelo. Quanto tempo de vida John ainda tem?, ele se pergunta. Katherine lhe contou que Payne havia lhe dito que a podridão negra entra no sangue e vai para o fígado, e quando um homem morre disso, se você o abre depois de morto, seu fígado ferve e borbulha.

O sol está brilhando agora, lançando sombras profundas na passarela. Há um guarda na outra ponta, que também já está só de gibão, apoiado contra o muro de pedras, o elmo e a alabarda no chão ao seu lado. Thomas se pergunta quanto ainda faltaria para as primeiras folhas começarem a cair. Um mês, talvez? Será que John viverá tempo suficiente para vê-las cair? Não. Não há a menor possibilidade, a menos que Thomas faça alguma coisa.

Ele se vira e volta para dentro da torre.

Jack está acordado. Seus penetrantes olhos azuis movem-se devagar em seu rosto surrado e machucado, como estariam se ele estivesse doente, mas quando levanta o olhar e vê Thomas, eles se apertam com incredulidade e ele abre a boca para dizer alguma coisa, mas o guarda entra ali primeiro.

– Diga-nos outra vez quem é você – ele diz.

Thomas quase já se esqueceu do que havia dito. Nettie está chorando ao vê-lo.

– Você deixa uma mulher grávida acorrentada? – ele pergunta. – Sem os cuidados de uma parteira?

Os dois homens entreolham-se e há uma pausa momentânea para sugerir que também eles têm reservas quanto a isso. Então, um deles – o que o deixou entrar – dá de ombros.

– É ordem de sir Edmund – ele diz. – Ele está resolvido. Acha que está perto do que procura e este homem – ele dá um chute em Jack – e esta mulher, ele acha que sabem onde está.

– O que ele fez com eles até aqui?

Novamente, aquela pausa envergonhada.

– Nada, ainda – diz o segundo homem. – Ele está esperando.

– Esperando o quê?

– Que... que a criança nasça.

– E depois?

Nenhum dos dois responde.

– Não podem estar sugerindo queimar... queimar um bebê?

Os homens – eles próprios deviam ser pais – parecem impotentes. Não é uma braçadeira de pé de cabra que o sujeito está limpando, mas algo que Thomas não reconhece, embora tenha uma lâmina.

– Você não o conhece – um deles diz. – Não conhece aquele gigante que ele tem. Ele ri deste tipo de coisa. Queria que nós... a violentássemos. Disse que, se não o fizéssemos, o gigante o faria.

Thomas olha para Nettie. Ela virou o rosto, os olhos cerrados com força. Lágrimas derramam-se deles. Jack também tem o rosto contorcido de vergonha e dor.

– E vocês fizeram isso? – Thomas pergunta.

Ele acha que seria capaz de matá-los se disserem que sim. O mais velho dos dois guardas sacode a cabeça.

– A mulher do comandante, ela ouviu os gritos da capela, assim o comandante veio correndo a pedido dela e proibiu que tocássemos nesta aí. Sir Edmund mandou uma mensagem ao conde de Warwick para se certificar de que todos sejam notificados de que ele pode passar por cima das ordens de Bellman nestes assuntos. Estamos aguardando a resposta.

Os dois homens parecem nauseados. Se pudessem fugir de seus deveres, eles o fariam. Thomas aproxima-se de Nettie e agacha-se a seu lado, exatamente como fez com John. Ela olha para ele aterrorizada.

– Quanto tempo você acha que ainda tem, Nettie? – ele sussurra.

Ela encolhe os ombros.

Katherine saberia com um único olhar, ele pensa.

Ele se levanta. Não tem um plano, mas acha que já ficou ali tempo demais.

– Eu vou voltar – ele diz aos guardas. – Alimente-os, lhes dê água e roupas limpas. E pare de limpar esse negócio aí, o que quer que seja, e cuide de seus afazeres. Cristo! Eles ainda são ingleses e ainda são súditos do rei Eduardo, o que quer que esse Edmund Riven queira extrair deles.

Tanto Nettie quanto Jack se contorcem em suas correntes como se pudessem ir com ele. Thomas faz um brusco sinal com a cabeça para os guardas e desce os degraus correndo. Quando atravessa a porta e sai para o ar puro outra vez, ele respira profundamente até olhar para a direita e, pela passagem sob a capela, vê o gigante assomando. Ele parte na direção contrária e chega à torre de menagem. Está ao pé das escadas para seu próprio aposento quando Flood aparece. Ele segura dois arcos finos e duas aljavas de flechas, e parece atarefado.

– O rei Eduardo quer ir caçar – ele diz. Parece satisfeito e mostra a Thomas duas pontas de flechas que parecem luas crescentes. – Devemos nos encontrar com ele nos estábulos para arranjar cavalos.

Caçar! Cristo, isto não é o que precisa fazer agora. Mas ele se vira e olha por cima do ombro – e lá, assomando na esquina, está o gigante.

– Vamos, então – ele diz e rapidamente segura Flood pelo ombro e o conduz para longe dali. – Tenho algo a perguntar ao rei.

Os estábulos ficam depois do portão leste, atravessando-se uma ponte e entrando em um pátio secundário, onde são conduzidas as atividades malcheirosas vitais para o bom funcionamento do castelo: o ferreiro, o curtidor de couro, o açougueiro, onde agora mesmo um boi é amarrado e suspenso pelos cascos, sua barriga cortada da garganta ao rabo, de modo que as entranhas caem, brilhantes, rosadas e cinzentas, em um tonel embaixo. Mais além, os cães de caça latem, os cavalos batem as patas, o chefe está gritando com o abatedor enquanto todo mundo ri e o ar está carregado do cheiro de sangue e de moscas gordas e lentas.

Mas o rei Eduardo já está fora dos portões, segurando um belo corcel, e há vários cavalariços com mais dois cavalos para Flood e Thomas. O padre sem queixo também está lá e mais dois homens também, mas já estão montados e observando atentamente, e nenhum deles carrega um arco. Thomas se pergunta que promessas o rei Eduardo teve que fazer ao comandante para ter a permissão de sair assim. O que o impede de sair cavalgando direto até York talvez?

O rei Eduardo parece inteiramente mudado quando se chega perto o suficiente para ver a expressão de seu rosto. Parece despreocupado, aliviado de um peso. Ele os saúda alegremente, sem restrições ou formalidades, como se fossem o próprio Hastings, em vez de seus representantes.

– Sir John – ele cumprimenta Flood, e depois: – Mestre Everingham.

Thomas imita Flood quando ele remove o chapéu e o segura contra o peito.

O rei Eduardo ri.

– Vejam o que o caçador nos mostrou!

Em sua mão, ele segura um cone de folhas dentro do qual está uma pilha de pequenas bolotas pretas – fezes de animal. Flood parece entusiasmado. Thomas permanece impassível.

– Vamos! Montem! Vamos cavalgar. O caçador diz que devemos ficar em posição.

O que se segue é tanto confuso quanto simples. Um dos homens de Warwick – embora não esteja de uniforme vermelho, mas de castanho-avermelhado e verde – os conduz na direção sul do castelo, através de parques e jardins murados, uma horta, depois uma criação de coelhos, até passarem por uma antiga elevação, quando ele vira para oeste e sobe para o topo plano de uma colina. O rei Eduardo está encantado com a falta de respeito do homem e não para de se virar para Thomas e Flood, revirando os olhos. Ele se comporta, o tempo inteiro, como se fosse uma espécie de noviço, zombando de um prior mal-humorado. Após algum tempo cavalgando, são levados a uma depressão rasa e o caçador lhes diz para desmontar, mas ficar com seus cavalos. Ele os examina com um olhar avaliador e os conduz para determinados locais que dão vista para uma vastidão coberta de uma espécie de samambaia. Thomas fica na extrema direita, o rei Eduardo no meio, o padre sem queixo em seguida e depois Flood na extrema esquerda. O arco que deram a Thomas é fino, do tipo que um jovem usaria, feito, ele acredita, de azevinho, e ele sabe que poderia dobrá-lo em um círculo sem nenhum problema. Observa os outros prepararem seus arcos e faz o mesmo. Eles permanecem bem juntos a seus cavalos, usando-os, Thomas imagina, para encobrir o cheiro ou o vulto deles.

O dia está ficando bonito.

Thomas espera, mas Jack, Nettie e John estão em sua mente e ele não consegue deixar de se aproximar do rei Eduardo, embora Flood tenha lhe dito que não deveria falar com ele antes do destrinchamento, o que aparentemente é uma das muitas regras tácitas da caça que ele já deveria saber. Thomas dá um passo em direção ao rei e abre a boca para falar, mas Flood lança-lhe um olhar de aviso e, nesta questão, Thomas só pode confiar nele. No entanto, segue-se um bom intervalo no qual nada acontece, exceto que ele ouve cachorros latindo e o berro de um caçador ao longe.

– Lá vêm eles! – o rei Eduardo em parte sussurra, em parte grita.

Thomas vê oito ou nove cervos marrons, suas galhadas com muitas pontas, saltando rapidamente pela colina abaixo em meio às samambaias como se estivessem sobre molas. O rei Eduardo ri de satisfação. Em um instante, os animais estão em cima deles, saltando com uma velocidade surpreendente. Thomas encaixa uma das flechas de formato curioso. Imagina que o rei Eduardo deve atirar primeiro e aguarda. De fato, os outros aguardam também. O rei aponta, atira e erra. Deve ser perigoso para os que vêm atrás, Thomas não pode deixar de pensar enquanto apronta seu próprio arco e atira uma flecha que penetra com um som surdo na garganta de um enorme cervo a uns trinta passos de distância. Ele urra, mas passa por eles como uma flecha. É impressionantemente grande, como um barril plantado com uma árvore. A flecha desapareceu dentro de seu peito. Os outros também atiram. Um dos cervos cai instantaneamente. Em seguida, os demais passam saltando por eles, tão perto que Thomas quase poderia esticar o braço e tocá-los. O rei Eduardo está tentando encaixar outra flecha, mas é tarde demais. No tempo que ele leva, os animais já se foram. Thomas observa seu próprio cervo virar-se para a direita e, em seguida, a uns cem passos mais adiante, reduz a velocidade, suas pernas se embaralham e ele tomba nas urzes.

– Um belo tiro – diz o rei Eduardo, quase gritando.

Eles ficam ali parados por um longo instante. Thomas não sente nada pelo que acaba de fazer. Não sente nada do prazer exultante que os outros parecem apreciar. Tudo em que consegue pensar é na cena na torre, com seus amigos acorrentados e morrendo em sua própria sujeira. Nem um urso deveria ser tratado daquela maneira.

– O que vai acontecer com ele? – ele pergunta quando estão reunidos ao seu redor. Sua língua está estendida para fora e manchada de sangue escuro, e há musgo ou algo assim crescendo em sua galhada. O corpo do animal é surpreendentemente grande. O maior animal que Thomas já matou.

– Os animais serão destrinchados e depois será feita a limpeza – Flood diz –, quando as melhores partes irão para a despensa do comandante, naturalmente, e o resto será distribuído entre os homens e os cachorros.

O rei Eduardo se une a eles. Tem um cantil de vinho e o passa aos demais.

– Um belo tiro – ele repete.

Thomas pensa que era como um alvo vindo em sua direção. Não poderia errar. Embora o rei Eduardo tenha errado e, portanto, ele não diz isso.

Enquanto o cervo é amarrado em uma vara e os cães de caça são reunidos, o rei Eduardo convida Thomas e Flood a cavalgarem com ele. O padre sem queixo e os dois guardas os seguem.

– Temos que aproveitar o melhor possível desta situação – diz o rei Eduardo. – A caça é boa, e olhem: bastante para nossos falcões. Fora isso, o castelo é... o que você diria? Muito confortável?

Flood murmura algo elogioso.

– Sim – continua o rei Eduardo –, ele sem dúvida se saiu bem, milorde de Warwick.

Conforme se dirigem para o castelo, Thomas não consegue desviar os olhos da torre sudeste.

– Mas há algo estranho nesse castelo – o rei Eduardo continua, falando consigo mesmo mais do que com Thomas ou Flood, talvez. – Uma atmosfera estranha.

Flood olha para Thomas. Agora é o momento.

– É Edmund Riven, sir – Thomas diz. – O homem sem um dos olhos.

O rei Eduardo olha para ele por baixo de uma sobrancelha arqueada. É um homem bonito, mas sua boca é muito cerrada e com os cantos levantados, como se estivesse permanentemente reprimindo um sorriso. Há algo irritante a respeito disso: sugere que ele está se divertindo com tudo que vê e que a parte melhor e mais séria de sua vida é vivida em outra parte.

– Bellman estava se queixando dele ontem à noite – ele diz.

Flood pergunta por que Bellman se queixaria de Riven.

– Aparentemente, milorde de Warwick ordenou-lhe que oferecesse toda assistência ao sujeito, mas ele não sabe por quê, nem o que está fazendo, e como pode imaginar ele não gosta muito disso.

– Ele está torturando pessoas – Thomas lhes diz. – Ele tem um moribundo lá em cima daquela torre, uma mulher, prestes a dar à luz, e um homem de um braço só que ele queimou quase até à morte, todos acorrentados a uma parede.

O rei solta a respiração, enojado.

– Que olho ele perdeu? – ele pergunta.

– O esquerdo – Thomas responde.

Ele não se surpreende.

– Os filósofos nos dizem que o olho direito oferece compreensão, ao passo que o esquerdo oferece afeto. – O rei Eduardo gosta de filosofia.

– Uma mulher prestes a dar à luz? – Flood pergunta.

Thomas balança a cabeça, assentindo.

– O que ela fez? – o rei Eduardo pergunta. – Fora o óbvio.

– Nada – Thomas diz.

– Então... por que ela está acorrentada assim?

– Não sei.

O rei Eduardo fica pensativo. Mas há um brilho crescente em seus olhos, como se tivesse visto uma oportunidade.

– Direi a Bellman – ele diz. – Ele não é um mau sujeito, considerando-se tudo, e pode gostar de algum tipo de intervenção, eu acho. Além do mais, um primeiro teste do paradeiro de sua lealdade, hein?

Thomas não tenta compreender esta última observação. Eles deixam seus cavalos nos estábulos no pátio externo e atravessam o portão leste de volta para dentro do castelo. Thomas está faminto, ele sente, e o jantar está sendo servido no salão: sopa de leite e canela, coelho assado, uma travessa de legumes temperados com especiarias, um queijo macio, um queijo firme, um pedaço de um dos cervos que acabaram de matar e mais pão e cerveja. Novamente, o rei Eduardo assume a mesa na plataforma, sentando-se ao lado de Bellman, e Thomas percebe olhares em sua direção e, em seguida, cabeças inclinadas e juntas uma da outra.

Mais tarde, Bellman deixa o salão e o rei Eduardo ergue as sobrancelhas, mas nada mais acontece e Thomas fica andando de um lado para o outro até que Flood pede ajuda para escrever uma carta à sua mulher. Ela não sabe ler, Flood lhe diz, e com toda franqueza ele mal sabe escrever, assim Thomas desenha uma minúscula figura de um belo cavaleiro, de armadura, sobre um cavalo.

– Ah, ela vai gostar disso! – Flood diz. – Você é tão bom quanto qualquer monge que eu já tenha conhecido.

– Como vai fazer isso chegar a ela? – Thomas pergunta. Presume que a comunicação com o mundo exterior seja limitada. Flood lhe diz que encontrou um monge cisterciense desejoso de companhia que vem e vai de um mosteiro Jervaulx próximo e que terá prazer em trazer e levar qualquer coisa, em troca de esmolas e conversa. Assim, Thomas escreve uma carta a Katherine em Marton, dizendo-lhe onde se encontra e o que aconteceu. Ele deixa a carta com Flood, pede emprestadas algumas flechas de ponta cega ao sargento e passa o resto da tarde no campo de treinamento, apenas de gibão e meia-calça. Ele simplesmente não sabe o que mais deve fazer e de vez em quando seu olhar resvala para as muralhas do castelo, para onde a guarda o observa das ameias próximas à torre sudeste. Katherine saberia o que fazer em seguida. Sim. Ela saberia.

E quanto tempo resta a John antes que a podridão o mate?

E Nettie? Certamente não tem muito mais tempo.

Ele lança suas flechas zunindo até os montes de terra úmida a cem passos de distância. Depois de lançar vinte e quatro flechas, ele anda até lá e as recolhe. Faz isso repetidamente. É uma forma de controlar sua selvageria, ele sabe, e se pergunta se não deveria estar dirigindo essa ferocidade para outro alvo.

Após algum tempo, outros vêm se juntar a ele e lhe emprestam um arco de verdade. Passando o tempo na companhia desses homens, ele descobre que não são diferentes dos muitos que conheceu antes. Entretanto, cada um desejaria estar com o resto dos homens de Warwick no sul, onde acreditam haver chance de saques. Ouve-se falar de como os homens de lorde Montagu certa vez se depararam com uma fortuna e como é um bom homem por deixá-los dividir o tesouro entre eles, sem requisitar nada para si mesmo. Imaginam que seu irmão, o conde de Warwick, faça o mesmo, caso a oportunidade apareça, pois ele aprecia os grandes gestos.

Thomas pergunta a eles a respeito de Riven.

Um deles faz o sinal da cruz.

– Sujeito ruim, não presta – ele diz.

– Não se coloque contra ele – diz um outro. – É capaz de fazer aquele seu gigante sodomizá-lo até a morte.

Eles discutem sobre o gigante e concordam que é retardado, e da Irlanda, embora não haja provas disso.

– Ele é como um desses cães de caça ao javali que jamais saem do lado de seu dono – diz um deles.

– Nunca diz nem uma palavra – acrescenta outro. – Só sabe grunhir.

A tarde esfria. Um vento sopra mais forte. Thomas veste novamente seu casaco e depois de algum tempo eles guardam os equipamentos e voltam juntos pelo portão leste outra vez. Conforme o atravessam, captam traços do mau cheiro de John, trazido pelo vento da muralha sul ou da torre sudeste. Todos os homens se queixam e cobrem a boca e o nariz. Thomas olha pela passagem sob a capela, que parece emoldurar a porta da torre sudeste, e ela está aberta. Pensa em John outra vez e reza uma prece silenciosa para ele.

À medida que escurece, ele se dirige com Flood para o grande salão na torre de menagem de onde o cheiro de comida e o som de vozes emanam, mas em vez de se juntar a eles, sobe os degraus para a ponte coberta que o levaria através do pátio até os aposentos da ala sul, onde o comandante Bellman e sua família moram. A porta está fechada, é claro, e Thomas para na ponte e olha para baixo, para a porta da torre sudeste. Essa também está fechada, entretanto o fedor da doença é onipresente. Parece se impregnar em suas roupas como uma tintura. Ele apoia os cotovelos no parapeito e olha para baixo, para dentro do pátio, iluminado por uma luz fraca que vem das janelas da torre, quando há uma comoção à porta da passagem. Três homens emergem, com aparência de guardas, conduzindo o que parece ser uma mulher trajando uma capa de viagem. Estão com pressa. Um deles bate na porta da torre sudeste, exatamente como Thomas havia feito mais cedo no dia. Eles recuam um passo para esperar. Um deles se vira para a mulher e pergunta alguma coisa. Ela responde ríspida e desdenhosamente, e enquanto o homem com quem ela está falando não ri, os outros dois riem. Há alguma coisa naquela mulher...

Então, a porta é aberta. Um lampião é segurado no alto, derramando luz nos rostos voltados para cima. Thomas pensa, Por Deus, será...? Não. Certamente que não. Ele não ouve o que é dito. A mulher sobe alguns degraus e cobre o nariz. Ela diz alguma coisa, o homem lá dentro resmunga algo em resposta e fecha a porta. A luz desaparece. Os três guardas e a mulher – é definitivamente uma mulher – esperam. A mulher move-se ansiosamente. Um instante depois, a porta se abre novamente e desta vez é Edmund Riven. Ele está vestindo seu casaco. Ele faz uma pergunta ríspida à mulher:

– Onde?

A mulher responde:

– Na estalagem.

Ela tem a mesma voz de Liz, Thomas pensa, mas isso é impossível. Após um instante, Edmund Riven a afasta e passa por ela, em seguida o gigante bloqueia a luz do vão da porta quando emerge e, juntos com os três primeiros guardas, todos saem do pátio pela passagem sob a capela. O homem que segura o lampião fica parado à porta mais alguns instantes e em seguida a fecha.

Tudo levou o tempo necessário para se rezar o padre-nosso.

Thomas aguarda um instante e em seguida retorna ao grande salão, onde o rei Eduardo já está com o rosto vermelho de bebida, mas não há sinal de Bellman. Thomas está prestes a deslizar para o assento ao lado de Flood, que discute a caçada do dia com o padre sem queixo, quando um dos criados bate em suas costas e lhe diz que sua presença é requisitada lá fora. Há algo dissimulado na atitude do homem, como se um favor estivesse sendo pedido, em vez de se tratar de uma convocação oficial, e assim Thomas sai rapidamente, seguindo o criado pela escada circular até às cozinhas insuportavelmente quentes e que cheiram a cebolas fritas ou suor humano, e dali para fora, através de portas baixas no pátio. Está muito escuro e ele é aguardado nervosamente por um dos homens da torre sudeste, um dos que haviam parecido tão envergonhados pelo tratamento que estavam dando a Jack, Nettie e John Stump. Ele segura uma lamparina de junco, que lança uma claridade fraca e toca o gorro numa saudação.

– Você é um cirurgião, você disse? – ele pergunta.

Thomas não nega.

– Achamos... achamos que a mulher está prestes a dar à luz – o homem continua. – E achamos que o outro... com o... sabe? Achamos que não vai demorar muito para partir deste mundo.

– Não há nenhuma parteira? Nenhum... outro cirurgião?

– Ambos foram para o sul. Estão com o conde em Londres ou sei lá onde. Você é o único versado em qualquer tipo de assunto médico.

– Mas e quanto a Edmund Riven?

– Ele foi chamado em uma de suas incursões, ou missões, ou o que quer que ele as chame. Logo vai arrastar para dentro algum pobre pássaro incapaz de voar, mas... antes disso... pode vir? Você pode ao menos lhes oferecer algum conforto.

Thomas sabe que não pode fazer nada e que o homem deve achar um padre, mas é o mínimo que ele pode fazer. Já ajudou muitas ovelhas a darem à luz, e se ele puder ajudar Nettie, isso ao menos já é alguma coisa.

– Não tenho nenhum instrumento – ele diz. – Facas e coisas assim.

– Oh, meu Deus, nós temos facas – o homem diz. – Mas depressa! Nunca se sabe quando ele vai retornar.

Neste momento, ninguém menos do que Flood sai das cozinhas. Ele seguiu Thomas.

– Você está bem, Thomas?

Thomas conta a ele o que está fazendo. Flood fica perplexo.

– Você é um homem de muitas facetas – Flood diz.

Thomas concorda.

– Vamos – o guarda insiste.

– Pode trazer água? O mais quente possível, e panos, limpos, se possível, e... e vinho. Uma grande quantidade. Peça nas cozinhas.

– Claro – Flood diz.

Thomas segue o guarda até a torre de menagem e começam a subir para a câmara no alto da torre, a claridade da lamparina guiando o caminho. Ele prende o nariz e fecha a boca. Aquele cheiro horrível. Pode sentir o coração no peito, batendo forte contra suas costelas. Parece que vai conseguir sair, forçando o caminho pela boca. Cristo. O que ele vai fazer? Ouve-se um grito repentino na escuridão acima. Pungente e ferido. Ele pensa em carne dilacerada. Ele tropeça e se recompõe.

Ouve Jack gritando para Nettie.

– Tudo vai ficar bem, Nettie! Tudo vai ficar bem!

Quando chegam ao andar de cima, a porta é aberta e o fétido odor adocicado circula no ar. Há uma lamparina sobre a mesa, mas o guarda está agachado nas sombras ao lado de Nettie. Jack está de joelhos onde a extensão de sua corrente lhe permite, o rosto banhado em lágrimas e ele grita seu nome sem parar.

– Tirem as correntes deles! – Thomas grita.

– Não podemos! – o guarda grita de volta. – Não temos a chave!

– Onde ela está?

– Na bolsa de Edmund Riven! Em seu cinto.

– Quebrem as correntes! Quebrem!

Nettie berra como um animal. Seus gritos ecoam pela câmara. Os dois guardas estão quase loucos de vergonha e tristeza.

– Como? Como?

– Corram até o ferreiro! Encontrem-no! Tragam seus martelos e... e o que mais houver. Uma ferramenta para quebrar os elos!

– Thomas! – Jack grita. – Ajude-a! Ajude-a!

Thomas fica paralisado por um instante. Ele olha para Nettie. Há sangue por toda parte. Suas mãos parecem garras. Ela está puxando suas saias encharcadas. O cheiro do ferimento de John ainda é insuportável. Ele corre para ela. Tenta ficar calmo. Ele a segura. Conversa com ela da mesma maneira como costumava acalmar as ovelhas. Fala em um sussurro, chamando-a de “garota”.

– Tudo ficará bem – ele murmura. – Tudo ficará bem. Vamos. Vamos. Isso. Pode gritar bem alto se isso ajudar.

Nettie segura a mão de Thomas com as duas mãos, uma ligação selada com seu próprio sangue, aperta-a e grita a plenos pulmões. Ela chutou seu banquinho para longe e está sentada contra a parede, com as pernas estendidas à sua frente e as mãos acorrentadas acima da cabeça. Thomas grita que sente muito e ela xinga sobre o corpo, o sangue e os ossos de Cristo. Jack grita dizendo que ela não fala sério, o outro guarda chora e Thomas sabe que John Stump está morrendo logo ali depois daquela porta. Ele compreende que ultrapassou os limites do perdão pelo que causou àqueles três.

Nesse exato momento, ele ouve passos nos degraus e os guardas se entreolham com absoluto pavor.

Riven está de volta.


20


Katherine fica nas sombras da entrada do pátio de um tintureiro, onde o mau cheiro é suficiente para tornar um vigia noturno redundante, e ela reza para estar errada. Reza para que Liz volte perambulando da outra estalagem, arrumando seus cadarços, com a notícia de que Jack, Nettie e John Stump foram libertados e que Edmund Riven não está mais à procura do livro-razão. Ela segura Rufus nos braços e ele é um peso morto e quente, com o rosto pressionado, fungando, contra a pele nua de seu pescoço, e as palavras de sua oração se derramam de seus lábios em uma lamúria de terrível desespero.

– Por favor, Senhor, atenda minhas preces – ela suplica.

Mas ela sabe que suas preces são em vão. Sabe que foi traída, enganada, caluniada e até mesmo condenada à morte certa quando, após um longo instante, ouve gritos de trás das casas lá em cima junto ao castelo e, em seguida, entrando com passos determinados na praça do mercado na penumbra do fim de tarde do final de verão, surge Edmund Riven. Ele é inconfundível, com um pedaço de pano pressionado à face, a cavalo, liderando um grupo de dez a quinze homens, cada qual carregando um lampião e uma foice de guerra. Eles se dirigem à White Swan, e o gigante está com eles, cabeça e ombros acima de todos os outros, galopando ao lado de Riven com uma facilidade enervante e inumana, como um cão de caça.

Tem que sair dali, ela sabe. Deve ir embora, mas para onde? Nunca chegará longe ao longo das estradas por onde veio ou através dos campos. Riven e seus homens a caçarão em pouco tempo. Onde ela pode se esconder? Em nenhum lugar por muito tempo.

Não há nenhum outro lugar. Precisa de um refúgio sagrado, um santuário.

Ela desliza novamente para dentro das sombras cada vez mais densas do pátio, onde depois do calor do dia o mau cheiro de decomposição dá a sensação de clara de ovo crua no fundo de sua garganta. Rufus murmura e se remexe quando ela passa pelos tonéis onde as peles de animais estão curtindo e pelas armações de secagem onde outras estão penduradas. Eles saem pelos fundos do pátio seguindo um caminho bastante usado até o riacho onde o tintureiro deve despejar seus dejetos. Há uma tábua escorregadia atravessando-o e do outro lado estão os barracos dos seus ajudantes, onde um cão acorrentado está latindo.

Ela atravessa a tábua e se afasta pela encosta acima, para longe dos barracos, seguindo o riacho de volta em direção ao vulto da torre da igreja que se ergue contra as nuvens com a lua ao fundo. É um ato desesperado, mas o único que lhe ocorre no momento. Passa com dificuldade por cima da cerca baixa de pés de avelã, uma perna de cada vez, e um cachorro maior começa a latir. Em seguida, chega ao muro do cemitério do pátio da igreja, acima do qual galhos negros de teixo oscilam e dançam ao vento refrescante. O crepúsculo está repleto de morcegos. Ela segue o muro para a esquerda, agradecendo a Deus por este ter sido um dia longo, mas agora finalmente a noite começa a se fechar por trás dela.

Rufus acordou novamente, de modo que ela pode colocá-lo no chão por um instante e jogar o livro-razão por cima do ombro, junto com sua outra bolsa. Ela vai conduzindo-o, encontra o portão da igreja e, após algumas tentativas com a trava, consegue abri-lo.

– Venha – ela diz.

– Onde está Liz?

– Ela... ela foi procurar ajuda.

O rosto receptivo e ansioso de Rufus reflete o luar fraco. Ele está fatigado, curvado, como se fosse feito de massa em vez de carne, e há bem pouca da preciosa carne em seus ossos de qualquer modo. Ela coloca a mão em seu ombro estreito.

– Vamos dormir aqui esta noite – ela diz a ele. – Depois, pela manhã...

Ela ouve um ruído. Algo produzido por um ser humano, acima do sussurro dos galhos.

– Vamos – ela diz, sussurrando, e atravessa o portão correndo, guiando-o para dentro da escuridão do cemitério onde lápides repousam no capim alto, pálidas como fantasmas. O caminho é de lajes de pedra e leva à porta sul da igreja. Ela espera que esteja destrancada. Se não estiver, ela está preparada para quebrar uma janela. Fará Rufus passar pela abertura estreita como um ladrão comum e ele poderá abrir a porta para ela. Desta forma, eles ao menos estarão em um lugar seco e pela manhã, quando o padre vier, ela fará como o homem que abordou Isabella naquela vez em Lincoln e solicitará abrigo.

Entretanto, ela vê uma luz lá dentro, através daquelas vidraças multicoloridas. Alguém está lá. Queira Deus que seja o padre. Conduz Rufus rapidamente para a porta e tenta abri-la. Está trancada. Ela bate o mais alto que ousa bater, uma série de batidas surdas com a parte inferior de seu punho. Um instante depois, vê-se um filete de luz entre a porta e o chão de pedra. Alguém está vindo.

– Quem é e o que deseja? – uma voz soa lá de dentro.

Ela hesita. Se gritar, será ouvida. Saberão que ela está ali. Assim, não diz nada e apenas bate outra vez. Após alguns instantes, ouve os ferrolhos serem destrancados. A porta se abre, apenas uma fresta, e uma fatia de luz amarela de lampião atravessa a abertura. Um homem pressiona o olho na abertura e a examina. Ela empurra Rufus para a frente, para mostrar que não tem más intenções. O olho do homem, escuro, salta para ele e a porta se abre um pouco mais.

– O que deseja? – ele pergunta.

– Refúgio – ela diz. – Para a noite. Há alguns homens... nós... nós estamos sendo perseguidos.

Ainda assim, ele não parece disposto a abrir mais a porta.

– Vão para o castelo – ele sugere. – O comandante é um bom homem.

– Por favor – ela pede. – Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em nome dele. Caridade. Não é para mim, mas para meu filho.

O homem continua resistindo, de modo que ela força a porta e atravessa a soleira antes que ele possa fechar a porta em sua cara. Ele é um padre, com um hábito escuro comprido até o chão.

– Obrigada, padre – ela agradece, enquanto o sacerdote hesita à porta. – Tranque-a. Por favor. Tem que trancá-la. Há uns homens lá fora. Ladrões.

– Ladrões! – ele exclama, a voz aguda de medo. – Você trouxe ladrões para a minha porta?

– Não se o senhor a fechar – ela lhe diz. – Eles não violarão o santuário da igreja.

O padre não tem escolha. Fecha a porta atrás dela, tranca os ferrolhos, em cima e embaixo, depois abaixa a trava de madeira. Quando ele se endireita, segura seu lampião no alto para inspecioná-la mais detalhadamente e se revela como sendo um homem de meia-idade, sem chapéu, com os cabelos escuros em desalinho. Ele parece estar furioso com ela.

– Por que você está fora a esta hora? – ele pergunta.

– Não tive escolha – ela diz. – Viemos de... de York. Alguns homens nas estradas levaram nossas bolsas, de modo que ficamos sem dinheiro para pagar uma hospedaria. – Ela puxa Rufus para junto de seu corpo. Não quer que ele conte a verdade.

– Mas não podem ficar aqui – ele diz. – Não agora. Não esta noite.

Seus olhos saltam para a escuridão da nave e voltam para ela.

– Não iria nos mandar para fora, para o meio da escuridão, não é? – ela pergunta.

Ele está desconcertado. Ela pode ver que ele busca uma razão para mandá-la embora. Ela desvia os olhos dele e ajeita Rufus no chão com as costas contra uma coluna, depois afaga seu rosto.

– Vai ficar tudo bem – ela lhe diz, carinhosamente. – Este bom padre vai nos deixar passar a noite aqui.

Quando ela se levanta, o padre ainda está agitado e indeciso. É como se o tivesse flagrado em algo inapropriado.

– Você diz que não tem nenhum dinheiro? – ele pergunta.

Ela sacode a cabeça.

– Levaram tudo. Em um cavalo.

– O que tem aí? – ele pergunta e inclina-se para perto dela para tocar a sacola do livro-razão.

– Um livro – ela diz, recuando. Ela sente cheiro de vinho em seu hálito.

– Quem são esses homens? – ele pergunta finalmente.

Ela lhe diz que não sabe e deixa a resposta a cargo da sua imaginação. Pode sentir seu olhar percorrendo-a, tentando avaliá-la. Imagina que ele ache que ela não vale a pena ser estuprada.

– Eles estão lá fora agora? – o padre pergunta.

Katherine balança a cabeça, confirmando. Agora ela só quer que a deixem em paz, mas o padre não desiste. Continua a fazer perguntas. Como eram eles? Como estavam vestidos? Quando os viu pela primeira vez? Quando os viu pela última vez? Como conseguiu escapar?

Conforme ele continua, ela pode sentir que perde as forças para continuar inventando ou forjando. Sente-se desprotegida, tão enojada de sua autopiedade que, sem dúvida, sua vergonha deve ser óbvia a quem quiser ver.

– Eu mesmo irei buscar o chefe da guarda do castelo – ele se oferece.

– Não!

Ele para, volta-se novamente para ela.

– Não? É ele que você está tentando evitar? – ele pergunta.

– Não. É que eu não quero incomodar.

– Bem – ele diz. – Isso você já fez.

– Incomodar mais – ela esclarece.

Faz-se um longo silêncio novamente.

– Por favor – ela diz. – Apenas esta noite. Deixe-me ficar com meu filho e pela manhã iremos embora. – Katherine está cansada demais para conversar sobre santuário esta noite. Ela o invocará pela manhã.

Após um instante, ele diz.

– Está bem.

O padre dá as costas para ela e se afasta, levando a luz consigo. Ela deixa-se cair ao lado de Rufus, as costas contra a pilastra, tira as botas e as coloca à sua frente. Não se perguntou o que o padre estava fazendo na igreja sozinho à noite, mas agora ela ergue os olhos quando o ouve sussurrando. Há mais alguém ali, uma mulher, na claridade do lampião. Será que ela e Rufus perturbaram algum encontro? Ela fecha os olhos e descansa a cabeça contra a pedra atrás de si, e pensa em como isso continua acontecendo, enquanto Deus parece determinado a testar somente ela.

Katherine gostaria que eles apagassem a chama do lampião, pensa em Edmund Riven e naquele gigante lá fora neste momento, na escuridão, e se pergunta o que ele teria dito e feito ao chegar à White Swan e descobrir que ela não estava mais lá. Imagina a busca que ele não devia estar fazendo. Todos os quartos da estalagem, para começar, depois toda casa próxima e depois o quê? Ele pensaria que ela pegou a estrada ou fugiu para as montanhas? Ela ao menos tem sorte de a escuridão ser completa, imagina. Ao menos agora ele se depara com uma infinidade de possibilidades que terá que levar muito tempo investigando.

É quando ela está pensando nisso que a primeira batida na porta ressoa pela nave. Ouve-se um grito do lado de fora. O padre levanta-se. Ouvem-se pés correndo quando a mulher vai embora.

– Você os atraiu para cá – o padre acusa.

– Não – ela diz. – Não pode deixá-los entrar.

– Mas quem eles pensam que são para perturbar a Casa de Deus? – ele pergunta a si mesmo. Está se dirigindo para a porta com o lampião na mão, incrédulo, quando ela é simplesmente arrombada com um barulho de madeira se lascando. O padre grita e dá um salto para trás. Ao lado de Katherine, Rufus se flexiona como um peixe na margem de um rio e já está de pé antes que o segundo golpe na porta a arranque de suas dobradiças e a lance pelo chão de lajotas de pedra com um ruído estridente. Luzes de várias lanternas cortam a nave escura.

É o gigante, é claro, quem entra primeiro, agachando-se para passar no vão da porta, bloqueando a luz de trás dele por um instante, mas ainda iluminado pelo lampião do padre. Exibe um esgar, rindo do que fez, e mais homens entram atrás dele, as lanternas erguidas, também admirando a força do gigante. Todos riem.

O padre se acovarda.

– O que vocês querem?

O gigante não diz nada. Sua cara é enorme, sua testa tão baixa e pesada que quase encosta no queixo proeminente.

– Onde está ela? – um dos outros homens pergunta.

A boca do padre está aberta conforme ele recua do gigante que avança sobre ele. Balbucia alguma coisa e em seguida segura o lampião no alto, e, em sua poça de luz, aponta para Katherine. Um dos homens tem um lampião olho de boi e balança o facho de luz pelos pilares para encontrá-la.

Alguém ri.

– Ora, ora!

Ela fica imóvel. É como se a luz a tivesse paralisado. O gigante move-se rapidamente, e ela sente suas entranhas derreterem. Agarra Rufus e o puxa para junto de si. O gigante também ri agora e se inclina. Com uma das mãos ele a suspende, agarrando-a pela gola da capa, e com a outra levanta Rufus da mesma forma. Ele se endireita e os separa, como se estivesse arrancando a cabeça de uma galinha. Segura-os no alto, os braços estendidos, de modo que Rufus fica pendurado a uns trinta centímetros do solo. A risada do gigante parece uma trovoada. Ele cheira a canis, jaulas de ursos e vinho forte.

Katherine o xinga. Ela lhe diz que ele é amaldiçoado por Deus. A cada vez, ele apenas ri. Ela dá um chute em sua virilha e ele para de rir. Em vez disso, ruge, seus lábios se curvam e ela imagina que ele vai soltá-la no chão e golpeá-la até a morte, mas o gigante simplesmente iça Rufus ainda mais alto, o menino escorrega em seu colarinho e começa a sufocar.

Os outros homens amontoam-se pela nave ao encontro deles, com suas foices de guerra e lanternas, e também continuam rindo.

– Não foi tão difícil – dizem.

– Por favor – Katherine implora. – Ele está machucando meu filho.

Mas eles parecem não ter total controle sobre ele ou têm medo de exercê-lo, e seus sorrisos tornam-se fixos e ansiosos.

– Solte-o – ela grita. – Solte-o!

O gigante simplesmente começa a rir de novo e torce o punho, apertando ainda mais o pescoço fino de Rufus, como se pretendesse enforcá-lo.

– Solte-o! – ela grita outra vez.

E, desta vez, suas palavras são ecoadas por uma voz vinda da porta da igreja. O gigante para de rir e olha à sua volta. Ele abaixa Rufus, que arqueja, tentando respirar, quando seus dedos tocam o chão. Katherine luta para alcançá-lo e o gigante, em dúvida, cede e ela abraça Rufus junto a si. Ele está puxando suas roupas, tentando soltá-las de seu pescoço e sua respiração é difícil. Sua pequena língua está para fora e seus olhos, esbugalhados.

Segurando-o junto a si, ela não consegue conter as lágrimas por tê-lo levado até ali. Que Deus a perdoe.

Os homens ao redor deles – com o vermelho de Warwick – recuam um passo para permitir que o homem à porta se aproxime.

– Então, aqui estamos finalmente – Edmund Riven diz. Sua voz é exatamente como havia imaginado: contida, mas desdenhosa. Ele aproxima-se dela em grandes passos, mas mesmo com aquele pedaço de linho pressionado contra o rosto, e mesmo com o gigante ali, ela se contrai quando sente seu cheiro fétido, virando o rosto, mas não antes de ver o quanto sua reação o enfurece.

– Onde está? – ele pergunta. – É isso aí?

Ele aponta para a sacola e gesticula para um homem, indicando que a tome de Katherine. Um deles dá um passo à frente e puxa a sacola, arrancando-a pela cabeça de Katherine. Ele a passa adiante. Riven olha dentro da sacola, para o livro velho e surrado, mas não o retira dali. Não é uma criança que precise ver seu conteúdo. Ele balança a cabeça e pendura a sacola no próprio ombro, virando-se em direção à porta.

– Peguem essa outra sacola dela também – ele diz. – E revistem-na. Deve ter uma faca escondida em algum lugar.

– Mas estamos numa igreja. Um santuário.

Riven para. Em seguida, começa a rir.

– Santuário? Santuário? Você diz santuário!

Sua risada se intensifica, surpreendentemente estridente. Katherine fica ali, agarrando Rufus enquanto os outros homens acompanham sua risada de modo constrangido. Riven até instiga o padre a se unir a eles e ele o faz. Em seguida, Riven para de rir e verifica seu curativo de linho manchado, como se o movimento da face fizesse a ferida vazar mais copiosamente. Os outros homens silenciam assim que ele o faz. Nas sombras, a mulher do padre reprime um soluço.

O gigante assoma sobre ela e fecha o punho em sua capa outra vez. Ele a levanta do chão, enquanto outro homem toma sua faca e deixa suas mãos a apalparem sem pressa – seus seios e entre as pernas –, e quando ela se debate, o gigante torce seu pescoço e ela tem que aguentar ou morrer sufocada.

– Certamente você não tem outra escondida aí em cima, não é?

Ele levanta sua saia. Ela o chuta e ele ri outra vez. Ela quase cospe nele. Ela gostaria de realmente ter outra faca.

– Vamos – Riven diz. – Haverá tempo de sobra para isso, brutamontes selvagem.

É um elogio e o sujeito ri.

– Ouviu isso? – ele zomba.

– Traga-os – Riven ordena, e o gigante segura os dois outra vez.

– Não – ela diz. – Eu vou. Deixe-me carregar meu filho.

Riven mostra-se impaciente.

– Se isso for nos adiantar – ele concede, e após um instante de pensamento vagaroso, o gigante os solta das enormes pás que são suas mãos e os empurra para a frente, fazendo-os cambalear, passando pela porta quebrada, para fora de qualquer ideia de santuário que ela já tivera, para a guarda de Riven, e ela pensa o quanto foi tola.

– Você já tem o que quer! – Katherine grita para Riven quando ele monta em sua sela. – Deixe-nos ir. Não podemos lhe fazer nenhum mal.

Riven olha para ela.

– Já pôde alguma vez? – ele pergunta.

Ele vira seu cavalo e segue em frente, trotando. Vendo-o lá em cima, triunfante, ela perde a calma. Não consegue se conter.

– Sim, certa vez, lembra-se?

Ele gesticula, insinuando que ela está louca.

– E então? – ela continua. – Lembra-se?

Ela está quase zombando dele. E isto porque ela se sente tão impotente. Katherine cede à sua raiva e quer que ele saiba o que ela fez a ele e o que ela é para ele. Quer lembrá-lo do mal que causou a ele. Nada disso é lógico. Não está pensando direito. Não está pensando em limitar os danos, em comunicar algo, nem em seu futuro. Só quer lhe mostrar que não é esta mulher que estão arrastando de volta à prisão de seu castelo, esta mulher que eles venceram.

– Seu rosto – ela diz. – Eu fiz isso. Com um balde! Lembra-se?

Os ombros de Riven se enrijecem. O cavalo continua andando.

– Do lado de fora do priorado em Haverhurst! Você e seu maldito pai! Eu era a freira que você quis atacar naquele dia.

Nesse instante, Riven vira-se em sua sela e olha fixamente para ela com um único olho furioso. Ela pode ver que ele tenta reimaginar aquela manhã tão distante, quando o atingiu com o balde, mas após um instante ele se vira para a frente outra vez, e é como se, talvez ao menos por enquanto, o esforço de se lembrar seja grande demais. Ele instiga seu cavalo, mas suas costas estão rígidas e seus ombros, erguidos, e os guardas que cavalgam ao lado dela sabem que isso é um mau presságio.

– Santo Deus, mulher – um deles sussurra –, por que foi dizer isso? Ele simplesmente vai nos lançar ainda mais contra você.

E ela compreende o que fez e sente suas entranhas se desfazerem de medo e raiva de si mesma. Ela resvalou para dentro de um inferno criado por si própria e, pior ainda, arrastou Rufus consigo. Agora, tudo que vê é carvão em brasa pressionado contra uma pele macia, o menino chora em seus braços, e o ar está cheio daquele cheiro horrível do rosto deformado de Riven. Não adianta mais lhe pedir que os solte. Ele jamais fará isso agora. Oh, Cristo, ela pensa, enquanto as lágrimas se derramam de suas pálpebras. Oh, Cristo.

Eles atravessam o portão da guarita e cada homem da guarda recua para deixá-los passar, os rostos se abaixando, as conversas diminuindo, e é como se ela estivesse marchando para o cadafalso do carrasco – só que isso é pior, pois não existe a promessa da rápida liberação pela lâmina do machado para a vida após a morte, apenas a de muita dor.

Uma vez atravessada a casa da guarda, podem ouvir música das janelas profusamente iluminadas da torre de menagem, e a ideia de que algo tão cotidiano pudesse continuar enquanto ela e Rufus são arrastados dali só piora seu estado de espírito. Riven desmonta, um rapaz surge para levar seu cavalo para os estábulos e ele caminha à frente, ainda com as costas retesadas. O gigante os empurra, fazendo-os seguirem Riven, em direção a uma passagem sob o que deve ser uma capela, onde os vitrais coloridos também estão iluminados – para uma missa noturna, talvez? – e então Riven para. Ele se vira e consegue esboçar um sorriso. Em seguida, indica com um gesto rápido da mão, e lá nas sombras está Liz, parada ao lado, a cabeça abaixada.

Os olhos de Katherine se estreitam quando a veem e tudo que tem vontade de fazer é estrangular Liz, arrancar a vida de seu peito, apertar seu pescoço com tanta força que as pontas dos dedos de sua mão direita pressionem as pontas dos dedos de sua mão esquerda. Ela faz força para se livrar da mão do gigante na gola de sua capa.

– Como pôde? – ela diz, rangendo os dentes. – Como pôde?

Liz ergue os olhos. Ela andou chorando, talvez, mas não chora mais.

– Ele tinha as minhas irmãs – ela diz, indicando Riven, que observa a cena. – As duas. Disse-me que, se não obtivesse o que queria, ele deixaria esse aí – ela aponta para o gigante – ter o que queria. Com elas.

– Você poderia simplesmente pegá-lo!

– Eu tentei! Pensei que você o tivesse escondido na maldita carroça! Na sua maldita arca!

– Então, você lhe entregou Jack e Nettie? E John? Você vendeu todos eles!

– O que mais eu poderia ter feito? O que você teria feito?

– Não sei! Não sei! Mas não isso! Não... não a Rufus! Não quando eu poderia ter feito qualquer outra coisa!

– Mas ele queria você – Liz continua. – Riven. Queria saber como você obteve o livro. Tudo. E eu não pude... não pude separá-los. – Ela engasga em seu próprio sofrimento por um instante e não consegue falar, mas em seguida lamuria-se: – Não me culpe! Não me culpe!

Diante disso, Katherine sente uma precipitação de raiva incontrolável. Tenta se lançar sobre Liz outra vez, mas a mão do gigante não cede e ela quase perde o equilíbrio. Liz recua.

– Katherine – ela diz. – Por favor, perdoe-me!

– Jamais a perdoarei! Está ouvindo? Jamais. Vou mandá-la para o inferno! Eu... eu... vou amaldiçoá-la!

Mas Liz está determinada e se lança na direção de Katherine com os braços estendidos, implorando, as lágrimas escorrendo pelo rosto. O gigante ri do sofrimento das mulheres, e Riven também observa com o olhar brilhante quando Liz abraça Katherine. Katherine tenta afastá-la, mas não consegue segurar Rufus e empurrá-la. Liz agarra-a, soluçando e suplicando a Katherine para, por favor, por favor, perdoar-lhe, e Katherine ainda está lutando contra ela quando a sente enfiar algo entre os cadarços de seu vestido. O objeto permanece lá, e então Liz se afasta e olha para ela, intensamente. Katherine silencia momentaneamente, tentando imaginar o quê, em nome de Deus, ela está fazendo, quando Liz afasta-se ainda mais para trás. Riven resmunga, entediado com tudo aquilo.

– Bem – ele diz. – Se vocês não vão lutar... – Faz um movimento brusco com a cabeça e o gigante empurra Katherine adiante, passando por Liz, fazendo-a cambalear pela passagem, esquecendo-se de que Rufus está ali no momento, observando tudo.

Ele a arrasta para fora da passagem, entrando no pátio seguinte, e é então que ela sente pela primeira vez o cheiro de podridão negra, acima até mesmo do mau cheiro que Riven deixa como o rastro de uma raposa no cio. Ela se lembra da primeira vez que sentiu esse cheiro, da ferida de John Stump na guarita em Alnwick, e sabe que ele está ali. De algum modo, ela tem certeza disso. É o tipo de coisa que Edmund Riven faria.

Mas agora Riven está desconcertado com alguma coisa, e o gigante também está intrigado e a faz parar de repente. Ela tenta se libertar de suas garras enquanto observam Riven caminhar rapidamente para uma torre e subir os poucos degraus até a porta escancarada. É dali, Katherine imagina, que o mau cheiro está se espalhando.

– Traga-a – Riven ordena.

Ele desaparece dentro da torre. O gigante a empurra para os degraus aos tropeções. Rufus começa a sufocar com o cheiro que emana da torre e ela tem que pegá-lo e carregá-lo. Ele se contorce e chuta, e Katherine tem que segurá-lo com força enquanto o filho luta para escapar. Também quer fazer o mesmo, mas o gigante está ali, empurrando-a para a frente, embora ela já esteja subindo a escada, e ela vira-se para ele e grita em seu rosto sanguíneo, largo e estúpido. Diz que ele não passa de um animal, que é o diabo em pessoa e que ela espera que ele passe a eternidade assando no fogo do inferno, e tudo o mais em que consegue pensar, mas ele permanece impassível e simplesmente continua a empurrá-la, com dedos da espessura de seu pulso.

– Faça-a se calar – Riven diz por cima do ombro.

Katherine tenta chutá-lo e dar-lhe cotoveladas, mas é difícil quando está carregando Rufus, e o gigante parece insensível à dor. Então, ela ouve, vindo de cima, um urro de agonia que deixa seus cabelos em pé. Riven, então, murmura alguma coisa, e o gigante a empurra com força, quase a fazendo cair. Rufus continua debatendo-se, tentando fugir e, assim, ela não vê exatamente o que acontece quando Riven entra em um recinto antes de o gigante derrubá-la. Katherine se endireita e verifica se Rufus está bem. Está engasgado com o fedor da podridão negra. Ele só consegue pensar nisso. O garoto escapa das mãos de Katherine e foge atabalhoadamente em direção a uma porta que deve levar para fora, para a passarela, de onde vem uma lufada de ar fresco: ele é como um náufrago se afogando, a quem foi dada uma chance de vida, e ela não consegue impedi-lo.

– Rufus!

Mas ele se vai e, então, ela ouve Riven gritando lá dentro.

– O que em nome de Deus está acontecendo aqui? Quem é você?

Katherine olha para o interior da câmara, além do enorme volume do gigante, e há um homem de pé, virando-se para Riven. Ela vê que é, de todos os homens do mundo, Thomas.


21


Ninguém tem tempo de dizer uma palavra.

Riven volta-se para o guarda, que parece estar com dor de barriga.

– Façam essa mulher calar a boca! – ele grita.

Está apontando para Nettie, que urra de dor, o rosto lívido e brilhante de suor, suas roupas e toda a palha à sua volta molhadas e manchadas, cor-de-rosa de sangue e de suas águas. A qualquer momento, ela vai começar a gritar outra vez, pois é assim que vem a dor do parto, em ondas.

Quando o guarda não se move, o gigante dá a volta na mesa em largas passadas e dá um tapa nele com as costas da mão, lançando-o contra a parede e no chão sob a janela. Parece estar prestes a fazer o mesmo com Nettie, quando Thomas se coloca em seu caminho. Por Cristo, ele parece tão pequeno. O gigante fica confuso por um instante, pelo fato de que alguém possa levantar-se contra ele, e logo ergue a mão para golpear Thomas, mas Thomas é rápido e muito forte por treinar com o arco, e dá um soco no gigante primeiro. Ele o atinge não no rosto, o que talvez fosse seu alvo, mas erra e enterra o punho nas regiões mais vulneráveis do pescoço do brutamontes, em sua garganta. Katherine não sabe se foi um soco de sorte ou não, mas o gigante cambaleia para trás, cai contra a mesa e em seguida no chão, pernas e braços espraiados como pesos mortos, o tronco como uma saca que deixaram cair.

Há um momento de admirado silêncio.

Então, Nettie urra outra vez e Jack se lança em sua direção para ajudá-la, mas suas correntes o puxam de volta com um ruído metálico e estridente. Rosnando de dor e frustração, ele se vira e começa a dar pontapés em direção a Riven, mas Riven também está fora do seu alcance, e ele ignora Jack. Parece momentaneamente perplexo com o que aconteceu ao seu gigante, que pode estar morto; ele olha fixamente para o corpo esparramado do gigante, com o pano de pus seguro no ar, e Katherine não consegue impedir seu olhar de ser atraído para o rosto desfigurado, vermelho e úmido, de Riven. Após um instante, ele pressiona o pano sobre suas feridas outra vez e ela vê seu olhar se dirigir a Thomas e se aguçar. Seu semblante endurece e ele segura uma lâmina na mão, uma arma larga e curta, perfeita para um lugar confinado como aquele; os nós de seus dedos embranquecem conforme ele começa a dar a volta na mesa e ela compreende que ele vai matar Thomas, a menos que Thomas corra.

No entanto, de repente, há mais homens subindo as escadas. Eles correm e gritam. E logo surgem mais na passarela adiante, entrando pela porta aberta, e eles também estão correndo. O primeiro a entrar na câmara é um jovem extraordinariamente bonito. Ele carrega um balde de água fervente. O segundo é – seria possível? – o rei Eduardo. Ele carrega uma grande pilha de lençóis de linho. Os homens na passarela vestem o uniforme de Warwick, liderados por outro, mais velho, e, surpreendentemente, uma mulher em um bonito vestido azul.

Todos chegam ao mesmo tempo e forçam a entrada na câmara. Riven hesita, mas logo retoma sua intenção. Ele passa por cima do corpo do gigante e tenta atingir Thomas com sua espada curta. Thomas dá um salto para trás, os olhos arregalados de terror. Sabe que acabou. Sabe que será morto. Ele recua. Riven o encurrala em um canto.

Há homens gritando. Dizendo a Riven para parar, pelo amor de Deus, mas ele os ignora. Tem apenas um pensamento agora e não há nada que ninguém possa fazer para impedi-lo quando ele dá mais um passo em direção a Thomas e investe uma estocada visando suas entranhas. Thomas pressiona-se contra a parede. O próximo golpe será o último.

Os homens observam boquiabertos, paralisados pela intensidade da violência em um espaço tão pequeno.

Katherine sente a cabeça latejar. Pulsando ritmicamente como ondas no telhado. As cores se deformam. As formas se distorcem. O ar parece ficar pesado. Ela começa a se mover em câmera lenta. Pega a faca que Liz enfiou sob seus cadarços, e seus dedos se fecham sob o cabo curto, e ela compreende que foi exatamente para isso que Liz lhe deu a faca. Ela saca a arma e sente pelo toque que é uma lâmina pequena e desajeitada, não muito afiada, mas cumprirá sua finalidade.

Katherine compreende que agora é o momento que se anunciava há tantos meses – até mesmo anos –, e um barulho ruge em seus ouvidos. Sabe que o que está fazendo é errado e que há boas razões por não ter sido feito antes, mas sabe também que é a única atitude que pode tomar. Ela se lança para a frente atravessando a câmara, agarra o ombro de Riven com a mão esquerda e, com a direita, enterra a lâmina curta e grossa em suas costas, logo acima do quadril, à direita de sua espinha dorsal, e o faz com tanta força que acha que a faca sairia do outro lado.

Riven dá três passos trôpegos para a frente, mas já está se inclinando para trás sob a pressão da mão esquerda de Katherine. A espada que estava prestes a golpear Thomas vacila e, em seguida, é atirada para o lado quando ele tenta arrancar a faca em suas costas. Mas ela continua a empurrá-la. Thomas, então, ergue a mão para o peito de Riven e o empurra para trás. Riven cai de joelhos e arqueja como se estivesse se asfixiando em seu próprio sangue. Ela solta a faca e empurra o ombro dele para trás e para baixo, em seguida recua para deixá-lo cair nas lajes de pedra sobre a faca em suas costas e, quando finalmente ele o faz, a lâmina é enfiada ainda mais fundo, e a ponta realmente sai pela sua barriga, mas em vez de cortar seu gibão, apenas desponta embaixo dele, formando uma minúscula pirâmide ensanguentada.

Ele não se estende morto, mas se debate e se contorce entre a mesa, a perna da cadeira e os pés descalços do gigante. Seu sangue se espalha por toda parte na palha, misturando-se às águas de Nettie, e todos permanecem parados, imóveis, com as feições contraídas e os olhos fixos em Riven, enquanto ele grita meias palavras, implorando, rogando, suplicando, mas ninguém ali quer ajudá-lo e a dor é tão grande que ele não pode pedir a Deus que aceite sua alma ou perdoe qualquer de seus pecados. Após um momento muito longo, ele para de se contorcer e permanece deitado, imóvel, os braços lentamente caindo para os lados. O pus fétido vaza do corte róseo em seu rosto, como minúsculas e asquerosas pérolas amarelas. Ela finalmente o matou e está exultante.

O silêncio se abate sobre todos.

Katherine ergue os olhos para Thomas, ao mesmo tempo que ele ergue os olhos para ela, e lágrimas surgem em seus olhos, como surgem nos dela. Eles se atiram um sobre o outro, ele a envolve em seus braços. Ela se sente como em um torno e o agarra ainda com mais força. Eles permanecem assim e é como se não existisse mais ninguém ali: nem os dois corpos, nem a arquejante Nettie, nem a multidão emudecida que observa em silêncio – nem mesmo Rufus, que ela reza para que não tenha visto nada. Se ela pressionar o rosto no tecido do gibão dele, quase pode mascarar o mau cheiro de Riven e o fedor que entra pela porta. Katherine descobre que ele tem um cheiro inacreditavelmente limpo, de sabonete de boa qualidade, e isso lhe parece estranho, mas certamente ela não tem tempo para descobrir a razão disso, porque, depois de tê-la envolvido em seus braços por um breve momento, eles se separam pois, ela pode ver, é mais necessária do que nunca.

O guarda que fora derrubado no chão está se erguendo enquanto o outro não perde tempo de tentar se redimir: inclina-se para cortar a chave da bolsa de Riven e liberta primeiro Nettie, depois Jack. Jack livra-se de suas correntes e ignora a dor para rastejar para o lado de Nettie.

Katherine chama Rufus.

– Onde ele está? Onde ele está?

Thomas a acompanha para a passarela onde John Stump está estendido, vivo ao menos, mas talvez quase morto, e ela tem que olhar para além dele, para a outra extremidade da passarela, onde, encolhido nas sombras ao lado das escadas de subida para uma outra porta, ela e Thomas veem a pequena figura de seu filho, com os braços em volta das pernas. Eles se aproximam e se agacham ao seu lado.

– Rufus?

Ele não diz nada. Eles se entreolham. Ela sente-se quase destruída de vergonha e culpa. Todo o júbilo febril que sentira ao matar Riven, e o fato de ter sido tão fácil que, sem dúvida, fora vontade de Deus, desapareceu.

Thomas coloca a mão no ombro do menino.

– Rufus? Rufus, tudo está bem agora. Nós estamos aqui, juntos. Tudo acabou. Não há com que se preocupar agora. Venha.

Rufus permanece em silêncio. Após um instante, a mulher de vestido azul aparece no círculo da luz do lampião deles. Ela é a mulher do comandante, o rosto tão redondo, enrugado e bondoso como uma broa.

– Posso cuidar dele, se quiserem – ela se oferece. – Eu também tenho filhos. Nós nos daremos muito bem, e quando tudo isso tiver sido limpo e vocês estiverem limpos de... de... manchas, começaremos outra vez, como um novo dia, e deixaremos tudo isso para trás, certo?

Ela possui uma voz maravilhosamente tranquilizadora. Senta-se no degrau ao lado de Rufus e sorri para Katherine. Katherine está prestes a lhe agradecer, mas recusar, quando se ouve um grito agudo vindo de dentro da torre no outro extremo da passarela. Ao que parece, Nettie deve estar se aproximando do seu momento de crise e, assim, com sentimentos divididos, Katherine aceita a oferta da mulher do comandante.

Katherine retorna para a luz da torre, onde o gigante foi arrastado e preso com as mesmas correntes que, tão recentemente, aprisionavam Jack, e o comandante afaga a barba em seu queixo acima do corpo de Edmund Riven.

– Ele era um homem do conde de Warwick – ele lhes diz. – Eu aguardava uma decisão sobre qual de nós dois tinha precedência sobre o outro, e agora isto. O conde vai pensar que eu o mandei matar.

O rei Eduardo, que parece animado com tudo que viu e ouviu, diz ao comandante para assumir que foi ele próprio quem fez isso.

– Warwick compreenderá. Diga-lhe que foi um acidente. Diga-lhe que eu escorreguei. O que é mais do que ele jamais será capaz de dizer sobre a perda das cabeças de meu sogro e seu filho.

– Obrigado, senhor – diz o comandante. – Tem certeza disso?

O rei Eduardo faz um sinal com a mão, dispensando-o, e o comandante faz um sinal com a cabeça para os dois guardas que aguardam para levar embora o corpo de Riven.

– E quanto a ele? – o rei pergunta, indicando o gigante com a cabeça. – Deveríamos simplesmente... matá-lo também? Enquanto estamos tratando disso?

O comandante sente-se tentado, mas se pergunta se isso não seria ir longe demais.

– Ele está acorrentado, não está?

O rei Eduardo parece decepcionado.

– Caso se mova, eu o matarei – Jack diz.

O rei solta uma risada.

– Outro acidente prestes a acontecer – ele diz.

Em seguida, ele se volta para Katherine.

– Fale. Estamos à sua disposição.

Ela demora-se um pouco, em seguida pede que a lareira seja acesa, mais luzes trazidas, mais vinho também, e mais água quente. Pede uma vassoura para varrer a palha suja de sangue e que alguém encontre a sacola que o gigante tomou dela. Quando é encontrada ao pé das escadas e levada a ela, Katherine retira seu analgésico, o mistura com o vinho que está sobre a mesa, manda Thomas ir à passarela e forçar John Stump a tomar a mistura.

Não há muito que ela possa fazer por Nettie agora, além de deixá-la mais confortável. Não pode sequer pedir aos homens que deixem a câmara, mas ajudar o parto a ocorrer, pois duvida de que Jack saia do lado de Nettie outra vez. Mesmo agora, quando ela está com o rosto afogueado e com um cheiro forte, ele se agacha junto à sua cabeça e segura sua mão quando seus lamentos se tornam gritos. O belo jovem está lá também, vigiando o gigante ainda inerte, embora ele obviamente desejasse estar em qualquer outro lugar. Katherine começa por limpar a jovem quando as velas e a vassoura chegam, trazidas pelas mulheres da cozinha, que começam a trabalhar na palha molhada do chão. Logo o lugar torna-se menos uma câmara mortuária e mais como uma sala de parto.

Em seguida, ela sai para a passarela para verificar como está John Stump e pede mais velas a serem seguradas em torno de seu braço ferido por homens com máscaras de pano sobre o nariz. O cheiro é sufocante. A mulher do comandante aproxima-se para dizer que está levando Rufus para seus aposentos, onde o colocará em sua cama e enviará suas criadas com ervas para serem queimadas.

– Ele está silencioso como uma pedra, mas o sono vai ajudá-lo a se recuperar.

Katherine e Thomas agradecem, mas ela diz que não é nada.

– É o mínimo que podemos fazer, quando vemos o que está acontecendo em nossa casa, em nosso nome.

Depois que ela se vai, Katherine inclina-se para examinar o braço de John na luz fraca e bruxuleante, e pode ver que a marca escura do avanço da doença já atingiu o cotovelo. Pensa que aquilo está muito perto de se tornar fatal, mas ainda existe uma chance. Ela deve cortar seu braço à distância de um palmo acima do cotovelo: é o lugar lógico.

John está febril, nem adormecido, nem acordado.

– Ele tomou a beladona? – ela pergunta a Thomas.

– Tudo.

Ela olha para John novamente.

– O que acha? – Thomas pergunta.

– Só podemos tentar.

Thomas sorri.

– John Stumps, no plural, vai ser um nome melhor.

– Você pode lhe dizer isso depois que tiver acabado.

– Tem que ser esta noite? – ele pergunta.

– Agora – ela diz.

Lá dentro, Nettie está uivando.

– E quanto tempo falta para Nettie?

– Não sei. Nunca presenciei um parto.

– Mas eu já – ele diz. Ele se refere a Rufus.

– E então?

– Não vai demorar. Eu acho.

Isso não é tão útil quanto poderia ser.

– Diga-me quando o analgésico fizer efeito – ela diz, indicando John com a cabeça. – Ele precisa estar quase... quase, mas não totalmente morto.

Ele a fita nos olhos por mais um instante.

– Graças a Deus por você estar aqui – Thomas diz. – É... inacreditável.

– Você também, embora... por que está aqui?

– É uma longa história – ele diz.

Nettie berra. Eles apertam as mãos um do outro, e ela volta para a câmara onde os gritos agora estão se transformando em urros. Nettie está encharcada de suor e mais fluidos escorrem sobre o chão. O rei Eduardo e o comandante se foram – para pegar mais água, o belo jovem diz –, mas ele permanece com Jack, que parece apavorado, e ambos estão à cabeceira de Nettie, segurando suas mãos, pois nenhum dos dois quer ver o que acontece embaixo de suas saias. Isso é tarefa de Katherine.

Até agora, ela está tão satisfeita com a certeza de Thomas de que ela pode salvar tanto Nettie, quanto o bebê e John Stump, que não parou para pensar no que está fazendo, mas quando se agacha junto aos tornozelos de Nettie e empurra para trás o peso quente e molhado de suas saias, ela é levada de volta ao momento em que ajudou a parteira com o bebê da mulher de Eelby, antes de a abandonarem à própria sorte, e Katherine pegou a faca, cortou seu ventre e tirou o bebê.

Somente então, ela nota que Riven desapareceu. Não pode, no momento, pensar no que isso pode significar para ela, ou para qualquer pessoa. Sente que está chegando a hora de Nettie e, embora não haja nada que ela possa fazer, não pode deixá-la sofrendo com a assistência apenas de homens.

Assim, ela permanece ali e diz a Nettie que o bebê está vindo, que logo esta dor terminará e cada momento terá valido, pois então ela terá um filho. Nettie balança a cabeça e respira com força, soltando o ar furiosamente, mas não há nada do inchaço e das mudanças de cor que ocorreram com a mulher de Eelby quando estava em trabalho de parto. Assim, Katherine pode dizer a Nettie que tudo vai bem, que não deve se incomodar com a dor, e assim por diante. A intensidade e a frequência dos gritos de Nettie aumentam.

Thomas vem lhe dizer que John está inconsciente. Ela lhe diz para ir buscar nas cozinhas: mais água, mais vinho; duas facas, uma grande, uma pequena; uma pedra de amolar; uma vela nova da melhor qualidade; uma bandeja de metal; uma serra de açougueiro (se houver alguma); um pedaço de fio de linho limpo; panos de linho limpos; uma corda de arco; e um pouco de carvão. Enquanto ele não volta, ela deixa Jack tranquilizando Nettie e vai verificar como está John. Ele está, como Thomas disse, inconsciente, mas por quanto tempo? E se ela começar o corte e o bebê chegar? E, no entanto, ela pode ver à luz dos braseiros e das velas com os quais os homens o cercaram que a doença negra está se alastrando pelo braço. Se não fizer nada até amanhecer, será tarde demais para salvar a vida de John.

Thomas retorna, trazendo consigo tudo que lhe foi pedido, inclusive uma serra nova, porque, é claro, o conde de Warwick tem seu próprio açougueiro, e o rei Eduardo também está ali, com um saco de carvão embaixo de um dos braços, um grosso rolo de linho embaixo do outro, e o comandante a reboque, com algo que ele diz que irá melhorar o cheiro do ar.

– Então, você vai amputar o braço dele? – o rei Eduardo quer saber.

Katherine balança a cabeça, confirmando. Ajeita as velas e em seguida enrola a parte baixa, enegrecida, do único braço que resta a John em um cobertor, de modo que o mau cheiro, de certo modo, seja contido, e manda um dos guardas amolar as facas, enquanto ela mergulha a corda de arco no vinho. Está pensando que já está muito escuro para isso e que não conseguirá costurar os pequenos tubos de sangue. Ela pede a alguém para ir buscar um pequeno atiçador de brasas ou algo parecido e o rei Eduardo se oferece.

– Mas não vai começar sem mim, não é?

Ele está gostando daquilo, Katherine conclui. É muito peculiar. O rei Eduardo da Inglaterra saindo em uma missão para ela. Mas ela não tem tempo para pensar nisso agora. O guarda amolou as duas facas e o vinho está aquecido em seu jarro. A mulher do comandante mandou uma agulha de prata e até mesmo rolos de linha de seda que nunca foram usados. Ela coloca esses itens de molho no vinho quente.

O barulho que Nettie está fazendo tornou-se regular agora, transformando-se em um grito quase contínuo. Assim, Katherine coloca as facas de volta no jarro de vinho e retorna para verificar o estado de Nettie. Ela unta suas mãos com óleo de rosas e se lembra do tempo com a parteira Beaufoy. Desliza as mãos sob as saias encharcadas de Nettie ao longo de suas pernas afastadas até suas partes privadas e então sente algo que acha que talvez não deveria estar ali. É duro. Ela fica tentada a bater de leve naquilo com os nós dos dedos. Seus dedos não conseguem segurá-lo. Nettie se debate. O barulho na sala é extraordinário, reverberando das paredes. É uma espécie de inferno. Jack chora copiosamente agora. Ele segura os ombros de Nettie e oscila entre tentar acalmá-la e suplicar a Katherine que faça alguma coisa – mas o que ela pode fazer? O parto tem que seguir seu curso natural. Mas o que é aquilo que ela pode sentir? É liso. Não é o cotovelo, nem uma perna. Nada semelhante. Cristo! Ela sorri para Jack. É a cabeça do bebê. Graças a Deus por isso.

Então, o gigante acorda com uma tosse estrondosa e rouca. Permanece deitado ali na palha ensanguentada por alguns instantes, olhando fixamente para suas mãos, acorrentadas à parede, como se tentasse entender o que havia se passado.

Ela e Jack trocam um olhar.

– Thomas! – ela grita.

O gigante, então, puxa suas correntes com força. Os elos ressoam, esticados. Ele dá outro puxão nas correntes. Com mais força. Elas novamente ressoam, retinindo. E ele faz a mesma coisa outra vez. E outra vez. Sem parar.

– Pare, maldito retardado! – Jack grita.

Thomas entra e vê que o gigante está acordado. Por um instante, não sabe o que fazer e hesita antes de estender a mão e pegar uma das lanças apoiadas contra a parede, junto à porta do quarto: ao que parece, Thomas não consegue golpear um homem acorrentado. Mas Jack não tem esse escrúpulo. Ele tem contas a acertar e deita Nettie ainda berrando no chão, pega uma lança pesada da mão de Thomas e começa a golpear o gigante como se estivesse cortando lenha. Os golpes são precisos, cadenciados, e atingem os braços do gigante. O brutamontes refugia-se no canto e se encolhe, formando uma bola da menor maneira possível, o que só parece enfurecer Jack ainda mais – e de qualquer modo, ele está obtendo sua vingança por coisas terríveis que o gigante lhe causou, porque agora apenas golpeia sem parar o corpo descomunal, atingindo-o em qualquer parte, uma enxurrada de pancadas desajeitadas que ressoam pelo cômodo, até atingir a parede acima da cabeça, a lança soltar-se de suas mãos e cair ruidosamente no chão. Jack, então, começa a chutá-lo. O gigante está curvado, de costas contra a parede, os braços cobrindo o rosto e a cabeça. Ele permanece imóvel. Por fim, Jack para. Ele está com o rosto vermelho e a respiração irregular.

Nettie consegue rir apesar de sua própria dor.

– Ele é um demônio – Jack diz.

Então, Nettie emite um grito agudo outra vez e todas as atenções retornam para ela. Jack desliza para o seu lado e a ampara novamente. Katherine cobre suas pernas e em seguida retorna a John. O vento se levantou e o rei Eduardo está de volta com o que ela pediu.

– Luz e velas – ela diz. – Acenda um fogo forte.

Ela lava as mãos no vinho quente e, em seguida, começa amarrando o braço de John. Enrola a corda de arco logo acima do cotovelo, dando três voltas, insere um pedaço de madeira no laço e gira-o para apertar a corda, como um torniquete. A corda penetra na carne. Ela gira a madeira quatro vezes e depois para, a fim de observar. John Stump se mexe em seu sono drogado.

– Fique pronto – ela diz a Thomas, mas ele já sabe o que deve fazer.

Katherine observa o braço abaixo da corda e, como esperado, ele começa a inchar e ficar rosado. Ela não quer isso. Significa que o sangue ainda está sendo bombeado para dentro do membro, mas não está fluindo para fora. Ela rapidamente desenrosca o pedaço de madeira e afrouxa a ligadura. O braço diminui. Ela torce outra vez. Seis voltas desta vez, rapidamente. Em seguida, espera. Ela pode ouvir a respiração dos homens que observam. Agora ela conseguiu. O braço permanece delgado e branco. O sangue foi interrompido nas duas direções. Ótimo. Ela verifica as facas, serras, agulha e linha mais uma vez, e pede a Thomas para amolecer a vela de cera de abelha.

Ela está pronta.

– Segure-o – ela diz ao belo rapaz. – Assim. – Ela inclina o braço. O mau cheiro escapa em uma lufada. Alguém vomita fora do círculo de luz e ouvem-se algumas risadas.

O belo rapaz – ela fica sabendo que seu nome é Flood – agacha-se a seu lado e segura o braço para cima, envolvido em sua manga de cobertor de lã cinza, e ela começa a cortar acima do cotovelo, abaixo da ligadura. As facas – as facas do conde de Warwick – são afiadas e cortam a pele e os músculos do braço de John com facilidade, agora que os músculos estão relaxados. Quando a faixa grossa e resistente é serrada, o braço cai. Flood o deixa cair. Há um jorro de sangue: metade de uma jarra, talvez. Ela se pergunta se deveria amarrar os vasos sanguíneos antes de cortar o osso, mas resolve se livrar do braço porque o mau cheiro está revirando o seu estômago.

Nettie recomeça a gritar.

Katherine pega a serra de açougueiro. Precisa ser limpa, pensa.

– Quem tem a urina? – ela pergunta.

Ninguém. Ela havia se esquecido da necessidade de urina.

– Alguém pode... urinar nisto? Para limpá-la. Preciso que a lâmina seja ao menos enxaguada em urina.

Os homens ali reunidos têm que dar a precedência ao rei Eduardo. Ele dá de ombros.

– Tenho certeza de que posso ajudar – ele diz. Ele pega a serra e se afasta. E eles ficam ali, sentados ou em pé, em seu círculo de luz bruxuleante de velas, ouvindo o rei Eduardo urinando em uma serra.

– Pronto – ele diz, trazendo-a de volta e oferecendo o cabo seco. Ela pega a serra e posiciona seus dentes no osso cor-de-rosa.

– Está pronto com a cera? – ela pergunta.

Thomas assente e ela começa a serrar. Não leva muito tempo. Talvez quinze cortes para a frente e para trás. O sangue borbulha no buraco do osso. Então, ela termina. Empurra o coto de antebraço para fora do corte com a parte plana da lâmina da serra.

– Leve daqui – ela diz a Flood, que o segura em seu cobertor e sai discretamente em direção às ameias.

– Cera – ela diz, e Thomas passa a vasilha em que a cera está endurecendo outra vez em torno do pavio. Katherine lava as mãos em óleo de rosas, em seguida pega alguns bocados e molda uma bola em torno do pavio que funcionará como uma rolha para o buraco. Ela tampa o osso com o longo pavio pendurado. Em seguida, “pesca” a linha e a agulha de prata no jarro.

O barulho que Nettie faz na torre tornou-se agora um berro constante de esforço. É como ouvir um homem levantando um boi de uma vala.

– O atiçador está quente?

Um dos homens pega o atiçador no braseiro. Está vermelho opaco. Não tão quente quanto um ferreiro desejaria, mas servirá ao propósito. Ela diz a ele que o deixe ali e pede a outro homem para trazer a vela mais para perto. Naquela luz instável, ela se concentra em amarrar os tubos maiores que pendem do pedaço de músculo de John.

– Atiçador – ela diz, e há um momento de confusão quando o homem que o segura não consegue passar a ponta mais fria porque ele se queimaria. A questão é solucionada movendo-se o braseiro para mais perto, o que lança fagulhas no ar da noite, rapidamente levantadas pelo sopro da brisa. O comandante diz a um homem para ter cuidado com elas. À luz cor de laranja do braseiro, John ainda tem o rosto descontraído. O analgésico é muito, muito potente, ela pensa.

Katherine pega o atiçador com um pano de linho e, em seguida, inclina-se sobre o coto de braço e o toca de leve, seguidas vezes, cauterizando os tubos menores, selando-os com um chiado de vapor de carne. É uma sensação curiosamente íntima, inalar a carne queimada de um homem, e os demais ao redor dela inclinam-se para trás para deixar o vapor escapar sem tocá-los. Ela tem que esquentar o atiçador mais duas vezes antes de ficar satisfeita de que a crosta que se formou é suficiente.

Em seguida, ela puxa para baixo a meia de pele enrugada, de modo que fique pendurada abaixo do coto. Dá algumas voltas com a pele em volta do pavio da vela, tomando cuidado para não deslocá-lo do osso. Em seguida, pega a agulha e a linha outra vez e dá alguns pontos na pele torcida antes de dobrá-la e acrescentar mais pontos, de modo que, quando termina, o resultado é muito bem-feito, com apenas o pavio pendurado livremente das dobras costuradas do coto.

– Por Deus – alguém diz, soltando a respiração. – Isso é tudo?

– A prática leva à perfeição – ela diz, satisfeita consigo mesma e com o resultado. O toco termina quase de forma lógica, entre o ombro e o cotovelo.

– Embora, por Deus, como será para ele agora?

– Vai cair do cavalo, isto é certo.

– Vai ter que limpar a bunda com os dentes.

– Isso é possível?

Katherine se levanta. Seus joelhos estão doloridos, suas saias ensanguentadas.

Jack chama com urgência. Ele está parado à entrada da câmara da torre.

Os homens a veem levantar-se, endireitar as costas e ir ajudar Nettie.

Ninguém diz mais nada.

É como se estivessem testemunhando um milagre.

A criança nasce em uma confusão de fluidos e substâncias estranhas, gordurosas, que recobrem seu corpinho escorregadio. Tem um tom azulado por um instante, mas o bebê – uma menina – tem pulmões tão fortes que nem se preocupam que isso possa significar qualquer outra coisa além de que o bebê está meramente um pouco tingido de azul. Katherine lembra-se da parteira amarrando o cordão umbilical, e ela própria o faz. Corta entre as duas ligaduras, como se o cordão fosse um novelo de linho; em seguida, limpa a criança com o óleo de rosas da cabeça aos pés, retirando toda aquela cobertura gordurosa. Ela a envolve em um pedaço de linho limpo e a coloca nos braços de Nettie.

Nettie está chorosa, temerosa, suada, imunda e exausta do trabalho de parto, mas ela olha e vê o rosto minúsculo e enrugado de sua filha. Ela sorri o tipo de sorriso que traz lágrimas aos olhos. Jack ainda a está segurando e ele também sorri como se a menina (“Vamos chamá-la de Katherine”) também fosse um milagre.

Nettie faz menção de se levantar, mas fica claro que ela ainda não terminou e Katherine tem que retornar às suas saias para receber o resto das substâncias que vêm com o nascimento. Quando isso finalmente termina e ela já amontoou tudo em uma grande pilha de linho, palha e o que mais houver encharcados de sangue, ela limpa Nettie com óleo de rosas – ela sangra muito pouco – e espera para ver se haverá qualquer sangramento indesejado.

Não há nenhum.

– Graças a Deus – ela diz.

– Amém.

Ela vai ver John Stumps. Ele ainda está inconsciente, mas alguém – o rei Eduardo? – o deixou confortável: está estendido sob uma capa azul com pele branca sob seu queixo, que se move com sua respiração, de modo que ela pode ver na mesma hora que ele está vivo. Thomas está ali, em um círculo de homens ao lado do rei, como se fossem companheiros de longa data, e o rei conversa amistosamente com eles. Ela vê que eles se tornaram amigos durante aquela longa noite. Eles se viram para ela e o rei Eduardo diz:

– Aqui está ela!

Então, ele grita para o pátio embaixo para que tragam vinho quente e pães frescos neste instante, pelo amor de Deus.


PARTE CINCO


Antes da Natividade da
Bem-Aventurada Virgem Maria,
final do verão de 1469


22


- E pensar nisto aqui – Thomas diz. – Bem embaixo do nariz do rei Eduardo. – Ele tira do ombro a bolsa onde o livro-razão está guardado e dá um tapinha nela.

– E você tem certeza de que ele não sabe?

Thomas não tem certeza.

– Acho que sabe que alguma coisa está acontecendo, mas também que não deve investigar muito a fundo.

– Será que ele ouviu boatos? – Katherine imagina.

Ela está deitada na cama que Thomas compartilhava com Flood até a sua chegada. Flood foi mandado para outro aposento, em outra parte da ala oeste. Ela tomou um banho, com água quente e sabonete. Thomas insistiu nisso, não porque ela estivesse particularmente imunda (embora de fato estivesse), mas porque... bem, quando ela entrou no banho, ficou óbvio. Nunca havia tomado um banho de água quente antes.

– E pensar que o rei Eduardo toma um banho desses todo dia – ela sussurrara.

Depois disso, Katherine dormiu por mais ou menos dois dias. Um padre viera – o confessor sem queixo do rei Eduardo – para se certificar de que ela não era alguma encarnação do diabo e ela achara que ele viera reclamá-la para o priorado. Gritou com ele, dizendo-lhe que o priorado não existia mais, que se incendiara e todos estavam mortos, e que a prioresa fugira em busca do diabo. Thomas teve que conduzir o padre apressadamente para fora enquanto ela “se controlava”, o que significou que recaiu em um sono profundo por mais um dia.

– Onde está Rufus? – ela perguntara ao acordar pela segunda vez. E Rufus entrara silenciosamente no quarto, eles se abraçaram e permaneceram assim pelo que parecia uma eternidade. Ela lhe perguntara se ele também tivera um banho e ele balançara a cabeça solenemente. Thomas fizera uma careta pelas suas costas para indicar que ele não falara durante todo aquele tempo.

– E Nettie passa bem? – ela perguntara, e Thomas lhe dissera que ela já estava de pé e caminhando.

– Ela não quis ficar nem mais um minuto naquele lugar. E o bebê... a menina também está bem. Muito barulhenta.

Katherine balançara a cabeça.

– E John?

– Eu tenho dado o analgésico para ele e tenho puxado o pavio para fora pouco a pouco, como antes, e está suportando a dor melhor do que da última vez. Lembra-se de como ele gritava por aquela bebida de Ralph Grey?

E a menção de sir Ralph Grey, o comandante há muito tempo morto do Castelo de Bamburgh, é o que os trouxe ao assunto do livro-razão, que agora estava ali entre eles outra vez: um problema que ressurgira e agora se recusava a desaparecer.

– O que vamos fazer com isso agora? – ele pergunta. – Não podemos... simplesmente queimá-lo? Livrar-nos deste registro maldito?

Ela andou pensando no assunto.

– Riven deve ter falado com o conde de Warwick sobre isso, não? – Katherine continua. – Deve ter ouvido falar da morte de Riven e deve imaginar que alguém, o rei Eduardo, mandou assassiná-lo para silenciá-lo. O que só confirmará o poder do livro-razão, confirmará seu poder em sua mente. Ele vai ficar louco para obtê-lo.

– Mas ele certamente não pode perguntar pelo livro ao rei Eduardo, não é? – Thomas pergunta. – Se achar que o rei o possui, não?

É um bom argumento.

– Mas tanta gente sabe a respeito disso atualmente... – ela reflete. Está pensando em voz alta. – E todas são pessoas dele, não são? Elas podem ter odiado Edmund Riven, mas ainda amam o conde de Warwick, e sabem que o rei Eduardo não possui o livro-razão, não é? Assim, o conde pode vir a acreditar que tanto ele quanto o rei estão à sua procura. E que ele está aqui em algum lugar. E então ele próprio virá à sua procura.

– É verdade. – Thomas solta um suspiro. Ele está com ótima aparência, ela pensa: limpo, bem alimentado, a fisionomia descansada, mas agora infeliz com o que isso pode significar: deixar este lugar. Ele senta-se na beirada da cama dela e belisca seu nariz entre os olhos.

– E então? – ela pergunta.

– Então temos que ir embora antes que o conde chegue – ele confirma.

– Quando ele é esperado?

– Vou descobrir – ele diz. – Bellman nos dirá. Ele é um bom homem.

– Então teremos ao menos alguma notícia.

– Sim – ele acredita.

A ideia de pegar a estrada outra vez em tão pouco tempo e depois de tais vislumbres de conforto e facilidades como têm tido, é demais. Ela fecha os olhos para reprimir as lágrimas.

Mais tarde, ele volta sem Rufus.

– Ainda não posso acreditar que ele está morto – ela diz antes que ele possa dizer qualquer coisa. – E que eu o matei.

Thomas olha para Katherine com muita seriedade, como se estivesse se sentindo culpado.

– Ele merecia mil vezes mais.

Ele não precisava lembrar a ela que Riven também estava prestes a matá-lo.

– Eu sei – ela diz. – Eu sei, mas mesmo assim... é inacreditável que ele não esteja mais aqui, que já não represente uma ameaça para nós.

É como um grande peso tirado de seus ombros. Ela finalmente pode respirar.

– O que aconteceu a Liz? – Thomas pergunta.

Ela lhe conta alguns detalhes, mas não pensou em Liz desde que a jovem lhe dera a faca com que matou Riven. Agora que pensa, ainda não consegue decidir o que sente em relação a ela. Ela os traiu, e a Rufus, mas tinha suas razões, e quando concordou em fazê-lo, ela não nos conhecia; e suas lágrimas naquela noite quando lhe deu a faca eram, sem dúvida, bastante genuínas.

– Então, ela voltou para seu pai e irmãs em Senning?

– Imagino que sim.

Ele depois lhe pergunta sobre a destruição do priorado e fica perplexo.

– Então, é verdade? O que você disse é verdade? Estão mortos? Todos eles?

– Não a prioresa. Ela fugiu.

Ele sorri.

– Em busca do diabo, você disse?

– Eu disse? Tenho tido sonhos estranhos.

– Mas se estão todos mortos e o lugar foi inteiramente destruído pelo fogo, então você jamais... jamais descobrirá quem você é.

Não isso de novo, ela pensa.

– Eu sei quem sou.

– Sim, claro, mas sabe o que estou querendo dizer.

– Ainda existe a prioresa. Ela sobreviveu, dizem, e foi enviada para casa ou para algum outro priorado. Para o lugar de onde veio. Se alguém ainda sabe, esse alguém é ela. Mas talvez eu não estivesse destinada a saber, nem mesmo por Rufus.

Thomas sacode a cabeça. Nunca conseguiu de fato aceitar que ela não se importe, mas ela realmente não se importa. É incompreensível para ela que alguém possa se importar com algo que jamais iria fazer nenhuma diferença. Tudo faz parte do passado. Apegar-se a isso seria dar a outro fato – ou a outro alguém – poder sobre sua pessoa que ele não merece.

– Devemos ir? – ela pergunta.

Ele balança a cabeça tristemente, assentindo.

– Mas para onde? – ela pergunta. – Para onde podemos ir?

– Que tal Marton? – Thomas pergunta. – Poderíamos voltar para lá? Isabella iria nos aceitar?

Ela não teve ainda um momento para contar-lhe que operou a catarata de Isabella sem lhe pedir permissão e que foi flagrada fazendo isso por aqueles dois filhos. Thomas não vai querer ouvir sobre isso agora, então ela sacode a cabeça.

– Não nos adiantaria de nada, de qualquer modo – ela diz. – Embora Riven esteja morto, se Warwick quiser o livro-razão, ele encontrará Liz, e Liz sabe onde fica Marton. Assim, se formos para lá, ele irá nos encontrar num instante.

Ele balança a cabeça.

– Bem – ele diz. – Outro lugar, então.

– Mas onde?

No caso, eles não têm que pensar muito rápido, porque o rei Eduardo não permitirá que o deixem, e assim devem permanecer em Middleham durante todo o mês de agosto, acordando todos os dias e indo à missa, para ouvir Bellman admitir que o conde de Warwick enviou uma mensagem para dizer que está atrasado e ainda não está pronto para se unir ao rei.

– Então, podemos ir até ele? – o rei Eduardo pergunta.

– Ah, não, Vossa Graça, ele pede que descansem tranquilamente aqui até sua chegada.

E os dois homens riem da situação e do desconforto de Bellman, pois o rei achou o ritmo de vida em Middleham muito do seu gosto: insiste em caçar todos os dias, exceto domingo, quando se une a Thomas, aos homens do castelo e da vila no campo de treinamento de arco e flecha, ao sul dos jardins formais do conde. Ele não é o pior arqueiro presente, Thomas diz a Katherine, mas está longe de ser o melhor. É lento, para começar, e desajeitado para aprontar o arco, e embora seja razoavelmente preciso no campo de treino, quando pode ver a que distância deve atirar, quando se trata de atirar em um alvo real, quando todos eles caminham em torno de um parque natural atirando três flechas cada um em marcos específicos, ele passa mais tempo procurando suas flechas do que qualquer outro, pois em geral estão espalhadas por toda parte e geralmente a uma curta distância.

Mesmo assim, ele é incansavelmente alegre e bem-humorado entre seus súditos, zomba de si mesmo e de sua própria falta de habilidade antes que qualquer dos homens diga uma palavra. De qualquer forma, todos ali sabem que atirar flechas não é tudo. Eles o viram cavalgar com os cães de caça, atirar uma lança e alguns dos homens ali o viram em Towton, e nenhum duvida dele.

Não há sinal do conde de Warwick, o que o rei Eduardo atribui à covardia, mas Flood lhes diz que o conde está ocupado tentando forçar o parlamento a se reunir – ou não se reunir – para fazer seu trabalho e há problemas por toda parte, em todas as regiões do país, com todos se aproveitando da ausência do rei Eduardo para defender suas próprias reivindicações sobre a propriedade de seus vizinhos.

– Milorde de Warwick não é o rei. Essa é a questão – Flood explica.

Flood também diz que o rei Eduardo acha que as pessoas não entendem por quê, tendo se levantado em apoio ao afastamento dos infames e impopulares favoritos do rei levado a cabo por Warwick, e isso tendo sido conseguido, com eles – os favoritos – mortos ou exilados, o rei Eduardo continua prisioneiro. Isso o faz rir.

– Maldito Warwick. Vamos ver se gosta de governar um reino cheio de canalhas – ele diz.

Enquanto isso, Nettie recuperou suas forças, e Katherine aos poucos vai reduzindo a quantidade do analgésico administrado a John Stumps. Ele agora já fica sentado, pálido, mas sem sinal da febre que quase o matou da primeira vez que ela amputou seu braço, e ele pode tocar um coto no outro.

– Você parece uma foca – Jack lhe diz, e ele imita os sons de uma, como as que eles costumavam ver embaixo de Bamburgh. John não diz nada, porque o rei Eduardo ri.

Estar ali com o rei tem sido, Thomas diz a Katherine, estranho. Durante algum tempo, ele não tinha uma palavra para definir a sensação que estava sentindo quando cavalgavam pelas colinas atrás do castelo e caçavam vários animais, até que um dia, quando voltavam de uma longa caçada, trazendo atrás deles uma fileira de cavalos sobre os quais estavam empilhados os corpos de vários cervos, javalis e texugos, Flood virou-se para ele e disse que o dia havia sido divertido.

– Divertido? – Thomas repetira.

– Ha! – Flood rira. – Você fala como se nunca tivesse ouvido essa palavra!

Mas havia algo mais do que diversão. Todo dia ele via Katherine e Rufus descansando e se recuperando dos rigores e incertezas de suas viagens recentes. Eles têm comido bem e dormido bem, e não há tarefas a fazer, de modo que os dois passam o tempo com Nettie e seu bebê, passeando no jardim do conde, brincando, a ociosidade reforçada por um Bellman se sentindo culpado, sem saber ao certo qual o status social deles. Após uma semana, Thomas ouviu Rufus falando muito baixinho com Katherine, embora ele ainda não tivesse dito nem uma palavra a mais ninguém.

Mas esses últimos dias, quando se acredita que o barco navega em águas calmas, não podem durar, é claro. Mensageiros vão e vêm, atravessando ruidosamente a ponte com missivas para o rei Eduardo e para o comandante. Há muitas tensões pressionando o rei, pressionando uns aos outros, forças ocultas trabalhando de lugares tão distantes quanto Roma, Londres, Calais e até mesmo no norte onde um nome do passado, sir Humphrey Neville de Bracepeth – o homem a quem todos odiavam no Castelo de Bamburgh quando foi sitiado –, se rebelou outra vez em apoio ao velho rei Henrique.

Esta é uma rebelião que o conde de Warwick não pode sufocar sem a autoridade moral do rei, e assim ele manda uma mensagem ao comandante e Bellman vai dizer ao rei Eduardo que foi decidido que ele é livre para fazer o que quiser, embora peça que, por favor, emita ordens de levantamento de forças militares, para tropas possam ser criadas nas Midlands para irem até o norte e reprimirem Humphrey Neville e seus rebeldes.

– E durante todo esse tempo, ele nunca veio me olhar nos olhos! – o rei Eduardo zomba do conde de Warwick. – Durante todo esse tempo!

– Logo estarei em casa, eu creio – Flood diz. – Por Cristo, mal posso esperar para ver minha mulher.

Thomas assente. Espera que seja um encontro feliz. Ele próprio mal sabe para onde deve ir em seguida.

– Poderíamos voltar a Marton? – Jack pergunta.

Katherine sacode a cabeça, todos querem saber por que não e, assim, ela tem que lhes contar. Eles ouvem em silêncio, mesmo quando ela descreve a operação do olho, e quando termina, Jack começa a rir baixinho.

– Pela mãe de Deus, Katherine – ele diz. – Esse seu dom! É uma faca de dois gumes!

Katherine mal consegue olhar para eles, envergonhada.

– Mamãe fez o certo – eles ouvem uma voz dizer. – Ela só queria que Isabella pudesse enxergar.

Leva um instante até perceberem que é Rufus quem fala. O menino ergue os olhos e encara cada um deles, quase um por um. Não se mostra tímido, nem desafiador. Simplesmente é muito claro sobre sua opinião. Há olheiras sob seus olhos escuros e ele parece um duende de outro mundo. Thomas sente-se em parte orgulhoso de seu filho, em parte assustado com ele e por ele.

Os ânimos mudam.

Jack diz que levará Nettie e sua filha de volta para os sogros, que cultivam faixas de terra em um vilarejo perto de Marton. Ele acha que vai permanecer lá e ajudar na lavoura até surgir outra opção.

– Talvez eu atravesse o Canal da Mancha e lute com aquele seu duque, John – ele diz.

John diz que acha que haverá muitas lutas neste país, se é o que ele quer.

– Não – Nettie diz. – Não é o que ele quer.

Ela segura sua pequena filha e Jack não pode deixar de sorrir e concordar.

– E quanto a você, Thomas? – John Stumps pergunta. – O que vai fazer agora?

– Iremos com Jack e Nettie até Lincoln, mas dali... bem, não sei. Devemos nos colocar sob a proteção de William Hastings, imagino. E você?

E ele pensa novamente como será para John Stumps, sem braços.

– Eu podia me tornar um monge – John diz. – Do tipo que só reza. Você não precisa de mãos para rezar.

– Sabe ler?

– Letras? Palavras? Não.

Faz-se um longo silêncio e Thomas vê que John não consegue falar.

– Venha conosco – ele diz. – Não sei para onde estamos indo, ou o que iremos fazer, mas fique conosco. Nós o ajudaremos. Cuidaremos de você.


23


É somente no dia anterior à partida deles para Lincoln que Thomas recebe uma resposta à carta que enviou a Katherine em Marton Hall, pouco antes da esposa partir e vir ao castelo. Ele a entregara a Flood e se esquecera dela depois. Quando Katherine o vê recebendo uma mensagem de um garoto, fica ruborizada. Ele quebra o selo de cera que prende a borda e a desdobra.

É de Isabella.

– É a letra dela? – Katherine pergunta.

– Sim – Thomas responde, pois reconhece seus Ts bem desenhados. Katherine recosta-se em seu assento, deixa os ombros penderem e cerra os olhos com força.

– Graças a Deus – ela murmura. – O que diz a carta?

Thomas lê. Isabella primeiro o elogia com todo o seu coração e pede a Deus que o proteja. Diz que sua carta chegou a Marton na segunda semana depois da Assunção e que ela ficou feliz em recebê-la, trazida por um comerciante de tecidos, do qual comprou uma peça do mais fino tecido vermelho, além de um punhado dos melhores alfinetes. Ela ficou feliz de saber que Deus poupou Thomas dos muitos perigos que podem ser encontrados em qualquer campo de guerra, com os quais ela tem alguma intimidade, tendo enterrado dois maridos que não foram tão abençoados. Ficou satisfeita de saber que Thomas está com Sua Graça, o rei Eduardo, que igualmente evitou tais tormentos, e que Sua Graça, o rei Eduardo, agora está bem, sob os cuidados do conde de Warwick. Ela está enviando esta carta pelo mesmo comerciante, na esperança de que possa chegar a Middleham rapidamente.

– Só isso? – Katherine pergunta. Ela toma a carta das mãos de Thomas. Olha-a atentamente, depois olha para Thomas. Está decepcionada.

– Ao menos, ela está viva – Thomas diz. – Isso é bom. Você não é uma assassina. Ou não de Isabella, ao menos. Ainda não.

Katherine não sorri.

– E olhe – ele continua. – Ela pode enxergar bastante bem para escrever, então sua operação deve ter funcionado.

– Mas por que não disse nada sobre nós? Sobre mim? Sobre seus olhos? Sobre Marton?

– Talvez haja outra mensagem a caminho, não?

E, de fato, há. Ela chega no dia seguinte, ao amanhecer, trazida pelo monge de branco, montado em um pônei, vindo de Jervaulx, juntamente com muitas outras para o rei Eduardo, seladas com grossos lacres de cera. Esta é muito mais longa e feita sem pressa, então Thomas imagina que ela a tenha enviado no dia seguinte.

Mais uma vez, Isabella expressa sua admiração por Thomas e pede a Deus que continue a protegê-lo. Então, ela lhe diz que sua mulher – que Deus também a proteja – deixou Marton Hall, com uma tarefa apenas na metade, e se ele puder encontrar Katherine, ela ficará para sempre em dívida com ele se conseguir persuadi-la a retornar a Marton para fazer o que quer que tenha feito a um de seus olhos, no outro. E, ela escreve, embora ela não tenha nenhum direito de fazer tal pedido, e embora tenha rogado a Deus para perdoá-la por não ter agido bem com Thomas e Katherine como deveria ter agido, que este último favor é uma questão que seria mais bem resolvida antes da festa de St. Martin, já que, relata, será quando ela estará deixando Marton Hall.

– Ela vai deixar Marton! – Thomas diz aos outros, reunidos no pátio diante do portão nordeste.

Ouvem-se exclamações e expressões de incredulidade.

– Não!

– Por quê?

Thomas continua a leitura. Isabella está fazendo isso porque, apesar de seus pecados de negligência em relação a Thomas e sua família, ela tem sido realmente abençoada por Deus: pretende renunciar a seu estado de reclusa e se casar de novo – pela última vez, ela sinceramente espera. Desta vez, seu marido é um cavaleiro com propriedade no sul. Espera que Thomas a abençoe em sua união e, embora saiba que não haverá frutos, garante que seu novo marido é uma alma cristã e correta, amante de Deus, e ela vê com grande expectativa a perspectiva de sua presença alentadora, já que, escreve, considera as inúmeras privações da viuvez um fardo muito mais pesado do que previra.

– Ela vai se casar! – Thomas diz a todos eles. – Com um tal de sir John Ffytche, do condado de Dorset.

Novamente, há espanto, mas Katherine já esperava por isso. Thomas lhes conta o que Isabella diz dele.

– Ao que parece, tudo deu certo para ela – Katherine diz. – E ao menos ficará longe daqueles seus filhos.

– E ela não cometerá nenhuma gafe quando sussurrar o nome dele – Jack diz com uma risada.

– Mas eu me pergunto como isso veio a acontecer. E qual é a barganha para esse sir John Ffytche? Ao se casar com uma viúva idosa?

Ninguém sabe, mas Thomas sente a perda de Marton como um golpe físico, como se uma parte de suas entranhas tivesse sido removida. Não é somente ele que se sente assim. Todos têm o semblante abatido. Marton Hall foi o lar deles por muitos anos. No caso de Katherine, seu único lar. Que já estivesse perdido, para eles parecia não importar. Queriam que, no mínimo, Isabella estivesse lá. Gostariam de saber que, independentemente do que lhes acontecesse, algumas coisas continuariam imutáveis. Mas não. Não era para ser. Outras pessoas estarão dormindo em suas casas, lavrando seus campos, reunindo-se em torno daquela chaminé.

– Isso é tudo – ele diz.

– Devíamos comprá-la – Jack diz. – Juntar todo o nosso dinheiro e simplesmente comprá-la.

Jack mostra a eles que possui um groat de prata.

– Iríamos precisar de um pouco mais de dinheiro do que essa moeda – John diz.

– Precisaríamos de pelo menos quinhentos marcos – Jack diz. – É o que um de seus filhos calculou que obteriam pela propriedade.

Thomas sente-se mal.

– Bem – ele diz –, quanto tempo levaria para você ganhar isso a um xelim por dia do duque de Borgonha, John?

John fica sem resposta, mas Katherine ri.

– Alguns voltam da guerra como homens ricos – ela diz.

– Não nós – Thomas diz. – E não na Inglaterra.

– Não – ela concorda –, mas lembra-se da história de John Watkins?

Thomas não se lembra sequer de John Watkins.

– O homem que nos deixou ficar em sua casa depois que você ficou inconsciente por causa do sol naquele dia nas colinas.

– Qual foi a história? – Thomas pergunta.

Então, ela conta a todos eles como John Watkins e alguns dos homens de lorde Montagu encontraram sir William Tailboys, escondido com o dinheiro do velho rei Henrique, em uma mina de carvão depois da batalha de Hexham e, enquanto ela fala, Thomas sente seus ouvidos latejarem. Ele sente um calor escaldante percorrer seu corpo e Jack também está olhando para ela espantado, boquiaberto e afogueado, como se estivesse se sentindo mal.

– Repita o que disse – ele pede, e Katherine o faz.

Quando ela termina, ele a está encarando fixamente, os olhos arregalados, as faces vermelhas.

– Por que você... não me contou isso antes? – ele pergunta.

– Não queria aborrecê-lo – ela diz.

De fato ela se sente culpada por não ter compartilhado essa história com ele, já que nada de bom pode advir da inveja.

– Mas nós os vimos – Thomas diz. – Vimos Tailboys e seus homens depois de Hexham. No bosque. Eles passaram por nós quando estávamos naquela cabana. Ao amanhecer. Lembra-se?

Ela sacode a cabeça. Não se lembra. Claro que não, caso contrário teria dito alguma coisa. Mas por que ele está tão empolgado?

– Porque uma das mulas escorregou e caiu em um buraco da mina! Exatamente onde estávamos! E Tailboys quase matou o homem responsável. Uma das mulas que carregavam o dinheiro! Ainda deve estar lá embaixo!

Eles partem de Middleham atrás do rei Eduardo, observados pela população da cidade, exatamente como acontecera quando Thomas e o rei chegaram há um mês. Suas tentativas de exercer qualquer independência própria foram reprimidas pelo rei, que insiste em que fiquem com ele.

– Vocês serão pagos, tenho certeza – ele lhes diz –, e todos nós queremos ver nossas esposas, cachorros e tudo o mais, mas o bem-estar público tem que ser mantido, não é? E estou decidido a mostrar ao maldito Warwick que eu posso fazer o que ele não pode, apesar de toda a sua habilidade em embaralhar as cartas.

O rei Eduardo já mandou chamar seu irmão Gloucester, seu cunhado Suffolk e seus diversos barões e condes, inclusive Arundel, Northumberland, Essex e Mountjoy e, é claro, William Hastings. Ele está determinado a mostrar que não vai lutar contra esta rebelião com poucas forças como fez da última vez.

– Eles estão trazendo seus homens para York – ele lhes diz enquanto cavalgam. – Vou mostrar a essa maldita cobra sorridente milorde de Warwick que o rei Eduardo da Inglaterra não é arrogante demais para aprender sua lição, na esperança de que o maldito aprenda bem as suas.

Toda a incerteza o abandonou. Seus ombros voltaram a ficar empertigados, seu sorriso é largo. Talvez esse cativeiro tenha, na verdade, sido bom para ele, Thomas pensa. Mas nem todo mundo se sente à vontade em sua companhia. John parece ficar paralisado quando ele fala, porque não estava lá com o rei Eduardo como os outros quando seu braço foi amputado e não se ligou a ele como irmão naquela adversidade específica. Por outro lado, Jack tenta fazer o rei rir com piadas que malogram por serem já muito conhecidas. Katherine se enrijece e exala dúvida e desconfiança sempre que ele se aproxima, mas, longe de ficar ofendido, ele parece compreender, até mesmo simpatizar com a situação, e após alguns instantes em sua companhia, ela também relaxa, de modo que depois de algum tempo passa a ser normal o fato de estarem conversando com o rei Eduardo da Inglaterra.

Ele se vira e se dirige a eles agora, torcido na sela de seu empinado garanhão branco.

– Senhores – ele diz. – Não há nada tão pobre no mundo inteiro quanto um rei que está sozinho, e assim quero que vocês sejam meus companheiros. Você sempre terá um lugar ao meu lado, Thomas Everingham, pois me traz sorte, através de cada dente da Roda da Fortuna. E eu requisito especialmente você, sra. Everingham, pois sua habilidade como cirurgiã é suficiente para deixar envergonhado o próprio grandioso Galeno. E você, Jack não-sei-o-quê, eu o vi puxar a corda de um arco mais para trás do que sua própria orelha, de modo que é muito bem-vindo ao meu lado. E John Stumps, não se desespere. Eu preciso de um novo bobo da corte. Você teria seu trabalho cancelado, é verdade, já que é estranho a esse tipo de diversão, mas isso é compreensível, dadas as circunstâncias, e não pode haver nenhum homem em toda a Inglaterra – em toda a cristandade – que iguale a sua imitação de uma foca.

Assim, eles devem cavalgar com o rei Eduardo, de volta a York mais uma vez, para leste e depois para o sul naquela estrada, em seguida para leste novamente, com o rio à sua esquerda. Não há escolha.

– Além do mais – Thomas lhes diz –, Brancepeth fica entre aqui e Hexham, de modo que teríamos que passar pelos rebeldes, de qualquer modo. Ao menos assim, marchamos com um exército, e, portanto, em segurança, e seremos pagos pelo nosso tempo. Seis pennies por dia, já que estamos a cavalo.

Mas eles não estão mais interessados em seis pennies.

– Por Cristo, Thomas, quais são as chances?

Toda vez que é lembrado disso, ele sente uma constrição ou um tremor em seu peito. As pontas de seus dedos já estão efervescendo e ele mal consegue ficar sentado em sua sela.

– Só podemos torcer – ele diz.

– E tem certeza de que as mulas carregavam dinheiro?

Ele não pode dizer com absoluta certeza, mas lembra-se da fúria de Tailboys quando o animal caiu no buraco.

– Olhe – ele diz a Jack. – Eu não sei. Eu não sei, não é? Faz mais de cinco anos. Alguém pode ter começado a trabalhar na mina nesse meio-tempo.

– Qual a probabilidade disso? – Jack pergunta.

– Não sei! Nunca trabalhei em mina de carvão. Não conheço ninguém que já tenha trabalhado.

– Acha que será capaz de encontrar a mina outra vez? Lembra-se daquela floresta? Era grande.

– Só podemos tentar – Thomas diz. – Só podemos tentar.

– Mas quais são as chances?

– Oh, pelo amor de Deus.

Eles veem a catedral e as espirais das torres das outras igrejas de York conforme escurece, mas o rei Eduardo é esperado, os homens da guarda têm braseiros e tochas acesos, os portões permanecem abertos e há multidões ao longo das margens da estrada para aclamá-lo enquanto ele cavalga pela cidade e atravessa a ponte para o pátio exterior do castelo. E ao pé do grande monte da Torre de Clifford, estão todos os nobres do rei Eduardo, inclusive seu irmão mais novo, e até mesmo William Hastings. O rei esporeia seu cavalo para a frente e, em seguida, salta da sela para abraçá-los. Thomas, Katherine, Jack, Nettie e John são deixados com Flood, famintos e exaustos de ficarem sobre uma sela, sentados no escuro, enquanto a poça de luz que sempre cerca o rei Eduardo se distancia e o segue escadas acima, entrando pelas imponentes portas da guarita do castelo e desaparecendo.

– Bem – Thomas diz. – Aqui estamos nós novamente.

Eles encontram estábulos para seus cavalos, e cama e comida dentro do castelo. Os dias seguintes são passados observando os mensageiros irem e virem, e esperando permissão de ir para o norte. Hastings convoca Thomas no segundo dia e Thomas teme que seja a respeito do livro-razão.

– Ele deve ter falado com o rei Eduardo – Thomas diz. – O rei deve ter lhe contado sobre aquela noite e ele vai querer saber por que Riven estava interrogando Jack e John.

– O que vai dizer? – Katherine pergunta.

– Esperava que você me dissesse – ele diz. E fala sério.

– Bem – ela diz. – Você poderia dizer a ele que Riven os prendeu porque estavam fazendo o mesmo tipo de perguntas que ele. Você poderia sugerir que ele achou que pudessem estar atrás do livro-razão também e que ele queria saber em nome de quem estavam procurando.

Ele balança a cabeça.

– É melhor você deixar que eu o leve – ela diz.

Ela estende as mãos para receber o livro-razão, ele tira a bolsa do ombro e a entrega a ela. Ele se sente relutante. Agora que se reconciliou com isso, sente-se confortável com o objeto no ombro outra vez. Mas Thomas o entrega e leva Jack com ele, por via das dúvidas – embora não saiba realmente por quê.

Hastings se mostra satisfeito em vê-lo e o saúda como a um velho amigo. Primeiro, se desculpa por não poderem retornar a Senning.

– Assim que pôde, milorde de Warwick confirmou que o confisco havia sido revertido. Não houve nada que eu pudesse dizer ou fazer.

Thomas sente-se tão aliviado que Hastings não queira falar sobre o livro-razão ou sobre os acontecimentos da noite na torre sudeste, que descarta as desculpas de Hastings com um gesto da mão e, quando Hastings lhe pede para assumir o comando de mais de cem de seus homens, caso tenham que tomar o campo, ele fica satisfeito em aquiescer.

– Não devemos encontrar muitos rebeldes – Hastings diz. – O rei Eduardo emitiu um perdão geral para todas as revoltas, a não ser para os líderes, de modo que eles vão desaparecer aos poucos. Pode tranquilizar a sra. Everingham quanto a isso.

Ele sempre menciona Katherine, toda vez que conversam, e isso perturba Thomas. É como se Hastings soubesse algo a respeito dela que ele não sabe. E a atitude dela para com ele é estranha também. Hastings lhe dá uma bolsa pesada de moedas de prata, com as quais deverá comprar todos os equipamentos de guerra que forem necessários, novamente há coletes de uniforme a serem usados e, mais uma vez, Katherine arregala os olhos à vista da cabeça de javali negro no peito de Thomas.

– Era a única maneira – ele diz a ela.

Eles partem três dias depois, em companhias, em uma longa coluna de homens pertencentes ao irmão do rei Eduardo, Gloucester, e aos outros nobres que se reuniram em York, em estradas que agora já se tornaram exaustivamente familiares. Katherine cavalga com Rufus à sua frente na sela, e Thomas cavalga com o cavalo de John conduzido pela rédea. John sente-se humilhado e tem que se esforçar para se manter empertigado, mas não há nada que se possa fazer, a não ser que queira ir a pé.

– Quantas vezes já estivemos aqui? – Thomas pergunta a Katherine.

Ela mal sabe, é claro. Está preocupada demais com Rufus, que parece ter se recolhido para dentro de si mesmo outra vez. Ele se move estranhamente, como se estivesse sob permanente ameaça, e quando caminha o faz na ponta dos pés. Ela sente-se culpada por tê-lo deixado ver tudo que ele viu, mas Thomas lhe diz que há muitos meninos da idade dele que já são tocadores de tambor nas tropas e que carregam flechas para os arqueiros em batalhas.

– Imagine o que eles já viram – ele diz. Não acrescenta que essas crianças geralmente são semisselvagens, subnutridas e doentes, e, na maioria das vezes, morrem cedo.

Eles prosseguem para o vale de Mowbray, passam pelos campos nos quais encontraram Horner outra vez, usando o casaco de uniforme que lhes foi dado pelos carvoeiros, depois passam exatamente pelo bosque onde os carvoeiros ainda devem estar trabalhando, silenciosos, secretos, a não ser pela fumaça pálida de suas fogueiras subterrâneas, e Thomas pergunta a Katherine se gostaria de visitá-los, ver se têm mais dentes que precisem ser arrancados.

– Parece que isso foi há uma eternidade, não é?

À noite, eles amarram as pernas de seus cavalos, restringindo seus movimentos, e dormem ao lado das tendas que, aqueles que podem pagar por elas, trouxeram e o irmão Gloucester do rei Eduardo organiza a guarda-noturna. Há muito pão e cerveja nesta época do ano e os dias ainda estão quentes, ainda que as noites sejam mais frias, e pela manhã eles acordam molhados de sereno. No segundo dia, sentem o cheiro amargo de fumaça de madeira queimada e supõem que aquele seja o limite sul da rebelião. Há sepulturas recém-cavadas e uma mudança de ambiente definitiva conforme mulheres e crianças desconfiadas os veem passar. Seus homens estão em outra parte.

– Dá a sensação de que estamos invadindo as terras deles, não é? – Jack diz.

Eles veem cinco corpos pendendo de um carvalho à beira da estrada. Um deles é Taplow, vestido apenas com seu calção, reconhecível por causa do corte estranho de seu cabelo. Moscas zumbem no ar. Thomas para, a fim de observá-lo. Ele está coberto de cicatrizes e cortes, a história de uma vida inteira de problemas a ser lida em sua pele. Seu rosto está inchado, roxo, com a língua para fora. O homem com o nariz que parece uma pedra redonda está ali também, ao lado dele, com os pés virados para dentro, a pele pendurada como toucinho sob o sol.

Katherine aperta Rufus contra si para que ele não possa ver os corpos e eles passam sem parar.

– Era uma questão de quando, não de se, imagino – Thomas observa.

Homens começam a se juntar a eles, em pequenos grupos, parados à margem da estrada, aguardando permissão. Nenhum deles usa uniforme. São obviamente homens de sir Humphrey, desertando em bandos agora, e ninguém está surpreso, nem os acusam de nada.

– Imagino que todos nós já estivemos nesta situação – Jack diz.

Sir Humphrey Neville e seu irmão Charles logo veem o rumo que a situação está tomando. Abandonam seus homens restantes e tentam escapar para a Escócia, mas são tão impopulares em suas próprias terras quanto o eram em Bamburgh e são traídos antes de se afastarem quinze quilômetros de seu acampamento abandonado. Levados diante do rei Eduardo em Darlington – a cidade que Liz jamais visitaria –, ele os manda executar após assistirem à missa juntos na igreja de St. Cuthbert, e os homens consideram a medida justa.

Thomas e Katherine levam Rufus para outro lugar, caminhando em sentido contrário à multidão que aflui para ver a execução, e mais tarde, William Hastings o chama, preocupado que já tenham voltado para o sul agora que a rebelião foi esmagada tão facilmente. Thomas o encontra sozinho em um quarto na White Hart, na estrada para o sul. Ele tem um ar sombrio, apesar de tudo, e é óbvio que agora ouviu a história do rei Eduardo da noite que fizeram o parto da criança e amputaram o braço remanescente de John.

– É uma pena que o seu sir Edmund Riven esteja morto, Thomas – Hastings começa.

Thomas dá de ombros.

– Não – Hastings concorda. – Bem. Não é uma pena. Mas eu gostaria de ter tido a oportunidade de lhe fazer uma ou duas perguntas. Sabe o que ele estava fazendo em Middleham?

– Ele estava à procura da mesma coisa que o senhor nos pediu para encontrar. Um livro. Foi por isso que ele prendeu Jack e John e os interrogou, porque ouviu dizer que estávamos fazendo as mesmas perguntas, procurando a mesma coisa.

Hastings olha para Thomas. Será que Hastings pode ver que ele está mentindo? Thomas não tem certeza.

– O que disseram a ele? – Hastings pergunta.

– Nada – Thomas diz. – Não tinham nada para lhe dizer. E foi por isso que um deles perdeu o único braço que tinha e a mulher do outro teve que dar à luz acorrentada.

Não que essa última informação tivesse sido inteiramente verdadeira, mas Hastings fica acabrunhado. Ele é um bom homem, afinal.

– Lamento muito por seus problemas – ele diz. – Vou recompensá-los, até onde me for possível.

Thomas não pergunta pelo investigador de Hastings, o que vinha atrás do livro-razão a partir da outra ponta, e Hastings também não o menciona. Thomas reza para que, com Riven morto, a questão do livro-razão esteja morta também. Hastings agradece a ele por seus serviços e o libera de suas obrigações por enquanto. Ele reafirma sua intenção de mantê-lo sob sua proteção e prover por ele e sua família. Thomas sente-se tão aliviado que exibe uma largo sorriso enquanto aperta efusivamente a mão de Hastings, e ele promete que estará ao seu dispor sempre que precisar.

– Vamos rogar para que não seja necessário por algum tempo – Hastings diz, retirando a mão da palma de Thomas.

Thomas está exultante. Agora que há paz entre o rei Eduardo e o conde de Warwick, Hastings abandonou a busca pelo livro-razão. Thomas respira profundamente e sente-se maravilhosamente desimpedido. Será que isso significa que estão finalmente livres desse fardo? Que possam talvez até mesmo voltar para Marton, devolver o livro-razão ao seu lugar e o deixar lá intacto, para ser esquecido?

Quando retorna à estalagem para encontrar Katherine, Jack já organizou todos montados e prontos para viajar. Estão empolgados para partir em busca da mula nas florestas de Tynedale.

– Vamos – Jack diz. – Vamos!

Eles erguem John para a sua sela e deixam Darlington, que na verdade não era tão ruim, e seguem um caminho que abraça os sopés das colinas para o oeste. Cavalgam pelo resto do dia. O campo é bastante árido ali em cima, com acostamentos de refugos das minas de carvão como os morros funerários dos povos antigos, e as urzes nas colinas desbotam do roxo para o ocre. No final da tarde, há algo na luz que lhes diz que estão entrando no outono. Ainda assim, têm muito a almejar à frente, literalmente, e Jack cavalga na dianteira com sua mulher e filha em seu cavalo, espreitando adiante, ansioso para que a floresta manche a linha do horizonte.

Isso acontece no segundo dia de viagem, após mais uma noite a céu aberto, quando alguns monges lhes dizem que a cidade na serra adiante é de fato Hexham.

– É estranho estar aqui novamente – Jack diz.

Eles passam pelo antigo campo de batalha, de onde Thomas correu, depois atravessam a ponte, que viram pela última vez apinhada de tropas em fuga da derrota, e a água embaixo é bastante rasa nesta época do ano. Logo estão entre as árvores na estrada que leva para o alto da colina, em direção à cidade. À frente, os portões estão abertos e há um membro da guarda, desconfiado, que quer saber suas identidades, lealdades e propósito. Presume-se que sejam rebeldes, mas seus sotaques, do sul, os traem, e há certa confusão e suspeita, embora eles não tenham uma aparência ameaçadora: dois homens capazes de manejar uma arma, talvez, um sem braços, duas mulheres, um menino e um bebê. Por fim, acreditam na história de sua viagem a Alnwick em busca de um homem que lhes deve dinheiro.

– Mas devemos ter cuidado – Katherine diz. – Se alguém decidir nos acusar de alguma coisa, estamos perdidos.

Eles passam a noite em uma hospedaria embaixo da abadia e, enquanto Thomas pensa em Horner vendo o duque de Somerset ter a cabeça decapitada na praça central mais adiante, Jack e John implicam um com o outro de bom humor sobre o dinheiro que acham que encontrarão no dia seguinte, e começam a fazer perguntas que ele – Thomas – não sabe responder, como quanto acha que existe lá e em que moeda será – em nobles de ouro ou groats de prata.

Na manhã seguinte, já estão de pé antes do amanhecer, prontos para partir à primeira luz da manhã, já atravessaram a ponte e entraram na floresta do outro lado quase antes de Rufus perceber que está acordado. Thomas examina as margens da estrada, tentando se lembrar de onde havia um desvio do caminho.

No tumulto da dispersão dos homens de Somerset depois da derrota de Hexham, eles haviam atravessado a ponte aos empurrões, aterrorizados de serem espetados pelas lanças dos piqueiros de Montagu, que haviam sido soltos para causarem o maior dano possível aos inimigos em fuga. Ele, Jack e John Stumps conduziram uma Katherine grávida, zonza, ao longo desta estrada, em direção ao norte, até resolverem sair dela; viram uma trilha através da floresta que não parecia promissora, o tipo que ninguém pensaria em usar, e a seguiram.

Portanto, agora, estão procurando por esse caminho outra vez. Será aquele? John sacode a cabeça. Então, aquele outro, um pouco mais adiante? Ou aquele lá? Há inúmeros caminhos e trilhas que partem da estrada.

Eles param. Discutem. A memória de John está tão distorcida que ele pensa que a trilha partia da estrada para o leste. Jack acha que aquela mais adiante deve ser a que procuram. Thomas tem certeza de que ficava em um canal. É difícil no começo do outono ver o que havia ali no final da primavera, quando as folhas eram verdes e vívidas. Decidem que a trilha deve ser aquela e aventuram-se por ela, apenas para desanimarem à medida que as árvores se fecham, a trilha acaba em lugar nenhum e eles têm que retroceder.

– Ao menos, ninguém esteve por aqui – John diz, indicando com a cabeça o tecido intacto das folhas, perturbada somente por cervos ou talvez javalis, mas por nenhum homem ou cavalo. Eles retomam a estrada para o norte e continuam por ela, passando por cima de uma colina e descendo a um vale raso por onde corre um riacho.

– É aqui – Thomas e John dizem ao mesmo tempo.

Agora, Jack está em dúvida.

– Achei que tivesse dito que ficava do outro lado?

– Tenho certeza agora – John diz. Thomas também tem certeza.

– Mas nós deixamos a trilha, lembram-se? Para encontrar um abrigo para a noite. Portanto, temos que ficar atentos a isso também, mesmo supondo que esta seja a trilha certa.

Katherine suspira.

– Gostaria de ter ido para o sul, ou ficado em Hexham – ela diz.

Eles são malsucedidos por duas vezes, chegando a dois becos sem saída. Ao longo da terceira trilha, finalmente encontram uma mina de carvão, mas não é a mesma. A tarde vai chegando ao fim quando encontram o que acham que estão procurando. Há um pequeno córrego rumorejante, e o caminho é bastante íngreme, através de densa folhagem. Thomas sente seu sangue esquentar. É esta, ele tem certeza. Ele desce do seu cavalo, os outros fazem o mesmo, exceto Nettie, que agarra o bebê enquanto amamenta, e Jack os conduz pela trilha acima na retaguarda.

– É esta! É esta! – John, de repente, também tem certeza.

Eles seguem Thomas, gritando e balbuciando de entusiasmo, até chegarem a uma clareira, onde se vê o círculo escuro de um poço fundo. As folhas formam uma espessa camada, sem serem perturbadas por muitos meses ao menos, e mais além está a cabana em que se esconderam. É ali mesmo, sem dúvida.

Eles amarram seus cavalos, e tanto Jack quanto John correm para a borda da mina. Eles espreitam para baixo.

– E então?

– Não consigo ver nada.

Jack deita-se de barriga no chão, com a cabeça e os ombros por cima da borda do buraco.

– Tenha cuidado! – Nettie grita.

Thomas também olha dentro do buraco. Lembra-se perfeitamente da cena. As mulas sendo conduzidas, com Tailboys gritando com seus homens, antes de ouvir os soldados de Montagu na trilha embaixo. Ele se pergunta sobre os homens de Tailboys agora. Como foram pensar que poderiam escapar? Seus rastros eram como sinalizadores de caminho. Era quase como se quisessem ser apanhados.

Thomas mal consegue divisar qualquer coisa lá embaixo no buraco, onde o solo e as pedras são negros. Qual a profundidade do poço? Ele pega uma pedra de seu berço úmido e a deixa cair no poço. Uns dez metros? Como vão chegar lá embaixo? Naturalmente, eles não trouxeram uma corda.

Por fim, usam uma árvore: uma faia que finalmente conseguem derrubar pouco antes de a noite cair, golpeando-a com várias lâminas e arrancando-a de suas raízes. Thomas e Jack a arrastam de volta ladeira abaixo e a deixam cair no poço. É do tamanho suficiente, a copa ficando logo acima da borda do buraco.

Jack sugere que enviem Rufus primeiro, mas Katherine não permite, e depois que dizem que Rufus não irá, não podem sugerir que Jack deve ir, então fica a cargo de Thomas. Ele desce de costas. A árvore resvala no início, um solavanco que quase o derruba. As laterais do poço soltam pedras e terra pretas. A árvore entorta sob seu peso. Sem dar nenhum passo, ele já está abaixo da borda. Como conseguirá subir de volta? Deveríamos ter trazido uma corda, diz a si mesmo outra vez. Ele deixa seus pés resvalarem pelo tronco até o galho seguinte e outro depois desse. Alguns galhos quebram e a árvore balança.

Jack lhe diz para continuar.

A escuridão se fecha sobre ele, as paredes parecendo envolvê-lo. Ele olha para cima. Três cabeças quebram o círculo de luz, espreitando para baixo. Vários cheiros estranhos se elevam no ar. Algo morreu aqui embaixo, ele tem certeza, mas há quanto tempo? Quando alcança o tronco da árvore, tem que agarrá-lo com as pernas e se arrastar para baixo. Quando olha na direção, ele pode ver o círculo de luz refletido em poças de água negra. Não podem ser muito fundas porque são pequenas, como fragmentos de vidro no fundo de um poço. Desliza da árvore e aterrissa os dois pés em uma pilha irregular que ele espera que seja seca. Uma lama espessa e verde gruda em suas botas.

– Pode vê-lo?

– Está aí? – Jack grita.

Ele pega um graveto escorregadio e preto que se projeta da água e remexe a lama. A base do buraco deve ter uns cinco passos de diâmetro, irregularmente redonda, com dez metros de profundidade. Raízes de árvores saem das laterais, e o fundo é cheio de todo tipo de só Deus sabe o quê. Thomas remexe a lama com o graveto. Nada parece promissor, até que ele vê uma faixa lisa do que ele sabe sem saber que é um osso verde, logo acima da superfície da água. Ele olha mais atentamente: um crânio, uma órbita vazia. A mula. Ele tira uma das botas do lodo e pisa em água mais funda. É muito fria, por estar sempre fora do sol. Ela enche sua bota e sobe até seus joelhos, depois suas coxas. Ele se arrasta três passos através da água. É parada, negra e de certa forma mais densa do que água normal, como uma sopa.

– Você encontrou? – John pergunta.

– Está aí? – Jack grita outra vez. – Está?

Thomas inclina-se sobre o crânio e avalia onde as sacolas – se estiverem ali – devem estar. Há uma camada de espuma grossa formada na borda da água ao redor dos ossos, e o cheiro é frio e intenso ao mesmo tempo. Ele enrola a manga e mergulha a mão. Sente coisas cobertas de lodo que se separam diante das pontas de seus dedos. Ele não quer pensar no que pode ser. Carne? Ou couro apodrecido? Estranho como um seria nojento, enquanto o outro aceitável, quando são iguais, apenas tratados de forma diferente após a morte. Ele não sente mais nada até roçar em algo duro. Uma série de barras. As costelas do animal. Ao menos, ele agora sabe onde está. A mula deve ter quebrado o pescoço na queda. Ele vai tateando cautelosamente. Suas mãos começam a ficar dormentes nos pulsos. O cheiro se modificou e a superfície da água está mais enlameada onde foi remexida. Ele retira as mãos e as sacode para aquecê-las outra vez.

– O que encontrou? O que tem aí embaixo?

Ele não responde. Enfia as mãos na água outra vez e começa a fazer uma varredura para a frente. O que ele está procurando sentir? Não sabe exatamente. Como as moedas são carregadas? Em pequenas sacolas? Em uma sacola grande? Soltas? Thomas sente algo macio. Uma pilha de alguma substância. Não pense nisso. Ele arrasta os dedos pelo meio dela. Tem certeza de que sente o gosto de mula em decomposição no ar. Tudo ali embaixo está em processo de decomposição, de ser temporário, de estar retornando à terra.

E então, ali está a primeira sensação que ele tem de algo que não é natural, algo sólido e pesado. As pontas de seus dedos roçam por bordas ásperas e inflexíveis. Ele para. Volta. Toca no objeto. Isola uma borda e em seguida puxa-a com a unha do polegar, arranca-a e ali está. Ele a segura na palma da mão. Preta. Doente, de certo modo. Negra e redonda como uma antiga mancha de sangue, mas pesada.

Ele a lava na água suja. Raspa-a com o polegar. Seu coração está batendo com força. É uma moeda. Não consegue saber de onde ela vem – se é francesa ou inglesa –, mas quando ele corre a unha do polegar pela superfície negra, ela deixa uma marca de ouro polido.

– Ha! – ele grita.

– O que foi? O que foi? – todos gritam em resposta. – O que você achou?

– Uma moeda – ele grita para cima. – Encontrei uma moeda.

Faz-se uma pausa.

– Só uma? – vem a voz decepcionada de Jack.

– Não – Thomas diz, mais consigo mesmo. – Não. Meu Deus. Há centenas delas. Centenas e centenas.


24


É quase meio-dia no meio da semana depois da Candelária, no começo de fevereiro, e Katherine Everingham, com uma capa de lã nova e um cachecol no pescoço, para no pátio com a mão sobre sua barriga irrequieta e observa Thomas e Rufus voltando pela estrada do campo de treinamento de arco e flecha na vila. Eles carregam seus arcos desmontados sobre os ombros, uma aljava de flechas cada um, e dois lurchers cinza trotam à frente com o focinho pressionado na trilha.

Ela se pergunta sobre o que seu marido e seu filho estão conversando, até que vê Thomas apontando para algo em um carvalho antes de fazer um curioso movimento com as mãos que ela reconhece como sendo a trituração de algo em um almofariz. Estão conversando sobre a bolota do carvalho e a preparação de tintas, ela pensa, o que a agrada: Rufus não tem as habilidades naturais de um arqueiro, até mesmo Thomas reconhece isso, portanto é bom ver que ele questiona seu pai sobre assuntos mais cultos, tais como cartas e iluminuras, no que ela amorosamente acha que ele vai ter sucesso.

Katherine aperta o cachecol à volta do pescoço e ajeita a capa sobre os ombros, e enquanto espera, não pode impedir que seu olhar resvale para as pontas serradas da lenha no depósito, ainda cheio acima da metade, apesar de já terem passado da virada do ano. Cada peça é testemunha de seu trabalho desde que voltaram do norte, ricos além dos mais ambiciosos sonhos com todo aquele ouro.

No começo, nenhum deles conseguia acreditar, já que coisas assim nunca aconteciam a gente como eles. Naquele primeiro dia, depois de o encontrarem, Thomas saíra do poço da mina e, após alguma discussão, decidiram deixar as moedas onde estavam, sem serem perturbadas, sob o manto do negrume, e passaram a noite – mais uma vez – na cabana em que um dia se abrigaram após a batalha de Hexham. Na manhã seguinte, ela e Jack voltaram à cidade e, com aquela única moeda que Thomas resgatara, compraram tudo que precisavam e ainda mais: bolsas, corda, uma nova sela, uma mula extra. Retornaram à floresta e encontraram os demais reunidos ao redor da boca da mina. No dia seguinte, Thomas e Jack desceram ao fundo do buraco e começaram a içar as pilhas cobertas de crostas de moedas negras e imundas, empilhando-as nas folhas ao lado do poço. No começo, dançaram de alegria. Depois, conforme as pilhas cresciam, eles começaram a fitá-las com incredulidade e, por fim, ficaram preocupados quando um temor sutil e profundo se apoderou deles.

– Alguém vai nos roubar – John disse.

Mas ninguém roubou. Eles passaram dois dias ali, enquanto Thomas e Jack arrastavam os dedos pelas águas espessas e negras até encontrarem a última moeda. Quando finalmente todas as moedas estavam ensacadas e as mulas carregadas, eles rumaram para o sul, cautelosos como gatos, tomando o cuidado de parecerem pessoas a quem não valia a pena roubar. Viajaram com peregrinos sempre que possível, atravessando o vale de Mowbray, onde os homens do duque de Gloucester estavam ocupados, até York e dali a Gainsborough, onde atravessaram o rio e dali finalmente chegaram a Marton.

Isabella estava à espera deles, tendo recebido a mensagem de Thomas, com seu novo marido ao lado e uma venda sobre o olho cego. Katherine atirou-se de joelhos diante de Isabella, suplicando seu perdão pelo que havia feito, mas Isabella a fez se levantar, beijou-a e lhe disse que nada havia a perdoar.

– A visão neste olho eu devo a você e a Deus – ela disse, apontando para o olho, mas apesar do sucesso da operação, estava determinada a não pedir a Katherine para operar o outro, pois assim como a visão do primeiro fora uma dádiva de Deus, a cegueira no outro também fora uma dádiva divina. Repetiu que era uma penitência por algum pecado do qual ela não queria falar e tinha certeza de que suportar a cegueira agora iria encurtar seu tempo no purgatório e, assim, apressar seu progresso a um lugar à direita do Senhor. Katherine ficou agradecida.

– Não creio que eu poderia fazer tudo aquilo outra vez – ela disse a Thomas mais tarde. – Ao menos, não com sucesso.

Ela sempre achara que retirar o disco leitoso da catarata da frente do olho deixaria um espaço dentro do qual qualquer secreção poderia se instalar e levar à cegueira permanente. Ela teve sorte, pensa, que uma boa secreção tenha preenchido o espaço de Isabella.

Quando chegou a hora de tratar da propriedade de Isabella, sir John Ffytche ficara naturalmente desconfiado no começo, como sem dúvida qualquer um ficaria quando um homem como Thomas apresenta tal quantidade de dinheiro, mas William Hastings dera seu aval pessoal por ele e isso – juntamente com a atração de pegar o dinheiro para si próprio – foi o suficiente para Ffytche. Antes que os selos contratuais secassem, as moedas já haviam desaparecido em seus próprios cofres para serem transportadas para o sul por uma tropa de homens muito bem armados, vestidos com o seu uniforme.

Com a partida de Isabella, Marton Hall e a propriedade remanescente passaram a finalmente pertencer a eles. Jack e Nettie apoderaram-se da antiga casa que Thomas e Katherine haviam construído, enquanto John permaneceu na mansão com eles e três criadas que vieram do vilarejo. Katherine ainda fica admirada ao acordar todos os dias e ver que possui a ajuda de três mulheres sob suas ordens. E eles realmente precisaram da ajuda delas. O trabalho necessário para recuperar a propriedade ao que tinha sido um dia foi extenuante e ainda não estava terminado. Diques tiveram que ser restaurados e terras cultiváveis tiveram que ser drenadas outra vez e deixadas para secarem antes de poderem ser lavradas. Bosques inteiros foram podados para obterem lenha e as traves que precisavam para fazer os cercados para os gansos e os sete porcos que haviam comprado e mantido vivos durante o inverno. Também precisaram das traves de madeira para as cabanas que haviam começado a reconstruir com lama e palha retiradas dos campos alagados. Carneiros foram adquiridos – do tipo com topete e lã comprida –, a vaca, os dois bois e um burro para conduzi-los, assim como dois pôneis. Eles restauraram a casa de malte e a leiteria, e plantaram a horta com tudo de que irão precisar para o ano vindouro.

Katherine comprou peças de tecidos tingidos de cores vivas de Lincoln e roupas são feitas: casacos para Thomas e Rufus, um curioso gibão de manga curta para John, que se queixa que seus cotos ficam frios, mesmo no clima ameno, e vestidos para as mulheres. Ela fez sapatos, costurando o couro com uma agulha curva como qualquer sapateiro, e sua família e criados agora estão equipados como soldados. Todas as lembranças da época em que caminhavam apenas com as solas finas de suas botas entre elas e a terra nua foram banidas.

E durante todo esse tempo eles não ouviram nada a respeito do rei Eduardo, nem de lorde Hastings, nem, ainda mais crucial, apesar dos grandes temores, do próprio conde de Warwick. É como se ela e Thomas tivessem sido esquecidos ou tivessem caído do fim do mundo na lama de Lincolnshire, levando com eles todos os boatos sobre o livro-razão. A cada dia que o silêncio permanece, mais esperançosa ela fica de que isso durará para sempre: que os dias se tornarão semanas, se tornarão meses, depois anos, e que ela e Thomas poderão viver esta vida. Que poderão planejar com antecedência, lutando apenas contra as estações do ano e os atos de Deus, em vez dos caprichos aleatórios de loucos que os enviarão para lutar outra vez, sob um ou outro pretexto.

Foi um choque se ver finalmente ali, com Thomas e Rufus, com uma casa própria, da qual nenhum homem pode legalmente privá-los, em terras próprias, das quais nenhum homem pode legalmente expulsá-los. Toda manhã, é um choque para ela acordar com a perspectiva de um dia à frente cuidando dos próprios interesses, em vez de sete, oito, nove, dez horas trabalhando para o lucro de outro homem, com a única recompensa ao final sendo a comida para sobreviver e fazer tudo novamente no dia seguinte.

Além de tudo isso, ela está grávida outra vez. Uma bênção extra de Deus.

E agora Thomas e Rufus estão no pátio, os rostos rosados do exercício e do frio, mas estão bem agasalhados e felizes.

– Entrem – ela lhes diz. – Vocês devem estar congelados.

Thomas pergunta como Katherine está passando, ela revira os olhos e faz uma careta.

– Nettie está cozinhando – ela diz, pois não consegue suportar o cheiro de carne cozida e, nas últimas duas semanas, viveu apenas de pão de centeio e cerveja. Ela os deixa passar, vira-se e observa com uma sensação quase esmagadora de fraudulência – como se não merecesse esta felicidade – seu marido e seu filho pendurarem suas capas e casacos, tirarem os cachecóis e correrem para perto da lareira, ombro a ombro, para estenderem as mãos para as chamas. Thomas pergunta a Nettie como vai sua filha Kate e Nettie emite um suspiro e dá uma firme estocada no conteúdo da panela com um longo espeto. É coelho ensopado que é servido, com um bom pão fresco e cerveja, e mais das maçãs com a pele seca que eles colheram no outono, e agora até mesmo nêsperas.

Depois de terem comido, Thomas, Katherine e Rufus saem para o pátio, onde Jack amontoou os emaranhados de hastes de ervilha tiradas das vigas do estábulo, e sentam-se ali nos tocos de árvores cortadas, exatamente onde sir John costumava se sentar e, apesar do frio, estão satisfeitos, os três à luz do sol poente, limpando as vagens secas e retirando as ervilhas para serem plantadas na primavera. Quando aquele lote está pronto, eles caminham com os cachorros para o campo sob os álamos, carregando braçadas das vagens descartadas para os dois pôneis e a vaca de cor castanha. Os animais se aproximam para comer das mãos de Rufus através da cerca. Ele adora os animais e conversa com eles em sua própria língua. Katherine sente seu coração transbordar no peito e pensa que talvez ele tenha se esquecido de tudo que viu no ano anterior e que não será prejudicado por isso.

Depois de terem alimentado os pôneis e a vaca, continuam a caminhar até onde o rebanho de carneiros está fuçando a grama nova em um dos campos mais altos. Thomas diz a ela que precisará da ajuda de Jack para cortar as unhas destes animais, porque esta raça precisa disso, mas diz que são carneiros e ovelhas bonitos e que sua lã deverá render uma boa quantia no mercado, de modo que valerá a pena. Ficam ali parados por alguns instantes, os três suficientemente juntos para se tocarem, suas sombras muito alongadas na lama sob suas botas. Ela ergue a cabeça para olhar à volta, para tudo que fizeram, o que conseguiram construir para si mesmos, e sente uma alegria sólida, incomensurável, inquestionável.

Então, Rufus ergue a cabeça e olha por cima das cabeças dos animais.

– Quem é aquele? – ele pergunta.

O menino aponta para as árvores e lá, entre os troncos, a uns duzentos passos dali, está um homem a cavalo, imóvel, apenas observando-os, e quando vê que foi visto, ele se vira e se afasta devagar.

Em um instante, aquela alegria desaparece como névoa sob o sol, como se nunca tivesse existido.


Nota do autor


Almas divididas é ambientado em 1469, um dos anos mais peculiares e complexos da história inglesa, durante o qual um conde manteve simultaneamente dois reis trancados a sete chaves, mas sobre o qual as poucas crônicas que sobreviveram são incompletas e, mesmo pelos padrões usuais, comicamente confusas. Assim, para dar algum sentido aos acontecimentos, tive que fazer umas duas afirmações ousadas que devem lhes ter parecido improváveis, ou até mesmo absurdas, e as quais devo explicar.

A primeira estranheza real ocorre no período que precede a batalha de Edgecote, em julho, quando Robin de Redesdale veio avançando do norte. Por que o rei Eduardo ficou perdendo tempo e não reagiu imediatamente? Ninguém sabe realmente a resposta para isso, mas embora seja possível que tenha sido iludido e recebido informações que subestimavam a ameaça que Robin de Redesdale representava, ele me parece ter sido o tipo de homem que poderia ser presa – até aquele ponto, pelo menos – de excesso de confiança. E assim eu o imaginei, não se dando ao trabalho de enviar batedores e, na verdade, não se interessando muito, sempre seguro de que, se a situação realmente se agravasse, poderia derrotar qualquer exército rebelde no campo de batalha. Afinal, ele não era o vitorioso de Towton?

A segunda estranheza inexplicável ocorre na noite anterior à própria batalha, quando os condes de Pembroke e de Devon se desentendem. É sabido que se desentenderam, mas ninguém sabe precisamente por quê. Alguns cronistas sugerem que tenha sido por causa de uma mulher, e outros por causa de acomodações. Bem, já que meu romance não é sobre isso, preferi a explicação mais simples. Como um entusiasta da prática de acampar, eu sei quando um lugar plano é valorizado e esse foi o motivo que eu escolhi, já que me fez sorrir. Entretanto, se em algum ponto no futuro descobrirmos um dos diários do conde, e a explicação for inteiramente diferente, eu peço desculpas com antecedência.

Em minha defesa, os próprios cronistas da época não tinham absolutamente nenhuma certeza sobre os eventos: “Hearne’s Fragment”, em Chronicles of the White Rose of York, sugere que o próprio Eduardo enviou o exército que derrotou o conde de Pembroke, enquanto Polydore Vergil simplesmente não menciona o conde de Devon, mas relata duas batalhas – uma entre Pembroke e Redesdale e, depois, outra entre Pembroke e as forças unificadas de Warwick e Clarence. Waurin ambienta a batalha em Tewkesbury.

Outro fato desconhecido é sob quais restrições o conde de Warwick manteve o rei Eduardo preso em Middleham no verão de 1469 e, subsequentemente, sob que condições o deixou partir. Eu imaginei o evento como o descrevi, uma vez que ele certamente não foi mantido preso como o velho rei Henrique VI – na Torre – e nem há nenhuma presunção de que o rei Eduardo não fosse ainda o rei, de modo que deve ter sido tratado como tal e mantido em condições bastante privilegiadas no que era, para os padrões da época, um castelo extremamente luxuoso. Então, teria simplesmente sido acordado que ele deveria se manter em Middleham? Mas que não poderia convocar seus lordes – homens como lorde Hastings e seu irmão mais novo, duque de Gloucester – enquanto o conde de Warwick não lhe desse permissão para isso? Mais uma vez, meu personagem Thomas não teria tido conhecimento – nem estaria necessariamente interessado – dos arranjos, e como este livro é sobre Thomas, e não Eduardo, então eu simplesmente optei por um acordo tácito entre o rei e o conde.

E quanto à soltura do rei Eduardo, também se trata de especulação. Alguns dizem que o conde de Warwick precisava da autoridade do rei Eduardo para ajudar a sufocar a rebelião de Humphrey Neville de Brancepeth, mas isso poderia ser realmente verdade? O conde de Northumberland poderia facilmente ter sufocado a revolta, tenho certeza. Na verdade, o que o conde de Northumberland estava fazendo na época? Mantendo-se afastado? Ninguém tampouco tem certeza sobre esse fato.

Eu tive que inventar cenários prováveis para as situações acima, a fim de não atrapalhar o fluxo do romance, já que esses eventos são o pano de fundo – apesar de um pano de fundo extraordinariamente colorido – para as sucessivas aventuras de Thomas e Katherine. Entretanto, não alterei fatos conhecidos (até onde eu saiba) e minhas sugestões são ao menos possíveis, se não – agora que eu realmente penso no argumento do local do acampamento – prováveis.

O que realmente encobri foi o debate sobre quem de fato foi Robin de Redesdale, já que sua identidade é desconhecida. Resolvi fazer isso pelo bem da clareza e porque, para a maioria dos homens em luta, para todos os seguidores de acampamento e, novamente, para Thomas e Katherine, tenho certeza de que não teria feito muita diferença prática. Contudo, a maioria dos cronistas acha tratar-se de John Conyers de Hornby ou seu filho, também, inevitavelmente, John, ou seu irmão, William, de Marske.

Também devo explicar a presença em Almas divididas do sem braços John Stumps, um personagem que se poderia achar que seja capaz de causar mais problemas narrativos do que solucioná-los, mas que é uma homenagem a um homem chamado Tom Stumps, um criado fiel da família Paston em sua hora de crise em 1469, quando o duque de Norfolk estava sitiando o Castelo Caister, e que alegou, apesar de sua deficiência, ser ainda capaz de usar uma besta. Como? Muito bem, obrigado.

Outro fator capaz de levantar sobrancelhas é a ideia de o Trent ter marés altas e baixas até Nottingham. Infelizmente, eu perdi a referência a isso, mas, ao que parece, assim era. Com menos pontes, a maré percorria toda essa distância. Surpreendente.

Almas divididas deixa Thomas e Katherine em um momento de calma, mas um momento que não deve durar e eu imagino que assim devia ser a Inglaterra na época. Ter o conde de Warwick como inimigo não devia ser uma posição confortável para ninguém. Além do mais, o rei Eduardo tinha problemas com seu irrequieto irmão Jorge, duque de Clarence, bem como, do outro lado do mar, com sua antiga inimiga Margaret de Anjou e seu filho – o bélico Eduardo de Westminster – que esperavam, constantemente importunando qualquer um com qualquer quantia de dinheiro para financiar uma invasão da Inglaterra.

Por todo o país, deve ter sido uma época extraordinariamente precária, com as velhas correntes da lealdade feudal em pedaços, sem muito mais do que poder militar para substituí-las, e assim talvez a luta fosse sempre recomeçar, como inevitavelmente o faz, no quarto livro desta série, em que Thomas e Katherine serão arrastados para o centro do palco outra vez...

 

 

                                                   Toby Clements         

 

 

 

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