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Series & Trilogias Literarias
Baseada na biografia de Thomas Cochrane e suas tentativas na Bolsa e na política, este romance mostra algumas das facetas menos conhecidas da vida dos oficiais da Marinha em períodos de paz, e recria com a fidelidade e intensidade às quais O'Brian nos acostumou os anseios, as ilusões e as esperanças desses homens endurecidos no mar. O achado de uma carta criará algumas complicações na vida familiar dos Aubrey, mas o verdadeiro desafio ao qual se enfrenta o protagonista da série é a emaranhada rede de influências e corruptelas políticas que impregnam o almirantado, e na qual Jack deverá aprender a mover-se.
Este é o décimo oitavo romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos.
Foi mantido o sistema de medidas da Armada Real inglesa, como forma habitual de expressão da terminologia náutica.
1 cabo =120 braças = 185,19 metros.
1 celemine= 4,6 litros.
1 estádio= 201,2 metros.
1 jarda = 0, 9144 metros.
1 libra = 0, 45359 quilogramas - 1 kg = 2, 20462 libra.
1 pé = 0, 3048 metros - 1 m = 3, 28084 pés.
1 pinta = 0,47 litros.
1 polegada = 2, 54 centímetros - 1 cm = 0, 3937 polegada.
1 quintal = 112 libras = 50, 802 kg.
CAPÍTULO 1
Sir Joseph Blaine, um homem gordo e de rosto amarelado que vestia traje cinza e casaca de flanela, percorreu Saint James Street, atravessou o parque e, depois de abrir uma porta privada com a chave correspondente, entrou no Almirantado pela parte de trás. Uma vez ali, dirigiu-se ao espaçoso quarto sem graça que lhe servia de escritório.
Observou os papéis que havia em sua escrivaninha, inclinou a cabeça e fez soar o sino.
- Se o senhor encontrar o senhor Needham, peço que o acompanhe até aqui - disse ao funcionário que respondeu ao chamado.
Quando Needham apareceu, sir Joseph levantou-se um pouco e assinalou a cômoda cadeira situada diante de sua mesa.
- Uma vez concluído o caso do pobre Delaney, chegou o momento de tratar de outro cavalheiro do qual não temos notícias - disse. - Trata-se de Stephen Maturin. O própio doutor Stephen Maturin, possivelmente nosso mas valioso conselheiro em tudo o relacionado com os assuntos espanhóis.
- Não recordo ter ouvido falar dele.
- E não acho que o tenha feito. Contudo, estou convencido de que o senhor e seus homens encontraram seu nome cifrado ao pé de mais de um valioso informe. Quando anda para cima e para baixo por todo o mundo em nosso benefício, tal e como costuma suceder... - Sir Joseph calou um "ou sucedia" e prosseguiu: - navega sempre em companhia do capitão Aubrey, cujo nome sem dúvida lhe será familiar.
- Oh, sem dúvida - disse Needham, desejoso de causar uma boa impressão a tão importante personagem, ainda que seu escasso talento não o ajudava muito. - É aquele cavalheiro que saiu tão mal parado no julgamento de Guildhall. - Sir Joseph não pareceu receber muito bem a menção à condenação do capitão Aubrey à picota, e Needham tentou remediar a situação: - O filho do famoso general Aubrey.
- Se o prefere - disse friamente sir Joseph. - Claro que também poderíamos descrevê-lo como o oficial que, em 1801, ao comando de um bergantim de catorze canhões, aprisionou uma feluca-fragata espanhola de trinta e dois canhões e a conduziu a Mahón. O mesmo que se apoderou da fragata francesa Diane em uma incursão em botes no defendido porto de Saint-Martin. O mesmo que, não faz muito, regressou com sua esquadra depois de levar a cabo uma intensa incursão para combater a escravidão no Golfo de Guinéu, durante a qual arruinou as aspirações francesas de desembarcar na Irlanda, conduzindo um navio de linha entre os arrecifes. Isso para não mencionar... Sim, senhor Carling? - perguntou a um secretário.
- Finalmente confirmaram os perdões, senhor - respondeu Carling, depositando-os na escrivaninha de sir Joseph. - Coloquei os que mais lhe interessavam em cima da pilha. - E saiu como era habitual nele, silencioso como um espectro.
Sir Joseph consultou a data em que os perdões entrariam em vigor. Muito anterior à que Maturin havia estipulado para sua partida da Espanha. Assentiu e reiniciou sua conversa com Needham.
- Voltando ao doutor Maturin, por quem estamos particularmente preocupados, e em cujo benefício valorizaríamos muito qualquer ajuda que seu agente possa proporcionar-nos, eu lhe direi que um destes perdões - e levantou um pergaminho - é para ele. Provavelmente o senhor saiba mais sobre o defunto duque de Habachtsthal que eu, sobre o tipo de pessoas com as quais se relacionava, e das criaturas que empregava para algumas de suas atividades.
- Dispomos de um material que não poderia ser mais sortido. E as criaturas, tal como tão acertadamente o senhor as denominou, constituiram a causa direta de seu suicídio.
- Sim. - Blaine guardou silêncio um instante e continuou: - Não pretendo estender-me muito mencionando detalhes circunstanciais; limitar-me-ei a informar-lhe de que este sujeito hospedava certo ódio pela pessoa de Maturin, pois ele foi a causa direta da morte de dois dos amigos do duque, e com isso se pôde pôr fim a suas solapadas atividades. As criaturas que Habachtsthal empregou para vingar-se descobriram que, antes do levantamento irlandês do ano noventa e oito, o doutor Maturin havia mantido uma relação amistosa com lorde Edward Fitzgerald, que cometera certas indiscrições em favor da independência irlandesa, e que, com a ajuda de informadores dublineses e provas recentes, poderia ter sido acusado de um crime capital. Além disso, tinha levado consigo dois convictos de Botany Bay antes de que cumprissem a totalidade da condenação, sem contar com permissão alguma. Geralmente, eu teria me encarregado de resolver o assunto do mesmo modo que o senhor resolveu o caso de William Harvey, mas com um adversário em tão boa posição e tão influente, não me atrevi a mover peças por temor de piorar as coisas. Em lugar disso, eu o aconselhei a retirar-se discretamente para a Espanha, acompanhado de seus protegidos e com toda sua fortuna, pois era possível que a perdesse ante tais acusações. Atendeu meus desejos, e acrescentou a companhia de sua filha pequena. A sua esposa não, pois resultou encontrar-se na Irlanda (diria que naquele momento atravessavam certas dificuldades que já resolveram). Entenda que tudo isto foi antes de empreender a expedição ao Golfo...
- O doutor Maturin participou dela?
- Certamente. Não só tinha o dever de exercer as funções de cirurgião no Bellona, como que também se opõe fervorosamente à escravidão. - Needham franziu os lábios e se encolheu de ombros. - Também é um eminente naturalista, uma autêntica autoridade em anatomia comparada.
Caso tivesse se dirigido a alguém mais culto e de caráter mais liberal, sir Joseph poderia ter mencionado o estudo do potto e em particular, o referente às anomalias de suas falanges, que o doutor Maturin lera ante a Royal Society, assim como a sensação que causara entre aqueles que eram capazes tanto de escutar como de apreciar a trascendência do que dizia. Contudo, nas presentes circunstâncias, optou por obviar dito comentário. Essa reunião era muito necessária de um ponto de vista departamental e político, e os informes de que Needham dispunha poderiam revelar-se de grande e imediata importância, apesar da limitada inteligência de que esse homem desfrutava. Contudo, a entrevista não estava resultando muito agradável e sir Joseph não queria estendê-la mais que o necessário.
- Habachtsthal suicidou-se poucos dias antes de que a esquadra chegasse à baía Bantry; como já não existia mais nenhuma oposição, levei a cabo os passos necessários para obter o consentimento imediato para o perdão. Enviei um mensageiro para comunicar-lhe que tudo andava bem e que podia reunir a sua família e riquezas quando quisesse. Voltou para a Inglaterra acompanhado de sua esposa, e ambos partiram tomando a rota mais curta (pois a senhora Maturin sofre enjôos no mar), com a intenção de pegar um carro postal para Groyne e dispor o traslado de seu dinheiro, todo em ouro, por certo, para este país, e depois recolher em Ávila a seus protegidos e a sua filha.
- Onde fica Ávila?
- Em Castela. Oito dias depois de partir, um de nossos melhores agentes nos informou de que o doutor Maturin fora denunciado ao governo espanhol como o principal instigador da conspiração peruana, na tentativa do Peru para declarar-se independente da Espanha.
- Estava fundada semelhante acusação?
- Sim, estava.
- Oh - exclamou Needham, profundamente impressionado. - Conforme nossa informação, esteve a ponto de concretizar-se.
- Esteve muito perto de consegui-lo, por questão de umas horas nos escapou das mãos semelhante oportunidade; foi por um estúpido, entrometido e idiota tagarela, um prisioneiro de guerra que escapou de um dos barcos de Aubrey e percorreu Lima de ponta a ponta, denunciando que Maturin era um agente inglês e que a revolta era financiada com o ouro inglês. No último momento, a missão francesa, que estava destacada com algum encargo mas que não dispunha do financiamento necessário, fez tanto ruído que o general ao comando se amedrontou e Maturin teve que abandonar a zona. Esse condenado Dutourd viajou para a Espanha faz muito pouco, e o governo nos pediu explicações a respeito do sucedido.
- Negaram tudo, certamente.
Sir Joseph inclinou a cabeça.
- Mas ficou bem claro que não acreditaram. Embargaram seu dinheiro na Corunha e pretendiam aprisioná-lo quando fosse buscá-lo. Quis advertir-lhe através de três agentes e telegrafei a Plymouth para que o cúter mais veloz levasse uma mensagem para nosso homem na Corunha. Recebemos alguns informes desta viagem, procedentes principalmente da inteligência militar. O último destes informes era um duvidoso relato de um casal endinheirado que viajava com escolta por Aragão em uma carruagem de quatro cavalos. Depois, nada. Absolutamente nada. Perdemos por completo seu rastro. E o informe concernente a Aragão era geograficamente improvável, pois não poderia tê-lo desviado mais de sua rota. Claro que embora Maturin seja um homem rico, não tem aspecto de sê-lo, pois geralmente veste roupa austera e sempre se mostra muito discreto. Provavelmente seus agentes tenham contatos na Espanha dos quais nós carecemos pelo momento, e lhes agradeceríamos muito se pudessem jogar alguma luz sobre o caso.
- Farei tudo quanto esteja em meu poder, certamente.
- Muito obrigado. Não pude deixar de pensar nele. É um homem muito valioso, não é um mercenário, poliglota, um entendido em filosofia natural que conta com inumeráveis contatos entre os homens mais sábios do estrangeiro e sua profissão lhe abriu todas as portas, pois um cirurgião sempre é bem-vindo. Além disso é católico, o que resulta ser uma grande carta de apresentação em boa parte do mundo.
- Católico, apostólico e romano e de confiança? - perguntou Needham com um olhar cheio de suspeita.
- Sim, senhor - respondeu Blaine, que pisou uma campainha oculta sob a escrivaninha. - E em primeiro lugar teria que ter-lhe dito que Maturin odeia qualquer tipo de tirania, sobretudo a de Bonaparte.
A porta se abriu. Entrou Carling, que se inclinou respeitosamente para sir Joseph e disse:
- Peço que me perdoe, senhor, mas o primeiro lorde deseja falar com o senhor.
- É urgente?
- Temo que sim, sir Joseph.
- Senhor Needham, devo rogar-lhe que me desculpe - disse Blaine, levantando-se com certo esforço; - contudo, afortunadamente alcançamos um acordo em esta conversa tão valiosa e interessante. O senhor me manterá informado?
- Certamente, senhor. Sem falta. Amanhã no mais tardar.
Stephen seguia na mente de sir Joseph quando regressou caminhando para sua casa em Shepherd Market, passeio no qual havia insistido o doutor Maturin, que desconfiava tanto do colorido da tez de Blaine como do estado sensível de seu fígado. Stephen era um dos poucos homens que agradavam a sir Joseph; era verdade que compartiam muitos interesses: a música, a entomologia, a Royal Society, um bom vinho, para não falar de seu ódio por Napoleão, mas também se dava essa particular simpatia e respeito mútuo que transformava tais... (e titubeou até achar a palavra adequada) interesses compartidos, preferências, traços, características, em algo completamente distinto. Na esquina de Saint James Street viu ao gari de costume que aguardava ao ver-lhe cruzar Piccadilly agitando a vassoura.
- Obrigado, Charles - disse ao dar-lhe a gorgeta semanal de quatro peniques.
No outro extremo, junto ao White Horse, um homem punha todo seu cuidado em ajudar a uma mulher a descer da carruagem, uma mulher particularmente bela; e quando Blaine percorreu Half Moon Street se descobriu pensando no matrimônio de Stephen. O doutor Maturin se casara com uma mulher muito atraente, o tipo de mulher que Blaine gostava de olhar, o tipo de mulher com a qual teria gostado de se casar caso a tivesse conhecido e tido a coragem, a presença e a fortuna para fazê-lo. Como Maturin - que tinha inclusive menos presença que ele e que nesse momento não tinha um penique - ter conseguido chegado tão longe era algo que escapava a sua compreensão... Uma vez depois de outra ela o fizera muito infeliz, pensou. E enquanto seus passos o conduziam pelo umbral de sua porta, passaram por sua mente as palavras: "O hábito não faz o monge", ainda que apreciava muito a Diana, e admirava ainda mais o seu humor.
Caminhou pensativo com a cabeça inclinada. Os três degraus gastos entraram em seu campo de visão e intuiu a presença de uma figura que esperava de pé na porta, e então viu o sorridente rosto do mesmíssimo Stephen.
- Oh, oh! - exclamou em um tom mais própio de uma ovelha surpreendida que do diretor da Inteligência Naval. - Stephen, tinha seu nome nos lábios. O senhor é tão bem-vindo como o primeiro brotamento primaveral. Como se encontra, querido amigo? Como está? Entre, se lhe compraz, e conte-me.
Stephen acedeu, animado por tão surpreendente alegria - surpreendente por vir de alguém tão reservado e fleumático como era sir Joseph, - ao familiar saguão, cálido e beirado de estantes, até chegar à habitação com tapete turco onde costumavam sentar-se. O fogo da chaminé crepitava alegremente, e de repente sir Joseph pareceu contagiado de uma alegria maior. Voltou-se e apertou de novo a mão de Stephen.
- Que posso oferecer-lhe? - perguntou. - Um chá? Não, esquecia que o senhor não gosta. Café? Uma taça de licor? Não? Não insistirei. Tem um aspecto esplêndido, se me permite o comentário pessoal. Esplêndido, sim senhor. E eu que lhe imaginava em uma prisão espanhola, pálido, sem barbear, magro, sujo, molambento. - Percebeu a força do olhar claro e interrogativo de Stephen e acrescentou: - Equela sevandija do Dutourd chegou à Espanha e lhe denunciou. González, informado de grande parte de suas atividades em Catalunha, achou-lhe, reteve seu dinheiro na Corunha e deu ordens de que deviam aprisionar-lhe quando fosse pegá-lo. Fiquei sabendo uma semana depois que o senhor partiu por mediação de Wall e de outras fontes totalmente confiáveis. Não pode imaginar os esforços que fiz para advertir-lhe, nem a quantidade de folhas de coca que devorei para manter toda minha astúcia em condições... E de repente o tenho sentado aqui, diria que totalmente bem e imperturbável, tão bem que quase me faz sentir humilhado. Ainda que farei um parêntese para agradecer-lhe de novo por ter me aconselhado essas benditas folhas: consegui um suprimento de confiança graças a um boticário de Greek Street. Permitir-me-ia oferecer-lhe uma mastigada?
- O senhor é muito amável, mas devo recusá-la, pois minha faringe permaneceria insensível até a hora do jantar, um jantar do qual desejaria desfrutar particularmente. Ademais, esta noite tenho intenção de dormir.
Produziu-se uma pausa.
- Não serei tão indiscreto como para perguntar-lhe se o senhor dispôs de outras fontes de informação mais... madrugadoras - disse Blaine.
- Não foi assim - disse Stephen, cuja mente ainda tinha que assimilar todas as implicações das notícias de sir Joseph. - De verdade, não foi assim. Minha segurança, nossa segurança, dependia, da Providência, de são Patrício, de Stephen Protomártir e de são Brendano, somente de minha própia inépcia, de minha própia e intolerável inépcia; inclusive diria que de minha ineficácia. Quer saber mais a respeito?
- Se fosse tão amável de explicar-me - disse Blaine, que aproximou sua cadeira de Stephen.
- Não diz nada em meu favor, nada em absoluto, mas lhe devo uma explicação, pois o senhor teve tantos incômodos, por inadequada e sucinta que seja. Desembarcamos em um dia cálido e tranqüilo. Diana havia se recuperado dos enjôos que sofrera durante a viagem e pegamos uma carruagem para viajar para o oeste, seguindo o contorno da costa. Paramos em uma estupenda pensão em Laredo, onde comemos algumas centenas de pequenas enguias de duas polegadas de comprimento, e onde pudemos descansar. Quando preparávamos a bagagem para a próxima etapa da viagem que realizaríamos em uma estupenda carruagem nova, Diana, melhor viajante que eu (pois desfruta de uma mente mais capacitada que a minha no que concerne à organização da bagagem), sugeriu que deveria assegurar-me de que tudo se encontrasse em seu lugar para quando chegássemos à Corunha. Roupa adequada para visitar ao governador, pó para minha melhor peruca e, acima de tudo, o primorosamente firmado e testemunhado recibo conforme o Banco do Espírito Santo e do Comércio havia recebido certo número de baús que continham o também especificado peso em ouro, a devolver com a entrega deste documento. Tudo estava em seu lugar: calções de seda, sapatos de salto vermelho, a pólvora e a espada de empunhadura de prata, tudo excetuando aquele infernal pedaço de papel. Envergonho-me só de pensar - disse Maturin, cujo rosto azeitonado mudou efetivamente de cor, à medida que o tom rosáceo aflorou em suas bochechas e testa até desaparecer sob a peruca, uma peruca de cabelo muito curto. - Envergonha-me admiti-lo, mas não houve maneira de encontrar esse condenado papel.
- Você não estará me dizendo que perdeu o recibo que o banco lhe deu por todo aquele ouro, verdade, Stephen? - exclamou sir Joseph, contra todos seus princípios. - Você o perdeu? Desculpe-me mas isso escapa a minha compreensão...
Stephen sacudiu a cabeça.
- Repassei um sem-fim de papéis: notas sobre ornitologia que havia levado para um amigo, o arcediago de Gijón, e muitos, muitos mais. Voltei a repassá-los um por um, classifiquei-os e comprovei uma e outra vez... Joseph, a língua dos anjos não poderia pôr palavras à frustração que sentia. E não tinha tanta coragem para tentar a impossível tarefa de convencer ao Banco do Espírito Santo e do Comércio de que me entregassem meu tesouro dando apenas a minha palavra.
- Não, claro que não - disse Blaine profundamente emocionado.
- Deus sabe, e o senhor também, que de fato resultou ser para o bem - disse Stephen, - ainda que confesso que estive a ponto de maldizer aquele dia. Contudo, não o fiz porque ao longo da noite ouvi uma voz interior que me disse tão claramente como a pequena besta da Revelação a São João Apóstolo: "Pobre verme, pensa em Latham". De repente, apoderou-se de mim uma serenidade total, dormi até o amanhecer e despertei com o nome de Latham nos lábios.
- Latham, o da Sinopse?
- O mesmo. Imediatamente depois de partir estivera folheando um exemplar magnificamente encadernado da Sinopse, presente recente de... - Esteve a ponto de mencionar o príncipe William, mas se conteve e disse: - de um paciente agradecido, obra enfastiante, ou creio, chata como a de Adanson.
- Não tenho paciência para Latham - disse sir Joseph.
- Eu o apreciarei enquanto viva, por mais desinteressado que se mostre com a ornitologia. Sei com uma total e, permita-me acrescentar, posteriormente justificada convicção, que meu recibo se encontrava entre as páginas de sua Sinopse geral das aves, de tal maneira que pela manhã compreendi que aquele descuido havia se disfarçado de benção; ainda mais depois do que o senhor me contou, uma autêntica benção, uma grande benção. Tal como sabe, Diana e sua filha não se tinham visto já fazia tempo, pois haviam surgido certas dificuldades...
Sir Joseph inclinou a cabeça. Era perfeitamente consciente de que a menina ao nascimento fora considerada meio tonta, deficiente mental, insensível. Diana, incapaz de suportá-lo, abandonara Brigid aos cuidados de Clarissa Oakes. Mas uma simples inclinação de cabeça e um burburinho vago lhe pareceu nesse momento a melhor resposta que podia dar.
- E embora a menina habite agora neste mundo e fale com perfeita fluidez, ocorreu-me que seu reencontro resultaria muito melhor e seria muito mais fácil se todos subíssemos na carruagem, apertássemo-nos, víssemos coisas novas, maravilhas desconhecidas, pensões estranhas por más que fossem, pratos curiosos, modos novos de vestir, contando sempre com algo novo que comentar, algo que desse pé a uma constante exclamação. Além disso, sempre havia querido mostrar a ambas minha Catalunha, e entrevistar-me com o doutor Llers de Barcelona, eminente médico, ainda que não sabia se poderia melhorar o estado atual de Brigid. Pois para as necessidades mais imediatas dispunha de suficiente dinheiro sem ter que ir à Corunha, cidade úmida e triste (malditos sejam todos os ladrões que nela habitam), enviei um correio bem apetrechado a Segovia, onde Clarissa Oakes... O senhor lembra, querido amigo, de Clarissa Oakes?
- É claro que lembro, e também toda a valiosíssima informação que nos forneceu. Oh, céus, claro que sim. Para dizer a verdade, seu perdão oficial chegou ao meu escritório nesta mesma manhã, junto ao de Padeen e ao seu.
Stephen sorriu antes de retomar seu relato.
- Havia ficado em Segovia, onde Clarissa Oakes e Brigid se alojavam com meus primos Alarcón. Ali as recolhemos e lhe asseguro, Joseph, que jamais tivera uma idéia tão acertada na vida. Clarissa e Diana sempre se deram bem, e em pouco tempo a pequena e tímida Brigid uniu-se a nós, de modo que qualquer um podia ouvir a um estádio de distância os risos e a conversa que surgiam da carruagem, sobretudo tendo em conta que Brigid não deixou de assomar a cabeça para dirigir-se a Padeen e dizer-lhe que se havia visto o vaca manchada, a pesada parelha de bois, os três meninos montados na lombada de um burro. Fez um tempo esplêndido e vimos tantas maravilhas! Eu lhes mostrei a colônia de fulvous vultures que há além de Llops, e um urso à distância, na ladeira da Maladeta; centenas de abelheiros nas arenosas margens do Llobregat e meus terrenos em l’Albère, onde levei Jack quando fugimos da França no ano três. E ali encontrei algo que creio que lhe comprazerá. Sem dúvida saberá que nessa zona abunda a mica e o medronheiro é a ordem do dia; por isso, a Charaxesjasius, a paxá de duas caldas ou mariposa do medronheiro, não é tão rara como o é em outras partes da Europa. Ao ver aparecer a uma delas me recordei do senhor.
- Aparecer. Sim, como não. Nas poucas ocasiões em que a vi corri como alma levada pelo diabo armado com a rede de borboleta. Mas sem êxito. E comprei espécimes, que embora sirvam aos propósitos da comparação e o estudo não são em absoluto o mesmo. É como comprar as codornas e as perdizes de um caçador.
- Eu tive mais sorte. Atrás de Recasens, no que poderia considerar como meu pátio, observei uma surgir de sua crisálida. Coloquei um pote de vidro em cima, deixei que estendesse suas asas e assumisse sua forma completa e, depois, de noite, introduzi nele o exemplar, o anestesiei e foi assim como pude trazê-lo. - Stephen pegou um pacote do peito, desenbrulhou-o e estendeu para sir Joseph uma caixinha de vidro.
Depois de um fugaz instante de felicidade, Blaine mudou a expressão de seu rosto.
- Não estará zombando de mim, Stephen? Não com um assunto tão sério?
- Peço que a observe de perto. E que vire a caixinha de cima para baixo. Peço que o compare com outros espécimes que possua.
Sir Joseph se dirigiu lentamente, dando freqüentes olhadas para trás, ao armário onde entesourava gavetas e gavetas de maravilhosos insetos dissecados. Apoiou no alto o presente sobre os espécimes mais importantes e, lentamente, maravilhado, disse:
- Por Deus. É uma Charaxes com manchas, um perfeito exemplar de Charaxes jasius totalmente manchado. - Revirou uma e outra vez as mariposas normais e sua nova aquisição, sustentando-as a contraluz e murmurando a exata repetição de padrões e a precisão do dorso. - Não sabia que também lhe sucedesse à Charaxes, Stephen: não se menciona em nenhum livro ou coleção. Oh, Stephen, que pequeno tesouro! Agora entendo que o guardasse em uma jarra de vidro. Que Deus lhe abençoe, querido amigo. Não poderia ter-me feito mais feliz. Escreverei um ensaio a respeito para publicá-lo no Proceedings, um pequeno ensaio! - voltou lentamente para a cadeira sem deixar de mover a caixinha de um lado para o outro, com o rosto iluminado de pura alegria.
Contudo, seguiu prestando atenção à descrição que Stephen fez da idílica viagem por diversas paisagens, todas elas mais ou menos maltratados pelo recente ou, mesmo, pelo atual conflito bélico.
- Adoraria ter mais memória para a geografia - disse sir Joseph. - Se estivéssemos agora no Almirantado poderia seguir o percurso com a ajuda de um mapa; porém sem ele, creia-me que não entendo como o senhor evitou os homens enviados pelos dois bandos que o procuravam, assim como os da inteligência militar, para não falar dos nossos.
- É praticamente impossível explicar sem um mapa, pois nunca mantivemos um rumo fixo pelo espaço de mais de duas guardas. - O doutor Maturin, na qualidade de cirurgião naval, era muito amigo de recorrer a expressões náuticas e, em certas ocasiões, inclusive as empregava acertadamente; de modo que antes de prosseguir repetiu esta última, pondo certa ênfase: - Quer dizer, vagamos sem rumo e, inclusive, o fizemos empurrados pelo capricho, guiados por lembranças de juventude, pela aparição de um bosque imponente, por caminhos secundários que conduziam às casas de amigos de outrora ou de parentes. Mas quando tenhamos um enorme atlas ante nós farei o que possa para mostrar-lhe o percurso de nossa viagem. Pelo momento, permita-me tão somente observar que nossa viagem de Laredo a Segovia nos afastou de forma considerável para o sul de lugares tão perigosos como os arredores de Santander ou Pamplona. Certamente pude observar indícios de guerra em mais de um campo, em mais de um povoado devastado ou uma ponte acabada; e é verdade que em ocasiões tivemos alguns problemas com atrasados ingleses, espanhóis e portugueses, e que inclusive chegamos a ver um destacamento de hussardos franceses perseguidos em plena noite na parte superior do Ebro por uma numerosa patrulha de dragões.
- As senhoras estavam preocupadas?
- Não que eu saiba.
- Não, pensando bem, não. Creio - disse Blaine, que em uma ocasião vira Diana conduzir uma carruagem de quatro cavalos pela estrada de Stockbridge, superando à diligência de Salisbury, para alegria dos passageiros que viajavam a bordo, consciente também de que Clarissa havia acabado em Botany Bay por explodir a cabeça de um homem com uma escopeta de dois canos.
- Mas ao chegar a Catalunha me encontrei entre amigos, protegido por uma rede de inteligência. Depois de ter consultado a opinião de meu querido doutor Llers, visitamos o estuário ou, melhor, os estuários do Ebro, lugar habitado por miríades de flamengos, Joseph, onde avistamos duas garças morenas e uma reluzente íbis, tudo isso durante o transcurso de uma só merenda campestre. Dali para Valência, em cujo porto embarcamos com destino a Gibraltar, onde transbordamos para um paquete. Foi uma viagem tão esplêndida como se possa imaginar. Diana não sofreu um só enjôo, e agora nos encontramos alojados no Grapes, com a senhora Broad e as meninas indígenas que eu trouxe do Mar do Sul, Sarah e Emily. O senhor gostaria de unir-se a nós para jantar? Essas duas meninas lhe agradarão. Juntas são capazes de comportar-se muito bem, e brincam como gatinhos em um canto, buscando a sapatilha.
- Ah, verdade? Que contrariedade - disse sir Joseph. - Que contrariedade que tenha me comprometido a jantar no Blacks.
- Então permita-me acompanhar-lhe e daremos um passeio. A estas horas, não me ocorre melhor lugar em toda Londres para encontrar uma carruagem.
- Certamente - disse Blaine, - ainda que acho que me jogarei um abrigo sobre os ombros. Ao entardecer, costumo pegar frio. - chamou um criado, mas foi a governanta que respondeu, e sir Joseph, um pouco irritado, perguntou: - Onde está Treacher? Estava chamando a Treacher.
- Ainda não regressou, sir Joseph.
- Bem, não se preocupe. Tenha a amabilidade de trazer-me o abrigo mais leve que encontre no roupeiro. Esta noite jantarei no clube.
- Mas, sir Joseph, as moelas e os aspargos... - começou a dizer antes de morder-se a língua.
Caminharam e desfrutaram de sua companhia; durante o passeio falaram principalmente de escaravelhos e de sua quase infinita variedade.
- Aqui vivia Hammersley, um grande colecionador - assinalou sir Joseph ao passar por uma casa de Arlington Street. - O senhor o conheceu?
- Acho que não.
- Ele também foi membro do Blacks. Contamos com uma grande variedade de eruditos, com homens que viram muito do mundo, entomólogos eminentes. E falando do Blacks, tem visto o capitão Aubrey?
- Encontrei-o na saída do clube, e só teve tempo para dizer-me que tudo ia bem em casa, que ainda tinha o comando do Bellona, empenhado no bloqueio de Brest, que havia guardado meu posto a bordo e que estavam vivendo em Woolcombe por ser mais conveniente para deslocar-se para Torbay ou Plymouth. Também me disse que lhe encantaria ver-nos a todos quando lhe concedêssemos o prazer de fazer-lhe uma visita. Tem uma casa muito espaçosa, que dispõe de alas inteiras vazias. Desembarcara para pôr-se em dia dos pressupostos da Armada, teve que correr para não perder o coche, despediu-se e desapareceu abrindo passagem entre a multidão.
Blaine negou com a cabeça desaprovando tanta precipitação.
- Não gostaria de entrar para tomar ao menos uma taça de xerez, antes de que essas meninas joguem ao gato e ao rato com a sapatilha? É conveniente reunir coragem, fazer aprovisionamento de forças, antes de enfrentar-se à incessante algaravia das crianças.
- Temo ser impossível - respondeu Stephen, - ainda que agradeço sua amabilidade. Se faz tarde para os crianças dessa idade, e devemos nos levantar cedo para viajarmos para o oeste.
- Tão cedo nos abandona?
- Pouco antes do amanhecer.
- Não voltarei a ver-lhe?
- Oh, claro que sim. Virei na próxima semana para assistir à reunião da Royal e para supervisionar o arrendamento de nossa casa em Half Moon Street. Tal como estão as coisas não nos podemos permitir mantê-la. Temos intenção de visitar aos Aubrey e ficar-nos ali todo o tempo que seja necessário, até que encontremos um lugar adequado na campina. E não esqueço que devo reincorporar-me ao meu posto de cirurgião de bordo do Bellona. Venderemos ou tentaremos vender nosso abandonado e infeliz lar de Barham, o que nos porá de novo em situação. Entretanto, pedirei emprestado algumas milhares de libras a Jack Aubrey.
Blaine lhe dirigiu uma olhar fugaz. Deram alguns passos a mais e, quando quase haviam chegado à porta do clube, pela qual entravam e saíam seus membros como abelhas de um favo, pôs a mão no ombro de Stephen, deteve-o junto à grade e lhe disse em voz baixa:
- Rogue a seu amigo que se mostre discreto no Parlamento, Stephen. Motivado pelo orçamento da Armada se dirigiu ao Ministério como se fosse um bando de delinqüentes, e agora que superou em bom grau sua timidez de novo membro se expressa em um tom calculado para alcançar o tope do pau maior no meio de um furacão. Seus amigos desejariam que não estivesse no Parlamento; e se sente a necessidade de manter seu posto (coisa que não me admiraria, tendo em conta as vantagens que comporta), melhor seria que comparecesse em contadas ocasiões, que guardasse silêncio e votasse as leis que lhe peçam. Temo que possa chegar o momento em que alce a voz para enfrentar-se ao Ministério, com esse modo tão arrojado e cabeçudo que tem de falar. Amiúde está na cidade, pois dispõe de um capitão suplente a bordo de seu barco, coisa que não lhe faz nenhum bem, nem ao barco nem a sua reputação. Stephen, leve-o ao mar e mantenha-o lá.
A essas alturas se encontravam nas escadas que conduziam ao interior do Blacks. Ao pé destas, um membro do clube, alto e magro, se dispôs a subi-las, perseguido pelo grito de:
- Excelência, excelência!
Sua excelência se voltou, perguntando com um olhar de inquietação:
- Fiz algo errado?
- Vossa excelência pegou o guarda-chuva do senhor Wilson - respondeu o porteiro, que se aproximou para recuperá-lo.
Seguidamente, um numeroso grupo de membros do clube apareceram pela porta e desceram as escadas com certa algaravia, impossibilitando qualquer tipo de conversa.
- Até a próxima semana - exclamou Stephen.
- Tenha uma boa viagem, e transmita todo meu carinho às damas - replicou sir Joseph ao despedir-se dele.
O capitão Aubrey, que já não era comodoro, dado que o cargo tinha expirado com a dissolução de sua esquadra e com ele seu título temporal, permanecia sentado em companhia de sua esposa diante da mesa do desjejum, observando primeiro o amplo pátio cinzento de Woolcombe House e, depois, os velados bosques e o céu, de um cinza menos plúmbeo mas igualmente melancólico.
Ambos aguardavam o jornal e o correio em silêncio, um silêncio agradável. Ao dirigir o olhar para o interior da casa, Jack observou Sophie antes de parar na cafeteira. Era uma mulher alta, grácil, de um aspecto particularmente doce e trinta e tantos anos; Jack suavizou a expressão de seu rosto. "Está levando tudo isto tão bem - refletiu. - Talvez não possua o arrojo de Diana, mas tem muito fôlego. Muito fôlego. E valentia."
O "tudo isto" o constituia a avalancha de demandas postas como consequência das incursões que havia empreendido Jack contra o comércio de escravos no Golfo de Guinéu. Porque enfrentados ele e seus capitães a uma embarcação fedorenta, atestada de homens e mulheres negras, acorrentados na coberta inferior debaixo do ardente sol tropical, nem sempre lhes permitia prestar toda a atenção necessária à documentação que recebiam dos patrões, ainda mais tendo em conta que as primeiras dez permissões tinham sido falsas. Contudo, também existiam permissões autênticas: os negreiros portugueses, por exemplo, ainda podiam comerciar legalmente ao sul da linha. Saso se encontrasse um pouco no hemisfério norte, rumando para Cuba, era muito difícil demostrar que o patrão do barco não se vira obrigado pelo tempo a assomar o focinho acima do Equador, ou que não pretendesse rumar para o Brasil no dia seguinte; além disso, sem dúvida alguma contaria com um enxame de testemunhas que declarariam a seu favor. Um erro nas medições, a escassez de apetrechos e outras coisas podiam dar-se sem que parecessem desculpas disparatadas. E existiam toda classe de iscas legais, em virtude das quais a propriedade do barco podia dissimular-se ou ocultar-se: companhias com participações em outras companhias e assim até a saciedade, de modo que isca atrás de isca a verdadeira responsabilidade do carregamento se tornava cada vez mais duvidosa. E, certamente, nunca faltavam advogados com talento, dispostos a sacar o maior proveito possível do caso.
Naquela manhã havia tanta paz como se podia imaginar. Era um dia úmido e até tal ponto silencioso que podia-se ouvir como o chuvisco gotejava sobre a entrada da casa que Jack, homem madrugador, havia construído de frente para o norte. Gotejava na fachada, e de ambos os lados das mais recentes alas, inclusive no extremo da ala oriental. Ali, as gotas se precipitavam sobre uma cisterna com um ruído que fazia parte de uma das primeiras lembranças do capitão.
A estes, ao cabo de um tempo, uniu-se o ruído de cascos, ruído agudo correspondente a uma mula que se aproximava, seguido pela voz áspera de um velho e pela aguda voz de um menino ao responder. Tratava-se de George Aubrey, o filho do capitão, que apareceu instantes depois pela janela, sorridente pequenininho, alegre e gordinho, com o cabelo tão loiro como o de seu pai, os olhos azuis e o rosto ruborizado.
Ainda que não lhes permitisse desjejuar em sua companhia quando estava em terra, Jack apreciava seus filhos, e ao ver George se aproximou com um sorriso nos lábios.
- Bom dia, senhor - cumprimentou George, estendendo-lhe o Times. - Harding me mostrou um picanço de dorso vermelho que estava pousado em uma cerca, junto a Simmons Lea.
- Bom dia, George - disse Jack, pegando o jornal. - Não sabe quanto me alegra sabê-lo. Ele também me mostrou um em uma ocasião, justo antes de fazer-me ao mar. Recorde todos os detalhes que tenham chamado sua atenção e me conte no almoço.
Voltou para a cadeira e abriu com ansiedade o jornal. Naquele dia se publicavam as ascensões do Estado Maior da Armada, de modo que consultou diretamente a Gazette. Ali encontrou nomes que lhe eram familiares: a lista completa de almirantes (glorioso emprego), desde os contra-almirantes mais recentes da esquadra azul, recém desaparecidos da lista dos capitães de navio mais veteranos. Todas aquelas pessoas ascendiam regularmente de emprego e esquadra: contra-almirante da esquadra azul, depois da branca, depois da vermelha; vice-almirantes e depois almirantes das mesmas com idêntica progressão até que, finalmente, algum deles chegaria ao cúspide de todo marinheiro, o emprego de almirante da frota. Aqueles últimos nove degraus, imbuídos cada vez de maior esplendor, careciam por completo de suspense, dado que a ascensão era completamente automática, pois dependia da antiguidade, de modo que nem o mérito nem o favor da Corte podiam avançar a carreira de um homem uma só polegada (ao morrer, Nelson, por exemplo, ostentava o emprego de vice-almirante da branca). Jack leu em voz alta os nomes de muitos almirantes que ambos conheciam, apreciavam ou admiravam.
- Sir Joe hasteará a bandeira vermelha no pau de mezena. Estará contente. Brindarei por ele depois do jantar. Eu também gostaria. Deus meu, se pudesse hastear minha própia bandeira faria com que me enterrassem com ela.
Seguiu lendo, atento aos nomes daqueles amigos que figuravam nas esquadras vermelha, branca e azul; mas antes de chegar à parte que mais lhe interessava, a linha divisória, a crucial fronteira que separava os capitães de navio de mais antiguidade dos contra-almirantes da esquadra azul, Sophie, incômoda ainda pela desafortunada menção a semelhante mortalha, disse:
- Alegro-me pelo bem de sir Joe, lady Le Poer estará encantada. Apesar de tudo, não acredito que constitua uma surpresa, não mais que os passos de um baile. Porém, a que se refere com isso de se pudesse hastear sua própia bandeira? Está muito perto da parte superior da lista, e ninguém poderá negar-lhe o direito de hastear sua bandeira. - Falou com um ênfase particular, póximo da veemência de quem deseja demostrar a verdade de seu discurso; claro que sendo como era a esposa de um marinheiro, sabia perfeitamente bem que a lista de oficiais da Armada incluía vinte e oito contra-almirantes retirados e, o que ainda era muito pior, trinta e dois capitães de navio retirados.
- Certamente - disse Jack. - É assim como funcionam normalmente as coisas: subir e subir, como Jacob em sua escada. Sucede que tratando-se de algo tão importante seria de mau agouro dá-lo como certo. Não deve tentar ao destino. Se eu fosse católico como Stephen, benzer-me-ia desde que tivesse que mencionar aos oficiais do Estado Maior. Que Deus nos abençoe a todos. Não. Não costumam retirar aos capitães de navio, a menos que sejam muito anciãos ou estejam muito enfermos, que sejam loucos ou se comportem de forma insolente, ou a menos que tenham recusado repetidamente servir na Armada, ainda que eu saiba de alguns casos. Não. Em geral, e falando de maneira impessoal, como compreenderá, poderia dizer-se que quem figura na parte superior da lista de capitães de navio pode dar por certo seu direito a aceder ao cargo de almirante. Ainda que isso não significa que tenham direito de hastear sua bandeira, e muito menos de receber emprego em um barco. O que sucede quando não gostam de seu perfil é quando lhe promovem a contra-almirante "sem distinção de esquadra". Um contra-almirante sujeito à metade do pagamento, mas com o título. Contudo, nem vermelha nem branca nem azul; nem peixe nem pescado nem peru nem um bom arenque. E quando os marinheiros se dirigem a você tratando-te de almirante, os decentes afastam o olhar e os outros sorriem zombadoramente. Na profissão chamamos a isso de "amarelecer".
- Mas a você jamais poderia ocorrer tal coisa, Jack - exclamou ela. - Não com um histórico tão combativo como o seu. E que eu saiba nunca recusou uma missão, por mais desagradável que fosse.
- Espero que tenha razão, querida - disse Jack, lendo os nomes da coluna de capitães. - A pesar de tudo temo que isso é precisamente o que ocorreu ao capitão Willis. Tampouco vejo por aqui a John Thornton, ainda que diria que aceitou um posto de comissionado, o que o exclue da competição. Tampouco vejo a Craddock.
Sophie se aproximou para olhar por cima de seu ombro.
- Sim, pobre homem. Claro que nunca foi santo de minha devoção. Contudo, não vejo que mencionem isso que disse de "sem distinção de esquadra". De fato, não é algo que já tenha lido na Gazette.
- Não. Não o fazem público. Recebe uma carta dizendo que "suas senhorias não contemplam neste momento, etcétera, etcétera". Temo que cada vez se receberão essa condenada e incômoda carta. A menos que Napoleão obtenha outra de suas inesperadas e precisas vitórias por terra, eu diria que esta guerra está praticamente acabada, agora que os franceses abandonaram a Espanha e Wellington avança pela França.
- Oh, como desejo que tenha razão - disse Sophie.
- E eu, certamente, será uma boa notícia, creio que sim. Não haverá mais mortos. Porém, imagina a dificuldade que será para se obter um comando quando a Armada se reduzir a três faluchos e um bote? Em comparação, o fim do mundo ficaria reduzido a uma mera anedota. Não, não. Antes que piorar as coisas ainda mais e aumentar a lista de oficiais do Estado Maior, retirarão agora a uns poucos aqui e ali, e ao diabo com...
Ambos voltaram a cabeça, atentos ao distante ruído de cascos e à gritaria de vozes marinheiras que o acompanhava.
- Vamos, afaste-os. Leme a orçar. Assim, assim, para a via. Vamos, com suavidade. Suave, suave...!, que Deus maldiga e cegue seus olhos, que não estamos em uma fodida corrida de cavalos!
Desde que o capitão Aubrey passava um tempo em terra, como por exemplo a temporada que se dedicara a comparecer às sessões nas quais se debateram os pressupostos da Armada, levava consigo seu timoneiro, despenseiro e a um ou dois de seus seguidores. O primeiro, Barret Bonden, era pesado, forte, um marinheiro de primeiríssima qualidade; as virtudes do segundo, de nome Preserved Killick, eram menos evidentes. Era um marinheiro aceitável e, ainda que não tinha rival na hora de polir prataria, como criado particular deixava muito a desejar; de fato, em praticamente tudo. Jack o levava consigo porque era costume que um capitão de navio desfrutasse de uma mínima servidão, e o capitão Aubrey sentia um respeito total pelos costumes da Armada. Contudo, como os homens pertenciam de tal maneira ao mar, pouco lhe serviam em terra. Na presente situação, por exemplo, quase não se mostravam capazes de convencer a uma égua, que já não era precisamente jovem e que estava acostumada há tempos com a estrada, de que os levasse no cabriolé à agência dos correios para recolher a correspondência de Woolcombe, sem tropeçar em uma ou duas valas, ou, mesmo, por causa de seu nervosismo, sem confundir o caminho.
A voz se perdeu quando a égua apertou o passo e se dirigiu aos estábulos situados na parte posterior da casa. Jack e Sophie permaneceram sentados, escrevendo. O correio havia se tornado algo temível desde que Jack leu a primeira citação que lhe enviaram por fazer uma presa ilegítima; mensagem cujas primeiras frases, um bombardeio de palavras, foram redigidas de forma injuriosa, mais e mais ameaçadoras à medida que avançava em sua leitura.
Em uma propriedade bem governada era dever do mordomo, quando não seu privilégio, fazer entrega da correspondência familiar - extraindo-a da saca de couro onde o administrador de correios de Woolhampton a havia colocado, - observar os remetentes e dispor as cartas por ordem sobre uma bandeja de prata. Woolcombe não deixava de ser uma propriedade bem dirigida, apesar de estar ameaçada pela violência e governar-se sob algumas regras muito estritas. Contudo, a devida ordem se via alterada cada vez que aparecia o timoneiro do capitão. Possuía uma perspectiva inamovível de suas própias prerrogativas e, pois Mnason, o mordomo de sempre, sabia que o timoneiro de nariz quebado tinha nocauteado ou deixado fora de combate a todos os aspirantes ao título de campeão da frota do Mediterrâneo, o mordomo não teve mais remédio que voltar ao interior da casa e limitar-se às queixas de costume enquanto Bonden se encarregava da bandeja de prata, não sem antes pentear-se um pouco e abotoar sua casaca para entregar o correio com certa elegância.
Jack Aubrey observava certas regras, ligeiramente corrompidas pela superstição, e uma delas lhe empurrou a pegar a carta mais próxima. Sophie desconhecia tais normas e estendeu a mão para pegar uma avultada carta com carimbo de Ulster, cujo endereço fora escrito com uma letra conhecida. Era de sua irmã Frances, uma viúva jovem e bonita que não tinha um penique e que convertera seu casarão em uma escola para senhoritas onde, com a ajuda de sua governanta anterior, educava às gêmeas dos Aubrey, Charlotte e Fanny, e a outras tantas vinte meninas. Adjuntava duas cartas de papel rosa, louvavelmente escritas por suas filhas. Sophie as leu duas vezes, alma afetuosa, e fez com tal prazer que ao terminar seus olhos delatavam uma umidade suspeita. Deixou-as sobre o colo e pegou outra carta da bandeja, escolha particularmente desgraçada que lhe arrancou lágrimas de outro tipo, ou, pelo menos, esteve a ponto de fazê-lo, dado que a essas alturas adquirira muita prática em controlar o fluxo das mesmas.
Ambos deixaram as cartas que estavam lendo e se olharam.
- O que há de novo, querida? - perguntou Jack. Como Sophie estava sentada de costas para o sol, Jack não reparara em sua aflição.
- Boas notícias de Frankie e as meninas. - Ao responder, Jack percebeu finalmente o tremor de sua voz. - Mas Cluttons diz que, com os maus tempos atuais e o caro que resulta tirar as inscrições, teme que não possam oferecer mais que o preço de saldo pela louça da Jamaica. - Jack assentiu, mas não disse palavra. - E você, o que me diz? - perguntou Sophie, dado que tratavam seus assuntos com igualdade, sem se ocultar nenhum detalhe, praticamente sem concessões.
- Era de Lawrence - respondeu Jack. - Recusaram a apelação.
Sophie digeriu aquela notícia como pôde, pois supunha o desaparecimento de todas as esperanças que tinham com relação ao pleito.
- Teremos que vender Ashgrove - disse por fim. - Os credores não estarão dispostos a esperar.
Jack lhe dedicou um olhar carinhoso. Estava certa e era a única solução possível, pois Woolcombe era uma propriedade vinculada. Contudo, nunca lhe teria ocorrido propor tal coisa. Ashgrove era de Sophie, e ele não podia vendê-la nem hipotecá-la, pertencia a Sophie em corpo e alma, e lhe pertencia legalmente inclusive até a última pedra. Era ela quem governara suas possessões, pois Jack passara muito tempo no mar. Rodeada de bosques, constituia um lar muito conveniente para qualquer oficial da Armada, pois de suas terras se avistava Portsmouth, e na atualidade a tinham alugada a um almirante que havia obtido uma fortuna com o dinheiro do butim, e que sugerira em mais de uma ocasião que estava muito interessado em adquiri-la.
- Pode me passar as cartas das meninas? - perguntou. E quando as tinha lido, disse: - Temo que sinta muita suadade delas, mas acho mais conveniente que estejam com Frankie. Não há nada pior para as crianças que uma casa onde se respira a atmosfera de um pleito, uma ameaça que não podem compreender, um mundo, o seu, que se cambaleia, vendo seus pais aflitos ou chateados, presas de um constante nervosismo. - E o dizia por experiência própia, uma experiência que se referia à natureza litigiosa de seu pai, a qual, muito mais que qualquer outra falha de seu caráter, amargou a curta vida de sua mãe, e que em certas ocasiões havia enturvado de tal maneira sua alegre infância que, mesmo àquela altura, o simples fato de viver naquela casa lhe punha triste. Não fora feliz ali, exceto nos terrenos que havia detrás, no pátio das cocheiras, no jardim cercado com um tapume, e também no distante jardim que tinha uma gruta. - contudo, diria que George é ainda muito jovem como para perceber. Claro que nós nunca discutimos.
- Não, querido - disse ela, olhando-o com ternura. - Pobre garoto, sente-se tão sozinho. Abrimos o restante da correspondência? Talvez um parente distante nos tenha convertido em herdeiros únicos.
Mas não foi assim, ainda que o rosto de Jack se iluminou ao virar a última carta da pilha de correspondência.
- Mas é de Stephen! - exclamou ao romper o lacre. - Por Deus, ele se planejou para chegar hoje mesmo! Stephen, Diana, Clarissa Oakes, Brigid, Padeen, toda a família por completo. Que alegria! Escute, querida: "Querido Jack, permitiria-me importunar-lhe com minha visita, assim como com a de todas minhas mulheres e uma numerosa corte de seguidores por um tempo indefinido? Diana, que lhe envia recordações, assegura que se trata de uma imposição monstruosa, sobretudo tendo em conta que não avisamos com demasiada antecedência. Mas eu me encarreguei de tirar-lhe tal coisa da cabeça, dizendo que era coisa sentada entre nós, que tinhamos nos encontrado no Blacks e que você havia insistido no quão espaçoso e vazio lhe parece seu palaciano lar. Eu não lhe prejudicaria por nada do mundo, mas devo hospedar-me em algum lugar até encontrar uma casa adequada...". O que foi, querida? Não lhe alegra a notícia?
- Oh, certamente que sim. Adoro Stephen. Aprecio muito a minha prima... Estou tão contente como possa ficar uma mulher que não dispõe de nada a oferecer a nenhum de seus convidados, e muito menos a todo um regimento, incluindo a essa senhora Oakes. Nada de nada; de fato, iamos almoçar de novo bife com pudim, e não há nada mais em toda a casa. Teremos que alojá-los na ala oriental. Sabe Deus que lá tem espaço de sobra, mas não está em condições, não a arrumamos desde o dia de São Miguel. - Levantou-se, fez um esforço para ordenar o curso de seus pensamentos e disse: - Não conseguiremos fazê-lo a tempo. - E abandonou apressadamente o aposento.
E não estava o que se diz preparada quando a carruagem de quatro cavalos que Diana conduzia com muito estilo tomou a ampla curva do pátio e se deteve justo ao pé das escadas, antes de que uma quantidade insuspeita de gente desembarcasse dela; mas se encontrava diante da porta aberta, pálida ainda que apropiadamente vestida, consciente de que os quartos principais do ala oriental estavam imaculados como as cobertas de um navio de guerra (pois as limparam mais ou menos com idêntico vigor), assim como do veado que conseguira para o jantar e de que o indultado serviço da Jamaica, presenteado ao capitão Aubrey pelos mercantes das Índias Ocidentais como agradecimento por ter-lhes livrado da ameaça dos corsários, brilharia com todo seu esplendor.
Ela os recebeu com suma amabilidade, beijou a Diana e a Brigid, fez uma leve reverência ante a senhora Oakes e lhe disse que confiava em que se encontrasse bem, e depois os conduziu ao salão azul para tomar chá enquanto os membros do serviço descarregavam a bagagem e Jack, Stephen, um funcionário veterano e o cavalariço levavam a esplêndida carruagem e o tiro composto por dois cavalos baios ao interior do estábulo e das cocheiras.
- Diana - exclamou Jack com seu vozeirão ao entrar, enquanto sacudia o pó de sua casaca, - de onde tirou esses magníficos baios?
- Eu os peguei emprestados de meu primo Cholmondeley - respondeu. - Nós o encontramos em Bath, triste como um gato corcunda, com um pé gotoso que o tem atado à cadeira. Confessou-nos que os cavalos ansiavam desfrutar de um pouco de exercício, e que a falta de atividade os deixava melancólicos. De modo que me ofereci a trazê-los até aqui. Na quinta-feira enviará seu cocheiro para levá-los de volta a Bath.
- Deve de ter uma excelente opinião de sua capacidade - disse Jack. - Uma vez lhe pedi emprestado um cabriolé do mais normal com um animal do mais ordinário que puxasse dele, somente durante uma hora ou menos, e se negou em redondamente.
- Jack - disse Diana, sorrindo, - agora mesmo me ocorrem um milhar de réplicas, cada uma mais divertida que a outra, mas não penso pronunciar em voz alta nem uma só delas. Considere um surpreendente gesto de magnanimidade por parte de uma débil mulher que raras vezes repara nestas enigmáticas réplicas até que resulta tarde demais para morder-se a língua.
- O almirante Rodham assegura que Jack não tem rival em toda a Armada, quando se refere ao governo de um barco - propôs Sophie.
Diana baixou o olhar sem sequer reprimir um sorriso, e no silêncio que seguiu Stephen observou a George e a Brigid. O garoto caminhava ao redor da menina, sem tirar-lhe o olho de em cima; às vezes, ela lhe sorria, mas outras virava a cabeça para o outro lado. George se apresentou imediatamente diante de Brigid, ofereceu-lhe a metade maior de uma bolacha e disse:
- Não gostaria de ver meu arganaz? É um estupendo e prodigioso arganaz, e lhe deixará tocá-lo.
- Oh, se é tão amável - respondeu ela, que logo depois saltou ao piso.
- Stephen, Diana, querida senhora Oakes - disse Jack. - Não recordo que já tenham estado nesta casa. Não lhes agradaria visitá-la? Dispõe de uma biblioteca considerável, e também de uma bela sala de justiça; ainda que temo que o restante foi modernizado faz poucos anos.
- Oh, querido - exclamou Sophie, consciente dos horrores que guardavam em ambas, e de que nem sequer as haviam varrido, - está a ponto de escurecer, e não poderão ver os adornos com tão escassa luz. Ademais, a janta já está quase preparada, e tem que trocar essa vergonhosa e surrada casaca.
CAPÍTULO 2
Em geral, custava muito a Stephen Maturin conciliar o sono. Desde jovem, havia recorrido a certos aliados para combater a insuportável chateação (que às vezes se tornava um pouco pior, muito pior, dado que tinha um coração muito vulnerável) que acossa ao insone. Os mais óbvios, a dormideira e a mandrágora, que secundava com um grosso suco de acônito ou de meimendro, por estramônio, Sium sisarum, ou raiz de bicho. Contudo, na soporífera atmosfera que se respirava em Dorset, nem mesmo três xícaras de café depois do jantar bastaram para manter-lhe acordado. Cochilou que de tal maneira jogando cartas, que todos concordaram que Sophie o levasse pela mão até a cama. Despertou ao amanhecer em um estado de graça, totalmente relaxado, infinitamente recuperado. Em tão bendita postura permaneceu um tempo entregue por completo ao prazer do descanso, pensando em si mesmo e no passado recente, atento à cadenciada respiração de Diana e a um coro de pássaros que cantavam à distância, comprazidos ante a perspectiva que o novo dia oferecia.
A vida remexeu em seu íntimo. Com infinita precaução, recolheu a roupa que havia deixado no piso e, com sapatos em mão, dirigiu-se ao roupeiro.
- Ah, já está aqui, Stephen - exclamou Jack desde a sala do desjejum, ao ouvir-lhe descer as escadas. - Bom dia. É um verme madrugador. Espero que tenha podido dormir sem problemas. Ontem à noite parecia esgotado.
- Estupendamente, obrigado. Dormi estupendamente. Não lembro de ter me deitado; ao despertar nem sequer sabia onde me encontrava. Que prazer saber que se dormiu demoradamente;.
- Certamente, certamente - disse Jack, que não compartia as dificuldades de Stephen para dormir. Serviu-lhe uma xícara de café e acrescentou: - O que acha de pegarmos uma arma e irmos ver se podemos pegar um ou dois coelhos? Talvez encontremos uma narceja no fundo do pântano.
- Com muito prazer.
- Depois desjejuaremos como reis quando voltarmos. Mas antes que as mulheres se levantem vamos dar uma rápida espiada na biblioteca e na sala de justiça. Orgulho-me de ambas, e não creio que se importe de encontrá-las um pouco empoeiradas e sujas.
A biblioteca era um aposento nobre que ocupava quase toda a largura do primeiro andar, com cinco janelas que davam para o sul e um para o leste. A luz do amanhecer quase não bastava para iluminar as estantes, todas de um mesmo tipo, seus artesoados, um inumerável surtimento de livros protegidos atrás de vidros, mesas alongadas no meio da sala, poltronas junto à chaminé, e alguns fardos de aniagem enrolados, cuja presença teria bastado para ruborizar a Sophie.
- Meu avô o juiz era um grande leitor - disse Jack, - assim como meu bisavô. Às vezes essas qualidades ignoram a gerações inteiras, como a resistência nos cavalos. Você poderia passar um ou dois dias metido aqui, desde que chova.
- Clarissa Oakes também tiraria um grande proveito de sua biblioteca. Está há um tempo ansiando ler.
- Não tinha nem idéia de que fosse uma dama educada.
- Claro, porque não tem nada de sabidona. Contudo, lê em latim sem maiores problemas que em francês, e grego sem mais dificuldade que a maioria de nós. Ela adora bibliotecas.
- Acha que poderia ensinar a George o amo, amas, amat?
- É uma mulher muito afável, apesar de sua aparente reserva.
- Direi a Sophie para que lhe peça. Mas vamos agora fazer uma visita rápida à sala de justiça, e saiamos logo da casa ou os coelhos se ocultarão em suas tocas quando o façamos. Desculpe por esta escada - disse ao descer por ela. - Tinha a esperança de refazê-la a imagem e semelhança de quando era menino (tal como fiz com o artesoado do dormitório de minha mãe), mas fiquei sem dinheiro antes de que os homens pudessem pôr mãos à obra. Aqui. - Abriu uma porta. - Esta é a sala de justiça.
- Não é um termo com o qual esteja familiarizado - confessou Stephen, observando a simples e severa disposição da grande mesa que presidia a sala, e os bancos e cadeiras colocados ante ela. As paredes eram sobriamente revestidas com postigos de madeira de carvalho, e não havia nenhum quadro. - Para que se utiliza esta sala?
- Aqui nos ocupamos dos assuntos legais da propriedade; é o tribunal da baronia, a corte de justiça e tudo isso. Quando atuo como de juiz de paz, sento ali, atrás da mesa, na cadeira de respaldo alto. Na qualidade de magistrado, se me compreende.
- Faz muito, muito tempo, você me disse que tinha pensado dar um sermão à dotação do barco para não contar a bordo com um capelão. Mas mesmo isso não me assombrou tanto como escutar agora que é um juiz, querido e justo amigo.
- Oh - disse Jack como para diminuir importância do assunto, - os Aubrey têm imposto a justiça no condado desde tempos imemoriais. Não tem nada a ver com ser justo. Cuidado com a entrada, há uma maldita prancha solta. Não. Eu o considero um incômodo infernal, e me trouxe inumeráveis problemas com os vizinhos de cercas de caça, porque não sou daqueles que castigam duramente aos caçadores clandestinos, pessoas que em muitas ocasiões conheço desde que eram crianças. Por aqui chegaremos ao armeiro. Aqui tem uma Mantón calibre catorze que poderia servir-lhe.
Caminharam pelo passadiço até a parte traseira da casa, saíram ao pátio do estábulo, onde encontraram Harding esperando com um cachorro.
- Quer que lhes acompanhe, senhor? - perguntou.
- Não - respondeu Jack, - espere George aqui, e leve-o para buscar o jornal. Mas deixe-me a Bess.
A aguerrida cachorra, mais ou menos da raça cocker spaniel, compreendeu suas palavras e se aproximou tremendo de entusiasmo e observando o rosto de Jack, para ver se este lhe indicava por onde deviam ir.
De fato, atravessaram a zona que havia atrás da casa onde Jack fora feliz quando criança: os estábulos, o barracão onde guardavam os apetrechos de montar, a dupla cocheira, o estupendo muro de tijolo vermelho no qual tinha se recostado durante horas enquanto jogava cinquillo{1} sozinho, o barracão da uva e o jardim da cozinha; lá se sentaram um pouco na base do poço, onde Stephen examinou a arma.
- É uma arma de caça excelente, a mais elegante do mundo - disse. - E tem um equilíbrio perfeito.
- Joe Mantón ficou muito satisfeito com ela. Disse que a culatra tinha a madeira mais bonita que já havia visto. Ah, Stephen, observe a culatra. É de platina e jamais se corroe nem se obtura. Não tem arma que dispare melhor.
- Jack, acho que nunca lhe vi tão orgulhoso. Apesar de ter sido rico como Belzebu, jamais cheguei a ter uma arma fabricada por Mantón, e menos ainda com culatra de platina.
- E agora já não é mais, Stephen? - perguntou Jack sem o menor sinal de curiosidade vulgar, mas com profunda preocupação.
- Não, não mais. Levei toda minha fortuna para a Espanha, como sabe; e lá permanece retida. Ao que parece souberam de minhas atividades no Peru. Mas não estou em absoluto desesperado, Jack. Tenho meu pagamento de cirurgião naval, com um monte de atrasos, por certo; temos intenção de nos desfazer dessa infeliz propriedade de Barham e adquirir uma casinha não muito longe daqui. Não. Não estou em absoluto desesperado, só que não tenho intenção de me permitir o luxo de pôr platina na culatra de minha escopeta.
- Então ambos viajamos no mesmo barco, meu irmão. Estava a menos de um mês em casa quando começaram a chegar todas essas cartas: demandas legais por aprisionamento indevido, retenção forçosa e outras, baseadas no fato de que apresei navios negreiros que, por um meio ou outro, pretenderam demostrar que contavam com uma salvaguarda. A maioria das demandas foram rechaçadas sem mais, mas duas ou três chegaram a apresentar-se ante os tribunais e, ainda que meu querido Lawrence tenha feito o que pôde, fui obrigado a pagar compensações por danos. Stephen, jamais acreditaria na quantidade de danos e prejuízos que derivam de um carregamento. Negaram-me o direito de apelar na carta mais recente que recebi, e pelo menos ainda restam pendentes mais dois casos. Lawrence se reuniu com o conselheiro do Almirantado, membro da mesma paróquia, que lhe disse que minhas instruções eram perfeitamente claras a respeito; nelas se proibia interceptar qualquer embarcação protegida, e se, apesar disso, o fizesse, devia afrontar as consequências. De minha parte, falei com o primeiro lorde, a quem sempre tive como um amigo, mas este se mostrou frio e distante, orgulhoso como Pôncio Pilatos. Deu-me a mesma resposta, excetuando o fato de que me disse que tinha que pagar as consequências. Em fim, não poderei pagá-las se qualquer um dos outros casos pendentes forem decididos a favor dos demandantes. Tal como as coisas estão agora, nós nos salvaremos por um triz se Sophie vender Ashgrove: este lugar e toda Woolcombe estão comprometidos. - Stephen sacudiu a cabeça ao ouvir aquilo, tão abatido que Jack não teve mais remédio que acrescentar: - Mas assim como você não estou desesperado. Também conto com o pagamento da Armada, e não poderão prender-me enquanto conserve minha cadeira no Parlamento. Deus, Stephen, nós nos entretemos muito. Que acha de irmos ver se podemos caçar algum coelho?
Quando se levantou do lugar úmido, o spaniel se pôs de quatro patas e lançou uma lamúria de ansiedade, deslocou-se de um lado para o outro entre as plántulas de asterias, e desapareceu atrás de uma fileira de mirto, onde puderam ouvi-la fazendo uma marca em um barracão, pois por ser uma cachorra silenciosa apenas soltou aquela urgente lamúria.
- Suponho que deve ser a porta que conduz ao exido - disse Jack. - De qualquer maneira queria que o visse, porque é um terreno adorável. - Atravessaram-no caminhando a bom passo, e na vereda, a umas trinta jardas além, viram se mexer um rabinho branco. Jack apontou a arma; o coelho girou em torno de si mesma; a cachorra passou a correr e levou o alvo ao caçador, ofegando satisfeita.
- De modo que este é o exido - disse Stephen, observando ao seu redor os extensos pastos, as samambaias, as árvores dispersas e os arbustos repartidos aqui e lá; todo o conjunto era agradável e ondulado, pintado de um colorido outonal, coroado por um generoso pedaço do céu, adornado com brancas e rápidas nuvens. - Elegante exido, se me permites dizê-lo. Mas estou um pouco confuso. Supunha que seu pai e seus amigos o haviam cercado, para infelicidade sua, quando estávamos viajando pela costa mais distante do mundo.
- Cercaram o exido de Woolhampton, o que foi um grande desgosto para mim. Mas este exido faz parte do que chamamos Simmons Lea, que foi desde sempre meu favorito, ainda que agora também queiram cercá-lo. Só o farão por cima de meu cadáver! Eu me diverti muito aqui quando era pequeno. Muitas vezes sozinho, mas em ocasiões com amigos meus das granjas próximas ou do povoado. Pescávamos, caçávamos com furão, pegávamos a égua, caçávamos furtivamente nas terras do senhor Baldwin, faziamos seus guardas-florestais dançarem uma velha e peculiar dança, praticávamos a caça de antídeos nos duros invernos. Heneage Dundas vinha de vez em quando. E quando os Blackstone se instalavam neste canto do país, costumávamos encontrar-nos com uma raposa no tojo. Você viu o ancião que havia no estábulo?
- Sim.
- Harding, um autêntico homem do campo, nascido e criado na paróquia. Há uns vinte Harding nos arredores. Começou como cuidador de cachorros com os Blackstone, onde seu pai trabalhava de caçador; então reuniu a outra manada, mas sofreu uma má queda e teve que conformar-se em servir de guarda-florestal para Wimborne e, depois de trabalhar um tempo como aguadeiro, entrou em nosso serviço de novo como guarda-florestal; oh, isso foi muito antes de que eu nascesse. Não recordo ter-me separado dele em todo esse tempo. Não sou nenhum especialista em aves, Stephen, você sabe, mas o pouco que sei aprendi com ele. Esta vereda conduz ao lugar onde me mostrou um ovo de bacurau que estava no solo. Já viu alguma vez um ovo de bacurau, Stephen?
- Já; mas o trouxeram para mim. Nunca encontrei um.
- Então não tenho que explicar como são bonitos. E também me ensinou a pescar, a pôr armadilhas, a encontrar perdizes e a disparar, claro. Ele... Oh, bom tiro, Stephen.
A cachorra lhe levou a perdiz. Stephen elogiou a arma, a melhor arma que já tivera em suas mãos.
- Põe limite à caça, Jack? - perguntou quando seguiram caminhando.
- Oh, não. Só caço de vez em quando, mais para passear que para qualquer outra coisa. Adoro este exido. Se surge a ocasião, ótimo, mas não me entra na cabeça isso de criar aves para depois abatê-las. A verdade é que oportunidades para caçar se apresentam na maioria dos dias, porque meus vizinhos sim cuidam de criação, sobretudo a do faisão, de modo que quando organizam uma jornada de caça em toda regra, com aves, muitos vêm a nossas terras. Alguns se queixam, e um deles, um mesquinho sodomita, diz que meu único motivo para opor-me ao cercado é que me agrada desfrutar da caça que eles criam. Há muito ressentimento... e esse tipo - continuou Jack, que inclinou a cabeça para poder ver com seu olho são, o que se convertera em um gesto usual nele, - esse tipo do pônei que vê aí atrás desses salgueiros, é o exemplo perfeito. Lamento dizer que é marinheiro, e um esfregão.
- Soa a contradição.
- Muito amável de sua parte dizer tal coisa, Stephen; mas quando se considera... Verá que esse tipo, Griffiths, não é nenhum marinheiro. Lembrar-se-á dele de Valetta, onde servia sob as ordens de Gib. Teve a Espiègle e depois a Argus; era um tipo tirânico de cabelo negro e rosto vermelho como um tomate, mais jovem que eu mas com muito mais influência: membro do Parlamento por Cartón e herdeiro de Stranraer, de quem é sobrinho. Naquele mesmo mês o nomearam capitão de navio. Contudo, depois de um cruzeiro ou dois na Terpsichore, quando teve que enfrentar-se a um desagradável motim, começou a recusar comandos que lhe teriam levado às Antilhas. Prefere cuidar da granja, mas em grande escala. Possue extensas terras por Paston. Foi um dos principais cabeças na hora de cercar o exido de Woolhampton (aqui o chamamos tanto de Woolcombe como de Woolhampton, mas é o mesmo). Agora quer fazer o própio com Simmons Lea. Ele e seus amigos querem arrumar tudo como se tratasse de um acampamento militar, com linhas e ângulos retos. Elevados depósitos e aluguéis, certamente, e as leis de caça respeitadas até a última vírgula. Pode ser que lhe pareça que o estou pintando como a um tirano, mas o caso é que não sabe distinguir entre um barco que desfruta de uma harmonia aparente mediante os métodos observados em Botany Bay, e um barco que desfruta de uma harmonia real, um barco feliz, onde tanto oficiais como marinheiros cumprem com seu dever sem necessidade de recorrer aos açoites. Portanto, tampouco distingue entre terras adequadamente administradas e um lugar não muito distinto do que seria um presídio, onde todo mundo anda com medo e somente a suspeita de caçar furtivamente supõe a ruína de qualquer um. Os arrendatários se submetem a sua vontade, certamente, desde que se interceda o arrendamento... Olhe, parece que vem por aqui. Acho que o cumprimentarei com o chapéu e lhe perguntarei como anda. Apesar de tudo, ainda nos falamos.
- Caminharam um pouco em silêncio, e Jack se afastou da vereda para dar espaço para o pônei. - Bom dia, sir. Como está? - perguntou tocando-se o chapéu.
Griffiths devolveu o cumprimento sem sorrir, observando fixamente a Stephen, que, por sua parte, viu a um desses homens gordos, insatisfeitos, mais inclinados ao mau humor que à menor mostra de alegria, isso se a alegria não lhe abandonara para sempre, junto a sua juventude. Vítimas do poder de dar ordens? De um fígado enfermo? Ou, sem dúvida, de ambas as coisas, além de um baço e um pâncreas díscolos.
- Foi Burton, acho - disse Stephen após alguns minutos, - que observou que havia homens que não absorviam nada mais que veneno dos livros. E que não conheceu a jovens, e mesmo a donzelas, que possuíssem idéias ridículas do que convém às pessoas de brio, e com noções permanentemente distorcidas de conduta com respeito ao que é aceitável e ao que não é? Mesmo assim, mesmo os autores não poderiam ser mais daninhos?
- Na Armada costuma ter quem devolva o filhote ao redil - disse Jack. - Ainda que devo confessar...
Mas a confissão se perdeu. Tinham chegado ao fundo pantanoso, e uma narceja empreendeu o vôo com seu habitual grasnido, afastando-se a surpreendente velocidade. Jack abriu fogo mas falhou. A cachorra o olhou com desprezo.
- Acho que está bem empregado - disse ao carregar de novo a arma. - Isso por estar a ponto de dizer que a Armada não é perfeita.
- Suponho que aqui no inverno terá mais água - disse Stephen.
- Oh, sim, muito mais. Quase forma um pequeno lago.
- É muito similar ao que na Irlanda chamamos Turlough - disse Stephen. - Às vezes dista muito de considerar-se um lugar árido. - Dedicou a Bess uma olhada discreta mas significativa, e assinalou com a cabeça uma espessa mata de juncos. A cachorra passou a correr e, ao cabo de dois minutos, um par de cercetas alçaram vôo da parte da água onde haviam pousado. Stephen acertou a ave situada à direita, mas Jack falhou.
- Não devia abrir a boca - disse chateado enquanto Bess levava o patinho para Stephen. - Poupar-me-ia muitos problemas se ficasse com a boca fechada.
- Ponha a culpa na arma - disse Stephen. - Por melhor que seja seu manuseio, é tão leve e tão preciso o disparo, que...
Jack limitou-se a sacudir a cabeça. Então, em parte para aprender e em parte para devolver a seu amigo a vantagem moral, Stephen disse:
- Peço que me explique tudo o relacionado com os cercados, Jack, se é tão amável. Tenho ouvido falar amiúde deles; há quem assegure que salvarão o país da fome, mas outros dizem que não são mais que uma cortina de fumaça, uma de tantas manobras para pôr a terra nas mãos dos ricos, e manter tal como estão os pagamentos dos trabalhadores. Que, de qualquer maneira, tendo em conta que dentro de pouco não haverá guerra... Limito-me a repetir o que ouvi, Jack, não ache que esta é minha opinião, que Deus me livre. Em fim, que dentro de pouco terminará a guerra e não tardaremos em importar grãos de novo, de modo que não haverá necessidade alguma de mudar a antiga ordem.
- Falando em termos gerais... - disse Jack. - Que ave é essa?
- Acho que é uma chalreta.
- Não estou capacitado para falar. Deixo isso para as pessoas como Arthur Young ou ao bom de sir Joe. Mas a verdade é que, no passado, e no que se refere às terras realmente proveitosas, ao cercar todos os exidos se conseguiu aumentar as reservas de trigo do país. Mas eu estava no mar, ou ambos estávamos encerrados em uma prisão ou outra, a maior parte do tempo, e também não tenho mais direito de intervir no Parlamento e fuxicar sobre os cercados em geral, do que nove décimo dos membros de tratar sobre assuntos navais. Contudo, no que se refere a estes dois exidos em particular, eu me oponho absolutamente a qualquer mudança. E é isso mesmo o que direi ao Comitê em voz alta e clara.
- Que tipo de comitê?
- O Comitê parlamentar, certamente.
- Oh, verdade? Eu lhe peço, Jack, comecemos pelo princípio. Quem começou com isto do cercado? Quem tem o poder, a autoridade? O que diz a letra da lei?
- A respeito da lei, que Deus nos assista: qualquer mansão tem uma lei própia, e os tribunais sempre dizem aquilo de Consuetudo loci Est observanda. - Olhou para Stephen e repetiu: - Consuetudo loci Est observanda. - Disse elevando o tom de sua voz, antes de acrescentar com um suspiro: - E não acredito que necessite que eu traduza. De uma mansão para outra, os costumes diferem surpreendentemente, tal como foi sempre. Inclusive nos exidos de Woolcombe e Simmons Lea, que são praticamente colimitados, os exidos de onde se pode pescar são muito diferentes, e aqui em Simmons Lea não tem exido de onde se permita extrair carvão fóssil. Então existem todo tipo de direitos, como o "bite of grass y fire-bote, hey-bote y house-bote, underwood, sweepage"{2} e outros, que diferem de paróquia em paróquia, mas que se regem estritamente pelo costume que se remonta a tempos imemoriais, e que proporciona a um homem um lugar no povoado e converte o conjunto, mais ou menos, em um barco feliz. Tenha em conta, Stephen, que falo dos ermos de um senhor, não de um exido comunitário nem da terra de pastos, mas do ermo, o que se chama hoje em dia de exido. A maior parte da terra de lavoura e pasto foi cercada faz muito tempo, ainda que ainda restam partes de ambas, adjuntas a Simmons Lea. - Calou ao ver no céu uma garça real, que voava em linha reta, batendo as asas com força. - Vinte ou mais se aninhavam nas árvores que existem no ponto mais afastado do lago - disse. - Até que, certo ano, os aguadeiros e alguns dos guardas-florestais derrubaram todas as plataformas onde se criavam, e jamais voltaram. O velho Harding foi um deles. Nunca pôde suportar nada que competisse conosco na hora de matar; nadasse, voasse ou corresse, carne ou pescado, uma ave ou um bom arenque. E você, Stephen, teria chorado a lágrima viva de ter visto a porta de seu celeiro cheia de falcões, gaviões, corujas, dois quebra-ossos e inclusive uma enorme águia de calda branca estendida, assim como doninhas, arminhos e a estranha marta, todos cravados na porta. Vendia as peles de nútria. Mas estou lhe falando de quando ele era guarda-florestal e eu era uma criança; agora que não sai muito, abundam as alimárias. Ainda que não posso dizer que isso não me preocupe na hora de ir caçar. Ao ver se está quieta, maldita raposa - exclamou ao ver que Bess, que se afastara enquanto conversavam, havia levantado um estupendo faisão longe do alcance de suas armas.
- Acho que nunca tinha visto um cachorro tão aflito - disse Stephen. - Todos seus membros estão em decadência.
- Pois tem motivos de sobra para ficar - disse Jack. - Olha como anda por aí desse modo indecente como se fosse uma lunática. Se fosse mais jovem lhe daria uns açoites. Aquela, por certo, devia de ser uma das aves de Griffiths, um faisão comum. Bem, onde eu estava? Ah, sim. Um cercado costuma começar com um acordo por parte dos que têm maiores direitos sobre o exido, pois se divide em partes separadas, em propriedades proporcionais a seus direitos. Não me refiro a todos os implicados, mas sim a muitos deles. Então, com a benção do pároco, o patrão do benefício e todos os cavalheiros, lavradores ricos e propietários que sejam da mesma opinião, e aos quais possa convencer, nomeiam as pessoas necessárias para medir e cartografar tudo. Feito isto, apresentam uma petição ao Parlamento, rogando que lhes permita apresentar uma lei de costume para que o Parlamento possa autorizar a divisão, de tal maneira que se converta em lei.
"Explicado assim, o negócio parece justo. Afinal de contas, o país se rege por estas diretrizes: a maioria sempre tem razão, e quem não goste pode se coçar... Expressão que ouvi da boca de um oficial que encabeçava uma parte do recrutamento forçoso, quando um dos homens aos quais capturara o enfrentou.
"Seria perfeitamente justo se fosse como um júri ou, mesmo, uma sacristia, onde cada homem tem voz e voto, e onde os outros o conhecem e valorizam sua opinião dada sua reputação no povoado. Mas neste caso, a maioria se determina não pelo método de contar cabeças, mas mediante a soma das partes, isto é, o valor das propriedades. Griffiths, um recém chegado de muito dinheiro, vale por, talvez, umas dez mil libras. Harding e toda sua parentela nas fazendas poderia chegar a valer duas ou trezentas libras nos últimos dois ou trezentos anos. Já me dirás tu que valor terá seu voto. E também há mais três ou quatro peixes gordos, além de Griffiths. Meu própio primo, Brampton, em Westport, ansia reunir três de suas fazendas, onde o exido escorre condado adentro. Bem, pois enquanto estivemos nos sufocando com o calor do Golfo de Guinéu, e enquanto você, meu pobre Stephen, não somente se abrasava, como que também se punha amarelo como uma galinha, reuniram sua preciosa petição com o apoio da maioria das partes (não preciso dizer como é fácil para alguém, que dispõe de uma considerável propriedade, convencer aos lavradores que obtêm seus ganhos nessas terras de que firmem ou ponham uma marca no documento que lhes privará de sua parte do exido) e depois de uma longa pausa, enquanto se ordenava adequadamente e se redigia a lei, Griffiths a apresentou ante o Parlamento. Foi lida duas vezes com o habitual torrente de palavras ininteligíveis, sem que nenhum dos presentes prestasse a menor atenção, e foi transmitida ao Comitê, ao Comitê parlamentar do qual lhe estava falando. Se esse comitê der seu visto favorável, a lei será lida uma terceira vez, quase certo que sem debate algum, e se aprovará sem objeção para que os comissionados comecem a divisão. Mas se puder impedir, o Comitê não aprovará.
- E como o impedirá?
- Se minha parte do exido não bastar para vencer sua maioria, pelo menos a reduzirá um pouquinho. Desfrutarei de mais possibilidades, ponhamos que onze para três, de que o peso de minha posição incline a balança... De que desande a petição.
- Creio que um capitão de navio da Armada Real é uma figura imponente, mas esse capitão Griffiths não tem o mesmo emprego e mais antiguidade que a sua?
- Isso mesmo. Mas ele não possue uma mansão como a minha.
- Céus, Jack, não tenho a mínima idéia do que me fala. Nem a menor idéia. Então ainda existe? O ofício, ou, talvez devesse dizer que a eminência da qual ouvira falar, mas que supunha pertencente ao passado, que permitia aos senhores exercerem seu droit de seigneur com todo o rigor do mundo, com a justiça de seu lado, justiça que impunham com um par de forcas. Então ainda existe? Estou surpreendido. Surpreendido.
Mesmo a estas alturas, o alcance da ignorância de Stephen, tanto no mar como em terra, certamente, não deixavam de surpreender ao capitão Aubrey. Olhou-lhe com afeto e, mediante o uso de palavras simples, explicou-lhe a natureza de sua função.
- Hoje em dia praticamente não vale nada, afinal de contas esse empenho para equiparar e para mudar por amor à mudança: o senhor de uma mansão conserva poucos direitos, além dos que as cortes de senhorio lhe permitam, e a ocasional apropriação de terras livres; porém, logicamente ou não, conserva certa posição, e raras vezes ocorre que um comitê lhe seja contrário. Insisto em que possuo certos poderes que provêm de outrora. Talvez não possa dormir com as filhas dos camponeses em sua noite de núpcias, mas sim que inauguro a feira de Dripping Pan (que não pode começar a menos que eu, ou alguém delegado por mim, esteja presente); realizo o saque inaugural da temporada de futebol, e jogo a primeira bola quando começa o a do críquete, a menos que esteja no mar.
Estavam subindo enquanto falavam dos direitos do senhorio. Então, do alto de uma colina coberta de capim, mostrou mediante um gesto da mão um profundo anfiteatro, muito grande como para poder chamá-lo de pequeno vale, com um esplêndido gramado no qual se recortavam as ovelhas, os coelhos e, naquele momento, uma modesta revoada de gansos brancos como a neve, guardados por uma garota.
- Vendo-o assim não acreditaria - disse, - mas no dia de Old Lammas, o primeiro de agosto, quase não se pode caminhar devido às barracas e barraquinhas que se instalam aqui. A tia Sally, a gigantesca tártara, duas ou três damas barbudas, barracas de boxe, onde nossos garotos recebem o seu por parte dos veteranos pugilistas de Plymouth. Esse tipo de diversões. E aqui é onde jogamos futebol no inverno e críquete no verão, e onde celebramos também as competições de salto e de corridas. Nos melhores anos pomos em jogo onze jogadores, capazes de vencer a quinze ou mesmo a dezessete provenientes dos povoados próximos. Ali em baixo, ao sudoeste, vê? Não, à esquerda. Ali está o caminho por onde chegam os feirantes, poucos dias antes de primeiro de agosto. Desviaremos um pouco de nossa rota, mas eu gostaria de levar-lhe a um lugar dos pastos do sul que estou convencido de que se agradará. Além disso - acrescentou consultando a hora no relógio, - temos tempo de sobra antes de que Welland chegue de visita.
Ao descer, Bess levantou uma lebre que correu em linha reta para eles, descendo a colina com a cachorra tão perto que nem Jack nem Stephen se atreveram a disparar. Dez jardas separavam a lebre da cachorra, e então a lebre, fora da distância de tiro, cortou para a direita, subiu de novo a colina com a facilidade que a caracterizava e ganhou distância de tal maneira que supôs um autêntico prazer para a vista, enquanto Jack lhe gritava, a garota dos gansos fazia o mesmo com voz aguda, e Bess dava saltos como uma bola de críquete, sem que servisse de nada, pois a lebre ganhara a corrida e imediatamente desapareceu atrás da colina. Bess voltou ofegando, e pouco depois chegaram ao caminho.
- Apesar das chuvas, ainda pode se ver o rastro das carroças - observou Jack. - E antes que chovesse intensamente pela última vez se distinguiam com clareza as pegadas de um camelo. Um camelo! Um camelo com dois fardos, propriedade de uma das mulheres barbudas, presente da rainha da Arábia, ou isso foi o que ela disse.
Uma feira tem um algo de mágica - disse Stephen. - O odor da grama pisoteada, as luzes... Vejo que ainda tem chascos-cinzentos.
- Sim, mas não tardarão em partir, e nós com eles. - Um filhote de pombo, que voava no alto em linha reta, passou por cima de suas cabeças. - Sua vez - disse Jack.
- Em absoluto - disse Stephen.
Jack abriu fogo. A ave pairou até cair com as asas estendidas.
- Menos mau que adquiri minha peça - disse. - Saberás que constitue um dos Droits de seigneur. Em teoria, somente o senhor da propriedade tem direito de disparar, ainda que também tem a opção de dar permissão a seus amigos.
Durante meia milha conversaram sobre a preservação da caça, sobre a caça clandestina, os guardas-florestais e os cervos, e então, quando apareceu outro caminho beirado por um denso tojo, tomaram-no até alcançarem uma linha de postes e cercas brancas.
- Este é o limite do exido - comentou Jack. - Além da cerca começam nossos pastos do sul, terras nobres. Você tão somente viu uma pequena parte de Simmons Lea. Outro dia confio em poder mostrar-lhe o lago e o que há além. Ainda que já deve ter feito uma idéia de...
- Uma idéia maravilhosa, é uma paisagem encantadora; e no outono, no final do outono, terá aqui a todos os patos do norte, por não mencionar as aves ancudas e, com sorte, alguns gansos.
- Sim, e pode ser que também alguns cisnes. Pretendia que fizesse uma idéia do que esses infelizes lavradores renunciam. Talvez lhe pareça que não valorizam a beleza de...
- Jamais me ocorreria dizer tal coisa. Seria uma bobagem de minha parte.
- Mas sim valorizam o pastoreio, a lenha, a palha para seus animais e as centenas de coisinhas que o exido lhes proporciona, para não mencionar a pesca, sobretudo as enguias, os coelhos, a rara lebre e alguns dos faisões de Griffiths. Harding faz vista grossa, desde que sejam do povoado e observem certa moderação.
Estavam um tempo escutando um ruído estranho e contínuo que Stephen não pôde identificar até que chegaram à porteira; enquanto Jack se encarregava de abri-la, Stephen voltou a olhar para o trecho reto do caminho, no qual viu uma mulher que puxava um burro engatado a uma carroça onde levava tojo amontoado. Vestia uma casaca velha, muito velha, de homem, além de luvas que obviamente ela própia tinha confeccionado. Jack lhe abriu a porteira para que pudesse passar.
- Senhora Harris, como está a senhora?
- E o senhor, capitão Jack? - respondeu em um tom de voz igualmente elevado, ainda que mais rouco. - E sua encantadora senhora esposa? Não posso deter-me, senhor. Não sabe quanto medo tenho desta porteira, porque o asno é tão preguiçoso que não poderia fazer que se movesse se o solto para abri-la. - E a verdade é que o andar do burro perdeu brio ao aproximar-se da porteira, ainda que a senhora conseguiu que a franqueasse, não sem lançar um grosseria particularmente virulenta.
- Vamos dar uma espiada no pasto de Binnings - disse Jack ao tomar o caminho da esquerda.
- Hoje está precioso - replicou ela.
- Jack - disse Stephen. - Acho entrever em seu discurso com respeito à natureza da maioria sua surpreendentemente violenta, radical e, inclusive (e perdoe-me), democrática exposição, a qual, com a desleal implicação de "um homem, um voto", poderia ser interpretada como um ataque aos direitos sagrados da propriedade. Gostaria de saber como sua posição é recebida no Parlamento por um ministério conservador.
- Oh, a respeito disso - disse Jack, - não tenho o menor problema. Depende integralmente de uma questão de escala e circunstância. Todo mundo sabe que a grande escala a democracia implica um pernicioso absurdo. Um país, ou mesmo um condado, não poderia ser governado por um punhado de políticos demagogos que baseassem sua política na vontade popular, para comover ao povão. De fato, mesmo Brooks, viveiro da democracia, é dirigido por administradores, e aqueles que não se agradem podem ir a outra parte ou afiliar-se a Boodles. No que se resfere a um navio de guerra, tudo depende da autocracia ou de nada, de nada em absoluto; é uma bobagem. Já viu o que se passou com a pobre Armada francesa no início das Guerras contra a França Revolucionária...
- Querido Jack, não concebo uma democracia literal a bordo de um navio de linha, nem sequer a bordo de um bote de remos. Conheço muito bem como funcionam as coisas no mar - acrescentou Stephen, seguro de si.
- Quanto que ao outro lado da balança, ainda que isso de "um homem, um voto" feda a forca e enxofre, todos o aceitamos que um júri que julgue a vida de um homem. Um cercado se adscreve a esta escala, pois também influe na vida dos homens. Não reparara em quão conscienciosamente o faz, até que voltei do mar e descobri que Griffiths e alguns de seus amigos haviam convencido meu pai a unir-se a eles para cercar o exido de Woolcombe. Naquele momento, meu pai sofria penúrias econômicas. Woolcombe jamais foi um lugar tão esplêndido como Simmons Lea, mas também era de meu agrado: há uma quantidade surpreendente de perdizes e galinholas quando chega a temporada, e ao vê-lo pelado, aplanado, drenado, cercado e cultivado até o último pedaço com trigo, com boa parte dos limites destroçados pelo arado, as fazendas destruídas e o restante dos lavradores com a metade de suas posses e com toda a alegria de viver perdida, reduzidos a inquietos peões com chapéu na mão, doeu-me no mais fundo do coração, Stephen, eu lhe asseguro. Cresci de meu jeito quando era um garoto, depois da morte minha mãe, às vezes na escola do povoado, outras trotando por aí; conheci intimamente a estes homens desde que eram crianças como eu, e agora os vejo a mercê de terratenentes, granjeiros, e dos funcionários da paróquia que em nada os ajudaram, e me dói na alma de tal maneira que quase não tenho forças para visitar o lugar. Estou decidido a lutar para que não ocorra o mesmo em Simmons Lea, se é que posso fazer algo para evitar. Os métodos tradicionais têm suas desvantagens, mas aqui (e só falo do que sei com certeza) o exido era um meio de vida, a gente sabia como manejar-se e conhecia os costumes desde o berço.
- Concordo completamente contigo, querido amigo - disse Stephen.
Raras vezes tinha visto Jack tão comovido, e não disse nada durante um estádio{3}, até que Jack exclamou:
- Aí está! Aí está seu picanço de dorso vermelho! Ontem mesmo Harding o mostrou a George. Tinha esperança de que pudesse vê-lo.
- Ah, esplêndido exemplar de ave! - disse Stephen. - Não acredito já ter visto um espécime tão louvável. Alguns o chamam de pássaro carniceiro. Comporta-se de um modo horrível. Porém, quem somos nós para repreendê-lo?
O caminho deu outro giro e, ao longe, à esquerda, puderam ver uma casa; à direita havia outro pasto coberto de trevo e capim, com um refúgio de teto de palha no meio e um cavalo que pastava em companhia de uma cabra. Stephen seguiu o olhar de Jack.
- Oh, oh - exclamou com voz grave, antes de acrescentar elevando o tom: - Lalla, Lalla, aqui!
Mesmo antes de chamar à égua, esta havia levantado a cabeça e movido as orelhas em sua direção, tudo isso sem deixar de ofegar. Então moveu-se para eles, e quando suas suspeitas se confirmaram lançou um relincho, empreendeu um suave galope e superou uma cerca com a mesma agilidade de um gamo até chegar junto de Stephen, ofegar sobre ele e apoiar com força a cabeça em seu ombro, e o rosto contra sua bochecha, resmungando uma rápida e ofegante lamúria. A cabra observou a cena desde o refúgio. Aproximaram-se caminhando da casa sem que Lalla se separasse de Stephen, para quem voltava afetuosamente a cabeça de vez em quando. Era uma das éguas árabes de criação que Diana havia cuidado para depois desfazer-se delas, durante uma das muitas e intermináveis ausências de Stephen, e era a única que o cirurgião pudera recuperar, o cavalo mais afetuoso e inteligente que havia conhecido em toda sua vida.
- Não sabia que a mantesse aqui - disse.
- Oh, sim - disse Jack. - Como acredito ter-lhe dito alugamos Ashgrove. O almirante Rodham, ainda que seja um excelente marinheiro, é do tipo de pessoa com a qual se pode contar para que arruine a um cavalo em questão de um mês, inclusive menos. - Então, ao se dar conta de que por sua amizade lhe devia uma explicação, acrescentou: - Partimos pouco depois de que me processassem pela primeira vez. Vivo aqui sem ter que pagar um xelim, certamente, e boa parte da comida a obtemos da fazenda, enquanto que o almirante paga um suculento aluguel e seus servos se encarregam de cuidar do jardim. Um almirante tem muitos serventes, Stephen.
- Estou convencido disso - disse Stephen, familiarizado com o conceito que tinham os almirantes dos criados que necessitavam para manter a dignidade da insígnia, ao tempo que se perguntava pelas prováveis consequências do zelo de tal servidão. - Vamos, Lalla, querida, seja boa e não me babe. - A égua lhe acariciava o pescoço com o focinho e reduzia a um estado lamentável a já maltratada casaca de Stephen. Ela o olhou com afeto, e depois, com as orelhas eretas, voltou de repente a olhar à direita, por sua companheira habitual, a cabra sem nome, animal extraviado procedente de um povoado distante que ninguém havia reclamado e que nesse momento os seguia sem deixar de observar com desconfiança aos homens e á cachorra, Lalla relinchou de novo, como para animá-la, e todos eles caminharam juntos enquanto as calandras alçavam vôo de ambos os lados do caminho.
- Permite que volte ao tema do exido? - perguntou Stephen. - Suponho que os lavradores obterão uma compensação pela perda de seus direitos?
- Em teoria, sim - respondeu Jack, - e quando os comissionados conservam certa compaixão nas entranhas, a verdade é que recebem algo, desde quando possam demostrar legalmente que têm direito a isso. Em tal caso se lhes concede uma parcela pelo cultivo. Com um exido extenso como este, o possuidor de... ponhamos que de duas partes, poderia obter umas três quartas partes de um acre junto a sua fazenda. Mas três quartos de um acre não bastam para uma vaca, meia dúzia de ovelhas e um punhado de gansos, problema que não tinham dispondo de acesso livre ao exido. Contudo, uma parcela tão extensa é algo raro de ver; sucede mais amiúde que se reparta a terra em diversos pedaços, geralmente separados entre sim, e que se contemple uma cláusula na ata, conforme a qual cada um deles poderia ser cercado e, às vezes, drenado. Um homem sem recursos não pode permitir-se tal coisa, de modo que vende sua propriedade por cinco libras e, depois, durante o restante de sua vida, depende de um salário, isso se o obtém, de modo que fica nas mãos do granjeiro.
A julgar pelo odor, a cabra havia se unido à comitiva.
- Posso lhe interromper para poder contar uma anedota relacionada com um médico austríaco que conheci em Catalunha?
- Será um prazer ouvi-la - respondeu Jack.
- Um soldado inglês me acompanhava, um tal capitão Smith, e passeávamos pela cidade para tomar uma chufa quando nos encontramos com o doutor Von Liebig, a quem pedi que nos acompanhasse. Geralmente, empregávamos o latim para falar entre nós, pois seu inglês era tão difuso como meu alemão, mas Liebig não teve nesse momento mais remédio que recorrer à língua de Smith, e enquanto tomava sua chufa nos explicou que ao descer pela colina havia se cruzado com um fantasma, um fantasma barbudo. "Um fantasma a plena luz do dia?", exclamou Smith. "Sim. À luz do sol se lhe via muito pálido. Um homem o puxava mediante uma corda." Gostaria de ser capaz de descrever nem que fosse uma parte do contraste que havia entre o solene assombro de Smith, pintado de uma profunda desconfiança, e a alegria da expressão de Liebig, o despreocupado de seu tom e o evidente prazer que lhe proporcionava a bebida fria de que desfrutava.
- Fantasma{4}. Um fantasma pálido e barbudo... Que divertido - admitiu Jack, encantado. - Conseguiu finalmente afugentar seu soldado tão espectral enigma?
- Jamais. Não até que esclareci mais tarde. Não imagina como se chateou. Mas lhe peço perdão, Jack. Ponho ponto final a meu parêntese e lhe rogo que volte ao cercado; triste tema, temo.
- Em termos gerais, relamente o é. Creio que tem alguns terratenentes responsáveis que, dispostos a cercar as terras, prestam atenção às necessidades dos lavradores e se asseguram de não deixá-los em pior posição da que se encontravam, desde quando tal coisa seja possível. Homens que nomeiam comissionados com instruções de não aproveitar-se da ignorância dos granjeiros, ou de não aproveitar-se mesmo de que careçam da documentação que demonstre que ostentam a propriedade de sua parcela ou a de sua casa. Homens que não incluam cláusulas na lei insistindo no cercado, drenagem ou no cercado com cerca, que paguem parte dos gastos que se derivem de toda a operação e de cercar a propriedade do propietário da nova parcela. Talvez existam esses homens, mas Griffiths e seus amigos não respondem a essa natureza. Querem tudo o que possam conseguir e não se importam nem um pouco com os métodos aos quais tenham que recorrer para consegui-lo; e o que temem tanto eles como os lavradores mais importantes é a possibilidade de que os trabalhadores se tornem uns descarados, tal como eles própios dizem, e peçam mais para trabalhar, uma diária que esteja à altura do preço do trigo; que se neguem a trabalhar se não conseguirem e que para viver recorram ao que obtenham do exido... Portanto, se não houver exido, não haverá descarado.
Nesse momento, o caminho se tornou tão estreito que Jack, Stephen, Lalla e a cabra não tiveram mais remédio que caminhar em fila indiana, de modo que a conversa decaiu. Quando finalmente tiveram o campo arado à direita e os pastos à esquerda, Stephen disse:
- Uma das vantagens da vida no mar para os homens de nossa condição reside na liberdade da palavra - observou Stephen. - Na cabine ou na popa, no jardim{5}, podemos dizer o que queiramos e quando queiramos.
E se pensarmos detalhadamente, isto em terra ocorre raras vezes em circunstâncias normais. Sempre há motivos para mostrar-se discreto: a servidão, os entes queridos, as visitas, ouvidos inocentes mas receptivos, ou a possibilidade de sua presença. Pelo mesmo motivo é difícil poder ler em silêncio em uma casa, a menos que se tenha a benção de dispor de um quarto a prova de ruídos: interrupções, movimentos desnecessários, portas que se abrem e se fecham, desculpas, inclusive sussurros. Deus santo, para mim, o mar: Li a Josephus entre Freetown e Fastnet Rock durante nossa última viagem. Os uivos dos marinheiros, o movimento do mar e o embate dos elementos (exceto, talvez, em seus casos mais extremos) não são nada comparados com as incursões domésticas. Desde então tão somente leio o jornal, gazetas, publicações periódicas... leitura ligeira excetuando o Proceedings, leituras que hão consumido todo meu tempo e energia. Em fim, Jack, eu lhe rogo que me fale sobre o almirante Stranraer, a quem lhe ouvi nomear amiúde.
- Tal como sabe, comanda a esquadra que realiza o bloqueio de Brest, nossa esquadra. É um marinheiro agricultor, como seu sobrinho Griffiths. São muitos, intoxicados com a teoria da alta agricultura, e às vezes possuem grandes extensões de terra. Mas ao contrário de Griffiths, Stranraer é um excelente marinheiro. Um comandante férreo, de língua afiada. É um homenzinho, desses que ladram e mordem de vez em quando.
- Possue um título escocês, verdade?
- Não, é inglês; do tempo de Guillermo o Holandês. O sobrenome da família é Koop. É um liberal, mas um liberal moderado, e às vezes vota contra o Ministério, ainda que somente em ocasiões (nas importantes), o que significa que todo mundo o segue. Apesar de tudo, é liberal o bastante para que eu o desagrade por ser filho de meu pai. Recordará que antes de tornar-se tão radical, meu pai era um conservador apaixonado, e que em umas eleições chegou até o extremo de dar uma boa surra em um candidato liberal que se apresentou por Hinton. Por outro lado, parece contente com Griffiths, que sempre vota com o governo nas raras ocasiões em que comparece ao Parlamento. É parlamentar por Cartón, uma paróquia modesta como a minha, ainda que conta com menos eleitores. O almirante também se desagrada que eu me tenha aproveitado da dispensa parlamentar, o que implica que um capitão terá que ocupar meu lugar no barco; e ainda terá pior opinião de mim quando descubra que tenho intenção de jogar por terra seu plano de cercar tudo, plano firmemente recomendado por ele, pois amiúde o menciona e, conforme o almirante, será uma imensa melhora para o exido. Inclina-s por juntar todas as terras, despachar os lavradores que possuam cinqüenta ou cem acres (para ele dá no mesmo), e dispor de enormes extensões de pastos com boas estradas, edifícios modernos e incríveis benefícios. Sabe Deus de quanto rendimento por acre estaremos falando.
- Parece ter mais de um destes clãs na Armada, além dos óbvios setores políticos. Há homens como você, praticantes devotos da navegação astronômica, que fariam o que fosse para que simpatizem com suas idéias; e aqueles que desfrutam cartografando qualquer coisa que possa cartografar-se, por úmida, distante e incômoda que possa ser. Contudo, acredito que esta é a primeira vez que topo com um bando de agricultores marinheiros, e confesso que tenho muita vontade de conhecer ao almirante.
- Sim, e existem nexos de simpatia e relação. Lorde Keith, por exemplo, mostrou-se muito amável comigo quando era jovem, e faria o que fosse por qualquer um de seus guardas-marinhas ou os filhos de seus oficiais. Este fenômeno se produz em toda a Armada, sobretudo entre as antigas famílias de marinheiros, como os Hervey. O mesmo ocorre no que se refere a regiões particulares. Encontrará barcos onde todo o castelo de popa é composto de escoceses, para não falar de boa parte da marinharia. Conheci ao capitão de uma corveta oriundo da ilha de Man, e lhe asseguro que quase todos os de sua dotação tinham três pernas{6}. Com respeito ao almirante, não tardará nada em conhecê-lo, porque temos quinze dias para comparecermos a bordo. Quase não terei tempo de comparecer ao Parlamento para a reunião do comitê, entregar minha bomba explosiva, e depois pegar o carro postal para Torbay, aonde Heneage Dundas chegará antes da mudança de lua, acompanhado por Jenkins...
- Quem?
- Meu capitão suplente, meu substituto temporal - respondeu Jack, e a julgar pelo tom de voz e a expressão de seu rosto, Stephen compreendeu que não lhe tinha em muita estima. - Com o vento do sul e mesmo do su-sudeste levo três dias esperando um sinal.
De novo Lalla moveu as orelhas para os arbustos a sua esquerda, à vista da casa mas de um lado do parque. Destes surgiu um menino, George, perseguido por uma menina, Brigid.
- Oh, senhor - exclamou George, - tem uma mensagem urgente de Plymouth. Foi a minha prima Diana que a trouxe.
- Oh, papai - exclamou Brigid, - há um homem montado em um cavalo a vapor, sedento a mais não poder (o homem), que traz uma carta, uma carta urgente. Mamãe se encarregou dela, e a traz na carruagem. Nós atalhamos pelos arbustos e, depois, pelos tojos. - A essas alturas já haviam se reunido com eles e, moderando um pouco o tom de voz, levantou o rosto para que a beijassem.
- Nós vimos os senhores através da luneta - disse George - e, como a prima Diana já tinha preparados os cavalos, disse que viria a propósito e que com isso evitaria que tivessem que caminhar.
- Já os ouço, já os ouço! Mãe de Deus, os ouço! Oh, papai, querido, posso subir ao pescante com Padeen? - puxou sua casaca e Stephen não teve mais remédio que deixar de observar uma ave distante que voava perto do sol com as asas estendidas, provavelmente um quebra-ossos.
- Se mamãe deixar... - respondeu. - Ela é a capitã da carruagem.
Apesar de Lalla ser uma égua um pouco nervosa e susceptível, nesse momento ofereceu aos jovens uma prova da maravilhosa paciência que caracteriza ao animal menos promissor. George, a quem ela conhecia perfeitamente bem, havia se içado ao lombo da égua puxando a crina, ajudado por uma mão de seu pai, e Brigid, a quem conhecia de um dia, fez o mesmo, mas com mais torpeza. Lalla a olhou, esticada até que a menina esteve mais ou menos sentada, e depois passou a andar suavemente.
O caminho assinalado pela borda do terreno de pastos apareceu extenso ante seu olhar. No lugar conheciam esse caminho com o nome de "corrente", pois por aí viajava todo o gado de Woolhampton para ser marcado e registrado na segunda quarta-feira depois da festividade de São Miguel. Ali encontraram a carruagem com seus quatro baios à frente, e Padeen, que segurava a cabeça do líder do tiro. Diana estava sentada no pescante.
- Tenho uma carta para você, Jack - exclamou, agitando-a no ar. - Uma carta urgente de Plymouth.
- Obrigado, Diana - replicou ele. - Quer que lhe ajude a conduzir a carruagem?
- Deus, não - disse Diana. - Mas cuide de Lalla. Tende a perder a cabeça quando há cavalos por perto, ainda que sejam castrados. - Então, voltando-se para Brigid, disse: - Filha, venha e dê esta carta ao seu primo.
- O senhor é meu primo, senhor? - perguntou a menina quando Diana fez os cavalos girarem com a habilidade que a caracterizava. - Não sabe quanto me alegro.
Ao chegarem à frente da casa, todos os passageiros desembarcaram da carruagem. Jack cumprimentou Sophie, que aguardava de pé na escada.
- É de Heneage, querida. Perdeu o gurupés, o mastaréu de traquete e me atreveria a dizer que boa parte dos corrimãos de proa. Deixará o Berenice e virá de carruagem para Woolcombe com Philip e, talvez, com um par de marinheiros. Chegarão na quinta-feira, Deus mediante. Que amável de sua parte ter nos avisado com tanta antecedência.
- Oh, sim, muito amável de sua parte - exclamou Sophie antes de lançar um suspiro.
- Conhece a Heneage Dundas? - perguntou a Diana quando a ajudou a descer do pescante.
- O marinheiro? O filho de lorde Melville? Eu o conheço. Seu pai não esteve ao comando da Armada?
- Esteve, e foi um excelente primeiro lorde, certamente. Na atualidade, o irmão mais velho de Heneage é o5 primeiro lorde.
- Sophie, Clarissa - chamou Diana, - vocês não gostariam de tomar um pouco de ar fresco? Os cavalos necessitam fazer exercício e me propus a exercitá-los um par de horas. Poderíamos ir a Lyme.
- Eu não posso, querida - respondeu Sophie.
- Levará Brigid? - perguntou Clarissa.
- Oh, sim. Certamente que sim. E a George, se quer acompanhar-me.
- Então eu também irei, se me der cinco minutos.
Na quinta-feira que levou a Woolcombe o capitão Dundas e Philip - dia para o qual também se esperava a chegada do cocheiro do senhor Cholmondeley, que privaria a Diana daquela carruagem que constituia uma fonte inesgotável de alegria para ela, - trouxe de fato ao propietário em pessoa e a dois amigos seus no carro postal. Chegaram pouco depois que o restante, enquanto o salão ainda estava um pouco revirado com as apresentações e as perguntas sobre a viagem, a saúde dos amigos comuns e a possibilidade de que os franceses tentassem burlar o bloqueio de Brest (o que era improvável). Stephen reparou no bem que Sophie, uma dama que vivia retirada nas províncias, resolveu a situação. Muito melhor, de fato, que Cholmondeley, um endinheirado e elegante cavalheiro. Se desfez em desculpas pela intromissão e decidiu que não ficaria nem cinco minutos; seu único propósito era o de rogar à senhora Maturin que conservasse a carruagem e os cavalos mais um tempo, desde que ela quisesse fazê-lo. Estava de caminho de Bristol, onde embarcaria para a Irlanda, obrigado por um assunto legal urgente que postergara por muito tempo, mas que não podia demorar mais e, ainda menos, deixar que se resolvesse sem sua intervenção. Não estava disposto a permitir que o tiro de cavalos ficasse recolhido no estábulo de Londres, sem ar, sem luz, sem exercício. logo depois, enfrentou-se à extraordinariamente incômoda tarefa de perguntar a Jack se podia ver o cavalariço de Woolcombe, para acertar com ele a manutenção e os cuidados dos cavalos. Depois de que Jack se negasse a isso, com educação e firmeza, Cholmondeley se dedicou por inteiro a dar rédea solta a sua capacidade para mover-se em sociedade, capacidade nada desdenhável nele, com alegria, entretendo a todos e conversando distendidamente sem cair em tópicos. Ele e seus amigos tinham muitas amizades em comum com o capitão Dundas e com Diana, e as notícias sobre estas amizades foram preenchendo os perigosos silêncios que ameaçaram ocorrer, até que se levantou da cadeira e, com eloqüente gratidão, despediu-se de Sophie e companhia, despedida particularmente educada para com o doutor Maturin.
De fato, não havia permanecido na casa muito tempo (ainda que pareceu mais do que realmente foi) e os homens tiveram pouco mais que a impressão de que se tratava de um homem bem educado, de agradável conversa mas orgulhoso; contudo, passara o tempo suficiente para que as damas presentes tivessem o convencimento de que Cholmondeley sentia uma grande admiração por Diana.
Após ele e seus amigos terem partido, o lugar recuperou a agradável intimidade que o caracterizava. O incômodo que pudesse ter-se derivado da aparição de Dundas e Philip desapareceu por completo (ambos estavam de licença) e da janta em diante os presentes se dispuseram a desfrutar daqueles últimos dias em terra tanto como fosse possível. E a verdade é que conseguiram, apesar dos nimbos que ameaçavam o futuro de Jack Aubrey. Dundas e ele tinham muito de o que falar a respeito da Armada, além do relato detalhadíssimo de como, em meio a uma densa bruma frente a ponta Prawle, um inchimán{7} extraviado e desajeitado se chocara com a roda do Berenice, com as joanetes mareadas e toda a força da maré, ao dar as três badaladas da segunda guarda, quebrando o gurupés da forma mais cruel possível, de tal maneira que o mastaréu do traquete caiu pela borda e uma das cabeças de prancha saltou sob o serviola de estibordo: "pequeno jorro de água: parecia um condenado gêiser islandês".
Tiveram boa parte da conversa, que na realidade não era apta para todos os ouvidos devido a sua profunda natureza náutica, enquanto passeavam armados pelo exido, ou sentados em tocaia de ambos os lados do lago, conforme soprasse o vento. Abundava o pato, antídeo em sua maioria, mas também a cerceta. Convidavam sempre a Stephen para a revoada do amanhecer e do anoitecer, se bem que este raras vezes os acompanhava, pois, ainda que não tinha problemas na hora de disparar em um espécime ou em uma ave para servi-la na mesa desde que fosse necessário, não lhe agradava caçar por caçar. Como o jovem Philip se dedicava por inteiro a Brigid e a George, Stephen recuperou a acomodada solidão do filho único, que vai aonde quer, em silêncio, sem depender de ninguém em absoluto. Era um estilo de vida totalmente natural, um estilo de vida que lhe caía como um luva. Às vezes acompanhava a Diana sentado ao seu lado no pescante da carruagem, porém, ainda que admirasse muito sua habilidade (os quatro castrados não tardariam, a esse ritmo, em converter-se no tiro melhor adestrado e o mais solícito de todo o país), sua obsessão pela velocidade lhe inquietava. Os sapos corriqueiros não eram comuns em nenhum canto do mundo (em comparação com outras espécies, tinha visto poucos em sua vida), mas durante aquele passeio teve ocasião de avistar nada menos que a quatro exemplares. Os musaranhos constituíam outro de seus interesses atuais, ainda que não havia forma de conseguir que Diana se interessasse por elas, pois quando pequena lhe disseram que cada vez que se tocava ou via um musaranho se envelhecia um ano, por não mencionar, tal como sabia qualquer filho de vizinho, que produziam um doloroso reumatismo e eram causa de abortos nas novilhas.
Confiava que Brigid se interessasse, se não pelos musaranhos, pelo menos, na flora que os rodeava e em algumas aves, as mais comuns. Contudo, sofreu uma decepção, pois as duas crianças se atraíam muito mais por Philip, meio-irmão de Jack Aubrey, filho ilegítimo do defunto general Aubrey, cuja paternidade não fazia muito que havia reconhecido, fruto de seus amores com uma criada de Woolcombe House. Este jovem de pernas compridas servia na atualidade a bordo do barco do capitão Dundas como guarda-marinha. Era um garoto extraordinariamente agradável, que irradiava juventude e simpatia pelos quatro lados, e que se mostrava muito amável com os pequenos, a quem mostrava na cocheira como subir pela mastreação com cordas por amantilhos, asseguradas aos vaus do teto, sacudia-lhes a extraordinárias alturas e lhes ensinava os princípios básicos do cinquillo, além de levá-los a toda sorte de cantos curiosos dos áticos da casa (onde havia centenas de morcegos), as adegas e outros, pois nascera em Woolcombe e conhecia a casa e todos seus antigos cantos com perfeição.
Às vezes, se Philip os acompanhasse, subiam à carruagem com Diana, e nos dias de compra Sophie se unia a eles, mas só até o povoado ou até Dorchester, no máximo. Sophie não era uma mulher covarde (de vez em quando mostrava sobressalentes doses de força e coragem), mas tampouco gostava de velocidade; as quedas quando era menina, a teimosia dos pôneis e a inépcia dos amos, reunida em ocasiões à crueldade, faziam-na mostrar-se reticente à hora de montar. Em geral, não gostava dos cavalos, de modo que Clarissa era a acompanhante habitual de Diana, além do imprescindível cavalariço.
Stephen engoliu as decepções de maneira filosófica. Afinal de contas, nem mesmo ele havia começado a mostrar certo interesse pelos ratos campestres até completar os sete anos. Com respeito aos musaranhos, a pesar da esplêndida dentadura carmesim que alguns possuíam, era evidente que tinham certas características desafortunadas: não era o melhor mamífero pelo qual começar. Teria tempo de sobra para se dedicar aos musaranhos. De qualquer maneira, Catalunha, lugar onde confiava poder passar longas temporadas quando se firmasse a paz, era muito, muito mais rica em espécies animais. Já no que se referia à botânica, só teria que esperar até que começasse a primavera.
De modo que se dedicou a vagabundear sozinho, mais ou menos como fizera quando menino, dando uma espiada nos domínios do musaranho de rio (que encontrou a dúzias nos arroios do exido) e realizando um inventário aproximado das aves do lugar. Também teve ocasião de ler muito na nobre mas lamentavelmente descuidada biblioteca de Woolcombe, onde achou uma primeira edição das obras de Shakespeare, junto à Chronicle de Baxter, e a uma série completa do The Malefactor’s Bloody Register, mesclado com os Commentaries de Blackstone. Mesmo assim, passava algum tempo na Handand Racquet ou na Aubrey Arms, situadas no pequeno e triangular campo de gramado, observando a lenta e regular seqüência de uma vida que girava em torno da agricultura, enquanto consumia trago a trago sua cerveja. Não se sentia fora de lugar, pois os lugareiros sabiam que era o cirurgião do capitão Jack e, em ocasiões, aproximavam-se para fazer-lhe uma consulta ao ouvido. Tratavam-lhe com amabilidade, como a pessoa que sabiam estar de seu lado, assim como ao própio capitão, de modo que nunca ocultavam suas opiniões quando ele se encontrava presente. Não só o apreciavam por estar relacionado com o senhor do lugar e por suas pílulas, como por alternar sua presença, por incômoda que fosse, entre as duas pensões, e por evitar a Goatand Compasses, lugar mais pretencioso, propriedade de um dos partidários de Griffiths; e ainda que teve ocasião de escutar em ambas as tabernas coisas muito diversas, a opinião mais comum era a mesma: uma intensa oposição aos cercados, um ódio acérrimo pela pessoa de Griffiths e por seus guardas-florestais, a quem se tachava de ser valentões a soldo, e um intenso desprezo pelos propietários novos que ocupavam as terras do que fora em tempos o exido de Woolcombe; junto a um grande afeto pelo capitão Aubrey, apesar das dúvidas que tinham em sua habilidade de fazer algo que impedisse o desaparecimento de tudo aquilo que constituia seu modo de vida.
Tudo isto se viu confirmado quando teve oportunidade de perambular tranqüilamente pelo exido e o povoado em companhia do velho Harding. Este lhe falou da exata natureza e porte de todas e cada uma das pequenas propriedades e granjas (geralmente meramente de costume, toleradas por indulgência já fazia muito muito tempo, mas que careciam de um contrato legal por escrito), junto aos direitos que ostentavam sobre o exido. Nem Harding nem Stephen hospedavam pontos de vista sentimentais ou confusos com respeito à pobreza rural; ambos conheciam muito bem a sujeira, a miséria, a folgança, os pequenos furtos, a crueldade, a freqüente embriaguez e o nada infreqüente incesto que constituíam o pão de cada dia como para ter uma concepção idílica da vida dos pobres no campo.
- Porém, - disse Harding - é ao que estamos acostumados; e a pesar de todas suas pragas é melhor que ser simples caipiras, ou ter que entrar pela porta traseira do terratenente para rogar-lhe de joelhos uma jornada de trabalho e ver-se recusado. Não, nem tudo é um leito de rosas, mas com um exido comunitário um homem qualquer tem ao menos as rédeas de sua própia vida. Sem o exido, não é mais que o cachorro do terratenente. É por isso que apreciamos tanto ao capitão Jack.
E era verdade que o apreciavam. Em todo momento se mostraram amáveis e educados com ele, mas à medida que se ia aproximando o dia em que o comitê se reuniria em Londres, tornaram-se mais eloqüentes.
- Bendito seja, cavalheiro. O senhor nunca nos abandonará. - Gritos generalizados de: - Hurra pelo capitão Jack! Abaixo os cercados! - E também: - Abaixo as costeletas negras!
Todas estas mostras de entusiasmo acompanharam seus passeios através de Woolcombe, e aqueles propietários que haviam se posto do lado do capitão Griffiths não tardaram nada em afastar-se de seu caminho. As palavras pomposos e os empurrões não eram alheios ao fenômeno, inclusive se davam entre parentes. De fato, o povoado ressumava raiva e se intuía uma violência latente.
Isto se fez evidente um dia em que Stephen se encontrava sentado fora da Handand Racquet, com um lenço no colo cheio dos champinhons que colhera. Ouviu os cumprimentos e bençãos a distância, em Mill Street, antes de ver ao capitão Aubrey e ouvir-lhe dizer:
- Obrigado, William; mas onde diabo se meteu meu timoneiro? Onde está Bonden?
- Verá, senhor - titubeou William, melhor assustado, olhando ao redor para seus amigos com a vã esperança de que eles pudessem responder por ele. - Acho que se meteu na Goat. Um dos homens do capitão Dundas se dispoz a comprovar a beleza da moça que trabalha na taberna.
E assim havia sucedido. Mas nesse momento saiu acompanhado pelos homens de Dundas, todos eles empurrados violentamente por um bando hostil, encabeçada pelo chefe dos guardas-florestais de Griffiths.
- Que diabos sucede aqui? - rugiu o capitão Aubrey. - Alto, alto aí. Não me ouviram? Se querem briga, terão, mas nada de brigar como se estivessem bêbados em uma taberna.
O guarda-florestal estava muito aceso para dar uma resposta coerente, mas um de seus acompanhantes, um tipo magro que trabalhava para Griffiths na qualidade de escrevente, disse:
- Certamente, senhor. Onde queira e quando queira. Que lhe parece na próxima quarta-feira a noite, no Dripping Pan, com dez libras de por meio? Isso se seus homens concordarem, certamente.
Bonden consentiu com desprezo.
- Muito bem - disse Jack. - Agora voltem para suas casas. Não quero ouvir nem uma só palavra mais, ou me verei obrigado a romper a trégua que acabamos de combinar.
CAPÍTULO 3
Um sol lento e preguiçoso se alçou sobre Simmons Lea e iluminou os caminhos que percorria Ahab, a mula de Woolcombe, com George sobre os alforjes que faziam as vezes de sela de montar. Harding caminhava à esquerda, com a cabeçada na mão, e Brigid à direita, trotando e murmurando uma rápida sucessão de observações que se empilhavam umas às outras como os balbuceios da andorinha. George não só levava o jornal, pois esse era seu dever, como também a saca do correio de Woolcombe, tal como explicou ao chegar ao salão onde desjejuavam na casa.
- Bom dia, mamãe - cumprimentou sorrindo através da janela. - Bom dia, prima Diana; bom dia, senhor; bom dia, senhor; bom dia, senhor - disse a cada um dos presentes. - Ultrapassamos a Bonden e a Killick justo antes de chegar aos palheiros. O calesín se afundou no atoleiro de Willet e não sabiam como tirá-lo dali.
- Eu lhes disse que minha mãe o devolveria à estrada em um instante - exclamou Brigid, na ponta dos pés.
- De modo que também trouxemos o correio - disse George, levantando a saca.
- Eu a levei por parte do caminho, mas algumas cartas caíram. Oh, por favor, podemos entrar? Estamos tão famintos e temos tanto frio.
- Definitivamente, não - respondeu Stephen. - Vão à cozinha e peçam à senhora Pearce um pedaço de pão e um pote de leite.
O normal em Woolcombe era ler a correspondência na mesa, e Jack abriu a saca com certa ansiedade, temeroso também de encontrar o lacre do advogado ou algum outro documento oficial. Contudo, não havia correspondência nem para ele nem para nenhuma das damas, mas reconheceu o lacre negro do Almirantado em uma das cartas que passou para Dundas.
- Uma nota cordial de meu irmão - disse Dundas após um instante. - Diz que se soubesse que passaria tanto tempo em terra, teria me convidado para passar um ou dois dias com as perdizes em Fenton, e assinala que a estas alturas já seria muito tarde. O almirante assegura que nos convocará quando tenham reparado o Berenice, e que provavelmente convoque antes. Gostaria que me desse um barco decente, porque o Berenice é tão velho e frágil que range como um barco de papel. Qual a graça de ter um irmão como primeiro lorde do Almirantado, se nem ao menos me dá um barco decente?
Ninguém pôde achar uma resposta satisfatória, mas Sophie disse que era uma vergonha, Diana o considerou uma vileza, e Clarissa, que opinou talvez tarde demais, limitou-se a murmurar que estava de acordo com ambas.
- Desde que o almirante não me cite antes da sexta-feira, que é quando o comitê se reunirá - disse Jack após um tempo, - por mim pode agir como queira, e também pode dar-me uma chata como embarcação de apetrechos. - Era esta uma referência indireta ao verdadeiro navio de apetrechos do Bellona, a Ringle, uma escuna americana do tipo conhecido como clíper de Baltimore, propriedade privada de Jack, muito cobiçada pelo almirante dadas sua grande velocidade e qualidades marinheiras.
Após o desjejum, Stephen foi ver Bonden no quarto que ocupava atrás das cocheiras. Encontrou-o sentado com as mãos afundadas em uma bacia; Bonden explicou que estava curtindo os punhos para a briga da quarta-feira.
- Não é que possa conseguir que fiquem duros como cornos até lá - disse, - mas será melhor que ir com as mãos peladas, como as de uma senhorita delicada ou uma leiteira, brandas de creme e manteiga.
- Em que consiste essa substância que preparou? - perguntou Stephen.
- Vinagre, senhor, um chá muito forte e licor de vinho, mas também pomos um pouco de breu e resina. E hemostático de barbear, certamente.
- Pouco sei de brigas, ainda que sempre senti certa curiosidade por presenciar um bom encontro; contudo, tinha entendido que hoje em dia se empregavam luvas.
- E sim, senhor, para os combates de treinamento e para ensinar tão nobre arte aos cavalheiros, tal como se costuma dizer; mas para participar em uma briga séria de boxe, onde se aposta dinheiro, tudo depende dos nós dos dedos desnudos, oh, por Deus, sim. - Mergulhou os punhos na bacia, divertido.
- Poderia me familiarizar com os princípios básicos?
- Desculpe, senhor?
- Refiro-me a como se conduz uma briga: as regras, os costumes.
- Bem, primeiro se necessita de dois homens dispostos a lutar, quer dizer, um par que possa competir em pé de igualdade, e alguém que ponha o dinheiro para o ganhador. Depois é necessário encontrar um lugar apropriado, quer seja um pasto ou urzal, onde haja muito espaço e não apareça nenhum magistrado entrometido, disposto a prender-te por alteração da ordem ou por organizar uma reunião ilegal. Com tudo isso arrumado delimita-se um quadrilátero usando postes e cordas, ou deixa-se que os dois se peguem àvontade: separam-se à distância de um braço e brigam movendo-se em círculo. Eu pessoalmente prefiro o quadrilátero, porque se lhe nocauteiam ou se cai aos pés dos amigos do oponente pode receber uma boa dose de chutes, ou algo pior.
- Então se trata de um esporte violento.
- Bem, o que sei é que não é apto para mocinhas. Contudo, ferir os olhos do adversário, as mordidas e os chutes é proibido, assim como golpear abaixo da cintura ou atacar ao oponente quando está no chão. Claro que isso deixa espaço suficiente para algumas travessuras, como por exemplo fazer-se com a cabeça do adversário, tal como costumamos chamá-lo, ou seja, rodeá-la com o braço esquerdo e golpear-lhe com o outro punho até que caia ou fique cego. Outro ardil estupendo é agarrá-lo, jogá-lo ao solo com uma rasteira, e montar sobre ele para fazer-lhe todo o estrago possível, tudo isso acidentalmente, se o senhor me compreende, senhor. Oh, estava esquecendo. Outra das travessuras consiste em pegar a pessoa pelo cabelo e espancá-lo com fúria enquanto tem a cabeça baixa, o que se considera legal. Por isso que muitos dos boxeadores cortam tanto o cabelo hoje em dia, assim que tenho que esmerar-me na hora de fazer a trança e rodeá-la com uma bandagem. Killick se encarregará de apertá-la bem depois de cada assalto.
- Suponho que não considerará a possibilidade de cortar seu cabelo? Confesso que não me agradaria nada ver como seu oponente lhe pega pela trança e lhe obriga a dar voltas até destroçá-lo.
- Que? - exclamou Bonden; ao mover-se, sacudiu a comprida e grossa trança em cima da mesa. - Cortar a melhor trança a bordo? Dez anos de trança, tão longa que poderia sentar-me nela? E depois pensar naquele tipo da Bíblia e em sua má sorte quando lhe cortaram o cabelo. Por favor, senhor.
- Bem, a decisão é sua, certamente. Mas diga-me, como começa tudo?
- Os dois contendedores entram no quadrilátero com seus segundos, os das garrafas; o árbitro os apresenta: "Cavalheiros, este daqui é Joe Bloggs, de Wapping, e este outro é Myrtel Bough, de Hammersmith. Vieram enfrentar-se por um prêmio de (seja o que for) e que ganhe o melhor". Então os amigos de cada um assobiam, aclamam e gritam seu nome; às vezes os contendedores apertam a mão antes que o árbitro os mande de volta para seu canto, onde permanecem os segundos, e lhes recorde as regras e o tempo que se tenha estipulado para cada assalto, que costuma ser de meio minuto, ainda que alguns preferem três quartos de minuto. O árbitro traça a linha no meio do quadrilátero e diz: "Aproximem-se quando dê o sinal, e briguem até que um dos senhores seja incapaz de levantar o punho, antes de que se conclua o tempo".
- Não entendi bem o significado das palavras tempo e assalto. Estipula-se de antemão uma duração total para a briga, um número de ampulhetas, para entender-nos?
- Oh, não, senhor. Poderia durar até o Juízo Final se ambos tivessem forças e valentia suficientes. Só termina quando um dos dois não pode se levantar depois de um assalto, por mais que se esforce o segundo em revivê-lo, quer seja porque tenha morrido (tal como às vezes acontece) ou porque esteja tão aturdido e moído que não possa se levantar, ou porque tenha quebrado o braço (algo que também ocorre) ou porque não queira receber mais castigo.
- Peço que voltemos ao conceito do assalto, que ainda me intriga.
- Devo de ter explicado mal, porque na realidade é mais simples que um pai nosso. Um assalto é quando um homem cai aturdido ou o jogam ao solo, ou cai por não alcançar o oponente com o punho... Enfim, isso assinala o fim do assalto, que pode ter durado um bom tempo ou só um minuto. Nesse momento devem se retirar a seus cantos e se levantar de novo quando o árbitro mande.
- Compreendo, compreendo. De modo que é tão indefinido como uma partida de críquete, no qual um bom rebatedor poderia esgotar até o própio sol. E diga-me, Bonden, geralmente, quanto dura um combate?
- Bem, senhor, se qualquer outro cavalheiro me perguntasse - respondeu o timoneiro com seu sorriso singular de ganhador desdentado, - diria que dura o que um pedaço de merlín. Mas por ser quem é sua senhoria, responderei que três ou quatro assaltos, ou, digamos, um quarto de hora, tempo suficiente geralmente para dois tipos jovens, novos no negócio, dois tipos com valentia mas com pouco fôlego e menos ciência; mas se se trata de dois bons lutadores, que brigam por uma quantia apetetitosa ou por uma rixa com o oponente, com tipos com arrojo suficiente e muito fôlego, direi que poderia durar muito mais. Nas brigas da Armada vi a Jack Thorold, do Lion, e a Will Summers, do velho Repulse, golpear-se entre si durante uns quarenta e três assaltos que duraram pouco mais de uma hora. Quanto a mim, levei sessenta e oito assaltos e uma hora e vinte e seis minutos para vencer a Jo Thwaites para decidir quem seria o campeão do Mediterrâneo.
- Você me assombra, Barret Bonden. Supunha que era um caso de cinco ou dez minutos no máximo, como um duelo com espadim.
- Parece muito mais do que é; mas os de Londres estão acostumados a combates mais longos. Gully brigou com O Galo de Briga durante duas horas e vinte minutos; só o sexto assalto durou um quarto de hora. E Jem Belcher e Sam O Holandês estiveram a ponto de superar aos anteriores, mas seus segundos acordaram um empate. Certo que ambos poderiam ter seguido brigando, ainda que quase não se mantinham em pé, não viam nada e estavam tão machucados que suas mães não lhes teriam reconhecido.
- Oh, papai! - gritou Brigid em um tom tão agudo como o de um morcego, angustiada como estava. - Venha, rápido! Rápido! George está sangrando. - Então mudou para gaélico, que lhe era mais fácil, ofegando enquanto corriam, e lhe explicou que lhe dera um empurrãozinho para mostrar-lhe como o faziam os lutadores, e que em consequência disso o menino sangrava como um mártir. - Oh, ai de mim se George morre, que dor. Oh, que negrura infinita...
- Vamos, menina - disse Diana ao recebê-los, - nunca perca o controle. Jogou-lhe em cima do clarete, nada mais. Já está tudo arrumado. Eu o limpei e pus sua camisa para secar. Não esqueça, querida, que a água fria é a única coisa que pode empregar para deter uma hemorragia. Está tomando um pouco de leite com sidra na cozinha. Se correr muito, muito, você também poderá prová-lo. Stephen, querido, Jack está subindo pelas paredes. Está a quase cinco minutos esperando para levar-lhe para ver o lago. Ia agora mesmo atrás de você.
- Que Deus te abençoe, céu - exclamou Stephen, beijando-a. - Havia esquecido por completo.
No caminho para o extenso lago, onde aquele verão havia deixado ver um quebra-ossos e onde o frio inverno podia arrastar ao peculiar mergulhão do norte, viram o capitão Griffiths cavalgando ao longo de sua antiga vereda, olhando ao seu redor. Puxou as rédeas de seu cavalo ao vê-los surgir entre os arbustos.
- Maldita seja - disse Jack. - Não terá mais remédio que falar outra vez com esse tipo.
- Bom dia, Aubrey - disse Griffiths levando dois dedos à ponta do chapéu para cumprimentar Stephen, que fez o mesmo. - Alguma notícia da esquadra?
- Nada de nada.
- Surpreendente, com um vento tão forte e entabulado como o que temos do sudoeste, incapaz de rolar uma só quarta. Um barco poderia ancorar em porto desde Ouessant em apenas um dia... Contudo, fiquei sabendo que na quarta-feira se celebrará um combate entre seu timoneiro e meu guarda-florestal. O senhor o presenciará?
- Depende.
- Temo que não poderei ir. Tenho que ir à cidade para assistir à reunião do Comitê. O senhor irá?
- É muito provável.
- A pesar da maioria? Enfim... - disse sacudindo a cabeça. - Mas voltando à briga: interessa-me muito e estou disposto a respaldar meu homem com qualquer soma que o senhor queira estipular, indo a um sete por cinco.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Jack, - mas desta vez prefiro não apostar.
- Como queira, como queira. Suponho que sabe o que faz. - De repente, voltou-se de novo para seu cavalo. - Ainda que dizem por aí que quem não arrisca, não petisca.
Na quarta-feira voltaram à margem mais distante do lago, mais longe do que Dundas queria andar até que não chegasse o antídeo; enquanto, Jack se propôs a reparar um esconderijo de caça situado na borda de um leito de juncos, de tal maneira que praticamente não pudesse ser distinguido de outros, tal como Harding lhe ensinara há tantos anos.
- No outro dia aquele tipo disse não sei o que sobre os riscos. Não poderia lhe dizer o pusilânime que me sinto neste momento, quando paro para pensar que uma desafortunada queda por parte de um só desgraçado cavalo, uma roda que se desprenda do carro postal, um amigo extraviado, qualquer dessas costures poderia atrasar minha chegada a Londres, vamos, que não chegaria a tempo de comparecer à reunião do comitê na sexta-feira. Hoje não penso mover-me muito; amanhã cavalgarei com a mente limpa e o pulso firme e tranqüilo. Nem sequer fui olhar Dripping Pan. Estou me mantendo perfeitamente calmo. Mesmo assim, não sei por que, mas... - Ficou em silêncio por um tempo e, depois, no tom que se emprega para citar um aforismo, acrescentou: - O coração tem motivos que... Que...
- Os rins? - sugeriu Stephen.
- Que os rins desconhecem. - Jack enrugou o cenho. - Não. Raios e trovões, não são os rins. Mas seja como for, o coração tem seus motivos, compreenda.
- Entendo que é um órgão singularmente complexo.
- E me sinto inquieto por uma grande variedade de coisas. Diga-me, Stephen, achou algo estranho no modo como aquele tipo falou?
- Tive a impressão de que se mostrou mais falso que da vez anterior; e me surpreendeu muito que insistisse tanto no fato de que o vento fosse tão entabulado para a esquadra que realiza o bloqueio. Se não me equivoco, a relação que tem com o capitão Griffiths não é tão estreita para que vá lhe ver só para perguntar se há notícias.
- Não, certamente que não. Observamos as mostras mínimas de educação, isso é tudo. Nada de trocar convites, ao menos desde que ao voltar para casa disse que só por cima de meu cadáver aceitaria seu plano dos cercados, e que não só não firmaria, como me oporia à petição com todos os meios a meu alcance.
- Isto afeta a nosso almirante, lorde Stranraer? Quer dizer, no que concerne a você?
- Não saberia dizer. Quase não o conhecia antes de que me destinassem ao Bellona sob seu comando. Porém, tal como lhe disse, parecia mais que disposto a que eu o desagradasse desde um bom princípio, como conservador, como marinheiro e parlamentar, e por ser filho de meu pai.
- Outra pergunta, Jack: depende deste plano uma forte soma de dinheiro?
- Não pensei detalhadamente nisso, mas diria que com o tempo sim. Terão que gastar uma soma considerável para cercar com cerca, na abertura de valas, na drenagem e, sobretudo, em limpar as terras, ainda que alguns terrenos do exido, trabalhados por pessoas de recursos, conseguiriam colher um bom trigo, além de conseguir uma boa terra para o cultivo; e com canais que atravessem a terra úmida mas baldia, conseguiriam uma pasto sem igual em questão de alguns anos. Após um tempo, imagino que toda a operação renderia suculentos benefícios e teriam feito um grande negócio.
- Do tipo de negócio capaz de empurrar um homem a adotar medidas extremas?
- Acho que há em jogo algo mais que o dinheiro. Por um lado, a elevada posição de um homem que desfruta de milhares de acres dispostos em extensos campos com cerca e canais, paisagem ideal para todo tipo de caça, incluída a de mosquete, se é que se pode desfrutar de verdade caçando desse modo. Porém, sobretudo, uma paisagem habitada por um punhado de terratenentes-granjeiros, inquietos por seus contratos de arrendamento, e por uma multidão de respeitáveis caipiras que não têm mais remédio que fazer o que se lhes ordena, e aceitar o que lhes ofereça se quiserem trabalhar. Um homem nessa posição desfruta de um poder autocrático igual ao de um capitão de barco, mas sem a solidão, a responsabilidade, a violência por parte do inimigo e os perigos do mar. Acrescente a isso o prazer de conseguir o que se quer apesar do que os outros digam. E ainda realmente acreditam que tudo é pelo bem da região, ou disso se convenceram.
- A julgar pela reputação de Stranraer, diria que seu amor pela região, por uma elevada posição e, indiretamente, por uma considerável soma que poderia acrescentar a sua fortuna, levar-lhe-ia a pôr de lado a moralidade em favor de um bem maior?
- Não me atrevo a dizê-lo. Eu o conheço muito pouco. Na Armada tem reputação de ser bom marinheiro e um estrito disciplinador, mas acho que em geral goza de popularidade entre a marinharia. Teve poucas ocasiões de demostrar sua coragem, ainda que até o momento nunca tenha sido posta em dúvida. Recordará, Stephen, que mesmo agora, depois das reformas de Mulgrave, um almirante ainda embolsa um terço do dinheiro do butim obtido pelos capitães que tenha sob seu comando, por muito que se encontre sentado no porto, a mil milhas de distância do combate. Desse modo, se o almirante desfruta de alguns capitães de fragata empreendedores, não tarda em ficar rico.
- Diabólico, diabólico. Claro que quando hasteie sua insígnia o considerará de outra maneira.
Jack o olhou de soslaio, antes de continuar:
- Pois bem, eu lhe dizia isso porque antes da recente maré de dinheiro vivo de butim que lhe chegou sendo oficial do Estado Maior, Stranraer não desfrutava de uma posição tão abastada; dizem que, mesmo agora, sua mesa é modesta. - Considerou o caso um instante e acrescentou: - Não. Pelo que sei dele, não diria que é do tipo de homem que pensa que o fim justifica os meios. Ainda que, para dizer a verdade, Stephen, quanto mais velho fico, menos confio em minha capacidade para julgar aos outros. Já me equivoquei tantas e tantas vezes…
- Mesmo eu cometi erros. - Stephen sacudiu a cabeça com melancólica expressão. Contudo, Jack tinha a atenção em outra parte. Erguido em todo seu comprimento, tinha a mão atrás da maltratada orelha.
- Ouve isso? - perguntou. - Estão cravando os postes em Dripping Pan, para o quadrilátero.
Uma vez encerrado o rápido almoço em Woolcombe, os homens tão somente permaneceram sentados o suficiente para consumir uma taça de vinho do porto.
- Philip, seria tão amável de desculpar-nos ante as senhoras? - perguntou Jack a seu irmão. Contudo, antes de que o garoto pudesse responder-lhe, acrescentou: - Maldição, não. Irei eu mesmo.
- Senhoras - disse já no salão, - peço que nos desculpem. Stephen e Heneage estão tão impacientes que não posso detê-los; se o fizesse, faltaria a meu papel de anfitrião. Dizem que seria uma descortesia para com a nobre arte perder-se a primeira troca de golpes. De qualquer maneira, o doutor deve estar presente, para o caso de precisar ressuscitar algum morto.
- A julgar pela rapidez com que se levantaram da mesa - disse Diana, quando a porta se fechou apósa saída de Jack, - surpreende-me que tenham nos permitido terminar nossos pratos.
- Pelo menos poderemos beber o café em paz - disse Sophie, - ainda que antes tenho que trocar o vestido. Se não esfrego agora mesmo esta mancha, não sairá nunca. Depois poderei fazer tricô com a consciência tranqüila.
- Ai, como desfrutam com essas brigas - disse Diana quando Sophie voltou para a sala. - O coronel Villiers, com quem vivi na Irlanda quando Stephen esteve fora, recorda-se de quando veio visitar-nos, Clarissa?
- Certamente que sim. Um magnífico ancião cavalheiro, e que amável.
- Sim, mas também muito frágil. Apesar de tudo, ele e seu igualmente ancião amigo dos tempos que passaram juntos na Índia conduziram cerca de quarenta milhas para presenciar um combate entre dois conhecidos lutadores, Porco Ikey e Tonto Burke. Voltaram muito alegres, praticamente afônicos de tanto gritar.
- Quarenta milhas são muitas milhas... - começou a dizer Sophie.
- Peço que me perdoe, senhora - disse a cozinheira, uma mulher gorda que havia ganhado importância na casa ao ser convertida por Sophie em sua própia governanta. - Resulta que a bomba da cozinha não funciona; e sem água, como vou cozinhar o pudim do capitão. Para não falar da sobremesa do senhor Philip, que ultimamente se afeiçoou ao rocambole.
- Por que não funciona, senhora Pearce? - perguntou Sophie, alarmada. - Estou segura de que a estas alturas o poço não terá secado.
- O pino quebrou - respondeu a senhora Pearce, com os braços cruzados.
- E como ocorreu tal coisa?
- Não sou das que vão por aí falando pelos cotovelos, senhora, mas me ocorre que talvez alguém tenha se pendurado no tirador, apesar de que uma lhe advertiu de que não fizesse travessuras.
- Oh, compreendo - disse Sophie. - Bem, vá buscar a um homem que troque o pino.
- Pelo amor de Deus, senhora - replicou a senhora Pearce, - mas se não resta um só homem em toda a casa, nem no jardim nem no pátio. Inclusive o ancião Harding se foi, apesar dos joanetes, para ver essa horripilante selvageria de briga.
- Oh, vamos, não acredito que seja para tanto - exclamou Sophie.
- Senhora, asseguro uma coisa: é pior. Esse guarda-florestal, a quem chamam de Negro Evans, deu tamanha surra em nosso pobre Henry William por uns pocos coelhos, que nunca há voltou a ser o mesmo homem desde então. E sua mulher diz que nunca o será. Dizem que essa criatura do Belzebu estava em condições de enfrentar-se ao mesmíssimo Tom Cribb, mas se viu impedido por brigar sujo e sacar um olho do adversário, o olho direito. Henry, o ajudante do ferreiro, sofreu um tropeço com ele, ai, Deus meu! - A senhora Pearce trabalhava na casa desde antes de Sophie nascer; era uma mulher valiosa, boa cozinheira, mas volúvel, muito volúvel, e passou um tempo antes de que Sophie detivesse a sangrenta narração do sucedido e a convencesse de que se arrumasse com a bomba da vacaria, até que os homens voltassem e consertassem o pino que havia quebrado. - Muito bem, senhora - disse. Contudo, ao deter-se de novo com a maçaneta da porta na mão, acrescentou: - Só desejo que não tragam ao senhor Bonden inconsciente e feito um farrapo ensangüentado, como se passou com o pobre Hal.
Finalmente a porta se fechou. Sophie pegou o tricô, assim como o fio condutor de seu discurso anterior.
- Sim, realmente acho - disse. - Quarenta milhas são muitas milhas. Mas quando penso na distância que Jack terá que percorrer esta noite e todo o dia de amanhã... Oh, quanto desejaria que tudo tivesse acabado.
- Passará boa parte do trajeto no carro postal - disse Diana. - E embora não seja uma plumagem, certamente que almadiçoo as plumagens, porque me agrada ter algo realmente duro embaixo do traseiro...
- Diana! - exclamou Sophie ao mesmo tempo que se ruborizava profundamente e dedicava uma olhada inquieta para Clarissa, que, para alívio dela, não atraiçoou emoção alguma. Clarissa era uma inteligente costureira, e estava atenta ao trabalho. E seu passado tinha tal natureza que não prestava atenção a palavras licenciosas, ou seja, que não lhe impressionavam nem um pouco.
-... E um homem que possa dormir a bordo de um barco de guerra em uma tormenta, pode dormir sem maiores problemas em um carro postal. De qualquer maneira, não acho que demore tanto como você diz. Recordo-me que o capitão Bettesworth me explicou uma vez que quando esteve ao comando do Curiex, um bergantim que levava despachos, fundeou em Plymouth em sete de julho pela manhã e chegou ao Almirantado às onze da noite do dia oito. E Plymouth dista quase oitenta milhas a oeste de onde nos encontramos. Não se lamente pelo pobre Jack, querida. Hoje em dia, em uma estrada em condições se podem fazer maravilhas em um carro postal. Um carro postal... - Fez uma pausa, dado que precisamente nesse momento entrou no pátio um carro postal puxado por quatro cavalos, acompanhados pelo clip-clop de cascos e o estrondo dos arreios. Um jovem alto vestido com o uniforme da Armada saltou da carruagem com uma carta na mão. - Deus meu - exclamou Diana, - mas é Paddy Callaghan, do navio de apetrechos.
- Que navio de apetrechos?
- O do Bellona, certamente, boba. A Ringle.
- Oh, Senhor - disse Sophie baixo, em um tom de autêntico horror, - e aqui estou eu com a cabeça ao descoberto. E com este triste vestido amarelo. Tenha a amabilidade de entretê-lo por cinco minutos, que voltarei com algo que pareça mais ou menos cristão.
- Não se preocupe por isso - disse Diana. - Já sei a que veio. Eu o receberei no pátio.
Saiu correndo em direção ao saguão, e chegou à porta antes que o criado.
- Bom dia, senhor Callaghan - cumprimentou Diana, de pé nas escadas. - Que bons ventos o trazem por aqui?
- Tenha muito bom dia também, senhora. Vento do sudoeste de duplo rizes, isso é - respondeu o jovem, cujo rosto de expressão ingênua (não muito distinto em forma ao de um presunto) exibia um sorriso de orelha a orelha. - Quanto me alegro de vê-la. Espero que o doutor esteja bem. Trago ordens para o capitão Aubrey - disse estendendo-lhe um envelope avultado, - e as trouxe rápido como um pássaro. É a primeira vez que subo em uma carruagem puxada por quatro cavalos. O capitão Jenkins insistiu em que a Ringle poderia aproveitar a maré; dispomos de pouco tempo antes de partirmos. Aguarda ancorada com uma só âncora em West Bay.
- Ai, meu pobre senhor Callaghan, o capitão Aubrey foi a Londres para solucionar um importante negócio relacionado com o governo. - Desceu as escadas e acrescentou: - Mas se me entregar a carta lhe prometo que a terá em suas mãos assim que volte. Desculpe-me se não me mostro hospitaleira, mas acho que o senhor deveria subir de imediato à carruagem e voltar depressa a West Bay, de modo que o navio de apetrechos possa reunir-se com seu barco sem desperdiçar essa maré. Não há um minuto a perder.
O jovem, segundo do piloto, pareceu confuso, preocupado, profundamente inseguro; ela pegou o avultado envelope de sua mão, animou-lhe a subir de novo ao carro postal e disse:
- Faça uma ampla curva, postilhão, e sairá sem necessitar de mais manobras. Senhor Callaghan, dê lembranças ao capitão Jenkins, se é tão amável.
E enquanto o carro postal traçava uma ampla curva até sair pelo pórtico, Diana permaneceu de pé nas escadas, com o envelope na mão.
- Diana - disse escandalizada e em voz baixa Sophie, desde o umbral do saguão, - como pode dizer-lhe isso? Sabe perfeitamente que Jack está em Dripping Pan.
- Acompanha-me à sala, querida - respondeu Diana; uma vez dentro, a porta fechada, acrescentou: - O navio de apetrechos traz ordens para que Jack regresse de imediato a bordo de seu barco. Ele ficaria com o coração destroçado se perdesse a reunião do comitê e o exido.
- Mas nunca nos perdoará que lhe mintamos.
- Não, querida - replicou Diana. - Agora o primeiro que devemos fazer é enviar uma mensagem dizendo-lhe que não volte para casa, mas que vá direitinho a Wooton para pegar o carro postal.
- Não disponho de ninguém a quem possa enviar - disse Sophie. - Não poderia enviar a nenhuma das criadas, com a caterva de gente que se terá reunido lá. Há uma tribo inteira de ciganos; e tanto a Aubrey Arms como a Goat passaram a noite toda carregando barris de cerveja.
- Eu irei - Clarissa se ofereceu. - Não chamo a atenção tanto como vocês duas, e quando alcance a multidão poderei chamar alguns dos nossos para que se aproximem até onde esteja o doutor. Usarei botinas e uma velha pelerine.
Diana e Sophie a observaram um instante em silêncio.
- Leve a Grim, por favor - disse finalmente a senhora da casa, inquieta e envergonhada.
- Sim, mas que leve com a focinheira posta - disse Diana, que havia visto o cachorro atacar um estranho. - Eu me encarregarei disso enquanto se prepara. - Disse isso sem peso de consciência, dado que, tanto na casa como no povoado, Clarissa era considerada como um membro a mais da família; sua presença em Dripping Pan não chamaria tanto a atenção, seu plano era o melhor que havia e, ainda que Diana não se sentia orgulhosa de si mesma, respeitava a Clarissa pela decisão que tomara.
- Não se assustará ao ver-se entre tantos homens rudes? - perguntou Sophie quando Clarissa voltou à sala.
- Não. Pelo que vi, além da força bruta, não são mais do que nós possamos ser. Menos, de fato, pois muitos fazem honra à frase de que o cachorro ladrador é pouco mordedor, muito ao contrário de nós.
Força bruta foi a primeira impressão que Stephen teve do combate. O árbitro, conhecido taberneiro de Bridport e antigo pugilista, reuniu aos contendedores no meio do quadrilátero: Ambos usavam apenas ajustados calções de linho à altura do joelho, e escarpins; permaneceram de pé, um de cada lado, Bonden moreno de navegar e um pouco mais alto que seu oponente, com a trança enrolada ao redor da cabeça (não haviam permitido a bandagem por considerá-la uma proteção). Evans era mais largo de ombros, mais forte, com a pele pálida de um cadáver, exceto lá onde a tinha coberta de cabelo negro. Não haviam desfrutado de tempo para treinar, mas ambos se achavam em boa forma, eram homens fortes, grandes. O árbitro falou seus nomes, coreados por seus partidários, e, depois de dizer as rituais palavras a voz em grito, ordenou que fossem para seus respectivos cantos, fez uma marca com giz no baixo gramado, retirou-se para trás das cordas e disse:
- Que dê começo o combate, cavalheiros, e que ganhe o melhor. - Aos vivas a favor e em contra de todos os ali reunidos (a maioria adultos e meninos, procedentes de, pelo menos, os sete povoados dos arredores e das granjas próximas), os pugilistas fecharam um sobre o outro.
Não fizeram gesto de apertar-se a mão. Observaram-se fixamente durante um instante, com leves fintas de cabeça e cintura, e, exatamente no mesmo momento, trocaram uma série de duros golpes dirigidos à cabeça e ao corpo, a maioria dos quais foram bloqueados, e depois fecharam distâncias enquanto punham a prova o peso e a força do oponente.
- Parece-se mais a um combate de luta que a qualquer outra coisa - opinou Stephen. Jack, Dundas, Philip e ele permaneciam sentados em uma ladeira, atrás do canto correspondente a Bonden. - Olhe, esse sujeitinho peludo acaba de pegar Bonden pelo braço.
- Tenta jogá-lo ao solo - disse Jack.
E assim foi. Uma argúcia mortífera que não resultou em nada, pois Bonden moveu a cintura e jogou Evans para frente, que caiu de bruços.
- Pule em cima dele com todas suas forças! Chute-o as bolas! - gritaram os partidários de Woolcombe de ambos os lados de Jack, situados atrás deles na colina; mas Bonden se limitou a assentir e, com um sorriso, aproximou-se de seu canto, onde se sentou na coxa do da garrafa (Tom Farley, antigo companheiro de rancho, um dos marinheiros que haviam acompanhado ao capitão Dundas), enquanto seu segundo, Preserved Killick, limpava o sangue de seu rosto com uma esponja, resultado de um golpe sem importância que lhe abrira a sobrancelha. Respirava aceleradamente, mas parecia satisfeito e sereno quando o árbitro deu por terminado o descanso e se levantou tão brioso como seus amigos podiam desejar. Enfrentou Evans, a quem já superou a guarda, esquerda e direita à frente e orelha, golpes que o pugilista suportou com aparente indiferença, ainda que lhe fizeram gaguejar e fizeram brotar uma surpreendente quantidade de sangue de seu rosto. De novo fechou Evans, e de novo se produziu uma longa e confusa pugna por fazer-se com o controle, até que Bonden, finalmente liberado, retrocedeu de um salto e fechou um passo, golpeando-lhe com tudo o que deu seu braço esquerdo, soco que teria dado por concluída a briga se tivesse alcançado Evans. Mas surpreendentemente rápido para um homem tão pesado, Evans se desviou seis polegadas para a esquerda e Bonden, que escorregou na verde grama, caiu diante das risadas dos partidários de seu oponente presentes em Dripping Pan, onde os amigos do guarda-florestal e os arrendatários mais servis do capitão Griffiths tomavam assento com os hereditários oponentes de Woolcombe, os homens que viviam em Holt, Woolcombe Major e Steeple Munstead.
Não foi senão até o terceiro e, sobretudo, até o quarto e quinto assaltos que Stephen começou a compreender que algo mais que a força bruta tinha um papel preponderante no combate. Ambos contendedores haviam recebido o seu e estavam malferidos. Ainda que Bonden se movia mais rápido e tinha mais ciência, os golpes de Evans, sobretudo os golpes que dirigia ao corpo, eram muito mais duros. Houve um momento em que ambos permaneceram frente a frente no meio do quadrilátero, golpeando-se mutuamente com uma força e uma rapidez extraordinárias, ainda que se apercebeu de que quase todos os golpes cujo percurso pôde seguir foram desviados pelas correspondentes guardas. Teve a impressão de que, apesar da aparente confusão de braços e punhos, em conjunto não diferia muito de um duelo a espada com sua quase instantânea antecipação de ataques, respostas, paradas e relampejantes contra-ataques.
Estava ali sentado enquanto os via dar círculos um ao redor do outro, manobrar, empreender uma chuva de golpes, fechar e travar-se muito juntos, ou separar-se para voltar ao ataque. Observou-os à luz de um céu coberto no alto, lutando entre o estrondo dos partidários (poderia ter-se encontrado na areia de uma pequena povoação romana de províncias) e ele também estava tão tenso como o que mais, enquanto animava a seu velho amigo e companheiro de rancho a dar o todo o possível e ganhar a mão. Gritava com uma voz que quase não podia escutar, dado o enorme estrondo que proferia o público.
Dois longos assaltos, que quase duraram dez minutos cada um, e no seguinte tudo terminou com um golpe dos que deixam fora de combate ao mais hábil, os primeiros dois a favor de Bonden; contudo, nenhum deles era um aturdidor de raça, ainda que o da garrafa de Evans teve que ajudá-lo a voltar ao seu canto depois do segundo golpe. O terceiro se produziu depois de uma confusa esfrega na qual Evans fechou, dando uma rasteira em Bonden, que caiu para trás. Evans se jogou sobre ele e, entre uivos de desaprovação, caiu ali onde os joelhos podiam fazer-lhe mais estrago. Ante os gritos e berros de "trapaceiro" ambos árbitros trocaram olhares e se voltaram depois para o árbitro principal, que concordou com um deles que o combate devia continuar, ainda que sacudiu a cabeça ao dizê-lo. Killick e Farley levaram Bonden para seu canto, reviveram-no tão bem como lhes foi possível, e quando se deu por esgotado o tempo se levantou, disposto a seguir brigando com brio.
A estas alturas ambos estavam marcados. Evans tinha tanto o rosto como as orelhas ensangüentadas, e o olho esquerdo praticamente fechado. Mas Bonden, ainda que o acusasse menos, sofrera um duro castigo durante as esfregas corpo a corpo e, a julgar por sua atitude e respiração, Stephen achou que podia ter duas ou três costelas fraturadas. Também acusaram a falta de prática e, como fruto de um acordo tácito, ambos fecharam antes no assalto seguinte, não tanto para golpear-se mas para tentar jogar ao adversário em uma manobra que se perfilava decisiva, ou, pelo menos, para dispor de um respiro. Estavam a quarenta minutos brigando, e Stephen os vira ofegar em seus cantos entre assalto e assalto, surpreendido de que tivessem tanto fôlego. Dado que não estavam muito em forma, ambos quase caiam de puro cansaço, e Bonden tinha completamente pelados os nós dos dedos.
Durante esta lenta, laboriosa e esforçada dança o sangue da testa velou os olhos de Bonden, que se deixou levar para a parte oposta, quase até as cordas de um dos cantos neutros, onde Evans o ocultou dos árbitros com seu corpaço. Ali percebeu uma troca repentina na tensão dos braços, um grunhido distinto, e o joelho de seu oponente desabar na entrepernas. logo depois se afastou antes de que o outro pudesse continuar, e Evans ficou com os braços pendurados, lançou-lhe dois golpes terríveis, que ficaram um pouco curtos por Bonden estar contra as cordas, apesar disso lhe alcançaram igualmente em pleno rosto. Teve a sensação de perder os dentes, ouviu um grito animal, mistura de dor e de raiva, e se viu empurrado para trás de novo contra as cordas por um corpo sudoroso, peludo e pesado. O outro, que o tinha bem agarrado, introduziu sua cabeça sob a corda superior; agarrado como estava pem sua cabeça sentiu que lhe arrancavam o cabelo e, ao voltar ao quadrilátero para continuar a briga, Evans o pegou com ambas as mãos pela trança e com todas as forças que lhe restava o jogou contra o poste do canto, caindo por sua vez atrás dele devido à inércia.
No silêncio que seguiu ao enorme estrondo, os segundos levaram seus respectivos pugilistas aos cantos; enquanto que os amigos de Evans conseguiram pô-lo em pé e levá-lo com passo vacilante, quase inconsciente, meio cego, à marca correspondente quando se deu por concluído o tempo, nem Killick nem Farley conseguiram o mesmo com Bonden.
Este jazia estendido de costas, com o rosto para o plácido céu. Stephen, ajoelhado sobre ele, disse:
- Não tema, Jack. Ele sofreu um golpe terrível, verdade, mas não há fratura. O coma poderia durar entre umas horas e alguns dias, mas dentro de nada, mediante Deus, recuperará seu timoneiro. Killick, vamos, poderia improvisar umas padiolas? Temos que levá-lo para casa e deixá-lo descansar a escuras.
A suas costas havia estourado uma briga entre os homens de Woolcombe - que juravam e perjuravam que aquele golpe não fora legal - e a agora inquieta minoria formada pelos amigos do guarda-florestal e seus partidários. Mas Killick e um pastor haviam trazido umas padiolas, de modo que a entristecida comitiva regressou caminhando para Woolcombe House, sem intrometer-se na refrega.
- Foi um combate justo? - perguntou Stephen em voz baixa, quando tinham percorrido um trecho.
- Homem, tanto como justo... Acho que sim - respondeu Dundas. - Cavalheiro Jackson agarrou a Mendoza pelo cabelo quando o venceu no ano de noventa e sete, e... aquela dali que se aproxima pelo caminho com o cachorro não é a senhora Oakes?
Realmente era. E certos indícios: sua atitude um pouco titubeante, o improvável que resultava o fato de que tivesse preferido caminhar, e muitas coisas mais quase não definíveis, bastaram para despertar o interesse do agente de inteligência que Maturin levava dentro. Aproveitando que quem levava as padiolas iam mais lentos, apertou o passo para ser o primeiro a saudá-la. Clarissa confiava nele sem reservas e lhe explicou exatamente o que sucedia, para o que só teve que recorrer a dez palavras.
- Quer que me encarregue disso? - perguntou Maturin. Ela assentiu e foi reunir-se com os demais. - Jack - chamou a certa distância. - Lamento ter que informar-lhe de que deve de ter havido algum mal-entendido, porque o carro postal que compartes com o senhor Judd se encontra em Wooton neste momento. O senhor Judd lhe roga que se reúna diretamente ali com ele.
Jack nem sempre se mostrava rápido na hora de captar as compridas anedotas de Stephen, mais elaboradas e amiúde cheias de mitologia, mas conhecia intimamente a seu amigo (até o ponto de ser capaz de interpretar certas olhadas melhor que muitos outros homens), acreditava recordar que o senhor Judd era um dos arquivistas mais veteranos de Whitehall e, sem titubeios, respondeu:
- Raios e trovões, devo partir de imediato. - E, ao voltar-se para Clarissa, disse: - Muito obrigado por ter vindo. Por favor, peço que transmita todo meu amor a Sophie e que lhe diga que lamentaria muito que semelhante mancada fosse coisa minha, e me atreveria a assegurar que foi assim.
- Eu lhe acompanharei um estádio - disse Stephen. - Não mais, pois devo atender a meu paciente.
Enquanto percorriam o estádio familiarizou a Jack com as notícias.
- Que Deus abençoe a Diana - exclamou Jack. - E à a senhora Oakes, excelente mulher como nunca se viu. Estou convencido de que Sophie também teria reparado nisso com o tempo, porque não carece de têmpera, nem tampouco de opinião, mas talvez não seja tão rápida como Diana. Tinha que tomar uma decisão rapidamente. Benditas sejam. Não perderia essa reunião do comitê nem por todo o ouro do mundo. A estas alturas da guerra, não me tira em absoluto o sono isso de servir no bloqueio três ou quatro dias a mais. - Fez uma pausa. - Mesmo assim, o que não daria eu para não ter que partir depois deste condenado má sinal. De sério lhe digo que uma coisa assim embaça o ânimo de qualquer um. Esse guarda-florestal estava a ponto de cair, não teria agüentado nem um assalto mais. E inclusive se tivesse se levantado na marca, Bonden tão somente teria que tê-lo empurrado para deixá-lo estendido no piso.
Stephen sabia de sobra o inútil que era discutir sobre sua fraqueza pela superstição. Nenhum marinheiro dos muitos que havia conhecido, nem sequer o mais eminente, nem um almirante que exibisse com orgulho a glória de seus galões dourados, teria cedido uma polegada ante a razão, por mais eloqüente que ele pudesse mostrar-se. Portanto, Stephen se deteve e disse:
- Adeus, querido Jack, e que tenha toda a sorte do mundo. Devo acompanhar ao meu paciente.
- Não teme por ele, Stephen? - perguntou Jack ao mesmo tempo que o olhava fixamente.
- Graças a Deus, não. Ao menos por agora.
- Uma última coisa. Você acredita que pretendem estragar-me?
- Não conheço essa expressão.
- Claro que não. Peço que me perdoe. É gíria, eu a ouvi pela primeira vez quando criava cavalos em Ashgrove. A ralé que perambula pelos estábulos das corridas, por Newmarket e esse tipo de lugares a empregam quando se referem a estragar a um cavalo para que não corra bem, e se possa apostar em outro com conhecimento de causa de que o cavalo perderá a corrida. Havia um estragador de nome Dawson ao qual enforcaram por isso não fará muito. O que deveria de ter dito é: acha que Griffiths e seu tio, nosso comandante, arrumaram a ordem de que subisse de imediato a bordo, com o objetivo de impedir que compareça à reunião do comitê?
- Não me surpreenderia vindo de Griffiths; mas dado que nunca vi o lorde Stranraer na vida, não posso ter uma opinião sobre ele.
- Certamente. Era uma pergunta estúpida. Espero estar de regresso na sexta-feira, tomar o carro postal para Torbay no sábado, onde creio que encontraremos uma embarcação pertencente à esquadra que possa levar-nos a ambos, talvez no domingo. Sempre ancoram em Torbay, sabia?
- Então, até a sexta-feira. Que Deus e são Patrício estejam contigo.
Existem poucos santos que sejam mais versáteis que São Patrício, e conseguiu cumprir com seus deveres parlamentares e a viagem de volta, ao menos até a última parte, porque um dos cavalos perdeu uma ferradura justo nos arredores de Truggets Hatch, povoado de onde poderia avistar Woolcombe se não fosse pela colina que se erguia entre ambos. Ali, os da posta aguardaram na Testa do Rei e na Oito Sinos; enquanto o ferreiro esquentava a forja, Jack tomou lugar no balcão e pediu uma jarra de cerveja.
- Bem, cavalheiro - disse o propietário enquanto limpava uma mesa, - permite-me o atrevimento de... - Conhecia bem a Jack; tinha uma irmã casada com um habitante de Simmons Lea, de modo que era parte interessada no sucedido; apesar disso, titubeou até ver assomar da jarra o rosto sorridente do capitão Aubrey, com a expressão inconfundível de quem viu um desejo satisfeito. - O atrevimento de perguntar-lhe se tudo saiu a seu gosto.
- Senhor Andrews, não poderia ter-me saído melhor. A petição de cercamento foi recusada por contar com uma maioria insuficiente, mas sobretudo pela direta e argumentada oposição do senhor do lugar. De modo que o exido está a salvo e podemos seguir adiante com nossos costumes.
Comprazido, o propietário riu com descontração e, depois de limpar a mão nos calções, estendeu-a em direção a Jack.
- Muitas felicidades por sua vitória, senhor. Bastará com isso para que os costeletas negras lhes saia um terçol. Os garotos atravessaram aqueles matagais que protegiam ao faisão depois de celebrada aquela condenada briga suja, e me atreveria a dizer que quando se informem disto a empreenderão com o cervo. Oh, senhor, posso contar a Tom, o filho de minha irmã Hawkins? Será um alívio tremendo para ela. Estava muito inquieta, delgada, olheiruda e pálida porque não tinha um pedaço de papel que demonstrasse que era dona do lugar, e de nada lhe teria servido que houvesse dúzias de Hawkins enterrados no cemitério. - Pôde ouvir-se sua voz desde a parte posterior da casa. - Tom! Tom! Tom! Sela o rocim e diga a sua mãe que não se preocupe. O capitão deu um bom puxão de orelhas nesses maricões.
Apesar do rocinante de Tom não ser precisamente Flying Childers, cavalgou a seu própio, curioso e inominável passo, com a barriga muito perto do solo, rápido de cascos, até alcançar Woolhampton muito antes de que o ferreiro de Truggets Hatch tivesse ferrado ao cavalo da posta, de modo que quando Jack chegou a Woolhampton lhe esperavam, alinhados de ambos os lados da rua, os habitantes do lugar, que lhe receberam com aplausos de alegria. Muitos deles desejavam apertar sua mão, outros lhe disseram que já sabiam que a coisa acabaria bem. A maioria se contentou em uivar: "Bem pelo capitão Jack" ou "Hurra, hurra, hurra". E quando chegou a Woolcombe House encontrou toda sua família e os serviçais, dispostos nas amplas escadas, como o quadro vivo formado por os atores ao finalizar uma obra representada em Drury Lane, uma obra com final feliz, exceto que nenhum teatro que se apreciasse teria tolerado a um casal de crianças tão descuidados como Brigid e George. A pequena havia herdado a atitude audaz que seus pais tinham pelos cavalos, e estivera ensinando a seu primo como devia limpar o estábulo, em cujo interior tão esplêndido casal passara todo o tempo que o doutor Maturin não dedicava a passear pelo campo. Depois de repartir beijos entre as damas, Jack apertou a mão vendada de Bonden e, em voz baixa, tom que lhe pareceu adequado para dirigir-se a alguém tão machucado, disse:
- Enfim, Bonden, espero que esteja bem. Não esperava lhe encontrar em pé tão cedo, depois da forma suja como aqueles canalhas jogaram.
- O capitão confia que se encontre bem - disse Killick, no tom de voz que considerou mais adequado para alguém que há pouco estivera comatoso. - Sem dores.
Com tanta informação, Bonden inclinou a cabeça e resmungou algo que Killick traduziu da seguinte maneira:
- Diz que o maldito sodomi... que seu contendedor está pior, e desesperado.
Todos se dirigiram à salinha, e desta ao salão, onde Padeen reuniu as crianças e as levou para a bomba. Apesar de tudo, o relato que Jack fez de seu triunfo em Londres não foi tão sincero, tão franco, como teria sido se houvesse menos ouvintes. O mesmo pode se dizer da informação que Sophie lhe deu, referente às ordens que recebera para que ele subisse a bordo de seu barco, ordens "que chegaram depois de sua partida", tal como disse, ruborizada.
Mas por muito contidas que fossem por necessidade suas palavras, Jack falou com certa desenvoltura e com uma sensação de alívio crescente. Também diminuiu a importância das ordens.
- Sim, querida, já me havia informado. Amanhã mesmo tomarei o carro postal para Torbay, acompanhado de Stephen, se pudee, ou se não o deixaremos para depois de amanhã.
- Não se preocupe com a posta - disse Diana. - Eu lhes levarei na carruagem de Cholmondeley. E se o general Harte é fiel a sua palavra, com esta parelha extra de cavalos lhes levarei em uma carruagem que contará com um tiro de seis bestas. Glória bendita! Sempre quis conduzir uma carruagem puxada por seis cavalos em uma estrada inglesa com seus correspondentes pedágios.
- Não havia conduzido um antes? - perguntou Sophie, surpresa.
- Claro que sim, mas foi na Índia. E uma ou duas vezes na Irlanda a carruagem de Ned Taaffe - acrescentou, inclinando a cabeça em direção a Stephen.
- Ficaríamos encantados - disse Jack, que acompanhou suas palavras com uma reverência. - Mas agora permita-me explicar sobre o Comitê. Primeiro, como sabem, o capitão Griffiths é novo nestas terras. Não mantém uma grande relação com a vizinhança; desconhece as relações existentes entre as famílias antigas ou as amizades que se perpetuaram de geração em geração, matrimônios entre famílias, etcétera, etcétera, e tanto ele como o advogado do Parlamento ao qual contratou não eram conscientes do fato de que Harry Turnbull é meu primo. Além disso, duplamente meu primo, pois se casou com Lucy Brett. Ademais, Griffiths não pertence a nenhum clube decente e desconhece as vantagens que isso implica. - Tanto Jack como Stephen eram membros do clube da Royal Society, o que supunha certo benefício para ambos. Também pertenciam ao Blacks, o que dizia muito de sua capacidade de discernimento, posto que, apesar de não ser um lugar tão erudito, era de algum modo mais sociável e, indiretamente, um clube onde se tratavam assuntos mais mundanos. - Encontrei-me na cafeteria com Frank Crawshay, membro por Westport. Ele me disse que fazia parte do Comitê. Averiguei que se escolheu os membros por sua propensão de votar às cegas a favor do Ministério, e é sabido de todos que eu me abstive quando se apresentaram os pressupostos da Armada (uma mancha negra em meu histórico), e ele me fez saber com muito tato, e o que poderiam denominar com um aluvião de palavras, que seu garoto ia se apresentar para as eleições e que agradeceria muito ver minha firma no livro de candidatos.
"Também me informou de que havia outros membros do Blacks no comitê, além do primo Harry. Melhor que isso, disse, porque Harry estava com um humor de cachorro depois de ter perdido mais dinheiro do que tinha para o coronel Waley; apenas se mostrou educado, não me quis emprestar nem uma camisa, antes morto que emprestar-me uma camisa, acrescentou; apenas tinha uma camisa que lhe pertencesse, e não tinha nem uma camisa no armário exceto a que estava usando. Já sabem como Harry Turnbull fica às vezes: deve de ter-se batido mais que qualquer outro homem da Inglaterra, perigoso com a pistola e mais que disposto a ofender-se por nada. De modo que quando entrei na sala do comitê e o vi ali com aquele nimbo que tinha em cima da cabeça, contrariado e com vontade de saltar à primeira oportunidade, senti-me bastante incômodo. Ainda que os sorrisos de Crawshay e de outros dois membros do Blacks me tranqüilizaram um pouco, não tinha muitas esperanças até que o advogado iniciou a defesa. Seu tom de voz, baixo e pastoso, não agradou muito a Harry, que não deixou de pedir-lhe que falasse mais alto, que falasse como um cristão, pelo amor de Deus, e que deixasse de resmungar. Acrescentou que quando ele era jovem as pessoas nunca resmungavam, e que se podia ouvir até a última palavra do que diziam. Por ter resmungado, teria expulsado a patadas da sala. Então se procedeu a fazer a petição em si: esta se entregou ao presidente, que certamente era o própio Harry, que passou a ler em voz alta o nome e posição de todos os peticionários: Griffiths, alguns de seus amigos, alguns dos granjeiros mais abastados. Então exclamou: "Onde está o pároco? Onde está o pároco?"
"- O reitor está a cinco anos viajando por motivos de saúde, senhor. Fala-se que neste momento se encontra em Madeira, mas não responde a nossas cartas; e o coadjutor não pode falar em seu nome.
"- Bem, onde está o dono do terreno? E onde está o senhor da mansão? Que serão a mesma pessoa, suponho. Por que seu nome não figura nesta lista?
"Então Griffiths ficou corado e resmungou algo a seu advogado. Levantei-me e disse: "Eu sou o dono do terreno, senhor, e também o senhor da mansão. Meu nome não figura nessa lista porque me oponho redondamente ao cercado e, portanto, à petição".
"Harry olhou ao seu redor com olhos tamanhos, rabiscou algo em uma folha de papel, e depois disse a Griffiths: "Pelo amor de Deus, senhor. O senhor tem a insolência de apresentar este documento contando tão unicamente com a maioria, quando sabe perfeitamente bem que o habitual é contar com três quartos ou quatro quintos do total. E para piorar as coisas, muito, muito mais, atua o senhor em contra o desejo expresso do senhor do lugar, seu superior natural. Jamais tinha ouvido semelhante bobagem. Isso me dá o que pensar, senhor. Isso me dá o que pensar".
Durante todo aquele tempo, Mnason, o mordomo, e Killick, haviam permanecido de pé do outro lado da porta. A hostilidade que sentiam um pelo outro lhes havia mantido afastados da porta, ao menos a princípio, até que uma intensa curiosidade e a útil fórmula do "Poderiam pedir por qualquer um de nós" os havia empurrado a firmar uma paz, até tal ponto que suas orelhas se encontravam coladas à madeira da porta. Foi aquele o momento em que a senhora Pearce os afastou indignada e irrompeu na sala.
- Senhora - exclamou com um esplêndido peixe na mão. - Não consegui que nenhum homem me preste atenção, não podia enviar a nenhuma criada, e tenho que saber neste preciso momento. Se tenho que cozinhar isto para a janta, terei que metê-lo agora. Agora mesmo de imediato. Chegou há meia hora. Vinte e seis libras e quatro onças. Palavra que não minto.
Todos os presentes o observaram admirados. Era um salmão de escamas prateadas, fresco, esplêndido. Incluía um cartão: "Para nosso capitão - dizia - com todo o carinho do Aubrey Arms".
Aquela noite devia de ter sido igualmente triunfal, mas não foi: mal-entendidos, fatos fora de ora, e algo tão simples como o cansaço, confabularam-se tal como costuma suceder, de modo que, por uma vez, Jack Aubrey se levantou com o pé esquerdo. Cortou-se no queixo ao se barbear, e quando voltou ao dormitório escutou Sophie, que tinha a cabeça afundada na camisola, proferir um comentário desagradável cujo começo não ouvira, mas que, ao levantar ela a cabeça, terminava com um "... Essa senhora Oakes".
Jack calou a primeira resposta que lhe veio à mente, mas uma vez amarrada a gravata-borboleta, disse:
- Amiúde diz "Essa senhora Oakes" em um tom que me faz pensar que provavelmente imagine que sucedeu algo impróprio quando viajamos no mesmo barco. Ainda que eu fosse Heliogábalo ou o coronel Chartres não teria sucedido nada impróprio. Ela subiu a bordo sem meu conhecimento, sob a proteção de um de meus guardas-marinhas. De imediato insisti em que deviam casar-se, e inclusive cedi um pedaço dessa seda vermelha que comprei para você em Java, contanto que que pudesse vestir decentemente na cerimônia. Talvez tenha sido um pouco farrista quando jovem, mas lhe dou minha mais sagrada palavra de honra de que nunca, nunca, fiz graça no mar, e de que nunca jamais, em nenhum momento, olhei para a esposa de um de meus oficiais. De modo que lhe ficaria muito agradecido se deixasse de se referir a ela como "Essa senhora Oakes".
Cabisbaixa, Sophie ruborizou-se como a seda de Java e não disse uma só palavra; tão extraordinária tensão terminou por resolver-se quando George e Brigid, ainda em camisola, golpearam com brio o gongo que anunciava o café da manhã.
Diana, impontual para a maioria dos assuntos, foi pontual para este. Depois de desjejuar à luz de velas, empreenderam o caminho ao amanhecer, quando as estrelas ainda podiam ser vistas pelo oeste e Vênus declinava.
- Vamos - cominou Diana desde o pescante.
A carruagem se afastou com suavidade, seguida por um calesín ocupado por Killick e Bonden, cujo estado lhe impedia de viajar no exterior da carruagem. Deixaram para trás a um grupo entristecido que os cumprimentava desde as escadas, alguns com lágrimas nos olhos.
Os homens haviam tirado a sorte para ver quem se sentaria junto a Diana durante a primeira parte da viagem. Coube a Dundas, de modo que Jack e Stephen viajavam dentro, e o moço e um garoto iam detrás. Jack permaneceu calado durante um bom momento. Sophie e ele discutiam amiúde, talvez menos que a maioria dos casais; contudo, nunca haviam discutido antes de partir, claro que o bloqueio de Brest era um destino freqüente e a correspondência circulava com assiduidade em ambos sentidos. Era certo que a atitude mostrada por Sophie por Clarissa Oakes (que, afinal de contas, era uma convidada) havia lhe irritado muito, sobretudo tendo em conta que houve um tempo em que sentiu a tentação de manter relações com Clarissa, pois Jack não era do tipo de homens que se atêm à castidade sem um grande esforço, de modo que não teve outro remédio que pôr rigorosos limites a seus instintos. Contudo, lamentava ter discutido com sua esposa.
- O velho Harding acha que o própio Griffiths encomendou o salmão, e que o levaram em coche ao Aubrey Arms - disse após um tempo. - Conforme os rumores que circulam pelo povoado, havia encomendado um festim para vinte comensais. Ninguém nunca pescou semelhante exemplar em nossos arroios. Contudo, espero que os nossos não passem dos limites.
- Ontem à noite, os mais jovens foram caçar alguns de seus cervos, e os guardas-florestais de Griffiths saíram dispostos a impedi-los. Ouvi disparos.
- Verdade? - exclamou Jack, e teria seguido falando se a carruagem não tivesse passado nesse momento pelo povoado, e de não ter visto a todos esses jovens sobreexcitados no lugar. Começaram a aclamá-los a sua passagem, a saudá-los com a mão, e os cavalos responderam empinando. Por sorte, o general Harte havia tido a previsão de proporcionar a Diana uma parelha adicional para o tiro, porém, mesmo assim, Dundas esteve tentado a pegar as rédeas. Foi impedido pela decidida expressão de Diana, enérgica expressão sem dúvida, e a linguagem que empregou para chamar os cavalos à ordem. Pouco depois, a comitiva subia a colina situada frente a Maiden Oscott.
- Preferiria que não tivessem chegado tão longe - disse Jack. - Pode ser que a caça ao cervo seja divertida, mas é um assunto muito sério se chega a apresentar-se ante um tribunal, sobretudo se iam disfarçados. - Billy Iles, que corria junto à carruagem nesse momento, levava posta uma espécie de saia e tinha restos de pólvora no rosto. - Por não mencionar o que sucede se lhe pegam armado. De modo que ouviu disparos? Aquele Griffiths é um tipo rancoroso, débil e cruel. Teria que tê-lo ouvido discutir com Harry Turnbull. E não ache que me esqueci daquele condenado mau presságio. - Inclinou a cabeça para o calesín onde viajava o pobre Bonden, e se submergiu em um inquietante discurso interno enquanto a carruagem subia mais e mais, e os cavalos puxavam com força dele, acostumados ao exercício.
Perto do cume se voltou para dar uma último espiada para Woolcombe, que se estendia ao longe, no sopé da colina, com seus extensos exidos, os povoados e o grande lago de águas prateadas sob a luz do sol que assomava.
- Oh, meu Deus! - exclamou, pois lá, além de Woolcombe, ardiam vermelhos os palheiros, e uma imponente nuvem de fumaça negra caía para oeste arrastada pelo vento.
Afastou a luneta, assomou a cabeça pela janela e se dirigiu ao moço que viajava detrás: - Aquele é o pátio de palheiro de Hordsworth, John?
- Trata-se das terras do capitão Griffiths, senhor. O novo terreno que se adjudicou para a ampliação de sua granja.
Superaram o cume e não se pôde ver nada mais da face oposta da colina. Percorreram o trecho plano da estrada que conduzia à mais pronunciada descida para Maiden Oscott e para o arroio. Tanto Stephen como Jack ouviram Diana esporear os cavalos. Na frente havia um cabriolé, puxado por uma égua castanha e conduzido por um jovem, que tinha uma garota sentada a seu lado.
- Pode pedir que se afastem, Dundas? - perguntou Diana. Dundas lançou um rugido ao modo da marinha.
A garota deu uma cotovelada no jovem, que olhou ao seu redor, deu uma chicotada na égua para esporeá-la e se agachou.
Pouco a pouco a carruagem ganhou terreno sobre o cabriolé. Diana, tensa, concentrada, exercia um perfeito controle dos cavalos. Contudo, havia uma curva para a esquerda que não distava nem duzentas jardas.
- Afaste-se, senhor. Afaste-se agora mesmo - gritou Dundas com toda a autoridade que se adquire depois de vinte anos no mar. Sua veemência, combinada com os rogos da pálida garota, induziram ao jovem a puxar as rédeas e a subir uma roda sobre a borda coberta de capim; a carruagem passou seguida por uma olhar de puro ódio.
- Passamos com dois pés de margem, talvez mais - disse Stephen, mais relaxado.
- Excelente - disse Jack. - Excelente. Mas temo pela ponte de Oscott. Diga-me, Stephen, Diana a conhece?
- Claro que sim, passou dia e noite conduzindo pelos arredores. É o que lhe faz mais feliz. Por certo, onde está o jovem Philip?
- Oh, ficou em casa para fazer a corte à senhora Oakes. Realmente não reparou em seu olhar de cordeiro degolado? Não, claro que não, porque você se sentava ao seu lado. Ainda que talvez tenha visto quando pegou o guardanapo e o beijou com os lábios. Mas lhe dizia que aquela ponte é um mau caso. Desce-se por uma colina traiçoeira e se planta no meio do povoado, e ali, quase ante seu nariz, fica a ponte, porque antes tem que fazer um giro muito pronunciado para a esquerda, de uns noventa ou mesmo de cem graus, antes de poder vê-la. Tem que girar muito rápido. É uma ponte condenadamente estreita, com um muro baixo de pedra de ambos os lados; a menos que se calculem muito bem as distâncias, dá contra a quina e acaba no rio de águas profundas depois de uma queda de vinte pés e com a carruagem em cima da cabeça. Acha que poderia... alertar?
- Não, não o acho. Já sabe que tem uma mão muito boa com o chicote.
- Nesse caso, talvez eu mesmo o faça.
Stephen se agachou e, após um instante, Jack desceu de novo o vidro, assomou a cabeça e em tom conciliador disse:
- Prima, ei... Prima.
A carruagem reduziu consideravelmente a velocidade.
- E agora o que foi? - respondeu Diana.
- É só que estava pensado, por ser destas terras, que talvez teria que lhe falar da perigosa ponte que há em Maiden Oscott. Claro que pode ser que já a conheça.
- Jack Aubrey - disse ela, - se não lhe agrada meu modo de conduzir esta carruagem, pegue você mesmo as condenadas rédeas e que Deus lhe maldiga.
- Não, não, nada disso - exclamou Jack. - É só que me pareceu melhor...
Diana esporeou de novo os cavalos. Jack desabou no respaldo.
- Acho que se tomou mal meu comentário - disse, - ainda que lhe disse manso como um cordeiro e com educação.
- É possível que a tenha irritado, sim - Stephen limitou-se a dizer.
Mais abaixo a ladeira tornou-se mais pronunciada, mais e mais pronunciada. Apareceram as primeiras casas, e não tardaram em encontrar-se em uma rua. Dundas cominou aos gritos a cachorros, gatos, asnos e crianças contanto que que se afastassem do caminho, enquanto os cavalos iam mais e mais rápido do que Diana lhes teria permitido ir em qualquer outra situação. Segurava as rédeas de tal maneira que quase lhe parecia tocar a embocadura dos cavalos, e seu olhar se cravava na esquina pela qual devia virar, a parte esquerda da parede que levava à ponte, um muro em cuja superfície haviam deixado sinal os inumeráveis veículos que tinham passado por ali durante os últimos quatrocentos anos. Com uma última olhada ao eixo da roda dianteira que tinha mais perto, modificou a pressão das rédeas, cacarejou para os cavalos que iam na cabeça e girou a carruagem para enfiar na apertada ponte, evitando a pedra por meia polegada, e percorrendo todo o comprimento da ponte de forma magistral.
Ali onde a estrada de Maiden Oscott, depois de alçar-se e cair de novo, desembocava no pedágio de Exeter, Diana puxou das rédeas ao chegar à famosa pensão situada junto a um lago de sonho e, enquanto os outros sustentavam o tiro, desceu da carruagem com um grácil salto. Jack lhe ofereceu uma mão.
- Diana, peço que me perdoe.
- Não se preocupe, Jack - disse com um sorriso de orelha a orelha. Tinha um aspecto excelente, e o vento no rosto e a excitação lhe caíam muito bem. - Eu também reconheço ter tido medo quando navegava a bordo de seus barcos. Agora seja um bom menino e peça quarto, café, torradas e, talvez, bacon e ovos, se é que não têm nada melhor que oferecer. Deus, não me importaria de tomar outro bom desjejum. Mas de momento devo retirar-me.
Stephen dera ordens de refrescar aos cavalos e de que andassem um pouco antes de comer. Estava a ponto de reunir-se com seus amigos diante da pensão, quando ouviu que chamavam seu nome. Era William Dolby seguido por Harry Lovage, ambos velhos amigos seus (a Lovage o conheciam pelo apelido de Velho Luxurioso), que cruzavam a estrada procedentes do arroio, os dois com varas de pescar na mão e com aspecto de serem os homens mais felizes do mundo, e é que fazia uma preciosa manhã, e era aquele um lugar precioso, onde a água fluía sobre as suaves margens verdes, todo o aroma da manhã o impregnava e o céu estava cheio de andorinhas.
- Olhe o que pescamos - exclamou Dolby ao mesmo tempo que abria a bolsa. - Grande dia, trutas como não terá visto nem em sonhos!
- A minha é ainda maior - disse Lovage. - Tem que desjejuar conosco. Com estas duas não teremos nem para começar, mas espera para ver as fogaças de pão que têm aqui. Dick - disse a um servente, - prepare-nos tudo no salão Dolphin, pode ser?
Passearam lentamente pelo pátio, admirando a pesca, falando do clarete, do pato real, e do período de incubação da mosca efêmera.
- Haverá de sobra para o jantar; do contrário, esta tarde pescaremos mais. As jantas de pescado fazem a um saltar como uma pulga, ah, ah, ah!. Nos acompanham Nelly Clapham e sua irmã mais nova, Sue. Que duas garotas mais complacentes... - De repente calou, envergonhado, porque no vestíbulo, de pé esperando-os, encontrava-se Diana, que obviamente não era uma dama de companhia.
Separaram-se um pouco para saudá-la e, depois das apresentações de rigor, Stephen disse:
- Querida, estes cavalheiros nos convidaram para acompanhar-lhes durante o desjejum, cujo prato forte serão algumas das trutas mais esplêndidas que jamais tenha visto. Ainda que o mais provável é que esteja cansada depois de tanto conduzir, e que seja suficiente deitar-se um pouco depois de tomar mingau e, talvez, uma xícara de chocolate. Não posso recomendar-te creme ou açúcar.
- Nem louca. Será um prazer desjejuar em companhia destes cavalheiros, e em companhia também de suas amizades, a quem tive a sorte de conhecer nas escadas. Pareceram-me garotas muito alegres, e cantavam com tanta doçura...
O desjejum foi um êxito. As jovens, ao descobrir que Diana não se dava ares de superioridade, não tardaram em superar sua timidez; as trutas eram excelentes; a conversa distendida e alegre, e ao final Nelly, que havia corrido escadas acima para buscar um violão, cantou uma canção, cuja letra acompanharam boa parte dos paroquianos da pensão, além de um sorridente e quase não reconhecível Killick, desde a janela, enquanto Dolby rogava a Diana e aos seus que ficassem para almoçar. Preparariam a famosa sopa de tartaruga e um galo de Somerset.
- Obrigada, senhora - respondeu ela. - Ficaria de todo coração, mas prometi deixar a estes cavalheiros em Torbay, e assim o farei apesar da timidez que venho observando em alguns dos membros de minha tripulação.
CAPÍTULO 4
Fez isso na manhã seguinte, depois de ter passado a noite em uma pousada situada no interior, devido a que os povoados pesqueiros da própia costa eram um pouco primitivos, e conduziu a carruagem pelas colinas do norte com a mudança da maré.
A responsabilidade do atual bloqueio de Brest recaía nos ombros de uma esquadra muito mais modesta que a comandada por Cornwallis nos heróicos dias do ano de 1803. Mesmo assim, Torbay estava cheia de barcos; na costa, corvetas, cúteres, mercantes e vivandeiros; no mar, todo tipo de enormes barcos de guerra, navios de linha e fragatas a pairar, barcos de passageiros e dezenas de barcos de arrasto de lona vermelha originários de Brixham que dobravam Berry Head, todas embarcações que navegavam de bolina graças ao vento fresco do nordeste, dado que o vento do sudoeste havia caído por completo durante a noite.
Diana puxou as rédeas na crista da colina e, ali sentados, enquanto observavam a costa naquela manhã fria e limpa com um sorriso nos lábios, viram um velho navio de duas pontes a pairar atrás de Thatcher Rock; içou-se a bandeira de saída sublinhada por um canhonaço, que bastou para chamar a atenção dos botes que antes havia despachado para a costa.
- Aquele deve de ser o velho Mars - disse Dundas. - Agora é comandado por Woolton.
- Que glorioso momento quando o barco recupera a caminhada, com um vento e uma maré tão favoráveis como sepossa desejar - disse Jack. - Harry Woolton é um tipo estupendo e corajoso, e se puder recolher os botes em frente ao Berry amanhã chegará a Ouessant na hora do café da manhã. Oh, Deus, espero poder chegar a tempo de embarcar em algum desses botes. Querida Diana, prima Diana, por favor, tenha a amabilidade de levar-nos de imediato ao povoado. Que não economizem esforços os cavalos, e você não se preocupe com nossas peles. Para ver se posso embarcar naquela iole antes de que vogue ao mar.
- Faça-o, querida, se é tão amável - disse Stephen. - É nosso dever subir a bordo sem perder um só minuto.
Mas a estrada descia de maneira intoleravelmente tortuosa, e nem o mais intrépido dos condutores poderia ter evitado os apertados regimentos de bois que surgiram lenta mas constantemente de um caminho lateral, que se detiveram para olhá-los, e que fizeram ouvidos surdos aos gritos, ameaças e súplicas. Quando os cavalos, sudorosos e exasperados, levaram a carruagem ao cais, todos os botes do Mars vogavam pelo promontório, onde cruzariam o rumo de seu barco; por muito que tivessem se esgoelado não teriam podido trazê-los de volta. Para maior escárnio, não tardaram em averiguar que nenhum barco partiria rumo a Ouessant antes da quinta-feira.
- Peço que me perdoe, senhor - disse Stephen ao mesmo tempo que tirava o chapéu ante um homem entrado em anos de aspecto severo, vestido de negro, com uma concha na mão; este observava um jovem exemplar de alcatraz com muita atenção, e fazia ouvidos surdos à escabrosa conversa aos gritos que tinha lugar entre os patrões dos barcos mercantes e seus companheiros de tripulação. - Peço que me perdoe, senhor, mas não sou daqui e lhe agradeceria muito que me desse o endereço de uma pensão respeitável, onde pudesse alojar a minha esposa e cavalos, enquanto meus amigos e eu, oficiais da Marinha, buscamos alguma embarcação que possa fazer-se ao mar.
Em um primeiro momento, o cavalheiro, muito sério, não pareceu compreender a pergunta, mas uma vez repetida por Maturin, respondeu:
- Meu senhor, lamento dizer-lhe que, ao menos que eu saiba, não existe semelhante lugar neste povoado, se é que pode chamar-se assim. Creio que na pensão Feathers sua esposa não se veria insultada pela companhia das... prostitutas, mas carece de estábulo ou cocheiras, pois não é como uma casa de refeições ou taberna. Uma agradável taberna, contudo, onde sua esposa poderia desfrutar de uma xícara de chocolate quente. Desculpe... - E acrescentou depois de um breve titubeio, - por casualidade não terei o prazer de falar com o doutor Maturin?
- Certamente, senhor, assim me chamo - respondeu Stephen, não muito comprazido de que lhe reconhecessem com tanta facilidade, enquanto cruzava a seguinte reflexão por sua cabeça: "Os agentes de inteligência deveriam ter a cabeça de um nabo, indistinguível uma da outra, altura normal, compleição azeitonada e uma conversa chata, normal, e nada memorável".
- Tive a sorte de ouvir o relato que fez sobre o Ornithorhynchus paradoxus na Royal Society. Que eloqüência, que capacidade para a reflexão! Meu primo Courteney me levou.
Stephen se inclinou ante ele. Conhecia a Hardwicke Courteney, que, mesmo sendo tão somente um matemático quando foi aceito na Sociedade, havia chegado a acumular um conhecimento íntimo dos morcegos, sobretudo das espécies da Europa ocidental.
- Sou Hope, senhor - disse o outro alto o bastante como para impor-se aos vozeirões de Jack e Dundas, que perguntavam a um jovem oficial de um bote, situado a duzentas jardas da costa, "se o Acasta partiria amanhã, ou não o faria até a condenado quinta-feira", e depois Hope acrescentou, com mais educação, tigida de certo incômodo de sua parte: - Talvez o senhor me permita propor uma solução... Meu primo Courteney possue um casarão que não distará um estádio deste lugar. Não tem móveis e está praticamente vazio a excessão dos morcegos que habitam nos pisos superiores, mas possui cocheiras e um pátio espaçoso. Permite-me sugerir que enquanto a senhora Maturin aguarda comodamente sentada na pensão Feathers, poderíamos levar tanto a carruagem como os cavalos ao cercado de meu primo Courteney? Disponho de um jovem do povoado que cuida de mim enquanto conto e tomo notas sobre os morcegos (durmo em qualquer canto), e ele mesmo poderia encarregar-se de buscar água, feno e aveia, ou o que seja mister.
- O senhor é muito amável, cavalheiro - disse Stephen ao mesmo tempo que apertava a mão do senhor Hope, - e para mim será um verdadeiro prazer aceitar tão generosa oferta. Permita-me apresentar-lhe a minha mulher. - Caminharam lentamente pelo cais em direção à carruagem; enquanto isso, Stephen acrescentou: - Se meus amigos não encontrarem hoje um meio de transporte adequado, talvez me permita ajudá-lo a contar morcegos.
Jack e Dundas saíram de novo, uma vez postos os cavalos sob a tutela do jovem, instalada Diana com Stephen no salão da pensão Feathers Saint Vincent (o tal Feathers servira na gloriosa batalha de São Vicente, onde perdeu a perna até o joelho), e Bonden comodamente deitado sobre os baús de marinheiro. Levaram a Killick a reboque, para interrogar aos muitos marinheiros que conhecia e que abundavam ao longo da margem, quando não permaneciam deitados nas dunas.
Os marinheiros, em termos gerais, resultaram ser uns tipos estupendos, de modo que Jack se sentiu entre eles como em casa (a muitos os conhecia de ter servido com eles, e era do tipo de pessoa que raras vezes esquece um nome). Não por isso deixou de surpreender-lhe, de assombrar-lhe inclusive, que tamanha turma de homens decentes, possuidores de um conhecimento da vida ganha a pulso, tivessem uma noção tão primitiva da diversão, e de que atraíssem a um conjunto obviamente falso de caluniadores, além de a uma imperdoável corja de rameiras, amiúde de pernas curtas, gordas e sudorosas, muitas delas, para maior escárnio, cheias de doenças.
Mas afinal de contas, tanto Dundas como ele sabiam que era o que havia muito antes de mudar a voz, quando não eram mais que um par de voluntários de primeira classe, nem ao menos guardas-marinhas, de modo que tão somente arquearam uma sobrancelha ante semelhante espetáculo, que se repetiu uma e outra vez enquanto passeavam, indo das respeitáveis tabernas aos locais de pior nota e, dali, às salas de bilhar, para não mencionar outros botecos que não distavam muito de considerar-se prostíbulos, apesar de que faziam seu negócio a plena luz do dia. Procuravam principalmente a um capitão que pudesse partir em breve para Ouessant e levá-los à esquadra; ainda que lhes bastava qualquer oficial, quer fosse de guerra ou de cargo, por muito baixo ou alto que pudesse ser seu emprego, qualquer um que pudesse informar-lhes de como estavam as coisas na esquadra; inclusive antigos companheiros de tripulação que pudessem servir nesse momento em algum de seus barcos. Como a busca era simples e ao mesmo tempo bagunçada e agradável, e puzeram de um lado as preocupações que tinham adquirido em terra. Descobriram muitas coisas a respeito das presentes condições de vida, além das notícias mais frescas sucedidas lá longe, frente a Black Rocks e ao que chamavam de Sibéria.
Porém, por muito familiar e agradável que fosse (como voltar a casa mas ao revés, com o odor do mar e as algas arrastadas pela maré nas fossas nasais), parecia que sua busca, seu empenho, empreendido com tanta esperança e confiança, estava condenada a terminar em decepção e em uma cansativa procura de alojamento. Via-se finalmente um braço de areia mais e mais amplo. O vento seguia cravado para nordeste, mas a adorável maré já minguava quando chegaram ao último lugar de todos, uma zona de piquenique com melhor reputação que a maioria dos que tinham visitado.
- Não acredito que valha a pena nem entrar - disse Dundas. - Vimos todos os oficiais em atividade em terra, e este não é lugar para guardas-marinhas sem um penique no bolso.
Apesar de tudo, encontraram precisamente um guarda-marinha sem um penique no bolso, ou, pelo menos, a um segundo do piloto de derrota. Era o jovem James Callaghan, sorridente e tagarela, com seu rosto de pão vermelho como um tomate do bem que lhe estava entrando. Estava acompanhado por uma jovem tão alegre como ele, mas cujo rosto tinha um colorido mais razoável. Era uma garota bem proporcionada, jovem e bonita, não era uma prostituta, e Callaghan a divertia com suas histórias.
A alongada sombra do capitão Aubrey caiu sobre ambos; levantaram o olhar e, após um momento, seus rostos mudaram, a jovem se ruborizou e o rosto de Callaghan adquiriu o mesmo colorido que o queijo do contador.
Por regra geral, Jack costumava ser compreensível, de modo que reprimiu a pergunta que esteve a ponto de sair de seus lábios: "O que o senhor está fazendo aqui?", cuja única resposta teria sido: "Faltar ao meu dever, senhor, e desobedecer minhas ordens para sair de passeio com a moça" (ou algo equivalente e mais discreto), e o substituiu por: "Senhor Callaghan, onde está o navio de apetrechos?". O jovem, certamente, havia se levantado de um pulo, tirando de passagem a cadeira, e estava a ponto de dar uma comprida explicação de sua presença nesse lugar, que se devia à senhorita Webber não poder se dar o luxo de passear com ele em seu povoado natal, quando recuperou um pouco o senso comum e respondeu:
- Em Brixham, senhor. Todos os marinheiros se encontram a bordo às ordens do senhor Despencer, presa a embarcação em uma só âncora no canal.
- Em tal caso, quando o senhor e sua convidada dêem por terminada a refeição - disse Jack, ao mesmo tempo que se inclinava ante a senhorita Webber, - tenha a amabilidade de ir ao navio. Estamos na pensão Feathers. O senhor não tem por que se apressar: poderemos aproveitar o refluxo.
O refluxo da maré levou o capitão Aubrey, seu cirurgião, seu despenseiro e seu timoneiro a dobrar Berry Head, onde o barco pôs rumo a Ouessant com todos a bordo atentos à manobra e mansos como cordeirinhos, pois, de algum modo, todos tinham tomado parte até certo ponto no "crime" cometido por Callaghan. Apesar do zelo demostrado, a Ringle não pôde partir como em outras ocasiões por ter o vento tão a popa; mas mesmo assim, para quando Jack e Stephen apareceram, superava os treze nós.
Não tardaram em acostumar-se à vida no mar. Stephen não era um grande marinheiro, mas mesmo sua mente e pessoa consideravam o suave balanço da maca muito mais natural que uma cama imóvel em terra. E ainda que nem maca nem cama o separavam da eternidade por mais de nove polegadas de prancha (menos ainda), e ambos, ao mesmo tempo, encontravam-se expostos aos perigos do mar e à violência do inimigo, tanto Jack como Stephen sentiram um grande alívio, como se a complexidade de manobrar primeiro um navio de apetrechos e, depois, um enorme e atestado navio de guerra até uma costa hostil infestada de rochas, famosa pelo mau tempo que a açoitava, pelos perpétuos galernos do sudoeste e as violentas ondas, fosse pouco ou nada comparado com os perigos da vida em terra, da caseira vida em terra.
- Espero que Diana não se atrite com Heneage durante a viagem de volta - disse Jack. - Não o acreditaria, mas é um tipo muito sensível, e acusa tremendamente os insultos. Recordo-me de uma vez que seu pai o acusou de ser um puteiro canalha e mesquinho, e o pobre se passou toda a tarde remoendo aquilo.
- Diana não é proclive a fazer julgamentos de valor - disse Stephen. - O que realmente a tira do sério é que a chateiem, quer seja um homem ou uma mulher; e a falta de elegância.
- Não. Refiro-me a que se lhe ocorra criticar sua forma de conduzir, ou a sugerir (mesmo dando um rodeio e de um modo sutil e diplomático)... já sabe... que ele poderia fazê-lo melhor.
- Oh, estou seguro de que é muito astuto para fazer algo assim. Afinal de contas, sabe que Diana poderia conduzir um cabriolé pelo olho de uma agulha.
- Espero que não se equivoque - disse Jack. - Mas recordará que me deu uma boa mordida quando me ocorreu mencionar, só mencionar, da ponte.
- Ouvi o comentário. Foi pouco natural, sóbrio e cheio de tato, vamos, que teria violentado a um anjo, quanto mais a uma mulher com quatro impetuosos cavalos entre suas mãos e o sol em plena nuca. De qualquer maneira, Dundas não pode permitir-se a familiaridade da que você desfrutas por ser primo de Diana. Oh, Jack, quanto eu gostaria de poder recordar os versos. Se assim fosse, recitaria um poema desse querido senhor, de nome Geoffrey Chaucer, que fala do modo como as mulheres em geral sentem um intenso desejo de mandar. Uma reflexão muito acertada, tal como estou seguro que admitirá. Formulou também algumas acusações muito engenhosas sobre o matrimônio, da dor e da tristeza que há em todo matrimônio. - Fez uma pausa para dar oportunidade de Jack responder, mas o único som que superava ao constante deslizar da água pelo casco, e aos demais ruídos que se encontra em qualquer barco, era a firme respiração de um homem deitado de costas, respiração que nesse momento se esporeava a si mesma e que não tardaria em alcançar a categoria de ronco, um ronco espetacular. Sem dar a menor importância ao fato, Stephen alcançou as bolinhas de cera, as amassou um pouco e, finalmente, introduziu-as nos ouvidos ao mesmo tempo que rezava uma oração. Depois, abstraiu-se na recordação de sua última viagem de barco, com Brigid nas amuras, hipnotizada pelo odor do mar. Não despertou com a troca da guarda nem com o saída do sol, seguiu dormindo placidamente deitado, cômodo e relaxado até que abriu-se suavemente a porta da cabine e entrou um guarda-marinha que golpeou com os nós dos dedos a maca de Jack e disse:
- O senhor Whewell deseja que lhe transmita seus melhores desejos, senhor, e que lhe informe de que avistamos a esquadra.
Jack grunhiu e se virou sobre o lado.
- O senhor Whewell deseja que lhe transmita seus melhores desejos, senhor - repetiu o garoto, que elevou o tom de voz enquanto sorria para Stephen, - e que lhe informe de que avistamos a esquadra. De gáveas para cima, ao lés-sudeste.
- Obrigado, senhor Wetherby - disse Jack, completamente acordado. - Despertaram os desocupados?
- Ainda não, senhor. Talvez dentro de cinco minutos.
- Obrigado, senhor Wetherby - repetiu Jack, dispensando-o. - É o que eu achava - observou satisfeito. - raras vezes me escapa o modo que têm esses pobres desgraçados de arrastar-se pelo convés.
Guardaram silêncio até que Stephen se decidiu perguntar:
- Jack, faz muito que ouço a palavra "desocupados", mas só a você estaria disposto a confessar que não sei exatamente a que responde.
Para Jack Aubrey bastou um olhar penetrante para compreender que, por muito improvável que pudesse parecer, seu amigo não se estava zombando dele.
- Bem, verá, refere-se a todo aquele de cujos serviços se prescinde para tomar parte na guarda de noite, a menos que se chame a toda a gente ao convés. Também os chamamos "diurnos", porque estão de serviço todo o santo dia. Ainda que por temor de que possam empinar-se, dar-se ares, levantam-nos antes de que saia o sol e lhes obrigam a ajudar com a limpeza do convés. O seu assistente sempre é considerado um desocupado, por exemplo, e também o açougueiro, e o toneleiro, e a um monte de gente assim... Diga-me, Stephen, a quem escolherá de assistente, agora que deixou Padeen em terra?
- Sabe Deus. Repassarei o rol de tripulantes para ver se encontrava um homem sem comparação a bordo do Bellona, um homem em quem possa confiar para dar as doses exatas com a pontualidade de meu relógio. -Levantou-o, e aguardou um instante para ouvir o som metálico correspondente às seis em ponto; então, como por arte de mágica, chegou a seus ouvidos o tilintido dos baldes, o rumor da água ao molhar o convés, o chiado das bombas e o constante ranger da pedra arenito, tudo isso acompanhado pelas habituais ordens, gritos, e inclusive juramentos, à medida que as cobertas recuperavam uma perfeição que em nenhum momento haviam perdido. Stephen sabia que, inclusive em uma embarcação tão pequena como a Ringle, a gritaria duraria uma hora; levantou um pouco a cabeça e acrescentou, elevando o tom de voz: - Alguém que não confunda os marinheiros com latinice ou termos médicos incompreensíveis, uma pessoa modesta e leal. Onde vou encontrar semelhante tesouro, pelo amor de Deus?
- Não poderia pedir a Padeen que regresse?
- Não posso. Como já sabe se tornou viciado a uma de minhas tinturas, é pior que o álcool, de modo que é coisa muito, muito má. Não me atrevo a expô-lo diariamente a semelhante tentação. Eu lhe prometi também alguns acres no condado de Clare, o suficiente para que pudesse desfrutar de um lugar decente onde viver, se cuidasse de Brigid e Clarissa na Espanha. Porém, você acha que partirá para a Irlanda? Creio que tem vontade de fazê-lo. Sabe que campos vai encontrar, e como é a casinha, com seu teto de telhas, Jack, glória divina para nós nessa terra. Mesmo assim, acredita que irá? Não, de maneira nenhuma. E se encontra corujas? Ou boa gente colina abaixo onde tem todo o direito do mundo de cortar o capim? Ou se se sentir sozinho e assustado? Eu lhe disse que a cura era procurar uma esposa decente ou qualquer prostituta das que tanto abundam em Gort ou Kilmacduagh. Tudo isto se parece muito a um matrimônio: quer e não quer fazê-lo. Conhecia a dois homens que levaram a cabo um cortejo apropriado e constante para alcançar seu objetivo. Ambos se mataram mutuamente no dia em que deviam comparecer à igreja. Sem dúvida, existia e continuam existindo muitos como eles.
- Conhece algum caso de uma jovem que tenha feito o mesmo?
- Não. Mas recordo de três casos, e ouvi falar de muitos mais, de mulheres que fugiram em sua noite do casamento.
- Eu também.
- Diz muito sobre a educação de um país o fato de que uma mulher possa ver como conduzem uma vaca ao touro, uma potra ao potro, e onde um falo é um objeto reconhecido como tal, que desperta talvez certa curiosidade, mas que não implica nada inesperado, algo que possivelmente é visto como uma horrível malformação, um apêndice antinatural.
- Não acredito que a educação de um país tenha a... - começou a dizer o capitão Aubrey interrompido por um estrépito singularmente violento, provocado por dois desocupados aos quais lhes caiu o enorme bloco de pedra que levavam, carregado com bala, bloco que tinha por objetivo limpar perfeitamente as pranchas que estavam acima de suas cabeças. Ao baque seguiram os uivos, uivos de verdadeira dor, que fizeram Stephen correr para o convés de camisola, esperando encontrar um pé fraturado.
Quando o havia vendado e administrado ao paciente a habitual dose de trinta e cinco gotas de láudano, o sol já se encontrava alto e Jack havia se asseado e barbeado, sem esquecer a trança de cabelo loiro que usava atada à nuca; encontrou o doutor sentado à mesa do desjejum em uma pequena cabine, impregnada pelo magnífico aroma de torradas, café e arenque defumado.
- Desculpe-me, Stephen - disse. - temo que não pude esperar. Minha gula pode mais que eu.
- É o mesmo que diz quase diariamente, meu amigo. E muito me temo que seja verdade - disse Stephen. - Mas reza para que ainda possa se salvar dela, que de todos é o mais primitivo e desagradável dos sete pecados capitais. Demônios, Jack - acrescentou, olhando-lhe fixamente, - estás feito um almofadinha, limpo como um noivo, quase bonito, vestido com sua melhor casaca e as dragonas douradas. Que sucede?
- Vejo que não pôs um pé no convés. A estas alturas já avistamos os cascos da esquadra, e dentro de pouco o número do Bellona ondeará no tope do mezena do Queen Charlotte, junto ao sinal de chamar o capitão a bordo do navio insígnia.
- Tenha a amabilidade de passar-me o resto dessa torrada e, certamente, a cafeteira.
- E se eu sei algo de suas ocupações em terras estrangeiras, ele, ou pelo menos seu secretário, perguntará por você - continuou Jack em voz baixa. - Stephen, não consideraria prudente a possibilidade de se barbear e trocar de calções e casaca?
- Jack - respondeu Stephen, - tenho planejado deixar a barba crescer e pôr um ponto final a suas inoportunas zombarias de uma vez por todas. Em tempos de guerra, os imperadores romanos sempre usavam barba. E a respeito de minha casaca - disse olhando-se a rouba, - ainda agüentará alguns anos.
- Ao menos deixe que Killick lhe passe um pouco a escova. Há fios no peitilho; e temo que isso daí seja sangue. Não acho que queira envergonhar ao barco quando estejamos a bordo do Charlotte.
- Talvez eu ponha o avental - disse Stephen enquanto esfregava o sangue com o guardanapo. - Porém, seja como for, não há possibilidade alguma de encontrar uma casaca nova até que desfaça meu baú.
Como não podia ser de outra maneira, Killick ouviu toda a conversa e, antes de que Stephen terminasse de satisfazer as perguntas de Jack a respeito de Evan Lloyd, segundo do cozinheiro, cujo pé ficou esmagado pelo o urso (conversa cheia de despropósitos e mal-entendidos até que ficou óbvio que Stephen não tinha entendido que, no mar, um "urso" é um pedaço de pedra arenito de bom tamanho), Preserved Killick apresentou-se ali com uma expressão puritana no rosto e uma respeitável casaca azul de uniforme (praticamente nova) dobrada sobre o braço.
- Praticamente estava por cima de tudo - disse. - E terá que livrar-se desses velhos calções. No Bellona não faltam calções desses, como não faltam gritos em Londres. Os gritos da Monmouth Street, pelo amor de Deus.
Stephen inclinou a cabeça, derramou o café em cima de si, e graças a isso pôde conter o riso. Não muito antes de que sucedesse tudo isto, quando o bote do Bellona o desembarcou na baía Bantry (é necessário admitir que vestido de um modo que desacreditava à Armada), os irreverentes marinheiros de um dos cúteres do Boyal Oak, comandados por um guarda-marinha bêbado, exclamaram: "Ah do Bellona! Roupa velha? Trapos, garrafas, ossos, peles de coelho?", à maneira dos vendedores de rua londrinos; e para a desgraça infinita do barco, aquele grito tinha se tornado muito popular em toda a parte ocidental de Cork. Killick e seus companheiros de rancho rezavam para não ter que ouvi-lo na esquadra que realizava o bloqueio, desejo ao qual se somavam todos os integrantes da câmara dos oficiais e do camarote dos guardas-marinhas; também o capitão Aubrey, que geralmente repreendia a Killick quando fazia esses comentários tão própios dele, guardou silêncio naquela ocasião.
De modo que Jack, depois do desjejum, caminhou pelo castelo de popa acompanhado por um respeitável cirurgião.
- Ali, vê? - disse, inclinando a cabeça para a alheta de estibordo, em direção a uma elevada e escura massa de terreno escabroso formado por granito, com água branca nos escarpados. - Aquilo dali é Ouessant, como deve saber muito bem; mas não acredito que o tenha visto de o leste, desde o lado de terra. E não é que possa ver terra de momento, ainda que, creia-me, não tardará em fazê-lo quando esta bruma sair. De momento navegamos para a passagem Fromveur, com quarenta braças sob o casco. Há mais arrecifes à medida que se aproxima ao leste, por aquela ilha que está pelo través de bombordo: Molène, excelente lugar para lavagantes nos dias tranqüilos. Quando estivermos um pouco mais ao sul, e quando tenhamos evitado Green Rock e alcançado às condenadas Black Rocks a quatro milhas de distância, poderá observar as águas mais perigosas que correm até Goulet de Brest, um longo canal que conduz ao porto e atravessa as enseadas exterior e interior, muito parecido à entrada de Mahón. Não podem sair com vento do sudoeste, vento que sopra amiúde, e, por outra parte, quando sopra forte nos prejudica, enquanto que eles permanecem perfeitamente abrigados. Claro que se a tormenta nos leva a Cawsand, por exemplo, ou a Torbay, e o vento rola para o norte ou mesmo para o nordeste, lá os tem, ao mar, onde poderão atacar nossos mercantes e comboios enquanto nós barlaventeamos, bordejada atrás de bordejada, como se fôssemos um bando de palhaços. - Jack falou com eloqüência e se recreiou na dureza do bloqueio de Brest. Ainda que Stephen tenha prestado atenção, não deixou de olhar de soslaio para a esquadra, ou, pelo menos, para toda a esquadra que se encontrava próxima à margem, enquanto os barcos que a compunham rumavam para a Ringle, navegando de bolina empurrados pela suave brisa.
- Vão mudar de bordo por redondo em sucessão - disse Jack. Apenas havia pronunciado essas palavras, quando o barco que andava de cabo de fila, o Ramillies, caiu para sotavento traçando uma suave curva até pegar o vento pela popa e, depois, pela alheta de bombordo, seguido com total precisão pelo barco seguinte.
- É o Bellona - exclamou Stephen, que reconheceu seu antigo lar ao vê-lo pelo través. - Ah, meu querido barco, que tenha boa sorte.
- Amém - disse Jack, que acrescentou ao reconhecer o terceiro navio de linha: - É o Queen Charlotte, o navio insígnia. Vê o galhardete branco, correspondente a lorde Stranraer, vice-almirante da esquadra branca, no traquete? Aí vai o Zealous. Todos são navios de setenta e quatro canhões, exceto o Charlotte, certamente, que possue cento e quatro. Aí tem duas de suas fragatas: a Naiad e a Doris. Sem dúvida fecham sobre a modesta Alexandria. Que tem somente canhões de doze libras, mas navega quase tão bem como a extraordinária Surprise, com este vento o mais provável é que despache os botes ao interior, para ver como se arruma no porto o francês. Em tal caso, as canhoneiras da baía Camaret poderiam arriscar uma saída. Já veremos que sucede quando limpe a névoa que cobre a costa.
Mas antes de que pudessem ver algo, chegou a seus ouvidos o estrondo rouco dos canhonaços e, a modo de resposta, o fogo salpicado e enérgico dos canhões pesados.
- Aquelas são as peças de Grand Minou - disse Jack. - Canhões de quarenta e duas libras. - E pouco depois, quando escutavam tensos sem se produzir mais que um burburinho a bordo, além do produzido pela exárcia e o mar, com a Ringleen no olho do vento. - Vem dali.
Surgida da bruma e em direção à esquadra, perfilou-se de repente uma palidez esfumada pela amura de bombordo do navio de apetrechos, palidez que não tardou em definir-se como as velas da Alexandria.
- Ah, ah, ah! Já está fora do alcance dos canhões e, além disso, com todos os botes a bordo - disse Jack. - Eu me pergunto por que aquelas criaturas seguirão disparando tão precipitadamente: catorze libras de pólvora malgastas por cada disparo. Catorze libras, nada menos. Creio que o que pretendem é demostrar seu bom zelo.
- Senhor, senhor, nosso número, senhor, se é tão amável! E o sinal para que o capitão compareça a bordo do navio insígnia - exclamou Callaghan.
- Obrigado, senhor Callaghan - respondeu Jack. - Ponhamos rumo ao Bellona com todo o trapo que possamos marear. Senhor Wetherby, peço que suba ao cesto da gávea com uma luneta e nos informe dos sinais daquela fragata.
pouco depois, a voz aguda e amiúde sem fôlego do guarda-marinha começou a cantar os sinais da fragata, a princípio de forma titubeante e, depois, ao reduzir-se a distância, com maior convicção; Callaghan, depois de dizer: "Leitura da terça-feira passada, senhor", e passou a traduzi-las:
- Um navio de primeira classe com galhardete de contra-almirante. Um navio de linha com dezesseis portalós e galhardetão. Um navio de linha duvidoso, provavelmente seja um de setenta e quatro. Uma fragata com vergas e mastaréus arriados. Um destroço. Outro. Uma corveta. Um bergantim sem mastaréus. Duas fragatas preparadas para sair ao mar, com tudo em seu lugar...
- Não vamos ver o almirante? - perguntou Stephen em voz baixa, quando foi concluída a relação e o navio de apetrechos navegava muito ao leste do Queen Charlotte.
- Sim, mas partiremos do Bellona, de modo que possamos aproximar-nos em minha própia falua - respondeu Jack com uma sorriso, nada surpreendido pela simplicidade da pergunta; e no mesmo tom baixo acrescentou: - Acho que desta vez me conduzirei com muito cuidado, disso pode estar seguro. Quando o Todo-poderoso se informe de minhas notícias ainda me quererá menos do que me queria antes; e com semelhante mau presságio às costas, o único que me cabe esperar são algumas reprimendas geniais. Vamos, que estarei em guarda.
- A que mau presságio se refere, meu amigo? - perguntou Stephen.
- Pois, ao pobre Bonden perder o combate. Que outra coisa poderia ser? Você mesmo me disse que não está satisfeito com sua cabeça.
- Deveria ter vergonha de ser uma criatura tão supersticiosa. Que relação pode haver entre os dois assuntos?
- O coração tem suas razões... - começou a dizer Jack, mas então sua confusa mente parou na recordação de certos rins que lhe estavam em sua cabeça, abandonou ao coração e continuou dizendo: - Talvez não seja um sábio, mas sei que Julho César adiou um ataque quando viu uma ave negra empreender o vôo desde uma posição desafortunada. E Julho César não era débil, nem tonto, nem mulherengo. Tudo ao mesmo tempo, já sabe. Porém, diga-me, acha que o pobre Bonden poderia levar-nos?
- Eu diria que sim, bendito seja - respondeu Stephen. - Pode me esperar por dez minutos?
Jack virou a luneta para o Bellona, onde a essas alturas já penduravam a falua do pescante, irritante trabalho, totalmente desnecessário no relativo a levar ao senhor Aubrey ao navio insígnia, mas de grande importância para o capitão Aubrey, para os costumes da Armada, para orgulho dos marinheiros do Bellona, orgulho de seu barco e prova de sua preocupação com a dignidade de seu comandante. Praticamente todos eles eram marinheiros profissionais (marinheiros cujos pais haviam exercido também como tais) e gostavam que as coisas se fizessem da maneira apropiada, sobretudo neste caso, pois mais da metade deles tinham servido anteriormente com Jack, quer fosse em sua última missão ou em outros barcos. Era um capitão duro mas querido, um marinheiro excelente, dado ao combate e, sobretudo, excepcionalmente afortunado pelo dinheiro do butim (suas atuais dificuldades legais só afetavam a ele, e não aos marinheiros ou ao restante de seus oficiais).
- Sim, claro - respondeu. E logo depois deu ordens para pôr a pairar o traquete, com o que reduziria suavemente o avanço do navio de apetrechos.
Stephen se apressou a descer à coberta inferior, onde encontrou Bonden meio vestido com o traje que costumava pôr para exercer a função de timoneiro do capitão.
- Bom dia, Barret Bonden - cumprimentou. - Tire esse lenço; venha aqui, debaixo da clarabóia, para que possa ver essa ferida. Como se sente?
- Bastante bem, senhor, Obrigado, o senhor é muito amável - respondeu Bonden, sentado em um tamborete, inclinando sua desgraçada cabeça para que o doutor pudesse tirar-lhe a bandagem. Stephen deu uma espiada ao pericrâneo, carente de cabelo, e à feia ferida que o marinheiro tinha. Sopesou seu estado e os riscos. - Que golpe mais cruel - disse.
- Sim, senhor. Juro que adorava aquela trança, a melhor de toda a frota. - Bonden se acariciou a parte posterior do pescoço, onde havia exibido uma abundante mata de cabelo. - Realmente eu a adorava. Mas voltei para casa arrastando-a, como se costuma dizer, e ganhei outra ruga no trazeiro, ainda que sem dúvida será para melhor.
- Sente-se capaz de levar a falua ao navio insígnia, Barret Bonden?
- Certamente que sim, senhor. Vamos, permitir que o capitão se compareça sem seu timoneiro ante o almirante? Só por cima de meu cadáver.
- Então voltarei a vendar sua cabeça, e poderá tapar a venda com a peruca - disse Stephen, que inclinou a cabeça para um objeto lanoso e amarelado. Enquanto se ocupava do ungüento e das vendas, acrescentou: - Fale-me das rugas de seu trazeiro.
A relação de Bonden e Stephen sempre fora amistosa desde a primeira viagem que fizeram juntos (durante a qual Stephen ensinou o timoneiro a ler com fluidez), e tinha se tornado ainda mais estreita durante o tratamento, de modo que agora Bonden falava com mais liberdade e recorria amiúde a expressões grosseiras e inclusive licenciosas própias de sua juventude nas ruas londrinas, e a sua época de lutador, familiaridade que desagradava muito a Killick, que considerava aquela maneira de falar própia de gente de baixa classe, ignorante e desrespeitosa.
- Bem, senhor, todo mundo sabe em Seven Dials que cada vez que aprendes algo novo seu traseiro se gana uma ruga. Veja, em Dripping Pan aprendi que é preferível ser calvo como uma focha que arriscar-se a que lhe peguem pelo cabelo e possa perder o combate. Foi isso o que aprendi, e me valeu uma ruga no traseiro.
Stephen terminou de vendar a Bonden. O navio de apetrechos se amadrinhou às correntes do costado de bombordo do Bellona, justo quando o contramestre apitou para jogar a falua lentamente ao mar pelo lado de sotavento, e os membros da dotação que a tripulavam (casaca azul, calças de lonita e chapéus de aba larga com rebordo) embarcaram com Bonden ao comando.
Jenkins, o capitão suplente, abandonou o barco com pouca cerimônia depois de conversar durante alguns minutos com Jack. O senhor Harding, imediato do Bellona, informou do sinal que chamava ao navio insígnia ao doutor, e Jack, que pediu a Stephen que embarcasse antes que ele, subiu a bordo da falua e se sentou na bancada de popa.
Cinco minutos depois, a imponente embarcação de doze remos alcançou as correntes do costado de estibordo do navio insígnia, e desta vez Jack foi recebido com todas as honras devidas a um capitão de navio: os apitos do contramestre e ajudantes, os pagens de vassoura com luvas brancas que se aproximaram para oferecer cabos a quem subia a bordo, os infantes da marinha do Queen Charlotte apresentando armas e, após Jack cumprimentar o castelo de popa, o capitão, John Morton, aproximou-se para dar as boas-vindas, para perguntar-lhe como se encontrava e para conduzi-lo ao lugar onde o almirante aguardava.
A chegada a bordo de Stephen, menos cerimoniosa, foi também menos vergonhosa do que muitos de seus companheiros de dotação temiam. Inclusive antes de que o capitão Aubrey se perdesse de vista, Barret Bonden murmurou:
- Fora, Bob. Com o balanço - disse ao jovem Robert Cobbald, jovem nervudo e ágil que estava ao remo, que deu um passo ao vazio, estendeu uma mão para Stephen e o sacudiu para cima alguns degraus, para depois seguir-lhe de perto e conduzir-lhe até o portaló de entrada sem que se produzisse nenhuma ignomínia.
O tenente de guarda do Charlotte e o cirurgião o receberam, e a este último, uma vez trocados os cumprimentos de rigor, Stephen disse:
- Senhor Sherman, que prazer voltar a ver-lhe. Li seu ensaio sobre a larva de Calliphora com todo o interesse do mundo; e, além disso, tenho um caso em mãos para o qual agradeceria sua opinião.
- Acompanhe-me, querido colega, e bebamos uma taça de madeira enquanto lhe falo do tratamento. - Conduziu Stephen à câmara dos oficiais, mas ao encontrar reunidos a alguns companheiros que jogavam gamão, retirou-se dizendo: - Talvez minha cabine, apesar do pouco espaço, seja mais adequada. Existem tantos preconceitos infantis contra o que se conhece vulgarmente por vermes, inclusive entre gente educada, que os dai de dentro nos olhariam com desagrado enquanto conversássemos. Inclusive é possível que chegassem a queixar-se.
- Diga-me, como introduz as larvas na ferida? - perguntou Stephen em quanto estavam sentados na modesta cabine. - Sei que Larrey começava deixando-a simplesmente aberta, depois de proporcionar a presença de moscardos pendurando carne apodrecida no lugar. Claro que lhe falo de um processo que se levava a cabo em terra firme.
- Animo constantemente meus ajudantes para que conservem um bom número delas - disse Sherman. - Geralmente, isolamos os ovos ou as larvas muito pequenas e, naqueles casos mais apropiados, nós as introduzimos na ferida, deixando uma via livre para a ventilação, certamente. O resultado em uma ferida de mau aspecto, supurante, resulta amiúde extraordinariamente gratificante. Já vi pernas gangrenosas, que qualquer outro cirurgião teria amputado sem pensar duas vezes, limpas e totalmente inteiras depois de pouco mais de um mês. Não sabe quanto me agradaria poder lhe mostrar algum caso, mas muito me temo que levamos algum tempo sem entrar em combate.
- O senhor experimenta resistência... Algum obstáculo por parte do paciente quando há de submeter-se ao tratamento?
- A delicadeza é fundamental, mesmo certa economia de palavras na hora de chamar as coisas por seu nome. Contudo, quando se trata de marinheiros, sempre podemos recorrer à disciplina. Mas o senhor havia mencionado um caso cujo progresso não acaba de satisfazer-lhe.
- Isso mesmo. É um profundo coma estertoroso, resolvido após alguns dias: não se produziu fratura do crânio, mas recentemente me parece detectar certa crepitação. Também se dá uma mudança de comportamento e vocabulário que não deixa de surpreender a todo aquele que conhece bem ao paciente. Às vezes me dá a impressão de que possa ter-se produzido uma aberração dos sentidos, e agradeceria muito a opinião de alguém que estuda os homens do mar há muito mais tempo que eu; de alguém que é autor, nada menos, da saúde mental dos marinheiros.
Na cabine-refeitório, o almirante meio se levantou ante a mesa do escritório, estendeu a mão para Jack e disse:
- Bem, Aubrey, finalmente o senhor está aqui. Bom dia.
- Bom dia, milorde. Confio em encontrar-lhe bem de saúde.
- Oh, a esse respeito... - respondeu o almirante. - Sente-se, Aubrey, e diga-me por que o senhor chegou tão condenadamente tarde.
- Veja, senhor, lamento muito, mas quando suas ordens chegaram a Woolcombe já havia partido de viagem para Londres. Não as recebi até meu regresso, momento em que parti de imediato e pude subir a bordo do navio de apetrechos em Torbay.
O almirante o observou fixamente, demoradamente;.
- Pelo que entendi o senhor tinha compromissos no Parlamento.
- Sim, senhor. Tinha que comparecer a uma sessão do comitê, onde se decidia sobre a petição do cercado de um exido.
- Simmons Lea? O exido no qual está interessado meu sobrinho? Para mim parece um terreno ideal para o cercado. E assim lhe disse. Eu o aconselhei que seguisse em frente.
- Foi o que entendi, milorde. Contudo, temo que existia certa oposição por parte dos habitantes do lugar e, com todos meus respeitos pelo senhor, senhor, por parte do senhor da mansão. Em definitivo, a maioria dos peticionários foi considerada insuficiente e a petição recusada.
- Compreendo, compreendo - disse o almirante, que lhe olhou com malícia. Tentou seguir falando em duas ocasiões e, quando finalmente conseguiu modular o tom de voz, acrescentou: - Mas voltemos aos assuntos da Armada. Devo dizer-lhe que suas freqüentes ausências por motivos parlamentários hão exercido uma influência muito perniciosa na disciplina e eficácia geral do Bellona. Certo que nunca foi, nem em seu melhor momento, um barco particularmente eficaz e disciplinado; mas quando conduzi os exercícios na sexta-feira passada na embocadura de baía Douarnenez, enquanto o senhor se divertia na cidade, esteve seu barco a ponto de abordar-me durante a execução de uma simples manobra. Tivemos que afastá-lo enquanto meia dúzia de vozes davam ordens contraditórias desde o castelo de proa e do castelo de popa. Sabe o senhor tão bem como eu que o capitão Jenkins não é melhor marinheiro que sua avó, inclusive quando está sóbrio, mas eu esperava mais de seus oficiais. Afinal de contas, o senhor mesmo escolheu a maioria deles; vamos, que são o fruto de sua eleição pessoal, pois serviram anteriormente sob suas ordens. Tampouco alguém diria que o senhor é um grande marinheiro, Aubrey; mas até agora teve uma sorte endemoninhada na hora de escolher homens que sabiam como governar um barco. Lamento dizer que há esgotado toda sua sorte. Se ao voltar ao Bellona tiver o incômodo de dar uma espiada para o alto da exárcia, acho que mesmo o senhor terá uma surpresa ao ver a quantidade de bandeirinhas irlandesas que pendem por toda partes, para não mencionar o sebo que cobre o mascarão de proa, claro que talvez o senhor prefira tê-lo desse modo. - Fez uma pausa antes de continuar. - Tenho intenção de despachar-lhe para a esquadra que patrulha a costa. A navegação na baía é extraordinariamente difícil e árdua; nem todos os inumeráveis arrecifes aparecem assinalados nas cartas, muito pelo contrário, e alguns meses de andar de um bordo a outro, para cima e para baixo, ensinarão ao senhor e aos seus muito mais sobre o mar que incontáveis e ociosas milhas a mercê dos alísios e da corrente a favor. Além do mais, quando os franceses em Brest vejam o tipo de oponentes aos quais teriam de enfrentar-se, talvez sintam a tentação de sair do porto, e então os barcos que se encontrem em melhores condições poderão encarregar-se de combatê-los. - O almirante moveu os lábios uns segundos depois de dizer estas palavras, mas o fez em silêncio. Então, ao recuperar-se, disse: - Acho que leva a bordo um cirurgião chamado Maturin, o doutor Maturin. Tenha o senhor a amabilidade de dizer-lhe que me agradaria vê-lo.
- Doutor Maturin - disse o almirante com a entrada de Stephen, que se atrasou bastante por causa da visita que fez à enfermaria. - Alegro-me muito de voltar a ver-lhe. Quando ouvi seu nome tive a esperança de que seria o senhor o mesmo cavalheiro que conheci em Bath, com o príncipe William, e descubro agora que estava no certo. Como se encontra, senhor? Por favor, sente-se.
- Bem, e o senhor, milorde? - perguntou Stephen em um tom equívoco. - Agora mesmo não recordo bem...
- Não, já imagino - disse o almirante. - Naqueles tempos tão só era Koop, o capitão Hanbury Koop. Não herdei o título até poucos anos depois. Agora sou Stranraer.
- Foi isso o que ouvi, milorde. Permite-me oferecer-lhe minhas tardias mas sinceras felicitações? Deve de ser uma coisa extraordinária ser um lorde.
- Bem - disse Stranraer, rindo, - não acredito que seja como todo mundo acha, mas tem suas vantagens. De vez em quando lhe proporciona certa quantidade de força, como um cadernal de triplo olho. Mas inha razão para ter lhe incomodado, uma delas, se me o permite, é a seguinte: quando o senhor se encontrava sentado junto ao leito de sua alteza, senti uma repentina e violenta dor aqui. - Stranraer levou sua mão ao lado. - Por um instante achei que era o coração e que ia morrer. Mas depois de trocar um par de palavras com o senhor, tirou algo da bolsa e, em questão de dois minutos (não, talvez não foi tanto), a dor desapareceu por completo. Fiquei profundamente impressionado, assim como o duque, velho companheiro meu de rancho. Recordo que disse: "Assim é o doutor Maturin, capaz de curar qualquer um, desde quando reine a maré alta e o paciente lhe agrade".
- É somente uma superstição muito estendida - disse Stephen. - de fato, eu não faço nada que não possa ser feito por qualquer outro homem de medicina. E nem a maré nem a simpatia influem em minha competência.
Stranraer sorriu e negou, cético, com a cabeça.
- Pois meu principal propósito - disse, - é rogar ao senhor que dê a meu cirurgião, Sherman, o nome de seu elixir. Muito me temo que aquela dor aparece de vez em quando, mas o muito ignorante não encontra remédio algum para curá-la.
- Não, milorde. Devo protestar. O senhor Sherman é um físico eminente. Realizou surpreendentes avanços em matéria de cirurgia e no tratamento das feridas; ninguém conhece tão bem como ele a mente do marinheiro, ou a da gente do interior, por acaso. Inclusive foi consultado no referente ao mal do rei.
- Sim. Ouvi que o chamavam muito para tratar a alguns loucos em terra, e me perguntei por que razão terá embarcado, mas se não pode nem curar uma infernal dor física, de que me serve? Tenho a cabeça em seu lugar. Não necessito para nada de uma pessoa que cuida de loucos, nem tampouco minha gente. Mas me pergunto... - Fez soar o sino para chamar ao despenseiro. - Traga o vinho Madeira e me sirva uma taça, sirva-me uma taça.
"Ademais, tenho entendido, senhor - continuou quando se serviu do vinho, - que o senhor e o capitão Aubrey são companheiros de tripulação já faz alguns anos, e que amiúde comem juntos. Por isso, eu me atreveria a dizer que os senhores são... Como o diria?... Que mantêm uma boa relação, o que honra muito a Aubrey, disso estou seguro. Ainda que supunha que um homem dotado de sua educação e brilhantismo teria adquirido uma maior influência sobre ele.
- De novo, milorde, devo rogar que me permita descordar. A inteligência e sabedoria do capitão Aubrey são muito superiores às minhas. Expostôs suas teorias sobre a nutação ante a Royal Society, e também sobre os satélites jovianos, ensaios ambos que superam em muito minha capacidade, e que receberam o aplauso dos colegas matemáticos e astrônomos.
Se semelhante comentário impressionou a lorde Stranraer, não fez nenhum gesto que o demonstrasse.
- Outro motivo que tenho para supor o dito é a recordação que conservo do que poderia denominar, sem lugar a dúvidas, da influência que o senhor demonstrou ter sobre nosso ilustre paciente (oficial de marinha, a pesar de tudo) na seguinte visita que lhe fez. Foi quando lhe falou do sistema espartano e ele lhe escutou com atenção, sem sequer interromper-lhe e com a boca aberta. O senhor se explicou com suma clareza e durante um bom momento, e quando partiu, o príncipe disse: "grande inteligência, Koop. Isso é inteligência, por Deus!". O que me leva de forma indireta ao tema do qual queria lhe falar: o cercado. É uma medida considerada como egoísta por muita gente, incluído seu amigo, endurecida de coração e infeliz; e não é impossível que meu sobrinho Griffiths, que carece de cortesia, e alguns de seus associados, possam ter reforçado esta impressão. Porém, por favor, peço que me permita assegurar-lhe que existe outro aspecto em esta questão, um aspecto completamente distinto, sim. Não pode descrever-se ao senhor Arthur Young senão como um escritor benévolo e muito entendido em matéria de agricultura, e se mostra a favor do cercado. O presidente de sua respeitável e eminente Royal Society, sir Joseph Banks, cercou milhares de acres para maior benefício de seus arrendatários e da região, de modo que também podemos considerar a ele. O produto de suas terras aumentou imensamente, porque é possível levar a cabo um cultivo racional de grande escala. O quanto aumenta é algo que não posso dizer-lhe com certeza, mas só a colheita de cereal de minhas duas mansões em Essex aumentaram vinte e sete por cento em menos de três anos, desde que os pedacinhos de terra se uniram a campos mais extensos, apropiadamente cercados com cerca, e depois também de levar a cabo as correspondentes obras para a criação de diques. Minhas terras dos Fens também se beneficiaram, pois o rendimento aumentou em nada mais e nada menos que cem por cento, ainda que me custou dez anos para obter este resultado e a drenagem implicou uma grande carga que exigia um capital que os do povoado não podiam reunir de nenhuma maneira. Com relação às mansões existe uma expressão legal, a qual me atreveria a dizer que o senhor conhece: "a terra baldia do senhor". Quanta verdade há nela: centenas, inclusive milhares de acres que poderiam converter-se em pastos ou terra de lavoura sob uma gestão adequada, mas que, de fato, não servem mais que para alimentar algumas cabras e um asno, sem esquecer a caça, que implica uma tentação contínua para os clandestinos (tentação que raras vezes resistem), uma terra que não produz nada exceto pobreza, ociosidade e vício.
Stephen teve a impressão de que lorde Stranraer lhe calibrava com o olhar. O almirante quase havia perdido o fio de seu discurso, e quase com toda segurança temia tornar-se prolixo, fazer-se chato e mostrar-se pouco convincente. De sua parte, Stephen se limitou a guardar silêncio.
- Contudo - continuou Stranraer ao mesmo tempo que se servia mais vinho, - permita-me remeter-me a seus espartanos, os espartanos das Termopilhas, e sugerir uma comparação entre a ralé, mal armada, sem líderes nem disciplina, e aqueles espartanos, ou com um regimento em boas condições de hoje em dia. Talvez seria mais apropriado estabelecer uma comparação entre um punhado de pescadores carentes de organização, onde cada patrão atua à sua vontade, e um navio de guerra de primeira classe, bem governado e com um bom oficial, a máquina de guerra mais formidável que o mundo já viu. Doutor, não quero constranger-lhe com a abundância de detalhes, mas eu diria que existe nos exemplos anteriores uma boa analogia entre um terreno cercado, administrado por homens de educação e capital, e o habitual povoado composto de pequenas propriedades e um imenso e improdutivo exido. Afinal de contas, estamos em guerra; e ainda que esta possa terminar dentro de pouco, sobretudo se podemos manter aos franceses ancorados em Brest, o mais provável é que não tarde muito em estourar a seguinte. Não podemos confiar nos estrangeiros; fixe-se na Espanha, por exemplo: Ora aliada, ora inimiga, e de novo aliada até que deixe de acomodar-lhe a seus propósitos e voltem a girar as tornas. E com o atual sistema simplesmente não podemos cultivar o suficiente em grãos. Não produzimos a carne necessária para alimentar à Armada, o Exército ou a população civil. Eu e muitos outros homens de boa vontade achamos que, do mesmo modo que os espartanos souberam reconhecer qual era seu dever, o de recrutar aos jovens, é nosso dever consegui que os granjeiros alimentem aos guerreiros, granjeiros com duzentos ou trezentos acres, amiúde trabalhados em improdutivos exidos. Não há lugar para sentimentalismos em tempos de guerra; afinal de contas, seus pastoris "Strephons"{8} com palha na boca não eram homens muito valiosos, isso se existiram, porque eu jamais cruzei com um. Enfim, desculpe-me, doutor. Temo ter-me explicado muito mal. Mas se comportaria o senhor como um bom amigo se pudesse expor este ponto de vista a seu companheiro, sobretudo o exemplo do navio de primeira classe que desfruta de boa ordem, o povoado atrasado com barracos, pequenas propriedades e menos granjeiros que caçadores clandestinos, a metade destes últimos pertencentes à própia paróquia. Eu não posso fazê-lo. Não posso por ser parte interessada, porém, decepcionado, falei com ele ao ouvir as notícias que trazia, e temo ter utilizado algumas expressões imprudentes. Griffiths, certamente, é incapaz de fazê-lo. Apesar de tudo, nestes tempos, marinheiros e vizinhos deveriam ficar unidos. A vitória, se chegar - e tamborileou na mesa, - será bem-vinda, mas então virão os maus tempos para a Armada, centenas de barcos serão desarmados e quase todo mundo se verá sujeito a meio soldo porque somente alguns poucos terão o comando de um barco. Uma época na qual um amigo bem situado poderia resultar... - Rompeu a tossir sem terminar a frase, e seu veterano rosto de expressão dominante, pouco acostumado a mostrar-se débil, adotou certo ar de incomodidade. - Temo que devo de ter-lhe esgotado, doutor, e peço que me perdoe. Mas compreenda que me sinto muito interessado por este assunto, assim como no concernente ao dever. Pensará o senhor que estou pessoalmente interessado, o que não pode ser mais verdade; apesar de tudo, acho que posso levar-me a mão ao coração e prometer-lhe que seria da mesma opinião se eu ou meu sobrinho não tivéssemos nem um acre de terra. Sei que valor têm os discursos, de modo que não lhe chatearei por mais tempo, exceto para informar-lhe de que meu secretário tem algumas mensagens para o senhor. - Fez soar o sino, ordenou ao servente que avisasse ao senhor Craddock e disse: - Doutor, obrigado pela paciência que demostrou ao escutar-me. Eu lhes deixarei sozinhos. - E com uma leve inclinação de cabeça abandonou a cabine.
- Jack - disse Stephen quando voltaram a se encontrar na câmara do Bellona. - Admiro a força de vontade que demostrou ao não lhe responder.
- Uma das primeiras coisas que se aprendem na Armada é que fazer a menor réplica para um oficial superior, qualquer justificativa, protesto e acusação, é absolutamente inútil. E se o oficial superior estiver disposto a acabar contigo, é o melhor modo de empurrá-lo a isso. Não. É ruim e muito baixo chantagear alguém que não pode nem responder, mas diria que para ele deve de ter custado fazê-lo.
- Creio que sim - disse Stephen.
Permaneceram um tempo sentados em silêncio. Fazia um bonito dia, e a esquadra, que naquele momento se encontrava bastante ao sul de Black Rocks, estendia-se na baía com pouca vela, rumo aos Saints, mortífera cadeia de arrecifes no qual haviam encalhado muitos barcos.
- Passaremos por Raz de Sein - disse Jack, - e depois o almirante aproveitará o vento para reunir-se a oeste de Ouessant com a esquadra de alto-mar. Ficaremos em companhia do Ramillies, um par de fragatas e um cúter, mais ou menos. Virá de vez em quando, talvez para nos trazer reforços. Agora poderei te mostrar a baía de Dead Man e Pointe du Raz.
Stephen observou o mar e a distante costa do continente, enquanto reparava o agradável empurrão da marejada do sudoeste.
- Aqui tem espaço, ar, a vasta imensidão do oceano, este maravilhoso aposento, serventes e comida em quantidade, nenhuma preocupação doméstica, a centenas de milhas de ver-se importunado; tal como eu entendo, simplesmente temos que nos limitar a percorrer de ponta a ponta esta espaçosa baía. Desfrutaremos de uma agradável singradura, creio. Talvez depois do jantar possamos tocar um pouco.
- Com todo prazer - disse Jack. - Quase não toquei violino neste mês. Por certo, convidei Harding e um de seus novos guardas-marinhas, um garoto chamado Geoghegan, cujo pai foi muito amável conosco em Bantry. Pobre tipo. É muito inteligente para os números e toca bastante bem o oboé; mas é incapaz de aprender a fazer um único nó como um bom cristão.
- Escute - disse Stephen. De novo, Jack compreendeu que seu amigo tinha a cabeça em outra parte. - Pode me escutar? O almirante, com seu modo arteiro de abordar o assunto, deixou cair algumas palavras que faziam brumosa referência ao futuro. Pareceram-me estar em harmonia com alguns de seus lamentos relacionados com o emprego de almirante da esquadra amarela e, inclusive, com seu supersticioso ódio pela cor em questão. Agora tenha a amabilidade de explicar-me o assunto mediante o uso de palavras que uma mente simplória como a minha possa compreender.
- Precisamente outro dia expliquei isso a Sophie - disse Jack, - de modo que espero poder fazê-lo com igual simplicidade, ainda que algumas das coisas que uma pessoa acreditou por toda a vida, como o fluxo da maré, são difíceis de explicar a quem não entende o significado de maré baixa e maré alta, como por exemplo os nascidos em Tumbuctú. Vejamos. Antes, qualquer pessoa que ascendia ao emprego de capitão de navio tinha a certeza de alcançar o Estado Maior por uma questão de antiguidade, desde que não fizesse nada desastroso ou recusado um destino mais de uma ou duas vezes (por destino refiro-me a um comando que lhe ofereceram). Ao chegar a cabeça da lista de capitães, converteria-se em contra-almirante da esquadra azul na promoção seguinte, e hastearia portanto sua insígnia no mastro mezena. São os louros mais importantes na carreira de um oficial da marinha, de modo que morreria feliz. Em caso de seguir vivo, alcançaria, também por antiguidade, depois de passar pelos diversos escalões, a categoria de almirante da frota. Contudo, a tradição quebrou-se no ano de 1787, quando se ignorou um oficial de mérito, o capitão Balfour. Desde então, nada voltou a ser o mesmo. Agora são muitos os que encontram seu nome incluído na lista de oficiais da Armada na qualidade de capitães retirados, ou, em caso de ser isto flagrantemente injusto, como contra-almirantes, mas sem estar designados a nenhuma esquadra em concreto e, portanto, sem comando. Quando ocorre tal coisa se diz que o "amarelaram", que foi nomeado para o comando de uma imaginária esquadra amarela. Se levou a Armada dentro de seu coração durante toda a vida, morrerá desgraçado. Estou seguro de que isso pode ocorrer a mim. Implica uma desgraça notória, e seus amigos a duras penas reúnem a coragem suficiente para olhar em seus olhos.
- Porém, meu querido, ainda lhe resta um bom trecho para alcançar a cabeceira da lista. Creio que terá que servir alguns anos mais, antes de se preocupar com a insígnia.
- Verdade, isso mesmo. Mas é o último período que é decisivo, o tempo em que o Almirantado madura lentamente uma decisão, os anos em que deve distinguir-se se for possível e, sobretudo e antes de tudo, o lapso de tempo em que não deve dar um fora. Sobretudo agora, que existe o perigo real de que se acorde uma paz e uma quantidade inumerável de oficiais acabem em terra e tenha que buscar os comandos como agulhas em um palheiro. Não acho necessário lhe dizer, Stephen, quanto anseio receber a ordem que me nomeie (na qualidade de contra-almirante da esquadra azul) para o comando do mais insignificante dos barcos, o Mosquito, corveta de sua majestade, de cujo mastro mezena hastear minha insígnia. Faria o que fosse por isso. O que fosse.
- Simmons Lea entra dentro dos limites de "o que fosse"?
- Não, certamente que não, Stephen. Como pode ser tão... raro?
- Concordarás comigo que se trata de uma expressão muito... elástica. Contudo, ainda que seus temores se vissem confirmados, isso não suporia por necessidade o fim de sua carreira de marinheiro. Fiz bons amigos no Chile, três dos quais tive oportunidade de voltar a ver durante minha viagem pela Espanha, homens notáveis e muito bem informados, que dão por certo o inevitável final desta guerra e a independência de seu país. Também são conscientes da mais que provável rivalidade entre as províncias independentizadas, ou a intenção de dominação do Chile por parte do Peru, assim como da necessidade de uma Armada chilena, comandada pelo menos em parte por homens muito experientes, vitoriosos em quase todos os combates que tenham travado. Que recruta mais adequado poderiam encontrar que um almirante como você, ainda que por culpa de uma jogada política lhe tenham esquecido nessa esquadra amarela que acaba de mencionar?
Permaneceram sentados e em silêncio durante um momento, enquanto pensavam no que tinham falado e nas possibilidades que oferecia.
- Ali está a baía de Dead Man - disse Jack. - E agora estamos em Raz de Sein, uma endiabrada passagem quando há mau tempo. Pela hora de jantar, e acho que já ouço Killick preparar os copos, deveríamos ter Pointe du Raz pela alheta de bombordo.
Stephen assentiu, inclinou a cabeça e com um curioso olhar de sapiência, perguntou:
- Poderia predizer a lua nova com uma precisão razoável?
- Acredito que sim - respondeu Jack. - Como sabe, suas evoluções são de certa importância para a navegação, de modo que as aprendemos quando pequenos.
- Bem, alegra-me ouvir-lhe dizer isso, porque quando a lua esteja o mais escura possível terá que desembarcar-me, a mim e a um cavalheiro que neste momento se encontra a bordo do navio insígnia, em um porto situado ao sul desta mesma Pointe du Raz.
Jack voltou a olhar para o mar.
- Quão sérios são seus amigos? - perguntou após um tempo.
- Totalmente sérios - respondeu Stephen. - Contam com a confiança de O'Higgins e companhia. São gente de peso específico nesses lares e estão completamente decididos a conseguir a independência. Mais sérios, impossível.
Outro silêncio.
- Haverá lua nova dentro de oito dias - disse Jack.
CAPÍTULO 5
Durante cinco dias e cinco noites se limitaram a percorrer a espaçosa baía de ponta a ponta, admirando o fluxo de ondas e pescando pela borda, o que sem dúvida constituiu uma encantadora travessia; pelas tardes costumavam interpretar música até a hora de jantar, às vezes até mais tarde. No sexto dia, confundidos pelos informes que asseguravam a chegada de um comboio procedente de Lorient, a esquadra que patrulhava perto da costa atravessou de novo Passage du Raz até a ponta oposta de baía de Audierne, onde os barcos que a compunham se puseram a pairar, e Jack despachou a Ringle para dar uma espiada no porto e nas pequenas enseadas que se repartiam mais ao sul.
O capitão Aubrey comera na câmara dos oficiais, lugar que para a ocasião também contara com a presença do cirurgião do Bellona, membro da mesma por direito própio. Jack se encontrava no castelinho, tomando um café com William Harding, imediato do barco, o capitão Temple da real infantaria de marinha e o senhor Paisley, contador, homem sociável, grande jogador de uíste, sempre disposto a tocar sentimentais baladas com sua viola enquanto os outros cantavam. Também se achavam presentes Stephen e mais alguns cavalheiros.
- Ali, doutor - disse Jack, apontando um arrecife de temível aspecto, situado a meia milha pelo través de bombordo. - São as Penmarks.
- Ouvi falar delas em mais de uma ocasião - disse Stephen. - Sempre com grande desagrado, e inclusive aversão.
- Não encontrará ocultas entre elas nem a Escila nem a Caribdis, com este forte vento do sudoeste e a maré minguante - disse Jack. - Tampouco a Gorgonzola. E aquilo dali é Penmark Head. Meu Deus, pequena noitezinha terão tido - comentou voltando-se para Harding.
- Sim, senhor - disse este. - Não quereria voltar a passar uma noite parecida.
- Suponho que não - disse Jack. - Doutor, está familiarizado com os Droits de l’Homme?
- Poucas coisas me resultam mais familiares que uma boa obra de ficção. Em minha juventude escrevi algumas versões, cada uma delas mais liberal que a anterior. Em uma cheguei inclusive a incluir às mulheres, assegurando que eram...
Os marinheiros sorriram com indulgência.
- Refere-se a um navio de guerra, doutor - esclareceu imediatamente o contador. - É um barco francês de setenta e quatro canhões. Seu nome se refere à época de maio fervor revolucionário, em noventa e seis ou noventa e sete. Foi então quando o batizaram assim.
- A época da expedição de Hoche à Irlanda - propôs Harding.
- Disso sim me recordo - disse Stephen, que sentiu como um arrepio percorria sua espinha dorsal. Então teve a impressão de que devia dizer algo mais a respeito. - Suponho que me falará disso?
- Sim, por favor - disse o infante de marinha. - Naqueles tempos eu servia na Índia.
- Bem - disse Harding, mergulhando em suas recordações. - Tudo começou aqui, em Brest, pouco antes do Natal do ano de noventa e seis. Os franceses tinham reunido dezessete navios de linha, treze fragatas, seis bergantins com aparelho de corveta, sete transportes e um navio carregado de pólvora. Nós estávamos a par de seus movimentos, certamente, ainda que não sabíamos aonde se dirigiam, e o almirante Colpoys desfrutava de efetivos frente a Ouessant, enquanto que a esquadra que patrulhava a costa estava sob o comando de sir Edward Pellew, a bordo da Infatigável, uma fragata de quarenta e quatro canhões. Recordará o senhor, doutor, que a Infatigável nasceu como fruto da modificação de um navio de duas pontes, era uma fragata pesada que armava canhões de vinte e quatro libras. Eu então servia a bordo na qualidade de segundo do piloto de derrota. Sob seu comando havia outras três fragatas e um lugre. Os franceses saíram uma noite que soprava uma suave brisa do leste, quarenta e quatro velas com uns vinte mil soldados a bordo; puseram rumo a Passage du Raz, para evitar o almirante Colpoys. Um dos barcos encalhou em Grand Stevenet, que se encontra justo no início da passagem, e os demais saíram pelo Iroise, pois seu almirante mudara de intenção na última hora do dia, ao cair a noite. Produziu-se uma grande confusão de sinais, luzes e canhonaços. Porém, ainda que sir Edward tenha avisado ao almirante e a Falmouth, não puderam interceptá-los. Não. Navegaram através da bruma e o temporal até baía Bantry, onde sofreram toda sorte de contratempos: tormentas e mais tormentas, e os barcos que não perdiam a âncora eram empurrados para mar aberto, enquanto que as fragatas afundavam o castelo de proa no mar, isso quando não se iam pique. Era impossível desembarcar as tropas e a comida estava acabando; após um tempo a maioria regressou para a França com o rabo entre as pernas. Houve um segundo encontro frente à embocadura do Shannon. Algumas embarcações deram uma espiada, mas só uma permaneceu tempo suficiente para comprovar que não havia esperança, e ao não encontrar ninguém em Bantry não rumou para Brest, como fizeram muitas outras, senão para um ponto situado mais ao sul, provavelmente Rochefort. Estava sob o comando do comodoro La Crosse, bom marinheiro, e nós (a Infatigável e a Amazon, de trinta e seis canhões) o avistamos pela primeira vez mais ou menos às três e meia, no meio do temporal, na tarde de treze de janeiro, quando navegávamos a 47° 30' N, com Ouessant ao nordeste, a cinqüenta léguas, um vento cada vez mais fraco procedente do oeste e uma marejada de mil demônios. Encontrava-se um pouco ao nordeste de nossa posição e não podíamos distingui-lo bem, mas nos pareceu que se tratava de um navio de duas pontes sem castelinho, e que levava fechadas as portalós da segunda bateria, o que nos deu a entender sem lugar a dúvidas que se tratava do Droits de l’Homme, conhecido pelo muito que afundava o casco. E enquanto todos no castelo de popa o olhavam através da luneta, o alcançou uma onda das grandes que se levou pela frente as braças da gávea maior, seguidas pelos mastaréus do traquete e maior, que caíram sobre os canhões de sotavento. Eles os desembaraçaram muito rápido, pois contavam com que os atacaríamos por esse lado, mas quando nos achávamos a uma distância de buzina, com as gáveas rizadas, sir Edward tomou o vento para passar por sua popa. Contudo, o barco inimigo fez o mesmo e trocamos descargas. Não precisa nem falar que servimos de alvo a um prodigioso fogo de mosquete, cortesia de todos os soldados que levava a bordo. Então, sir Edward tentou cruzar por sua proa e disparar-lhe ao comprido de toda a coxia, mas o francês voltou a frustrar seus planos e fez tudo o que pôde por abordar-nos. Ao evitá-lo descobrimos a popa, mas tinha as portalós da segunda bateria de tal forma afogadas no mar, e o balanço que a submetia era tal (somente mareava as maiores e sobremezena), que não nos fez muito estrago. Depois, quando esteve a ponto de fazer-se completamente de noite, a Amazon passou como um raio e descarregou uma descarga de bombordo na alheta do Droits, isso a uma distância de um tiro de pistola, antes de cruzar por sua popa e dedicar-lhe outra descarga. De novo o francês virou em roda, com o que nos mostrou o costado de estibordo, muito menos ferido; e estivemos nos disparando até as sete e meia com rumo sudeste e um vento que tinha rolado uma ou duas quartas. Tanto a Amazon como nós passamos um tempo para realizar as reparações necessárias, assim como para carregar a pólvora (certamente, tínhamos tanta no paiol que nos chegava ao joelho) com as gáveas em pé. Uma hora depois voltamos de novo à tarefa, manobramos sobre suas amuras, uma fragata de cada lado, e demos guinadas para varrer sua proa em turnos, enquanto o francês fazia o mesmo, pois ainda respondia ao leme com rapidez, o que nos causou mais danos, além de que tentou abordar-nos constantemente. Em torno das dez e meia se desfez do pau de mezena, e algo mais tarde nós nos afastamos para assegurar os paus, pois o francês tinha a mastreação feita algumas raposas. Além disso, o fogo quase não escasseiou até depois das quatro da manhã, momento em que a lua burlou os negros nimbos e iluminou terra à vista, muito perto, de modo que os três barcos orçaram tanto como foi possível fazê-lo contanto para não encalhar. Mas antes do amanhecer havia brancas arrebentações pela amura de sotavento. Viramos em redondo, rumo ao norte, e, quando amanheceu, aí estava de novo a costa, diante e muito perto, pela amura de barlavento, com arrebentações a sotavento. De novo viramos em redondo para o sul, em águas de vinte braças. E então, justo após as sete, lá o vimos: O Droits de l’Homme, que havia encalhado, descansava sobre um costado enquanto o tremendo fluxo de ondas banhava toda a madeira. Justo ali - assinalou muito comovido pela forte impressão que ficara gravada em suas lembranças, - justo ali, atrás daquela rocha alta e pontiaguda... Seiscentos mortos, pelo menos. É o que dizem. Não seguirei descrevendo os horrores da guerra - disse com uma sorriso incômodo, consciente de ter falado demais. - De qualquer maneira, doutor, o senhor os conhece muito melhor que eu. A Amazon também tinha encalhado, mas mais para o interior, de modo que pudemos salvar quase todos. O vento soprava para terra, a maré estava em plena ebulição, e não havia nada, nada que pudéssemos fazer pelo Droits de l’Homme. Tínhamos quatro pés de água na sentina...
Quase não conseguimos nos afastar, navegando durante um tempo por águas infestadas de arrecifes, e os nossos estavam tão exaustos que apenas podiam puxar das braças do maior. Permanecemos ao pairo por um tempo, e enquanto o barco recuperava a disciplina e o cirurgião e seus ajudantes cuidavam dos feridos, o cozinheiro preparava algo quente que os marinheiros pudessem pôr no estômago. E, apesar das ondas seguirem sendo altas como torres, não tardou em limpar o céu sobre as Penmarks e a margem. Foi isso precisamente o que me fez pensar no Droits de l’Homme, aquela mesma luz verdosa que se estende sobre os arrecifes e a margem por todo o cabo até Saint Guénolé, vêem? Sempre se serviram dela para predizer a chegada do mau tempo. Creiam-me, asseguro-lhes que passamos muito mal durante uma semana ou dez dias depois do combate.
- O senhor Harding disse uma semana ou dez dias, verdade? - perguntou Stephen.
- Creio que sim - respondeu Jack. - Poderia passar-me a geléia?
- Oh, perdoe-me, eu lhe rogo - exclamou Stephen quando o barco deu um solavanco para sotavento e a terrina lhe escapou das mãos.
- Killick, Killick! Passe o esfregão sem esquecer o trapo úmido. E depois traga outra terrina de geléia.
- Outra vez? - perguntou Killick. - Outra... vez? Ontem o mesmo, e a quinta-feira, igual, ainda que daquela vez derrubou o condenado leite. Estive de joelhos toda a guarda de oito a doze da manhã... Este tapete não voltará a ser o que era. - Disse isso último resmungando em voz baixa, debaixo da mesa: - Tampouco tem mais geléia de laranja para atirar ao piso.
Quando finalmente se retirou, Jack disse:
- Por sorte, só era uma terrina normal e comum, não aquela esplêndida irlandesa que nos presenteou. Sim, disse dez dias; porém, entenda-me, só foi uma forma de falar. Estes temporais não se regem pelo calendário.
- Quando afrouxe esta tormenta, talvez recebamos correio. Quanto me agradaria receber notícias de Woolcombe. E também de Londres e Ballinasloe. Não sei quem tentou convencer-me de que uma das escassas vantagens do bloqueio de Brest era que permitia a quem o realizava receber constantemente suprimentos de comida fresca e o correio.
- A verdade é que é muito mais suportável que, ponhamos, o apostadero de Nova Holanda, mas somente durante o verão. Seu informante, o homem que lhe conduziu a sofrer semelhante indignação, devia estar pensando no verão, não na estação das tormentas equinociais ou, mesmo, nas mais temíveis tormentas invernais. Mas não se desespere. O barômetro não para de subir, assim como a umidade. Amanhã pela noite, ou na seguinte, que coincide com a lua nova, talvez possamos desfrutar de uma dessas brumas que fizeram famosa esta baía, sobretudo porque o vento cairá. De fato já o faz. Amiúde uma chuva constante, como esta, apazigua tanto ao mar como ao vento. Quando tenha terminado de desjejuar, não gostaria de pôr o jaquetão e dar uma volta pelo convés?
- Não. Em primeiro lugar porque não gosto de me molhar, e em segundo lugar porque devo terminar o boletim da enfermaria, costume que o doutor Rutherford recomendou respeitar em todos os barcos. Também devo dedicar-me um pouco a minhas própias anotações médicas.
- Sim, claro. Quando se alcança certa posição, passa-se mais tempo com a pena na mão que outra coisa. Quando me tenha ocupado desses guardas-marinhas, o senhor Edwards e eu temos que dedicar um tempo à redação do caderno da bitácula. Ademais, tenho pendentes uma vintena de folhas de pedido que supervisionar e firmar. Mas depois do almoço, se isto se acalma o suficiente como para que possa se sentar para tocar o violoncelo, me agradaria que praticássemos um pouco a nova peça de Benda.
- Como não. Resta café nessa cafeteira? - restava, e uma vez consumido, Stephen acrescentou: - Estive falando com aquele garoto, Geoghegan, e descobri que conheço a muitos de seus conhecidos espanhóis: sua avó era uma Fitzgerald. Quer que lhe conte por que custa tanto para ele aduchar um cabo do modo que comprazeria a seus superiores?
- Não me diga que não é devido a uma tara de nascimento?
- Não. Assim como muitos outros conterrâneos seus, é um ciotóg, um canhoto. E se o deixam à vontade aducha tudo ao revés.
- Então não podemos deixá-lo à vontade...
Jack soltou uma diatribe sobre a necessidade de respeitar a uniformidade na Armada (para que todos os cabos deslizassem adequadamente), sobre os terríveis resultados que implicaria o contrário, em uma emergência, por exemplo e na prática contrária; quando fez uma pausa para alcançar uma torrada, Stephen disse:
- Existem diversos graus no que se referem a um canhoto, alguns são insuperáveis, outros podem ser corrigidos, ainda que geralmente implica pagar um preço, às vezes muito caro, para a alma. A harpa de Brian dos tributos, rei da Irlanda impossível de persuadir, conduz a melodia com a mão esquerda; e o oboé de carvalho deste garoto, feito por seu pai, um cavalheiro muito hábil, é uma imagem espelhada do instrumento de sempre. Acha que seria impróprio pedir-lhe que tocasse conosco? Tem um grande talento para a afinação.
- Certamente que não, adoro o oboé. Não tem a melosa doçura do clarinete. Mas com relação a nosso garoto... Parece um jovem modesto e bem educado, sim, mas conheci um guarda-marinha nas Antilhas que era surpreendentemente bom jogando xadrez, tanto que podia ganhar de qualquer um. O almirante, que jogava muito bem, convidou-o e perdeu uma partida depois da outra. Ele ria; mas a coisa não terminou bem. O garoto cresceu, falava demais, começou a dar-se ares e se tornou tão impopular no camarote e o surraram tanto que tiveram que trasladá-lo. Contudo, às nove me fixarei bem no jovem Geoghegan; e se puder fazer poderíamos tentar.
Às nove em ponto os jovens cavalheiros do Bellona que não estavam de guarda compareceram à cabine do capitão limpos como pátenas, escovados os uniformes e adequadamente vestidos, acompanhados pelo senhor Walkinshaw, o mestre.
- Bom dia, senhor - cumprimentaram com um marcial pulo ao entrar Jack. - Bom dia, senhor - cumprimentaram alguns com voz rouca, outros com voz escandalosa, vacilante, uma oitava acima. Jack lhes pediu que se sentassem. Geralmente, apresentavam seus deveres ao capitão por ordem de antiguidade: o cálculo da posição do barco, resolvido a partir da observação da altura do sol ao meio-dia ou por duas altitudes, por estimativa e, às vezes, simplesmente copiando de outros companheiros mais dotados para as matemáticas. Mas o tempo que tiveram naqueles últimos dias fora tão mau que impossibilitara as observações, de modo que Jack se limitou a pedir ao senhor Walkinshaw que repassassem de novo a Pitágoras, chamando-os por turnos para praticar os teoremas mediante os quais se demonstravam, com elegância e convicção, suas teorias. Quando jovem, ensinaram muito mal a Jack, como muito as regras empíricas, e não foi senão até muito depois que descobriu a beleza pitagórica e o esqueleto de Napier{9}, descobrimentos que iluminaram um amor pelas matemáticas cuja chama se mantivera constante desde então. Confiava em conseguir o mesmo efeito naqueles jovens mediante uma exposição repetitiva. Para cada fornada de guardas-marinhas o havia conseguido em um ou dois casos, o que provavelmente não teria ocorrido se tivesse deixado única e exclusivamente nas mãos dos mestres a bordo.
O mestre que servia nesse momento no Bellona, o senhor Walkinshaw, era melhor que a maioria. Sabia muito de matemática e navegação, e geralmente estava sóbrio. Contudo, como a maioria de seus colegas, tinha pouca autoridade. Comia com os guardas-marinhas no camarote, pouco mais lhe pagavam que a eles, as ordenanças não lhe proporcionavam uma posição clara no barco, e teria que ser um homem excepcional para desenvolver um caráter forte. O senhor Walkinshaw não tinha conseguido, de modo que suas aulas resultavam muito mais tranqüilas, disciplinadas e proveitosas quando estava presente o Todo-poderoso; este prestava atenção a maior parte do tempo, interrompia em ocasiões e, sobretudo, aprendia muito sobre o caráter dos garotos.
Naquele dia seus olhos estiveram mais atentos a Geoghegan que aos outros. De novo reparou em sua desajeitada e difícil forma de escrever com a mão esquerda, sua modéstia na hora de responder as perguntas que lhe faziam, seu sorriso quando lhe diziam que estava no certo, um sorriso que seria encantador nos lábios de uma garota. "É muito belo para seu própio bem, muito, muito belo - refletiu Jack. - Comportar-se-ia como um monstro se fosse consciente disso; por sorte, não é."
- Senhor Dormer - disse a um jovem cavalheiro cuja atenção parecia divagar, - defina um logarítmo, por favor.
Dormer ruborizou-se e endireitou a costas.
- Um logarítmo, senhor - disse, - é quando eleva a dez a potência que lhe dá o número no qual pensou primeiro.
Depois de algumas respostas mais desta índole, Jack pediu ao senhor Walkinshaw que retomasse o fio argumentativo dos princípios da trigonometria esférica, e se dispôs a folhear a cópia do caderno de bitácula do Bellona que seu escrevente tinha que passar a limpo ao finalizar a jornada, quando o mar, mais acalmo, permitisse fazê-lo com a melhor letra possível.
- Não diga nunca que não sou um profeta do tempo - disse Jack quando se sentou em companhia de Stephen ante a mesa, que já não necessitava de cunhas para impedir que os pratos acabassem no colo dos comensais. - Eu me atreveria a dizer que minha bruma está a caminho.
- Deus lhe ouça, querido amigo. Lamentaria muito faltar ao meu encontro.
- A pesar de tudo, não tem que ser muito densa, pois embora nosso piloto bretão conheça a baía como as dobras de seu lençóis, necessita de um terminus a quo e de um terminus ad quem. - Dedicou a Stephen uma olhada de satisfação e calou durante alguns segundos; mas o rosto de seu amigo, atento e educado, não delatou a menor mudança, e Jack, que não era amigo de ressentimentos, continuou: - Agora está fazendo marcas nas cartas do Ramillies. Por certo, convidei seu capitão para almoçar hoje conosco (desfrutaremos de um enorme e esplêndido ganso), mas me pediu que o desculpasse. Ao que parece está se medicando.
O que queria dizer que, ao dar as sete badaladas da guarda da alvorada, o capitão do Ramillies ingerira todo o ruibarbo, enxofre, suco de figos e qualquer outro purgante que tivesse a mão, de tal maneira que pudesse passar sentado no jardim a maior parte do dia, gemendo e fazendo força, obviamente incapaz de ser convidado de ninguém.
- Pergunto-me como um homem com a inteligência do capitão Fanshawe, educado e com bom gosto, se obstine dessa forma em semelhante tormento, nocivo e supersticioso - disse Stephen em um tom de autêntica indignação. - É um dos legados mais desafortunados da Idade Meia. Selvagismo em estado puro.
- Oh - disse Jack, - recorda que William Fanshawe estudou medicina, e que sabe mais que a maioria, eu lhe asseguro. É um grande leitor, e tem um livro de um tipo chamado Piggot que advogava pela superioridade das verduras ante o pão, e que sustentava que os gorros são muito melhores que os chapéus. Seus argumentos, pelo que me lembro, não podiam ser mais convincentes. Tinha algo a ver com os humores.
Esta não foi a única vez que Stephen ouvia falar de medicina dos oficiais da Armada. Como costumava fazer, limitou-se a assentir, e foi mais ou menos nesse momento que irrompeu o esplêndido ganso servido por Killick, que fez um denodado esforço para não deixar-se levar pela força da marejada e que, a julgar pela expressão de seu rosto, não podia caminhar mais concentrado. Ele o serviu na mesa sem derramar uma só gota da abundante gordura em que o havia banhado.
Deixaram os imponentes restos da ave (que Stephen tinha cortado com a destreza que lhe caracterizava) para o camarote dos guardas-marinhas, em virtude de um caridoso costume da Armada; depois, serviu-se o vinho do porto.
- Esta manhã estive observando aquele jovem - disse Jack, - e acho que poderíamos dar-lhe uma oportunidade. Nestes casos sempre existe o perigo de que se a coisa não sair bem poderia prejudicar ao garoto ou jovem, sei de casos nos quais coorreu assim. Mas acredito que poderíamos tentar. Conhece o quarteto para oboé em fá maior de Mozart?
- Sim, senhor.
- Pois, claro que sim, certamente que o conhece - exclamou Jack. - Não me faça caso, só falava em voz alta... Não, quero dizer que me encantaria ouvi-lo de novo. Paisley tem boa mão para a viola. Nós o tocamos em Funchal com aqueles alegres frades portugueses, e voltamos a tocá-lo... Onde?
- Não me recordo. O que lembro é que se rompeu uma corda da viola na frase mais importante e que todos nos vimos afundados em uma penosa confusão; além do mais, perdemos por completo a coesão. O piso se abriu sob nossos pés, e dizer que tudo foi por água abaixo quase não faria justiça a nossa decepção.
- Nápoles. Foi em frente a Nápoles. O oboé era tocado por um castrato da ópera, e John Jill do Leviatã se encarregou de tocar a viola. Pelo menos até onde chegamos. Recordo-me o muito em que o lamentamos: não tinha corda de reposição. Stephen, seria tão amável de pedir a Paisley que estude a partitura? Se eu pedisse seria como se lhe desse uma ordem, e afinal de contas é seu companheiro de rancho. Acha que poderia averiguar se o garoto seria capaz de tocar sua parte? Vamos, se ele gostaria de tentar, e, se for esse o caso, tem que repassar a partitura. Não me interprete mal, Stephen, mas estas coisas se encaixam de outra maneira quando é pedido por alguém que coloca sanguessugas em suas têmporas (para seu própio bem, certamente), que se for feito por alguém a quem não se pode contrariar e cuja função principal consiste em ostentar o comando. Não. Creio que me expliquei mal. Não se ofenda, Stephen. O que passa é que nem mesmo eu me acho tudo isso: não creia que me tenho por outro Poncio Pilatos ou Alexandre Magno.
- Nem me havia ocorrido pensá-lo, querido. Com relação ao jovem Geoghegan, pelo que entendi a música de câmara faz parte de sua rotina familiar desde que era uma criança. No concernente ao contador, sei que toca no coro da paróquia quando está em terra, e que ainda que no camarote não interprete mais que tonadilha de Vauxhall e Ranelagh, é perfeitamente capaz de tocar outras peças. E agora lhe peço que me fale do piloto bretão - disse ao servir-se de outro copo de vinho.
- Oh, é um dos pescadores que o Calliope recolheu quando resgatava a quem tentava escapar depois das lutas em Vendée. Monárquico, certamente.
- Entendo. Dou por sentado que sua lealdade está fora de toda dúvida.
- Creio que sim. Nós os temos a bordo desde então, repartidos por toda a frota; e acredito que durante a paz levaram suas famílias para a Cornualha, ao Mercado Judeu. Utilizam o mesmo tipo de linguagem, como creio que saiba, e se dão muitobem a gente da região e com os pescadores. Este se chama Yann: o almirante nos o enviou faz pouco para anotar nossas cartas. Agora está anotando a do Ramillies, e amanhã o receberemos a bordo.
- Tanto melhor. - Stephen apurou o copo e acrescentou: - Agora vou fazer minhas rondas. Se o mar recuperar a razão, acho que poderíamos tocar um pouco de música depois do jantar. E se as rondas não me exigirem muito, acho que poderia obter respostas a seus perguntas muito antes de sentar-nos à mesa.
- Bem, querido - disse ao entrar, justo antes de que servissem as torradas de queijo fundido, prato que nunca faltava na hora de jantar, desde que dispusessem da matéria prima necessária, - minhas pesquisas não poderiam ter resultado mais satisfatórias. Cruzei com o garoto por pura casualidade. O encontrei fazendo nós com seu padrinho do mar... Está familiarizado com essa expressão?
- Bastante. Meu própio padrinho, o velho William Parsons, era o melhor dos homens. Tinha uma paciência infinita.
- Este também. Uma e outra vez lhe dizia: "Não, senhor: a direita sobre a esquerda e, depois, através do laço", sem pôr nisso uma ênfase especial. E quando finalmente o teve amarrado, disse que Nelson não o teria feito melhor e que conseguiria converter ao senhor Geoghegan em todo um marinheiro. Depois se afastou para estivar o cabo onde queira que se estivem os cabos, de modo que pude falar com o garoto sozinho. Certamente que conhece o quarteto; de fato, interpretava-o continuamente em casa, com seu pai ao violoncelo, seu tio Kevin ao violino, e o primo Patrick à viola, mas me disse que se sentiria mais à vontade se pudesse dispor da partitura. Com o senhor Paisley foi praticamente igual. Não me pôde assegurar que tivesse tocado sua parte neste quarteto em particular, mas deu a entender que estava muito familiarizado com a mesma. Inclusive me disse que se não estivesse, tal como o própio patrão poderia atestar, tinha tão bom olho que não necessitava estudar a partitura antes de tocá-la, desde que disponha de boa luz para iluminar o atril.
- Sim, eu o vi repassar uma pilha de folhas manuscritas, sem ter tido contato prévio com elas, e não pareceu experimentar problema algum, o que fala claramente de sua capacidade. Que alegria. Permite que lhe serva um pedaço deste estupendo e aromático queijo.
- Se é tão amável. Que me diz do tempo que fará amanhã? Acha que será mais adequado?
- Não prometo nada, mas Harding e o piloto, e lembre que ambos conhecem bem Ouessant, têm a mesma opinião: a menos que se torne tão densa que não possamos nem ler a partitura, amanhã (e toco a madeira) fará um tempo tão adequado como qualquer pessoa razoável possa esperar.
E aquelas quatro pessoas razoáveis quase não puderam desfrutar de um tempo melhor. Seguia golpeando uma forte marejada procedente do sudoeste que, esporeada pela maré, era composta de elevadas ondas brancas, temíveis nas ilhas e arrecifes dos Saints e nos escarpados do continente, mas o vento caíra até não servir mais que para as joanetes e, ainda que a bruma de Jack apenas tinha adotado a forma de um véu, não restava dúvida alguma de que bastaria para afogar inclusive uma semifusa. Contudo, quando Jack e Stephen se reuniram para desjejuar, ambos se observaram mutuamente e foi Stephen que perguntou:
- Melancolia, querido amigo?, entristecido?
- Um pouco, sim - respondeu Jack. - Não me agrada nada o comportamento do barômetro - disse assinalando o elegante barômetro em cardan de bronze. - E não é que me preocupe muito a pobreza. Mas não posso permitir-me convidar para minha mesa aos oficiais; não posso permitir-me convidar aos outros capitães tal como dita a tradição da Armada; e além disso, não posso permitir-me comprar pólvora para compensar a miserável quantidade que nos designam. Hoje, para assombro de própios e estranhos, faremos preparativos de combate e realizaremos exercícios com os canhões; mas o único exercício válido é o que se realiza com pólvora, com seu furioso retrocesso, com a correspondente nuvem de fumaça. Neste dia perfeito somente podemos nos permitir ao luxo de disparar duas descargas de verdade por bateria. Porém Stephen, diria que você também padece do mesmo mal. Acossado pelos diabinhos da tristeza? Melancólico?
- Nada que não possa limpar um bom café e, talvez, um ovo pouco fervido - respondeu Stephen. - Mas sim, entristece-me pensar que ainda que a idade não tenha prejudicado seriamente minha capacidade em certos aspectos, ou disso me gabo, experimento uma autêntica dificuldade na hora de familiarizar-me com a geografia deste homérico navio.
Conheço perfeitamente a enfermaria, o camarote, e essa interminável série de cabines e cabininhas; mas quando passeio de qualquer maneira, tal como fazia quando me encontrei por casualidade com o jovem Geoghegan, tudo se torna confuso, quase não sei distinguir a proa da popa; pelo contrário, em nossa querida Surprise...
- Que Deus a abençoe.
- Sim, que Deus a abençoe... Nela conhecia até a última curva, por muito recôndita que fosse, e certamente a todos os marinheiros. Aqui me sinto como um forasteiro recém chegado a uma enorme cidade. Não acredito ter aumentado meus já amplos conhecimentos náuticos; acho que pode-se dizer que é adequado aplicar a atrevida frase feita que ouvi em lábios de um cabo veterano, que se dirigiu assim a um pajem de vassoura: "jamais cagarás como o faz um marinheiro".
- Jamais - exclamou Jack sorrindo. - É o cirurgião naval mais marinheiro que já conheci em minha vida. Killick. Vamos, Killick. Esquente esse condenado café, pelo amor de Deus.
- Mas que dia... - começou a dizer Killick; contudo, ao ver a expressão do capitão, fechou a boca e também a porta.
- Não, não estou de acordo em absoluto contigo, Stephen. Tem que considerar que está a um tempo afastado do barco, e que durante boa parte da última missão esteve atendendo aos enfermos ou viajando pelos ermos africanos recolhendo raridades, exceto quando ficou enfermo, muito enfermo, tanto que estive à beira da morte, e, depois, tão débil que apenas podia se arrastar pelo castelo de popa. Killick!
- Já vai, já vai - respondeu Killick com uma bandeja carregada nas mãos. - Também trago um ovo fervido em dois minutos para sua senhoria.
O café da manhã serviu efetivamente para limpar boa parte da melancolia de natureza mais superficial, e depois passearam em direção ao castelinho, desfrutando da saída do sol, grande e alaranjado, sobre as terras da França. A bruma que se estendia, e que ia aumentando, ainda não bastava para ocultar a todas as embarcações da esquadra que patrulhava a costa, e Jack foi assinalando um depois do outro aos barcos conforme as posições designadas por Fanshawe, capitão de navio que superava em seis meses de antiguidade a Jack, e que, portanto, ostentava o comando da esquadra.
- Ali tem ao Ramillies, justo no meio da passagem Iroise - disse ao inclinar a cabeça para um borrado conjunto de gáveas situado ao norte. - E se pudesse saltar ao tope e ver através da bruma chegaria a ver uma das fragatas, provavelmente a Phoebe, custodiando a saída da passagem du Four: Há um monte de embarcações procedentes do norte que tentam entrar em Brest por aquela passagem. Entre a fragata e o Ramillies distinguirá um cúter, apesar da bruma; acho que é o Fox, que paira para repetir os sinais trocados. - Ele mesmo repetiu a explicação do porquê os barcos se repartiam por todos os acessos possíveis, igual que ao Bellona que permanecia a um tiro de canhão de Raz de Sein; entre outras coisas lhe mostrou a posição aproximada de uma rocha que não figurava nas cartas, ou que estava mal sinalizada, onde o navio de sua majestade, o Magnificent, encalhou no ano quatro, terrível perda que ocorreu no dia da Anunciação daquele ano.
- Ainda que os botes do restante dos navios da esquadra puderam salvar a toda sua gente, sobretudo os do Impétueux, pelo que me lembro... Senhor Harding - disse ao imediato, que parecia espreitá-los, - tenho a impressão de que gostaria de falar comigo.
- Sim, senhor - disse Harding, dando um passo à frente e descobrindo a cabeça. - Peço que me perdoe por interromper-lhe, senhor, mas o Nimble tem dificuldades para afrontar a marejada, e se queremos surpreender aos nossos talvez tenha chegado o momento de solicitar que joguem ao mar os alvos.
- Que assim seja, senhor Harding, que assim seja - e dirigindo-se a Stephen acrescentou: - Que maneira de divagar.
Mas não divagou mais. O Nimble estivera observando nervoso a exárcia superior do Bellona e, quando ondearam os sinais, seus botes vogaram com brio com os alvos a reboque.
- Preparativos de combate, senhor Harding, se é tão amável - ordenou Jack, e quase de imediato retumbou o tambor. Alguns dos novos marinheiros do Bellona, mais lentos e inexpertos, não tinham notado os sinais que indicavam a iminência do exercício: a atenção que de repente o condestável prestava a seus homens, o fato de que os cabos de cada canhão verificassem moitões, trincas, carros, atacantes, lanadas, saca-trapo, coçadores e o fato de que afrouxassem como quem não quer nada os tapa-bocas das peças. Esses poucos marinheiros se surpreenderam ante o estrondo. Contudo, todos os homens do interior (exceto talvez os mais estúpidos) conheciam seus postos de combate, de modo que passaram a correr para eles; as escassas excessões tiveram que ser guiadas amavelmente pelos segundos do contramestre.
O posto de combate do doutor Maturin ficava na enfermaria da coberta dos alojamentos, e para lá se dirigiu para situar-se entre seus ajudantes, William Smith e Alexander Macaulay, junto a uns poucos e insatisfatórios assistentes: aprendizes de ferradores ou trabalhadores desempregados do matadouro. Permaneceram todos eles de pé neste lugar, completamente limpo com excessão dos guarda-comidas com o instrumental e os baús dos guardas-marinhas (que dormiam ali), escutando em silêncio junto aos baús que haviam juntado e atado para servirem de mesa de operações.
Os três canhões de estibordo da coberta da bateria alta, os canhões de dezoito libras situados mais para proa, apontaram ao alvo que ia na frente e abriram fogo ao mesmo tempo, produzindo um triplo estampido que fez tremer as lanternas que pendiam dos vaus. A estas primeiras descargas, seguiram de imediato as vozes mais graves dos canhões de trinta e duas libras armados na coberta da segunda bateria, e durante os cinco minutos seguintes reverberou em todo o barco o estrondo ensurdecedor, tão caótico que não podiam distinguir-se umas descargas das outras, por mais que as produzissem canhões situados em cobertas distintas. Ao mesmo tempo a fumaça se desabou para as cobertas inferiores, impregnando tudo de um odor acre. E de repente se estendeu um silêncio igualmente ensurdecedor, seguido pelo movimento dos canhões ao trincá-los.
- Senhor! - exclamou William Smith, talvez em um tom de voz muito elevado. - Observei um fenômeno muito curioso: cada vez que uma décima de segundo separava uma explosão de outra, estas produziam um tremor diferente na fumaça. Pude vê-lo com clareza ao recortar-se contra a janela da lanterna. - Falou com o nervosismo própio de um combate; e com a mesma liberdade de palavra Macaulay desejou em voz alta que o exercício tivesse sido satisfatório, pela sensação de alegria que impregnava aos homens quando as coisas se faziam adequadamente. Antes de que Stephen pudesse replicar, chegou o primeiro ferido pela escotilha de popa, nos braços de seus companheiros: era um jovem infante da marinha que havia formado junto a uma das peças de trinta e duas libras para ajudar aos marinheiros a assomar a boca pela portaló (pesava umas três toneladas) e que calculara mal a velocidade e força do retrocesso.
- Vinte minutos de torniquete, senhor Macaulay, se é tão amável - ordenou Stephen, serrando a rachadura, - e uma bandagem à spica; mas procure não apertá-la demais.
Macaulay trabalhara como ajudante de um famoso cirurgião londrino e sua especialidade eram as vendas, que preparava com uma uniformidade surpreendente que despertava a admiração de todos os marinheiros. Contudo, a uniformidade amiúde traz pela mão o aperto, parente próximo da gangrena.
Nos primeiros dias de uma missão, quando muitos dos recrutas forçosos não eram capazes de se guiarem a bordo, era habitual que estes exercícios provocassem um aluvião de feridos, e tanto era assim que quando Stephen regressou ao castelo de popa, Jack perguntou:
- Quantas baixas se produziu desta vez?
- Algumas torceduras, queimaduras produzidas pelos cabos - respondeu Stephen, - e uma ferida sem importância, uma lesão de gastrocnêmio mais espetacular que grave. Ao serrar me pus a pensar na gangrena, que sempre constitue uma possibilidade, e em um tratamento interessante que discuti a bordo do navio insígnia... - Contudo, lembrou à medida que falava da peculiar apreensão que sentia seu amigo por alguns aspectos da medicina, mais concretamente pela cirurgia, de modo que calou para lançar uma exclamação pela fumaça que resultara dos exercícios, densa nuvem cuja sólida presença ainda podia ver-se a sotavento. - Creio que esteja satisfeito com os resultados do exercício?
- Bastante, bastante satisfeito, obrigado, apesar do pouco que rendeu (tão somente duas descargas completas). Mesmo assim, com tantas dotações tão bem adestradas a coisa se deu com brio e pontaria, em apenas dois minutos e meio. Afinal de contas, o Royal George conseguiu afundar ao Superbe na baía de Quiberon, efetuando dois simples bombardeios e com péssimas condições atmosféricas; tanto foi assim que não se pôde salvar nenhum dos seiscentos tripulantes.
Ambos guardaram silêncio enquanto recordavam ao Leopard, barco que Aubrey comandara fazia tempo, que afundou a um navio de guerra holandês nas altas latitudes do sul, também sem sobreviventes. Um ou dois mensageiros se aproximaram do capitão, que respondeu com firmeza, competência, em um tom oficial.
- Que vontade tenho de tocar amanhã aquele concerto - disse depois em voz baixa a Stephen.
Stephen também queria. Contudo, estava preocupado com o solista, o oboé, motivo da reunião. Desde o ambulatório, situado a popa na coberta dos alojamentos, onde William Smith e ele passaram parte do meio-dia esquartejando o azougue, misturando também gordura de porco e sebo de cordeiro para proporcionar-se ungüento azul, pôde ouvir Geoghegan praticar no próximo camarote dos guardas-marinhas, tocando escalas, trocando lingüetas e aventurando-se em algumas das passagens mais memoráveis escritas para um oboé bem temperado. O Bellona desfrutava de um conjunto agradável de guardas-marinhas e ajudantes do piloto que contava com uma dúzia de membros, a maior parte deles filhos de amigos ou de antigos companheiros de tripulação. Os mais jovens do camarote não davam mostras de sentir-se oprimidos, e se bem Geoghegan era provavelmente o mais jovem de todos, jovem o suficientemente para integrar-se no camarote em lugar de ser confiado ao condestável com os menores, não titubeiava na hora de interpretar ali a música séria e elaborada. Resultava mais curioso se couber pela posição anômala na qual se encontrava: seu nome havia figurado no rol de tripulantes de diversas embarcações comandadas por amigos ou parentes de seu pai, com objetivo de ganhar a requerida experiência no mar sem necessidade de ter navegado um único dia, prática habitual que, certamente, tinha como consequência a proliferação a bordo de jovens cavalheiros sem experiência e conhecimentos da profissão, de tal maneira que se convertiam em uma carga para seus companheiros e amiúde eram impopulares, até tal ponto que não era raro que fossem alvo de maltratos. Contudo, este não era o caso de Geoghegan.
"Claro que é um garoto de muito boa aparência - refletiu Stephen. - Talvez isso tenha algo a ver. Qualquer pessoa sente uma amabilidade desinteressada e inata pela beleza."
Terminado o ungüento, Smith levou o número adequado de potinhos de barro destinados aos enfermos de sífilis. Stephen fechou a chave a porta do ambulatório (os marinheiros eram muito dados a automedicar-se) e decidiu entrar no camarote depois de ouvir que alguns guardas-marinhas saíam do mesmo com o estrondo própio de um rebanho de vacas loucas.
- Bom dia, senhor - cumprimentou Geoghegan ao mesmo tempo que dava um pulo.
- Muito bom dia tenha o senhor, senhor Geoghegan - cumprimentou por sua vez Stephen. - Permitiria-me ver de novo seu instrumento?
Era um oboé precioso, feito de uma elegante madeira escura. Contudo, nem as bajulações por seu aspecto nem o tom doce do instrumento pareciam comprazer muito ao jovem, de modo que Stephen retomou a conversa com respeito à baía Bantry, das terras que a rodeavam, incluídas as pertencentes à paróquia do reverendo senhor Geoghegan, e das amizades que tinham em comum. O garoto se mostrou muito educado, mas parecia óbvio que não desejava um contato mais estreito nesse momento, nem desfrutar de um ouvido amigo ao qual explicar o que motivava suas evidentes preocupações. Do modo mais sutil possível vinha a dizer-lhe que não se deixaria manipular, nem tampouco estava disposto a que o confortassem quando estava bem claro de que o necessitava, por mais que Stephen se mostrasse bem-intencionado.
"É um garoto admirável - pensou Stephen ao sair do camarote. - Contudo, gostaria não vê-lo tão tenso. Se não fosse por uma ilógica e inclusive supersticiosa relutância (a respeito da inocência?), eu lhe receitaria quinze ou vinte gotas de láudano." O láudano, a tintura de ópio, era uma maravilhosa substância líquida de um tom âmbar escuro que havia servido ao doutor Maturin para agüentar os brotamentos de extrema ansiedade que sofrera, ainda que com o tempo cobrou um exorbitante preço moral e espiritual. Por isso o substituíra por um uso moderado da folha de coca peruana.
O garoto estava mais tenso ainda quando atravessou a porta da cabine do capitão, com o oboé guardado em um saco de pano de prato. Entrou ao tocar a última das cinco badaladas da guarda de doze a quatro da tarde. O camarote lhe tinha feito sentir-se orgulhoso. Não só era tão popular como poderia ser um garoto que não era marinheiro, como a sua participação na noitada orgulhava a todo o grupo, incluído Callaghan e outros três ajudantes do piloto, além da figura endossada de William Reade, que navegara em ocasiões anteriores com o capitão, e que perdera um braço em combate nas Índias Orientais. O jovem estava com um cabelo muito escovado, atado em uma trança tão apertada que seus olhos irradiavam assombro, enquanto que seu rosto se via rosáceo depois de um barbeado praticamente desnecessário. Os botões de latão de sua melhor casaca azul superavam em brilho aos do uniforme do capitão, enquanto que a brancura de seu colarinho, conhecida por alguns como "as cobranças trimestrais" e por outros como "a marca de Caín", teria envergonhado à neve recém caída.
- O senhor está aí, senhor Geoghegan! - exclamou Jack. - Alegro-me muito em vê-lo. Venha tomar uma taça de xerez.
Consumido o xerez, tomaram assento para desfrutar de um prato de pescadinhas que capturaram naquela mesma manhã, um par de aves assadas com bacon e grande quantidade de salsichas, festim rematado com um esplêndido bolo de maçã e boa parte de um queijo Cheddar. Os integrantes do camarote dos guardas-marinhas costumavam comer ao meio-dia, e Geoghegan, depois de mostrar-se tímido com a comida, dedicou-se a ela com um apetite voraz, respondendo com um "Se é tão amável, senhor" ante a menor sugestão de que lhe servissem mais.
- Esse jovem cavalheiro comeu onze batatas - disse Killick a seu ajudante quando lhe estendeu um prato vazio. - Vá ver se restam mais no camarote.
Finalmente, quando retiraram a toalha de mesa e se brindou à saúde do rei com à medida de vinho do porto adequada para o jovem agüentar, tomaram café e bolachas de ratafia (equivalente naval dos bolinhos) na câmara, onde o violoncelo, a viola e o violino aguardavam junto a seus correspondentes atris, iluminados pelo janelão de popa, que inundava o aposento com uma claridade cinzenta; enquanto, o barco mantinha rumo oés-sudoeste com as gáveas rizadas, e se deslocava lentamente naquele mar suave.
- Outra xícara, senhor Paisley? - perguntou Jack. - Senhor Geoghegan? Bem, em tal caso, talvez possamos começar.
Desdobraram as partituras; enquanto, Stephen recordou com certa preocupação que no quarteto em fá maior de Mozart as primeiras notas o oboé as tocava sozinho. Então, depois dos necessários gemidos e lamúrias característicos da afinação dos instrumentos de corda, Jack sorriu para Geoghegan e inclinou a cabeça, e aquelas primeiras e cruciais notas surgiram claras, puras, sem muita ênfase, em um tom maravilhoso e redondo ao que se uniram as cordas quase de imediato. E quase de imediato se converteram em um quarteto, tocaram juntos com alegria e com uma cumplicidade tão perfeita como se poderia desejar depois de desfrutar de tão curta relação.
Com apenas uma pausa, submergiram na elegante melancolia do adágio, onde Jack Aubrey teve oportunidade de exibir-se e Stephen tocou as notas com acerto. Chegados ao rondó, as notas do oboé surgiram com uma excelente e alegre delicadeza da qual todos desfrutaram, e o instrumento adquiriu em mãos de Geoghegan um caráter único, completo. Todos eles acharam, apesar das partituras de música que tinham ante o olhar, que a peça durava um lapso de tempo indefinido, antes de alcançar a perfeita simplicidade das notas finais.
- Bem, muito bem - exclamou Jack, que se inclinou para apertar a mão de Geoghegan. - Por minha fé! Que maneira tão gloriosa de tocar, por minha honra. Acredito que nunca havia desfrutado tanto da música. Muito pelo contrário, é sério.
Geoghegan se pôs vermelho como a cochinilha; mas antes que pudesse responder as palavras de Jack, bateram com força à porta e o senhor Edwards, o escrevente do capitão, entrou com um desordenado e díspar conjunto de papéis na mão.
- Senhor - disse, - aqui estão os informes que tínhamos que enviar ao navio insígnia, suas notas. Disse que me os leria para que pudesse passá-los a limpo. O bote já chegou (está a meia ampulheta aqui) e está ficando impaciente.
- Por Deus! - exclamou Jack. - Tinha esquecido completamente. Cavalheiros, terão que perdoar-me. Ainda que, se tivéssemos continuado, não acho possível que melhorassemos o presente. Obrigado de todo coração.
Saíram em fila sem esquecer de observar a ordem adequado conforme o cargo. Geoghegan retrocedeu um passo para deixar Stephen passar, a quem olhou com visível afeto, desaparecidas as tensões e as reservas. Com Edwards sentado à escrivaninha, Jack começou a ler suas informais e, amiúde, críticas notas:
- Contador: provisões para nove semanas completas, de todos os tipos com excessão do vinho (com reservas apenas para trinta e nove dias). Piloto: Cento e treze toneladas de água; novilho de muito boa qualidade; o porco costuma encolher ao ser fervido; muito boas as demais provisões. Presentes ao contar as provisões: o segundo do piloto, o segundo do contramestre, o capitão do castelo de proa, o capitão dos joaneteiros e o cabo. Bastante bem sortidos de apetrechos; exárcia e velame em bom estado; dois pares de amantilhos de maior cortados. Condestável: Dezoito de pólvora, quarenta atacantes. Carpinteiro: Casco em bom estado. Talha-mar suportada por dois batideros{10}. Paus e vergas em bom estado. Muito bem sortido...
- Grande interpretação, a peça musical mais bonita do mundo - disse Stephen quando Geoghegan e ele se despediram na saída da câmara, depois do contador se dirigir para proa.
- Foi sim - admitiu Geoghegan. - E que admirável a pausa do capitão, e também a do senhor, senhor. Mas me alegro muito de não ter continuado. Foi perfeito, e temia chegar tarde ao segundo quartilho, em caso de voltar a interpretá-la.
- Intuo que o senhor se refere àquele lugar particularmente escuro.
- Oh, senhor - disse Geoghegan, com aquela delicadeza que amiúde reservam os jovens para com os velhos, os ignorantes e os estúpidos. - Devia ter acrescentado a palavra "guarda". A segunda guarda do quartilho, a segunda dessas guardas curtas que tem ao final do dia, já sabe. Quando navegamos com pouca vela e não há muito que fazer, nem existe a possibilidade de que chamem a todos ao convés, nós os que rizamos e não servimos de guarda no convés costumamos subir pela exárcia. Chamamos isso de farrear.
- Havia ouvido algo a respeito, claro que sim. Em mais de uma ocasião presenciei o fenômeno. Mas não creia que é privativo de homens jovens e ágeis. O capitão Aubrey e o almirante Mitchel subiram em uma ocasião até o ponto mais elevado de um navio cujo nome não recordo, por uma dúzia de garrafas de champanhe.
- Céus, senhor! E quem ganhou?
- Pois, o almirante disse que ele, e quem ia contradizê-lo? A um oficial superior? O senhor já sabe que superiores priores.
- Sim, certamente, senhor. Mas se me desculpa, senhor, devo descer ao camarote para guardar o oboé e trocar de roupa. O Velho Dormer e eu temos pendente descobrir quem dos dois é capaz de tocar antes a bola do tope do mastro maior.
Geoghegan desceu a escada a toda pressa, e dada a alegria que sentia no coração se livrou de seus melhores sapatos de fivela prateada, lançando-os ao ar até que deram com o fundo do camarote. Encontrou apenas a Callaghan lá dentro; escrevia este uma carta para sua jovem esposa, à luz de um diminuto candelabro. Contudo, levantou a cabeça e perguntou como se saíra no jantar na cabine do capitão.
- Muito, mas que muito bem, pelo menos em quanto pus mãos à obra: pescadinhas, certamente, seguidas de um par de enormes e bonitas aves, capões, acho, e o doutor que não deixou de oferecer-me aquelas salsichas. A verdade é que demostrei ser incapaz de dizer não. E não posso esquecer o bolo de maçã, grande como uma roda; nem o queijo.
- O que bebeu?
- Xerez, clarete e depois vinho do porto. - Durante esta conversa, Geoghegan havia tirado e dobrado a roupa, e tinha posto uma camisola de Guernsey e uma calça feita de lonita.
- Bem, espero que não tenha comido demais. A princípio é melhor que vá com calma. Conheci a mais de um dos que fazem rizes que vomitaram a refeição por subir aos joanetes muito cedo depois de comer.
Os barcos que faziam o bloqueio de Brest frente a Ouessant ou perto da costa, na mesma baía, viam-se tão frequentemente empurrados e maltratados pelos fortes ventos do sudoeste carregados de chuva, ou pelos ventos do norte e do nordeste - os mesmos ventos capazes de tirar o inimigo do porto, os quais, portanto, requeriam da maior atenção, - que os garotos e jovens cavalheiros a bordo, para não mencionar aos oficiais mais atléticos, tinham poucas oportunidades de farrear, e quando surgia tiravam todo o proveito possível. Stephen Maturin, que para a maioria das coisas não era senão um simples espectador a bordo, era muito dado a permanecer no castelinho ou no castelo de popa de um barco saudável (porque em um barco enfermo passava a maior parte do tempo abaixo), onde podia observar as diversas manobras ou, naquelas ocasiões em que reinava a ociosidade, os bailes no castelo de proa e o farrear. Raras vezes vira reunida tanta gente. Na proa tinha um violinista e um homem com um tamborim que tocava a gaita para um grupo de marinheiros que se juntaram no castelo dessa parte do navio, onde os bailarinos mais hábeis realizavam os passos mais complicados para desfrute de seus amigos, que batiam palmadas seguindo o compasso. Mas o que atraiu sua atenção foi o número de garotos. O Bellona levava a bordo cinqüenta ou mais entre serventes de oficiais, aprendizes do condestável, do contramestre, do carpinteiro e outros, e os simples pagens de vassoura, e quase todos eles haviam se reunido quer fosse ao longo do corrimãos de bombordo, que estendia-se desde o castelo de popa até o castelo de proa, quer no alto, movendo-se a uma velocidade vertiginosa entre o aparelho e, em ocasiões, balançando-se de uma parte para outra como macacos, nas alturas do arborizado, muito acima sobre o convés. Alguns corriam, outros se limitavam a divertir-se e se moviam com uma facilidade e segurança espantosas. Por outro lado, os guardas-marinhas (usando o termo em seu sentido mais amplo: desde os segundos do piloto aos voluntários de primeira classe, os "jovens cavalheiros" em geral) se mantinham no lado de estibordo, quer dizer no mesmo castelo de popa, tal como era seu direito, ou ao longo do corrimão desse lado. Também eles passavam boa parte do tempo no alto, levianos exceto quando deslizavam a grande velocidade pelos estais para cair no convés com um estampido. Estando Stephen aí, um guarda-marinha gordo chamado Dormer, o garoto com o qual Geoghegan competiria, desceu pelo contraestai da gávea maior até as amarras da mesa de guarnição com tal força que seus joelhos se dobraram sob seu peso. Stephen o ajudou a superar o parapeito e pôr os pés no convés, e lhe perguntou se a fricção não havia queimado suas mãos.
- Não muito, senhor - respondeu comprazido, - porque verá o senhor, agora já sou um veterano com sal nas veias, e freio a queda com os pés. - Mostrou-lhe as palmas das mãos e, ainda que as tinha negras de breu, não tinha indícios de queimaduras. - Bem, senhor - acrescentou, - agora me vou para fazer a grande escalada.
- Estarei lhe observando com muita atenção - disse Stephen, coisa que pretendia fazer. Contudo, havia tal número de garotos e jovens (o Bellona contava com um complemento próximo às seiscentas pessoas) que se moviam de um lado para outro e em todas as direções, acima, abaixo, de lado e em diagonal, amiúde rapidamente, que imediatamente perdeu de vista a Dormer, aida mais quando avistou no alto um estranho gaivina, seguido por dois alcatrazes.
E quando tirara as dúvidas que havia despertado a existência do gaivina, ao atribuir a estranheza ao fato de que não mudara a plumagem como devia, voltou a contemplar aos jovens e não tardou em ver confirmadas suas anteriores impressões. Ainda que os garotos a bordo se mantivessem no lado de bombordo e os jovens cavalheiros no de estibordo, e ainda que não existisse uma comunicação direta entre os grupos, parecia haver uma rivalidade tácita. Quando qualquer dos ágeis garotos, geralmente o criado do contramestre, realizava uma excepcional e perigosíssima façanha, e sem trocar mais que alguns olhares de inteligência entre os guardas-marinhas mais veteranos, seu campeão o imitava ou o superava com acréscimo. Observou suas evoluções durante um tempo até dar com o jovem Geoghegan, enfronhado em uma camisola, que obviamente fazia o possível para superar a Dormer, que trepava pela exárcia da gávea.
O garoto tinha menos experiência que Dormer, mas este já havia suado o seu naquele dia, era gordo e estava cada vez mais cansado. Encontravam-se em faces opostas dos amantilhos da gávea, no alto, onde estes se estreitam para passar através das vaus de joanete. Muito perto do cume, onde se separavam as arraigadas do mastaréu maior, longe da vertical, Geoghegan se inclinou para trás sacudindo ambas mãos, uma para aferrar a arraigada e outra para a cruzeta. Perdeu agarração por ir com pressa e caiu. Quase direto, tão somente roçou durante a queda a parte superior da vela maior e, ao chocar-se com o convés, bateu em uma das caronadas de estibordo armadas no castelo de popa, apenas a uma jarda do oficial de guarda.
Stephen, que se dirigia a popa para reunir-se com Jack depois de ter conversado com o piloto na roda, voltou-se ao ouvir os gritos.
- Não o movam - ordenou a voz em grito para depois passar a correr para Geoghegan, com a esperança de que não tivesse se ferido muito e de que poderia recuperar-se se o levasse para a enfermaria. Contudo, depois de realizar um breve exame informou que havia morrido.
Jack recolheu o garoto e o levou para a câmara enquanto as lágrimas rolavam por suas faces. Depois, de noite, costuraram-no dentro da maca com uma bala de trinta e duas libras a seus pés, e para sepultá-lo o jogaram pela borda, de acordo com os costumes própios do mar.
Naquela noite a bruma ficou espessa, e Jack passou boa parte do tempo no convés, acompanhado por Woodbine e Harding, experientes navegantes que desfrutavam de um invejável conhecimento das águas que banhavam Brest. O Bellona se aproximara da rocha de Ar Men para realizar a breve cerimônia, e agora tinha que dar paus de cego ao longo de umas vinte milhas de águas que, amiúde, eram muito perigosas, até um ponto situado um pouco ao oeste de Saint Matthews (a maioria dos lugares tinham nomes ingleses), onde o Ramillies ou um de seus botes se reuniria com o barco, com um piloto bretão a bordo e o colega de Stephen, dado que no dia seguinte se esperava a lua nova, o momento combinado para o desembarque na enseada de Dog-Leg.
Ainda que a lenta descida do barômetro predizia a piora do tempo em um futuro próximo, Jack se sentia razoavelmente confiante de que poderia executar seu plano, que consistia em dar bordejadas de ponta a ponta e entre Black Rocks e os Saints, de dia, tal como era habitual, e de noite, depois da troca da maré, voltar sobre seus passos e navegar para Raz de Sein com a corrente, para desembarcar Stephen tão perto da enseada como pudesse e, depois, ancorar ao sul de Ile de Sein, para esperar o bote. Eram águas de doze braças de profundidade e bom tenedero{11}. Mas antes, certamente, tinha que realizar-se o encontro essencial, e com a barquilha na água uma vez por ampulheta, às vezes mais, e a sondareza dando uma marca tranqüilizadora, navegaram para o noroeste com o vento a um quarto do través, enquanto a bruma flutuava sobre a bitácula e a lanterna de tormenta.
O vento esfriou e rolou para o norte quando, depois da acertada e constante medição, tinham superado com folga a passagem Iroise. Ficou óbvio que nem mesmo navegando de bolina alcançariam o canal que atravessava as ilhas, canal que constituia seu objetivo. Jack, portanto, ordenou mudar de bordo em redondo e pôr o necessário e desagradável rumo que os levaria para perto da borda sul de Black Rocks e suas vizinhas, rochas que nem sempre estavam corretamente destacadas nas cartas.
E assim continuaram navegando até as quatro badaladas da guarda de meia, plena baixa-mar, momento em que vacilou aquele endiabrado vento, tornou-se intranqüilo, soprou lufado, violento, e rolou uma quarta para proa, com sinais de piorar. Antes de fixar-se ao noroeste e tê-lo de proa, Jack Aubrey fez mudar o rumo de novo para a embocadura do Passage du Four, cujas águas não tinham mais de sete braças. O Bellona afundava seis. Avante, avante, três homens envolvidos em contínuos cálculos, baseados nos constantes informes do progresso do barco, assim como na estimativa da deriva com semelhante vento e velame, o fluxo e refluxo da maré, a força das correntes imperantes, a ocasional visita à cabine do piloto, a popa da roda, onde a tênue luz da lanterna iluminava uma carta náutica tão precisa como eram seus conhecimentos do lugar, e em certo sentido também do mar, intuitivo, pragmático, difícil de definir mediante o uso de simples palavras.
"Pergunto-me se os outros terão sentido o condenado chiado e rangido de balizas que precede ao momento de encalhar contra um arrecife - pensou Jack. - Provavelmente." Ele mesmo o tinha sentido nas entranhas durante a última ampulheta enquanto se aproximavam cada vez mais de Saint Matthews, que naquele momento não distava mais que alguns cabos ao nordeste.
- Senhor Woodbine, o senhor cheira algo? - perguntou em voz alta.
Houve uma pausa.
- Não, senhor.
- Aparelho a pairar! - ordenou o capitão Aubrey. - Largar bolinas! Bracejar! - E ao homem que governava a roda: - Leme a sotavento!
O Bellona perdeu impulso, e ali ficou, cabeceando no meio da bruma.
- Ei do barco! Que barco é? - gritou uma voz procedente da amura de estibordo.
- O Bellona - respondeu Harding.
O alívio e a intensidade da pergunta não pronunciada por Woodbine empurraram Jack a responder:
- Baixa-mar. Senti uma rajada de odor de alga apodrecida.
Quando o bote despachado pelo Ramillies deixara a bordo seus dois passageiros, deu ordens ao oficial de guarda de pôr rumo sul (seria o mais seguro durante as próximas horas), recomendou a Harding e ao piloto que dormissem um pouco, e se dirigiu tranqüilamente para a cabine que compartia com Stephen.
- Tudo bem? - perguntou este.
- Sim. Seu homem se encontra a bordo; o acompanhei à câmara. O contramestre se encarrega do piloto. Lamento tê-lo despertado.
- Ah, não se preocupe, não se preocupes. Não dará um cochilo?
- Não acho que valha a pena, mas deveria.
Por uma vez lhe abandonou o enraizado costume de dormirido quase de imediato. Permaneceu acordado durante duas badaladas e os primeiros tangidos da terceira, pensando nas cartas que enviaria aos pais de Geoghegan; como capitão, não era a primeira vez que fazia tal coisa. Nunca era fácil, contudo, nesta ocasião, quase não lhe ocorria o que dizer.
Os trabalhos de limpeza que se realizavam antes do amanhecer no convés já não bastavam para despertar a Stephen, mas o fizeram os apitos para estivar as macas nas anteparas e o rumor de pés descalços. Olhou ao seu redor enquanto se recuperava e não lhe surpreendeu nada ver Jack entrar, com o rosto rosado e recém barbeado, apesar da tênue luz que iluminava a cabine.
- Bom dia, querido amigo - disse. - Que aspecto têm?
- Bom dia, Stephen. Confio em que tenha podido descansar. O tempo limpou um pouco, mas ainda não se vê nada a cem jardas e quase não nos movemos. Quer se barbear? O mar está calmo e, se quiser, posso pôr uma dessas lâmias famosas em sua navalha. Está aí o seu... convidado, que desjejuará conosco.
- Oh - disse Stephen enquanto se acariciava a mandíbula. - Acho que agüentará mais um ou dois dias, isso é, até o domingo. De qualquer maneira, há confiança com o senhor Bernard.
O senhor Bernard, Iñigo Bernard, era de Barcelona. Nessa cidade sua família, respeitáveis armadores e navieros, comerciara com os mercantes ingleses há gerações. Fora educado na Inglaterra e falava perfeitamente inglês, ainda que sua família era muito catalã, tanto que sentiam um amargo ódio pela opressão espanhola de sua pequena pátria e apoiavam o movimento clandestino que lutava pela autonomia e, inclusive, pela independência. Foi precisamente isto o que lhes havia levado a se conhecer. Contudo, Iñigo Bernard chegara também à conclusão de que, para combater a invasão francesa, invasão particularmente atroz em Catalunha, era necessário aliar-se com as forças que se opunham ao inimigo, neste caso as forças espanholas. Como membro ativo deste movimento clandestino, fora mais afortunado, ainda que não menos empreendedor, que Maturin, de modo que não tinha forma de encontrar seu nome inscrito nas listas oficiais de rebeldes ou de elementos subversivos. Pôde entrar, assim, a fazer parte dos serviços de inteligência espanhóis encarregados dos assuntos navais. E quando os espanhóis se passaram para o outro bando aconselhados para sua infelicidade pelo Príncipe da Paz e se converteram em serventes de Bonaparte, encontrou-se em uma posição privilegiada para passar informação, sobretudo informação naval, a seu amigo. Inclusive agora, que a Espanha se achava de novo em guerra aberta com a França, a colaboração tinha suas vantagens, e ambos se encontravam imersos em uma missão conjunta; o bando francês não estava completamente unido, e contava com muita gente sujeita a lealdades divididas, para não mencionar aos agentes duplos. Apresentou-se na câmara para o café da manhã tão asseado e adequadamente vestido como seu anfitrião, o que causou uma grande impressão neste, e a refeição saiu às mil maravilhas, ainda que fosse excessivamente formal. Nestas circunstâncias, Jack se mostrou muito discreto, e Bernard, longe de ser sincero, limitou-se a imprecisões e observações bem acolhidas sobre a beleza do barco e, sobretudo, a elegância de tão esplêndida cabine.
Depois, Jack os deixou sozinhos até a hora de almoçar. Passou muito tempo em companhia de Harding, e mais ainda com o contramestre, reforçando o barco contra possíveis golpes, ainda que também reservou algumas horas para Yann, marcando as cartas do Bellona conforme seu experimentado conselho, e escutando tudo o que pudesse contar-lhe com respeito àquelas águas.
- Logo, talvez no dia seguinte à quarta-feira - disse Yann, que experimentava certas dificuldades com a palavra "quinta-feira", ainda que para o resto falasse o inglês com fluidez, - ele se entabulará do sudoeste e será horrível. Pelo menos não tenho que insistir com respeito aos contraestais, senhor - acrescentou observando comprazido o aparelho do Bellona. Fez uma pausa e continuou: - Pergunto-me por aqueles maricões - disse assinalando Brest com a cabeça, - que não o tentaram quando tinham vento do nordeste, tal como lhe digo, que mais do nordeste não podia ser, pelo menos durante as duas horas que seguiram à chegada do senhor. Tempo de sobra para que uma fragata descesse pelo Goulet e saísse pelo Iroise, ni vu ni connu. Ou um navio de linha rápido, para o caso, como seu Romulus.
- Diga-me, Yann, se a bruma segue sendo tão densa como agora, estaria o senhor disposto a levar o barco por Raz? - perguntou Jack. - Sem uma pitada de luz da lua?
- Tão densa como esta, senhor? Preferiria navegar em uma fragata ou em uma corveta que em um pesado navio de linha de setenta e quatro canhões. Pode ser feito, porque a maré minguante rompe tão branca sobre Vieille que desde que era menino que ele não me escapa. - Fez um gesto com a mão para indicar a altura que tinha quando viu Vieille pela primeira vez. - Claro que tem que saber para onde olhar.
Mas não se preocupe, senhor, a bruma não seguirá sendo tão densa.
Quanta verdade. Pelo anoitecer, quando pairavam em frente de Men Glas a espera da maré-cheia, o vento se entabulou de novo pelo nordeste e, ainda que houvesse cúmulos de densa névoa pelo leste e nordeste que se estendiam sobre a margem, a maior parte da baía a bombordo estava apenas coberta por uma fina bruma. Puderam ver alguns pesqueiros pelo través de bombordo a meia milha de distância, bombordo porque nesse momento Jack havia posto rumo norte para realizar a patrulha de rotina. Quando a escuridão foi quase total, pediu a Harding que chamasse o oficial de guarda (nesse momento, Whewell), os segundos do piloto e os guardas-marinhas. Uma vez reunidos todos no castelo de popa, o comandante começou a falar:
- Cavalheiros, dentro de quinze minutos vou ordenar mudar de bordo por davante. Gostaria que esta manobra se realizasse com todo o silêncio possível, e praticamente sem luz. Navegaremos apenas com as gáveas rizadas. Não há motivos para ir com pressa: não participamos de nenhuma corrida, e não quero que se dêem as ordens em voz alta. Os oficiais escolherão seus homens, porque esta não é manobra para qualquer marinheiro, por mais forte e desejoso que esteja de servir. Senhor Reade, posso dar por certo que o senhor verificou o cúter azul?
- Sim, senhor - disse Reade, que sorriu na escuridão. - Acho que o encontraria todo a seu gosto.
Contra a inflamada oposição dos mais conservadores, e também contrário a seu própio coração, Jack envergara gavietes{12} sobre os jardins do Bellona, com o que reduziu parte da beleza do barco, ao mesmo tempo que introduzia uma inovação. Contudo, nesse momento se alegrou ao pensar que o bote pendia completamente apetrechado, de forma que os menos experientes o jogassem ao mar sem perigos nem nervosismo pelos dois lados. Desembarcara a Stephen em muitos paragens, geralmente de noite, e a angústia, mesmo com um mar acalmo, de observar sua vacilante e desajeitada descida pelo costado (apesar de ajudado pela gravidade e por mãos experimentadas) havia lhe dado algumas grisalhas. Qualquer inovação, por feia que fosse, valia a pena pelo alívio de vê-lo ali sentado, de braços cruzados e com o baú ao lado, e a todo o conjunto, contentor e conteúdo, descer suavemente até beijar as ondas, com Bonden presente para afastar a embarcação e a dotação embarcando de um salto com a agilidade de um gato.
Contudo, tudo isto sucederia mais adiante. Quando virasse por davante o barco, manobra que se executou com uma velocidade elogiável e quase em completo silêncio, e quando pusesse rumo sudeste com as gáveas rizadas e o vento pelo través de popa, tão discreto como poderia chegar a ser um navio de seu porte, o capitão se situaria no cesto da gávea do traquete com o piloto, enquanto um guarda-marinha aguardaria atento ao pé do mastro, no convés, para repetir as ordens que pudesse dar.
Durante longo tempo não houve tais ordens. Jack e o piloto discutiram a respeito de quando limparia a bruma, e chegaram à conclusão de que o faria completamente pela manhã; a deriva do Bellona era inapreciável, e também comentaram a atual posição do barco.
- Senhor, ali, pela amura de estibordo, tem Bas Ween. Corrija o rumo meia quarta a bombordo, se é tão amável. Assim, assim mesmo. Se fosse de dia poderia ver a sotavento a baía de Dead Man. - Seguiu um comprido silêncio, durante o qual soaram as emudecidas cinco badaladas da primeira guarda.
- Vejamos, senhor - disse Yann, - já estamos em pleno Raz com uma marejada de três nós ou mais; dentro de dez minutos, pela amura de bombordo, se Deus quiser, verá as águas brancas que topam com Vieille. O vento do oeste que sopra as elevará a certa altura.
Jack cravou o olhar, atento à amura de bombordo. Seus olhos tinham se acostumado à escuridão, mas já não eram o que foram em tempos. Um sofrera danos em um combate: "Meu único ponto em comum com Nelson", tal como dissera em uma ocasião fazia muito tempo, para depois ruborizar-se ante semelhante comentário.
- Lá estão elas! - exclamou Yann. - Um pouco pela proa, senhor.
Jack as viu, rítmica brancura que se deslocava da esquerda para a direita, ao compasso do balanço do barco.
- Bem, senhor - disse Yann quando as tinham contemplado por um tempo, - se rumarmos para o sudeste, dentro de meia hora chegaremos tão perto da enseada de Dog-Leg como me atrevo a levar-lhe.
- Obrigado, piloto - disse Jack. - Quando tenhamos nos aproximado e o senhor considere apropriado, seja tão amável de pôr em pairo o barco. Eu me dedicarei a fazer as medições.
Desceu do cesto da gávea com a facilidade de quem se desloca por amantilhos e linhas de vida como se de escadas se tratasse, e caminhou pela popa, seguindo o silencioso e escuro corrimão. Na cabine, com a lâmparina emudecida, encontrou a Stephen e Bernard jogando uma partida de xadrez. Stephen enrugou o cenho, Bernard fez gesto de levantar-se, mas Jack pediu que seguisse sentado e que não interrompessem o jogo, porque ainda faltava meia hora para efetuar o desembarque.
- Quer que o deixemos empatado? - perguntou Bernard, depois do que, para Jack pareceu como uma interminável pausa na qual reinou a mais intensa concentração.
- Só por cima de meu cadáver - disse Stephen. - Deixe-me anotar a posição, e queira Deus que possamos terminá-la qualquer outro dia.
- Stephen - disse Jack, - tem alguma mensagem, pedido ou correspondência que queira que envie por você? - Antes de entrar em ação, Stephen e ele costumavam trocar suas últimas vontades e outras.
- Não, desta vez não, querido amigo, mas lhe agradeço muito. Lawrence está a par do pouco que tenho, e minha adorável Diana sabe perfeitamente o que desejaria fazer com isso.
- Então talvez possamos começar a preparar-nos. O barco se porá a pairar dentro de muito pouco; o mar permanece imóvel e, pelo momento, suave como a seda. Embora cheguem quinze minutos antes da hora combinada, prefiro que desembarquem com o abrigo seco que... entre.
Era um guarda-marinha.
- Saldações de parte do senhor Harding, senhor; deseja informar-lhe de que há uma luz na costa que se acende e apaga três vezes, faz uma pausa mais longa e se acende de novo.
- Vamos - disse Stephen ao mesmo tempo que assentia com a cabeça.
A escassa bagagem se encontrava a bordo do bote. Jack os conduziu pelo escuro convés agarrados pelas mãos como se fossem crianças, e os ajudou a subir ao cúter. Inclinou-se para pôr a mão no ombro de Stephen e apertar com força a modo de despedida. Depois, escutou o som que faziam as roldanas ao girar.
- Com cuidado, com cuidado aí - murmurou o contramestre.
Viu o bote beijar as águas depois de um salto. Bonden o afastou do casco do Bellona.
- A vogar, a vogar com brio - disse Jack.
Seguiu o cúter com o olhar enquanto se afastava a força de remo em direção à luz que seguia pestanejando. Finalmente, quando se apagou, Jack se afastou do corrimão, deu as ordens pertinentes para conduzir o Bellona ao seu ancoradouro, e se dirigiu para a cabine muito entristecido. Não era a primeira vez que se separava de Stephen dessa maneira, mas não conseguia se acostumar e sempre lhe invadia uma mistura de dor e ansiedade.
Ao caminhar, reparou em uma ou duas estrelas de luz tênue no zênite.
Mais tarde, subiram de novo o cúter a bordo.
- Havia um nutrido grupo de cavalheiros na praia que falavam em estrangeiro; pareciam muito contentes de ver ao doutor, e levaram ele e seu companheiro para o interior - informou Bonden.
Então surgiram as outras estrelas com Saturno no meio, tão limpas e claras que sua luz não só iluminou ante seu olhar os chuviscos que rompiam contra o arrecife situado ao sul da Ile de Sein, como também o negro e escarpado contorno da ilha.
CAPÍTULO 6
Não desapareceu aquela mistura de dor e ansiedade, mas por força cedeu terreno, e à medida que o Bellona seguia avante, bordejada depois de bordejada, em torno dos Santos para chegar-se à baía ao amanhecer, ocupou sua mente por completo a manobra do barco e a atenta observação dos danos e prejuízos causados pelo comando negligente mas duro do capitão que lhe havia substituído durante sua ausência. Já repassara os recentes informes de artilharia, que não contemplavam práticas com fogo real e que tinham se limitado a assomar as bocas pelas portalós. Por outro lado, o caderno de bitácula informava dos freqüentes castigos; mais açoites do que Jack teria ordenado em três meses.
Com a badalada da guarda de alvorada, o navio de apetrechos do Bellona, a escuna Ringle, agora mandada por esse valioso jovem chamado Reade, uma embarcação rápida, marinheira e de doce governo com muitíssimo menos calado que o enorme navio de setenta e quatro canhões, os cumprimentou a distância de buzina para informar-lhes de que estavam medindo a braceagem daquelas águas: dez braças, depois nove.
- Que acha, Yann? - perguntou Jack. O piloto bretão se achava de pé ao seu lado.
- O que há no fundo?
- Jogue a sonda - ordenou Jack.
Não tardou em chegar a resposta através do mar calmo que balançava suavemente as embarcações.
- Areia branca e dentes de merluza, senhor.
- Adiante, senhor - disse Yann. - Prove a dez, onze e doze.
Jack sentiu uma presença próxima a suas costas e um odor muito agradável.
- Achei que gostaria de um pouco de café, senhor - disse Killick ao estender-lhe uma xícara. - O doutor disse que protege o corpo da umidade.
- Bellona - gritaram do navio de apetrechos. - A nove braças. - Uma pausa. - Dez e lodo cinzento.
Yann assentiu, satisfeito.
- Se seguirmos adiante até dar as duas badaladas, e depois virarmos em redondo e rumarmos lés-sudeste meia quarta este, tudo irá bem, senhor, tudo sairá às mil maravilhas.
Ao dar as duas badaladas chamou-se ao convés os desocupados, e os sentinelas, posicionados nos quatro lados do barco, deram a voz de que tudo ia bem. O piloto de guarda, depois de fazer um voleio de novo com a sonda, informou a Miller, terceiro tenente e oficial de guarda: "Quatro nós exatamente, senhor, com sua permissão", o que anotou na tabuinha, junto ao rumo atual do Bellona, su-sudoeste. O mais rouco dos ajudantes do carpinteiro sussurrou: "Quatro polegadas e meia na sentina, senhor", ao ouvido de Miller; e este, voltando-se para o capitão ao mesmo tempo que se descobria, repetiu o dito em um tom de voz calculado para impor-se ao estrondo das bombas de mão, baldes, esfregões e arenito de vários tamanhos que os marinheiros preparavam para limpar o convés assim que assomassem as primeiras luzes da manhã. Mas antes de que pudessem pôr mãos à obra, Jack ordenou:
- Alto, alto aí. - E com mais suavidade: - Senhor Miller, vamos mudar de bordo em redondo, se é tão amável, e pôr rumo lés-sudeste meia quarta este. Nós nos arrumaremos com os que estão de guarda.
Raras vezes Jack ordenava mudar de bordo por davante um navio de linha quando tinha mar suficiente para fazê-lo em redondo. A proa se afastava do vento e dava a volta até adotar o rumo desejado: era mais lento e muito menos espetacular que uma virada por davante, que cruzava pelo olho do vento até adriçar a embarcação em seu novo rumo, mas requeria de menos marinheiros e facilitava a conservação em bom estado de vergas e aparelho. Observou a manobra com atenção. Foi executada com soltura, não muito rápido mas com brio, sem gritos nem juramentos desnecessários, e o cabo que comandava a roda, ao ver que a bússula assinalava o rumo, disse ao marinheiro que a governava:
- Assim, assim. Muito bem, isso mesmo.
Jack se foi para sua cabine razoavelmente satisfeito, mas com ânimo baixo. Odiava pensar que Stephen vagabundeava por aí em uma costa hostil, em companhia de tantos estrangeiros a quem não considerava completamente de confiança.
Sentou-se com ar reflexivo, enquanto as badaladas que ouvira durante toda uma vida no mar continuavam soando de forma invariável; ao tocar o sétimo grupo de badaladas, ouviu os passos apressados dos marinheiros que embutiam as macas nas anteparas, e ao oitavo o chamado para o desjejum.
A única vantagem de servir no bloqueio de Brest consistia em que as provisões eram geralmente frescas e abundantes; e o café da manhã, talvez a refeição favorita de Jack além do jantar, incluiria quase com toda segurança salsichas e bacon, ambos estupendos. Além disso, podia-se dizer que as aves de quintal (o Bellona andava muito bem abastecido delas), por encontrar-se em uma atmosfera similar à de casa, punham ovos em excesso.
Contudo, foi um desjejum solitário. Obviamente, vista a natureza do assunto, o capitão de um navio de guerra, sobretudo um que não podia oferecer um grande surtimento de manjares em sua mesa (tal como era o caso de Jack nesse momento) se via forçado a comer sozinho em mais de uma ocasião; mas já fazia muito tempo que Jack Aubrey navegava com Stephen Maturin, e agora sentia falta de seu companheiro, um companheiro amiúde contraditório mas humano, essencialmente distinto do restante das pessoas às quais podia convidar, distinto dos tenentes, ajudantes do piloto, guardas-marinhas, que por costume, e também por prudência, não costumavam contrariar a seu capitão sobre qualquer questão, convidados que, de qualquer maneira, não abriam a boca até que se lhes dirigia a palavra.
- Entre.
- Senhor, com os cumprimentos do senhor Somers - disse o guarda-marinha que abriu a porta da cabine, - que deseja que lhe informe de que avistamos à Alexandria.
- Obrigado, senhor Wetherby. Encontra-se à distância de sinais?
- Oh, senhor, não saberia dizer - respondeu Wetherby surpreendido, pois aquele era sua primeira viagem. - Quer que suba para perguntar?
Não se incomode. Eu mesmo subirei ao convés.
"É muito possível que nos traga o correio - refletiu Jack. - Gostaria de receber algumas cartas, notícias das meninas, notícias do povoado, daquele réptil do Griffiths; talvez tenham publicado o último exemplar do Proceedings." Aproveitara sua penúltima visita a Londres para criticar (na qualidade de membro por Milport) os pressupostos da Armada na Câmara dos Comuns, e também para ler um segundo ensaio sobre a precessão dos equinócios ante a Royal Society, como membro de tão augusto e sábio órgão: verdade que como matemático era uma flor tardia, mas era muito estimado, e se especializara nos problemas da navegação astronômica. Amiúde se encontra uma habilidade matemática e musical pouco freqüente em pessoas completamente incapazes para a prosa, pessoas que quase não podem reunir quarenta palavras para dar forma a um parágrafo elegante, coerente e gramaticalmente correto.
"Pode ser que receba uma carta esperançosa de Lawrence", seguiu pensando. Mas a palavra carta lhe trouxe à memória a dolorosa tarefa à qual tinha que enfrentar-se: devia escrever ao reverendo senhor Geoghegan. Não podia pedir a seu escrevente, tinha que fazê-lo ele, e quanto antes, pois desse modo a carta chegaria logo ao navio insígnia. Para mudar de pensamentos tomou um último trago de café e se dirigiu ao castelo de popa, onde todos, em silêncio, afastaram-se para o lado de bombordo com sua presença.
- Onde está? - perguntou.
- Duas quartas pela amura de estibordo, senhor - respondeu Somers, o oficial de guarda, e dois dos guardas-marinhas trocaram um olhar de cumplicidade, pois a maioria podia vê-la perfeitamente bem.
Era de dia, mas o sol permanecia oculto atrás das nuvens que cobriam a distante terra e a bruma se estendia pelo mar. Jack girou a cabeça para olhar com o olho são na direção que lhe haviam assinalado, gesto habitual nele, e distinguiu a pequena fragata, com velas mais brancas que a brancura que separava a ambas embarcações.
- Dirige-se para Black Rocks - disse Jack. - Disse algo?
- Cumprimentou com uma gávea, senhor - respondeu Somers. - Mas provavelmente tenha sido uma brincadeira do capitão Nasmyth.
- Hasteie uma bandeira marrom - ordenou Jack, que tinha mais antiguidade que Nasmyth, o comandante da fragata, - seguida pelo sinal "Desejo falar com o senhor".
O guarda-marinha de sinais, um veterano chamado Callow que havia navegado com Jack em ocasiões anteriores, e o marinheiro que o auxiliava estavam atentos, e as bandeiras ascenderam pela adriça, onde ondularam ao vento.
A Alexandria andava a orçar, marejou alas e rastreiras e começou a levantar ondas a proa a sua passagem, tudo isso meritório tendo em conta o vento que soprava.
- Envie "Não se aproxime mais" - ordenou Jack. - Seguida por "Tem notícias, cartas?".
Uma breve pausa, durante a qual todas as lunetas do castelo de popa do Bellona se cravaram ansiosas na fragata. Mesmo antes de que Callow pudesse ler a resposta em voz alta, ouviu-se um suspiro generalizado de quem observava desde o castelo de popa. "Não tem notícias, senhor. Nem cartas. Sinto muito. Repito: Sinto muito."
- Responda: "Muito obrigado. Que o senhor lhe acompanhe. Prossiga".
Meia hora depois, a Alexandria desapareceu completamente ao separar-se seus rumos. Jack se dirigiu à posição habitual para aquela hora do dia frente à ponta Dinant, onde poderia possivelmente cruzar-se com o Ramillies, procedente de Saint Matthews, ou com algum dos cúteres que navegavam entre as esquadras.
Mas naquele momento tinha que encarregar-se dos jovens cavalheiros. Reuniam-se ali no castelo de popa, a suas costas, acompanhados pelo mestre, e ainda que alguns riam entre os dentes enquanto faziam o possível para pisar nos companheiros, outros se mostravam temerosos.
- Muito bem, cavalheiros, comecemos - disse Jack ao virar-se para eles. Encabeçou a marcha para a cabine de proa. Ali lhe mostraram os deveres do dia, os quais, ao não ter realizado observações ao meio-dia do dia anterior, eram por força fruto da estimativa. Os resultados diferiam pouco, exceto no modo de apresentá-los.
Tanto Walkinshaw como Jack se sentiam como em casa com as matemáticas da navegação, e para ambos era muito difícil compreender como era possível que esses jovens demonstrassem tanta ignorância, sobretudo aqueles que tinham passado boa parte de seus anos de estudos aprendendo latim e, em alguns casos, grego, e inclusive um pouco de hebraico e possivelmente algo de francês. Nisto pensava Jack durante o silêncio que seguiu à devolução e felicitações de sua parte dos trabalhos apresentados em limpo. E para romper este silêncio, disse a um pirralho de doze anos, filho de um dos tenentes que serviram outrora sob seu comando:
- Senhor Thomson, defina o seno.
Antes de continuar, Jack observou ao seu redor as expressões de ignorância supina.
- Peguem uma folha de papel e escrevam a definição do seno. Senhor Weller - disse a um garoto que estudara em uma academia de náutica em Wapping, -o senhor está cochichando para seu companheiro. Suba ao tope e fique lá até que se lhe ordene descer. Mas antes de ir, recolha os papéis e mostre-me.
Era difícil dizer quem estava mais atordoado, se o mestre ou os alunos, quando o capitão repassou a prova irrefutável da total ignorância que tinham a respeito.
- Muito bem - disse finalmente. - Teremos que começar de novo pelo princípio. Chamem ao carpinteiro. - Apareceu o carpinteiro, tirando algumas lascas do avental. - Hemmings - disse Jack, - consiga-me uma lousa, de acordo? Que seja lisa e negra, por cuja superfície se deslize o giz sem problemas; quero-a pronta pela manhã a esta hora. - E aos jovens lhes disse: - Escreverei as definições e desenharei os diagramas, de modo que os senhores possam aprendê-los de memória. - Não estava de muito bom humor, e sua férrea determinação, reunida a sua corpulência e à imensa autoridade que exercia a bordo, resultou particularmente impressionante. Saíram em fila e em silêncio, sérios, muito sérios.
Pela manhã seguinte, graças à presença da lousa, presa ao alcance do capitão, os garotos aprenderam, mediante palavras e diagramas, a natureza do seno, cosseno, tangente, co-tangente, secante e cossecante, assim como as relações existentes entre elas e seu valor na hora de encontrar a posição do barco em um oceano imenso, sem costas, sem terra em dez mil milhas. Tudo isso podia encontrar-se nas páginas dos princípios da navegação de Robinson, além das correspondentes tábuas e o Almanaque Náutico, que os guardas-marinhas guardavam em seus baús como parte essencial de sua bagagem. O senhor Walkinshaw havia tentado ensinar-lhes a matéria, mas não poderia ter-lhes dito nada que recebesse tanta atenção como as palavras daquela encarnação de Júpiter. Falou durante o que aos guardas-marinhas lhes pareceu uma eternidade, mas que de fato não durou mais do que duravam algumas das habituais patrulhas do Bellona desde a baía Douarnenez a Black Rocks no meio da bruma, muito densa em ocasiões, tanto que não viam nada em absoluto. Com ventos tão leves que em ocasiões o barco se deteve por completo, o capitão desfrutou de tempo de sobra para dedicar à trigonometria.
Finalmente chegou a quinta-feira, a tão ansiada quinta-feira, um dia de melhoras em que a bruma dissipou, soprou um vento decente do nordeste, e os jovens se sentaram no castelo de proa, sob o sol, acompanhados de seus padrinhos do mar, que lhes ensinaram a costurar as meias e demais roupas, ou a realizar os nós mais simples e aprender os rudimentos de atar dois cabos. Uma quinta-feira durante a qual o vigia do tope gritou:
- Convés! As gáveas de um barco assomam a sotavento!
De fato, muitos dos homens que não estavam de serviço treparam nos cestos das gáveas armados de lunetas; após um pouco se descobriu que era o Ramillies, que pairava enquanto tentava determinar a natureza de uma vela suspeita situada ao norte, ao longo da Passage du Four, vela que os do Bellona não podiam avistar. Enquanto todos tomavam pé da situação, informou-se de que se havia avistado uma segunda embarcação, um cúter que navegava procedente de Ouessant, situado atrás de Black Rocks, seguido de um terceiro, a fragata pesada Doris. Depois da solidão, a baía parecia abarrotada. O Ramillies foi bem-vindo por todos, sobretudo por Jack: seu capitão, Billy Fanshawe, era um velho amigo. E também o foi a Doris, pois o que realmente alegrava a todos a bordo, mesmo os que não sabiam ler ou escrever, foi identificar o cúter como o pertencente ao navio insígnia, empregado para a distribuição do correio por toda a esquadra por ordem do almirante Stranraer.
A Doris navegava pela borda de fora e alterara seu rumo para interceptar o cúter muito antes de que este chegasse ao Bellona, de modo que foi a primeira embarcação a receber o correio, por mais que Harding, que havia deixado a sua esposa grávida, ordenou marear uma quantidade irracional de lona. Mas não tardaram os rostos graves e mal-humorados dos marinheiros do Bellona em ceder passagem à tensa e alegre espera: o cúter se amadrinhou com suavidade, transferiu uma avultada saca por uma rede pendurada na verga do maior, para depois separar-se e rumar para o distante Ramillies.
Levaram a saca a toda pressa para a câmara do capitão, onde este, o primeiro oficial e o escrevente a distribuiram em montinhos. Da câmara passou primeiro para a câmara dos oficiais; depois, mediante o escrevente, aos oficiais, e finalmente, das mãos dos guardas-marinhas, aos marinheiros das divisões que estavam sob seu comando.
Obviamente, a correspondência de Jack ficou em sua câmara, e assim que a porta fechou coma saída de Harding e do escrevente, pegou a primeira do monte, carta dirigida, errôneamente dirigida, cujo remetente estava escrito por uma mão que não podia ser-lhe mais familiar. Haviam se despedido com frieza e a abriu com toda a expectativa do mundo, com a esperança de encontrar uma total renovação de seus sentimentos, de modo que o fez com um sorriso. A carta tinha data do dia catorze, escrita em Woolcombe; graças ao vento do norte que soprava, quase não tinha tardado cinco dias em chegar.
Senhor Aubrey,
É com a mais profunda, as mais profunda e negra das penas, que devo informar-lhe de que obtive provas irrefutáveis de sua infidelidade. Desprezando abertamente o compromisso que o senhor adquiriu na presença do Senhor, deitou-se no Canadá com uma mulher chamada Amanda Smith, que deu a luz a um filho fruto dessa relação. Negue se puder. Tenho provas e me decidi pedir conselho legal. Entretanto, informarei ao almirante de modo que possa deixar livre minha casa, em Ashgrove, aonde regressarei em companhia de meus filhos.
Em continuação leu algumas linhas borradas por lágrimas, mal escritas. O início era uma cópia de um rascunho previamente redigido, depois a carta adquiriu um tom improvisado, menos formal e muito menos coerente, para não falar da legibilidade. Acabava de distinguir as palavras: "Abandonou sua cama para meter-se na minha", quando o chamaram para que subisse ao convés.
- Senhor, o senhor me pediu que lhe informasse de se o Ramillies desse sinais de vida - disse Harding. - Pois bem, acaba de assinalar nosso número e de içar o sinal conforme o qual o capitão deve comparecer-se a bordo. Dei por recebidos os sinais, e ordenei que pendurem a falua no pescante.
- Eu lhe agradeço, senhor Harding - disse Jack. - Desdobre quantas velas creia necessárias.
Regressou à cabine; ali, depois de passar um tempo sentado, pegou a outra carta de Sophie que, depois de titubear, abriu com mão trêmula.
Estava fechada uma semana antes da carta que acabava de ler, e a letra era mais familiar e legível.
Querido Jack,
Quanto lamento ter me despedido de você dessa maneira. Estou a um tempo desejando pedir que perdoe meu mau gênio, tentando explicar-lhe como inclusive o mais afetuoso dos corações, um coração de mulher, pode ver-se afetado pela mal-humorada lua. Contudo, não é nada fácil explicar estas coisas para uma criatura ignorante como a que lhe escreve, de tal forma que as palavras possam dar boa fé de seus sentimentos, e antes de escrever-lhe coisas como "Com todo meu amor" ou "Perdoe-me" recebi uma carta de Bath com aterradoras notícias.
Provavelmente recordará que mamãe vivia em companhia de uma amiga, a senhora Morris, a honorável senhora Morris, que a ajudava em seus negócios, e que tinham um servente, um inútil ao qual todos desprezamos quando viveu sob nosso teto, sobretudo seus marinheiros; contudo, ele era útil em seus negócios por estar familiarizado com o mundo das corridas de cavalos e das apostas.
Enfim, a senhora Morris fugiu com ele; ao que parece levou consigo todo o dinheiro e tudo quanto puderam carregar, e quando mamãe se informou de que haviam se casado, de que tinham contraído matrimônio em uma igreja, perdeu a consciência e foi necessário sangrá-la. Desde então, sofre constantes ataques nos quais se alternam as lágrimas com um riso histérico. Com a ajuda de minha querida prima Diana a trouxemos de volta para casa (praticamente havia destruído seu apartamento em Pulteney Street e, de qualquer maneira, não estava em condições de seguir vivendo ali sozinha), os serventes, além da anciã Molly, abandonaram-na, e lamento dizer que se comportou de forma terrível na carruagem. Pois as meninas voltaram da escola acompanhadas por algumas amigas (as meninas dos Nugent), tive que acomodá-la em seu estúdio, o mais perto possível da latrina, mas não tema: pusemos uma cama no canto esquerdo, com um armário e um guarda-comida detrás (não tenho palavras para dizer-te o amável que foi a senhora Oakes ao ajudar-me), de modo que em nenhum caso poderia mamãe aproximar-se de suas apreciadas maquetes de barcos ou dos instrumentos de medição.
Quando obtenhas uma licença (e queira Deus que seja logo, meu amor), e quando as meninas terminem suas férias e partam com suas amigas, a trasladaremos ao piso superior, ou pode ser que de volte a Bath, desde que tenha uma acompanhante mais conveniente. Ela me disse que há um clérigo que esteve a ponto de fazer-lhe uma proposição.
Eu lhe rogo, querido Jack, que não se moleste em enviar-nos dinheiro para a manutenção; nos arrumamos de sobra com o que obtemos da granja, da queijaria, dos currais e de meu galinheiro, porém, ainda que não fosse este o caso, Diana insiste em pagar um substancioso aluguel pela ala da casa que ocupam e pelos estábulos. Grandes estábulos! Que cavalos! Com a ajuda desse cavalheiro que lhe emprestou a carruagem com a qual levou a Stephen e a ti ao porto (ainda o tem em seu poder), pôde ir à cidade para empenhar o enorme diamante azul que trouxe da América do Norte: "Estou arrumada se pretendo viver com duzentas libras por ano", exclamou. Voltou à criação de cavalos árabes. E ainda que ainda não tenha vendido aquela lúgubre casa que tem em Barham, aproveitou todo o pasto para a criação. Diz que é um absurdo guardar o Blue Peter - pois é assim como se chama o diamante - oculto no porta-jóias. Não podia usá-lo em nossas reuniões de Dorchester, só em Londres ou em Paris, e de qualquer maneira não tardará em recuperá-lo quando Stephen solucione seus assuntos. De fato, tem intenção de comprar uma carruagem com um tiro de seis cavalos...
Jack largou a carta em cima da escrivaninha e se censurou com dureza por ter cometido a estupidez de guardar a correspondência de Amanda em uma caixinha de baralho, e deixá-la entre sua correspondência oficial. Certo apreço, certa gratidão tinham lhe impedido de jogá-la ao fogo. Teria sido indecente fazer tal coisa, a pesar de quão estúpida que fora Amanda. Não sentia mais culpabilidade do que a que atribuía a sua própia insensatez, pois, conforme as normas pelas quais se regia, qualquer homem em seu lugar teria feito o mesmo ante uma mulher sedutora como ela, e outra atitude teria sido ridícula e insultante. Contudo, se fosse consciente do xereta e maliciosa que era aquela mulher, o certo é que teria pasado um borracha em Canadá. Refletiu sobre a forma de Sophie proceder com relação a estes assuntos, sobre sua radical desaprovação de qualquer irregularidade, da menor ligeireza na hora de falar de um deslize, por mais que este não fosse mais que uma conversa ambígua, e isso que a ligeireza de Sophie ao falar era criminoso, quase no sentido da palavra que lhe daria um advogado.
- Senhor - disse o imediato, - desculpe-me por irromper desta maneira, mas largamos a falua. E, senhor, permite-me dizer que Eleanor e eu tivemos uma menina, uma menina sã, de bochechas rosadas e muito alegre?
- Eu lhe desejo toda a felicidade do mundo, William - disse Jack ao mesmo tempo que apertava com força sua mão. - E também à senhora Harding, certamente. Estou seguro de que será uma boa mãe.
Houve cerimônia no costado quando o capitão do Bellona passou, precedido por um guarda-marinha, para embarcar em seguida no bote. Bonden afastou a embarcação do navio de linha e os remadores vogaram de forma cadenciada para cobrir as cinqüenta jardas de distância que os separavam do Ramillies. De novo se produziu a cerimônia do costado, anunciou-se a chegada do capitão Aubrey mediante os apitos de rigor, momento em que o capitão Fanshawe, seu superior por pouco, aproximou-se para saudar-lhe amavelmente e conduzir-lhe ao interior de sua cabine. Uma vez ali, pôs uma taça de conhaque em sua mão e, com ar curiosamente incômodo, disse:
- Bem, Jack, espero que tenha recebido boas notícias no correio.
- Não tão boas como teria desejado, a julgar pelo menos pelo que pude ler - disse Jack. - Ainda que pode ser que surja algo melhor. E você?
- Recebi uma encantadora carta de Dolly, e boas notícias dos crianças. O resto, faturas. Mas Jack, lamento muito dizer que o cúter também me trouxe uma ordem do navio insígnia. Fui ordenado a lhe informar que durante a mesma noite em que recebeu a bordo a um piloto do Ramillies e rumou para Raz de Sein, duas fragatas francesas partiram de Brest com vento do nordeste, fragatas que nestes momentos atacam aos mercantes ingleses e aliados com grande êxito. O que não pode atribuir-se senão a sua negligência ao não manter uma adequada vigilância, dado que parece que os franceses cruzaram sua esteira. Por essa razão fui ordenado a lhe admoestar por isso, de modo que pode se considerar admoestado.
- Sim, senhor - disse Jack, impávido. - Isso é tudo?
- Não - respondeu Fanshawe com maior ênfase do que pretendia em princípio, e lendo os papéis que tinha ante si continuou: - Também me pediram que lhe ordene navegar até a frente de Ouessant sem a menor dilação, e comparecer-te ali a bordo do navio insígnia, onde se lhe incorporará à esquadra que patrulha mar adentro, pois se espera que outros e, talvez, olhos mais capacitados, compensem as gravíssimas consequências de tamanha negligência, tão imprópria de um bom marinheiro.
Silêncio. Nenhum deles quis comentar a prosa do almirante.
- Jantará comigo, Jack? - perguntou Fanshawe, em uma tentativa de recuperar um tom de conversa amistoso.
- Muito obrigado, realmente, Billy - respondeu Jack, - mas esse "sem dilação" tem preferência. Em confiança lhe direi que o correio me trouxe notícias de que fui pego em adultério, sem que possa fazer nada para solucioná-lo, e que terá consequências. Basta isso para tirar a fome de qualquer um, como creio que compreenderá.
- Oh, querido Jack, eu sei, eu sei - lamentou-se Fanshawe com grande pesar. - Eu sei muito bem. Venha, tome o conhaque e lhe acompanharei até o portaló.
Ao regressar a bordo do Bellona, Jack respondeu aos numerosos cumprimentos e se dirigiu à cabine, onde as cartas seguiam espalhadas sobre uma mescla confusa de envelopes sem abrir; depois, perguntou pelo piloto.
- Senhor Woodbine - disse, - peço que estabeleça rumo para Ouessant, para o ponto onde lhe pareça mais provável que possamos encontrar à esquadra que patrulha mar adentro, tendo em conta o estado da maré e o vento atual. Ou o vento que possamos encontrar ali.
E esse último comentário se devia a que, efetivamente, os ventos que sofria a esquadra que patrulhava mar adentro eram muito mais fracos que os que sopravam ao leste de Ouessant, sobretudo os do sudoeste, de cuja força e dos mares que levantava se protegiam os barcos que patrulhavam frente à costa, até certo ponto, graças à corrente formada pelos Saints, que atuavam como um não muito eficaz mas considerável quebra-mar, tudo o que se fez mais evidente no Chenal de la Helle, que Woodbine tomou naquela noite.
Fizeram um bom avanço, e ainda que tiveram que pôr dois rizes nas gáveas ao chegar à desprotegida passagem de Fromveur, ficou claro que o vento caía. Por outro lado, quando alcançaram a esquadra havia se levantado um mar monstruoso na parte mais afastada da ilha e, se possível, estava mais encrespado que nunca, apesar da chuva que havia caído. A esquadra pairava em frente da baía Stiff, ao nordeste. Quando Jack, em resposta ao sinal içado nas adriças do navio insígnia conforme devia apresentar-se a bordo, desceu para embarcar na falua (que se balançava de maneira má à mercê daquele mar) perdeu pé pela primeira vez na vida e caiu como uma pedra sobre a água que entrara no fundo da embarcação, com a capa por cima das orelhas. Molhou-se ainda mais no caminho para o navio insígnia, e foi assim, empapado, que Jack Aubrey se apresentou à entrevista com o almirante a bordo do Charlotte. Contudo, aguardava-lhe uma longa espera, e ainda que Charles Morton, seu capitão, tenha se mostrado muito educado, Jack sabia perfeitamente que qualquer homem que tivesse caído em desgraça, qualquer um que acabasse de ser alvo de uma reprimenda, uma severa reprimenda, não era uma companhia adequada, pois às vezes essas coisas se pegavam, sobretudo em um barco governado por Stranraer. Foi por isso que não impôs sua presença nem fez comentário algum aos oficiais que o rodeavam.
Quando foi conduzido à cabine do almirante, encontrou ali o capitão ao comando da frota, sentado junto a Stranraer atrás de uma mesa alongada, colocada ao través dos lados; o secretário do almirante e um escrevente permaneciam sentados no extremo de bombordo.
- Boa noite, milorde - cumprimentou. - Boa noite, senhor.
- Boa noite, capitão Aubrey - disse o almirante. - Sente-se. Vejamos que tem o senhor a dizer a respeito dessas fragatas francesas que deixou passar.
- Tão somente que lamento de sério que um só francês tenha podido sair do porto de Brest.
- Então, o senhor admite?
- Devo de ter me expressado mal, milorde. Não disse nada mais além de que lamento o ocorrido, mas não admiti que fosse responsabilidade minha.
- Onde se achava situado seu barco ao pôr do sol do dia vinte e sete?
- A dois cabos ao norte de Men Glas, milorde, a espera da maré.
- Então, como explica o fato de que aquelas duas fragatas pudessem abandonar Goulet de Brest, percorrer o Iroise e ser vistas a uma légua ao norte de Ile de Sein, três quartos de hora depois, sem que passassem pela popa do senhor, quase a distância de buzina e, portanto, o bastante perto para poder vê-las?
- Não o explico de nenhuma maneira, milorde. Mas lhe asseguro que havia um vigia em cada tope e, certamente, no castelo de proa, marinheiros de primeira e de reconhecida valia.
- De modo que nega o senhor a possibilidade de que o francês passasse despercebido?
- Não a nego. Houve uma densa bruma naquela noite e o piloto teve que calcular o caminho ao longo de Basse Vieille, guiando-se pelo lampejo da espuma do mar, de modo que não é impossível que aquelas duas fragatas passassem sem ser vistas. O que nego é a possibilidade de que o fato de que o fizessem seja atribuível à falta de zelo ou à negligência de minha gente.
- Ou seja, que toda a culpa é do tempo.
- Se é questão de culpa, milorde, sem dúvida eu culparia a bruma.
O almirante se virou para Calvert, o capitão da frota, o oficial encarregado da disciplina.
- E o senhor o que acha?
Antes de pronunciar-se, Calvert, um homem frio e introvertido, alto para ser marinheiro e muito magro, observou impávido a Jack durante um instante.
- Em casos desta índole convém reunir todas as provas objetivas disponíveis. Não só o barco em questão possue os cadernos de bitácula com anotações referentes às condições atmosféricas, como que também tem os diários de oficiais e guardas-marinhas. Se o ocorrido é suscetível de converter-se em um importante caso de ordem disciplinar, se couber a mais remota possibilidade de que alguém exija a formação de um conselho de guerra, terá que contar com toda essa documentação.
Stranraer considerou suas palavras. O escrevente repôs a pluma.
- Oh, não creio que seja necessário chegar até esse ponto - disse finalmente o almirante. - Bastará que o capitão Aubrey declare solenemente que seu barco se encontrava em boa ordem no dia vinte e sete.
Jack fez a declaração.
- Deixemo-lo assim - disse Stranraer ao levantar-se.
- De acordo, milorde. Mas se me o permite, tenho que fazer-lhe uma petição, uma petição de licença.
- Licença? - exclamou Stranraer. - Outra licença, pelo amor de Deus? Por assuntos parlamentares?
- Não, milorde, trata-se de um assunto particular de caráter urgente.
- Não. Nada disso. Se todos os oficiais ou marinheiros tivessem que voltar a seu lar cada vez que houvesse uma urgência de caráter particular, não disporiamos de gente suficiente para governar a frota. Suponho que não se deve a uma morte repentina?
- Não, milorde.
- Então não se fale mais nisso. A nossa é uma profissão muito dura, como saberá o senhor muito bem. Isso para não mencionar que estamos em guerra.
Sim, era uma profissão muito dura, e nem o almirante Stranraer nem as tormentas outonais tinham a menor intenção de facilitar as coisas. Reinava a disciplina na esquadra, uma disciplina muito rigorosa, imposta sem ter em conta o tempo que fizesse, exceto quando sopravam ventos que faziam os oficiais ordenarem aferrar as gáveas. Ao anoitecer, ainda podiam ser vistos os botes que levavam a inquietos capitães ao navio insígnia, dispostos a ouvir a franca opinião do almirante a respeito de seus conhecimentos de náutica. A noção que este tinha da disciplina era muito curiosa, muito parecida à que existia no Exército de outrora, quando a precisão na hora de abotoar-se, de branquear as correias e cadenciar os movimentos contavam tanto como qualquer outro fator, junto a evoluções tais como contramarchas que pouco tinham a ver com a guerra, uma atividade que facilmente podia arruinar um uniforme. De pouco servia a lorde Stranraer a destreza no manejo dos canhões. Creio que se enfrentaria aos franceses em caso de que saíssem de porto, mas durante estes freqüentes exercícios os canhões geralmente permaneciam ociosos, se bem que reluziam em tanto quanto os poliam constantemente, e os moviam de um lado para o outro com total precisão. Era como se tivessem copiado a disciplina que imperava nas Antilhas para aplicá-la no canal, onde ainda tinha menos sentido que no Caribe.
Ainda que formava e reformava constantemente a linha de combate (a retaguarda assumia a posição da vanguarda, e vice-versa), o combate em si não parecia interessar muito ao almirante. Quando jovem se vira envolvido em certo número de combates, nos quais não se comportara com desonra, mas depositava toda sua fé na força moral de uma frota intacta e numerosa, experimentada e impecável em todas as manobras existentes e por existrir, e profissionalmente superior a qualquer rival, um corpo que impunha silenciosamente sua vontade.
Contudo, estes exercícios pelo menos mantiveram a Jack Aubrey muito ocupado. Não estava muito disposto a que seu barco, e, portanto, a dotação de seu barco, fosse pega em falta e repreendido mediante os sinais, coisa que sucedia quando, por exemplo, o número de identificação do Bellona ondeava à vista de todos a bordo do navio insígnia, ou a fragata encarregada de repetir os sinais içava as bandeiras correspondentes a "Mantenha a posição", ou "Forçar vela", quando não algum comentário telegráfico como por exemplo "Com brio" ou "Necessita ajuda?". A dotação do Bellona, embora possuidora de uma habilidade notável na hora de ofender ao inimigo, contava também com certa quantidade de homens do interior e, o que era ainda mais importante, nunca tomara parte nesse tipo de manobras, excetuando o uso da artilharia, assim que seus oficiais e ele tinham que fazer o possível para antecipar-se à ordem seguinte, tarefa esgotadora da qual nem sempre saíam garbosos. Por isso, a falua do Bellona amiúde se unia a quem era chamado a bordo do navio insígnia ao terminar um exercício; ali, o almirante não economizava o veneno na hora de reclamar pelas faltas que haviam cometido.
Jack não desfrutava precisamente destas reuniões, mas tampouco lhe afetavam muito quando as achava justificadas, o que, tendo em conta a tripulação com que contava, era algo inevitável. Sua mente se achava consentrada em um curiosíssimo estado de urgência, confusão e aflição. Exceto quando lhe absorvia a árdua tarefa de proporcionar que seu barco respondesse bem durante uma série de operações competitivas - executadas amiúde de forma correta, apesar da dificuldade acrescentada pelo temporal, - sua mente voltava a ancorar naquela carta e na desconhecida que a escrevera. Um sem-fim de inumeráveis possibilidades se amontoavam em seu pensamento, e uma imensa tristeza se alternava com uma frustração talvez ainda maior, que se traduzia em uma ânsia feroz para entrar em combate com o inimigo.
Coisa que era óbvia para quem lhe conheciam bem, e mesmo o capitão da frota, que não era um homem excepcionalmente perceptivo, tratava-o com sumo tato a bordo do Charlotte. Em seu própio castelo de popa não dava castigos (tampouco eram necessários), mas de vez em quando apertava com força a mandíbula para calar uma furiosa reprimenda, o que resultava muito mais visível que o rugido e a blasfêmia que a acompanhavam.
- Queira Deus que não exploda - disse um nervoso e infeliz Killick.
- Que Deus ampare ao pobre sodomita que esteja a seu lado quando exploda - disse Bonden.
A solução ou, em todo caso, o alívio desejado, que trazia pela mão a miríade de emoções da batalha, assomou numa segunda-feira pelo horizonte. No dia anterior, o Bellona, assim como todos os outros barcos e embarcações da esquadra, tinha celebrado a missa: Jack Aubrey não era o que podia definir-se por um homem religioso, mas assim como para muitas de suas diversas superstições também tinha um lugar para os salmos. Reverenciava a música, não o significado, do livro de orações, as lições, os salmos e leituras habituais, enquanto que o restante dos rituais, tais como a inspeção de todo o barco e todos os homens que o habitavam: limpos, barbeados, sóbrios e capazes de manter-se em seu lugar sem pisar a linha, ou seja, o extremo da prancha, aliviavam sua mente. Ainda que aquele dia não se sentia com vontade de ler em voz alta um sermão, ele e os seus se sentiram satisfeitos com os mais que habituais artigos do Código Militar, os quais, graças ao seu uso imemorial, haviam adquirido uma pátina sagrada. É verdade que existiam óbvias e, amiúde, extraordinariamente dolorosas associações com a igreja paroquial de Woolcombe, mas o forte balanço do mar, o rangido do aparelho e o odor de breu bastaram para distanciar uma coisa da outra. Não foi senão até seu regresso à cabine quando, ao fazer lugar entre a papelada para o missal, apareceu de novo ante seus olhos a carta de Sophie, e a desolação, a fúria e uma incrível inquietação se apoderaram dele com força renovada.
Jack Aubrey se encontrava no convés na manhã daquela segunda-feira depois de recusar o café da manhã (quatro ovos intactos, qualhados com a manteiga), quando viu os sinais do almirante. O Charlotte era um barco falador e, ainda que como qualidade costumava ser esgotadora, proporcionava muita prática aos oficiais de sinais. Escutou Callow cantar as bandeiras hasteadas quase ao instante de ondear ao vento, sem necessidade de consultá-las no livro. Formada em linha de frente, a esquadra devia pôr rumo oés-sudoeste a toda vela, com o Bellona situado na ponta sul. Contudo, caía o barômetro. Ao sul, o céu, ou o que deste podia se ver devido às nuvens baixas, impedia qualquer bom augúrio; e o mar com a maré minguante tinha curiosos veios claros que pareciam surgir das profundidades. O imediato e o piloto permaneciam sérios. Harding comera no dia anterior na câmara do Charlotte, e descobriu que este exercício se ejecutaria principalmente com a intenção de descobrir quão rápido e acertadamente podia transmitir-se um sinal de uma ponta da linha, a inabitual formação em linha estendida, à ponta oposta, e de novo à outra ponta.
Lorde Stranraer levava a bordo como convidado a outro almirante, especialista em sinais.
Estavam navegando, e a linha, depois de muita pertubação por parte do navio insígnia, formava tão esticada sobre a superfície do oceano como lhe permitia a curvatura da Terra. Contudo, esta perfeição não durou muito. Pouco antes do jantar, o Charlotte ordenou mediante sinais que a esquadra virasse em uníssono, sinal reforçado por um canhonaço. Até onde pôde ver-se, tal ordem foi obedecida com tolerável regularidade ao longo da ampla frente, ainda que um posterior canhonaço veio para indicar que pelo menos um barco do extremo oriental se demostrara muito lento ou que inclusive faltara ao sinal por completo, porque não se pôde ver muito bem o que havia sucedido. Outras explicações propunham que o barco desconhecido, depois de misturar o grogue do meio-dia, estava tão furioso por aquela ordem tão caprichosa que atrasou sua execução somente por vontade de importunar.
Depois da virada, a esquadra navegou de bolina sem que nenhum de seus membros caísse para sotavento, e com tempo suficiente para desfrutar de um quarto de libra de queijo, e depois recuperou seu rumo anterior, ainda que um pouco mais ao oeste.
Navegavam com soltura, mas o tempo piorou, e o assobio do vento no aparelho subiu constantemente até superar uma oitava completa. Jack ordenou pôr os contraestais.
- Não tardaremos em voltar para casa - disse Harding a Miller, que estava ao comando da guarda; para "casa" se referia a aquele tétrico pedaço de mar que se estendia frente à ilha Keller, onde o almirante gostava de refugiar-se quando o mar, o vento ou a chuva ameaçavam se tornar mais ferozes que o habitual.
- Arrie as gáveas, senhor Miller, se é tão amável - ordenou Jack. As joanetes haviam desaparecido fazia tempo, e mesmo a Ringle, tão à trinca a sotavento como possa ficar um pato, mareava pouco mais que um lenço em cada mastro, e um terceiro pedaço de lona a proa.
- Gente a rizar as gáveas! - Ao grito se seguiu o agudo apito do contramestre, e enquanto os marinheiros trepavam sem perder um instante, Jack, voltado para a amura de bombordo, achou ver lampejos brancos recortados contra o cinza, o mar que se alçava minuto a minuto, coroado por caprichosas cristas.
- Leme a bombordo - ordenou em voz baixa a Compton, o mais veterano dos dois homens que governavam a roda, um marinheiro que o conhecia bem, a ele e ao tom de sua voz. Compton e seu companheiro obedeceram e o barco caiu um pouco para estibordo, graças ao que Jack dispôs de um ângulo de visão mais amplo desde o lugar no qual se encontrava, sobre um mar oscilante, com a luneta no olho são.
Seguiu uma comprida pausa, durante a qual se mastigou uma tensão elétrica no castelo de popa e em todo o castelo, onde se reuniram os marinheiros que intuíam o que ia a suceder ou o conheciam o suficiente como para fazê-lo; depois, produziu-se o primeiro de uma série de intensos aguaceiros mistura de chuva, neve e granizo, e quando havia passado, Callow disse depois de titubear:
- Senhor, acho que vi ao Monmouth repetir o sinal "Mudar de bordo por avante a um tempo", justo antes de desaparecer de vista.
Jack e seus oficiais se voltaram brevemente para o leste.
- Não vejo nada - disse. - Distinguiu o senhor algum sinal, senhor Harding?
- Nenhum, senhor.
- Senhor Callow, ice as bandeiras correspondentes a "Barco inimigo à vista, duas léguas ao su-sudoeste, rumo noroeste". Senhor Miller, desarrize o velacho e arrize a vela de estai de velacho. - Dirigiu-se para a roda e sem tirar o olho dos distantes lampejos que destacavam entre tons cinzas e brancos, que trocavam todos eles de forma incessante, ordenou pôr rumo para interceptar à embarcação, ao inimigo, à embarcação que muito provavelmente era inimiga.
A dotação do barco, incluídos os que haviam abandonado a enfermaria com os assistentes, alinharam-se ao longo do costado. Se algum deles desconfiava da declaração implícita do capitão, não mencionou em voz alta. Desde a época em que se converteu em um desses afortunados capitães de fragata que, ao voltar ao porto, levavam a popa uma réstia de embarcações aprisionadas e uma fortuna em dinheiro do butim, Jack adquirira os louros de um ser mítico, ou de algo muito parecido, um ser cujo julgamento nestes assuntos não podia ser errôneo. A menor mostra de ceticismo teria sido objeto de duríssimas réplicas.
O que sucedeu veio a confirmar a quem acreditava em seu credo. Depois de meia hora de caça, no alto de uma onda enorme se avistou uma fragata com bandeira francesa que perseguia por sua vez a um barco mercante. Contudo, não era um barco da Armada, senão um daqueles potentes corsários, rápidos e muito marinheiros, de Vannes ou Lorient, que eram mais letais na hora de combater o comércio que os navios de guerra, e que nesse momento faziam o possível para aproveitar os últimos suspiros da guerra, correndo amiúde incríveis riscos ao operar muito perto da frota que defendia o canal.
Era a Deux Frères, e perseguia com tal ódio a sua presa (esta já se encontrava à distância de um tiro de canhão, mas o corsário não abrira fogo, pois preferia tomá-la pela abordagem para o caso de uma bala fortuita penetrar o casco e causar uma via de água que pudesse arruinar o carregamento) que nem sequer notara a presença do Bellona, oculto durante alguns minutos pelos aguaceiros. Porém, ao avistar ao navio de linha, mudou de rumo, ainda que não o fez até que o vento acariciou a popa ou a alheta, de modo que pudesse aproveitar ao máximo a disposição do aparelho. Ao mesmo tempo, e por puro rancor, disparou ao mercante e quase de imediato marejou a velade estai. De pouco serviram ambas ações: errou o disparo e a vela saltou de sua própia relinga.
Contudo, avançou enquanto a proa rompia as ondas. A dotação atendeu a vela com os cinco sentidos, e também se arriscou a disparar alguns canhonaços no setenta e quatro, com a esperança de malferir ao velame e prejudicar a exárcia, derrubar uma verga ou uma gávea: afinal de contas, a Deux Frères não possuía um armamento desprezível, pois além de canhões longos contava com caronadas. Contudo, tinha mais peso o fato de que todos a bordo, até o último homem e garoto, sabiam perfeitamente que suas últimas três capturas no canal lhes haviam convertido em corsários ricos.
Empreendeu portanto a fuga com todo o zelo possível, quase tão rápida como a Ringle, que se situara pela amura de estibordo, fora do alcance de seus canhões. Fugiu com o ardente desejo de conservar a riqueza e a liberdade, e o fez com uma habilidade sobre-humana; mas a menos que o Bellona fosse partido por um raio (um dos que relampejavam nas alturas, sobre as nuvens baixas daquele céu), não tinha nem a menor oportunidade de consegui-lo. O mar se obstinava: minuto a minuto as cristas eram mais altas e cuspiam a espuma no alto, e os seios que formavam eram mais profundos e amplos; e em mares desta magnitude não havia fragata capaz de barlaventear a um navio de linha bem governado, pois nestes vales profundos a fragata perdia avanço, ao contrário que do setenta e quatro (que em qualquer caso podia largar mais trapo), de modo que este mantinha parte da velocidade graças à inércia proporcionada por suas mil e seiscentas toneladas.
- Será uma noite muito longa - disse Jack ao oficial de guarda. - Peço que avise ao condestável. Condestável - continuou quando este compareceu ao castelo de popa, - não tocaremos as portalós da bateria da coberta inferior, mas seria conveniente preparar os canhões de dezoito libras que armamos a proa do costado de bombordo. O senhor os sacou ontem, conforme tenho entendido.
- Sim, senhor.
- E está satisfeito com as mechas, com toda esta umidade?
- Se um só de meus canhões não disparar, senhor - disse o condestável, em cujo rosto, mucho e empapado pela chuva, desenhou-se um sorriso torcido só de pensar na perspectiva de abrir fogo, - chame-me de recruta. - Então empalideceu ao compreender o horror do que acabava de dizer, e seus lábios se abriram e fecharam em um balbuceio mudo. Toda a conversa, qualquer possível explicação, viram-se interrompidas pelo estranho mar que tingiu de verde o corrimão do castelo de popa, antes de estender-se por todo o convés; e antes de que tivesse limpado, uma bala de caronada, ainda mais estranha, procedente da Deux Frères, alcançou a roda do Bellona, e jogou intactos aos timoneiros a esquerda e a direita. O navio se pôs a fil de roda e parecia ter intenção de mudar de bordo por si só, com o velame em pairo, mas contava a bordo com sólidos marinheiros. Carregaram a gávea de mezena e puxaram da escota do maior de tal maneira que recuperaram o controle da embarcação, pelo menos até que pôde recorrer-se à vara, o que permitiu recuperar o governo do barco quando se gritaram as ordens aos marinheiros que atendiam diretamente a cana.
A Deux Frères aproveitou os escassos minutos que tardaram em arrumar-se a bordo do Bellona para avançar; contudo, quando viram que o setenta e quatro recuperava o governo, abria as portalós da coberta superior e assomava as bocas dos canhões, perderam o ânimo. Abandonaram a intenção de cruzar a proa do Bellona e varrer seu convés com tudo o que pudessem disparar, abandonaram-na por completo, aproaram ao vento, arriaram a bandeira e se puseram em pairo.
Jack ordenou situar o Bellona a sotavento da presa, e despachou a Ringle e o cúter azul, com uma dotação de presa bem armada sob as ordens de Miller, depois de ordenar-lhe que levasse o corsário a Falmouth e lhe enviasse o piloto da fragata junto com o restante dos oficiais com a documentação pertinente.
- E dê-se muito garbo, senhor Miller. Nós os veremos e desejaremos subir a bordo o bote.
E o viram e desejaram, pois o vento esfriou até tal ponto que tardaram o resto da tarde para içá-lo de novo. Mas ao final conseguiram e os estivaram com o triplo de cabos. E muito antes de terminar as trabalhos de estiva, conduziu-se abaixo aos desconsolados franceses (Harding demonstrou uma tolerável fluidez na hora de falar sua língua) e Jack, que seguiu no convés, disse ao piloto de derrota:
- Senhor Woodbine, chegou o momento rumar para a ilha Keller.
- Sim, senhor.
- Não o vejo muito feliz, senhor Woodbine.
- Alegro-me pela presa, e lhe felicito de todo coração, senhor, mas se eu tivesse o comando seguiria para Falmouth. O contramestre não tardará em informar-lhe de que provavelmente a verga de maior saltou da cruz; a mezena pende das arreatas; o frontão de proa está quebrado. Não fizemos uma só medição durante as últimas três guardas, e não acredito que a tormenta tenha alcançado seu ponto culminante, não senhor, muito pelo contrário. Lascas e sua gente tardarão um tempo em proporcionar-nos uma roda como Deus manda, e ainda que governar a embarcação mediante escotas e vara seja possível em uma tranqüila tarde de sábado, resulta fodidamente incômodo, e perdoe a expressão, fazê-lo durante toda a noite quando sopra uma tempestade, ainda mais se o que pretende é pôr rumo a Ouessant e a seus mortíferos arrecifes. Imagine-se o senhor tentando evitar topar com eles com semelhante vento e com este leme! Eu lhe asseguro que mais de um terá encalhado antes de que saia o sol.
A julgar por sua maneira de falar, Woodbine estivera bebendo.
- Teremos que fazer o que possamos - disse Jack, não sem certa amabilidade.
E fizeram o que puderam, ainda que não foi suficiente. Bem entrada a noite, a ventania se converteu em um desses notórios ventos que rolam caprichosamente. Soprou pela proa quando não distavam muito de Ouessant, e não teria havido forma de vencê-lo por mais que o Bellona tivesse disposto de todo um aparelho de tormenta, paus intactos, exárcia, vergas e uma dotação recém alimentada e acordada. E não tinha nada disso. Os fogões haviam se inundado durante a segunda guarda. Todos os homens tinham estado trabalhando duro já fazia horas e ninguém comera nada desde o almoço do dia anterior, com excessão da molhada bolacha de barco. Os homens estavam exaustos e o barco fazia mais água do que as bombas podiam tirar.
Clareou ao leste e finalmente se fez de dia. Um pouco antes, Vega lhes proporcionou um ponto de referência ao assomar por entre as nuvens, e depois o fez o velho planeta Saturno.
O mar, contudo, não se acalmou e o vento menos ainda. Jack ordenou mudar de bordo por davante e navegar de bolina rumo à baía Cawsand.
Tal como havia esperado encontrou fundeados outros dois barcos pertencentes à esquadra de mar adentro, e um terceiro, com somente um mastro macho em pé, pertencente à que patrulhava a costa. Estes barcos tinham ocupado todo o espaço disponível.
- Sinto muito, Aubrey - disse o comissionado, um velho amigo, - mas assim estão as coisas. Contudo, o Alexandria não tardará muito, só perdeu algumas costelas e tem um feio buraco tampado por uma enorme rocha; que curioso que suceda tão amiúde, não lhe parece? Faz que se acredite nos anjos da guarda, ah, ah, ah! Assim que esteja pronta o senhor ocupará seu lugar. Meu Deus, acho que o Bellona necessitará. E o senhor também, Aubrey. Parece um cadáver. Creia-me se lhe digo que o que o senhor necessita é um bom banho quente. Todo o corpo submergido em água quente, muito quente, durante cinco ou, mesmo, dez minutos. Abre os poros de uma forma incrível. Têm um em George, e não param de levar baldes de água fervendo. Depois disso, um esplêndido almoço e dormir durante doze horas.
- Certamente, senhor - disse Jack. - Assim que tenha terminado de escrever a carta para o almirante. Por sorte disponho de meu barco de apetrechos para levá-la a Ouessant.
- Refere-se a essa preciosa escuna de Chesapeake? Eu a estava admirando; não tem uma só baliza fora de lugar. Porém, certamente, a carta ao almirante é o primeiro, como o senhor diz. E me atreveria a dizer que não se esquecerá o senhor de escrever uma notinha para a senhora Aubrey. Peço que lhe dê lembranças de minha parte. - O comissionado se despediu dele e se afastou, rindo entre os dentes.
Jack sentou-se diante da escrivaninha.
Bellona
Baía Cawsand, 17 de novembro
Milorde,
Aproveito a presente para informar que o Bellona, navio de linha de seu majestade, sofreu um duro castigo devido à tormenta da noite passada e desta manhã. O mastro de mezena recebeu um violento puxão, e se partiu na enora e lascado por toda parte; a verga do maior também se partiu. As velas maior, gávea, mezena e a polaca de capa foram feitas em farrapos; perdemos uma das amarras das vigotas do costado de estibordo, e o barco labutou de forma tão irritante nos seios das ondas e embarcou tal quantidade de água que as bombas não podiam com ela, e se fez absolutamente necessário para salvaguardar sua segurança rumar para este porto, aonde cheguei ao meio-dia.
Adjunto os danos sofridos pelo barco, assim como uma cópia do caderno de bitácula desde o momento em que recebi o última sinal do senhor.
Tenho a honra de ser... etcétera.
Caderno de bitácula do capitão do Bellona:
Dia 16, depois do meio-dia. Forte vento com marejada. Ordeno mudar de bordo por davante em cumprimento do sinal. Perco de vista à esquadra, devido a fortes e quase contínuos aguaceiros. Vista de vela estranha em perseguição de bergantim inglês ao su-sudoeste, a duas léguas: empreendo caça com mesmo rumo, e descubro que resulta ser a Deux Frères, de Lorient, fragata armada ao corso, armada com 28 canhões de doze libras e duas caronadas de trinta e nove libras, com uma dotação de 174 homens; patrão: Dumanoir. Enviei-a a Falmouth (valiosa presa, pois havia apresado dois barcos da rota de Guinéu carregados com ouro e marfim, além de um barco que transportava apetrechos para Lisboa). Às dez e meia, temporal com fortes aguaceiros: perco as amarras das vigotas do costado de estibordo e a escota da gávea maior; a vela feita farrapos; ordeno marear a maior de capa e a polaca.
Dia 17, antes do meio-dia. Às seis e meia as vergas perdem a mezena de capa e a polaca de capa. Fortes ventos que rolam continuamente. Às oito me vejo na obrigação de abrir os escotilhões do fundo da coberta inferior; o barco trabalha muito, as bombas têm seis polegadas de água mais para expulsar. Às oito e quinze, o carpinteiro informa de que o pau de mezena se partiu na enora e, em consequência, cederam também os cabos da carangueja. Às oito e meia sofremos um golpe do mar pela alheta de bombordo que se abriu passagem através de onze das portalós da coberta principal, e meio inundou a dita coberta, levando pela frente os anteparos da câmara dos oficiais.
Às nove, tempestade com violentos aguaceiros. Perco as amarras das vigotas do conjunto de amantilhos de maior. Viro com a traquete rizada. Avisto um navio de linha em pairo, proa ao sul, com as velas feitas farrapos, ondeando das vergas.
AUBREY
Jack releu a carta, consciente de que ambas partes não coincidiam em tudo; mas estava muito cansado como para resolvê-lo, de modo que secou a tinta, dobrou o papel, escreveu o destinatário no dorso e a selou. Harding e ele já haviam se encarregado de supervisionar o traslado dos homens do Bellona para os barcos da Armada onde residiriam temporariamente; os escassos oficiais e guardas-marinhas que permaneceriam a bordo por não ter encontrado alojamento, aproveitariam o restante de suas cabines e alojamentos, onde pelo menos poderiam dormir um pouco. Agora, o único que tinha que fazer era levar a carta para Reade ou para Callow (ambos se revezavam no comando da Ringle) e pedir-lhes que a levassem a Ouessant. Contudo, quando o lacre havia secado, deu uma palmada em sua testa e abriu de novo a carta para acrescentar:
Milorde,
Eu lhe envio a presente carta por mediação de meu navio de apetrechos; não obstante, agora mesmo estou tão embotado depois da tormenta de ontem à noite que esqueci de rogar-lhe que seja tão amável de enviar-me o barco de volta assim que o senhor considere conveniente. Tenho, como saberá sua senhoria, um encontro com a lua nova. Se as reparações do Bellona não tiverem completado por então, desejaria dispor da Ringle para não faltar ao encontro, pois nenhuma outra embarcação serviria melhor a este propósito.
Lacrou de novo a carta, queimou seus dedos com o lacre e, não podendo agüentar mais o mau humor, gritou:
- Raios, trovões e centelhas!
- É o senhor, senhor? - perguntou Harding, que assomou pela porta. - A estas horas pensei que teria desembarcado faz tempo; e que estava dormindo no George.
- Não. Antes de desembarcar tinha que escrever a carta para o almirante, e agora devo levá-la à Ringle, para assegurar-me de que a entregue. Depois dormirei, por Deus: dormirei como um monte de eriços jovens em uma mata de hera. Pela tarde irei passar alguns dias em Woolcombe, onde devo atender assuntos familiares urgentes. O estaleiro não empreenderá as reparações mais importantes até a segunda-feira, e mesmo que o façam o senhor conhece tão bem como eu as necessidades do barco.
- Dê-me a carta, senhor. Eu me encarregarei dela. Se tem que partir de viagem, quanto antes se meta na cama, melhor. O sono, que Deus nos ajude, não há nada como um sono reparador. Eu a entregarei pessoalmente dentro de vinte minutos. Adeus, senhor; se dormir de um puxão se levantará como se fosse um homem novo.
Jack ficou adormecido no banho, dormiu depois na cama, no George, até o meio-dia, dormiu no carro postal que o levou a tão bom passo a Woolcombe que aquela se converteria na viagem mais rápida de Plymouth se não fosse porque um dos eixos se empenhou em abandonar seu lugar até que se soltou a correspondente roda, a qual se afastou rápida como o raio estrada abaixo, enquanto a carruagem acabava na valeta sem governo, em uma valeta inundada. Sucedeu justo nos arredores de Alton, povoação que não distava nem cinco milhas de sua casa. Era de noite quando se recompôs a roda, o cavalo, a bagagem e o postilhão, e, para quando o carro postal esteve em posição vertical, Jack decidiu passar a noite no Cross Keys, uma pensão dirigida por um homem que havia servido como contramestre na Armada. Ali jantou como um rei e de novo desfrutou de um sono profundo, muito profundo, relaxado até que as primeiras luzes da alvorada o despertaram. Levantou-se sentindo-se um homem novo, não precisamente alegre, mas curiosamente otimista. O carro postal não estava preparado, a roda necessitava de umas poucas horas mais, mas havia um bom cavalo, e depois de desfrutar de um temporão desjejum montou no cavalo e partiu quando o sol assomava sobre a colina de Alton.
Depois, quase não pôde recordar o que tinha na cabeça quando entrou no pátio do estábulo de Woolcombe, mas levou uma boa surpresa quando viu a sua filha Charlotte mais desengonçada do que recordava da última vez que a viu. Estava na entrada da cozinha, observando-lhe fixamente. Não pareceu ver o menor indício de alegria na expressão de seu rosto. Então, lançou um grito para o interior da casa, supostamente dirigido a sua irmã:
- É papai! - E desapareceu.
Contudo, George saiu correndo quando Jack já deixava o cavalo aos cuidados de Harding, e lhe ofereceu uma saldação amistosa e carente de afetação:
- Bom dia, senhor, como está o senhor?
- Muito bom dia, George, querido. Onde está sua mãe?
- Não desceram ainda, senhor. Acho que estão tomando o chá acima. Porém, senhor, se tivesse chegado cinco minutos antes, teria visto a nova carruagem da prima Diana. Oh, que beleza! Foi a Lyme com a senhora Oakes e Brigid. Gosto muito delas.
Ao subir pelas escadas, estas rangeram devido ao peso e à pressa. O quarto dava para o leste, e a fria luz da manhã caía sobre Sophie e sua mãe, sentadas uma junto da outra enquanto copiavam a correspondência. Nenhuma delas se vestira e Sophie não tinha se penteado. Usava um desses vestidos que as mulheres aferram à altura da garganta. Não tinha muito bom aspecto; mas não foi nem a ausência de beleza nem o colorido o que lhe surpreenderam, senão um algo indefinido no qual não reparara até então. Ambas deram um respingo ao vê-lo entrar, empertigadas como estavam ante a correspondência. A senhora Williams não pôde conter-se e levou a mão à cabeça, antes de levantar-se e sair correndo do aposento: não podia permitir que a vissem sem o casquete, e sem estar apropiadamente vestida da cintura para cima.
- O que está fazendo aqui? - perguntou Sophie, e tanto sua voz como a expressão de seu rosto poderiam ter pertencido perfeitamente a sua mãe.
- Estão reparando o Bellona no estaleiro - respondeu Jack, - e vim passar alguns dias em casa.
- Não com meu consentimento - replicou ela.
- Mas sobretudo vim para lhe pedir perdão, para dizer o quanto realmente sinto e para rogar que me perdoe.
Abriu-se levemente a porta situada às costas de Sophie.
- Não com meu consentimento - repetiu como uma autômata. - Não teria que estar aqui, mas o almirante não abandonará a casa até que expire seu contrato. - Afastou uma mecha rebelde de seu cabelo e acrescentou apressadamente: - Olhe... olhe isto. Aqui tem todas suas cartas, as cartas de sua amante, e este é o anel que me pôs ante o altar do Senhor, em presença de Deus. E agora vem a esta casa...
- Oh, Sophie, querida - disse ele suavemente, enquanto se aproximava para poder olhá-la nos olhos.
A senhora Williams quis abrir a porta, mas Jack a empurrou e correu o ferrolho. Puderam ouvi-la do outro lado, puxando com força a maçaneta.
- Oh, vamos, Sophie - disse de novo. Mas ela exclamou que não deveria ter ido para casa, que era impróprio, muito pouco delicado, e que devia partir imediatamente. Apesar de não ter sido um discurso muito coerente, a veemência de seu ressentimento ficava fora de toda dúvida.
Ele retrocedeu um passo.
- Isso é tudo o que tem a me dizer, Sophie? - perguntou.
- Sim, isso mesmo - exclamou ela, - e não quero voltar a vê-lo.
- Neste caso, maldita seja por ser uma megera tão maliciosa, rancorosa e impiedosa - disse ele quando não pôde mais conter a raiva que o devorava. Depois saiu do quarto enquanto ela inclinava a cabeça sobre aquelas miseráveis cartas, horrorizada tanto pelas palavras que ouvira dos lábios de Jack, como pelas que ela mesma havia pronunciado.
CAPÍTULO 7
Dois dias depois da lua nova, Jack Aubrey, fisicamente esgotado depois de seus incessantes esforços para conseguir que o estaleiro trabalhasse dia e noite, aproximou o barco da esquadra que patrulhava mar adentro, e o fez com uma dotação composta por homens taciturnos, lerdos e dissolutos, remelentos e com o rosto avermelhado depois de ter passado tanto tempo no porto.
Sinalizou seu número de identificação e, de imediato, o navio insígnia solicitou sua presença mediante as correspondentes bandeiras. O capitão da frota o recebeu com as seguintes palavras:
- Passou uma boa temporada em terra, Aubrey, creio que sim. E vejo que o estaleiro repôs todas as vergas. Contudo, lamento dizer-lhe que o almirante não se encontra nada bem, nada nada bem. Conforme tenho entendido, o senhor se reunirá com seu secretário.
O senhor Craddock, assim como muitos outros secretários que serviam sob as ordens de um almirante que ostentava um comando importante, era um homem discreto, capacitado e de meia idade, muito acostumado a tudo o relativo à correspondência oficial e diplomática, assim como a assuntos relacionados com a espionagem. Disse que, se bem lorde Stranraer havia recebido a carta do capitão Aubrey e o informe enviado a bordo da Ringle, julgara oportuno, dada a informação confidencial recebida, reter o navio de apetrechos alguns dias e despachá-lo com o tempo suficiente para que chegasse ao lugar da apanha um pouco antes da data destacada. A Ringle ainda não se reunira com a esquadra, e não era impossível que o doutor Maturin, que talvez levasse consigo importantes despachos ou informação, pudesse ter ordenado ao senhor Reade sacar proveito de tão favoráveis ventos para que o levasse diretamente aos Downs.
O capitão Aubrey se inclinou, desejou que o almirante desfrutasse pelo menos de todas as comodidades possíveis, e perguntou se havia feito algum comentário relativo ao fato do Bellona ter se separado da esquadra ou de que tivesse apresado a fragata francesa.
- Esse assunto não se refire a minhas responsabilidades - respondeu o secretário em um tom impessoal. - Mas estou seguro de que o capitão Calvert disporá de instruções referentes ao senhor.
E assim era, certamente, e, ainda que ele também declinou pronunciar-se sobre a incapacidade do Bellona para distinguir o sinal de mudar de bordo, disse:
- No que se refere à presa, e lhe felicito de todo coração por ela porque estou seguro de que é presa de lei, saiba que talvez o almirante seja o único oficial de bandeira que não arquearia uma sobrancelha por algo assim. Não lhe interessa o dinheiro.
Jack já o sabia bem, porque esse aspecto formava parte da reputação do almirante. O certo é que desfrutava de uma ampla fortuna, e no mar vivia modestamente, pois se limitava aos atos sociais estritamente necessários. Contudo, aquilo não encaixava com sua paixão pelo cercamento de acres e acres de exidos, pântanos e pastos.
Atrás da recuperação de lorde Stranraer (tal como disse o própio Craddock, esperavam ao doutor Maturin, em quem o almirante havia depositado toda sua confiança em questões de saúde), Jack foi designado de novo à esquadra que patrulhava a costa. Mesmo estando tão avançada a guerra - pois Wellington se achava muito ao norte dos Pirineus, acampado no Garonne e disposto a seguir avançando para o norte, - sempre cabia a possibilidade de que a frota francesa aproveitasse a ocasião que lhe oferecia o vento do nordeste para sair de Brest e possivelmente derrotar às divididas forças de Stranraer em duas batalhas separadas. Se isto coincidisse com uma das assombrosas recuperações em terra de Bonaparte, adeus a suas esperanças de pôr um ponto final no conflito por si sozinhos, com toda a glória que traria consigo fazê-lo, já que o francês podia dar uma volta no curso da contenda.
Entretanto, o capitão Aubrey tinha que voltar a patrulhar sob as ordens do capitão Fanshawe, mas ao mesmo tempo tinha que prestar particular atenção a sondar determinadas partes da costa e, sobretudo, a assinalar a localização e profundidade de certo número de rochas submersas, semelhantes à que foi responsável pela perda do Magnificient, de sua perda total, no ano 1804.
Ninguém poderia estar com o ânimo tão baixo como Jack Aubrey; mesmo assim, era surpreendente ver como se entregava de novo à vida no mar, uma vida dura sobretudo nessa estação do ano e em plena baía de Brest, ainda que tivesse também suas vantagens: por exemplo, a rotina que conhecia desde que era menino, uma rotina na qual desempenhava um papel que lhe proporcionava uma profunda satisfação. Sempre lhe agradara sondar, de modo que se entregou a suas rochas submarinas com tal empenho que localizar e sinalizar sua localização lhe causava um grande prazer.
"Talvez Stranraer sinta o mesmo pelos cercados", refletiu ao inclinar-se no bote. Então, deu uma espiada nas bóias que se alçavam a cinco braças acima da temível rocha de Buffalo, através das alças embaçadas pela chuva da bússula azimutal.
- Senhor Mannering, anote: cento e trinta e sete graus este.
Na maioria dos barcos, o camarote dos guardas-marinhas contava com a presença de um ou dois garotos aos quais realmente lhes interessavam a navegação e as matemáticas relacionadas com o mar, e que começavam com sincero interesse a compreender os princípios fundamentais de ambas matérias. Mannering constituia o exemplo mais recente, e tinha esse zelo, a boa disposição e um entusiasmo crescentes.
Era um consolo para Jack, como também o era, em outro plano, o aspecto da Ringle, que orçava submetida ao já habitual vento do sudoeste. Graças à luneta não tardou em certificar-se de que Stephen não se encontrava a bordo (coisa que Jack não esperava), mas depois teve ocasião de regozijar-se nas descrições que fez Reade da esplêndida travessia que fizeram até chegar aos Downs: oito ou nove nós a maior parte do tempo, e algo mais de catorze quando o mar esteve com eles; não tiveram nem um minuto de descanso, e o doutor estava em plena forma.
Aquela esplêndida travessia levara a Stephen tão cedo à costa, e o carro correio o aproximara com tal celeridade de Londres, que teve tempo de dirigir uma nota para sir Joseph no Almirantado, para perguntar-lhe se poderiam jantar juntos aquela noite no clube: dois dias e meio antes da data que prevista.
Pegou um quarto no clube, o único disponível, com forma de queijo e do qual, se um se punha muito reto e se assomava pelo parapeito, podia ver ao popular prostíbulo da senhora Abbott. Contudo, Stephen se preocupava mais em arrumar o lamentável aspecto de sua roupa tão bem como fosse possível com uma escova de unhas, enquanto ocultava a camisa suja baixo de um lenço negro cuidadosamente estendido. Um par de alfinetadas realizadas com precisão cirúrgica o colocaram em seu lugar, e depois se dirigiu ao saguão, onde ardia o confortável fogo de costume.
Sir Joseph quase não lhe fez esperar.
- Quanto me alegra ver-lhe, Stephen - exclamou. - Conforme os cálculos de Warren, você se encontrava a mil milhas daqui, e a distância aumentava diariamente.
- E assim teria que ter sido, conforme nossos planos. Contudo, descobri algo de muita importância e, como não tinha nenhuma pomba mensageira a mão, achei que devia comunicar-lhe as notícias pessoalmente. Que odor mais divino!
- Cebolas fritas. Verá, estão reparando a porta da cozinha.
- Cebolas fritas, bacon frito, sardinhas assadas sobre talos de parreira, o aroma do café... Que manjares, oh, como agitam meus desejos mais primitivos! Não jantei ainda.
- Em tal caso, jantemos de imediato. Querido Golding, como está o senhor? - perguntou a um membro do clube que passou por seu lado, enfeitado com uma toga. - O que lhe agardaria jantar?
- Sem sombra de dúvidas, bife e pudim de rins. Fico com água na boca só de pensar. E o senhor?
- O habitual frango fervido com molho de ostras, acompanhado por uma pinta de clarete, e de sério lhe digo que não me importaria nada que já me o tivessem servido. Eu me impaciento só de ver a sua fome.
Dirigiram-se ao concorrido refeitório, onde desfrutaram do ágape com um silêncio apenas quebrado por algumas perguntas.
- Está a seu gosto, o frango?
- Delicioso, obrigado. E o pudim?
- Um prato excelente - respondeu Stephen, que tirou uma diminuta fúrcula da boca. No Blacks, a receita de bife e pudim de rins tinha por protagonista a calhandra. - Aqui tem, por exemplo, um genuíno osso de calhandra: Alauda arvensis, e não como aquelas paupérrimas pombas que servem em certos locais.
Quando ambos satisfizeram o apetite inicial, conversaram a respeito de suas mais recentes capturas: traças, mariposas, escaravelhos... Depois serviram o pudim, na autêntica acepção da palavra: torta de maçã para Stephen, e um doce frio de nata com vinho e suco de limão para sir Joseph.
- Desfrutei de uma viagem muito gratificante - disse Stephen enquanto se deleitava com o creme. - Apesar do fato de que uma embarcação que salta, que salta literalmente sobre o oceano, cheia de alegria para todos os que navegam a bordo, lamentava todas e cada uma das horas que me separavam de Londres. Há coisas que devo contar-lhe, coisas com as quais espero deixá-lo arrepiado.
- São tão importantes? - perguntou Blaine, observando-o com um olhar inquisitivo. - Em tal caso, talvez seja melhor tomarmos o café em minha casa.
Passearam pela brumosa Saint James Street, e depois por Shepherd Market até chegar ao aposento coberto de estantes com livros, longe do ruído do tráfego.
- Você conheceu em alguma ocasião um agente de inteligência amador? - perguntou Stephen quando ambos haviam se sentado e servido o café, que acompanharam com alguns doces.
- Não se referirá a Diego Díaz?
- Claro que sim - respondeu Stephen um pouco surpreso.
- Oh, deixa se ver em todas as partes: Almacks, Whites, as jantas importantes. Está em muito bons termos com as mulheres que atuam como anfitrionas aqui em Londres, e conhece muita gente. Contudo, os da embaixada procuram evitá-lo, apesar dos contatos que tem.
- Sim, certamente, não é muito discreto. Nós nos ocuparemos dele mais tarde, se lhe parece bem. Permita-me falar de alguns dos chilenos com os quais me reuni na França?
- Por favor.
- Deveria ter dito "com os quais me reuni de novo", pois os conheci no Peru. Contam com o respaldo de O'Higgins, Mendoza e Guzmán. Assim como seus amigos, têm interesse de renovar nossa aliança, reforçar nossa mútua compreensão com relação aos peruanos, mas nesta ocasião se trata de uma aliança que tem por objetivo a independência do Chile. Fiz um relato de nossas conversações, de suas necessidades e objetivos, de seus recursos e de seus compromissos no referente à escravidão. Posto que, ao contrário da tentativa peruana, a sua depende até certo ponto de uma presença naval ou quase naval, acho adequado entregar-lhe em primeiro lugar tal documento, ao qual adjuntarei suas credenciais e correspondência das amizades que temos nessa parte do mundo, com a esperança de que você considere e exponha o assunto.
- Eu o farei, farei sem dúvida - disse Blaine ao aceitar o pacote com a documentação; então, olhou nos olhos de Stephen e acrescentou: - Quão dispostos, quão profundamente acredita que estariam dispostos a agir, em comparação com os peruanos?
- A julgar por meus contatos com eles na América, assim como pelas longas entrevistas que mantivemos durante a semana passada, diria que nossas perspectivas de êxito são maiores em, talvez, um terço. E tal como descobrirá quando tenha ocasião de ler minhas palavras, confiam muito mais no ataque e defesa pelo mar, dada a mobilidade que confere inclusive o mais díscolo dos oceanos, comparada com as possibilidades das montanhas e insuportáveis desertos que abundam ao sudoeste da América do Sul.
- Não vejo a hora de ler seu relato. Muitos dos cavalheiros que apoiaram nossa empresa anterior ficarão encantados.
- Querido Joseph, que amável de sua parte dizer tal coisa. Você o transcreverá com as devidas adaptações à prosa de Whitehall, né? Escabrosa, desajeitada, com abuso da voz passiva... Acredito ter agitado em você algo parecido ao entusiasmo.
Sir Joseph serviu duas taças de um excelente conhaque envelhecido e marrom escuro, e quando ambos tinham consumido a metade da taça, disse:
- Só há duas coisas que possa argüir em contra suas, por um lado divinas, folhas de coca: reduzem o paladar e impedem conciliar o sono. Por sorte, hoje não tomei nenhuma, ainda que terei que fazê-lo esta noite para poder ler sua documentação... Compreenda que fiz um mero parêntese, permita-me continuar. Mas possuem tantas vantagens: a vivida intensidade de reflexão, a também vivida percepção da vida em sim, a redução de seu justo lugar das preocupações mundanas, dos problemas e mesmo das tristezas. Descobri recentemente que aumentam a apreciação da música, sobretudo da música difícil, em grau máximo.
Conversaram durante um tempo à respeito de suas respectivas fontes de suprimento, da diferença entre as folhas de distintas regiões, possivelmente subespécies de uma mesma origem, até mostrar-se mutuamente o conteúdo de suas respectivas bolsinhas.
- Você me permite falar de meu bom amigo Jack Aubrey? - perguntou depois Stephen.
- Adiante, por favor - respondeu sir Joseph.
- Assim como muitos outros oficiais de sua classe e antiguidade, está preocupado, como não poderia ser de outra maneira, com a possibilidade de que o promovam a almirante amarelo em uma futura promoção do Estado Maior. Poderia me dizer algo concreto relativo a suas perspectivas?
Blaine serviu mais conhaque e disse:
- Sim, posso. Desejaria poder dizer que são mais encantadoras do que realmente são; e não estou em absoluto seguro de que não seja melhor aconselhá-lo a se retirar com o cargo de capitão de navio, do que se arriscar a sofrer a humilhação de ser relegado por outros. Falamos certamente de um brilhante marinheiro, coisa que poucos se atreveriam a negar. Mas de certa forma ele mesmo é seu mais ativo e eficaz inimigo, tal como já lhe disse em mais de uma ocasião, Stephen, pois recordo ter lhe pedido que o mantivesse no mar ou em províncias. Amiúde interveio no Parlamento, e o fez com a autoridade que lhe confere o fato de ser um afortunado oficial da marinha; contudo, raras vezes se posicionou a favor do Ministério. E seu voto não pode ser considerado um fator seguro. Entre nós, também lhe direi que, em referência a suas dificuldades atuais com os tribunais de justiça, os advogados do Almirantado poderiam adotar a decisão de defendê-lo se pudessem confiar mais nele: se fosse um persistente e inflamado partidário do Governo.
- Não posso senão admitir que perde as estribeiras quando se fala da corrupção que infesta os estaleiros, e do material impróprio que se emprega nos barcos de guerra.
- Que capacidade de compreensão que você tem, Stephen. Ademais, fez inimigos poderosos fora da Câmara dos Comuns. Os recentes despachos de lorde Stranraer prejudicaram muito a seu amigo (que também é meu, se me permite dizer). Faltar ao dever, abandonar umas manobras para perseguir ao inimigo... Uma presa que provavelmente lhe custará muito caro, por mais esplêndida que esta seja, tal como pude averiguar, pois tinha as bodegas cheias de sacos de couro com pepitas de ouro.
- Sabe de onde procede esta animosidade?
- Sei que o almirante, defensor até a morte do cercamento das terras, aconselhou seu herdeiro e sobrinho, o capitão Griffiths, cercar um exido que separava suas propriedades das de Aubrey, e que, no último momento, Aubrey se opôs à petição ante o Comitê, que a rechaçou. Também se diz que há pôs os habitantes da região contra Griffiths, cujos palheiros amiúde têm sido queimados, seus cervos e peças de caça massacrados, e que, em mais de uma ocasião, tanto ele como seus serventes foram humilhados no povoado, até tal ponto que sua vida ali já não tem sentido. Stranraer contempla esta insubordinação contranatural por parte dos habitantes do povoado sob a mesma luz que um motim naval, e certamente a detesta. A opinião de Stranraer tem um peso específico no que se refere ao Governo.
- Conheço muito pouco a esse cavalheiro.
- É um homem muito capaz, disso não resta a menor dúvida, e um grande economista político. Claro que não fez um nome na Armada, o que poderia dever-se, como em tantos outros casos, à falta de oportunidades. Em sua juventude era atraente e fez um excelente matrimônio: uma dama viúva que possuía muitas terras, uma mulher que o superava muito em posição. É verdade que um filho que ela teve em seu primeiro matrimônio heredará tudo, ou, melhor, seu tutor, pois o jovem é meio idiota, mas enquanto viva ejercerá o controle de, pelo menos, nove cadeiras dos Comuns, além do considerável número que controla devido a sua influência. Pronuncia-se, e bem, em favor dos interesses dos fazendeiros, e o Ministério considera seu apoio muito valioso; e me refiro aos Comuns, porque na Câmara dos Lordes a maioria do governo é tão grande que seu voto quase não tem peso.
- Tem reputação de ser um homem honesto? De escrupuloso?
- É uma pessoa muito respeitada: não ouvi nada contrário a ele, mas não poria a mão no fogo por nenhum homem tão poderoso como ele foi durante tantos anos, tão preocupado com a política, tão fervoroso defensor da religião dos cercados, única salvação da pátria.
- Eu pergunto porque houve um mal-entendido com umas ordens procedentes da esquadra de Brest que, se as coisas tivessem saído como estavam planejadas, teriam impedido que Aubrey estivesse presente na reunião do Comitê.
Blaine levantou as mãos.
- Oh, com relação a isso, não posso dar-lhe minha opinião, certamente; mas acredito que qualquer político de verdade não consideraria essa treta como algo fora do normal. Mas escrupuloso ou não, o almirante Stranraer não gosta do capitão Jack, e sua palavra conta.
- Tampouco o capitão Griffiths, que vota conforme os ditames de seu tio, e que é seu heredeiro.
- Isso mesmo. Mas quando herde, o capitão Griffiths perderá todo seu valor parlamentário, de modo que não poderá prejudicar a ninguém. Seu voto na Câmara dos Lordes não está aqui nem ali, e não exerce influência sobre um só voto na câmara baixa. As terras de Stranraer não controlam nenhuma cadeira, nenhum município, e todo o patronal de lady Stranraer vai parar em outra parte. Griffiths se converterá em um zero a esquerda; inclusive tem mais possibilidades de terminar promovido a almirante amarelo do que o própio Aubrey.
- Odiaria que fizeram isso a Aubrey.
- Eu também. Gosto muito dele, como já sabe. Talvez não ocorra. - Sir Joseph caminhou de um lado para o outro pelo quarto. - Melville também sente fraqueza por ele. Assim como o se amigo, Clarence. Imagino que poderia arrumar um posto em terra: comissionado, por exemplo, inclusive algo de caráter civil, que possa afastá-lo por um tempo do Estado Maior, já que depois não teria como o Almirantado fazê-lo cair no esquecimento. Um cargo relacionado com a hidrografia, com a possibilidade de recuperar seu emprego... Tenho entendido que é um famoso topógrafo.
Blaine se sentou, e durante um bom momento contemplaram o fogo que ardia na chaminé como um par de gatos, sem dizer palavra, consentrados em suas própias reflexões. Finalmente, sir Joseph pegou o atiçador e partiu em dois com suavidade um pedaço de carvão. As metades se separaram e o fogo ardeu com mais intensidade. Ao recostar-se de novo contra o respaldo, disse:
- De modo que você tinha a intenção de deixar-me arrepiado, não é verdade?
- Isso mesmo. Mas você se encarregou de tirar minhas esperanças de consegui-lo, ao reconhecer o meu vilão de repente; e não creia que me daria a mesma satisfação vê-lo caído ao piso. Dom Diego não parece um vilão formidável, né?
- Não posso dizer que seja assim. Minha impressão é que se trata de um homem aberto, bom jovem, muito dado às elevadas, às apostas muito elevadas, em Crockfords e Brooks, ansioso para relacionar-se com políticos e para formular perguntas indiscretas que podem sugerir um profundo conhecimento da política ou que desfruta de fontes de informação particulares. É muito bem relacionado e, ainda que se poderia pensar que simplesmente faz ostentação quando nomeia meia dúzia de duques e ministros do gabinete, de fato estes nomes pertencem a pessoas muito reais. Talvez haja quem se compraza em proporcionar-lhe fragmentos de informação mais ou menos confidencial, que ele posteriormente repete dando-lhes de importante. Fazem-no porque tem muitos que o consideram encantador, ainda que um pouco idiota, e talvez porque seja muito bom anfitrião. É uma pessoa muito ocupada, mas antes pensava que não tinha nenhum peso exceto para as mulheres que possuem uma réstia de filhas casadeiras, apetite por títulos grandiloqüentes e uma grande fortuna. Estou equivocado? Peço que me conte tudo o que saiba a respeito do cavalheiro em questão.
- Apesar de que títulos, fortuna e, sem dúvida alguma, o seu caráter encantador serem tão autênticos como a importância das amizades que possue neste país, acredito que sua aparência de inofensiva estupidez é pura fachada. Talvez fosse real há alguns anos, digamos que antes de 1805. É o único filho vivo de um nobre, engendrado com grande dificuldade depois de intermináveis peregrinações e oferendas a inumeráveis altares. Seu pai é tão rico como somente pode sê-lo um grande da Espanha e antigo vice-rei, um homem que ama com devoção ao seu filho. Seu irmão mais velho morreu em Trafalgar: Diego se converteu em herdeiro e tenho entendido que amadureceu muitíssimo. Com relação a sua preferência na hora de desempenhar uma carreira, chegado o momento se decantou pelos assuntos exteriores, mas como não tolerava se submeter à autoridade de ninguém convenceu seu pai a financiar a criação de outra facção dentro da espionagem espanhola, com ele encabeçando. Preocupa-se sobretudo os aspectos navais, pois tradicionalmente sua família tem mais marinheiros que oficiais de infantaria ou cavalaria. Quase desde o início foi obcecado com o problema dos agentes duplos...
- E a quem isso não obceca? - perguntou Blaine, que até o momento tinha prestado a maior das atenções, sem se pronunciar.
- Sim, é o mesmo que penso. No início de sua carreira foi designado ao meu amigo Bernard como um de seus principais assistentes... - Sir Joseph assentiu com grande satisfação. - E entre ambos descobriram muita gente a soldo dos franceses, que por métodos tradicionais foram convencidos a que delatassem a outros, de modo que o capítulo francês foi praticamente erradicado. Dos nossos, Díaz somente surpreendeu a Waller provavelmente graças a uma grave indiscrição, e Waller não se mostrou disposto a falar. Obviamente, tampouco Bernard descobriu a outros, e considera a Dom Diego um homem de consideráveis poderes intuitivos, tão reservado como cabe supor, mas singularmente encantador quando quer, perseverante, trabalhador e decidido até grau máximo em seu empenho, assim como disposto a empreender espetaculares aventuras sem sopesar pela regra geral ou o custo que possam acarretar as mesmas. Inclusive nosso cauteloso Bernard admite que os roubos que organizou nas casas em Paris renderam assombrosos resultados.
- Oh, oh - murmurou Blaine, consciente de que tinham um sério problema logo ali.
- Poderia comprovar estes nomes? - perguntou Stephen, ao mesmo tempo que lhe oferecia um pedacinho de papel.
Blaine repassou a lista, resmungando:
- Matthews, assuntos exteriores; Harper, tesouro; Wooton... - Então, em voz alta: - Porém, Carrington, Edmunds e Harris... São dos nossos.
- São todos eles pessoas de posição?
- Sim. Alguns desfrutam de uma posição muito importante.
- Todos eles foram imprudentes o bastante como para jogar cartas ou bilhar com Dom Diego. Eles lhe devem dinheiro, em ocasiões muito mais dinheiro do que poderiam devolver com facilidade. Todos eles lhe dizem que ministros, que importantes funcionários, como você, levam trabalho para casa. Os respeitáveis advogados que trabalham para Dom Diego em Londres, assim como os respeitáveis advogados que o fizeram em Paris, deram-lhe os nomes de pessoas, de empresas que tratavam assuntos particulares, como por exemplo a cobrança (em ocasiões, forçosa) de dívidas e, junto com as provas, também lhe ofereceram informes de infidelidades maritais. Estas pessoas, embora não possam ser consideradas diretamente criminosos, têm contato com criminosos que, se um lhes diz o que busca e se satisfaz um preço, quase sempre obtêm os objetos ou documentos solicitados. Dom Diego atua de vez em quando junto a estes cavalheiros: justifica-o dizendo que somente ele pode escolher a documentação que lhe interessa. Talvez seja assim, mas Bernard diz que o excita; também assegura que em mais de uma ocasião o viu disfarçar-se de forma extravagante.
- Igual ao pobre Cummings - disse Blaine.
- Pode ser que o faça na sexta-feira, pois pelo que entendi pretendem lhe fazer uma visita - disse Stephen.
- Oh, que alegria! Que alegria! - exclamou Blaine. - Incluamos agora mesmo em nominata os nomes da metade de membros do gabinete espanhol, assim como os principais membros de seus serviços de inteligência.
Stephen respondeu com seu peculiar riso chiante, antes de dizer:
- Creio que é tentador, mas pense nas possibilidades de pegá-lo, de surpreendê-lo em fragante delito, com um monte de testemunhas irrefutáveis, em posse de propriedade roubada, obtida depois da invasão desta morada em plena noite. Seria definitivo, sem dúvida, e não desfruta do benefício de ser um homem da Igreja, nem de imunidade diplomática de nenhum tipo. A árvore de Tyburn, talvez com a indulgência de uma venda de seda, isso é o único que lhe aguardaria. Devido à extraordinária inquietação de seu governo, à angústia de sua família, para não falar de seu própio incômodo, diga-me... que concessões não estaria disposto a nos fazer?
- Meu coração bate com tal força que quase não posso falar - disse sir Joseph, cujo rosto havia ruborizado até adquirir uma tonalidade púrpura. - Diga-me, meu muito valioso amigo e colega, como o faremos?
- Então, recorrendo a nosso bom Pratt, o caçador de recompenças, o mesmo e excelente Pratt que tanto fez por nós quando o pobre Aubrey foi preso por fraudar a Bolsa, o melhor dos aliados. Creio que conhece a estes "investigadores particulares" e a seus se couber menos apresentáveis associados. Nasceu e se criou em Newgate, tal como o senhor recordará, e desde que tiremos qualquer dúvida que possa ter com respeito à moralidade do que lhe pedimos, e garantamos sua imunidade pessoal, ele se encarregará de tudo conforme os costumes locais e os preços também locais, detalhes que conhece de cor. Poderia custar-nos um dinheirão.
- Não acho que custe tanto - opinou Blaine, antes de apoiar a mão no joelho de Stephen. - Tem toda a razão com relação a Pratt. Como não pensei antes nele?
A biblioteca de sir Joseph, onde repassava de noite a papelada oficial e guardava a documentação que lhe servia amiúde de referência na elegante mesa de mogno, com os arquivos dispostos em ordem alfabética, tinha dois espelhos situados em um extremo, espelhos de corpo inteiro, moldurados em negro, cuja parte posterior não estava azougada. Na realidade, não encaixavam nesse aposento, pois eram mais modernos e inclusive chamativos, detalhe que não preocupou em absoluto ao homem barbudo que tentava abrir a fechadura de uma gaveta da escrivaninha. Nunca estivera naquela habitação, de modo que não vira antes os espelhos, nem as caixas de espécimes repletas de escaravelhos, nem o enorme e ereto exemplar de urso que permanecia apoiado contra a parede, à esquerda da escrivaninha, abaixo um ornitorrinco dissecado. O urso estendia uma pata, da qual se podia pendurar o chapéu ou um pára-sól.
- Não esperemos mais - resmungou Stephen Maturin, que observava através do buraco na parede, situado exatamente detrás do espelho sem azougar, enquanto o intruso provava em silêncio as gazuas sob a discreta luz de uma lanterna escurecida. Sir Joseph, que também se encontrava no escuro passadiço atrás do correspondente buraco do outro espelho, sentiu que estava a ponto de espirrar e para evitá-lo torceu seu rosto purpúreo, apertou com força os lábios e fechou os olhos. Ao abri-los de novo, observou que o homem havia aberto um pouco a janela da lanterna, e viu que pegava um avultado documento dos arquivos.
Imediatamente depois, o urso tirou sua cabeça, desenbainhou um garrote do peito e, com voz chiante e aguda, disse:
- Esteja preso em nome do rei.
O aposento se encheu de luz e de gente correndo. A lanterna escurecida foi reduzida, de mãos atadas e, devido aos esforços, perdeu sua ridícula barba.
- Não farei ato de presença - disse Stephen, apertando a mão de sir Joseph. - Posso convidar-me para desjejuar com o senhor?
- Por favor, é claro, querido amigo - exclamou Blaine, entre risadas de alegria. - Que golpe! Grande golpe, oh, Senhor, que golpe!
CAPÍTULO 8
E foi um glorioso golpe no qual tudo saiu às mil maravilhas: o outro serviço de espionagem contemplou a sir Joseph com admiração, respeito e uma inveja inqualificável, ao mesmo tempo que fez o possível para procurar qualquer migalha que pudesse ter ficado pelo caminho. Esta foi uma tentativa vã como nunca se viu, pois sir Joseph, embora fosse um homem calmo e benévolo na vida comum, inclusive caridoso, era totalmente implacável na guerra não declarada entre funcionários que tão amiúde estoura, pelo menos de portas para dentro, entre agências deste tipo, de modo que foi ele que reuniu até a última migalha em seu própio interesse, para seus colegas e conselheiros. Mas um golpe tão glorioso não se podia aproveitar totalmente sem que isso comportasse um considerável investimento de tempo, de modo que passaram vários dias até que se solicitou o comparecimento do doutor Maturin ante o Comitê. Ali lhe disseram que suas propostas relacionadas com o Chile, tal como foram redigidas em seu momento, foram lidas com notável interesse, e que podiam empreender-se as discussões preliminares e, inclusive, os preparativos, desde que levasse em conta que nesse ponto o governo de sua majestade não se comprometia com nenhum acordo e que toda a empresa devia ser conduzida com discrição, a bordo de uma embarcação que não fizesse parte da Armada Real, como em um barco alugado com propósitos hidrográficos pela autoridade ou autoridades competentes, e que qualquer contribuição não devia exceder setenta e cinco por cento da muito considerável soma que o doutor Maturin deixara na América do Sul ao final de sua viagem anterior. Ambas partes concordaram que apenas se tratava de um esboço e que, chegado o momento que ambas considerassem mais apropriado, tanto poderia pôr-se em marcha como abandonar-se, desde que se avisasse isso com a antecedência suficiente.
Durante este período alojou-se no Grapes, uma agradável casa de hóspedes, um lugar tranqüilo situado em Liberties do Savoy, onde tinha quarto própio durante todo o ano, e onde suas duas apadrinhadas, Sarah e Emily, viviam com sua velha amiga a senhora Broad. Eram tão negras como caiba imaginar, pois as tinha encontrado em uma pequena ilha da Melanésia na qual toda a população, com excessão delas, havia morrido devido a uma varíola trazida por um baleeiro. As meninas tinham o cabelo cacheado, mas não davam mostras de ser estrangeiras, de sentir-se incômodas ou incomodadas quando eram vistas correndo pela rua ou indo buscar um carro no Strand. Aprenderam o inglês com uma facilidade espantosa, e o fizeram poucos dias depois de embarcar no Pacífico. Aquela foi uma interminável travessia que teve uma comprida pausa em Nova Gales do Sul e no Peru; ao que pare, chegaram à conclusão de que o inglês possuía dois dialetos, um dos quais (o mais picante) empregavam no castelo de proa, enquanto que reservavam o outro para o castelo de popa. Passado um tempo em terra, tinham acrescentado variantes a um terceiro, o verdadeiro cockney tal como se falava talvez um pouco mais acima de Charing Cross e ao longo do rio depois de Billingsgate até Tower Hamlets, Wapping e mais além. Elas o aprenderam sobretudo nas ruas e em sua rudimentária e modesta escola de High Timber Street, dirigida por um sacerdote muito ancião, um católico de Lancashire que as tratava de "você", ensinavam-lhes aritmética, a ler e a escrever (com uma excelente caligrafia), e a cujas aulas assistiam crianças de todas as cores, excetuando o azul celeste. A sua era uma vida muito agitada, pois não só aprendiam a cozinhar (sobretudo pastas), como que também acompanhavam a senhora Broad aos mercados da Cidade, e faziam os quartos quase tão conscienciosamente como na Armada, trabalho no qual ajudavam a Lucy; também aprendiam a costurar sob o atento olhar da viúva Martha, irmã da senhora Broad. Além disso, amiúde faziam encomendas para os cavalheiros que se alojavam em Grapes, ou iam buscar um carruagem; por tais serviços recebiam sua recompensa, e quando as recompensas alcançavam a soma de três ou quatro peniques, a soma exatamente calculada para sua expedição, levavam Stephen a uma chalana governada por um par de remos desde suas própias escadas no Savoy até a Torre, onde lhe mostravam os leões e outras bestas moderadamente selvagens que tinham ali desde tempos imemoriais; depois, ofereciam-lhe tortas de framboesa, que compravam em uma banca ambulante.
- Se você tivesse visto a Emily quando agradeceu ao guarda por suas explicações e pediu que aceitasse seis peniques, acho que lhe teria comovido profundamente - disse Stephen junto ao fogo que ardia no saguão do Blacks.
- Pode ser - admitiu sir Joseph. - Ouvi dizer que as crianças possuem certa bondade. Mas nem mesmo maiores exemplos de afeto e atenção bastariam para tentar-me a empreender a arriscada aventura de ter crianças. Meu querido Stephen, desejo que agora que você é tão rico como um judeu tome um carro postal como um cristão, em lugar dessa condenada carruagem onde irá dando tombos de um lado para o outro de forma imoral, apertado a empurrões, tendo que suportar roncos alheios durante toda a noite... Asfixiado, pelo amor de Deus! E tudo para que no final lhe abandonem pouco antes do amanhecer no lugar de destino.
- Além de mais rápido que o carro do correio já paguei a passagem.
- Vejo que está decidido. Bem, pois que Deus lhe ampare. Temos que ir. Charles, um carro para o doutor, se é tão amável. Gostaria que estas bolsas pudessem chegar a Dorchester - disse empurrando uma delas com a ponta do pé. - Pelo menos lhe acompanharei até o Golden Cross, e me assegurarei de que as subam a bordo.
Graças ao esmero de sir Joseph, as bolsas chegaram a Dorchester e ao Kings Arms debaixo da cinzenta luz do amanhecer do sábado. O guarda as desceu, agradeceu a Stephen a gorgeta e gritou no pátio:
- Ei, Joe, acompanhe este cavalheiro até a cafeteria. Três bolsas pequenas e um pacote envolvido em papel marrom.
Os outros passageiros resultaram ser tal como Blaine os havia descrito, e um deles tinha um modo desafortunado de estirar as pernas enquanto dormia. Contudo, o Kings Arms agradou a Stephen com um esplêndido café da manhã, truta defumada, ovos e bacon, além de um bife de cordeiro; o café lhe pareceu mais que aceitável, de modo que voltou a sentir-se cômodo tal como a maré volta.
- Desejaria dispor de um carro, se é tão amável, que me leve a Woolcombe em quanto tenha terminado - disse ao camareiro. - E também queria me barbear.
- Imediatamente, senhor - respondeu o camareiro. - Informarei ao barbeiro de que reclama seus serviços, e acho que desfrutará o senhor de uma viagem agradável, porque o céu limpa ao leste.
E assim realmente foi, e antes que a carruagem tivesse coberto a metade do caminho para Woolcombe, o sol assomou sua brilhante auréola por cima de Morley Down. Do interior observava a paisagem conhecida, pois nesse momento percorriam a borda de Simmons Lea. Ao longe distinguiu as figuras de três ginetes e um homem que corria ao seu lado, longe, muito longe, pelo pasto, uma mulher e duas crianças, uma das quais teria jurado que era sua própia filha se a pequena não cavalgasse ao lombo do cavalo; contudo, estava seguro de que o corredor era Padeen.
- A seguinte à direita - informou com amabilidade ao moço da posta.
- Eu sei, senhor - respondeu este com um sorriso. - Nossa Maggie serve na casa. - E tomou o caminho que o conduziu ao pátio.
- Siga até chegar à ala oposta - disse Stephen, dado que era ali onde viviam Diana, Clarissa e Brigid. Já cumprimentaria depois a Sophie, e também à senhora Williams, na ala oeste, ainda que a esta última lhe apresentaria seus respeitos muito mais tarde.
- Deixe-as do outro lado da porta - disse ao pagar ao moço da posta. - Eu me encarregarei pessoalmente do pacote envolvido em papel marrom.
Dirigiu-se escadas acima e abriu a porta em silêncio. Tal como esperava, Diana seguia adormecida na cama, com a pele rosada.
- Oh, Stephen - exclamou ao sentar-se e abrir os braços. - Como me alegro em vê-lo; não fará nem cinco minutos que estava pensando em você. - Abraçaram-se, e ela o olhou com ternura. - Tem um aspecto estupendo - disse. - Já comeu? - Stephen assentiu. - Então, tire a roupa e venha para cama. Tenho tantas coisas para contar.
- Stephen, Stephen - disse Diana enquanto recostava as costas, com seu cabelo negro estendido e revolto sobre o travesseiro, e seus olhos azuis irradiavam uma luz cálida. - Tenho mil coisas para contar, ainda que conseguiu que as esquecesse por completo. - Acariciou um pouco o braço que tinha sobre seu peito, e depois acrescentou: - Diga-me, veio diretamente do barco? Está de licença? Jack veio junto?
- Não. Acabo de chegar de Londres. E não vejo Jack já faz semanas, pois segue embarcado com a esquadra que realiza o bloqueio de Brest.
- Então não sabe que minha tia a senhora Williams veio viver aqui, depois que sua amiga a senhora Morris fugiu com aquele detestável servente, Briggs. Justo então arrumávamos a ala oeste, e oh, muitas outras coisas, de modo que a alojamos no quarto de Jack. Ali, depois de farejar e futucar entre suas coisas, encontrou uma caixinha com as cartas que aquela tonta de Amanda Smith lhe escreveu do Canadá; nelas lhe dizia que a engravidara e que agisse de acordo com as regras, já sabe. Tia Williams as pegou e levou para Sophie tão rápido como pôde com toda a aversão do mundo, e o recital completo com respeito à fornicação, e não se deteve até que conseguiu atiçar na pobre Sophie o fogo da beatice e os ciúmes. Sempre me surpreendeu que uma mulher com tanto senso comum como Sophie, pois não é nenhuma tonta, como bem sabe, possa deixar-se influenciar tanto por sua mãe, que é uma estúpida, uma estúpida dos pés à cabeça, mesmo quando se trata de dinheiro, o que supõe dizer muito. Mas aí está. Sophie lhe escreveu uma carta com toda sorte de frases própias de Drury Lane, e quando o pobre diabo chegou aqui no carro postal desde Plymouth para dizer-lhe que sentia muito e que nunca mais voltaria a fazer nada semelhante, ela o rechaçou de imediato. Jack se foi, mas não sem antes soltar uma linha a modo de despedida na qual a acusava de ser uma megera maliciosa e impiedosa. Desde então, a pobre não tem parado de chorar.
- Coitada, coitada. Mas era um matrimônio funesto. Ela nunca gostou de manter relações sexuais, porque sempre temeu a possibilidade de engravidar, dado que seus partos foram muito dolorosos. Faz tempo que me parece que os ciúmes e a frigidez ou, pelo menos, a tibieza, são proporcionais entre si. E Jack é o que ordinariamente chamaríamos de um homem ardente.
- Eu me atreveria a dizer que tem razão com respeito à tibieza e os ciúmes. Mas acho que se equivoca ao tachar Sophie de frígida. Na verdade, quando sua mãe está perto, acredito que deve de ser um pobre casal para um homem vivaz e disposto, claro que Jack nunca lhe teria levado para a cama se ela não tivesse fugido de sua mãe para embarcar com ele. Ocorre também, e o sei de fonte segura, que Jack não é precisamente um artista nestes assuntos. Pode abordar e aprisionar uma fragata inimiga enquanto rugem os canhões e redobram os tambores em um par de minutos, mas não creio que essa seja uma boa política na hora de comprazer a uma mulher. Em melhores mãos, estou segura de que ela poderia ter sido uma mulher mais encantadora; oh, e também muito mais feliz.
- Está bem claro que você sabe mais do que eu a respeito.
- Ainda tem uma boa figura, apesar dessas crianças - disse Diana. - Mas de que serve ter um corpo adorável se ninguém lhe tira partido?
- É um autêntico desperdício, desde logo. Uma autêntica vergonha.
- Clarissa, que sabe muito a respeito destes assuntos, e eu... Porém, oh, Deus, esqueci o mais importante. Não lhe disse que tia Williams regressoo a Bath. O homem com quem a senhora Morris fugiu tinha algumas esposas mais e foi preso por bigamia e fraude, por fazer-se passar por outra pessoa, por falsificação, roubo e Deus sabe quantas coisas mais; vamos, que era um tipo muito obscuro. Tia Williams comparecerá ao julgamento na qualidade de principal testemunha da acusação. Sente-se tão orgulhosa e importante. Jura que não abandonará até que o enforquem, e que ela e sua amiga morrerão juntas. Eu lhes comprei uma casinha justo em frente ao Paragon.
- O que significa que conseguimos vender Barham Down. Que inteligente de sua parte.
- Não, não. Vê? Outra coisa da qual já me esquecia. Depois que partiu comecei a pensar em que era uma solene bobagem passar apuros com duzentas ao ano, tendo como temos um enorme diamante como o Blue Peter. Mencionei isso a Cholmondeley (tive sua carruagem até há muito pouco) e se mostrou de acordo comigo. Por que não pedir emprestadas cinqüenta mil ou algo assim até resolver nossos assuntos? Ofereceu-se a resolver o assunto na Cidade. De modo que eu disse que sim, e agora nado na abundância. Deixe-me lhe dar algum dinheiro, Stephen, querido.
- Querida, céu, é a amabilidade personificada, mas nossos assuntos já estão resolvidos. Tão resolvidos como o estiveram em seu melhor momento, e inclusive um pouco mais. O fato de que perdesse o recibo não teve maiores consequências, e amanhã recuperarei seu diamante. E agora que penso - seguiu dizendo, caminhando como Adão pelo quarto, para o pacote embrulhado em papel marrom, - tenho aqui um presente que casará à perfeição com a jóia. - Ao desenbrulhar o pacote apareceu um precioso vestido justo de seda de Lyon, mais negro que a noite mais escura.
Depois de diversos gritos de alegria lhe agradeceu muito, felicitou-lhe por sua brilhante conduta ao pôr em ordem seus assuntos (sempre estivera segura de que poderia fazê-lo, por mais complicado que fosse), estendeu o vestido sobre sua suave pele branca e, recuperado o fio de seu discurso, continuou:
- Não acreditaria a mudança ocorrida em Sophie desde que sua mãe se foi. Por um tempo, Clarissa e eu tentamos consolá-la, tentamos que compreendesse que os homens e muitas mulheres vêem estas coisas de forma muito distinta; que para um homem meter-se entre outros lençóis não implica uma traição, um ato de traição ou uma infidelidade séria e real. Mas quase não nos prestou atenção. Contudo, quando soubemos que tia Williams havia se instalado em Bath com a senhora Morris, que ocupavam ambas seu tempo comprando cretone e fazendo declarações juradas, Sophie nos escutou cada vez com mais atenção.
- Eu me encantaria tê-las ouvido.
- Teria aprendido muito, eu lhe asseguro.
- Era a isso que me referia. Pouco sei, muito pouco sei do modo em que as mulheres falam quando estão sozinhas, sobretudo destes assuntos.
- Então, seguimos falando do intenso prazer que existe ou teria que existir no ato de fazer amor. Disse que era um dever desfrutar disso e proporcionar tanto prazer em troca como fosse possível, que o prazer devia transmitir-se como uma infecção. Clarissa interveio e se expressou com maior delicadeza que eu, citando um escritor latino sobre o modo que os homens gostam que sua companheia se comporte, e a pobre Sophie ficou pálida, resmungou que achava que tudo consistia em ficar ali deitada e deixar que as coisas acontecessem. Oh, falamos tanto. Eu mesma fiz um bom comentário, ou foi o que achei naquele momento: "qualquer homem gosta de receber provas de que uma mulher desfruta de seus esforços, sabe?". Depois disse, em um tom que achei entenderia, que o que necessitava com mais urgência era de um amante amável, doce e atento, para pô-la ao tom e para demonstrar-lhe o porquê de toda a poesia, a música e a roupa bonita; também tentei demonstrar-lhe como o amor justifica tudo. E quem melhor que um homem como o capitão Adeane, que dançara com ela nas últimas reuniões de Dorchester, e que lhe dedicou discretamente suas atenções. Você o conhece, meu querido?
- Acho que não.
- É um soldado, e tem uma enorme mansão atrás de Colton, cuidada por uma tia muito jovem e coquete. Como é absurdamente atraente, geralmente o conhecem pelo apelido de Capitão Apolo. Não se entrete com as garotas, mas as jovens esposas dos arredores, bem, não direi que formam em linha, mas acho que é para elas um grande consolo. Na semana passada deu um esplêndido baile.
- Gostaria de conhecer o cavalheiro.
- Oh, e outra coisa que lhe disse, talvez a mais importante de todas, algo no que ambas insistimos muito, foi que não havia nada, nada em absoluto, nada pior para o aspecto ou a natureza de uma mulher que a beatice. Nada tão carente de simpatia e deprimente como aquela perpétua expressão de descontentamento ou de censura implícita. A única coisa que podia fazer-se, se sabes que seu amante ou marido ou o que seja foi infiel, é pagar-lhe com a mesma moeda, não por vingança ou lascívia, mas para evitar algo pior: para evitar a beatice. Porque se faz isso jamais voltará a ser um mártir ou a pôr o horrível rosto de um mártir. Ela disse que deveríamos nos envergonhar por dizer coisas tão terríveis, ainda que tampouco nos afastou de seu lado, e finalmente admitiu que sim, que bem, que isso era muito bom, mas o que lhe dizíamos a respeito de uma possível gravidez. A gente não pode se permitir o luxo de ir tendo filhos a torto e a direito. Certamente que não, acrescentamos: realmente achava que os bebês eram algo inevitável? Sim, respondeu: isso era o que tinha entendido. De modo que lhe explicamos, e devo admitir que Clarissa é assombrosamente bem informada, e também disse que confiar somente na lua, no calendário, não era nada seguro.
- A boa Clarissa. Acho tê-la visto à distância esta manhã, cavalgando.
- Sim. Tornou-se uma amazona muito competente. Levou as crianças ao amanhecer, montados em pôneis de Connemara, animais de modos amáveis. Oh, Stephen, tenho que mostrar-lhe meus árabes... Ainda que há uma coisa que tem me preocupado... pode me passar esse calção? Sophie toma o café da manhã às nove, e provavelmente nos pedirá que a acompanhemos. Verá, parece que talvez tenha exagerado um pouco, que talvez tenha interpretado nossos conselhos muito ao pé da letra; quero dizer que tem certa tendência a levar as coisas muito a sério. Claro que, seja como for, na próxima semana ele se reunirá com seu regimento em Madras, assim que...
- Stephen, querido, que esplêndido aspecto tem! - exclamou Sophie ao abraçar-lhe.
- Acaso não sou o mais belo que há sobre a face da Terra? - perguntou ele ao mesmo tempo que estendia os braços, vestido com seu abrigo novo e estirando a perna para que pudessem ver seus calções. - Quando me levavam em seus botes, os marinheiros que pertenciam a outros barcos costumavam perguntar: "Roupa velha? Roupa velha?", como se fossem novilhas, o que entristecia muito aos do Bellona, desde o capitão até ao mais humilde dos pagens de vassoura que não levasse nem uma semana a bordo. De modo que me transformei em uma espécie de pavão real que estende suas plumas para exibir seu esplendor, ou, melhor, como um bando inteiro de pavões reais. - Enquanto falava assim de maneira animada e desconcertante, seu bom olho lhe demonstrou que, de fato, o mais belo que havia sobre a face da Terra se encontrava diante dele, alta, de cabeça erguida, no ápice do encanto e da perfeição.
Alguém puxou sua casaca; ao virar-se e baixar o olhar viu à sorridente e ruborizada Brigid, cuja beleza prometia ir além.
- Papai, querido papai - disse Brigid, - quanta felicidade, quanto me alegra vê-lo. Estou com calções para montar, vê? E não estou disposta a perder um minuto para trocar-me. Posso sentar-me ao seu lado?
Entraram Charlotte e Fanny, que logo depois se inclinaram para saudá-lo; achou-as desajeitadas e tontas. George lhe cumprimentou com um alegre sorriso muito parecido ao de seu pai. Stephen deu um beijo em sua velha amiga Clarissa e, com Brigid de seu outro lado, sentou-se junto a Sophie.
- Não virá do Bellona? - perguntou esta.
- Não, não, em absoluto. Passei em Londres algum tempo.
- Quando viu Jack pela última vez?
- Não tenho boa memória para as datas, mas diria que faz bastante.
- Não tinha recebido nenhuma de minhas cartas?
- Não. Todos nos queixávamos com amargura da falta de correio. Mas além disso me pareceu vê-lo bem e animado, muito ocupado, claro, com tudo isso de patrulhar e organizar à dotação do barco. Espero achá-lo inclusive melhor dentro de um ou dois dias, quando regresse a bordo. Ouvi que apresou um barco estupendo.
- Desejávamos que ficasse para passar o Natal - disse ela, penalizada.
- Não, minha querida. Só parei para fazer uma visita. Às onze em ponto um carro postal virá recolher-me procedente de Dorchester para levar-me a Torbay, via um povoado cujo nome já nem recordo.
- Bobagem - disse Diana. - Eu mesma lhe levarei antes, ainda que desta vez o faremos em nossa própia carruagem. Sophie, perdoe-me: devo preparar os cavalos e vestir-me decentemente. - E desapareceu.
- Oh, eu lhe acompanharei, acompanharei no interior! - exclamou Brigid, dando pulos ao sentar-se.
- Não, não vai, querida - disse Stephen. - Nem pensar.
- Pois claro que não - disse Sophie. - Tem um compromisso com o mestre de dança e com a senhorita Hay.
- Perguntarei a mamãe - disse Brigid que, já na porta, acrescentou: - Claro que irei.
Nem pensar, havia dito Stephen, e nem as súplicas em gaélico, nem as lágrimas que pôde derramar o comoveram. Para piorar, sofreu a monstruosa injustiça de Padeen, aquele grande traidor, que sim acompanharia a seu pai na carruagem, e que apareceu enfeitado com uma estupenda libré. E como Diana não estava, Sophie se viu obrigada a dizer:
- Amada Brigid, que triste seria para seu pai ao despedir-se vê-la com lágrimas nos olhos, chateada e com o rosto inchado. Vá se pôr em condições, escove o cabelo e pegue outro lenço. Stephen, vou escrever agumas linhas para Jack. Você me fará o favor de entregá-las, com todo meu amor e meu carinho?
Dirigiu-se apressadamente à escrivaninha, um pequeno bonheur du jour de madeira acetinada das índias que pertencera à mãe de Jack. Depois de titubear, escreveu: "querido Jack, poderia pedir que me perdoe? Gostaria realmente que fosse melhor pessoa do que fui capaz de ser. Com todo meu amor, S.". Lacrou, não sem lamentar sua falta de estilo, de dignidade e, possivelmente, de correção, e correu de volta para os degraus onde todos observavam já a esplêndida carruagem verde escuro, em cuja boléia Diana se sentava, com Stephen ao seu lado e Padeen detrás; os moços pegavam as embocaduras dos cavalos.
Sophie lhe estendeu a carta; Stephen inclinou-se e a beijou.
- Soltem-nos - ordenou Diana, que aferrava com força as rédeas. Com a carruagem já em movimento, Stephen voltou o olhar e, certamente, a última vez que viu a sua filha estava esta empapada pela chuva mas alegre, e agitava um lenço branco a modo de despedida.
Guardaram silêncio durante um bom momento, ainda que Diana se dirigia aos cavalos de vez em quando, quer fosse de forma individual ou ao tiro, composto por baios de Cleveland bem emparelhados, geralmente de bom comportamento ainda que um tanto proclives a fazer cambalhotas, sobretudo ao atravessar o povoado, onde os habitantes os cumprimentaram ao passar e, em ocasiões, inclusive chegaram a correr ao seu lado, tal era seu empenho para dessem lembranças e transmitissem todo seu apreço ao capitão. Alguns chegaram a agitar lençóis ou qualquer coisa a sua passagem, das janelas. Mais tarde, chegaram ao caminho real, e ascenderam até o cume da colina que se alçava sobre o vale de Woolcombe. Os cavalos puxavam bem e o faziam a um tempo. Havia geada suficiente para branquear a grama que também se estendia pela estrada, e o bafo dos cavalos formava uma considerável nuvem a sua passagem.
- Esta esplêndida carruagem verde anda suave como a seda - observou Stephen.
- É mesmo - disse Diana. - Foi feita por Handley; falaram-me do novo tipo de amortecedor que incorporam nelas: longas tiras do melhor aço sueco, superpostas e encaixadas umas com as outras, revestidas de couro e presas à carroceria por parafusos giratórios de bron... - Quando terminou de recitar com todo luxo de detalhes os pormenores da construção da carruagem (cujo processo seguira com o maior interesse), e das inumeráveis camadas de tinta, seguidas pelo verniz que tinham aplicado, junto à anedota da visita que fez à loja do segeiro guiada pelo valioso senhor Thomas Handley, onde entre outras tantas maravilhas viu como encolhiam uma jante, acrescentou: - Você teria se encantado.
- Estou completamente convencido disso - respondeu, e depois de uma pausa decente, observou: - Poderia lhe pedir um favor que me tranquilizaría muito?
- Certamente, Stephen, querido - respondeu Diana, que lhe dedicou uma olhada de soslaio muito afetuoso; e em um tom de voz muito mais elevado: - Norman, maldito canalha, afaste-se, afaste-se, ouviu? - Norman ouviu tanto a ênfase de sua voz como o estalido do chicote a seis polegadas da orelha, e de imediato deixou de importunar ao companheiro, coisa que costumava fazer amiúde ao empreender o galope.
- Eu lhe digo porque Brigid é uma criatura enlouquecida, rápida como uma truta. Recordo-me tê-la visto saltar uma vez no exido sobre uma pilha de esterco de minha sela, e isso apesar de ter minha mão apoiada em seu ombro. Tudo porque vira um coelho. De modo que, ainda que só seja para comprazer-me, jure, prometa e comprometa-se a jamais permitir que se suba sobre a caixa da carruagem, um lugar muito elevado quando se percorre caminhos tão difíceis; ainda que só seja para comprazer a mim e a meus medos.
- Muito bem, querido - disse ela com amabilidade, - e aqui vai minha mão para selar o acordo. - E lhe apertou rapidamente.
Estavam em uma estrada ampla e plana com bosques à esquerda e nem uma alma a vista. Os cavalos estavam em forma e haviam esquentado de tal maneira que mostravam-se ansiosos para galopar. Ela os esporeou ao inclinar-se para frente, chamá-los por seus nomes e assobiar, eo, eoo, eoo, e a estável carruagem percorreu duas lisas milhas antes de que puxasse as rédeas enquanto soltava uma risada, depois de ter realizado uma série completa de giros por uma colina que conduzia a um povoado situado no alto.
- Conduzir deveria ser sempre assim - ele disse quando enfileiraram de novo a estrada vazia e ampla. - Um tempo perfeito, e você, meu amor, o chicote mais certeiro do mundo.
Adiante, adiante; as cercas ficaram para trás e se detiveram onde já haviam se detido antes, depois de passar a diabólica ponte na curva de Maiden Oscott com uma facilidade póxima da insolência. Hospedaram-se na mesma cômoda pousada onde se hospedaram da última vez.
Ali, enquanto conduziam para cima e para baixo os cavalos, Stephen falou demoradamente; com Padeen a respeito da pequena granja situada no condado de Clare que tanto lhe entusiasmara quando Stephen lhe prometeu como recompensa para cuidar de Brigid e de Clarissa na Espanha, um entusiasmo que decaíra de forma notável até reduzir-se a uma existência teórica, um pouco mais, talvez. Da conversa que mantiveram à luz do crepúsculo, a mais comprida que tiveram há muito tempo, uma conversa cheia dos giros e das evasivas de um irlandês que deseja dizer algo delicado, mas que queria fazê-lo sem ofender em nem um pouco, Stephen extraiu uma grande variedade de sensações. Perguntou a Padeen se uma esposa era absolutamente necessária para manter uma granja? Se tinha medo do matrimônio? Temia ser incapaz de administrar a propriedade, depois de estar a tanto tempo separado de terra firme? Todos aqueles anos de mansidão bastaram para acabar com sua independência? Já em seu quarto, sentado em uma antiga cadeira com assento de vime, enquanto arrumava mecanicamente os cachos da peruca, passou por sua mente uma idéia louca: hospedava o pobre diabo uma paixão ardente e desesperançada por Clarissa Oakes? Ainda que não distava muito, por não dizer nada, do sentimento que ele mesmo havia hospedado por Diana, achou que não e decidiu não dizer mais nada a respeito, exceto para sugerir um arrendatário que se ocupasse das terras e as mantivesse em boas condições.
- Não pensa em vir para a cama? - perguntou ela. - A vela goteja.
No dia seguinte, aguardava-lhes um trecho menos longo que cobriram com uma esplêndida marca de tempo. O outono lhes presenteou com um dia perfeito; os cavalos desfrutaram do caminho, exceto quando Mangold perdeu uma ferradura e todos tiveram que esperar em ou perto da ferraria mais próxima, rodeados pela fumaça, o chiar dos foles, as caprichosas chamas e o odor que desprendia o novo par de ferraduras.
Antes do meio-dia chegaram à margem de Torquay, de onde se podia ver a baía e os navios de guerra. Contudo, nesta ocasião não foram de um lado para outro, nem estavam ansiosos para chegar. Não levavam ali nem cinco minutos quando Stephen ouviu gritar: "Doutor Maturin!", e, ao voltar-se, encontrou-se com o sorridente rosto de Philip Aubrey, o muito jovem meio-irmão de Jack, que estava ao comando de um bote que pertencia ao Swallow, um aviso cuja intenção era reunir-se com a esquadra que patrulhava ao mar, do qual Stephen poderia regressar facilmente a bordo do Bellona.
Impossível recusar semelhante oferta, ainda que se despediram a contragosto, como dois amantes, para seu pesar, obrigados pelas circunstâncias e lamentando a fresca brisa que empurrou o bote para o mar, longe, muito longe.
Philip e Stephen não puderam falar a vontade até que o bote alcançou o aviso, ainda que a bordo Philip dispunha de uma cabine triangular e diminuta que quase não cabia duas pessoas. Uma vez dentro, enquanto presenteavam seus estômagos com pão fresco e queijo, Philip disse:
- Não queria parecer um fariseu nem falar desrespeitosamente das pessoas mais velhas, mas devo dizer que a sogra do pobre Jack passa dos limites. George (meu sobrinho, o senhor como sabe, ainda que não posso conseguir que nem ele nem as meninas me chamem "tio") começou a ir àquela miserável escola que há entre Folly e Plush, dirigida pelo irmão de nosso pároco. Pois bem, no primeiro dia de aula seus companheiros lhe perguntaram o que seu pai fazia. "Meu pai é oficial da marinha", disse George; então, levantou-se e acrescentou: "E um adúltero". "Como o sabe?", perguntaram. "Minha avó disse a minhas irmãs e a mim", respondeu o bom George. A princípio ri do lindo, pois o senhor sabe como se infla o pequeno quando se orgulha de algo, claro que então pensei que era uma baixeza ter-se dito às crianças. Não está de acordo comigo, senhor?
- O senhor não tem nenhum parentesco direto com a senhora Williams, verdade?
- Não, senhor. Meu pai, o general, casou-se de novo depois da morte da mãe de Jack. Ela se chamava Stanhope. E eu sou o fruto do segundo matrimônio, de modo que ainda que Jack se casasse com Sophie Williams, isso não converte à mãe dela em minha parente.
- Em tal caso, direi que considero a essa mulher uma harpia da cabeça aos pés.
Assimm que pronunciou estas palavras, como se de um castigo divino se tratasse pelo fato de ter dado sua opinião, Stephen se viu empurrado da cadeira e se precipitou para frente no escasso espaço que restava livre. Philip o ajudou a se levantar e passou a correr para o convés, pois o barco tinha ficado sob o comando de um guarda-marinha ainda mais jovem que ele, que, enaltecido ante tal responsabilidade, comprometera a embarcação em uma manobra que, dirigidos os marinheiros fora do tempo, resultou em uma desastrosa troca da carangueja com vento longo. O aviso não virou, mas a confusão de cabos destroçados pelo trabalho, do botaló e do horrível estado do gurupés e suas trincas mantiveram muito ocupados o capitão (um segundo do piloto de derrota), a Philip e a seus companheiros (por sorte havia bons marinheiros entre eles) durante boa parte do dia e da noite, uma noite iluminada pela luz da lua.
Pelo menos o aviso ficou apresentável quando assomou as gáveas pouco depois do café da manhã à vista da esquadra que patrulhava mar adentro. A esquadra havia aumentado, contava com três navios de linha a mais e outras tantas fragatas, corvetas e bergantins de guerra. Philip, ainda que pálido e esgotado, poderia ter-se apresentado para revista quando acompanhou Stephen a bordo do Charlotte. Suas últimas palavras, sussurradas com voz rouca devido ao extraordinário cansaço que acusava, foram:
- Não diga a Jack, senhor, eu lhe rogo.
Ao ver ao doutor Maturin, o oficial de guarda avisou ao imediato, que por sua vez pediu a Stephen que visitasse ao senhor Sherman em sua cabine.
- Doutor Maturin, senhor, que amável de sua parte ter vindo - disse o senhor Sherman. - Meus ajudantes e eu estamos profundamente preocupados com o almirante, que mencionou seu nome em mais de uma ocasião, pois confiava em que o senhor regressaria para a esquadra. Gostaria muito de sua opinião. Está tão débil que não creio que pudesse agüentar a transferência para uma embarcação menor para voltar à Inglaterra, sobretudo tendo em conta as tormentas que açoitam estas águas nesta época do ano; certamente, nega-se redondamente a dedicar um navio tão importante como este a semelhante tarefa.
- Será um prazer visitá-lo - disse Stephen.
- Doutor Maturin, quanto me alegra vê-lo - disse lorde Stranraer, que meio se ergueu na maca. - Quantas vezes desejei em voz alta ver ao senhor de volta.
Stephen o olhou atenta e objetivamente, e o que viu foi um ancião atormentado por pesadelos, enfermo e, assim como muitos outros pacientes, temeroso do futuro imediato; mostrava uma tendência hidrópica, apesar de certo grau de colapso físico; um pulso rápido, muito rápido e irregular, tal como Sherman lhe dissera, ainda que estava claro que o almirante menosprezava as observações de Sherman e, provavelmente, tinha uma opinião exagerada da capacidade de Maturin.
- Milorde, tire a camisa, por favor - disse, dispondo-se a ajudá-lo. - Tenha a amabilidade de pedir ao oficial de guarda que ordene silêncio no convés, senhor Sherman, que procurem evitar ruídos desnecessários. - Seguiu um relativo silêncio, que Stephen aproveitou para realizar uma intensa auscultação do peito de Stranraer, dando-lhe alguns golpezinhos como se fosse um pássaro carpinteiro, enquanto era observado por Sherman com um assombro apenas dissimulado. Quando voltou a pôr-se direito, cobriu o almirante com os lençóis e disse: - É grave, certamente, tal como já sabem, ainda que diria que parece muito mais do que na realidade é. Consultarei com o senhor Sherman e seus colegas a respeito, e daremos uma espiada na botica de bordo; creio que lhe receitaremos uma série de remédios, todos eles naturais, que aliviarão seus males.
O almirante pegou sua mão e com um olhar afetuoso em um rosto pouco acostumado a mostrar afeto, agradeceu sua preocupação.
- Obviamente - disse Stephen quando ele e os cirurgiões se encontraram na cabine do capitão, desfrutando do madeira deste, - obviamente o problema reside basicamente no coração (detectei uma hidropericardite considerável) e, certamente, na mente, coisa que é comum, exceto quando os males derivam de feridas ou infecções. Primeiro devemos reduzir aquele pulso frenético e chamar coração à ordem. Que está tomando atualmente?
Sherman mencionou uma dieta e algumas substâncias inofensivas.
- Mas lamento dizer que nós não contamos com a confiança cega do paciente, e tenho motivos para acreditar que a maioria de nossos preparados terminam no jardim. É muito difícil disciplinar a um almirante que, além disso, é um par do reino. Permite-me perguntar sobre o edema do qual me falou? Não tinhamos reparado nele, e não é fácil de descobrir.
- A auscultação o mostra claramente, pelo menos em quanto um se acostuma aos ruídos de cada corpo em particular. É uma ferramenta muito valiosa para realizar o diagnóstico, pouco conhecida na Inglaterra, acho.
- Nunca tinha visto a ninguém praticá-la.
- Um amigo meu francês, Corvisart, realizou grandes progressos com a imediata percussão que me viu executar: os Post mórtem vieram a confirmar muito satisfatoriamente seus diagnósticos. E outro amigo francês, com quem estudei faz anos, Laënnec, ainda leva o método mais além.
- Assisti a uma de suas conferências em Paris, durante a paz - disse um dos ajudantes de cirurgião, que falou pela primeira vez. - Mas como tinha aquele sotaque continental na hora de falar, não pude entender bem suas explicações em latim.
- Para o pulso eu recomendaria Digitalis purpúrea - disse Stephen. - Sua botica inclue tintura ou infusão?
- Nenhuma das duas - respondeu Sherman. - Depois de duas experiências muito desafortunadas rechacei o uso da Digitalis por me parecer muito perigoso. Meu predecessor, contudo, deixou no barco um vaso fechado que contém folhas secas.
- Responderá muito bem ao tratamento. No caso do almirante, utilizaria um grão e um quarto introduzido em uma obreia; e se o senhor considerar adequado eu mesmo administrarei, junto a vinte e cinco gotinhas de láudano. O senhor não apreciará uma descida notável do pulso até a quinta-feira pela tarde, mas o láudano o ajudará rapidamente a sentir-se melhor e a mostrar-se mais disposto a receber atenções médicas ou, talvez, no caso do almirante, eu diria que para receber conselhos. Tolera-se bem a primeira dose de folhas em pó, se não sofrer de vômitos ou o vir tudo de cor azul (coisa que não acho que ocorra), poderia repetir-se, junto com o láudano, em intervalos de dois dias e, se possível, gostaria que me informasse dos progressos que faça. Agora, se os senhores estão de acordo, pedirei aos jovens cavalheiros que preparem as doses, de tal maneira que eu possa administrá-las pessoalmente, pois tenho pacientes em meu própio barco que aguardam minha volta ao Bellona.
- Senhor - disse o outro ajudante de cirurgião com visível satisfação, pois iam empregar tão poderosa droga e ele poderia servir de testemunha de seus efeitos, - li o estudo da Digitalis escrito pelo doutor Withering, e me comprazerá muitíssimo triturar as folhas seguindo ao pé da letra as instruções do senhor.
O cúter do navio insígnia se amadrinhou ao Bellona frente a Black Rocks; o navio de linha pairava com o velacho virado e a carangueja flameando, e o capitão fazia uma última comprovação da profundidade e posição de um barco afundado. Sua austera expressão matemática se transformou em um sorriso e quando os botes se aproximaram à distância de buzina, gritou:
- Bem-vindo a casa, doutor. Chegou a tempo para o jantar.
E quando todos já estavam a bordo, estivado o baú de Stephen e sua modesta bagagem em seu lugar correspondente da enfermaria da coberta dos alojamentos e cumpridas as saldações de rigor, recebeu mais atenções:
- Vá, o senhor tem um aspecto muito bom, senhor - disse Killick, cumprimento pouco habitual nele, - quase como se tivesse presenciado o discurso do alcaide.
Enquanto isso, Bonden lhe dizia que sua cabeça praticamente estava curada.
- Poderiam golpear-me com um martelo de calafate, senhor, que nem sequer gemeria - disse alegre como um grilo, sem que Stephen detectasse a estranha familiaridade que tanto lhe preocupara depois do combate, pois lhe fizera suspeitar da existência de um possível dano em sua saúde mental.
Jack disse que esperava o capitão Fanshawe para jantar, de modo que Stephen podia sentir-se afortunado, pois provaria uma parte da última costela de cordeiro que havia não só em todo o barco, mas provavelmente em toda a esquadra que patrulhava a costa.
- Alegra-me tanto tê-lo aqui para cortá-la - disse ao sentar-se e servir um pouco de xerez. - Não há coisa que seja pior fazer em público. Mas diga-me, Stephen, como está? E como está Diana, se é que pôde vê-la? Vejo que está muito, mais que muito bem, certamente. - Ambos tinham se trocado para a cerimônia.
- Voltei a ser extraordinariamente rico, e já sabe que ambas coisas costumam ir de mãos dadas. Acho que lhe falei de que tinha sido extraviado minha fortuna, ainda que ao que parece meu descuido não teve maiores consequências. Agora tudo está resolvido, e uma vasta riqueza melhora surpreendentemente o aspecto de qualquer um. Assim como um eminente alfaiate londrino. Ela está muito bem, obrigado; assim como Brigid. Ambas lhe enviam todo seu carinho. Por certo, encarregaram-me que lhe entregasse isto - disse ao sacar uma carta do bolso, - com todo o amor de Sophie.
De repente, a expressão do rosto de Jack mudou por completo.
- Foi isso que lhe disse? - perguntou muito sério.
- Acredito que essas foram suas palavras exatas, claro que pode ser que tenha dito com "todo, todo meu amor".
Jack pegou a carta, resmungou um "desculpe-me" e se retirou.
Quando voltou após um tempo parecia mais alto, mais reto, e seu rosto brilhava de alegria.
- Deus santo, Stephen - exclamou, - acho que é a melhor carta que já recebi. Obrigado, muito obrigado. - apertou a mão de Stephen enquanto o observava com infinito agradecimento. - E devo dizer que está admiravelmente bem escrita, com uma caligrafia preciosa. - Olhou ao seu redor, confuso e feliz; então tirou o violino da capa, mais ou menos o afinou, pois levava tempo sem tocá-lo, e começou a tocar um assombroso trino, que interrompeu os apitos do contramestre quando este cumprimentou a chegada a bordo do capitão Fanshawe.
- Peço que me desculpe, Jack - disse ao entrar. - Chego imperdoavelmente tarde. A corrente se empenhou no nordeste como se fosse uma condenada calha, e tivemos que remar contra ela.
- Não se preocupe, Billy, não se preocupe. Mesmo eu calculo mal às vezes. Tome um pouco de xerez e recupere o fôlego. Já conhece o doutor Maturin, não é mesmo?
- Sim, certamente. Somos velhos amigos. Como está o senhor? Faz muito que não tinha o prazer de vê-lo.
Naquele momento entrou Harding, seguido de perto por Killick, disposto a perguntar com um olho fechado num gesto de desaprovação que dedicou ao capitão Fanshawe:
- Eu me perguntava se sua senhoria quererá postergar a chegada da sopa ainda mais, ou se me permitiria servi-la de imediato.
Serviu-se a sopa de marisco, único solaz daquelas águas infestadas de rochas, e os convidados se sentaram à mesa. Fanshawe, ao afastar o terceiro prato que tomava de sopa, disse:
- Bem, Jack, você e os seus parecem muito ricos, felizes e cômodos; não me admira, na verdade, com a presa que têm sob o braço, e aquele comissionado que lhes sorri no porto. Mas diga-me, nos estaleiros lhe deram um retalho de lonita para a vestimenta da marinharia?
- Nada, nem sequer uma mísera casaca - respondeu Jack. - Não levava dinheiro, e ainda não se tinha decidido que a presa era de lei, de modo que não pude repartir aqui e ali os presentes de rigor; naquele momento, além diiso, tinha assuntos pendentes em terra, e embora o comissionado tenha se comportado maravilhosamente comigo em tudo o relacionado com vergas, cabos e apetrechos de guerra, os mal-intencionados abastecedores foram incrivelmente lerdos. Não quis pressionar porque tinha muita pressa para zarpar, e pensei que logo se aproximariam da esquadra.
- Em tal caso, já pode se armar de paciência porque acabaremos nos comendo uns aos outros - disse Fanshawe. - No Ramillies nos restam apenas alguns barris de pão, mingaus e o que podemos pescar pela borda. Nem uma triste galinha, faz tempo que sonhamos com a carne de porco e os ratos se cotizam acima dos quatro peniques a peça. Com relação à lonita... Bem, o contador me disse ontem com lágrimas nos olhos que não tínhamos casacas, nem lençóis nem escarpins nem nada, e com este inverno... O último barco de apetrechos teve que refugiar-se na baía Cawsand, de modo que seguiremos assim até o mês que vem. Poderia nos dar algo? Eu lhe agradeceria eternamente, ainda que somente fosse um par de lençóis para a enfermaria.
- Falarei com meu contador - disse Jack, observando faminto o cordeiro, que entrou na cabine com certa pompa cordeiril, prato muito bem acolhido, muito bem acolhido por si própio e porque talvez mudaria o rumo da chata conversa de Fanshawe.
Pelo visto as costelas, ainda que suculenta e cortada com mão experimentada, não bastou para conseguir tal propósito.
- Nem apetrechos nem notícias - disse Fanshawe. - A última que soubemos já faz tempo, de quando Áustria se aliou à Inglaterra. Mas Boney já os derrotou em mais de uma ocasião, de modo que estou seguro de que voltará a fazê-lo. Wellington acampou no Garonne (sem dúvida, terra fértil como Gessen), em lugar de marchar para o norte; de modo que os navios franceses de linha ancorados em Rochefort, Rochelle e, inclusive, Lorient, são uma ameaça a oeste para a esquadra de mar adentro, ameaça que combinada com os barcos ancorados aqui em Brest poderia ser suficiente para nos fazer em pedaços. Não seria surpreendente que se produzisse uma batalha, tendo em conta que o almirante se encontra tão afastado de Ouessant; é impossível que possamos impedir que o francês burle o bloqueio por qualquer dos dois acessos, desde que tenha vento do oeste. Fazemos o que podemos, como sabe condenadamente bem, e a espada de Damocles paira sobre nossas cabeças, pois as rochas e o fluxo de ondas são mais perigosos para quem realiza o bloqueio do que travar uma batalha semanal.
- Permita que lhe corte um pedaço de cordeiro, senhor - disse Stephen.
- Se não há mais remédio, não há mais remédio. Obrigado, é um cordeiro excelente, e muito bem condimentado. Agora vou citar um resumo de uma carta que escrevi à minha pobre esposa, e depois porei ponto final a esta endecha, além de comentar que entre todos nós nem sequer contamos com uma triste gávea de respeito. Hei aqui o resumo: "Por isso me despeço de uma cama quente e a perspectiva de dormir de um puxão toda a noite, sem ter que abrigar-me mais que com a camisola. Não recebemos notícias, e não pode haver um retiro mais solitário no mundo; tudo isso tem por único objetivo impedir que o francês nos prejudique". Bem, já está dito.
- Tomemos uma taça de vinho, Billy - disse Jack. A jarra passou de uns para os outros, e depois voltou a passar; em seguida o vinho do porto substituiu ao clarete, e depois do primeiro copo Stephen se levantou e rogou a Jack que lhe desculpasse porque prometera visitar aos pacientes ao dar as seis badaladas, e acabava de ouvi-las.
- Senhor Smith e senhor Macaulay - perguntou uma vez chegou muito mais abaixo, - como estão? Fico alegre de vê-los com bom aspecto.
Ambos admitiram que se encontravam bem, ainda que estavam famintos porque os membros da câmara dos oficiais esgotaram as provisões particulares e agora se viam limitados às provisões do barco. Contudo, temiam que ele não ficasse tão comprazido com a enfermaria nem com a botica de bordo. As permissões em terra tinham dado passagem a tal quantidade de casos de sífilis que a enfermaria estava a transbordar e a botica carecia praticamente de medicamentos para o tratamento de doenças venéreas. Também tiveram que acrescentar que, durante a última tormenta, dois homens sofreram danos no castelo de proa, e que nos trabalhos que seguiram para meter vela e impedir que o barco pudesse perder os paus, registraram-se quatro rupturas de membros e alguns deslocamentos, cuja gravidade a essas alturas já não se podia considerar tal, mas que tinham implicado em algumas consequências preocupantes.
- Como se encontra Bonden, o timoneiro do capitão? - perguntou Stephen antes de fazer a ronda.
- O homem da peruca? Oh, muito bem, senhor, ainda que creio que não faz muito pediu um purgante. Sim, eu lhe dei uma onça e meia de ruibarbo, e funcionou.
- Por favor, façam-lhe saber que eu gostaria de vê-lo quando tenha largado a guarda.
Oito badaladas, às quais respondeu o habitual rumor surdo da madeira, fruto de centenas de marinheiros que iam de um lado para o outro para ocupar seus postos. Foram buscar Bonden, para depois acompanhar-lhe à enfermaria, onde entrou com uma expressão de inquietação.
- Oh, é o senhor outra vez, senhor - disse sorridente ao ver Stephen. - Não tive oportunidade de perguntar pelas damas. Espero que estejam bem.
- Muito bem, obrigado, Bonden. Elas lhe enviam lembranças. Agora me agradaria dar uma espiada em sua cabeça.
A cabeça, coberta a essas alturas por um cabelo muito curto, parecia em condições de receber, tal como lhe dissera, o baque de um martelo de calafate. Pôde distinguir ainda as cicatrizes, mas não restava nem rastro da brandura que caracterizara a zona compreendida de ambos os lados da sutura sagital e um pouco mais acima da sutura situada entre o occipital e dois ossos parietais do crânio, brandura que tanto havia preocupado ao doutor Maturin.
- Aqui - disse ao colocar de novo em seu lugar a peruca que Bonden usava, confeccionada por ele mesmo. - Em minha opinião o senhor está como novo. Assim que direi ao capitão, que estava muito preocupado com o senhor.
- Sei que estava, senhor. Poupou-me de todo o trabalho que pôde. Porém, sabe de uma coisa, senhor? Killick e eu estamos muito preocupados com ele, se me permite o atrevimento.
Stephen assentiu e disse:
- o senhor terá oportunidade de descobrir que já se encontra muito melhor.
De fato, estava muito, muito melhor; havia se recuperado de sua primeira e quase dolorosa efervescência, e permanecia sentado na câmara, trincadas as portalós de correr pois o Bellona afundava no mar, submetido a um balanço respeitável e ao vento do sudoeste. Apesar de tudo, o barômetro finalmente se mantinha, e Jack estava disposto a escutar muito atentamente todas as notícias que Stephen trouxesse de Woolcombe.
- Alegra-me muito saber que a senhora Williams regressou para Bath para viver com sua amiga - disse. - Sophie não parece a mesma quando convivem sob o mesmo teto. E devo dizer que achei muito amável por parte de Diana ter lhe presenteado aquela casinha.
- Ah, Diana voltou a ter dinheiro. E eu também, tal como já lhe disse.
- De minha parte não posso dizer que ande necessitado, apesar de que estive a ponto de converter-me em um mendigo na bancarrota. Os advogados me enviaram alguns informes que teriam bastado para animar-me a subir ao tope, se não fosse por terem chegado antes da carta de Sophie. Ganhamos duas das apelações, e Lawrence, bom cavalheiro como nunca se viu, assegura estar praticamente seguro de que ganhará a terceira e última. Minha parte do butim que deriva da última presa deveria bastar para pôr-me de novo flutuando, ainda que modestamente.
- A julgar por tudo o que ouvi se trata de uma esplêndida presa. Eu lhe felicito por ela, querido amigo, de todo coração.
- Obrigado, Stephen. Esplêndida, foi mesmo. Muito na linha do francês que aprisionamos em frente às Tortugas, a Hebe, que antigamente era nossa Hyaena, como bem recordará: havia aprisionado um mercante inglês e seu adorável carregamento de ouro em pó e marfim. Quanto ao Deux Frères, a presa recente, apresara dois mercantes, ambos de mais tonelagem e riquezas que nosso adorável Intrepid Fox.
- Estou seguro de que o perseguiste com todo o empenho do mundo - consentiu Stephen.
- Isso eu fiz, por Deus. Mas não foi pelo dinheiro do butim, pelo menos por uma soma tão assombrosa de dinheiro. Não. Eu o vi à caça de um de nossos mercantes, que já se encontrava à distância dos canhões longos. Tinha vontade de lutar, de modo que era um combate o que ansiava, e foi por afã de combater que ordenei empreender a caça. E também pelo senso do dever, certamente.
- Disse que abandonou seu posto nas manobras para empreender a caça da presa pelo afã do butim.
- Pois é mentira. Fazia mau tempo e, ainda que víssemos os sinais, a bruma espessava por momentos. Tive que agir rapidamente, e talvez não respondesse aos sinais da maneira adequada, mas a verdade é que informei de que empreendia a caça para o noroeste, e que o fiz antes de que o resto da esquadra se perdesse de vista. De fato, aprisionei um perigoso corsário inimigo, e evitei que pudesse prejudicar a um mercante inglês: tal era meu objetivo. O dinheiro, ainda que bem recebido por todos e cada um dos marinheiros, não teve nada a ver na hora de tomar a decisão, nem mais nem menos. - Produziu-se uma pausa. - Não, quando pequeno me educaram para considerar nobre o empenho de fazer dinheiro - continuou Jack, - o mais nobre... bem, isso... Da humanidade. O objetivo, talvez: o objetivo mais nobre. Meu pai não teve muito tempo para educar minha moral, mas de vez em quando costumava se empenhar em inculcar-me diversos preceitos de natureza religiosa. Sabia que estudou em Eton?
- Aquela escola grande que há perto de Windsor?
- A mesma.
- Lugar triste, temo. Estive lá de visita com um amigo; tínhamos intenção de visitar o castelo, mas ao chegar a um lugar chamado Salt Hill fomos acossados, rodeados por um monte de meninos e garotos vestidos de palhaços e palhaços à maneira antiga que se empenharam em pedir esmola e inclusive chegaram a ameaçar-nos como mendigos. Levávamos pouca coisa, e nos dedicaram alguns insultos antes de se aproximarem de outros azarados recém chegados que viajavam em calesín{13}. Somente ouvi falar de sua grande paixão pelo grego, que praticam entre eles.
- Eu me atreveria a dizer que é assim mesmo. Ali meu pai aprendeu todo o latim que sabia, e o texto que costumava citar-me rezava:
Rem facias, rem
si possis, recte, si non, quocumque modo, rem.
"Não saberia dizer se era uma sentença bíblica. Meu pai acreditava que era de um dos profetas menores. Amiúde a recordo quando me barbeio, ou quando limpam o convés para celebrar a missa, mas não o tinha em mente em absoluto enquanto estive perseguindo o Deux Frères, ainda que de certa forma tivesse sido apropriado e, talvez, de bom agouro. Às vezes penso que seria bom ensiná-lo a George. Pois tudo está dito e feito, um texto latino pode ser de grande utilidade para um garoto.
- Querido Jack, lamento contradizer ao seu pai, mas me ocorre que algum companheiro de estudos deve ter zombado dele. É de Horácio, não da Bíblia; e o senhor Pope o traduziu muito bem:
Obtenha posição e riqueza, se possível com elegância,
se não, obtenha por todos os meios riqueza e posição.
"E não acho que queira que seu filho, um garoto bom e gordinho, possa chegar a considerar esses versos como uma verdade escrita em pedra. Contudo, tudo isto me leva a certa conversa que tive com sir Joseph Blaine, e é que, verá, dei por certo que não acharia fora de lugar que lhe falasse de você.
- Não, em absoluto, em absoluto, palavra. Sinto o maior dos respeitos e muita estima por sir Joseph. Comigo sempre se portou como um autêntico amigo, e é a ele a quem, principalmente, devo minha reabilitação na Armada. Pois claro que podia falar de mim com sir Joseph Blaine.
- Estivemos falando de suas perspectivas de ascensão. Ele me disse que não eram tudo o que ele e seus outros amigos desejariam. Disse que suas constantes e veementes críticas ao Ministério no Parlamento, junto a suas freqüentes abstenções, aos olhos do Governo lhe prejudicaram muito; e os informes de negligência de sua parte no bloqueio de Brest, além do abandono de sua posição nas manobras para perseguir um fim econômico, também lhe prejudicaram aos olhos do Almirantado. Falou também da boa posição que ostentam os amigos e familiares de lorde Stranraer nos Comuns... - Antes de continuar, Stephen recapitulou a análise de Blaine: - Sir Joseph acredita que seus amigos fariam bem se lhe convencessem a se retirar como capitão de navio, antes que expor-se a sofrer a afronta de ser ignorado na próxima promoção do Estado Maior. Tal como você diz, tem muito boa opinião de você e fez alguns comentários ambíguos com respeito à possibilidade de que lhe nomeassem comissionado de algo ou, mesmo, de dar-lhe um emprego civil relacionado com a hidrografia...
Fez-se silêncio, um silêncio cheio de vozes. Não cessou o constante empurrão do mar, quase imperceptível a menos que se prestasse atenção, nem tampouco cessou o incontável rumor de paus, vergas, aparelhos e da corrente que circulava ao redor do leme; então se ouviu um golpe que, curiosamente, prolongou-se.
- Deve de ser uma baleia, coçando-se no costado - observou Jack.
Stephen assentiu.
- Então a propósito comecei outro assunto - continuou. - Estive na França, como já sabe; ali me reuni com alguns dos homens que conheci na América do Sul quando nos ocupamos da independência do Peru, ainda que estes cavalheiros sejam de Valparaíso, no Chile. Estão tão empenhados em conseguir a independência da Espanha como os peruanos estavam, e em minha opinião são muito mais dignos de confiança. Os chilenos sentem maior preocupação com os assuntos navais do conflito que os peruanos. Sir Joseph pôs toda esta informação em conhecimento das pessoas adequadas, que, com a precaução que os caracteriza, expressaram sua vontade de proporcionar ajuda não oficial ao movimento.
- Sente fraqueza pela independência - disse Jack. - Mais de uma vez pensei nisso.
- Você também teria se tivesse estado submetido a um Estado.
- Estou seguro disso. Peço que me perdoe. Continue, por favor.
- O que agora lhe direi está ainda no ar, é hipotético. Existe a possibilidade de que a presente guerra termine muito logo. Provavelmente seguirá um período de confusão, uma possível mudança de ministério e, o que sim é certo, um monte de barcos será desarmado e a escassez de emprego será a constante comum entre os membros da Armada.
- Ai, eu temo muito que será assim.
- Vejamos, suponha que durante este período se visse afastado da lista e, portanto, da competição por uma ascensão, e fosse empregado em águas chilenas em trabalhos topográficos, de modo que pudesse distinguir-se de muitas maneiras, comportar-se mais ou menos como fez a bordo da Surprise não fará muito, temporal e legalmente retirado, com a promessa de uma reabilitação, junto à probabilidade de obter a insígnia azul com o tempo, a insígnia de contra-almirante, que lhe parece? Sir Joseph e lorde Melville acreditam que poderia arrumar-se, do ponto de vista legal da Armada.
- Deus, Stephen. É uma perspectiva muito, mais que muito atraente. - E pensou durante alguns minutos, antes de continuar: - Afastado do tumulto durante um tempo... - resmungou, para acrescentar imediatamente: - Disse que a influência de Stranraer é o fator que mais pesa contra mim, e que se o cavalheiro morrer levará a influência para a tumba. Diga-me, não passaria esta para as mãos de Griffiths? - Stephen negou com a cabeça. - Dizem que está nas últimas. Acredita que viverá?
- Jesus, María e José! - exclamou Stephen ao mesmo tempo que se levantava. - O senhor está me perguntando pelo estado de saúde de um paciente, senhor? Condenada seja sua impertinência. Creio que a seguir me pedirá que lhe dê o golpe de misericórdia.
- Oh, por favor, não se chateie, Stephen. Não queria pedir sua opinião como médico, somente disse por dizer, como se falasse em sonhos, como para meu interior. Sente-se, eu lhe peço; mesmo que tivesse sido uma torpeza de minha parte dizê-lo em voz baixa, e me desculpo sem reserva alguma. Você teve uma idéia magnífica, agrada-me muito e lhe estou infinitamente agradecido, e a sir Joseph também. Por favor, permita-me encher seu copo.
Permaneceram sentados, refletindo. Quando Jack havia enchido de novo ambos os copos, disse com certa timidez:
- Seria o melhor plano do mundo, se não fosse pela lamentável e ínfima probabilidade de obter a insígnia.
CAPÍTULO 9
O Natal teria sido nefasto se não fosse por um encontro singularmente afortunado que se produziu com as primeiras luzes do dia 24 de dezembro, momento em que o vigia do castelo de proa informou a presença de dois botes de pesca justo a sotavento.
Pescar na baía era uma tarefa perigosa, já que além das tormentas, as rochas e a força do fluxo de ondas, as autoridades francesas castigavam duramente qualquer contato com as embarcações da esquadra empenhada no bloqueio. Amiúde, o castigo consistia na pena de morte. Desde que houvesse boa visibilidade, os vigias franceses vigiavam armados com uma luneta aos pescadores, para não mencionar que tinham um rigoroso registro tanto das saídas como das entradas. Os dois botes em questão fizeram o possível para afastar-se, mas o fato é que lhe impediram suas própias redes e a tremenda quantidade de peixes que haviam pego, pois cheias de cavala, e também retinham aos botos que lhes haviam perseguido para ver-se presos sem esperança entre as dobras da tortuosa rede.
Por sorte, os pescadores se encontravam no lado do Bellona que dava para mar aberto, de modo que os franceses não teriam podido vê-los desde a costa ainda que tivessem desfrutado de maior visibilidade. Harding ordenou rapidamente largar o bote estivado na alheta e, depois de uma rápida negociação, comprou por dois guinéus a rede, a cavala e o boto. Içaram a bordo de boa vontade a pesca, e quase toda a cavala, fresca como somente pode sê-lo o pescado fresco, desapareceu depois do café da manhã, enquanto que os botos, curiosamente dobrados pelo açougueiro de bordo, foram servidos no almoço de Natal, cujo veredito superou com folga ao porco assado.
Tanto os botos como as cavalas se converteram em um distante e agradável recordação um mês mais tarde. Haviam transcorrido trinta dias sem que aparecessem os navios de apetrechos, sem correio nem notícias, além dos vagos rumores dos reveses sofridos pelo francês em Leipzig, e de suas mais convincentes recuperações em outros lugares mais afastados. Foi nesse ponto que, de acordo com o costume, o capitão do Bellona e o cirurgião de bordo se reuniram para desfrutar do café da manhã.
- Bom dia, Stephen - cumprimentou Jack. - Já esteve no convés?
- Não. Era tão desagradável o escasso ar que penetrava pelas escotilhas quando caminhava pela a coberta baixa que preferi fazer as rondas matinais antes de desjejuar, pois cheirava a fechado, um odor fétido e desagradável o que impera aí abaixo, apesar de minhas mangueiras de ventilação.
- E temo que nosso desjejum também será fétido, desagradável e muito escasso, nada a ver com as delícias do Blacks ou, mesmo, de Woolcombe. Mas pelo menos o café, ainda que aguado, é líquido e segue estando razoavelmente quente. Posso lhe servir uma xícara. - Uma vez feito isto, continuou falando: - Se não tivesse descido, teria se maravilhado com o céu da manhã. O barômetro sobe e desce amiúde, e não sei que conclusões tirar deste fenômeno. Tampouco o piloto. Gostaria que Yann seguisse a bordo, porque nestas águas é uma grande tranqüilidade dispor de um piloto que já pescou em toda a baía desde que era um crianção. Pode ser que me equivoque, mas me recorda muito àquela peculiar mistura de fortes ventos e bruma à qual nos enfrentamos e sofremos em frente à Patagônia.
Falaram da Patagônia, de suas incômodas costas cuja recordação tão somente se salvava pela descoberta de uma preguiça gigante, uma preguiça terrestre, invisível para os literatos, mas certamente esfolado por seus antecessores, seus primos analfabetos: Stephen possuía dezoito polegadas quadradas de sua pele, e parte de alguns nós dos dedos.
- Esta manhã me despertaram junto aos demais desocupados - disse Jack, - mas ao contrário que eles fiquei na maca um tempo, pensando no modo extraordinário e muito me temo que ingrato em que utilizei a palavra "probabilidade" quando conversamos faz algum tempo com respeito ao seu excelente plano. Talvez tenha esquecido, pelo menos é isso que espero, mas falei como se tivesse a certeza de obter a insígnia, insígnia que me havia prometido há anos, o que é um absurdo. Além de tudo, ainda tenho pela frente anos de serviço na Armada, e muitos outros capitães em minha frente na lista que deveriam morrer ou cair em desgraça, antes de que possa hospedar a esperança de ascender ao cargo de contra-almirante. Rezar para que estoure outra condenada guerra ou por uma estação cheia de doenças não parece servir tão rapidamente a estes propósitos como caberia desejar. De qualquer maneira, isso serviria para fazer mais provável a probabilidade se, tal como você teve a amabilidade de expor, eu me distinguisse entretanto no cumprimento do dever, até tal ponto que conseguisse enterrar alguns dos informes mal-educados que se apresentaram contra mim. Por isso lhe rogo que dê por retirado o uso que fiz da palavra "probabilidade", ainda que por outro lado me aferro, aferro-me com todas minhas forças, à reabilitação de meu nome. Você mesmo empregou a palavra "reabilitação", não foi?
- Foi. E acho recordar que não era totalmente apropiada.
- Não existe uma palavra mais bela em toda nossa língua, a que, conforme tenho entendido, além do mais rica que o hebreu, o caldeu ou o grego. Quanto agradeço ao bom sir Joseph. Que foi, Killick?
Preserved Killick entrou com um olhar tosco e triunfal em seu desagradável e geniozo rosto, e disse inclinando a cabeça em direção a Stephen:
- Tão somente queria perguntar a sua senhoria onde deve acabar indo este pacotinho verde. E que se lhe dá no mesmo que o leve ao ambulatório ou à casinha.
- Jesus, Ma... - Stephen mordeu a língua e continuou dizendo: - Eu o tinha esquecido por completo com o nervosismo da viagem e o estrondo das ondas. É uma libra Troy do melhor moca de Jackson. É vendido por peso Troy por ser uma substância preciosa, e faz bem porque efetivamente o é. Bom Killick, honesto Killick, peço que o moa tão rápido como seja humanamente possível, e que prepare depois uma cafeteira.
Nunca haviam chamado Killick de "honesto", de modo que não estava muito seguro se isso lhe agradava ou não. Saiu olhando com desconfiança de um lado e outro da cabine.
- Outro assunto no qual estive pensando enquanto seguia deitado esta manhã - disse Jack - é sua convicção de que esta guerra poderia encerrar-se logo. Com respeito à parte política, estou convencido de que sabe muito mais que eu; mas também existe o aspecto naval, e quando todos os outros fatores estão igualados é o peso do metal o que decide uma batalha no mar. Uma fragata armada com canhões de doze libras não pode vencer a um navio de linha.
- Tem havido excessões - disse Stephen sorrindo.
- Oh, não cria - disse Jack; então, ao captar a alusão (sua corveta de catorze canhões, a Sophie, aprisionara uma fragata de trinta e dois, a Cacafuego), acrescentou: - Bem, sim, há excessões, mas falando em termos gerais é verdade. Os franceses constroem barcos a grande velocidade em Veneza, a beira do Adriático, onde dispõem de muito mais madeira que nós agora, madeira que, além do mais, é melhor que a nossa; também em Génova, Toulon e Rochelle. Aqui em Brest se registra uma grande atividade, assim como ao longo da costa. Não posso dizer que seja um fato que nos superem em número, mas estou seguro de que será assim muito em breve.
- Querido amigo, acaba de dizer "quando todos os outros fatores estão igualados", mas sabe perfeitamente que não é esse o caso: nossa marinharia é muito melhor que a do francês.
- Em terra se dá por certo que somos a perfeição imaculada, e que nós, marinheiros de coração de carvalho, não podemos dar um fora. Mas os americanos nos demonstraram que não éramos tão infalíveis, e o demonstraram em uma briga justa. A respeito do francês, sempre construíram barcos melhores, barcos com os quais só podíamos sonhar: nossos setenta e quatro canhões e a maioria de nossas fragatas se serviram de barcos franceses como modelo. Sua querida Surprise foi construída em Havre. Certamente éramos melhores marinheiros no início destas guerras, quando suas absurdas idéias revolucionárias praticamente acabaram com todos os oficiais veteranos. Mas ainda que Napoleão seja, como você diz, um vilão guaguejante, pelo menos terminou com todas aquelas idéias perniciosas de democracia e republicanismo, e a estas alturas existe uma nova raça de oficiais da Armada francesa, cuja capacidade não deveríamos subestimar. O Almirantado não os subestima, eu lhe digo. De um tempo para cá, recebemos um número considerável de reforços... - chegado a esse ponto, chamaram Jack ao convés, e Stephen, depois de consumir o café, dirigiu-se à coberta inferior, onde um infeliz paciente aguardava o toque do bisturi deitado e atado com correias recobertas de couro, sonolento até certo ponto depois de ter-lhe fornecido trinta gotas de láudano, com a barriga lavada e barbeada e com o companheiro de trança, seu melhor amigo, a seu lado para se necessitava consolo. A operação consistia em uma cistostomia suprapúbica, intervenção que Stephen realizara em mais de uma ocasião, quase sempre com êxito. Estudou o caso com uma tranqüilidade espontânea que acalmou ao desgraçado e sudoroso paciente mais que o própio láudano, e muito mais que as palavras de seu amigo: "Tudo acabará muito rápido, companheiro, um par de cortes e pronto". Deu uma espiada apara o instrumental disposto pelo seu ajudante, tirou o abrigo, pegou o licor de vinho e disse:
- Bem, Bowden, pretendo verter um pouco de licor de vinho sobre sua barriga para evitar dor, ainda que ao princípio talvez sinta uma aguda fisgada. Não se mova, porque se o fizer pode ser que não seja capaz de proceder.
- Adiante, senhor, se é tão amável - disse Bowden. - Não cantarei.
De qualquer maneira, seu companheiro apertou as correias um pouco mais. Como não podia ser de outra maneira, a primeira incisão arrancou um grito afogado do paciente. Contudo, os gritos afogados não exercem o menor efeito nos cirurgiões, de modo que seguiram trabalhando com constância, passando-se as agulhas e fórceps até que se deu o último ponto, puxou-se, cortou-se o fio, e o trêmulo mas definitivamente aliviado paciente foi conduzido à enfermaria, aonde o levaram Graves, o assistente mais veterano (tinha trabalhado como açougueiro de cavalos) e açougueiro, que amiúde fazia as vezes de assistente também; seguidos pelo companheiro de Bowden, que embora estivesse ainda mais pálido que o paciente, tinha material para meses com que entreter aos companheiros de rancho.
- Diga-me, senhor - perguntou Macaulay, - por que utiliza licor de vinho? Possue alguma virtude em particular?
- O súbito arrepio da evaporação exerce um leve efeito: a consciência de que o cirurgião deseja evitar fazer estrago, provavelmente pese mais, mas em conjunto o utilizo empiricamente, nem mais nem menos. Duranton, que me ensinou no Hotel Dieu, sempre o empregava, sobretudo quando tinha que abrir o abdomem; e era um cirurgião muito competente e reconhecido. De modo que eu faço o mesmo, talvez como supersticiosa homenagem a meu mestre.
- Estou decidido a imitar ao senhor - disse Macaulay, - por mais que possa me custar.
Stephen secou suas mãos, pôs o abrigo, subiu pela escada e chegou ao castelo de popa.
- Bom dia, senhor - cumprimentou Harding. - Subiu para respirar um pouco de ar fresco?
- Sim, se tiver um pouco para mim.
- Oh, eu lhe asseguro que há suficiente para todos, mas está seguro de que não lhe convêm pôr uma casaca de lonita com um capuz? Senhor Wetherby, vá a minha cabine e traga uma capa para o doutor. Está pendurada no anteparo.
A capa chegou a tempo de proteger Stephen de uma incômoda rajada de chuva.
- Que tempo mais desagradável! - disse Harding. - Esperava que o senhor pudesse ver nossos reforços estendidos sobre o azul do mar. O Grampus está em algum lugar de por ali - disse ao mesmo tempo que inclinava a cabeça para algo cinzento no través de estibordo. - Creio que não anda longe. Está sob o comando de Faithorne, que não conhece a baía, de modo que não acredito que se afaste demais. - Normal, dado que o Bellona realizava a patrulha do sul, indo por Pointe du Raz e seus horríveis arrecifes, rochas, fluxos das ondas, coisas aberrantes para qualquer marinheiro acostumado a navegar pelo mar aberto.
- E o que é o Grampus?-perguntou Stephen.
- É um desgraçado barquinho de cinqüenta canhões - respondeu Harding. - Um de quarta classe, com cinqüenta canhões repartidos em dois conveses. É incapaz de lutar contra um setenta e quatro, um navio de linha, certamente, mas seus dois conveses bastam para manter na linha as fragatas. Por mais que conseguisse pegar a uma delas, o combate não lhe traria glória alguma, enquanto que se fosse vencido (tal como poderia suceder) por uma das fragatas pesadas americanas, ou mesmo por uma francesa, seria a ruína total. O vento rola para o norte - observou de passagem. - Depois temos outro setenta e quatro, o Scipion, apresado no combate de Strachan, e um par de fragatas, a Enrolas, creio, e a Penelope, tão bonita como seu nome indica. Às vezes aparece o Charlotte para ver como estamos, e não passa uma semana sem que deixem de aproximar-se um ou dois cúteres procedentes da esquadra que patrulha o alto mar. Costumávamos saudá-los aos gritos porque acreditávamos que trariam o correio, notícias, lonita para a roupa ou, pelo menos, algo que comer, mas nada de nada; só se aproximam para receber informes das embarcações que colocaram o focinho em Brest, e para recolher a papelada de costume: os boletins de enfermaria, quantidades de água disponível, pólvora, bala redonda... Cuidado, senhor. - A maré jogou uma onda espantosa que superou os parapeitos de estibordo, lançando Stephen ao piso e, apesar do abrigo de lonita, empapando-lhe a consciência, de modo que a água molhou até a última polegada de sua pele e toda a roupa que usava.
Harding o ajudou a se erguer e tentou inutilmente secar-lhe com um lenço, tudo isso sem deixar de desculpar-se. Parecia achar que o sucedido era culpa sua, opinião compartida, sem sombra alguma de dúvida, pelos dois veteranos marinheiros a quem Harding entregou Stephen: Joe Plaice e Amos Dray, companheiros de tripulação do doutor de muitos anos, e agora membros da guarda de popa, quem o conduziram até o interior da seca e cálida cabine, tudo isso sem deixar de voltar-se indignados para o imediato.
Killick trocou sua roupa e o secou, pois em sua opinião nada era mais perigoso que ter os pés molhados, e ao ver que não tardaria em se servir o almoço, urgiu-lhe (posto que praticamente o sucedido lhe convertia em seu paciente) a almoçar frugalmente e tomar somente dois copos de vinho, água, e nada de pudim, pois não era recomendável dado que podia agir contra o espírito vital de Stephen.
Jack entrou, molhado como Netuno, procedente do tope do maior, onde não só estivera observando com muita atenção o tempo, mas também toda a parte da baía que se deixava ver.
- Peço que me desculpe por chegar tão tarde - gritou desde o interior de sua cabine, enquanto se secava com muita força. - Não tardo nem um minuto. - E não o fez. Vestiu uma camisa limpa e seca, e alguns calções que encontrou nada mais ao estender o braço, mas a única casaca de que dispunha era a correspondente ao uniforme de contra-almirante, uniforme que tivera que usar por necessidade durante sua última missão, uma viagem à África Ocidental que fez na qualidade de comodoro e ao comando de uma esquadra, um comodoro de primeira classe, nada menos.
- Esta era a única casaca seca a que pude recorrer sem chegar ainda mais tarde - disse olhando com certa complacência a envergadura dos galões de ouro do punho da camisa. - Gostaria de pô-la de vez em quando, ainda que sabe Deus quando poderei voltar a fazê-lo em público.
Killick resmungou algo e deixou na mesa uma sopeira de prata.
- Este líquido é conhecido tecnicamente pelo nome de "sopa" - seguiu dizendo Jack, ao levantar a tampa. - Posso servir-lhe um pouco?
- É um prazer ver os restos dessas ervilhas tão velhas e secas que mesmo os vermes desprezam morrendo ao seu lado, de tal forma que agora podemos alimentar-nos tanto do caçador como da presa. E ainda resulta mais prazeroso ver servido tão infame beberagem nessa reluzente e esplêndida sopeira, presente dos agradecidos mercantes das Índias Ocidentais.
- Recordará que quisemos vender todo o serviço; por sorte os ourives o desdenharam. Agora me alegro muito, porque por mais pobre que seja, e ninguém é na realidade mais pobre que os marinheiros de um barco que carece de apetrechos, as poucas migalhas que tenha as comerás com mais gosto em um precioso serviço de prata como este.
Depois serviu-se de um autenticamente vergonhoso pedaço de carne em salmoura que havia feito a viagem de ida e volta à América do Norte, de modo que à medida que foram transcorrendo os anos havia se tornado mais córneo e adquirira o sabor da madeira. Jack o comeu sem fazer ascos, pois estava acostumado a comer coisas muito piores, e entre pedaço e pedaço disse:
- Durante o desjejum lhe falei da marinharia da Armada francesa, e estava a ponto de dar um magnífico exemplo quando me interromperam. Eu lhe dizia que tinhamos recebido reforços, certo? - Stephen consentiu. - Bem, pois uma de nossas novas fragatas é a Eurotas, um exemplo esplêndido como nunca se viu. Contudo, me atreveria a dizer que já terá ouvido falar em Londres da Eurotas.
Stephen negou com a cabeça.
- Só o que sei do Eurotas é que se trata de um arroio de Esparta, e Esparta não foi tema de nossa conversa em Londres.
- Bem, então no início do ano partiram duas fragatas de Brest: separaram-se em algum lugar de Cabo Verde, depois de realizar um cruzeiro muito exitoso, e quando se dirigiam ao porto, uma delas, a Clorinde, que armava vinte e oito canhões de dezoito libras, duas de oito e catorze caronadas de vinte e quatro, encontrou-se com a Eurotas, ao comando do capitão John Phillimore, uma fragata de trinta e oito canhões de vinte e quatro libras, embarcação fabulosa, cujo peso total por descarga é de seiscentas uma libras, contra as quatrocentas sessenta e três da Clorinde. Em tamanho e em dotação vinham a ser o mesmo... A Eurotas avistou a Clorinde primeiro às duas em ponto da tarde, a 47° 40' N, sendo o vento sudoeste sul, quando a Clorinde seguia de bolina rumo à França, amurada a estibordo. A Eurotas de imediato empreendeu a caça, pois não tinha dúvidas com respeito à nacionalidade da Clorinde. Meia hora depois, a Clorinde orçou disposta a fugir, cobrindo-se de lona. Pelas quatro o vento havia rolado para o noroeste e, apesar de perder sua força, a Eurotas ganhava terreno. Quando a Clorinde se encontrava a pouco menos de quatro milhas pela frente, diminuiu vela de repente e fez como se pretendesse cruzar a proa inimiga, manobra que aproximou os barcos, e às quatro e quarenta e cinco a Eurotas orçou - Jack moveu dois pedaços de bolacha com os quais representava as manobras - e passou pela popa da Clorinde para abrir fogo com a bateria de estibordo. Então, ao orçar sob a alheta do inimigo, o francês disparou tão rápido e bem que quando a Eurotas alcançou a amura de bombordo da Clorinde havia perdido o pau de mezena. Caiu sobre a alheta de estibordo, e mais ou menos ao mesmo tempo a Clorinde perdeu o mastaréu de velacho. Tudo isto não lhe impediu de andar mais que a outra fragata, e tentou depois cruzar as amuras da Eurotas e varrer seu convés de proa a popa. - Stephen sacudiu a cabeça: vira os resultados de toda uma descarga atravessar o comprimento de uma convés atestado de gente. - Porém, contudo, Phillimore ordenou meter leme a bombordo, ao vento, com intenção de partir para a abordagem, coisa que impossibilitaram os restos do pau de mezena. Só o que pôde fazer foi abrir fogo com a bateria de bombordo e ofender a popa inimiga. A tudo isto, encontraram-se de novo lado a lado, e assim seguiram lutando até as seis e vinte, momento em que a Eurotas perdeu o pau maior (pode imaginara, Stephen, um mastro de dois pés e três polegadas de diâmetro?), que por sorte caiu a estibordo, seu lado livre de inimigo, de modo que não houve motivos para cessar o fogo. Então caiu o pau de mezena da Clorinde, e às seis e cinqüenta, quando os barcos seguiam mais ou menos na mesma posição relativa, o traquete da Eurotas caiu pela amura de estibordo, e aproximadamente um minuto mais tarde a Clorinde perdeu também o pau maior. A Eurotas, desaparelhada, era ingovernável. A Clorinde praticamente também, ainda que pouco depois das sete, quando se encontrava pela amura de bombordo da Eurotas, conseguiu largar os restos do traquete (recorda que disse que havia perdido o mastaréu de velacho, não o mastro macho) e uma vela de estai e se afastou para o sudeste, longe do alcance dos canhões inimigos. O capitão Phillimore caiu ferido ao iniciar-se o combate (desmaiara três vezes devido à perda de sangue) e finalmente o levaram abaixo. Às cinco da manhã seguinte, os seus, às ordens do imediato, tinham conseguido envergar um mastaréu do maior de respeito para que fizesse as vezes de pau maior; às seis e quinze fizeram o mesmo com um mastaréu de velacho, que foi a suprir ao traquete e, por último, uma percha para a mezena. A Clorinde havia se distanciado seis milhas. Ao meio-dia, largadas traquete, gáveas, velas de estai e carangueja, todas elas de respeito, a Eurotas navegava a seis nós e meio, e obviamente andava mais que o inimigo. E quem apareceu então? A Dryad, como não, uma fragata de trinta e seis canhões de dezoito libras à qual conhece de sobra, e a Achates, uma corveta de catorze canhões. Mas não me referia a isso, nem a como se repartiu o dinheiro do butim, a recompensa por escravo ou prisioneiro, nem o dinheiro pelo número de canhões capturados, não, me refiro a que agora, nete momento, um francês, inferior em peso de metal e em qualidades marinheiras, está tão bem governado, tão bem comandado, que pode lutar como uma dezena de buldogues e reduzir a uma de nossas melhores fragatas pesadas a um destroço desaparelhado. É por isso que me sinto inquieto quando me dizem que os franceses constroem a esse ritmo. Apesar da pobre Eurotas, ainda tenho a confiança necessária para ofender a qualquer navio francês de setenta e quatro canhões com o qual tenhamos a sorte de cruzar-nos, mas lhe asseguro que não me enfrentaria a dois navios de linha franceses, coisa que poderia suceder se nos vissemos superados em número. Com relação aos soldados... - Calou, levantou a cabeça em um gesto de concentração, como o de um cachorro caçador que fareja a sua presa. - Ouviu algo? - perguntou.
Ambos permaneceram sentados, concentrados, tentando isolar seu ouvido das inumeráveis vozes do barco e do mar.
- Se não se trata de um trovão distante, acha que poderia ser o rumor dos canhões? - perguntou Stephen. Jack assentiu, correu ao convés, enviou ao segundo tenente à bodega (o melhor lugar para perceber o tremor de uma descarga a muita distância) e, junto a Harding e o piloto de derrota, seguiu escutando com atenção.
- Ou o Ramillies e o Aboukir se enfrentam às baterias de Saint Matthews, ou os franceses aproveitaram o vento do nordeste para sair de porto - disse Jack quando o segundo tenente se reuniu com eles.
- Acho que se trata de um combate naval, senhor - disse o jovem, ofegando devido à pressa e à emoção. - Ouvi claramente uma descarga e o bombardeio de resposta, não o fogo irregular própio de uma bateria.
- Obrigado, senhor Somers - disse Jack, que era da mesma opinião. - Senhor Harding, um canhonaço a sotavento, se é tão amável; e quando a Ringle se encontre a distância de buzina, diga ao senhor Reade que faça tudo o que possa para aproximar-se rapidamente ao Ramillies e que lhe informe de que chegaremos assim que possível. O Grampus se unirá a nós e observará nossas evoluções.
De regresso à cabine dedicou um olhar acusador para a cafeteira. Mas Killick, durante os escassos segundos que podia furtar ao seu hobby de escutar às escondidas perto da cabine do piloto, observara de sua parte os movimentos do doutor, tão escrupulosos como de costume quando concerniam ao café e a certos confeitos, de modo que já estava preparando outra cafeteira.
- Tal como esperava - disse Jack com grande satisfação, - os franceses aproveitaram este bendito vento do nordeste para tentar sair do porto, e nós... - E levantou a voz para impor-se à do contramestre, que gritava acima, no convés:
- Toda a gente ao convés! Gente ao convés! - Voz acompanhada do conseguinte estrondo de pisadas, mais ordens, e a miríade de sons que fazia um navio de linha quando, navegando a um tempo com traquete e gáveas rizadas, de repente se via obrigado a mudar o rumo de sul para oés-noroeste, e a cobrir-se de toda a lona possível.
-... De modo que partiremos como um raio para unir-nos ao Ramillies e ao Aboukir, que ao que parece são os barcos que se enfrentam a eles. Levaremos algum tempo, pois teremos que navegar a orçar, mas tenho esperanças de que o vento role ao oeste. Quando tenha terminado esta estupenda xícara de café e haja tirado a casaca boa, irei ao castelo de popa para ver se empurro o barco com minha força de vontade. E não deixarei de cruzar os dedos todo o tempo que me seja possível fazê-lo - acrescentou para si.
Claro que inclusive poderia ter-se submetido a maiores provas de superstição, porque tão temível baía, repleta de rochas, quer fossem isoladas ou parte dos arrecifes, praticamente invisíveis devido às cortinas de água e inclusive à bruma, requeria de uma mente capaz de reter centenas de rumos e trocar uma carta náutica interna conforme a velocidade do barco e as direções, sem esquecer a corrente imperante e o todo-poderoso fluxo e refluxo da maré. Por sorte Jack possuía essa mente, se não em toda sua extensão, pelo menos em bom grau. Além do mais, estivera navegando para cima e para baixo por esse pedaço do mar, patrulhando e sondando durante o que parecia uma eternidade e, sobretudo, entendia-se bem (talvez a palavra "amizade" fosse mais adequada para descrevê-lo) com o Bellona e sua dotação.
No navio de apetrechos, Reade possuía quase um conhecimento igualmente íntimo da baía, pois havia acompanhado ao seu capitão na maior parte dos deslocamentos e sondagens; dado que a Ringle podia aproar muito mais ao olho do vento não tardou em perder-se de vista, e inclusive no Bellona foram incapazes de avistá-la quando se aclarou o dia. Contudo, o desgraçado Grampus era um recém chegado a Brest, de modo que se manteve alarmantemente perto da popa do Bellona, onde Jack posicionou a um marinheiro armado com buzina, de modo que pudesse advertir ao Grampus quando devia mudar de bordo, exercício muito freqüente nessas águas, talvez menos que o habitual à medida que o vento continuou rolando para o oeste.
De vez em quando, Stephen, abrigado com a casaca de lonita, aproximava-se do costado de sotavento do castelo de popa, onde sua presença não atrapalhava a ninguém. O barco parecia estar navegando a grande velocidade através de um pesadelo onde a única iluminação partia das lanternas de combate. O mar, a espuma, os aguaceiros e a bruma investiam com tal brio e de um modo tão aleatório que dava a sensação de estar atravessando um dos mais ruidosos e desconhecidos círculos do inferno. Era estupendo e reconfortante contemplar os rostos molhados, alegres e despreocupados que lhe rodeavam, perfeitamente dispostos a arrebatar as escotas a popa e saltar à exárcia, para logo desaparecer ao som do apito do contramestre ou ao timbre de voz de uma ordem dada. Via-os competentes, como se se sentissem em casa, expectantes, ansiosos.
O espaço não existia, perdera todas as fronteiras, mas o tempo seguia com eles, medido pelas badaladas. E ao dar as seis badaladas da segunda guarda, Stephen abriu passagem com muito tanto de coberta em coberta (o tamanho daquele barco não deixava de surpreender-lhe) até chegar à enfermaria, a qual, comparativamente, era um modesto retiro de paz; tanto era assim que ao entrar encontrou seu paciente de cistostomia dormindo, assim como aos demais pacientes e acompanhantes. Sentou-se um pouco para escutar a respiração constante do paciente recém operado, e depois, consciente de uma mudança no movimento do Bellona, regressou ao castelo de popa com a sensação de que naquela corrida desenfreada através da escuridão sua presença (ainda que inútil) era necessária, ainda que somente fosse por uma questão de amabilidade.
- Ah, Stephen, aí está - disse Jack. - Acabamos de alcançar o extremo oeste de Black Rocks e rumamos para Goulet. Ouviu os canhonaços? Encontram-se muito a leste de Saint Matthews, nessa zona. Santo Deus, grande tempo faz! Não é noite nem para homem nem para besta, tal como observou o Centauro, ah, ah, ah!
Com a tendência que mostrava o vento para rolar para o oeste, o Bellona o tinha nesse momento no lugar onde mais proveito podia sacar seu aparelho, e ao dar as quatro badaladas da guarda da alvorada o guarda-marinha encarregado da barquilha informou:
- Cinco nós e uma braça, senhor, se é tão amável.
Apareceu Killick, protegendo com seu corpo uma xícara de café, e quando Jack se aproximou da popa para comparti-la com Stephen, inclinou a cabeça para um travesso redemoinho de água branca que distava um quarto de milha pelo través de estibordo.
- É a Basse Royale - disse, - armadilha mortal para um barco de nosso calado em um mar fundo, quando mingua a maré. E por ali - disse assinalando para bombordo - veria Basse Large se estivesse na popa, que é pior ainda, e por muito, ainda que mais visível. Senhor Whewell - disse alçando a voz, - acho que poderíamos desriçar o velacho.
A essas alturas, a mistura entre nuvens e bruma limpou um pouco; foi justo antes de que aparecessem os primeiros indícios do amanhecer, ao leste, e a cinzenta superfície inferior se tornasse carmesim, manchada a proa pelo reflexo do fogo dos canhões.
- Sim, estão justo no Goulet, junto a Basse Beuzec - disse Jack. - Por sorte, a bateria de Saint Matthews não vê nada de nada desde aí acima, ainda que teremos que cruzar pela frente de seus canhões.
- Vela pela amura de estibordo - gritou um vigia, que acrescentou em continuação a modo de comentário: - Acredito que é o navio de apetrechos.
- Ei do barco! - gritou alguém desde a direção destacada. - Que barco é?
- Bellona, senhor Reade - respondeu Jack. - Suba a bordo. - Dirigiu a voz para proa e ordenou: -preparem um cabo aí.
- Com cuidado, com cuidado - ordenou por sua vez Harding, preocupado com a pintura.
- Em que posição se encontram? - perguntou Jack a Reade, quando este apareceu no convés.
- São dois setenta e quatro franceses, senhor - respondeu Reade, - e castigaram o Aboukir e o Ramillies. O Aboukir tocou o fundo perto de Basse Beuzec, e o francês o teria abordado, mas a Naiad apareceu de repente e não deixou de importuná-lo, enquanto que o Ramillies ofendia a um deles até tal ponto que se produziu uma explosão na coxia do barco inimigo.
- Excelente. Em que posição se encontra o Aboukir? - Reade respondeu. - Bem, em tal caso volte de imediato e faça o possível por largar um cabo e atá-lo rumo lés-nordeste. Com um pouco de sorte, a maré o levantará em... - consultou a hora em seu relógio à luz da bitácula - vinte minutos. Condestável - chamou, e após uma breve e formal troca de palavras com o senhor Meares, dirigiu-se ao imediato: - Senhor Harding, preparativos de combate. Stephen - acrescentou em um aparte, sorridente ao falar: - vá para baixo agora mesmo, ao resguardo da chuva.
O cirurgião do Bellona e seus ajudantes permaneceram sentados na enfermaria da coberta dos alojamentos, atentos a qualquer ruído. No centro se encontravam as arcas grandes dos guardas-marinhas, atadas entre si à luz da lanterna, cobertas primeiro com lonita, depois com lona e, finalmente, com um lençol branco que os mantinha mais unidos se cabe. O instrumental se via limpo e reluzente, muito afiado para se fosse necessário cortar, todo o conjunto disposto na ordem habitual, com as serras a bombordo.
Prestaram atenção, e inclusive ali abaixo podia-se ouvir o rumor dos setenta e quatro franceses, do Ramillies e da Naiad, que fazia tremer as garrafinhas. Pouco depois, o maltratado Aboukir, levantado pela maré, pôde dirigir seus canhões e devolver o fogo inimigo com toda a fúria própia de todo barco que foi castigado sem capacidade de responder.
Mas sua própia batalha, a empreendida pelas descargas do Bellona que tão amiúde ouviram durante os exercícios dos canhões, não começou, e a tensa expectativa estava a ponto de transformar-se em descontentamento quando, com uma claridade totalmente distinta, próxima, abriram fogo seus canhões de caça, seguidos pelo canhão armado mais a proa da bateria de estibordo, canhões de voz rouca, alta e clara que disparavam um depois do outro, disparos de longa distância, cuidadosamente apontados.
- Já começou! - exclamou Smith, que não havia participado em nenhum combate; a modo de resposta, uma inofensiva bala redonda alcançou o costado do Bellona. Smith olhou para seus colegas com entusiasmo desmedido.
- O que foi, senhor Wetherby? - perguntou Stephen, ao ver entrar ao garoto.
- O capitão deseja que lhe transmita seus cumprimentos, senhor, e que lhe comunique que o cirurgião do Aboukir lhe agradeceria muito que lhe desse uma mão com as baixas. Encostaram um cúter ao costado. Acompanhe-me se é tão amável.
- Devo entender que não haverá mais combate? - perguntou Stephen, enquanto enchia uma cesta com o instrumental, vendas, torniquetes, láudano, tampões e ripas.
- Temo que de momento, não, senhor. Os franceses estão fugindo.
Teria sido uma temeridade que só caberia qualificar de criminosa se os franceses tivessem feito outra coisa, quando se enfrentavam ao ressuscitado Aboukir, a um intacto Ramillies, a uma fragata de trinta e oito canhões e, agora, a dois navios de duas pontes descansados e incólumes, sobretudo porque um dos navios de linha franceses havia perdido sete portalós e, como consequência da explosão, muitos dos canhões próximos haviam desmontado. Apesar de tudo, era uma notícia decepcionante.
- E isso é um combate? - perguntou o senhor Meares, dirigindo-se a seus companheiros. - Eu diria que se parece mais a um bêbado em um beco sem saída. Um bêbadozinho em um beco sem saída, isso é. Isso depois de tanto correr e tantos preparativos, com todos os marinheiros em pé dia e noite, depois do transporte dos cartuchos sem ao menos algo quente para levar-se ao estômago, depois de levantar os anteparos uma e outra vez, e passando areia nas cobertas, para não mencionar a água... além disso, pelo amor de Deus, por que não molhar os conveses com a que está caindo?
- Foi decepcionante - disse Jack quando Stephen se reuniu com ele no que teve que passar um café da manhã. - Mas não houve nada o que fazer...
- Por aqui, senhor, se é tão amável - disse Killick, com um balde de água quente, sabão, toalha e um traje limpo. Conduziu Stephen até a câmara, deixando Jack com a palavra na boca.
- O senhor sabe muito bem que o capitão não suporta sangue, e que o senhor está empapado, muito empapado, da cabeça aos pés. Isso para não mencionar o que o pobre Grimble e este servidor temos que fazer para tirar as pegadas que o senhor vai deixando no tapete. Agora tire a roupa, senhor, a camisa, os calções, as meias, e largue tudo nesse balde daí. Eu manterei quente o café, e sua senhoria não se importará de esperar-lhe um pouco.
Nem o capitão Aubrey nem o doutor Maturin eram homens extraordinariamente pacientes, mas era tal a convicção de Killick, a autoridade de sua força moral, que um esperou ao ansiado café sem resmungar uma só queixa, enquanto que o outro não só se lavou em claro exemplo de obediência, como que, também, estaria disposto a mostrar-lhe as mãos, dorso e palma, se lhe tivesse pedido.
- Sim, foi decepcionante - disse Jack. - Mas não houve nada o que pudéssemos fazer. Os franceses se viram em inferioridade numérica, de modo que se cobriram de toda a lona possível quando calibraram nossas forças e quando o Aboukir recuperou o governo; lamentavelmente não tinham perdido mais que um mastaréu de mezena entre os dois durante o combate, e isso não conta muito, dado que tinham o vento a seu favor.
- E não pôde persegui-los, tendo a esse mesmo vento a seu favor?
- Sim, claro que poderíamos tê-los perseguido, e disparo a disparo, guinando de vez em quando para disparar uma descarga, talvez poderíamos ter derrubado alguns paus, e inclusive é possível que tivéssemos conseguido aprisioná-los justo no Goulet, antes de que nos alcançassem seus amigos fundeados na baía. Porém, que modo lhe ocorre para fazê-lo com vento do oeste e um fluxo de ondas extraordinário, enquanto a bruma ia limpando ao sair do sol, o que teria facilitado enormemente a trabalho das baterias costeiras?
Ouviram um bote ao lado responder "Ramillies" ao cumprimento do sentinela, e Jack se dirigiu apressadamente ao convés para receber o capitão Fanshawe.
- Venha tomar uma xícara de café - disse, e o conduziu à cabine. - Acho que já conhece ao doutor Maturin.
- Certamente, certamente. Faz muito tempo que nos conhecemos. Como se encontra, senhor? De modo que têm café de verdade? Nós nos vimos obrigados a recorrer ao grão de cevada, torrado e moído, já faz semanas. Quanto não daria por um só gole do autêntico Moka árabe? Céus, Jack, que alegria senti ao vê-lo, a você e ao pobre Grampus, ao vê-los surgir das trevas. Tinha a horrível sensação de que se aproximavam mais franceses para auxiliar aos seus, um encontro, e não estávamos em condições para dar-lhes as boas-vindas, tendo em conta a posição do Aboukir... porém, contudo, a sorte mudou, ah, ah, ah!. Que café. Mudou tão a nosso favor se podia desejar.
- Sim que mudaram, e o doutor está convencido de que poderíamos tê-los capturado.
- Se tivéssemos algumas embarcações daquelas que dizem que navegam apesar dos obstáculos, talvez pudessemos ter conseguido, sim - disse Fanshawe, dedicando um olhar de afeto para Stephen. - Mas como não somos mais que simples navios de linha, acho que teremos que voltar a nosso esgotador e chato bloqueio, e enviar uma nota ao almirante para informar-lhe de que provavelmente o Aboukir tenha que hospedar-se na baía Cawsand.
E assim o fizeram. Os carpinteiros e veleiros fizeram o possível para deixar o Aboukir em condições, ainda que ao leste ouviram o distante mas inconfundível rumor do fogo dos canhões, arrastado pelo entabulado vento do oeste.
- Não - disse Fanshawe, - temos ordens de patrulhar a baía, o que significa impedir que o inimigo possa sair ou entrar e, sobretudo, evitar que reunam suas forças. Se quiser despacharei a Naiad e o seu navio de apetrechos para ver se algum deles pode encontrar o navio insígnia para solicitar ordens, mas isso é tudo o que estou disposto a fazer. Nosso dever, tal como eu o vejo, consiste em percorrer de uma ponta a outra esta porca baía, até que nos ordenem deixar de fazê-lo.
- Sempre foi um maldito cabeçudo, Billy - disse Jack, comentário que fez de maneira totalmente extra-oficial (encontravam-se sozinhos na cabine), e que foi recebido como tal. De fato, o capitão Aubrey e os demais continuaram indo de uma ponta a outra pela porca baía, bloqueando o porto de Brest, cada vez mais famintos. De um lado para o outro até pouco antes das duas badaladas da guarda de doze a quatro da tarde da sexta-feira, navegando com vento de gáveas do sudoeste, tempo limpo e uma suave marejada procedente do sul, momento em que os vigias do tope do Bellona, e os outros vigias pertencentes à esquadra que patrulhava a costa, informaram de uma vela a quatro quartas pela amura de bombordo. Como se dirigiam a Saint Matthews, a vela procedia obviamente de Ouessant, e navegava rápido, com o vento a favor, os detalhes com respeito à sua identidade fluíram a intervalos curtos.
- Convés, é um navio de três pontes, senhor.
- Convés, um bergantim e um barco seguem sua esteira; um barco de apetrechos, acho.
- Convés, é o Charlotte, senhor.
Muito antes de ouvir aquele nome capaz de despertar um temor reverencial, correspondente a um barco cuja presença quase não esperavam, os serventes dos capitães começaram a emperiquitar o melhor uniforme de seu patrão, para adiantar-se ao quase inevitável sinal que chamaria aos capitães a bordo do navio insígnia. Os primeiros tenentes se apressaram a olhar seus uniformes em busca da menor imperfeição que pudesse diminuir crédito ao barco. Desgraçadamente, não houve tempo para enegrecer as vergas, mas pelo menos tudo aquilo que devia estar esticado se entesou com aparelhos, aparelhos de gávea e mezena, ou, como outros as chamavam, palanquins, e os guardas-marinhas foram enviados coberta abaixo para assear-se, enquanto se ordenava a todo mundo escovar o cabelo, trocar a camisa e pôr luvas.
A bordo do Bellona se realizaram todas as medidas urgentes, e nesse momento se dedicavam já a detalhes como branquear os calafates, quando com grande preocupação viram que o navio insígnia se punha em pairo, para seguidamente largar a falua. O capitão Fanshawe era o capitão presente de maior antiguidade e, em seu barco, lógica vítima do almirante, redobrou-se a enlouquecedora atividade para ter tudo pontro, pelo que seus marinheiros correram de um lado para o outro como formigas em um formigueiro ao qual tivessem dado a volta. Mas se equivocavam. Muito cedo ficou óbvio que a falua se dirigia ao Bellona, cujos oficiais do real corpo de infantaria da marinha realizavam as mais rápidas inspeções em toda sua história dos cento e vinte homens que formavam o complemento, e terminaram somente quando a falua, em resposta à supérflua pergunta de quem vai, respondeu "navio insígnia" e engatou o croque.
Lorde Stranraer subiu agilmente ao convés, seguido por seu tenente de bandeira e um homem muito mais desajeitado, cuja casaca azul carecia de galões dourados; era o cirurgião do Queen Charlotte, o senhor Sherman. O almirante cumprimentou ao castelo de popa e respondeu, levando-se um par de dedos ao chapéu, ao apresentar de armas dos infantes da marinha e ao cumprimento de Jack.
- Capitão Aubrey espero que o senhor e todos os demais capitães da esquadra que patrulha a costa queiram jantar comigo esta noite. De momento, o senhor Sherman e eu queríamos ver o doutor Maturin.
- Certamente, senhor - disse Jack. - Se tiver a amabilidade de acompanhar-me à minha cabine, encarregarei-me de avisá-lo para que se reúna com o senhor. Enquanto isso, permitiria-me oferecer-lhe uma taça de vinho Madeira?
Jack, Harding e todos aqueles que sentiam orgulho pela beleza do barco e por seu aspecto marinheiro haviam feito praticamente tudo o humanamente possível para impedir que um espectador inocente, por mais estrito que fosse, pudesse encontrar uma só mácula a bordo. Sabiam que o almirante não podia afirmar com honestidade que as vergas não se encontravam perfeitamente perpendiculares ao casco, nem queixar-se de que as galinhas haviam abandonado seu quintal para vagabundear pelo convés (uma falta nada inusual, quando não havia outra coisa da qual poder queixar-se), simplesmente porque não tinha uma só ave que tivesse sobrevivido à escassez de víveres. Contudo, esqueceram de Stephen, e é que a ninguém se lhe havia ocorrido lavar, escovar ou desempoar ao doutor Maturin, de modo que apareceu no convés em seu aspecto habitual, sem se barbear mas asseado, se tal palavra pode se empregar depois de realizar a gordurenta e hedionda tarefa de dissecar as partes incomestíveis de um de tantos botos.
Mas nada disso perturbou nem um pouco ao almirante, por mais estrito que se mostrasse a respeito à precisão do uniforme.
- Meu querido doutor Maturin - exclamou, saltando, saltando da cadeira e dirigindo-se para ele com a mão estendida. - Não podia deixar passar a ocasião de aproximar-me para expressar-lhe quanto aprecio seu... seu acerto à hora de tratar meu mal-estar. Sabia que seu ungüento responderia, mas não achei possível que o fizesse tão prodigiosamente bem. Nesta mesma manhã subi ao tope, senhor, e o fiz correndo! Tinha a esperança de poder consultar-lhe, mas o senhor Sherman, aqui presente, assegurou que não serviria de nada, que seria impossível, que tinha direito sobre mim, e que nenhum homem de ciência tão eminente como o senhor aceitaria examinar a um de seus pacientes sem estar presente.
- Certamente que não. O senhor Sherman estava certo - disse Stephen. - Em medicina também temos nossas normas, talvez tão estritas como as que regem a Armada. Algumas são incompreensíveis para nossos pacientes, que, empurrados por sua imaginação licenciosa, supõem que podem, movidos pelo capricho, pôr seu caso em mãos de um médico, depois oferecer-se a um cirurgião e, finalmente, a um curandeiro, para depois voltar ao primeiro destes; alguns inclusive se ofendem quando em sua presença recorremos ao latim para discutir entre nós seu caso. O latim tem suas vantagens, como por exemplo uma extraordinária agudeza de definição e, dada a natureza desta língua, uma concisão admirável. Mas se meu colega se mostra de acordo, encantar-me-ia que pudéssemos examinar o senhor.
Inclinações e mais inclinações de cabeça, às quais seguiu a retirada do capitão Aubrey. O exame foi consciencioso, e ainda que Killick, que escutava atrás da porta, tivesse uma opinião contrária que, contudo, era do mais satisfatória ("má coisa quando começam a falar em aramáico, companheiro; já pode chamar o coveiro, aqui jaz Arthur Grimble, que morreu de murchez em Brest, rumo oeste norte dez léguas, 1814"). O único conselho de Stephen consistiu em observar uma precaução extrema com a Digitalis, cuja dose convinha reduzir paulatinamente, e sobretudo não devia informar-se ao paciente do nome da droga, e menos ainda que lhe permitisse ter acesso à mesma.
- Houve mais homens, sobretudo marinheiros, que morreram devido à automedicação, que os que pereceram nas mãos do inimigo - observou antes de voltar-se para o almirante: - Milorde, o senhor é o mais gratificante dos pacientes. As anomalias que observamos em nosso exame anterior praticamente desapareceram, e se o senhor quisesse subir ao tope cada manhã, meia hora depois de tomar um café da manhã leve, e seguir os conselhos do doutor Sherman, não vejo nenhum motivo para que rivalize com Matusalém, e sobreviva como almirante da frota a oficiais que nem sequer nasceram ainda.
- Ah, ah, ah! Como o senhor fala bem, doutor - disse o almirante. - Eu lhe estou infinitamente agradecido... A ambos - E se inclinou ante Sherman, - por seus conselhos e cuidados. - Vestiu-se e, com certa timidez, pediu a Stephen que comparecesse ao jantar a bordo do Charlotte, junto com Aubrey e o restante dos capitães.
A janta de lorde Stranraer foi esplêndida no que se refere à comida, tal como todos esperavam da despensa de um navio insígnia. Mas para os capitães da esquadra que patrulhava a costa, faltos de tudo já fazia tempo, foi muito superior às expectativas que tinham criado, e comeram com deleite e gula desde o primeiro até o último prato. Quase não houve conversa, além do: "Sirva-me outra coxa, se é tão amável", ou "Bem, talvez um par de rodelas mais", ou "Molestar-lhe-ia muito passar-me a cesta do pão?".
Contudo, o capitão da frota, sentado junto a Stephen em um extremo da mesa, em um tom de voz muito discreto o manteve entretido e lhe falou com todo detalhe de seu processo digestivo, seu complicadíssimo e prologando processo digestivo, além de citar-lhe um longo catálogo das substâncias que não podia comer; ante a natureza destas descrições, o rosto habitualmente pálido e fleumático de Stephen adquiriu um tom rosáceo e um olhar quase entusiasmado. Estava lhe falando dos efeitos do cardamomo em todas suas variantes, quando reparou em que se havia feito um silêncio absoluto na mesa e que o almirante, sentado na cabeceira, parecia dispor-se a falar a seus comensais.
- Cavalheiros - disse, - antes de que brindemos por sua majestade, acho que deveria fazer-lhes partícipes de umas notícias que, possivelmente, nos empurrarão a brindar com maior fervor. Mas antes, pois os ventos contrários e o temporal lhes mantiveram isolados do mundo durante tanto tempo (recordem que temos motivos fundados para chamar de "Sibéria" conforme os destinos nestas águas), permita-me fazer-lhes um breve resumo dos recentes acontecimentos ocorridos no continente. Talvez não sejam muito completos, e talvez se deva a que muitos dos oficiais que servem em terra nem sempre compreendem a fome que todo marinheiro sente pelas notícias. Mas em geral as considero bastante confiáveis. Eu me atreveria a dizer que todos os senhores são conscientes de que Napoleão sofreu um duro revés ante Leipzig faz alguns meses, e que, mesmo assim, conseguiu derrotar os alemães e austríacos uma e outra vez, coisa que fazia inclusive uma ou duas semanas atrás. Contudo, esse foi seu maior erro. Suas forças se encontram longe, ao nordeste, tem o flanco esquerdo descoberto, e os aliados marcham sobre Paris, que praticamente carece de defesas. Wellington, como sabem, tomou Toulouse. A estas alturas cruzou o Adour e se dirige para o norte a marcha forçada. Neste momento, reúne-se uma espécie de congresso em Châtillon; mas dado que se ofereceram anteriormente em três ocasiões a Napoleão algumas condições favoráveis que rechaçou de plano, nada obterá deste congresso, dado que carece de um exército organizado. Os barcos que partiram de Brest, assim como os que encontramos a oeste de Ouessant, tinham intenção de reunir-se, mas nunca o conseguiram. O valente capitão Fanshawe, aqui sentado, e Beveridge, frustraram seus planos frente à costa. - Muitos dos oficiais presentes deram discretas palmadas sobre a mesa, e outros levantaram as taças, inclinando-se ante Fanshawe e Beveridge. O almirante continuou: - Geralmente se considera de mau agouro predizer um fato afortunado por menor importância que possa ter, mas nesta ocasião me atreverei a predizer um final definitivo no congresso de Châtillon, a queda de Bonaparte, o final desta guerra e nosso regresso à bela Inglaterra. Cavalheiros, pelo rei.
Parte do discurso chegou aos barcos da esquadra que patrulhava a costa, ainda que não causou o menor efeito. O final da guerra era algo que se profetizara muito amiúde, e já que Killick (de pé atrás da cadeira de Jack) tivera sérias dificuldades para entender as palavras de lorde Stranraer, toda a coberta inferior entendeu a princípio que haveria um novo rei na França chamado "Châtillon", ou algo assim, provavelmente aparentado com Wellington. De qualquer maneira, toda a atenção pública e privada se voltou para o navio de apetrechos, atestado de comida, bebida, lonita, vergas, cabos, lona, tudo aquilo do que careceram até o momento; além disso, o barco transportava mais correio do que podiam ler. Durante as guardas de quartilho se trabalhou pouco no barco e, assim que se estivaram os ansiados apetrechos, formaram-se panelinhas ao redor daqueles marinheiros que sabiam ler e escrever. Enquanto seus amigos mantinham uma distância respeitosa, um depois do outro prestaram atenção às palavras lidas em voz alta.
Pela primeira vez, o correio não trouxe nenhuma má notícia ao Bellona, e tendo em conta que sua dotação estava composta por mais de seiscentos homens e garotos, quase todos eles com parentes próximos de avançada idade, além de tão comprida falta de correio, isso era algo fora do comum.
As mornas notícias domésticas procedentes de Woolcombe careciam, por sorte, de fatos, ainda que a galinhazinha de Bantan de Sophie tivera um punhado de diminutos pintinhos. Diana e Clarissa se acomodavam em sua ala da casa, enchiam a sala de jantar com móveis de nogueira do século passado adquiridos em leilões e às vezes inclusive chegaram a viajar cinqüenta milhas para obter um móvel precioso. Havia também o rumor de que o capitão Griffiths pretendia vender suas terras e trasladar-se para Londres.
Apesar de um contentamento profundo e duradouro, Jack tinha o ânimo baixo.
- Acha que o relato do almirante tem fundamento? - perguntou.
- Coincide com a última informação que recebi - respondeu Stephen.
- Devo parecer um bobão, depois de tanto falar com respeito à Armada francesa e de meu temor de uma longa guerra, devido a estarem contruindo barcos a grande velocidade.
- Achei muito razoável seu parecer, de um ponto de vista naval; e não sabia então que, em terra, Bonaparte havia perdido o norte. É incrível como desperdiçou suas oportunidades, para não falar das vidas de seus homens, ao longo destes últimos meses.
Jack negou com a cabeça; após um tempo, disse:
- Não pretendo pronunciar uma só sílaba contra de William Fanshawe, mas palavra que acredito que o almirante poderia ter mencionado ao Bellona. Tampouco o fará no despacho de guerra. Mas os nossos trabalharam como diabos, todos eles, guarda atrás de guarda, para que o barco chegasse a tempo; imagina o terrível desastre que teria se desencadeado se não chegássemos a tempo... De uma perspectiva puramente egoísta, alegro-me que tenha me contado seus planos chilenos. Não haverá distinção para mim neste lado do oceano. Não pretendo comportar-me como o personagem de uma tragédia, Stephen, e lhe asseguro que não falaria disto com ninguém, mas me sinto amarelar. Entre! - exclamou.
Entrou Harding, que a julgar por sua expressão trazia o sol pela mão.
- Desculpe-me por irromper desta maneira, senhor, mas recebi uma carta maravilhosa. Minha mulher acaba de herdar uma modesta propriedade em Dorset de um primo distante: fica situada entre Plush e Folly. Serei o senhor de Plush!
- Felicidades de todo coração - disse Jack, apertando sua mão. - Seremos vizinhos: meu filho estuda ali, na escola do senhor Randall. Minha mulher se porá muito contente quando o saiba. Mas temo que devo advertir-lhe que se ande com cuidado, porque a pressão conduz amiúde à loucura{14}.
- Como, senhor? Não entendo... - começou a dizer Harding, um pouco desconsertado. Então achou captar a agudeza do comentário do capitão Aubrey (talvez fosse o comentário mais agudo que Jack já fizera na vida), posto que, quando se servia o grogue, os membros de segunda de cada rancho de marinheiros recebiam um pouco menos da quantidade estipulada. Devido a um antigo costume, a quantidade de grogue sobrado, conhecido por "pelúcia", pertencia ao cozinheiro do rancho, e, a menos que este tivesse resistência ao rum, amiúde terminava metendo os pés pelas mãos de uma ou outra forma, e cometendo alguma loucura.
A seriedade de Jack não durara tanto como a de Harding, e sua sincera alegria se perpetuou durante alguns segundos mais, depois do tenente ter se recuperado, e aceitou o convite para almoçar na câmara dos oficiais com sumo prazer.
- É o melhor que já ouvi na vida relacionado com a Armada - admitiu Harding. - Acho que o anotarei, como Eleanor vai rir. Mas na realidade minha visita tinha por objetivo solicitar do senhor o prazer de sua companhia amanhã, na câmara dos oficiais. Levávamos semanas sem um pedaço de pão, mas agora que finalmente o navio de apetrechos descobriu onde nos encontramos, temos a intenção de compensar boa parte de nosso sotavento.
Quando conversava com Stephen sobre o almirante, Jack não fazia nenhum dos comentários ofensivos que cruzavam por sua mente. Para citar um pequeno exemplo, não havia dito que o clarete de lorde Stranraer era escasso e de uma qualidade execrável. Sua senhoria não tinha o menor gosto para o bom vinho e, de fato, não costumava beber, além de estar convencido de que os demais só o julgavam pela etiqueta e o preço, e que se desconhecesseam por completo ambos os dados seriam totalmente incapazes de encontrar a menor diferença. Não o fez porque era consciente do apreço que sentia o almirante por Stephen, e porque ignorava se dito apreço era correspondido.
Mas a refeição que se ofereceu na câmara dos oficiais ao seu capitão não pôde contar com semelhantes sensuras, nem pronunciados a meia voz, nem reprimidos. O doutor Maturin era certamente um oficial da câmara: geralmente costumava encarregar-se do vinho, e em ocasiões como esta, quando o clarete que entregavam os navios de apetrechos em barris não fora engarrafado nem tivera oportunidade de repousar depois de tão violenta sacudida, tinha proporcionara um estupendo e velho vinho do Priorat, um vinho muito incorpado.
O vinho caiu extraordinariamente bem, e sua uva era certamente mais forte que a maioria da cultivada em Bordeaux, de modo que a conversa ao longo da mesa foi mais estrondosa, mais aberta e menos formal que o habitual. A mesa constituia todo um espetáculo, sentados ao seu redor havia uma dúzia de oficiais, a maioria com casaca azul e galões dourados, que faziam combinação com as casacas vermelhas dos infantes da marinha, sem esquecer os serventes que permaneciam de pé atrás de cada um dos oficiais. Contudo, respirava-se uma atmosfera de incerteza, contida por respeito ao convidado, mas que era óbvia para qualquer um que tivesse servido tanto tempo no mar. Observou todos os presentes, pensou em todos aqueles rostos que tão bem conhecia e, ao fazer-se o silêncio, ouviu um marinheiro dizer no convés:
- Beija a braça aos cabeços, senhor.
- Atraca! - ordenou o oficial de guarda.
- Atraca - disse Jack a quem estava sentado à mesa. - A julgar pelo que pude ver no jornal que o Queen Charlotte nos trouxe, e pelo que ouvimos a bordo do navio insígnia, creio que todos nós atracaremos muito breve. Atraca, trinca e o pagamento final. - Seguiu uma pausa, que aproveitou para consumir a taça de vinho. - Certamente, a guerra é um mau negócio - continuou, - mas é nosso modo de vida, foi durante estes últimos vinte anos e, para a maioria dos aqui presentes, é a única esperança de obter o comando de um barco, sem falar de uma promoção. Recordo-me perfeitamente como me senti no ano dois, o ano da Paz de Amiens. Mas permitam-me oferecer a seguinte reflexão, como consolo: no ano dois o mundo caiu aos meus pés, tanto foi assim que se tivesse um penique para comprar uma corda teria me enforcado. Bem, os senhores sabem de sobra que aquela paz não durou, que no ano quatro me ascenderam ao cargo de capitão de navio e que servi na Lively. Que tempos aqueles. Digo isso porque se pode romper-se uma paz firmada com um inimigo indigno de confiança, pode romper-se outra paz com o mesmo inimigo; e nosso país necessitará que o defendam, sobretudo pelo mar. De modo que... - disse ao mesmo tempo que enchia de novo sua taça, - bebamos pelo pagamento final, para que seja uma ocasião pacífica, onde reinem a disciplina e a alegria. E que lhe siga uma breve, repito, uma muito breve permanência em terra.
CAPÍTULO 10
O desarme terminou, e isso foi o melhor que se pôde dizer a respeito desse processo. Mesmo antes da abdicação de Napoleão, os barcos que compunham a esquadra do bloqueio foram enviados à Inglaterra de um em um ou de dois em dois. O Bellona um foi dos últimos. Durante todo este tempo, aqueles marinheiros procedentes de barcos mercantes que haviam sido recrutados forçosamente se tornaram mais e mais resmungões. Durante a guerra, ou melhor, as guerras, o serviço da marinha mercante estivera necessitado de dotação, de modo que o pagamento fora relativamente alto. Ali estavam todos esses cachorros sujos e sem escrúpulos a bordo do Grampus, da Dryad e do Achantes, chegando ao porto para recolher o ouro e a prata antes que os demais, ainda que não tivessem passado nem a metade do tempo no bloqueio que o Bellona, e apesar de não terem sofrido nem uma quarta parte das privações que eles. Também houve alguns que desejavam ver as esposas e filhos, ainda que isso não tinha tanta pressa, nem motivasse tão intensa frustração. Falaram disso com os oficiais de cada divisão, e estes contaram ao capitão, que reconheceu a injustiça para depois confessar que não havia nada, absolutamente nada, que ele pudesse fazer a respeito. Suas escassas tentativas foram redondamente recusadas, isso quando não foram objeto de um silêncio sepulcral. As últimas semanas foram muito incômodas a bordo. Por exemplo, havia pouca vontade de limpar as cobertas dado que sabiam que logo seriam arrancadas pelos companheiros do arsenal, desmontadas, para desarmar seu amado barquinho. Isto e um sem-fim de outros pequenos detalhes dav pé a respostas curtas, esquivas e olhares mal-humorados, ainda que não a uma insolência deliberada ou à negativa de cumprir as ordens, nem sequer a um indício de motim. Além disso, estes "lerdos sodomitas" (tal como foram apelidados) apenas se reuniam em uma dúzia de ranchos dos cinqüenta e tantos em que se dividia a dotação, pois muitos dos outros do Bellona eram veteranos marinheiros de navio de guerra, e mesmo alguns haviam acompanhado o capitão Aubrey em mais de uma missão, de modo que não estavam dispostos a participar em confusões dessa natureza, nem em nada que se assemelhasse.
Mesmo assim, os lerdos sodomitas conseguiram que os últimos dias a bordo fossem tão desagradáveis que não fizeram senão alargar o inevitável e doloroso final. A eles se agregaram os advogados do mar, e quando o comissionado e seus escreventes subiram a bordo, junto com os livros de contabilidade do barco e algumas sacas de dinheiro, muito protegidas, fizeram tal quantidade de perguntas sobre datas de entrada, taxações, datas de devolução, deduções pela lonita para a roupa, medicamentos para combater doenças venéreas e outras, que o processo se prolongou até as primeiras horas da manhã seguinte.
- Apesar de tudo, felizmente terminou - disse Stephen.
- Suponho que sim, se isso é o que você entende por felicidade - disse Jack, afastando o olhar dos casi desertos onde o Bellona aguardava o desarme. E não só se via deserto pela ausência da agitação habitual, mas porque alguns divertidos haviam folgado braças e amantilhos de tal maneira que as vergas pendiam à mercê do vento, como os braços de uma espécie de espantalho marítmo. Observou a parte esquerda da carruagem, onde se reunira um bando de mulheres do lugar para dar as boas-vindas àqueles do Bellona que ainda se mantinham em pé ao sair pela porta do Old Cock and Bull, em cujo interior se reuniram com o escrivão do agente de presas.
- Adoro ao alegre marinheiro - cantaram as mulheres.
- Que seja alegre e divertido... - A aparição da carroça pesada de um cervejeiro acabou por interrompê-las ao parar diante delas, mas depois dos gritos, gestos e impropérios que as mulheres dedicaram aos homens do cervejeiro, seguiram cantando.
Marinheiros que têm todo o dinheiro,
soldados que nada têm exceto latão.
Sim, adoro ao alegre marinheiro,
os soldados que beijem meu traseiro.
Oh, meu marinheirinho brincalhão,
oh, meu brincalhão marinheirinho.
Adoro ao alegre marinheiro,
para mim que aos soldados lhes parta um raio.
A maioria das mulheres poderiam haver tido um aspecto tolerável à luz de uma lâmparina, ainda que, entre elas, houvesse algumas velhas grous aptas somente para a escuridão; mas o implacável e intenso sol sobre seus rostos muchos, o cabelo pintado, a roupa diáfana, suja e brega era um espetáculo capaz de encher a qualquer um de uma profunda tristeza. Jack se despedira de muitos companheiros antigos ao abandonar o barco, e fazia muito pouco que fora anfitrião de seus oficiais no almoço de despedida, oficiais que fizeram o possível para dissimular a ansiedade que sentiam em conseguir um lugar em outro barco. Uma reunião tigida de uma alegria superficial, que ao terminar se transformou em profunda tristeza. Jack encontrou nesse momento o aspecto das prostitutas muito mais deprimente que em outro tempo. Conduziram em silêncio.
Abandonaram a cidade para adentrar-se na campina e na primavera. Escassas nuvens brancas corriam lentamente ao longo de um céu intensamente azul, empurradas por uma brisa forte o bastante como para agitar as verdes folhas das árvores, o que exerceu um efeito tranqüilizador naqueles corações que serviram no bloqueio de Brest ao longo de um dos invernos mais duros que se recordam. Além do mais, o carro postal, a pedido de Stephen, tomara caminhos secundários através de preciosos campos cultivados, a cujos lados crescia a colheita, uma extensão da campina à qual as aves migratórias eram muito aficionadas. Stephen sabia que Jack não sentia muita paixão por todas aquelas aves que não oferecessem a oportunidade de disparar contra elas, de modo que não o pertubou com um curioso exemplar de ferrolhinho que viu perto de Dartford, nem com o que provavelmente era um aguieta de Montagu, um macho, longe, à direita; mas enquanto andavam de um lado para o outro em frente da pensão, ao trocar os cavalos, disse:
- Enquanto se encarregava de ultimar os detalhes do barco e do pagamento final da dotação, o secretário do comissionado me entregou algumas cartas procedentes de Londres. Confirmam meus planos. Quer que lhe fale deles?
- Se é tão amável.
- Achei que poderíamos tirar alguns dias de férias para alojar-nos no Blacks, sem nada em especial a fazer exceto comparecer à Royal Society no segundo dia. Depois, no terceiro dia, terá que reunir-se com os chilenos, e creio que seria melhor fazê-lo em meu quarto do Grapes, porque não poderíamos conversar à vontade de tais assuntos no Blacks que é um lugar mais discreto. Tanto o sábado como o domingo poderíamos aproveitá-los para relaxar, inclusive poderíamos ir a algum concerto. Depois, e dou por certo que entre os chilenos e você existirá uma boa atmosfera, teremos que assistir a uma entrevista com o Comitê; finalmente, se tudo for bem, iremos ao Almirantado, onde resolveremos as formalidades necessárias.
- Apagaria meu nome da lista?
- Vão lhe suspender do cargo, isto é. É um passo ineludível para permitir que mande em um barco alugado: uma embarcação particular com um patrão particular.
- Bem, alegra-me que não seja a sexta-feira.
- Jack, não creio que seja necessário ter muitas luzes para compreender que a perspectiva de que seu nome desapareça da lista não lhe faz a menor graça.
- Sim. Isso mesmo.
- Querido amigo, se tem alguma dúvida a respeito, por pouca que seja, esqueçamos este assunto por completo.
- Não, não. Certamente que não. Desculpe-me, Stephen. Estou obcecado... Estes últimos dias, o fato de ter visto o barco e a dotação se despedaçar, com o Bellona no estaleiro, todos os guardas-marinhas despedidos, pasmados e sem um penique no bolso (já sabe que não recebem o meio soldo), sem oportunidade de obter um posto em outro barco... Isso baixa a moral de qualquer um, e temo que também lhe empurra a querer ver seu nome inscrito na lista, em qualquer lista. Mas é uma bobagem, dado que a metade da Armada, talvez mais, está sendo desmembrada, e com os despachos de guerra e a influência de Stranraer contra mim não tenho a menor chance de obter um comando, e sem um comando o mais provável é que ignorem meu nome quando chegue o momento. Para evitá-lo estaria disposto a governar um bote de pesca para Spitzbergen, quanto mais a dobrar outra vez com nossa querida Surprise o Cabo de Hornos. Não, não, querido Stephen. Por favor, desculpe-me. Foi um arranque de tonta superstição, talvez "licantropia" seja a melhor palavra para defini-lo.
- Talvez... porém, diga-me, Jack, não terá esquecido a promessa de ver seu nome reabilitado de novo na lista?
- Oh, não, querido amigo. Tenho me aferrado a isso dia e noite, como um touro em uma loja de porcelana. Mas as promessas são como as migalhas de um bolo, sabe? Um primeiro lorde pode morrer ou ser substituído por esses condenados liberais (oh, peço que me perdoe, amigo) e por pessoas que pertençam a outros partidos que não conhecem nem a Abraão. Mas meu nome, impresso nessa maravilhosa lista, é tão sólido como possa ser qualquer outra coisa neste mundo mutável. Hoje aqui, mas amanhã...
- Esta é uma das coisas que mais me agradam neste lugar - disse Jack quando o carro postal os deixou ante a acolhedora porta aberta do Blacks. - Aqui não se produzem mudanças repentinas nem entusiastas. Bom dia, Joe.
- Bom dia, capitão Aubrey, senhor - cumprimentou o porteiro. - Bom dia, doutor. Eu lhes designei o dezessete e o dezoito. Esta mesma tarde, Killick subiu suas bolsas para os quartos.
Jack assentiu comprazido; assinalou o cálido fogo que ardia no extremo oposto do saguão e exclamou:
- Ali. Apostaria uma libra que aquela chaminé ardia do mesmo modo quando meu avô se alojava aqui, procedente de Woolcombe. E espero que siga assim quando George se converta em membro do clube.
Subiram depressa as escadas, puseram a roupa de cidade que Killick (epítome de abstrata eficiência, de amabilidade inclusive) tinha disposto sobre a cama para ambos, e se encontraram de novo no patamar.
- Vou direto para a biblioteca ler tudo o sucedido nestas últimas semanas. Não, meses, pelo amor de Deus - disse Stephen.
- Então lhe acompanho - disse Jack. - Ainda que talvez seria melhor comer algo antes. Depois poderia sentar-me para ler o Morning Post ou o Naval Chronicle sem ter que agüentar os rugidos de um estômago que possam distrair-nos da leitura. Veja, é como se hoje não tivesse comido. Não tinha apetite diante daquela maldita refeição de despedida.
- Se o homem não desprezasse ao selvagem que leva dentro, não teria lugar para a erudição - replicou Stephen. - Além disso, ainda é muito cedo para jantar, e só lhe darão as sobras reaquentadas. Vamos, acompanha-me que James se encarregará de lhe trazer um sanduíche, certamente, e uma jarra de cerveja.
Leram um pouco em silêncio, com avidez. Exibindo um extraordinário nível de autodisciplina, começaram pelas tormentas equinociais do outono passado que lhes isolaram do mundo exterior, de tal forma que só aquelas vitórias ou derrotas isoladas e carentes de importância, a maioria em terra, chegaram a seus ouvidos envolvidas por uma nuvem de incerteza. Jack, que avaçou através das salgadas páginas do Naval Chronicle, em lugar de adentrar-se no indigesto papel do Times, e que prestou maior atenção às campanhas na Silésia e lugares assim, assim como à política, exclamou:
- De modo que concederam Elba a Boney? Surpreendente, né? Subiu a bordo da Undaunted, de trinta e oito canhões, ao comando do jovem Tom Ussher. Conhece ele? É irlandês.
- Claro que sim, conheço a vários Ussher: havia dois ou três no Trinity. Atestavam a parte oriental, e em sua família existe o costume de ostentar o cargo de arcebispo de Armagh, um arcebispado protestante, claro.
- De modo que são gente de qualidade?
- No castelo sim, creio.
- O Castelo?
- O Castelo de Dublim, onde reside o representante da Coroa no condado, quando não se encontra ausente.
- Tom nunca mencionou que tivesse contatos, mas isso explica muitas coisas. Promoveram-no a capitão de navio no ano oito, antes de completar trinta anos. Não é que tenha nada contra ele, fomos companheiros de tripulação em uma ou duas ocasiões e, ainda que a bordo era um tipo dócil e jovial (nada a ver com um de seus Héctores, nada de brigar nem de discutir em voz alta), nas incursões noturnas era o própio diabo, um homem extraordinariamente valente e corajoso. Claro que há outros jovens igualmente valentes e corajosos, jovens sem influências, que não obtêm uma ascensão antes dos trinta. Nem sequer são comandantes a essa idade, senão que morrem como simples tenentes, inclusive como simples segundos do piloto de derrota. A ascensão na Armada é um assunto estranho. Pense no almirante Pye. - Suspirou e, depois de uma breve pausa, perguntou: - Acha que já poderíamos jantar?
- Deixe-me terminar este infame discurso de Talleyrand, e irei contigo - respondeu Stephen.
O clube estava cheio, porque não só era o início da estação em Londres, como todos aqueles membros que também eram oficiais da Armada tinham liberdade de movimento e não tinham perdido nem um minuto em comparecer à Cidade para agoniar ao Almirantado e a todas suas influentes amizades, com a esperança de obter um dos poucos comandos disponíveis ou, pelo menos, com qualquer tipo de cargo. Viram a sir Joseph Blaine, jantando com um amigo na mesa de costume; levantou-se para saudar-lhes, lembrou-lhes que se veriam de novo na quinta-feira, e voltou de novo toda sua atenção para convidado. De sua parte, Jack e Stephen se sentaram na enorme mesa redonda reservada aos membros, de onde Heneage Dundas estivera agitando o guardanapo assim que os viu entrar.
- Faz muito tempo que não tenho o prazer de ver-lhe - disse o cavalheiro sentado à esquerda de Stephen. - passará muito tempo na cidade?
- Foi na Academia de Música Antiga, se não recordo mal - respondeu Stephen. - Não, apenas alguns dias, acho.
- Mesmo assim, creio que o senhor estará aqui amanhã, livre de compromissos. Vão cantar muitas peças de Tallis.
E ali esteve, acompanhado por Jack; ambos desfrutaram muito da música, que imbuiu em seus corações de uma paz interior que certamente fez muito, muito bem a Jack Aubrey, doído como estava depois de sofrer tanto depois de renunciar ao comando no pior momento possível, no desarme, entregar os livros de contas e fazer o pouco que pôde fazer por todos aqueles que, pelo menos moralmente, dependiam dele: dois dos guardas-marinhas mais jovens que serviram sob suas ordens eram filhos de oficiais que morreram no cargo de tenentes, deixando para suas viúvas uma pensão de cinqüenta libras anuais; sem esquecer, claro, a alguns outros homens igualmente indefensos, marinheiros veteranos que não podiam desfrutar dos benefícios de Greenwich e que não tinham a ninguém que velasse por seus interesses.
Durante o dia seguinte e boa parte do outro, não fizeram nada exceto desfrutar da paz que se respirava na biblioteca, conversar com suas amizades no bar ou no salão anterior, passear por Bond Street para provar violinos e arcos em Hills, ou jogar sem demasiada seriedade ao bilhar. Para Stephen lhe regozijava o suave movimento das bolas, as linhas precisas que traçavam e os ângulos que resultavam de seu contato, quer dizer, se entravam em contato, o que sucedia raras vezes quando ele tinha o taco nas mãos, pois como jogador tinha uma natureza mais teórica que a de Jack, que com freqüência fazia tacadas de doze ou mais e se comprazia muito com os resultados. Quando acertou a tacada três vezes seguidas largou o taco na mesa e disse com infinita satisfação:
- Bem, não poderia pedir mais. Há chegado o momento de dormir nos louros. Vamos, Stephen, que ainda devemos trocar de roupa.
Chegaram apressadamente à taberna onde se reuniam boa parte dos membros da Royal Society para comer, antes de celebrar-se as sessões em Somerset House; chamavam ao lugar geralmente de clube dos Reais Filósofos. Fizeram-no com a pontualidade que caracteriza a Armada, pouco antes que o presidente, sir Joseph Banks; este os cumprimentou com amabilidade, felicitou-lhes pela vitória, e disse a Maturin que pelo menos agora teria tempo para dedicar-se seriamente à botânica, talvez em Kamschatka, uma região muito promissora e praticamente desconhecida.
- Ah, estava esquecendo - disse. - Mas o senhor agora está casado. Assim como eu, sabia? É um estado tão confortável como bem-aventurado. - Depois, despediu-se para cumprimentar aos demais membros da Royal Society, que nesse momento entravam a dezenas na comprida sala de teto baixo.
Antes de sentar-se viram a muitos amigos. O hidrógrafo do Almirantado dedicou a Jack um olhar expressivo, ainda que depois se limitou a dizer:
- Espero que o senhor não tardará em preparar algum outro ensaio sobre nutação.
O inspetor da Armada, Robert Seppings, o famoso arquiteto que tinha reforçado o Bellona com chapas e estruturas diagonais de ferro e cobre, abriu passagem entre os presentes para perguntar ao capitão Aubrey como o barco se comportara ante o embate do mar e das tormentas do sudoeste que açoitavam as águas de Brest.
- Admiravelmente, senhor, admiravelmente, obrigado - respondeu Jack. - raras vezes tivemos mais de seis polegadas de água na sentina, tão estanque como se pode desejar.
- Alegra-me muito sabê-lo - exclamou o inspetor, que seguiu caminhando para conversar com seu filho Thomas, que aplicava os mesmos princípios tanto em embarcações de menor calado, como nas que tinha intenções de reparar ou construir em seu novo estaleiro em Poole.
-... Cheio de esperança, recém casado, disposto a trabalhar dia e noite, e agora esta paz... - Depois de algumas jardas mais ouvindo a mesma conversa, pediu-se aos presentes que ocupassem seus lugares.
Os filósofos não eram precisamente homens ascéticos: poucos estivariam dispostos a permitir que a filosofia se impulsesse ao seu apetite (seu presidente superava as duzentas e dez libras de peso), de modo que se sentaram para comer com toda a boa vontade do mundo.
- Desejaria poder convencer-lhe a tomar uma taça deste vinho do porto - disse Jack, segurando a jarra no alto. - Casa maravilhosamente com o rosbife.
- Desculpe-me, mas acho que esperarei servirem o vinho - desculpou-se Stephen.
Não teve que esperar muito. Quando o rosbife desapareceu, admiravelmente servido com guarnição de batatas, repolhos, nabos, rabanetes picantes, e regado com mostarda, tirou-se a toalha de mesa e se serviu o vinho junto a um bolo de pêra, bolo de melaço e todos os tipos de queijo conhecidos nos três reinos. Stephen provou alguns enquanto passaram as bandejas de um lado para o outro da mesa: Stilton, Cheddar e Double Gloucester, além de uma jarra de clarete (provavelmente Latour, pensou) e pão crocante. Acompanhou a todo aquele que lhe disse: "Brindo ao senhor, senhor", para depois inclinar a cabeça a modo de saldação, mas somente elevou pessoalmente dois brindes, um para sir Joseph, e um segundo para um novo membro, um duque matemático escocês. Portanto, conseguiu sair por seus própios pé, o que era mais do que se podia dizer do restante dos membros e de seus convidados, em especial de Jack Aubrey, que não se desgrudara do vinho do porto, incapaz também de esquecer de nenhum de seus conhecidos, pois propôs um brinde para todos eles. Contudo, tinha um longo passeio desde o Mitre até Somerset House, e praticamente todos os membros da Royal Society se tornaram razoavelmente filosóficos ao chegar ali, pelo menos até que a dureza dos bancos e a densa natureza dos ensaios lidos em voz alta, que versavam nessa ocasião com respeito à história do cálculo integral e de um novo enfoque de certos aspectos do mesmo, conseguiram devolver a sobriedade aos presentes.
Jack e Stephen regressaram passeando por Saint James, e passaram pelo Grapes. Era tarde, e tanto o balcão como o salãozinho estavam a transbordar de paroquianos, de modo que subiram ao quarto de Stephen para fazer os preparativos para o almoço com os chilenos que se celebraria no dia seguinte: pescado, podendo ser peixe de São Pedro, adquirido no próximo Billingsgate; enquanto discutiam os detalhes, as meninas invadiram vestidas em camisola, para perguntar ao doutor como estava. Ao verem o capitão também ali ficaram imóveis, e Stephen teve que levá-las pelas mãos para que apresentassem seus respeitos, e é que Jack encarnava para ambas a autoridade em pessoa, tal como fora a bordo, pelo menos para quem tinha a idade de Sarah e Emily.
- Bem, senhor - disse a senhora Broad quando subiram descalças pela escada, de volta para a cama. - Jamais acreditei que chegaria a vê-las tão modositas. Na rua ou no balcão, se alguém se mostra jocoso, como os senhores diriam, são respondonas e têm a língua muito afiada. Mas também lhes garanto que terão o melhor pescado de Billingsgate, porque são as melhores compradoras que caiba imaginar, amáveis e educadas, como não, mas não dessas que se deixam enrolar, ui, não, de nenhuma maneira. Ainda que, diga-me, senhor - disse a Stephen, - falam inglês esses cavalheiros estrangeiros do senhor?
- Claro que sim, dois deles com grande fluidez; ainda que o terceiro apenas poderia perguntar um endereço, os demais são capazes de conversar com total normalidade.
De fato, desde que a conversa não fosse muito exigente. Quando se acharam sentados diante da mesa colocada no quarto de Stephen, mostraram-se particularmente atentos a Jack, cuja reputação como oficial da marinha conheciam sobradamente e cujas palavras escutaram com muita atenção. Contudo, seu conhecimento da língua não lhes permitiu discutir os pormenores do plano (o fato de terem comparecido ao almoço devia-se a sua intenção de investigar a capacidade de Aubrey), o que deixaram nas mãos de García e Stephen, não sem antes desculpar-se com Jack por fazê-lo em castelhano. Os três convidados eram homens educados, um pouco morenos mais atraentes que o contrário. Ainda que seus modos serviçais excediam levemente o que na Inglaterra se tinha por habitual, eram homens duros, desses com os quais vale mais não se cruzar; e apesar de que não puderam convencer-lhes para que tomassem mais de uma taça do excelente Meursault, nem comer mais de uma pitada do excelente pudim de sebo, Jack desfrutou de sua companhia e, ao despedir-se, apertaram-se a mão amistosamente.
- Alegro-me muito - limitou-se a dizer-lhe García, olhando-lhe com seriedade.
- Espero que tenha sido tão bom com seu homem como foi para mim com os outros dois cavalheiros - disse Jack quando os chilenos tinham subido ao coche. - Eu os considero pessoas decentes.
- Sim. García e eu estávamos completamente de acordo em tudo. Ainda que já o haviamos discutido com certa profundidade antes, em Santiago. Teremos que pô-lo de algum modo por escrito para comprazer a nossos chefes, mas a grandes traços já lhe expliquei: trata-se de que explore e cartografe suas costas na Surprise, a bordo da qual zarpará a princípios do ano que vem. Pelo menos haverá seis meses de trégua em dos dois lados, claro que certamente é livre para abandonar a missão se a Inglaterra entrar de novo em guerra. Você os ajudará a levantar e a adestrar uma modesta Armada; que defenderá sua pátria se os peruanos, declarada sua independência, atacarem o Chile. Como já lhe disse, estará dispensado do serviço no caso da Inglaterra entrar em guerra com qualquer potência estrangeira. Não estou totalmente seguro de qual será sua posição com relação ao Almirantado, porque não o saberemos até que compareçamos na presença do Comitê, mas quase tenho a certeza de que lhe concederão uma licença indefinida, que respeitarão seu cargo atual, e também de que responderás para o departamento hidrográfico. Quando termine os trabalhos de cartografia, ou quando considere que já concluíu seu trabalho, poderá voltar para a Armada com o mesmo cargo e antiguidade. Observe que tudo isto é para você uma oportunidade de servir e se distinguir quando o restante dos capitães candidatos ao Estado Maior se vêem obrigados a permanecer em terra ou, como muito, a praticar com os canhões nas águas de um pacífico mar Mediterrâneo, onde não terão a menor oportunidade de obter um pingo de glória.
- Stephen - disse Jack ao deter seus passos na rua, frente ao palácio de Saint James. - Estou-lhe infinitamente agradecido. Não poderia pedir mais, não, nem sequer a metade. - Seguiu caminhando, e esteve a ponto de ser atropelado por uma carruagem puxada por dois cavalos cujo condutor jogou pragas; o chicote estalou em seus ouvidos. - Mas a Surprise necessitará de uma boa revisão para afrontar o Cabo de Hornos. Como me alegro de conhecer ao filho de Seppings. E, oh, não sabe como anseio que tanto o Comitê como o Almirantado me olhem com apreço, apesar de tudo.
- No Comitê contará com caras amistosas ou, quando menos, atentas, que estarão de seu lado. Não se trata de um organismo no qual o lorde Stranraer exerça influência. Na segunda-feira recomendo que se vista correta e elegantemente, que não diga palavra a menos que lhe perguntem, e em tal caso que limite seus respostas a frases curtas e inteligíveis. Curtas, repito. Procure em todo momento prestar atenção e se mostrar inteligente; nada de cinismos ou comentários jocosos.
Era a tarde da sexta-feira e encontraram o Blacks quase vazio. Depois de um jantar frugal composto de coelhos de Gales, e depois de uma ou duas partidas de gamão, foram cedo para cama.
- Caso sinta um décimo do nervosismo que tenho pelas reuniões com o Comitê e o Almirantado, não sei como nos as arrumaremos para passar o sábado e o domingo - disse Jack quando se separaram.
Passaram o sábado em Greenwich, no enorme hospital da Armada, visitando aos antigos companheiros de tripulação que ali se alojavam, quer por ser velhos, quer por ser mutilados, ou por ambas as coisas. Mais tarde comeram em companhia dos oficiais, e voltaram a Londres com a maré para desfrutar de outro concerto. No domingo, depois de Stephen comparecer a missa em companhia das garotas e de Jack ter passeado até Queens Chapel, alugaram duas éguas, velhas irmãs, e cavalgaram para Hampstead, onde exploraram Heath e voltaram a visitar seus lugares favoritos.
Na manhã da segunda-feira o nervosismo de Jack bastava para fazer-lhe perder o apetite, de modo que não comeu nada mais que um pedaço de torrada.
- Sua insensibilidade me maravilha - disse ao observar as salsichas, o bacon e o ovo frito que Stephen fez desaparecer do prato, que depois arrebanhou com pão.
- Mais que insensibilidade, trata-se de força de vontade - disse Stephen. - Sou perfeitamente consciente de que esta entrevista pode com o tempo implicar na diferença entre que lhe ascendam ao azul, ou que lhe desprezem; mas suporto esta prova com a fortaleza de um homem.
- Titubeio na hora de corrigir a uma criatura tão heróica, dotada de uma mente tão constante, mas permita-me observar que o "ascender ao azul", entendido como a ascensão ao Estado Maior da esquadra azul de um capitão de navio, ainda que admissível, não se emprega na Armada. Contudo, lamento admitir que "desprezar" ou "amarelecer" são verbos aos quais se costuma recorrer muito amiúde.
- Não posso lhe recomendar mais de uma xícara de café - disse Stephen. - Tendo em conta que como é sujeito a um temperamento nervoso, duas bastariam para encher-lhe de ansiedade, impedindo-lhe de obter algo que não se pode satisfazer, o alívio, por mais que o deseje.
Caminharam em silêncio por Whitehall. Jack não se sentia cômodo vestido de civil; tampouco estava tranqüilo.
- Escute, meu amigo - disse Stephen, pegando Jack pela manga ao dobrar a esquina decisiva. - Nesta reunião, cinco dos membros do Comitê são amigos meus. Tal como já lhe disse, estão de seu lado. Dos demais que eu saiba nenhum deles é hostil, e todos eles conhecem perfeitamente sua reputação de marinheiro. Não será um interrogatório: as pessoas importantes que encontraremos lá dentro já sabem tudo o que têm que saber, de modo que esta reunião oficial, como muitas outras reuniões oficiais, tem por objetivo confirmar o que já se decidiu com aprovação unânime e oficial.
E assim foi. A discussão foi dirigida por sir Joseph Blaine e um inteligente cavalheiro do Ministério de Assuntos Exteriores; Jack foi se relaxando à medida que progrediu a conversa de uma ponta a outra da mesa (ainda que foi necessário explicar as coisas de distinta maneira a alguns deles, duas, e inclusive três vezes). Seguiu pondo toda a cara de inteligente que lhe pareceu necessário, sem deixar por isso de prestar atenção; contudo, achou óbvio que os três ou quatro homens que se informavam da proposta estavam a favor do plano, e que se bem o Tesouro caminhava a passo lento e vacilante, não tardaria em ver-se arrastado pela corrente. As escassas perguntas que fizeram a Jack todos os presentes exceto o hidrógrafo, a quem obviamente tinha no bolso, respondeu-as com simplicidade e clareza, ainda que lhe escapou boa parte da confusa conversa entre departamentos. Contudo, não lamentava semelhante perda.
- Suponho que o capitão Aubrey está a par da situação? - perguntou o presidente, que não parecia ter total confiança na capacidade de Jack agir em terra.
- Sim, senhor - respondeu sir Joseph. - O doutor Maturin lhe pôs a par sem economizar um só detalhe.
- Em tal caso, cavalheiros - disse o presidente, - pois todos estamos de acordo, acredito que podemos dar por terminada a sessão, deixando o restante dos pormenores ao Tesouro, ao hidrógrafo e ao funcionário de apetrechos. De minha parte, permita-me, capitão Aubrey, desejar ao senhor uma próspera e tranqüila viagem, assim como um feliz regresso.
No dia seguinte, no Almirantado, não lhe pareceu a princípio que se veria submetido a um julgamento tão severo, em parte talvez porque o edifício lhe era familiar, e em parte também porque Jack compareceu vestido de uniforme ao mais naval de todos os edifícios. Tinha que perguntar por sir Joseph Blaine e, assim que murmurou o nome, o rosto pétreo do porteiro, reduzido à desumanidade por negar perpetuamente o recebimento do primeiro lorde aos inumeráveis oficiais que solicitavam ver-lhe, esteve a ponto de sorrir e disse:
- Claro, senhor. Job, acompanhe o capitão à sala de espera.
Ali apareceu sir Joseph, que perguntou pelo doutor, que felicitou a Jack pela unânime aprovação do Comitê e o conduziu ao longo de desconhecidos corredores até um escritório particularmente pequeno, mal iluminado e de teto baixo, onde encontraram um funcionário sentado a uma escrivaninha, com os pés em um tapete de oito por três pés, sinal de uma grande antiguidade. O veterano funcionário se levantou, convidou-lhes com um gesto a que se sentassem em umas cadeiras que praticamente eram invisíveis devido à tênue luz, e disse:
- Sir Joseph, acho que ambos ficarão comprazidos comigo. Tenho firmada toda a documentação necessária e, em dois casos, selada aqui dentro, na escrivaninha. Se o capitão Aubrey fosse tão amável de aproximar um pouco mais a cadeira, para poder firmar estes recibos de cada documento que lhe entrego. E que sir Joseph tenha a amabilidade de conferi-los, um a um, para que não se produza nenhum mal-entendido com seu número nem conteúdo. Acho que despertei a lanterna, porque alguns têm a letra muito pequena.
Jack assinou os recibos, um a um. E um a um os entesourou em seu coração. Ao firmar o último, que incluía a seguinte cláusula: "Entendo que a suspensão concedida na presente, cancelar-se-á de imediato se houver guerra entre a Inglaterra e qualquer outra nação", o ancião cavalheiro secou as assinaturas, levantou-se de novo e disse:
- Aqui tem, sir Joseph, um trabalho rápido como jamais se viu. Que satisfação para uma mente metódica. - E inclinou a cabeça.
- Todo um exemplo de celeridade e prontidão - disse sir Joseph.
- Como uma descarga na qual os canhões disparam um depois do outro - assinalou Jack. - Estou-lhe profundamente agradecido, senhor.
O funcionário lhes agradou com um sorriso glacial, voltou a inclinar-se e lhes abriu a porta.
- Agora devo conduzir-lhe ao escritório do hidrógrafo - disse Blaine, que acompanhou a Jack por outros corredores. - Esperemos que o senhor Dalhousie se mostre igualmente complacente.
Não foi assim, muito pelo contrário; contudo, o senhor Dalhousie passara a maior parte de sua vida no mar (era um animal marítmo) e Jack se sentia em casa com os cartógrafos e exploradores. A sua foi uma entrevista agradável e amistosa; mas mesmo assim, quando Jack chegou a Whitehall, ampla rua aberta, seguia sentindo-se aturdido pela anterior série de ordens, instruções, certificados e demais documentos que recebera para assinar, e pelos quais agora se sentia atado.
- Grande surpresa - explicou a Stephen. - Tinha contado com longas discussões, explicações, diretrizes e outras, provavelmente por parte do quarto lorde do Almirantado e alguns outros oficiais de suma importância, com a possibilidade de expor algumas humildes petições própias. Mas nada disso, empacotaram-me como se fosse um pacote, e aquí estou, transformado em pouco mais de cinco minutos e deixando de ocupar um lugar elevado na lista de capitães de navio, para ver meu nome apagado da mesma depois de ser emprestado ao departamento hidrográfico, com ordens de pôr rumo ao Chile a bordo de uma embarcação alugada, a Surprise, em questão de sete meses desde o presente dia. Uma vez lá, terei que cartografar a costa e ilhas, submetidas minhas atividades aos requerimentos de um conselheiro político. Contudo, receberei o pagamento até o final deste mês lunar, depois do qual só poderei esperar ou reclamar a metade do mesmo. E aqui me tem - disse dando-se palmadas no peito, - livre como um pássaro, cheio de uma estranha inquietação.
- Também eu sofri uma experiência igualmente inquietante. Recebeu-me a pessoa responsável pelo aluguel de embarcações em favor de sua majestade, concordou imediatamente com a soma que propus, deu-me uma promissória para noventa dias para o aluguel do primeiro trimestre, e se despediu de mim dando-me bom dia. Inclusive me desejou que desfrutasse de uma cômoda viagem.
- Há uma pensão em algum lugar próximo a Dunmow pela qual costumava passar quando caçava naquela zona conhecida pelo nome de O Mundo virado ao revés - disse Jack. Olhou pela janela, voltou-se com um sorriso e acrescentou: - Que acha se nos comportássemos uma vez como cachorros, e alugássemos um carro postal até Woolcombe? Poderia visitar esta mesma tarde ao meu agente de presas, comprar alguns presentes para a família, despachar Killick em uma carruagem com nossos baús e partir amanhã depois do café da manhã.
Stephen considerou a proposta durante um instante, e respondeu com um sorriso nos lábios:
- Com muito prazer.
Quando um marinheiro, um marinheiro como Jack Aubrey, um marinheiro de navio de guerra de muita consideração, leva uma ou duas semanas no mar, quase sem perceber se livra das ataduras que o ligam em terra (em seu sentido mais amplo) e regressa à tradicional, ordenada e regulada vida do marinheiro, onde não há mais terra firme que a que limita a proa e a popa do barco, onde o mar desaparece atrás do inquebrantável limite do horizonte. Tudo isso, além do tempo comedido pelo sino de bordo, molda a forma natural da existência.
O mesmo sucede em sentido inverso: o marinheiro que leva tempo em casa, sobretudo quando se trata de um condado afastado do mar, voltará a assumir os modos e inclusive o aspecto da maioria; ao ver o capitão Aubrey montado na robusta égua cavalgar por Woolcombe, poucos o teriam tomado por algo mais que um cavalheiro da campina, alegre e de rosto rosado, pois se parecia com a maioria de seus vizinhos. E o mais surpreendente disso era que na realidade não se vira separado do mar, pois com excessão da primeira semana desde seu regresso ao lar passara boa parte de seu tempo ocupado com a Surprise. Levara-a com uma dotação mínima de Shelmerston ao estaleiro do jovem Seppings em Poole, a quem havia visitado muitas quartas-feiras depois para ver como ia a coisa, prática que tão somente se viu interrompida quando o cavalo que montava fez uma cambalhota e caiu, arrastando-lhe também a ele na queda, em um trecho de estrada perto de Gromwell, cambalhota que concluiu com uma clavícula quebada e com a substituição do inquieto castrado por uma égua cinzenta, cujo comportamento podia qualificar-se de mais formal.
Era, contudo, em seu companheiro, o doutor Maturin, em quem um observador indiferente poderia ter reconhecido à figura do marinheiro. Claro que isso não era devido a nenhum traço em particular de seu físico, nem ao modo em que cavalgava (em seu caso, um precioso cavalo árabe), mas pela asquerosa e surrada casaca azul, que ainda podia reconhecer-se como parte do uniforme de cirurgião da Armada, e que, nas palavras de seu dono, ainda tinha pela frente anos de uso.
Puxaram as rédeas ao coroar o cume da colina e observaram Woolcombe, que se estendia a seus pés. O povoado, a casa, as granjas e as propriedades exteriores, assim como o inquebrantável exido de Simmons Lea.
- Deus - disse Jack, - recordo perfeitamente o dia em que chegamos a casa... Todas as mulheres reunidas na salinha azul, em companhia da esposa do pároco e de lady Butler, falando não sei o quê enquanto tomavam o chá. Estavam surpresas de ver-nos, pegas de improviso, contentes, certamente. Dedicaram-nos amáveis palavras e beijos; George e Brigid foram os únicos que não pareciam surpresos. Eu me senti um intruso. Não tinha nem idéia de que as mulheres pudessem se dar tão bem na companhia de outras mulheres. Talvez os conventos de monjas sejam assim.
- Talvez - disse Stephen, que havia visitado vários. - Pelo menos, assim espero.
- Então começaram a aclamar a paz: "hurra, hurra!". Finalmente ficaríamos para sempre em casa, e as crianças não cresceriam como se fossem selvagens ou uns mimados. Mas chegou o desagradável momento de confessar, entre uma xícara e outra daquele condenado chá, que não, que nada disso, que partiríamos para o Chile quando a fragata passasse pelo estaleiro, pequena confusão se armou!
- Eu me congratulo por ter dito que somente partiríamos por seis meses ou, talvez, por um ano, e que o governo se mostrara extraordinariamente generoso.
- Isso foi muito bom, digo que sim. Mas o autêntico ponto de inflexão se produziu durante a janta, quando eu disse que as crianças podiam vir conosco e, acompanhar-nos pelo menos até Madeira, para visitar a ilha conosco durante uma ou duas semanas, antes de voltar à Inglaterra em um paquete. Pode ser que um cruzeiro não suponha nada novo para Clarissa ou Diana, mas Sophie nunca viajou ao estrangeiro e tem muita vontade de fazê-lo. Para não falar das crianças.
- Amiúde me perguntam palavras em português, que repetem uma e outra vez. Porém, querido amigo, não está sendo injusto com Sophie? Ela se opõe a que lhe desprezem na Armada tanto como você, e é óbvio que considera esta oportunidade de se distinguir como a melhor aposta para evitar que se produza semelhante desgraça.
- Sim, certamente, pelo menos agora sim, porque dia sim dia também tive que repetir-lhe que por mais infantil que possa parecer, hastear minha insígnia é a única coisa que poderia fazer-me feliz, a única que poderia fazer-me sentir que tive êxito em minha carreira. Ainda que acho que aquelas brilhantes palavras a respeito do cruzeiro foram a luz no final do túnel, e que provavelmente conseguiram influenciá-la mais que qualquer outra coisa.
- O certo é que não nos prejudicaram. - Stephen poderia ter acrescentado que também lhe havia influenciado a convicção de Sophie de que um marido ocupado no sul do Pacífico não poderia prejudicar a si mesmo na Câmara dos Comuns, claro que expressá-lo em voz alta teria sido atraiçoar a confiança da dama. À medida que cavalgavam pensou na atitude de Diana, que embora fosse menos solícita também era mais cômoda. Era a filha de um soldado, e para ela as responsabilidades marciais, a perspectiva de avançar e distinguir-se na carreira militar, tinham preferência sobre qualquer outra coisa. Ao Stephen dizer-lhe que tinha ordens de dirigir-se após Hornos, ela pareceu refletir.
- Devo pôr para trabalhar de imediato às esposas dos pescadores para que lhe confeccionem roupa, camisetas e roupa íntima grossa de lã sem branquear.
Entraram no pátio montados a cavalo, e George e Brigid se aproximaram correndo para saudá-los. Ambos disseram a Stephen que havia um morcego morto no último estábulo, que o tinham coberto com um monte de feno e que, por favor, por favor, dissecasse-o para eles.
Jack entrou na casa sozinho, enquanto Padeen se encarregava dos cavalos. Sophie, radiante, encontrava-se no saguão; beijaram-se e depois lhe perguntou como progredia o barco.
- O que fizeram é magnífico, magnífico - respondeu Jack, - e quando a fragata estiver pronta, será tão forte como um baleeiro da Groenlândia, e igualmente estanque: perfeito para o gelo do sul. Ainda que ainda não tenham chegado além das bulárcamas{15} de mediania (eu lhe mostrarei na maquete), porque agora estão de braços cruzados, esperando umas curvas que lhes prometeram faz um mês; seu capataz, Essex, levou um corte do demônio no pé com uma enxó. Pobre jovem esse Seppings, desmanchou-se em desculpas e estou seguro de que faz tudo o que pode; mas só Deus sabe quando poderemos partir. Da próxima vez, querida, você vem comigo, para ver o que podem fazer seus encantos femininos. Diana nos levará na carruagem, assim se poupa ter que montar a cavalo.
Mas o encanto de três mulheres juntas, pois Clarissa também lhes acompanhou, vestidas para a ocasião, não bastou para adiantar o trabalho a uma velocidade que permitisse a entrega antes do final do ano. Dado que a propriedade de Woolcombe era quase por inteiro composta de pequenas propriedades arrendadas a granjeiros que cultivavam a terra, e que só tinha pastos suficientes para os cavalos e o gado que tinham, além de pouca pesca e menos caça, Jack se viu privado dos habituais entretenimentos que ocupam ao cavalheiro que habita na campina. Teria ficado louco de tristeza se não fosse por suas tarefas como juiz de paz, a companhia de sua esposa, seus amigos e filhos, herança nada desprezível, e sua paixão de sempre pela astronomia. Algo mais rico agora (não indecentemente rico, mas rico ao final de contas), arranjou-se para construir um pequeno observatório que fosse mais eficiente que o anterior, onde instalou seus telescópios.
Na enorme e antiga casa em perpétua expansão se respirava a atmosfera à qual se havia acostumado durante tantas gerações, a de uma atividade contínua. Stephen, com a ajuda de Padeen e do neto de Harding, Will, trabalhou na elaboração de um censo exaustivo das aves do lugar, sobretudo das aves ancudas que habitavam os arredores do lago. Sophie, e amiúde também Diana, faziam ou recebiam as visitas necessárias. Em todo momento, Diana adestrava e exercitava seus cavalos árabes. Clarissa ensinava George e Brigid a falar latim, assim como em francês, e lia muito, desenterrando livros que fazia tempo não se liam. Sempre tinha rostos conhecidos à mão, na casa, nos estábulos, no povoado e em toda a campina. E em casa, se alguém descuidava de suas tarefas, ali estava Killick para recordar-se. Certamente, as freqüentes disputas entre Bonden e Mnason pela fronteira estabelecida entre os direitos de um timoneiro e os de um mordomo impediam que a harmonia doméstica se tornasse monótona e melosa.
Jack não deixara de comparecer a Poole a cada semana, e finalmente chegou o outono depois de uma boa colheita. Jack e Stephen se dedicaram a caçar numerosas perdizes de Woolcombe, alguns faisões que talvez provinham da criação do capitão Griffiths (sua casa estava fechada e os guardas-florestais despedidos), pombinhos, coelhos, lebres e alguma ou outra codorna.
Em novembro, os cachorros de caça do senhor Colvin serviram a um grande número de pessoas de Woolcombe House, incluídos Diana, Jack e Stephen. E desse momento até que chegaram as inclementes geadas, os três saíram pelo menos uma vez por semana sem deixar passar um só dia, e de vez em quando desfrutaram de uma caça esplêndida. Quando as duras geadas se converteram em uma constante, levaram para casa consideráveis quantidades de antídeos piadeiros e rabudos, e inclusive três mergulhões do norte para povoar o lago. Mas todos estes encantos, muito intensos para todo aquele que desfruta deles e cuja constituição permite tais esforços, nunca impediram Jack de comparecer aos estaleiros de Seppings. De vez em quando, Stephen, propietário legal da Surprise, foi com ele para comprovar os progressos por mais lentos que fossem; mas quando os mergulhões se instalaram no lago, e uma ave que quase certo era uma coruja nival, não houve maneira de afastá-lo do lugar que preparara cuidadosamente para esconder-se e poder observá-los.
Pouco depois do Natal, quando graças ao seu senso inato as aves do norte souberam que podiam regressar a suas monótonas paragens e a coruja nival resultou ser um mito, Stephen partiu a galope para receber seu amigo, a quem encontrou na estrada que costumava tomar, a um lado de Southam. E não o fez sem vontade, pois Jack se ausentara na segunda-feira para reunir-se com alguns amigos em Portsmouth que poderiam ajudar-lhe a conseguir cobre, que a essas alturas ainda era escasso.
- Bem-vindo - cumprimentou Stephen a umas jardas de distância; e ao aproximar-se, acrescentou: - Jack, está doente? Furioso?
- Não - respondeu este. - Só estou com frio e desanimado. Passei por Portsmouth, tal como lhe disse que faria, e dali fui a Common Hard, junto ao Ship, onde vi ao lorde Keith embarcando em sua falua. Afastei-me, certamente, me descobri e ali fiquei, esticado como um pinheiro e sorrindo como um bobão. Olhou-me sem me ver, não mudou sua expressão nem me cumprimentou. Que terrível e cruel golpe, por parte de um homem a quem tanto admirava. Por Deus, isso demonstra de onde sopra o vento. Cada vez tenho a insígnia mais longe de meu alcance.
- E lady Keith? Ia com ele?
- Queenie? Sim. Nossa amizade é mais antiga ainda. Pegava no braço de sua criada, e ia tapada até as orelhas com uma peliça de pêlo. Claro que é possível que não tenha me visto, pois caminhava com cuidado para não escorregar. Seja como for, prefiro pensar assim. Faz muito que somos amigos, ela quase me criou, tal como acho já ter lhe contado. Não me atrevi a chamar sua atenção.
- O almirante se dirige ao Mediterrâneo, suponho.
- Sim. A bordo do Royal Sovereign.
- Grande responsabilidade, quantas minúcias, quantas coisas que recordar! Lorde Keith deve rondar os setenta anos.
- Sim. Já compreendo a que se refere, e espero que esteja certo. Contudo, permita-me dar uma boa notícia: Seppings terminará o casco na próxima semana; ficou tão bonito como a obra de um ebanista. E ao que parece conseguiu o cobre, duas mil lâminas de cobre, e mil e setecentas libras de pregos para o avelanado, junto a dez resmas de papel que colocará no das chapas. Acredita que pode comprometer-se a entregá-la durante a primeira ou a segunda semana de fevereiro.
- Alegra-me ouvir isso - disse Stephen, - porque recebi notícias de nossos amigos chilenos. Chegarão a Funchal no final do mês, ou durante os primeiros dias de março a mais tardar.
- Madeira é muito agradável em março. Tenho muitas vontade de mostrar às crianças as laranjas e os limões.
- Frutas do conde.
- Pinhas e bananas.
- E Madeira conta com uma espécie própia de troglodite que nunca vi, e menos ainda seus ovos.
- Se tivermos que zarpar durante a segunda semana de fevereiro - disse Jack, - não tardarei em ir de novo a Shelmerston para recrutar a alguns dos antigos e melhores marinheiros da Surprise. Ainda que não possamos oferecer-lhes muito dinheiro no que se refere ao butim, com a paz que reina nas Américas acho que depois do desarme de tantos barcos teremos onde escolher, sobretudo tendo em conta que os mercantes não querem admitir mais marinheiros até que o comércio se anime.
A segunda semana de fevereiro foi de grande importância. George e Brigid estudaram o calendário e se negaram a prosseguir com suas lições até tal ponto que Clarissa, que raras vezes dizia uma palavra mais alta que a outra no que a eles respeitava, acusou-os de serem um duas crianças descerebradas, aptas apenas ao trabalho nos estábulos. Sophie e Diana puseram toda sua energia nos preparativos: roupa para a etapa fria da viagem, e também para o calor que esperavam encontrar em Madeira; as ordens para governar a casa e o galinheiro em sua ausência; um milhar de coisas sem nome... Por sorte, Sophie tinha agora uma governanta, uma antiga conhecida do povoado chamada senhora Flowers; era viúva, e antes de seu matrimônio havia trabalhado no serviço da casa; a princípio em um anexo da cozinha correspondente à própia Woolcombe, onde se destilavam ou se preparavam as bebidas, nos tempos da mãe de Jack. Apesar de tudo, quanta agitação emocional se apoderou de todos assim quese fixou a data de partida! Seguiu depois uma grande confusão póxima do pânico, quando o capitão Aubrey regressou de Poole e disse muito alegre:
- Já estamos prontos. Harding, Somers e Whewell estão dispostos a nos acompanhar. A última demão de betume das vergas secou, o enfrechamento já está pronto, os apetrechos e a água se encontram a bordo, temos um vento favorável e o barômetro se mantém; podemos subir a bordo amanhã mesmo.
E não subiram a bordo no dia seguinte, mas tampouco tardaram muito em fazê-lo. Sophie, pálida, esgotada devido ao nervosismo, sentou-se na carruagem, cochilando diante de Clarissa ao aproximar-se de Poole. Estava profundamente adormecida, com a boca aberta, quando a Surprise apareceu ao longe. Ao ver que havia dormido, George e Brigid, geralmente boas e amáveis crianças, portaram-se bem; assim que viram a Surprise Brigid pôs a mão no joelho de Sophie e sussurrou:
- Aí está.
Sophie despertou no mesmo instante e viu a fragata, recém pintada, com as vergas perpendiculares ao casco e toda a lona aferrada em avultados fardos. Podia ter recebido perfeitamente a visita do rei (ou melhor, nesse momento, a do príncipe regente) seguido por um séquito de almirantes, e ao observá-la conteve a respiração; certamente, os do barco tinham permanecido atentos, em espera de que chegasse uma esplêndida carruagem verde conduzida por uma dama.
Sophie era uma dama não menos esplêndida, a quem por si só teriam recebido - ainda que viesse sem o capitão, o doutor e sua esposa, - com toda a formalidade contida permissível em particular... De fato um iate, um iate para a navegação em alto mar. Mas Brigid, intrépida marinheira (que cruzara o canal a bordo da Ringle), escapou ao controle de seus pais e passou a correr para abraçar seus antigos companheiros de tripulação, de tal forma que pôs a perder toda a cerimônia que os da Surprise haviam preparado.
As embarcações pequenas lhe encantavam, os barcos em geral e o mar; aprendera e memorizara um número extraordinário de termos náuticos de sua primeira viagem, e também de sua segunda travessia, a bordo de um paquete inglês no qual navegara desde Valênça para a Inglaterra; foi explicando todos estes termos a George em voz alta e clara, enquanto corria de proa a popa.
- Bem-vindo a bordo, senhor - cumprimentou Harding. - Preciosa embarcação. É tão marinheira como parece?
- Capaz de encostar a proa tão perto do vento como aí minha amada Ringle - respondeu assinalando com uma inclinação de cabeça a escuna que servia de navio de apetrechos, desarmada a flor d’água. - E praticamente não tem abatimento. Lamento ter que deixar a escuna aqui. - Harding o olhou, mas questionar a um oficial superior não era algo visto com bons olhos na Armada, nem mesmo em uma embarcação tão pouco militar como aquela, com seu convés cheio de mulheres e crianças, carente por completo de infantes da marinha.
E como se pretendesse responder às palavras não pronunciadas pelo imediato, Jack acrescentou:
- Mas forraram de cobre o cúter azul; creio que nos fará um grande serviço se encostarmos seu mastro seis polegadas para proa.
Recuperada sua fortuna, Stephen havia providenciado que se proporcionasse ao barco tudo quanto pudesse necessitar. Jack, cuja posição econômica era mais folgada depois de capturar a última presa, enchera todos aqueles buracos que só um marinheiro podia perceber: acrescentara, entre outras coisas, cabo de Manila, moitões de primeira qualidade, velame para qualquer condição atmosférica, cortado por um autêntico artista que dispôs de uma lona excelente.
O vento favorável não lhes abandonara e a bússula do barômetro se manteve imóvel quando largaram amarras, depois de subir a bordo verduras frescas e leite, e foram rebocados para franquear o porto. Largaram então suas níveas alas e saíram ao mar com o refluxo da maré.
- Isso é a braça do maior - exclamou Brigid quando os marinheiros bracejaram as velas para fazer uma saída perfeita. - Não, bobo... Na ponta da verga. - Não cessava de dar explicações, e George, apesar de admitir receios a sua autoridade, estava um pouco chateado. Contudo, à medida que a Surprise se submetia ao cabeceio e balanço do mar, e as ondas rompiam sobre a proa e as amuras com o estrondo mais vívido do mundo, George recuperou todo o candor e a doçura que o caracterizavam e jurou subir ao tope assim que os marinheiros não estivessem tão ocupados.
De fato, seu pai, consciente de que George não era afetado nem pelo medo às alturas nem o enjôo, levou-o acima pouco depois. Acima, não até o tope do mastaréu de joanete, nem ao cesto da gávea do maior, mas às vaus do mastaréu. Àquela altura, com os pés pendurados sobre o vazio, o dia se perfilava limpo e esplêndido, e George desfrutava de uma visibilidade que rondava as quinze milhas, com um pedaço de mar vasto e cintilante a bombordo, sulcado por alguns barcos, e a costa inglesa que se estendia até perder-se de vista a estibordo.
- Se olhar a popa verá Wight - disse Jack, que se movia nas alturas com a soltura de uma arranha, de uma arranha enorme, verdade, mas benévola. O olhar extasiado de George lhe comoveu profundamente, e acrescentou: - Há quem não goste de subir tão alto, pelo menos no início.
- Oh, senhor - exclamou George. - A mim não importa. E se pudesse subiria até o tope.
- Bendito seja - disse Jack, sorridente. - Logo poderá fazê-lo, mas não antes de estar perfeitamente familiarizado com todo o aparelho e exárcia até as vaus. Ali está Saint Albans Mead, e Lulworth, mais além. Navegamos a uns oito nós com rumo su-sudoeste, de modo que na hora do almoço poderá ver Alderney e, talvez, a ponta do cabo Hague, na França.
George riu de pura alegria.
- Cabo Hague, na França - repetiu como um eco.
Finalmente, conseguiu arrancá-lo das vaus até levá-lo ao cesto da gávea, e dali desceu por meio dos amantilhos, similares a uma escada, até deslizar-se ao longo dos últimos pés que o separavam do convés agarrado ao contraestai da gávea, assim como fazia seu pai. Sacudiu o pó das mãos e dedicou um olhar radiante para Jack.
- Oh, senhor, eu também serei marinheiro. Não se pode aspirar uma vida melhor.
E nada sucedeu durante o resto daquela considerável viagem que o empurrasse a trocar de opinião. O quase invariável vento de joanetes procedente do nordeste os levou a uma velocidade compreendida entre os sete e os dez nós dia a dia, e ainda que aferravam as joanetes de noite, e às vezes punham rizes nas gáveas, amiúde tinham a impressão de que alcançariam a ilha em uma semana. Somente em uma ou duas ocasiões tiveram vento de proa, e os meninos desfrutaram comprazidos do espetáculo de ver a fragata dar bordejada atrás de bordejada, o que fez com uma facilidade e elegância assombrosas, pois não só era um barco tão marinheiro como caiba desejar, senão que sua dotação era composta por excelentes marinheiros que a conheciam há anos, e que amiúde navegaram a bordo com mares furiosos de verdade.
Somente uma vez caiu o vento por completo, fato que na realidade se transformou em benção, pois todos a bordo aproveitaram para ver os delfins que se alimentavam de peixes-agulhas de cor verde, cujo número foi diminuindo ante seus olhos. Então, depois que George e seu pai nadaram desde o bote, todos puderam contemplar uma tartaruga que parecia dormir justo debaixo da popa.
- Não se pode comer. Oh, não se pode comer, certamente que não - disse Brigid a Stephen, acompanhando suas palavras com certa inquietação no olhar. Adorava aquela tartaruga, e ouvira falar da sopa de tartaruga.
- Jamais - disse Stephen. - Nunca, céu. É um exemplar de tartaruga-de-pente.
Aquela noite, os marinheiros cantaram e bailaram no castelo até a troca de guarda, com o que concluiu um dia que poderia muito bem ter sido planejado para roubar o coração de uma criança. George subira ao vau do tope do maior com Bonden, e o único detalhe que diminuia o mérito do dia, o único que o separava da perfeição, era a ausência de uma baleia.
Contudo, na manhã seguinte, a ilha que se estendia sobre o horizonte veio a compensar a falta de uma baleia. No meio da ilha viam-se montanhas de picos nevados, detalhe surpreendente porque ali onde eles se encontravam fazia um dia para ir em mangas de camisa, inclusive na hora de desjejuar. Pela alheta de bombordo se estendia outra ilha, talvez a umas quinze milhas de distância, e outras a proa, fragmentos longos e rochosos que os marinheiros explicaram que eram as Desertas. Mas ainda que o nome tinha seu encanto, não tinham olhos senão para Madeira, que se aproximava mais e mais, cuja costa, em sua maioria repleta de escarpados, movia-se ritmicamente da esquerda para a direita.
- Oh, gostaria que Padeen estivesse aqui - disse Brigid. - Ele adora os escarpados.
- Alguém tinha que cuidar da casa, tendo em conta que todos os homens partiram - disse George. - Padeen é forte o bastante para partir um leão pelo meio. E alguém tinha que levar de volta a carruagem com o moço.
A Surprise passou junto a uma esquadra de caravelas portuguesas, essa medusa que assoma uma espécie de crista para a superfície, graças ao que se diz que se desloca, embora troque de rumo mediante os temíveis e venenosos tentáculos que pendem a certa distância, abaixo da superfície.
- Se tivesse nadado entre esses bichos, senhor George - disse Joe Plaice, que navegara com Jack Aubrey por todo o mundo, - teria morrido gritando de dor e lhe subiriam a bordo aos pedaços, mas morto. - Riu e acrescentou: - Piores que os tubarões, porque se demora mais para morrer. - E voltou a rir ao pensar nisso, e depois repetiu tudo palavra por palavra.
Comentários que não bastaram para embaçar sua alegria. O porto de Funchal, aberto, era uma baía cheia de embarcações com um pequeno forte eriguido em uma ilha rochosa. A cidade se estendia atrás do forte com suas casas brancas, construídas uma sobre outra até alcançar uma grande altura, com palmeiras que lançavam lampejos verdes entre as casas, vinhedos e campos de cana-de-açúcar situados ainda mais acima, com as montanhas atrás deles.
Stephen se aproximou também ao castelo de proa, pois sob o convés as mulheres faziam rapidamente a bagagem a sua maneira, e com a luneta mostrou aos meninos não só as laranjeiras e limoeiros, mas também as abundantes bananeiras que surgiam entre as canas-de-açúcar; do mesmo modo lhes mostrou os habitantes da ilha, vestidos à maneira de Madeira, estranha e gratificante visão para todo aquele que nunca tivesse viajado.
A estibordo, Jack e Harding observaram os barcos e embarcações do porto. Havia numerosos mercantes, e também muitos, muitos pesqueiros, mas o que realmente lhes interessava eram os barcos de guerra ingleses.
- Pomone, trinta e oito canhões - disse Jack com total segurança, pois ele mesmo a capturara na campanha de Mauricio. - Agora está ao comando de Wrangham, acho.
- Sim, senhor. É o que me disseram. E detrás está a Dover, de trinta e dois canhões. Claro que agora só é um barco de transporte de tropas. Estou seguro de que o senhor reparou na bandeira inglesa que ondea no pequeno forte.
- Sim. E no castelo, sobre a cidade. Parece que cuidamos do lugar para os portugueses, como ambos estávamos em guerra contra Espanha. Mais além do bergantim há duas corvetas, a Rainbow e a Ganymede. Desfrutaremos de melhor ancoradouro a terra da Ganymede: há marejada, e ela nos abrigará. As senhoras não quererão se molhar, e tampouco creio que ponham objeções se as descermos ao bote sentadas na cadeira do contramestre.
E não puseram objeções; acomodaram-se em silêncio na bancada de popa do bote, em companhia de Jack e Stephen, depois de acomodar as crianças onde facilmente puderam e de proibir-lhes também de afundar a mão na água, falar e fazer palhaçadas. Avançaram entre os muitos botes que iam de um lado para o outro entre os cais e os barcos, carregados de água e apetrechos em uma direção, e de marinheiros de licença na oposta, marinheiros cujos rostos transbordavam alegria e que vestiam seus melhores trajes.
Quando o bote se achava a dois ou três cabos do ponto de desembarque, Stephen murmurou para Jack:
- Entre essa gente daí achei ter visto nossos amigos chilenos.
Tinha razão. Com um esforço final, o bote ascendeu pela praia e os marinheiros de proa puxaram dela e a levantaram. Os chilenos ajudaram as damas a descer com uma cortesia infinita, e disseram a Stephen que todos estavam convidados; inclusive haviam se ocupado de conseguir uma carruagem para levá-los a um hotel inglês. Tratava-se de um trenó com cortina para quatro, puxado por bois e dotado de amplos patins de madeira que deslizaram com maior ou menor violência pela desigual ladeira. As crianças, ainda que geralmente fossem muito disciplinadas e obedientes, negaram-se redondamente a subir porque preferiam segui-lo correndo e dar voltas ao seu redor.
O hotel poderia ter sido perfeitamente uma excelente pensão de campina inglesa, se não fosse pelas plantas tropicais do pátio. Ali, enquanto as mulheres desfaziam a bagagem, Jack, Harding e Stephen se encontraram com diversos conhecidos da Armada. O de Stephen foi o cirurgião da Pomone, que se aproximou de imediato para perguntar-lhe como se encontrava. Conversaram demoradamente, depois que Jack e os chilenos se despediram para mostrar a Sophie, Clarissa e as crianças as maravilhas de Funchal. Stephen apreciava ao senhor Glover, um homem de medicina muito respeitável e consciencioso.
- Julgaria, o senhor, impróprio de minha parte que lhe falasse de um de seus pacientes? - perguntou o senhor Glover depois de titubear.
- Tratando-se do senhor, não - respondeu Stephen.
- Nesse caso, direi que estive a bordo do Queen Charlotte faz pouco tempo, e que Sherman me pediu que visitasse ao almirante, a quem encontrei em um estado muito lamentável. Sherman esteve de acordo, disse que o senhor lhe havia receitado Digitalis... que ele e o almirante apreciaram uma considerável melhora passados dois ou três dias, mas que o paciente aumentara a dose, e que quando Sherman protestou disse que o senhor era médico e que, portanto, sabia mais de medicina que um simples cirurgião. Ao parece, o almirante confiscou a garrafa ou obteve a substância de outra fonte (ao chegar a este ponto, o relato de Sherman se tornou um pouco confuso, ainda que eu diria que em nenhum momento se mostrou contrário à receita do senhor); seja como for, a estas alturas o desgraçado almirante deve ter ingerido grandes quantidades. Quando o vi e lhe disse que em excesso as consequências eram muito graves e perigosas, quase não estava lúcido.
- Obrigado, querido colega - disse Stephen. - Escreverei de imediato a lorde Stranraer. Agora mesmo. Tentarei convencer-lhe com sólidos argumentos e sem rodeios. Enviarei também uma nota a Sherman para sugerir a tintura de láudano, como paliativo à constante ansiedade que acompanha tal condição, seguida de uma licença em terra assim que for possível.
- Ou a tumba - disse Glover em voz baixa. - Pergunto-me se o senhor poderia me acompanhar em visita ao meu pobre capitão. Quebrou a perna ao cair por uma escotilha. Encontra-se internado no hospital religioso situado caminho acima. Estou seguro de que sua visita será um grande consolo para ele. Devo também admitir que a coisa durou muito, que o osso não se soldou. Apreciaria muito sua opinião.
Os chilenos eram pessoas amáveis, hospitaleiras e civilizadas. Obviamente, sabiam que o capitão Aubrey e o doutor Maturin queriam que suas famílias visitassem a ilha antes de que partisse o paquete após quinze dias rumo à Inglaterra, mas também desejavam que Jack empreendesse a travessia rumo à América do Sul assim fosse possível, de modo que conduziram a visita a uma velocidade que reduziu a todos, inclusive às crianças, a um exausto silêncio: Pela manhã, dois vinhedos e uma extensa plantação de cana-de-açúcar; e a catedral e o ossuário pela tarde. As montanhas, em mulas, no dia seguinte, com uma pausa para ver os curiosos edifícios nos quais amadurecia o vinho de Madeira em enormes barris, a uma temperatura que seria tachada de excessiva no calidarium de um banho turco. Prometeram uma surpresa para a jornada do dia seguinte, e as vítimas discutiam diversos planos de fuga sentadas no terraço do hotel, enquanto desfrutavam de um esplêndido café da manhã inglês e observavam o porto, quando Jack viu entrar uma feluca completamente coberta de lona, que evitou às demais embarcações para ancorar a toda pressa. Um jovem tenente da Armada, com uniforme de gala, saltou ao porto, correu pelo cais e desapareceu nas estreitas ruelas.
- Acho que aquele tipo tinha muita pressa - comentou Jack, mais relaxado. - Estava convencido de que ele levaria um telegrama para alguém. Querida, tenha amabilidade de servir-me outra xícara de café. Estou exausto.
O café cruzou a mesa e foi recebido com os braços abertos; contudo, não tinha conseguido consumir a metade da xícara quando apareceu o jovem tenente, olhou ao seu redor, viu Jack, avançou, descobriu-se, rogou que lhe perdoassem por interromper o capitão Aubrey e se desculpou dizendo que levava uma carta do almirante.
- Obrigado, senhor Adams - disse Jack, pensando que na última vez que o vira era guarda-marinha. - Sente-se e tome algo enquanto leio a carta em meu quarto. Desculpem-me - disse pegando a carta e inclinando-se para um lado e para outro.
A carta era de lorde Keith, fechada: "A bordo do Royal Sovereign, em alto mar, 28 de fevereiro de 1815", e dizia:
Meu querido Aubrey,
Dizem que o outro dia passei junto ao senhor em Common Hard. Lamento muito não ter lhe cumprimentado, porque pode ter parecido intencionado de minha parte, e meu descuido pode ter gerado um mal-entendido.
Contudo, um amigo seu em particular, e do doutor Maturin, que trabalha no Almirantado, disse onde podia encontrar-lhe, de modo que posso agora resolver esse mal-entendido e algumas outras coisas, pois neste momento necessitamos de bons oficiais.
Napoleão fugiu de Elba anteontem. O senhor deve assumir o comando de todos os barcos e embarcações de sua majestade presentes em Funchal, hastear seu galhardetão a bordo da Pomone e, assim que o Briséis se reúna ao senhor, navegar sem maior dilação para Gibraltar, onde efetuará o bloqueio do estreito e impedirá a saída de qualquer embarcação até que receba novas ordens. Para tudo isso, a presente carta terá de servir-lhe de autorização.
Com nossos melhores desejos para o senhor e a senhora Aubrey,
Atentamente, e etcétera,
Keith
E ao pé de página, escrito com uma letra que lhe resultou familiar: "Querido Jack, quanto me alegro por você. Sua querida, Queenie".
Glossário
{1} Cinquillo: jogo de baralho que inicia com a carta cinco.
{2} Termos intraduzíveis com precisão que fazem referência a direitos da antiga legislação inglesa sobre terras comunais.
{3} Estádio: medida antiga de comprimento; 1 estádio= 201,2 metros.
{4} A confusão se devia ao doutor alemão empregar ghost (fantasma) no lugar de goal (cabra).
{5} Jardim: nome dado ao sanitário nos barcos.
{6} Oriundo da Ilha de Man: o escudo da ilha de Man, são três pernas unidas à altura da coxa sobre um fundo vermelho.
{7} Inchimán: barco da companhia das Índias.
{8} Strephon é um pastor apaixonado que aparece no romance pastoril Arcadia, escrito por Philip Sidney (1554-1586).
{9} Esqueleto de Napier: instrumento que constava de umas varetas, cujo manejo facilitava o cálculo aritmético.
{10} Batidero: Mar. Conjunto de os pedaços de tábua em forma de triângulo postos na parte inferior dos lados do talha-mar para evitar os golpes das águas nos cabeceios.
{11} Tenedero: Mar. Paragem do Mar, onde se pode prender e afirmar-se a âncora.
{12} Gaviete: Mar. Madeira curva, robusta e com uma roldana na cabeça, que se coloca na popa do bote para recolher com ela uma âncora, puxando do cabo ou do arinque encapelado previamente sobre dita roldana.
{13} Calesín: Carruagem leve, de quatro rodas e dois lugares puxada por um só cavalo.
{14} Jogo de palavras entre push (pressão) e folly (loucura).
{15} Bulárcamas: Mar. Cada uma das ligações que, de trecho em trecho, são colocadas sobre o forro interior do navio, e que, cavilhadas à sobrequilha e às balizas, servem para reforço destas.
Patrick O brian
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