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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALTIVEZ / Pearl S. Buck
ALTIVEZ / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

"SUSANA GAYLORD vai casar-se!" Ela ouvia estas palavras tão nitidamente como se tudo o que a rodeava lhas repetisse, as árvores e aquela ave sobre o olmeiro, ali ao lado, na floresta do Vagabundo. Um grilito precoce da Primavera atirava-as em notas estrídulas, e a voz de Marcos, grave e profunda, perguntava-lhe humildemente: "Susana, queres e podes casar comigo?"
Bem suspeitara ela de que seria esse o dia e a hora escolhida por Marcos. Tudo esperava da parte dele, desde o tempo em que, ainda rapaz, alto mas tímido, viera duma quinta vizinha para se matricular no quinto ano do curso. Haviam-se acompanhado mutuamente nos seus estudos, Susana com a sua constante alegria, ele alto e sempre tímido, e qbservando-a um pouco distanciado dos outros. Desde o primeiro dia que Susana tivera consciência daqueles olhos poisados sobre ela.
"Posso casar - respondera - e quero casar contigo". Marcos tremia; ela sentia vibrar aquelas mãos poisadas sobre os seus ombros. Pronto. Casar-se-ia. E entre todas as coisas que desejava, o casamento ocupava um dos primeiros lugares.
Marcos puxou-a para si. Teve então a impressão desconhecida daquele corpo ossudo e largo, cingido contra o seu. Estava longe de ser pequena ou fraca, como a maior parte das raparigas; no entanto, sentia-se diminuída por aquele contacto. Esta nova sensação pareceu-lhe agradável, mas não a deixou perturbada, embora ele a beijasse lon gamente, com paixão.
- Era este todo o meu desejo, desde o primeiro dia, no quarto ano - disse Marcos.
- Mas não me escolhias, nem nesses jogos em que a gente se abraça - observou Susana, rindo.
Detesto essa espécie de jogos-respondeu ele, rápido.
Gosto dum beijo, mas sério.
E conservava-a apertada, imóvel.
Eu sei - murmurou Susana.

 

 

 

 

Guardaram silêncio por muito tempo. Ela apoiava-se de encontro a ele, passada já toda e qualquer agitação. Fora a custo que pudera descobrir o que desejaria ser. O velho professor Kincaid dissera-lhe um dia, muito tempo antes, quando ela frequentava o seu curso de inglês: "Susana, podias muito bem escrever, se quisesses". Mas o pai levara-a ao teatro em Nova Iorque, e logo pensou em ser actriz. Durante vários anos, vira-se sobre o palco, forjando para si mesma um temperamento que não tinha. Verdade seja que poderia revestir-se do que lhe aprouvesse. Mas havia a questão das mãos; desejaria servir-se delas. Gostava de sentir o contacto de materiais utilizáveis, qualquer coisa de mais tangível do que a música ensinada por seu pai. Queria tudo. Foi então que resolveu casar-se, e ter muitos filhos.
Interrompeu por um instante as suas reflexões, para recordar a impressão sentida pelos dedos quando modelavam a cabeça de sua irmã Maria. Pareciam-lhe ágeis, rápidos, e, na sua alegria, gritara: "Maria, vem ver! Cá estás!"
E Maria olhara, mas, enquanto Susana esperava uma exclamação, dizendo, surpreendida: "Oh, sou eu, sem dúvida, Susana! Está admirável!", a irmã estendera o braço e reduzira o barro molhado a uma pasta informe. "Fizeste-me horrenda!" gritara, em meio da sua cólera. "Detesto-te!" e fugira, desfazendo-se em lágrimas.
Susana, demasiadamente vexada para poder responder, apanhara o barro e amassara-o de novo. Entretanto, os seus dedos diziam-lhe que o que havia feito era bem Maria, quisesse esta ou não quisesse. Susana sentia arderem-lhe as palmas das mãos; e os dedos abriam-se-lhe e fechavam-se-lhe à lembrança daquela obra.
- Marcos-dissera, afastando-se para o olhar-quando estivermos casados, aborrecer-te-ás se eu me dedicar a sério à escultura? Bem entendido, não me deixarei absorver por esse trabalho.
- Quererei que faças sempre tudo o que quiseres. E aqueles olhos azuis, claros e doces, tomaram uma expressão tímida. - Eu não estou à tua altura, Sue. Sei-o bem.
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E a minha família também não; crê que és a rapariga mais elegante da cidade.
- Que absurdo! - disse Susana, aborrecida. - Não passo da filha dum pobre professor. - E beijou Marcos de novo, apressada e com força, e pegou-lhe na mão, rindo.
- Corramos! - e lançou-se no caminho de casa, através do bosque.
"vou casar-me!" pensava, ao ritmo extasiado dos pés, que tinham asas. "vou casar-me!..."
- Preferiria, Susana - disse a senhora Gaylord- que te casasses menos nova. Vais prender-te muito cedo.
- Quero casar-me! - respondeu aquela.
A mãe nada acrescentou. Trabalhavam ambas em roupa branca; talhavam e alinhavam o enxoval, depois de terem arrumado a loiça do almoço. Susana tinha a impressão de que a mãe lhe queria falar. Seria uma frase indirecta e velada, pois a mãe não se sentiria oprimida por esta questão do casamento. Uma vez, alguns anos antes, quando Marcos começara a visitá-la, a senhora Gaylord tentara uma explicação. Susana subira à meia-noite, de rosto corado, assaltada por uma exaltação que não conseguia compreender. A mãe esperava-a no seu quarto, metida num roupão de lã cinzenta, com os cabelos apertados em trancinhas, para as ondulações da manhã.
- Sinto que há uma coisa que devo dizer-te, Susana começara a mãe, com expressão contristada.
- Que há? - perguntara a filha, olhando-a fitamente.
- Acho que na tua idade...
Susana notara o embaraço de sua mãe; sentira um calor ardente e o coração batia-lhe com força. E disse em tom seco:
- Está a pensar em Marcos?
- Penso em qualquer rapaz, seja ele quem for.
- Pois não tem de que se inquietar. Marcos e eu nada arriscamos; aliás, eu saberia bem guardar-me.
- Então, já que compreendeste o que eu queria dizer...
- E a mãe soltou um suspiro; confusa, com as faces vermelhas, beijara a filha. À saída, o cinto do roupão, que arrastava, prendeu-se-lhe na porta do quarto.
- Oh! - gritara, lá de fora.
- Pronto, já está - disse Susana, libertando-a.
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E, nessa manhã, Susana sorria, um pouco trocista; ainda na véspera, à noite, rira com Marcos, dizendo-lhe:
A mãe há-de sentir-se na necessidade de me dar
explicações, agora que estamos noivos.
- A meu respeito? - perguntara ele, gravemente. Estou mesmo a ver teu pai, erguendo as sobrancelhas, e a perguntar-me: "Para que casa com minha filha, meu rapaz?" Nem saberei que responder-lhe, pois, como sabes, falhei no seu curso de poesia.
- Isso nada interessará a minha mãe - e Susana rira.
- Não; o que há é querer falar-me da vida.
- Das realidades e de tudo? - E ficara grave, de novo. Ela erguera a cabeça, e ambos se puseram a rir...
- Não fazes umas pregas aqui? - perguntou-lhe a mãe.
- Já estão alinhavadas - respondeu a pequena.
E fez passar as compridas bainhas sob a agulha da máquina. Depois, provou a saia.
- O que fazes tem realmente gosto-disse a mãe, bem a seu pesar. - E vais tão depressa, que era fácil enganares-te. Mas não, está bem; nem percebo como te sais assim.
- É nos dedos que sinto se vai bem ou não.
Era-lhe familiar esta impressão indefinível de ardente realização dum plano concebido pelo cérebro. Sentia-a a propósito de muitas coisas, mas principalmente quando modelava. Tornava a encontrá-la quando cosia uma bainha, preparava um bolo ou dispunha flores num jarro. Representava-se intimamente uma imagem do que deveria ser, e os seus dedos realizavam-na como escravos submissos, experimentados e rápidos. Sorriu-se e acrescentou: "Espero que consiga fazer o meu vestido de noivado".
Poderia comprá-lo. O pai dera-lhe cem dólares, e dissera-lhe:
- Escolhe o que quiseres, Susana. É o preço de vinte composições, pelo menos. Deus é que sabe como a poesia está barata! Sinto-me feliz ao pensar que, em vez disso, teu marido se ocupará em vender propriedades, que têm um valor real.
O pai de Susana ensinava literatura num pequeno colégio do Este e fingia ser a poesia a sua ocupação verdadeira, mas não conseguia convencer pessoa alguma a tal respeito e ninguém contava com o que ele assim ganhasse para as despesas da casa.
Susana aceitara o dinheiro com reconhecimento e
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cuidadosamente examinara os vestidos de noivado nos estabelecimentos da cidade. E quantos mais via, mais o seu lhe aparecia diferente de todos os outros. Ela mesma o faria. Comprou alguns metros de pesado cetim, dum branco que não era verdadeiramente um branco fosco, mas dum tom quente. Adquiriu também um pouco duma renda bonita por dez dólares, e ainda uma nuvem de tule por outros dez.
- Não deseja um figurino? - perguntara o caixeiro.
- Não, obrigada.
Ao ajustar o tecido sobre o corpo, esqueceu-se de que era o seu vestido de noivado que fazia; sentia-se invadida por uma febre de realização mais profunda. Esqueceu-se até de Marcos. Dava forma a um objecto. Cada um dos seus trabalhos a arrastava assinr, lhe enchia de harmonia todo o seu ser. Alisou o cetim de encontro ao flanco juvenil e vigoroso.
- Na verdade, cai-te à maravilha! - observou a mãe, com um suspiro.
Susana ouviu-o.
- Está fatigada? - perguntou vivamente.
- Não - respondeu aquela, e cerrou os lábios. Havia calor ali onde estava; a mãe ergueu os óculos e enxugou o rosto redondo e rugoso ao avental branco.
Então, no silêncio da casa, Susana apercebeu-se dum elemento de discórdia, que quebrara a harmonia que a banhava, como se fosse uma vespa zumbindo de encontro à vidraça. Levantou a cabeça. Sua irmã Maria executava a Consolação, de Mendelssohn, lentamente, com aplicação, mas trocando sempre o principal sustenido da melodia por um bemol. Susana hesitou um instante, escutou, e o bemol, ferindo-lhe o ouvido, causou-lhe verdadeiro sofrimento. Poisou o cetim e dirigiu-se vivamente para a porta.
- O que é?... - perguntou a mãe. Mas Susana nem parou; era preciso impedir que Maria chegasse ao bemol. Susana experimentava autêntico mal-estar físico. Apressou-se a abrir a porta do salão.
- Maria - disse docemente. Mostrava-se sempre meiga para a irmã, cinco anos mais nova. Ao piano, Maria virou -para ela o rosto sério, que parecia interrogá-la. As mãos pequenas e magras conservavam-se ainda curvadas, suspensas sobre as teclas.
- Querida... Queres que te mostre? - E Susana empurrou levemente a irmã no banco, e executou a ária com sons
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cheios e suaves. -Vês? Aqui e ali... Percebes? O canto diz- "Não estejas triste, nunca mais. Lembra-te, lembra-te da felicidade passada!" Assim, o tom é maior, não menor. Aí tens! - E tocava, aliviada, feliz por apaziguar o sofrimento que a nota falsa lhe causara. E recomeçou, para satisfação própria, e esqueceu Maria e deu todo o som à melodia, reconfortando-se a si mesma.
- Nunca conseguirei tocar assim - e a voz de Maria soou fraca e desanimada.
- Mas certamente que sim - respondeu Susana, alegremente. E levantou-se: - Queres experimentar comigo? Eu te mostrarei como é.
Notou de súbito o mau humor de Maria. Afinal, esta tinha só quinze anos, em face dos vinte de Susana.
- Não, decerto; preferes estudar sozinha. E podes fazê-lo, asseguro-te. Tens feito muitos progressos na música. - Susana tinha o ardente desejo de restituir a Maria a sua alegria. Desejava que toda a gente se sentisse feliz à sua volta.
- Creio que vou desistir por agora - disse Maria. E fechou o caderno. Viam-se-lhe os lábios cerrados.
- Muito bem, querida-disse Susana, sorrindo-; eu vou para o meu trabalho. Queres vir ver o meu vestido?
- Mais logo - respondeu a irmã. E nem olhou para Susana, conservando o seu ar sério. Afastou com as duas mãos os cabelos soltos e negros, e saiu lentamente.
Susana voltou para o seu monte de cetim.
- Que há? - perguntou-lhe a mãe.
- Era a Maria que se enganava com um bemol.
A mãe nada disse. Sob o tecto baixo, o calor pareceu bruscamente surgir do chão, com violência. Ao cabo dum momento, a mãe prosseguiu:
- Eu sei que não tens intenção de a melindrar; mas Maria anda agora muito susceptível, é da idade. No teu lugar, não lhe fazia observação alguma.
- Oh, não, não lhe ralhei! - observou Susana, vivamente.- Custar-me-ia fazê-lo. Mas uma nota errada é tão insuportável! A boca torna-se-me seca e as mãos humedecem-se-me. É estúpido, mas não posso evitá-lo.
- Farias melhor indo para onde não ouvisses - disse a mãe; e acrescentou: - Tens certa tendência para ser autoritária, Susana. Deves ter cuidado com isso.
Susana não respondeu, sensível à censura. Tinha muitas
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vezes consciência dessa nuvem que se erguia entre ela e os outros, uma nuvem ligeira, que se recusava a admitir. Notara que, se se mantivesse silenciosa, sem procurar explicar-se, se deixasse os acontecimentos seguirem o seu curso, a nuvem se dissiparia. E a felicidade era-lhe indispensável. Sob aquela nuvem, nem poderia respirar.
- Deseja que vá fazer o molho?
- Se quiseres... - respondeu a mãe-; de facto, parece-me que preparas melhor do que eu o molho do guisado.
Susana inclinou-se e beijou a mãe.
- Que tolice!-disse em tom alegre.
Mas a mãe não lhe correspondeu ao sorriso. Susana gostaria, muitas vezes, de ver a mãe sorrir. Por que não, quando tudo era tão bom? Entre as duas, facilmente se levantava uma nuvem. Já as não haveria depois, quando estivesse casada com Marcos, pensou, enquanto atava um avental em volta do corpo, na cozinha. Gostava desta casa, sim; mas o lar que faria para Marcos seria seu, uma obra sua.
"Gostava tanto de estar casada!" repetia para si mesma, ardentemente.
Repousava nos braços de Marcos, à sombra espessa do grande carvalho, perto do alpendre. Tinham estendido uma cobertura no chão e contemplavam a Lua, que subia lá ao fundo do caminho. Via-se a casa toda iluminada. A mãe estava na cozinha, e o pai na sala, corrigindo os exercícios dos alunos; ouviam-no gemer: "Oh, meu Deus! Meu Deus!" Susana julgou vê-lo, encostado, de olhos fechados, imóvel por momentos, antes de poder continuar, torturado pelo amor duma perfeição que não conseguia encontrar. Maria, no salão, estudava de novo a sua lição de piano. Susana endireitou-se; escutou um instante, fremente.
- Ah! Deus seja louvado! - exclamou, rindo.
- Amen. Mas porque é isso? - perguntou Marcos.
- É que Maria não se enganou desta vez--respondeu ela.
Marcos não compreendeu. Paciência. Maria tocava com dedos que hesitavam, que procuravam acertar, e Susana estendeu-se, penetrada dum bem-estar que nada tinha a ver com Marcos. A exactidão dá tal conforto, tal consolação! Ver uma coisa, seja ela qual for, apresentar proporções justas, desenhar os contornos reais com segurança e
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simplicidade, que satisfação sem limites! Marcos nada respondera; olhava-a, apenas; e Susana via que, de facto, ele não a compreendia. Não podia explicar-se, era um instinto impossível de definir por meio de palavras; e, assim, viu-se forçada a mudar logo de assunto.
- O meu vestido de casamento está meio pronto murmurou.
- Meu tesouro!-disse ele, baixinho. - Não vejo por aí outra rapariga capaz de fazer tanto.
- Dá-nos tanto prazer realizarmos um trabalho!
- Sim; mas tu atinges tal perfeição! Tocas, cantas, pintas, cozinhas e modelas! - Parou, e depois acrescentou, humildemente: - Eu não sou digno de ti.
Susana tinha horror a esta humildade, que quase lhe inspirava repulsão por ele. Não queria desposar um homem que se lhe sentisse inferior. Mudou de conversa, para expulsar esta impressão:
- Quero fazer o teu busto, Marcos. Tens uma cabeça soberba. Deixa-me olhá-la.
Sentou-se e virou a cabeça do noivo para a claridade da Lua; passou mãos delicadas, sensitivas, pelos seus contornos. Via já como deveria começar; uma firme e vigorosa pressão sobre o barro daria aquela curva profunda e plástica da base do cérebro; os polegares sólidos, voltados para o interior, cavariam as longas órbitas. Apossou-se dela uma aspiração dolorosa, familiar, profunda. O luar e o carvalho desapareceram. O próprio Marcos se esfumou. Apenas a sua cabeça grave, de traços pronunciados, permanecia entre as mãos de Susana. Esta pensou com ardor no bloco de barro húmido sob o pano molhado, na pequena alcova contígua ao míseu quarto. Agitou-se; depois, acalmou-se de novo.
Seria demasiadamente ridículo querer abandonar o noivo, numa noite de luar, para lhe modelar o busto em barro. Puxou de encontro ao peito a cabeça de Marcos. Essa cabeça, verdadeira e quente, sobre o seu seio, não seria melhor, infinitamente melhor? Tinha de tomar cuidado em não deixar escapar nenhuma das quentes realidades, enquanto estivesse entretida a fazer-lhe a imagem.
Uma a uma, as luzes foram-se extinguindo, dentro de casa. O piano calou-se; a cozinha tornou-se escura. Por um momento, os pais apareceram sob o alpendre.
- Ah! Os dois mortais embebidos em orvalho! -
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exclamou o pai na obscuridade, para a sombra onde eles se conservavam. Ao luar, os cabelos prateados luziam suavemente e a sua bela cabeça sobressaía; a expressão descontente da boca e dos olhos apagava-se nesse momento sob a claridade lunar.
- Boa noite, boa noite! - exclamou Susana com meiguice; e Marcos repetiu:
- Boa noite, senhor Gaylord. O pai queixou-se:
- Estão já a mandar-me deitar; aqui têm as maneiras da nova geração!
Todos riram e o professor calou-se por momentos, depois do que continuou:
- Afinal, também creio que nada de melhor tenho a fazer - e bocejou.
- Não haverá muita humidade? - perguntou a mãe. Podiam ter estado na sala.
- Anda, vamo-nos deitar, Jenny - e o marido levou-a. A casa ficou silenciosa e sombria. Susana sonhava, com
a cabeça encostada ao ombro de Marcos.
- Em que pensas?-acabou este por dizer.-O que vês? Ela fez parar a torrente dos pensamentos que lhe
afluíam ao cérebro e reflectiu antes de responder. Distinguia uma centena de imagens: a casinha onde habitariam, com cortinas azuis, sobre a mesa uma refeição perfeita, cozinhada por ela, alguns filhinhos sãos com os seus olhos e a boca de Marcos, o busto deste, de barro, já terminado e tal como o desejara, uma reunião de amigas alegres e sentindo-se à-vontade em sua casa, e mais para além, mais para além, como se fossem brilhantes nuvens encasteladas, iluminadas de sol, os anos que viriam. E disse:
- Eu quero ser a melhor das mulheres, a melhor das mães. Quero fazer uma imensidade de belas coisas de pedra e de bronze, coisas que hão-de durar. Quero ver mundo e os diferentes povos. Não há coisa que eu não deseje!
Marcos manteve-se em silêncio por um bocado; depois, observou:
- Se não se tratasse de ti, diria que isso era uma loucura. Mas tu és única, não te pareces com ninguém.- E acrescentou: - Hás-de alcançar tudo o que desejas; por mim, contentar-me-ia com ter metade da certeza de poder fazer outro tanto.
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Ela viu uma ligeira sombra passar sobre a Lua.
- É a ti que eu desejo - murmurou logo. E, no escuro, poisou a mão sobre a cabeça de Marcos, deixando-a deslizar lentamente pelos cabelos, pelas orelhas, pelo pescoço, pelo queixo... Esqueceu-se de tudo mais. Na manhã seguinte, levantar-se-ia muito cedo para começar o busto de Marcos.
- Minha querida! - murmurou ele, e voltou-se para poisar os olhos sobre a mão de Susana.
- Meu querido! - respondeu-lhe esta; e os seus dedos, sensíveis como dedos de cego, roçaram os lábios do noivo. Lembrar-se-ia, assim, da sua curva, na manhã seguinte. E a esta ideia endireitou-se febrilmente.
- Que há? - perguntou Marcos, surpreendido. Ela reconsiderou, indignada contra si mesma.
- Não sei... Nada! - respondeu, recaindo sobre ele.
- És uma rapariguinha esquisita. No momento em que te falo de amor, estás sempre a procurar fugir.
Susana lembrou-se então de que ele falara com efeito. Teve vergonha e sentiu-se até um pouco alarmada.
- Oh, amo-te, amo-te! - murmurou, estimulando-se com estas palavras.
Mas ele estava gelado. Rodeava-a com os braços, sem convicção.
- Às vezes até me pareces desconhecida para mim disse.
Ela protestou:
- Oh, não, Marcos! - Que nuvem era esta, na noite maravilhosa?... E suplicou, atraindo-o para si até que os lábios de ambos se juntaram: - Ama-me sempre, sempre!
- Sem dúvida! - prometeu ele, resoluto. Susana insistiu:
- Ama-me muito, muito! Pertenço a ti, só a ti.- E cin-gia-se de encontro a ele. Queria-lhe mais que a tudo. Nenhum outro desejo seu atingia tal profundidade.
- Casemo-nos depressa - murmurou. - NO mês que vem, em vez de Junho.
Marcos tomou-a, apertou-a contra si. Embora tamanha versatilidade o desconcertasse, sentia-se comovido por aquele desejo.
- Por que não?-disse.-Amanhã pedirei um aumento. Abraçaram-se, sozinhos em meio da noite, a terra quente
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por baixo deles, por cima o carvalho sombrio. Foi Marcos o primeiro a levantar-se, dum salto, resmungando:
- Talvez fosse melhor ir-me embora; já é tarde.
- Pois sim - respondeu Susana, não reposta ainda. E ficou por um momento estendida, a olhá-lo.
- Susana, levanta-te - murmurou ele.
A rapariga ergueu-se, compôs os cabelos. Quisera certificar-se de que poderia esquecer tudo, além de Marcos; estava certa disso agora.
Foram juntos até à barreira. A Lua ia alta e a sua luz era tão brilhante, que os noivos se beijaram precipitadamente, com medo de que os vissem, quer das janelas das casas, quer da rua ou dos alpendres, onde algumas pessoas se conservavam ainda, nas suas cadeiras de baloiço. Marcos saltou a barreira, e, sorrindo para Susana, disse:
- Até amanhã!
- Até amanhã! - respondeu aquela.
Demorou-se ainda, assaltada por uma impressão quase triunfal, e viu-o afastar-se, viu a sua silhueta ir diminuindo com a distância. Desejaya-o mais que tudo no mundo... Depois, enquanto o seguira com a vista, sentiu uma vontade assaltá-la. Esperou ainda um momento, até que, lá na volta do caminho, Marcos lhe fez um gesto com a mão, ao desaparecer. Correu então para casa e subiu as escadas até ao seu quarto. Não era muito tarde, meia-noite apenas. Fechou devagarinho a porta e dirigiu-se logo para o monte de barro mole colocado na alcova; acendeu uma lâmpada e envergou a sua bata de trabalho. Tremia de felicidade. Pegou numa bola de barro; juntou-lhe um pouco mais. Devia chegar, agora. Deu-lhe a forma exacta, conforme se lhe representava. Primeiro, forma grosseira, com linhas largas. Trabalhou durante horas. De tempos a tempos, cantarolava baixinho: "Há-de ser a minha glória! A minha glória! Minha glória!" mas nem dava por que cantava. Era perfeitamente feliz, sozinha nessa casa, sozinha no mundo. Ia conseguindo o que queria; ali, já havia semelhanças. Poisou o busto com gesto firme sobre o bloco de madeira que lhe servia de base, e recuou.
Agora, dados já os contornos, poderia esperar até de manhã. Mas não; antes, desenharia finamente os lábios, enquanto os seus dedos os recordavam tão vivamente. Tocou-os, modelou-os, absorvida pela ideia desses lábios. Ali estavam, eis como eles eram. Oh, a esplêndida alegria
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de atingir a perfeição! Susana recuou um passo e baixou a lâmpada; era bem a boca de Marcos, conseguira fazer-lhe a boca! Suspirou, como se suspira depois de uma vitória. O sono viria agora. Sentia-se liberta. Tropeçando, foi até à casa-de-banho e lavou-se, meio a dormir. Passados minutos, mergulhou num sono sem sonhos, num repouso absoluto...
- Mas não vejo por que hás-de apressar assim o casamento! - dizia a mãe, ao almoço, como aturdida.
Susana estava acostumada a essa expressão que se espalhava como uma sombra sobre o lindo rosto emurchecido da mãe. O seu próprio ardor lha fazia esquecer, enquanto a não via aparecer de novo. Entrara na sala-de-jantar, a dançar e a cantar: "Casamos no mês que vem, Marcos e eu". E logo o rosto da mãe se nublara.
- Pois olha que a vida de casados dura sempre bastante tempo - disse.
- Escuta, escuta - murmurou o pai.
- Pois não és da minha opinião?
- Incontestavelmente; mas, desta vez, o assunto não me respeita.
- O teu tempo de solteira é bem curto; depois, acabou-se a liberdade.
- Marcos e eu estamos convencidos de que teremos mais, depois, do que antes - declarou Susana; a seguir acrescentou: - vou buscar os ovos.
A mãe ainda disse, num suspiro:
- Enfim, faze o que quiseres; mas não vejo, minha filha, como poderemos acabar o que há para fazer.
- Eu me encarrego disso - respondeu a pequena. Maria passeava os grandes olhos negros e graves, de
um rosto para outro, com o seu habitual mutismo. Quando a sós com a mãe, tagarelava livremente sobre pequenos assuntos pessoais; mas diante do pai ou de Susana, nunca o fazia. No casamento, seria ela a única dama de honor. Susana achava-lhe um ar ao mesmo tempo enjoado e contente. Notando esta expressão, parou à porta da cozinha.
- O teu vestido é a primeira coisa a fazer. Olha disse com calor - estou a vê-lo, numa nuvem de folhos cor de pêssego, sob um chapéu enorme.
Maria teve um sorriso penoso, como se não pudesse imaginar o seu rostozinho moreno saindo de folhos cor
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de pêssego e debaixo dum grande chapéu. Entregue a si mesma, escolhia melancolicamente os vestidos mais lisos, mais direitos, desesperada com a própria fealdade. Folhos cor de pêssego dar-lhe-iam assim o aspecto de uma ameixa.
- És tontinha! - exclamou Susana, rindo. - com os teus olhos!...
Maria não respondeu; limitou-se a fungar.
- Onde está o teu lenço? - perguntou de chofre o pai, por cima do jornal.
Maria sobressaltou-se. Ele não ouvia, não ouvia, mas, de repente, caía-lhes em cima! E ela não tinha lenço. Susana, que trazia os ovos, sorriu, e, ao passar, poisou-lhe no colo um lencinho limpo.
- Serve-te do teu lenço, filha - disse a mãe, distraída, olhando pela janela. Depois, de repente: -Olha o Marcos! O que haverá, para vir assim tão cedo?
Susana, tendo-o visto também, estava já à porta.
- Já comecei o teu busto - disse-lhe logo, sufocada.
- Queres vê-lo?
- Estou com muita pressa - respondeu o rapaz. - Vá, beija-me, Susana. Estive a pensar nisso do casamento; e só me recusam o aumento?
- É o mesmo, faremos o que nos agrade. E depois, olha, não peças coisa alguma. Tenho cá a minha ideia. A senhora Fontane quer pôr um Cupido no seu jardim. Prometi fazer-lho, e pedirei cento e cinquenta dólares.
- Cento e cinquenta! É muito, mais do que eu ganho num mês, e que um aumento me daria daqui até Junho.
- Então, casaremos!-disse ela ainda.
O rapaz hesitou, mergulhou o seu olhar naqueles olhos escuros e brilhantes, e disse:
- Não gostaria de ter de fazer uso do teu dinheiro... Susana teve um tom de desdém:
- Olha o tolo! Pois não dividimos tudo o mais?
- És uma jóia - sussurrou Marcos. Levantou-a ao ar, abraçando-a rapidamente. - Bem. Tenho de ir.
Partira já, quando Susana se lembrou de que ele se esquecera de ir ver o busto. Mas isso não tinha importância. Trabalharia um pouco mais; era mesmo melhor assim. Voltou para a sala-de-jantar, com passo saltitante.
- Está tudo arranjado - disse, servindo-se dos ovos em abundância.
- A poesia não rende coisa alguma nos nossos dias -
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disse o pai, com ar triste. E lia os anúncios, as ofertas de emprego:
- Pedem um homem para tudo: cocheiro, motorista, tratar do aquecimento, ajudar o jardineiro... bonito emprego para um poeta!... Pedem um casal; a mulher para a cozinha, conserto de roupas, trabalhos da casa; que dizes tu, Jenny?
E ergueu as belas e pesadas sobrancelhas negras para o lado da mulher.
Mas esta não lhe prestou atenção. Anos atrás, preocupava-a a seriedade com que o via ler os anúncios. Agora, porém, sabia que a sua seriedade não era mais digna de atenção do que os seus gracejos; e tomava o partido de tudo ignorar.
- Não necessita de trabalhar a fazer poemas, por minha causa - declarou Susana com calma. - Está tudo arranjado.
Depois do almoço, logo que estivesse a loiça arrumada, iria visitar a senhora Fontane, a fim de saber se ainda desejava o Cupido. O pai levantou-se dum salto, exclamando:
- Pois vamos lá para esse casamento!
Puxou Susana para si, e dançaram como loucos, sob o largo olhar solene de Maria, que mordia na sua torrada. A senhora Gaylord seryiu-se de terceira chávena de café, movendo os lábios, distraída. Falava baixinho. Susana parou, para perguntar:
- Que diz, mamã? Esta ergueu a cabeça:
- Que já não temos retrós; dois carrinhos brancos não seriam demais.
- Irei comprá-los depois do almoço.
- Tenho de ir também - declarou o pai. - Cinquenta jovens poetas me esperam, na sexta classe. Alguns deles ainda conseguem ser piores do que era Marcos. Santo Deus! Ainda penso nisso.
Susana indignou-se:
- Eu sei que ele estudava. Marcos faz sempre tudo o melhor que pode!
- Mas então, que relação... - E remexia nos bolsos com modos frenéticos. - O teu lápis vermelho? - perguntou excitado. - É inútil tentar ensinar qualquer coisa aos alunos da sexta, se perdi o lápis vermelho.
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Susana levantou-se, revistou as algibeiras do pai, dizendo ainda zangada:
- Não é culpa de Marcos, se não conseguiu aprender a fazer versos; não deve querer-lhe mal por isso papá. Olhe! Cá está o seu lápis na algibeira do colete.
- Graças a Deus! - exclamou o pai. - Já se sabe que não lhe quero mal. Mais uma razão para ser um bom marido, não sendo poeta. O que eu quero dizer é que a aplicação nada tem que ver com a poesia, que é uma nascente que brota do fundo do ser. Quando existe, tem de correr; senão nada sai. Até logo, Sue. - Beijou-a na face e saiu.
Vendo-o sair, Maria ergueu-se lentamente, pegou na pasta com os livros e conservou-se direita em frente da mãe, que a examinou e lhe arranjou a estreita fita preta que tinha nos cabelos. Susana passava carregada com os pratos. Depôs um beijo na nuca da irmã e prometeu-lhe:
- Hei-de ter qualquer coisa para tu provares esta noite.
- Está bem - respondeu Maria com uma voz velada. No lavadouro da loiça, na cozinha, Susana apressava-se
a meter os pratos na água quente e espumosa, enquanto ia pensando com ternura em sua irmã. Seriam boas amigas, talvez, quando Maria crescesse. As raparigas de quinze anos são sempre tímidas. Havia de fazer-lhe um vestido delicioso que poderia usar nos bailes. Uma cascata de minúsculos folhos sobre o ombro, para disfarçar a magreza dos braços e um encaixe de renda no decote, que suavizaria a cor do tecido muito viva de encontro à pele morena. Tencionava sinceramente velar por que Maria andasse mais bem vestida, agora que era uma mulherzinha. Far-lhe-ia também uma capinha de noite de cetim, depois do casamento, quando tivesse mais tempo. E entrevia uma multidão de lindas coisas a executar nas horas de ócio, durante toda uma vida. Na sua família ninguém morria novo. Os seus antepassados prometiam-lhe vida longa, como fora a deles. Poderia empreender fosse o que fosse, realizar cada coisa com perfeição. Uma alegria enorme se apoderava dela. Limpando as mãos, cantarolava: "E será a minha glória, a minha glória!"
Correu ao quarto, para olhar por um instante o busto de Marcos. Retirou o pano molhado e, colocando-se em frente, de pé, sentiu logo os dedos como que atraídos. Quase com remorso, trabalhou uns minutos activamente, depois do que tornou a cobrir o busto, lavou as mãos, pôs o
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chapéu e desceu. A mãe limpava a sala. De passagem, Susana disse-lhe:
-vou comprar o retrós.
- Oh, meu Deus! Pois já arrumaste a loiça toda?
- E está certa de que se sairá bem? - perguntou a senhora Fontane, cheia de dúvidas. - Não quereria ver o meu jardim estragado.
- Não é obrigada a ficar com ele, se não lhe agradar; mas tenho a certeza de que me sairei bem.
- Cento e cinquenta dólares é importante para uma menina... - e a senhora Fontane sorria ao dizer isto.
- Se acha demasiado, então... Mas eu não pensava em executar unicamente um Cupido - respondeu Susana.
Tinha feito um plano completo: o menino estaria de joelhos por cima do espelho de água; olhar-se-ia nele, com as asinhas palpitando, e o arco e as flechas quase a escaparem-se-lhe. Estaria ajoelhado sobre um tronco velho, com uma borboleta poisada num ombro.
- Enfim - disse a senhora Fontane - se me agradar, não farei objecções de maior.
Esta senhora pertencia a essa multidão que veraneia, a multidão rica e alegre que compra casas velhas ou granjas, e despende nelas fortunas autênticas, para passar um ou dois meses de férias.
- Vá, então, minha linda menina - e a senhora Fontane sorria sempre. - Penso que é uma tolice, para mais quando sou das raras pessoas que poderiam pedir a David Barnes uma obra de real valor. Mas sempre gostaria de ver se a menina de facto realizaria qualquer coisa capaz de me agradar.
- Nem eu quereria que o aceitasse, a não ser assim disse Susana, orgulhosa. E fazia tudo por conservar a voz calma e firmes os joelhos, embora tremesse Intimamente.
- Adeus, senhora Fontante - e estendeu-lhe a mão. Muito obrigada.
- Adeus, minha menina. E diz, então, um mês, não é?
- Um mês, o máximo. Depois, será preciso passá-lo à pedra. Eu tratarei disso, também.
- Gostaria de tê-lo quando os íris estejam em flor.
- Pois tê-lo-á - disse Susana.
Certamente que o faria; não tinha ela conseguido sempre tudo o que desejava?
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Quando o chefe dos criados, de cabelos brancos, fechou a porta atrás dela, Susana correu ao longo do caminho, cantarolando ainda, entre dentes: "E será a minha glória, a minha glória!"
Mas como seria um pequenino, todo nu?... Passaria por casa de Lucília Palmer e observaria Tommy. Era essa a hora do banho, e assim veria bem as formas do corpo da criança, examinaria como é que os joelhos...
Dirigiu-se apressada para a pequenina casa, só de um andar, que Lucília habitava. Lucília e ela tinham sido companheiras nas classes superiores, mas, enquanto Susana continuava no colégio, Lucília casava com Hal Palmer, que andara também, com elas, nas mesmas aulas. Hal estava empregado num estabelecimento de calçado, pertencente ao senhor Baker; e mostrava-se sempre encantador quando Susana ali entrava. "Dá gosto vender-lhe um par de sapatos
- dizia -; escolhe qualquer modelo vulgar, e, apesar disso, o seu pé dá sempre na vista. A maior parte das mulheres têm pés defeituosos". - E conservava na mão o pé forte e bem feito de Susana, admirando-o: - "O peito do pé é soberbo!"
- Lucília!-chamou da porta da rua.
Os pratos estavam ainda sobre a mesa da sala-de-jantar. A voz de Lucília respondeu-lhe:
- Estou aqui, na casa-de-banho.
Susana para lá se dirigiu, e encontrou Lucília, despenteada, de longas tranças loiras caídas para as costas, a debater-se com um garoto molhado, que lhe fugia das mãos.
--Quer à viva força subir, e já não consigo segurá-lo, tão forte está - disse Lucília, em tom de quem se lamenta.
Tommy, calado e teimoso, escapou-se-lhe e trepou pela banheira. Susana pôs-se a rir, pegou no petiz e levantou-o bem alto, acima da cabeça. Tommy baixou para ela um olhar grave, como o de um querubim, e sorriu; Susana ia recebendo uma imensidade de impressões, que lhe vinham dele; examinou-lhe a cabeça, os olhos, a chama dos cabelinhos loiros, o corpo firme, redondo e quente, os ombros roliços, as pernitas fortes e muito abertas. Poisou-o no chão, de pé; e ele ficou-se a olhá-la, manso como um cordeirinho, enquanto ela o enxugava e vestia.
- Oh, que lindo, o Tommy! - exclamou, rindo. Como podes tu fazer outra coisa, durante o dia, senão brincar com ele? Ah! Eu quero dúzias deles!
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- Isso é muito bonito quando os vemos de tempos a tempos-respondeu Lucília-; mas quando os temos sempre ao pé de nós, não calculas o trabalho! Nunca obedecem.
Susana ouvia, sorrindo, e contemplava os grandes olhos azuis de Tommy, sem dar crédito às palavras enfadadas de Lucília. Ela saberia tirar-se de apuros; os filhos nunca a aborreceriam.
- Agora, tenho de o obrigar a comer - observou ainda Lucília -; e depois irá dormir, pelo menos assim o espero. Mas é capaz de não querer...
- Eu não me demoro. Vim só para o ver.
- Mas vens esta tarde ao bridgel A reunião, hoje, é em casa de Trina.
Susana meneou a. cabeça, alegremente, e disse:
- Tenho que fazer. O nosso casamento está para breve.
- Que me dizes?! Desde quando?
- Desde ontem à noite.
- É Lua cheia - disse Lucília, com um ar experiente.
- Deus sabe a influência que ela pode ter. Foi numa noite de luar que Hal me pediu que casasse com ele, e eu aceitei. Duas horas antes, tal ideia nem me passava pela cabeça. É é assim que as coisas se passam e que nos encontramos presas.
- A mim, ninguém me prendeu - respondeu Susana; e acrescentou, rindo: - Eu é que quero casar-me.
- Depois me dirás...
- Não há perigo! - exclamou Susana, já a caminho da porta.
- Ao atravessar a sala-de-jantar, parou e lançou uma olhadela para a mesa. O seu eterno desejo, tão agudo, de espalhar ordem e beleza, surgiu nela. Daria uma ajuda a Lucília. É tão feio, isso da loiça suja! Juntou-a à pressa, levou-a, andando nos bicos dos pés, para a cozinha, abriu a torneira, lavou os pratos e arrumou-os. Eram tão poucos! Depois voltou, sempre nos bicos dos pés, limpou a mesa e pôs nela um jarro com flores artificiais. Flores artificiais! Lucília até devia envergonhar-se. À falta de outras flores, havia as do campo, mesmo ao fim da rua, à entrada do bosque. Sempre sem fazer ruído, Susana saiu e dirigiu-se para sua casa com andar ligeiro, ainda a sentir quente, nas mãos, o corpo de Tommy. Subiria depressa e esboçaria a estátua de barro, deixando a costura para a tarde. A mãe limpava agora a sala-de-jantar e exclamou, ao vê-la:
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- Já de volta!
-Já. Aqui tem o retrós.
Lá em cima, ao lado do busto de Marcos, modelou um esboço que representava um garoto gordo, ajoelhado. Seria divertido trabalhar os caracóis, as covinhas do rosto e as mãos em forma de estrela... E a cabeça de Marcos também. Faria a do bebé um pouco à sua imagem. Um filhinho de Marcos, de bronze, mirando-se na água. Um dia, faria também no seu jardim uma poça de água, para que seu filho, de joelhos, pudesse mirar-se nela. E trauteava docemente: "Oh, será a minha glória! A minha glória! Minha glória..." Ia casar-se.
O casamento realizou-se. As palavras salmodiadas e ditas, o consentimento nítido e palpitante de Susana, o de Marcos, tão grave, como o rosto muito pálido, desfizeram as muralhas que entre ambos se erguiam. Susana estendeu a mão para receber o anel; o ar que os rodeava não era senão música; voltaram-se e marcharam para o pórtico. Estavam casados.
- Tive medo, julguei que ias desfalecer - murmurou ela, já cá fora, enquanto os convidados começavam a afastar-se. - Por que é que as pessoas, nos casamentos, misturam a alegria com os suspiros?
- Eu estava como em transe - disse Marcos -; sentia-me assim como se fosse outro.
Tinham-se por tanto tempo habituado aos obstáculos, que, quando, enfim, desaparecidas todas as barreiras, varridas como uma bruma matinal, puderam ver-se, logo construíram outras, feitas dum embaraço recíproco. Achavam-se fora das realidades, em pleno sonho, enquanto palavras, gritos, risadas, gracejos e votos abatiam aqueles muros. Sem cessar lhes repetiam: "Desejo que sejam felizes!" As vozes eram alegres, mas os olhares deixavam transparecer uma dúvida. "Estou certa de que havemos de ser" - dizia ela. Sim; desde que Marcos e ela se encontrassem sós e começassem a sua vida de casados, seriam felizes. Poisara a mão sobre o braço do marido. Simplesmente, não eram nem a mão dela nem o braço dele, mas os de dois manequins, de pé, admiravelmente vestidos, e que sorriam à medida que se desfilava diante deles. E não se tornariam reais senão quando aquilo terminasse, e Marcos e ela se encontrassem sós...
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- Vem cortar o bolo - disse-lhe a mãe ao ouvido. Susana apertou o braço de Marcos.
- Temos de ir cortar o bolo - murmurou. Dirigiram-se à sala-de-jantar e ele conservou-se-lhe ao lado. O grande bolo, redondo e branco, estava sobre a mesa. Fizera-o ela mesma, enquanto ele girava em volta, untava as formas e verificava o calor do forno.
- Parece-me que não devias ser tu quem devia fazer o bolo - dissera a mãe.
- Mas eu sinto prazer nisso! - respondera.
Agora, enterrava a faca na massa escura. Os convidados acotovelavam-se, invadiam a sala pequena. Susana distinguiu a voz aguda de Lucília, que exclamava: "Oh, é sumptuoso, Susana!" e sorriu. Nesse momento, porém, não sentia essa intensidade de vida profunda que a assaltara na casinha, enquanto deitava no fundo do tacho o açúcar, a manteiga e as gemas de ovos; tinha a impressão de criar qualquer coisa. O pensamento "Estou a fazer o meu bolo de núpcias" não a largara um só instante; e agora, que o cortava e distribuía, em meio de gracejos e de histórias de sonhos, já não via nele mais que um bolo vulgar. Só fora precioso para ela no momento em que o preparara.
Todos comiam, bebiam, conversavam. Percebeu a piscadela de olho de Marcos e o movimento dos lábios desenhando a palavra "Agora".
Fez sinal que sim com a cabeça, e saiu disfarçadamente da sala-de-jantar. Tinham ambos combinado, havia já uns dias, que fugiriam, saindo cada um por seu lado, juntando-se no sítio onde estaria o automóvel, velho e barulhento.
Susana correu ao seu quarto, trocou o vestido por uma saia e uma blusa de malha, e escapou-se pela cozinha e pelo pátio atrás da casa.
Ninguém a viu. Não; viu-a o pai. Saía da cozinha, apressado, com as abas do fraque esvoaçando.
- Susana! - chamou, devagarinho. A filha parou e ele aproximou-se-lhe, sufocado.
- Só queria... era preciso que to dissesse... tu podes contar sempre comigo, já se vê, como até aqui... exactamente.
- Bem sei.
Olharam-se por um instante em silêncio; depois ele disse:
- Enfim, julgo que Marcos está à tua espera.
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- Está. Tenho de ir.
- Decerto. Então, adeus.
Ela beijou-o e pôs-se de novo a correr. Voltou-se uma vez, e viu-o ainda no mesmo lugar. Acenou-lhe mas ele nem se mexeu; não querendo atrasar-se mais, correu a juntar-se a Marcos. Este estava já dentro do carro; o motor roncava.
- Ninguém te viu?
Ela sacudiu a cabeça, rindo.
- Ninguém, a não ser o papá.
Marcos inclinou-se, deu-lhe um beijo rápido e o automóvel quis pôr-se em marcha, com uma sacudidela. Susana sentia-se agitada. O beijo de Marcos não o aproximara dela. O motor foi-se abaixo.
- O que é que estará desarranjado, agora? - disse aquele, pegando na alavanca de velocidade.
Ela inclinou-se, rindo.
- Ali, o travão... Esquecera-se de destravar.
- Tu casaste com um estúpido, Susana.
- Não. O papá é a mesma coisa. Já estou habituada. Farta-se de praguejar e de lançar maldições porque o carro não se mexe.
- E tu destravas, e pronto.
O carro rolava, roncando, nesse dia ventoso de Primavera. Susana lembrava-se das palavras de Marcos: "Tu casaste... tu casaste... com um estúpido". Mas não, enganava-se. Casara com ele.
Estou casada, pensou; e, admirada, contemplava, em vez das colinas, das árvores e dos verdes prados que na sua frente se estendiam, os anos brilhantes, incertos, do futuro.
Sós agora, havia ainda entre eles uma barreira de constrangimento que era preciso deitar abaixo; ou desmoronar-se-ia por si mesma? Iam passar uma semana, sozinhos, à beira da lagoa, na casinha de madeira que o pai lhes emprestara. Construíra-a, em tempos, para todos, quando Susana era ainda criança, mas poucas vezes lá tinham ido. A mãe tinha horror à calma, ao silêncio, aos mosquitos, aos mochos, ao velho fogão cheio de ferrugem. Deixaram, pois, de ir lá. O pai, às vezes, passava lá um dia; nunca se demorava mais.
- Penso que sou ainda novo demais para poder estar só - dizia, em ar de gracejo.
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- Mas então não és uma grande personagem? - perguntara-lhe, uma vez, Susana.
- Não estou lá muito certo disso - respondera ele, gravemente.
A casita pertencia-lhes agora.
Susana e Marcos, levando para lá provisões e livros dois dias antes, tinham deixado tudo varrido e arranjado.
Ao encaixotar os livros, no seu quarto, Susana ainda perguntara a si se deveria levar também um bocado de barro ou a caixa de tintas, para o caso de querer trabalhar, lá em baixo. Mas não; nada disso levaria para a sua viagem de núpcias.
E pensava também até que ponto sentiria o desejo de se servir delas mais tarde. Talvez nem experimentasse a necessidade disso. Encaixotara tudo, fazendo transportar o volume para a casa que ela e Marcos tinham escolhido para morar. A sua antiga alcova parecia, assim, vazia e desolada. O Cupido, terminado já, lá estava ajoelhado entre os íris em botão, no jardim da senhora Fontane. Fora a própria Susana quem levara o busto de Marcos rua fora, indo pô-lo no novo sótão. A cabeça não estava acabada ainda. Havia nela qualquer coisa de imperfeito. Susana saíra-se bem quanto à boca, mas os olhos estavam defeituosos. Apesar de todos os esforços, continuavam a parecer umas órbitas vazias.
- Não está bem. Não fala - dissera a Marcos. Estavam então na casa nova que andavam a arranjar
para depois se casarem.
- Não fala?!
- Quando me saio bem, julgo ouvir as coisas falarem-me.
- Meu Deus! Isto parece-se comigo o bastante para me dar uma sensação estranha! - respondera Marcos, com os olhos fixos no busto. E depois acrescentara ainda: - Devo ser assim quando morrer.
Susana não respondera, nem poderia fazê-lo, pois ele tinha razão. Era exactamente o rosto de Marcos sem vida. Envolveu-o rapidamente no pano húmido.
- Não está acabado, é o que é. Eu lhe darei vida. Era a primeira coisa a fazer na volta, quando começassem a sua verdadeira existência.
E agora ali, na casita, aquela máscara perfeita mas silenciosa perseguia-a sem motivo, aparecia-lhe como a
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imagem de qualquer lembrança morta. Pensava nisso constantemente quando olhava para Marcos, ou ambos conversavam e discutiam os seus interesses. Até estavam um em frente do outro e beijavam-se; não era Marcos, porém, quem ela via então, mas a máscara que dele fizera.
- Somos tontos! - disse, rindo. - Tanto desejámos este momento! E agora que ele chegou, sentimo-nos embaraçados!
Marcos baixou os olhos sobre ela, sem sorrir.
- Até me parece ainda que não é de nós que se trata!
- disse. E havia qualquer coisa de vazio no seu olhar. Era a ela, pois, que pertencia trazê-lo ao sentido das realidades. O rosto de Marcos não devia representar a seus olhos uma máscara de barro por acabar, essa máscara que esperava, humilde e comovedora, que viessem terminá-la, dar-lhe vida.
- Vamos-disse, resoluta. - Esvaziemos a bagagem, preparemos o jantar e depois tomaremos um banho ao luar; queres, Marcos?
- Sim, sim!-disse este, com ardor. Trabalharem ambos daria realidade às coisas. Teriam
assim a impressão de terem sido os dois quem preparara aquelas horas, atingidas depois de tanto tempo. Eis donde vinha o mal. Tanto haviam pensado nesse momento, que não podiam arrancá-lo ainda dos seus sonhos. Embora o soubessem ali, julgavam-no sempre por chegar. Marcos seguia Susana, enquanto esta dependurava os seus vestidos nuns pregos, por trás duma cortina de cretone, ou punha a mesa para ambos, ou grelhava o bife e fazia o café. Não sabia como ajudá-la. Ela tinha uns modos tão decididos, tão justos! Parecia fazer tudo ao mesmo tempo. E ele sentia-se inútil ao lado duma actividade assim.
- Tu és admirável! - disse, a certa altura. - Eu... eu não sirvo para coisa alguma!
Susana estava a dispor num jarro as rosas vermelhas que trazia à cinta, ao sair da casa paterna. Pô-las sobre a mesa. Mas quando ouviu Marcos declarar: "Tu és admirável", precipitou-se e escondeu o rosto no peito do marido, exclamando:
- Não, não, não digas isso! Marcos ficou embaraçado,
- Mas, não gostas de que te achem admirável?
- Não, não, não!-exclamou, sufocada.
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Ele ficou boquiaberto.
- Então, não percebo... A maior parte das pessoas... Susana ergueu bruscamente a cabeça, farejando.
- Ai, o bife que se queima, o que não é nada admirável da minha parte!
Correu a pô-lo no prato, ainda a crepitar. Marcos nem sabia se ela ria, se chorava.
- Nunca tive tanta fome na minha vida!-exclamou Susana, alegremente.
- Nem eu, minha querida!
Puseram-se a comer, já mais à vontade, à luz da vela. Sentiam-se, de facto, mais reais, mas não completamente ainda. Ela pensava nos olhos de Marcos. "É a luz vacilante da vela que os enche de sombra e os faz parecer vazios; mas não o são. E eu amo-o tanto! É meu marido!" Entretanto, para além do seu amor, do seu papel de esposa, o seu espírito activo sugeria-lhe outros pensamentos; dizia para si mesma: "A cabeça está parecida agora; teria eu realizado tudo quanto podia, de melhor? Quem sabe se o busto chegará a tomar vida, se eu serei capaz de lha transmitir? Alcançarei eu, algum dia, ser uma verdadeira escultora?..." Em todo o caso, estava certa de poder criar vida.
Levantaram-se e sentaram-se sob o pequeno alpendre à beira da lagoa, enquanto Marcos fumava no seu cachimbo. Cingiam-se um de encontro ao outro, em silêncio, conscientes, enfim, da sua mútua presença.
- É o começo - murmurou ela.
- O começo da nossa vida.
Ao luar e no silêncio tiveram uma visão mais nítida, mais próxima de si mesmos. O tom pessoal apagou-se dos seus rostos, dos seus olhos, da sua carne, e apareceu um contorno mais íntimo. Susana sentiu Marcos respirar, animado e tímido. De repente, este disse:
- Vamos à lagoa!
À claridade da Lua, despiram-se, e os dois corpos surgiram, brancos como neve. "Ele parecia uma estátua de mármore, que devia ser frio, quando se lhe tocasse; ela parecia feita também da mesma matéria, mas não era fria"
- pensou a rapariga, olhando-se. Marcos contemplava-a, imóvel, gelado de confusão.
- Vem - disse Susana - corramos para a água!
É que ela queria dar vida e movimento aos seus dois
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corpos, brancos, de estátua. Correram, de mãos-dadas, saltaram, nadaram juntos na lagoa. Voltaram para a margem. Marcos tremia.
Dirigiram-se a correr para a casita, barricaram a porta contra a noite e as trevas da floresta. Marcos empilhou as achas na chaminé, ajoelhou-se, acendeu os raminhos secos e o fogo começou a crepitar. Picaram por um pouco ajoelhados diante da lareira, depois Susana sentiu-se erguida no ar, puxada para ele, de cabeça atirada para trás para encontrar o seu beijo. E entretanto, no mesmo minuto em que esse beijo descia sobre ela a impor-lhe silêncio, o seu espírito afastava-se e segredava-lhe: "Aí tens, aí tens a expressão de que a máscara necessita, pois ele tomou vida".
A cabeça por acabar estava no sótão, onde Susana esperava instalar mais tarde, para si, um estúdio. Mas não sentia por enquanto essa necessidade. Tinha o seu lar nessa casinha, ao fundo da rua onde brincara em pequena. Olhando pela janela da frente, via o que toda a vida lhe fora familiar: a álea de casinhas brancas, a verdura dos terrenos do colégio lá no outro extremo e, por entre o cimo das árvores, a cúpula da entrada principal da Universidade onde o pai ensinava e onde ela e Marcos haviam trabalhado durante quatro anos. Outrora, ela gostara dessa Universidade, embora sentisse um ligeiro desprezo pela sua pequenez provinciana, e os limites impostos pelo respectivo conselho de administração, composto por dois proprietários ricos, um advogado e o presidente do banco local. Gostava daqueles professores ferozes, magros, bulhentos e pobres, que ela conhecia não só como encarregados de cursos, fanáticos das regras, mas também por intermédio de seu pai, que, depois duma reunião, resmungava, por exemplo, a respeito do professor Sanford, dizendo: "É um original. Pode ser muito forte em Astronomia; mas nada mais vê, além dos astros".
Pobre professor Sanford! É verdade que residia nos astros. Mas todos viviam, aliás, fora daquelas casinhas onde as suas pálidas mulheres lutavam por se instruir, ao mesmo tempo que tratavam dos filhos e do lar sem ajuda de qualquer criada. Susana conhecia-as muito bem e nunca olhava pela janela sem sentir um impulso de simpatia por elas. Amava-as e sofria um pouco ao pensar nessas criaturas que se esforçavam, todas elas, por viver segundo o seu
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código de beleza, nessas casinhas tão exíguas, tão pequenas e tão juntas, onde constantemente se tornava necessário abafar, não só os gritos das crianças, mas até os próprios risos, as zangas ou as lágrimas. Só o silêncio podia salvaguardar um domínio privado, necessário às mulheres cultas, para quem o decoro é indispensável. Gracejavam sobre a pobreza, mas um dia em que o corpo docente recebia os antigos alunos, a senhora Sanford, que trajava o seu eterno vestido de renda preta, juntara as mãos e olhara Susana timidamente ao perguntar-lhe:
- Que conta fazer, minha querida Susana?
- Tudo!-respondera a rapariga, alegremente. E a senhora Sanford unira as mãos, as suas mãozinhas estragadas pela água, de unhas limpas mas partidas. Era uma segunda-feira, e nessa manhã, desde muito cedo, lavara ela a roupa da família, saindo depois para a estender muito à pressa, sem olhar para os pátios vizinhos onde as outras esposas procediam de igual modo.
- Oh, Susana! - exclamara. - Assusta-me, minha filha! É tão doloroso termos a noção de tudo o que desejamos na vida, sem podermos consegui-lo! Às vezes, até me parece que é melhor ignorar, não saber ler quando não se pode comprar livros, por exemplo, ou não ter desejos de cantar se não há com que estudar canto.
Susana não soubera que responder, e a senhora Sanford ficara a sorrir, dando-lhe palmadinhas no braço: - "Mas tem tantas qualidades, minha querida, que estou certa de que vencerá". - Alguém exclamara: - "Tenho a esperança de que a senhora Sanford nos cantará alguma coisa" - e a senhora Sanford respondera: - "Não daria prazer a ninguém com isso!"
Susana insistiu:
- Peço-lhe, minha senhora; gosto tanto de a ouvir!
- Sim, minha querida? Pois então cantarei.
E cantara Kennst du das Land, com a sua vozinha fraca, cheia de nostalgia. Susana ouvira-a entoar isto muitas vezes; por que é que esta lembrança lhe dava agora vontade de chorar?... E, olhando pela janela, recordava a expressão da senhora Sanford, enquanto cantava.
Ao poente as janelas davam para a floresta.
Fora ali que ela e Marcos ficaram noivos. Ele dissera: "Onde havemos de ir, Sue?" - e esta respondera: "Sempre desejei ir passear para a Floresta do Vagabundo. Vamos!"
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Não brincavam lá, quando eram pequenos, por causa da superstição pueril que uma geração de crianças transmitia a outra. Pretendia-se que errava por ali o fantasma dum vagabundo. Enforcara-se, muito tempo antes, ao lado da sua cabana solitária, ao ar livre e bastante perto dum caminho ladeado de casas onde viviam várias famílias com as suas crianças. Ele devia ver brilhar as luzes das janelas enquanto ceava. Encontrara-se uma caixa ainda meia de feijões, de modo que não fora por ter fome que se matara. Também tinha num dos bolsos algum dinheiro, com que lhe fizeram um enterro pobre. Tinha-o metido dentro dum sobrescrito, em que garatujara, a lápis: "Para me enterrarem, sem qualquer cerimónia" Não havia pois, razão para assim se enforcar à vista de todos. Como não poderiam impedi-lo, as mães, impressionadas com o estranho caso, sentiram-se aliviadas; e diziam: "É melhor que um homem assim não possa já tornar-se prejudicial. Ninguém sabe o que ele poderia fazer".
As crianças ouviram-nas; inventaram um fantasma do vagabundo e nunca mais voltaram ao bosque onde ele se matara.
Mas Susana e Marcos quiseram ir ali para estarem sós nessa tarde, certos assim de não encontrar ninguém.
- Tens medo? - perguntara-lhe ele, rindo.
- Contigo, não - e rira também.
Hoje, que a sua casa deitava, em parte, para esse bosque, ela achava o local magnífico e tranquilo. Às vezes, à tarde, errava por entre as árvores na orla da floresta, enquanto esperava Marcos. Lembrava-se ainda da velha lenda, mas não a temia já, agora que Marcos e ela se haviam assenhoreado do local. O bosque parecia estranho, silencioso, com as suas fibras selvagens, em que ninguém tocava. Nunca lá encontrava pessoa alguma.
Mas, também, raramente lá ia passear; tinha muito, muito que fazer, dentro de casa. Nunca estava tudo pronto, completamente, muito embora, no dia seguinte ao da sua chegada, os amigos que acorreram a visitá-los tivessem exclamado: "Mas como conseguiu isto, Sue? Dir-se-ia que já aqui vivem há anos!" Ela e Marcos tinham rido, mergulhados na sua profunda e simples felicidade; recebiam estes testemunhos como se fizessem parte também da sua alegria. Nada haviam feito de extraordinário, pois toda a gente se casa; o seu lar era pequeno, bem o sabiam, mas
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tinham a impressão de se haverem saído melhor do que os seus camaradas.
Nessa noite, depois da partida destes, deram juntos a volta à casa, a fim de se certificarem bem, de reverem coisa por coisa: sala, casa-de-jantar, cozinha, os dois quartos, o escritòriozinho de Marcos e a minúscula casa-de-banho, ladrilhada de amarelo. Marcos ia a subir a escada para o sótão, quando ela o deteve:
- Não. Não há coisa alguma aí. Nem pensei ainda em qualquer arranjo a fazer.
E, realmente, nunca mais lá pusera os pés, desde que levara a cabeça por acabar e os seus utensílios de trabalho. Desceram ambos e, para se certificarem de que a chaminé da sala tirava bem, Marcos acendeu o lume. Era ainda inútil, pois até tinham a porta aberta em vista da suavidade do tempo; e viam as luzes que surgiam do escuro a todo o comprimento da rua; eram luzes das casas dos amigos. Era uma maravilha! Susana sentia a alegria elevar-se acima das muralhas que encerravam a sua vida
- luzes, amigos, a sua casa, e Marcos, o seu marido. Lá ao fundo, à esquina, estavam os pais e Maria; toda a sua feliz infância - feliz, ou quase. Por que é que o pai lhe dissera adeus? Seguindo Marcos, ela nada deixava. Tinha tudo. Se o desejasse, podia correr por essa rua, virar a esquina, abrir a porta e mergulhar de novo na sua infância.
Mas Susana não queria voltar atrás, e olhou Marcos com ardor, profundamente. "Sou feliz", murmurou. Sentaram-se em frente do lume, quentes, satisfeitos. "Oh, será a minha glória, a minha glória!" cantarolou ela a meia-voz.
Marcos pôs-se a rir.
- A primeira vez que te ouvi cantar isso, tinhas tu cinco anos e fazias um vestido de boneca, sentada no último degrau do alpendre.
- Sim?! És um amor por ainda te lembrares.
- E canta-lo agora sem dares por isso? A rapariga sacudiu a cabeça e respondeu:
- Sai-me cá de dentro.
Era-lhes tão penoso terem de se separar pela manhã, que a sua apreensão começava no momento em que Susana servia a Marcos a segunda chávena de café. Ele olhava então para o relógio e dizia solenemente: "Mais dez minutos". Ela precipitava-se, virava o relógio, a fim de ocultar
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o mostrador, e aproximava a sua cadeira da do marido. Parecia-lhe que a casa seria intolerável sem ele, por muito vazia.
- Se ao menos o teu trabalho pudesse fazer-se em casa, se fosses pintor ou escritor...
- Casaste com um Zé-Ninguém - respondia Marcos gravemente, mexendo o café.- Temo bem que tenha de continuar a ir ao escritório enquanto for vivo, Sue.
- Tu és um ser único no mundo -e Susana inclinou-se para lhe dar um beijo na mão; depois, lançando-lhe um olhar agudo, profundo: - É preciso que me lembre bem de ti durante três horas e meia.
- Não tenho a certeza de poder vir hoje almoçar respondeu Marcos com tristeza. - Há um cliente que deseja visitar a velha casa dos Graingers.
Ela lamentou-se:
- Oh, Marcos, todo o dia!
- Receio-o bem, querida - e Marcos levantou-se, indo pôr o relógio no seu lugar.
A separação era uma agonia, o momento em que ele desaparecia na esquina lançava-a no desespero, mas em seguida a vida envolvia-a, tomava conta dela, com as mil coisas a fazer. Corria dum lado para o outro, criando asseio. Entrava em cada divisão e, como se a juntasse, examinava-a no seu conjunto, estudava os mínimos pormenores, o desenho duma poltrona, a linha dum cortinado, caindo, as manchas de cor dum quadro ou duma flor. A casa formava um todo, composto de cada compartimento, na sua perfeição; mas esta perfeição não era estática; devia ser viva, participar da existência dos dois, da sua e da de Marcos, ser a casa deles, habitada por ambos. Fez o escritório à semelhança de Marcos; o longo divã sobre o qual o seu corpo comprido poderia estender-se à vontade, com almofadas baixas, pois ele gostava de repousar a todo o comprimento quando se sentia cansado. A secretária sólioa e bem arrumada, algumas gravuras simples e agradáveis. Coisa curiosa: ela via melhor o ambiente que convinha ao marido do que o seu. Quase todos os dias mudava os móveis, indecisa. A mesinha do toucador estaria melhor aqui, junto da janela, ou além, em frente do leito? As flores, aqui ou ali? Ficava descontente e hesitava, experimentando uma coisa ou outra, sem encontrar o que desejava.
O relógio bateu meio-dia, sem Susana dar pela
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passagem do tempo. Sentiu-se culpada de ter deixado as horas passar tão depressa, sem o marido. Este voltou antes que ela se apercebesse da sua ausência. Ouviu-o chamar, da estrada:
- Cá estou, querida; afinal, não apareceram.
- Oh, Marcos! - E precipitou-se na cozinha, a dar princípio a tudo ao mesmo tempo. Era interessante ver a rapidez com que fazia as coisas - costeletas, ervilhas, salada, serviço de mesa, jarro de flores em cima - nada de flores artificiais nesta casa!
- Pronto!-disse, ao fim dum quarto de hora.
- Não há ninguém como tu - observou ele, puxando a cadeira.
- És impertinente. Peço-te: não me digas essas coisas!
- Mas vejamos: o que é que eu fiz, eu? Lavei as mãos, penteei-me, mudei de gravata. E quando desci, o almoço estava pronto. Hás-de confessar que não há ninguém como tu.
Ela sorriu, sem responder. Porque não gostava destes cumprimentos? Ao ouvi-los, sentia uma impressão de isolamento. Tinha vontade de ser como toda a gente. Mas Marcos falava com ardor alegre, e comia com apetite.
- Telefonaram ao meio-dia, dizendo que desistiam da casa dos Graingers. Estive quase para telefonar, mas depois pensei que, no tempo de fazer a comunicação, também me punha cá.
- Por que é que desistiram da casa dos Graingers? perguntou, curiosa. - É uma casa antiga, tão bonita!
- Mas muito afastada, para os criados.
- Talvez preferissem a dos Marseys, onde estiveram no Verão...
- Está em venda?
- Parece-me ter ouvido dizer que tencionavam ir viver para o estrangeiro, agora que o senhor Marsey morreu. Já não sei onde é que ouvi isto, mas...
- Tens uma memória! Um verdadeiro livro de apontamentos. Como é que não tinha pensado nisso?
Levantou-se e correu ao telefone; ela esperou. Depois, voltou e sentou-se.
- O patrão disse que era uma ideia luminosa, esta; respondi-lhe que tu é que a tinhas tido.
- Oh, Marcos! Foi por acaso que me lembrei disso. Não devias tê-lo dito.
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- Muito bem. Foi por acaso também que eu me esquecera de pensar em tal - respondeu ele, seco.
Susana olhou-o, de coração apertado.
- Procedi mal, Marcos? Parece teres ficado zangado comigo.
O marido ergueu-se bruscamente, veio junto dela e beijou-a:
- Por que te sentas tão longe de mim? - Puxou a cadeira da mulher para junto da sua e acrescentou: - Sentemo-nos sempre assim um junto do outro; sempre.
Susana lera algures que o amor é uma força que desenvolve os seres. Pessoas que se julgam incapazes, escrevem poemas, ou música, ou empreendem grandes coisas, sob a pressão do amor. Não era este o seu caso. Cingia-se estreitamente com o amor de Marcos, como num manto quente, e nada de grande empreendia, nem mesmo em sonhos. Nem sequer subia, nunca, ao sótão. As suas mãos contentavam-se com fazer o trabalho dessa casa, que cada vez amava mais, de dia para dia. Quando tinha tudo em ordem e disposto as suas coisas da maneira mais perfeita, retirava-se para a cozinha, debruçava-se sobre o livro de receitas, fazia os seus planos e realizava-os. Depois, quando tudo estava feito, esperava, satisfeita, a volta de Marcos. Edificava este amor à sua volta, como se se tratasse dos muros da casinha na orla da floresta.
Tinha sempre consciência desta floresta, que era sedutora e dava a impressão, situada lá no fundo da rua, dum molho de árvores sem profundidade; mas, quando lá se penetrava, via-se logo que ela se estendia por quilómetros e revelava profundidades muito enredadas de troncos, um solo rude e demasiadamente rochoso para que se tentasse desbravá-lo. Ao fim dum pouco de caminho, encontrava-se uma torrente, que corria muito escura, no fundo dum barranco de rocha negra; depois, a floresta continuava
Marcos detestava-a. Susana arrastara-o até lá um domingo antes e ele seguira-a, guardando silêncio obstinado.
- Como isto é belo, não?-dizia ela, de cabeça levantada para as árvores, que espalhavam sombra espessa na plenitude do Verão.
- Dá-me uma impressão estranha - respondeu Marcos.
- Como é que não o notei, no dia em que te pedi que casasses comigo? Não te via senão a ti, sem dúvida.
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Caminhavam de mãos dadas; apesar disso, porém, tombava sobre eles uma sensação de solidão. Chegaram até ao ribeiro, vendo-o correr sobre a rocha negra.
- Foram precisos milhões de anos para cavar esta fenda numa rocha tão dura - observou Marcos, e logo a solidão dum milhão de anos se veio juntar à deles. Conservaram-se de olhos fitos lá em baixo; de repente, ouviram um estalido e um rugido que subia do barranco. Fora um rochedo que se desprendera e caíra na corrente.
- Voltemos - disse aquele, ainda - já nos afastámos muito. Sempre ouvi histórias a respeito destes sítios. Não é que eu tenha medo; mas por que não havemos de passear ao sol?
Voltaram para trás. Quando saíram da penumbra das árvores para a sua pequenina rua, o Sol parecia ir ainda muito alto. Algumas pessoas vinham do golfe. Poucas casas adiante, viram Lucília e Hal, que voltavam também para casa. Tommy, entre os pais, caminhava muito importante. Lucília fez um aceno e Hal gritou:
- Lembrei-me de vocês no clube, esta tarde! Marcos agitou o chapéu e Susana a mão; depois subiram os degraus de sua casa.
- Devíamos aparecer no clube de tempos a tempos disse Marcos. - Não temos necessidade de passar por toleirões.
- Não há perigo. Já nos conhecem.
Esqueceu logo os amigos, e dirigiu-se a cantar para a cozinha, a fim de preparar o jantar.
- É o mesmo - observou Marcos, pouco depois -; podes, assim, muito facilmente, dar a impressão de seres orgulhosa, Sue.
Esta cortava pedaços de laranja para uma salada e ia pensando em como a composição deste fruto é complicada: aos bocados, com umas gotazinhas de cor encerradas lá dentro. Àquelas palavras de Marcos, parou, olhando fixamente o marido; a laranja que tinha na mão era já uma simples laranja, nada mais.
- Mas que entendes tu por isso?-perguntou, admirada. O sangue subira-lhe ao rosto. Estava irritada contra ele.
- Oh, nada! O pior é que a maneira como fazes as coisas nem sempre é bem compreendida.
Susana continuou a cortar a fruta. Ele ferira-a, sim; mas nada deixou transparecer.
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- Toda a gente me conhece nesta terra - disse muito calma - e desde sempre; Lucília, os rapazes, as raparigas...
De repente, sentiu-se muito distante do marido. Acendeu a luz, de súbito, e Marcos viu-lhe a expressão.
- Eu falo sem saber o que digo, sem dúvida -murmurou ele, devagarinho. - Quanto a ti, quero que fiques tal como és.
- Nem posso ser doutra forma - respondeu. - Vamos, Marcos, senta-te.
E depois de ambos se instalarem, ele observou:
- É a melhor salada de frutas que tenho comido. Sue, tu és uma cozinheira admirável.
Susana sentiu algumas palavras afluírem-lhe e ficarem-lhe suspensas na ponta da língua. Mas aprendera, muito tempo antes, a não soltar palavras ásperas quando sofria. Já na sua infância, sabia que, dizendo o que lhe atravessava o espírito como um relâmpago, se arriscava a fazer nascer uma expressão de medo no rosto materno. Da primeira vez que vira o susto reflectir-se nos olhos de sua mãe, refugiara-se no quarto, dizendo para si mesma: "Eu não quero, nunca, nunca mais, meter medo a ninguém, com o pretexto de me terem magoado!" E sempre se lembrava disto.
- Come mais salada, vamos - disse para Marcos, e encheu-lhe de novo o pratinho que este lhe estendia.
Mas nunca mais voltaram à floresta. Marcos nenhuma vontade tinha disso, e ela não queria ir sozinha. Depois, de repente, uma ideia a assaltou. Lá em cima, no sótão, estava o busto por acabar. Às vezes, ia até lá, mas só para varrer, para limpar o pó. Agora, pois que Marcos a fizera sofrer, demorou-se lá muito tempo, deixando que o seu olhar sério percorresse o compartimento vazio, mas não tentou mobilá-lo nem sequer ergueu o pano que cobria o esboço.
- Tens tudo o que uma mulher pode desejar - disse-lhe a mãe, um dia, examinando a sala. - Um bom marido, uma linda casinha e a melhor vizinhança de toda a cidade.
- Realmente, tenho tudo - respondeu Susana. E a mãe insistiu:
- Marcos é tão sério! - Recusava-se a tirar o chapéu, dizendo de cada vez:-Ah, tenho de ir já!-Mesmo quando
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se demorava uma hora ou duas, sentia-se sempre a pontos de partir. - O trabalho amontoa-se e espera-me - dizia. -Eu vou ajudá-la. Já acabei.
- Oh, não! Tu tens agora a tua casa e não quero que o Marcos pense que não sou capaz de me haver sozinha...
Susana pôs-se a rir.
- vou consigo, para a ver; agora não tenho aqui nada que fazer, a não ser no sótão, mas nem sei o que lá hei-de pôr.
- É um encanto - disse a mãe, com uma sombra de inveja, vendo a ordem que reinava em toda a sala. - Está tão bonita! Sempre tiveste este dom.
- A casa põe-se em ordem por si mesma Nada há mais fácil...
Mas a mãe não sorria.
- Por enquanto, tudo vai bem... Mais tarde, precisarás de uma ajuda. Enfim, tenho de ir.
- vou pôr o chapéu.
- É uma casa deliciosa - repetiu a mãe, lançando um olhar para trás. - O único inconveniente que nela teria, para mim, é não gostar de viver na orla desta floresta tão sombria.
- Eu gosto; mas o Marcos tem a mesma impressão que a mãe.
Marchava ao lado desta, familiarizada como estava com o caminho. Mas sentia-se independente dela, agora, e quando ali ia, era de sua livre vontade. Entrava e começava logo a faina habitual da loiça a arrumar, peças de roupa a lavar e a estender.
-- Deixei tudo no ar, esta manhã-murmurou a senhora Gaylord-; queria fazer cedo as minhas compras, mas estava tão bom tempo, que passei por tua casa. Já que estás aí em baixo, aproveito para ir fazer as camas.
Subiu pesadamente, e Susana, com um pano atado em volta dos cabelos, voou de uma casa a outra. Era-lhe agradável espalhar frescura e asseio. Cantava enquanto trabalhava. Criava e transformava, o que satisfazia um lado da sua natureza. As salas tomavam, sob as suas mãos, um aspecto, uma atmosfera completamente diferentes. Quando estava quase a acabar, uma porta bateu lá no alto.
- És tu, Susana? - gritou o pai, do cimo de dois lanços de escada.
- Sou, sim, pai.
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- Então, vem cá!
E depois de ter subido a escada a correr, foi encontrá-lo despenteado, fumando no velho cachimbo de cerejeira.
- Já tenho saudades de ouvir aquele bocado de Sibelius - disse ele. - A Maria nunca poderá tocá-lo bem; e essa ária tem-me andado na cabeça todos estes dias.
Susana sentou-se ao velho piano e, sorrindo, abriu as páginas de Finlândia. O pai estendeu-se sobre o divã, com um dos braços sobre os olhos.
- Ora vá - disse.
Tocou com plenitude e profundeza, absorta, como por tudo quanto fazia. Não pôde impedir-se de esquecer tudo, até o próprio Marcos. Construía assim um edifício musical, cheio duma doçura austera e inefável. Graças à sua mocidade, o próprio sofrimento lhe parecia belo, e, embora nunca tivesse de facto sofrido, um instinto mais profundo do que a experiência lhe ensinava como se cria a dor. Quando acabou, tremia.
Esperou um momento, depois voltou-se para o pai. Continuava estendido, de braço caído, com os lábios cerrados, brancos, premindo o cachimbo.
- Pai - murmurou ela.
- Vai-te, vai! - Sob os cílios negros, brilhavam lágrimas. E balbuciou ainda: - Esta música...
Susana desceu. A casa estava em silêncio. Parou um momento à porta do quarto da mãe e escutou. Nada se ouvia. Abriu, devagar, e deitou um olhar lá para dentro. A mãe dormia, com a respiração tranquila como a duma criança, deitada sobre a cama ainda por fazer. Susana fechou a porta com cuidado, deixou essa casa e voltou para a sua.
SUSANA interrompeu-se, a meio da manhã, para observar a sala. Toda a casa estava definitivamente arranjada, nada mais havia a acrescentar-lhe; e dava a Susana uma impressão de alegria, com as janelas claras, com o soalho enxadrezado a reluzir, e cada objecto no seu lugar. Não havia maneira de colocar mais qualquer coisa, feita por ela. A última almofada, o último cortinado estavam prontos, e mais um que fosse já seria demasiado. A cómoda pequena
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estava cheia de roupa branca, que ela mesma bordara. Fora, o jardim, bem cuidado, expandia-se em pleno Verão. Marcos contava trabalhar nele, mas, com os dias cheios de sol, Susana ia arrancando as ervas más e fazia novas plantações. Na véspera, à tarde, até havia tosquiado a relva. Marcos zangara-se.
- Tencionava ir fazê-lo hoje, depois de jantar - dissera ele. - Ainda ontem estive a reparar, não havia assim tanta pressa...
- Entretinha-me - e ela fez-se meiga -; não tinha que fazer esta tarde, nem vontade de sair, e então...
- Não tornes a fazê-lo. Não é trabalho para uma mulher.
Passado um pouco, ela respondeu:
- Está bem; não o farei mais.
E hoje, acabado o trabalho, veio até à janela. A inacção atormentava-a. Ao fundo da rua, Lucília empurrava um carrinho de criança para baixo do alpendre, entrando logo; Susana ouviu mesmo bater à porta. O segundo nené de Lucília nascera seis semanas antes. "Estou furiosa!" exclamara. "Outro filho, quando precisamente começava a trazer o Tommy comigo. Como se Hal pudesse dar-me uma criada! Os homens são tão egoístas!"
Susana não respondeu, pensando naquele Hal tão dócil, sempre cansado, e incapaz, por assim dizer, de obrigar Lucília a fazer qualquer coisa que lhe não agradasse.
Atrás de Susana, a casa repousava, muito em ordem. Voltou-se ela e pareceu-lhe que a habitação a olhava com o aspecto alegre e calmo de criança bem tratada. Que iria fazer agora? Na véspera, levara a Maria um vestido novo, embrulhado em papel de seda e atado com fitas de cetim amarelo. Trabalhara nele todos os dias; fizera-o de tecido oiro-pálido, comprado com parte do dinheiro da senhora Fontane; o feitio era simples, elegante. Nunca os olhos de Maria tinham brilhado com tanto ardor.
- É um encanto, Sue! - exclamara, enquanto Susana, sem saber porquê, sentia as lágrimas subirem-lhe aos olhos.
- Gostas, realmente? - perguntara, ávida de tornar a ouvir a irmã exprimir-lhe a sua satisfação. "Talvez, um dia, pudessem vir a ser boas amigas, as duas" - pensava.
- Òh, decerto: gosto imenso! - respondera Maria. Por sua vez, a mãe acrescentara, com um suspiro:
- Não faltaria mais nada! É um vestido esplêndido,
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Susana; só pergunto a mim mesma como é que pudeste fazer tanto trabalho...
E o pai, deitando a cabeça pela abertura da porta, exclamara:
- Santo Deus! Espero que não terei de pagar a conta!...
- Não tens vergonha? - disse-lhe a mulher. - Não vês que é feito pela Susana?
- Palavra, Sue? Maria até parece um junquilho, com o teu vestido - e os olhos brilhavam-lhe, brincalhões, como se nunca tivessem sentido lágrimas.
Nessa mesma tarde, Susana contava a Marcos:
- O vestido torna Maria bonita; e todos gostaram muito.
- Não admira. É soberbo! Eu nem sei como consegues fazer tudo, Sue!
Contemplava-a; a voz era cheia de ternura, o olhar humilde; ela contraiu-se ligeiramente.
- O modelo é simples - respondeu, sem saber de que é que queria defender-se, a não ser dessa humildade, pois se recusava a ver Marcos apagar-se diante dela; e sentia-se então muito diferente do marido.
O filho de Lucília gritava, e o barulho subia ao longo da rua. O nené chorava. Se tivessem um filho, Susana nunca o poria assim lá fora, para o deixar berrar. Virou-se bruscamente, abriu a porta e desceu a rua a passos rápidos. Diria que ia para ver Lucília. Subiu os degraus devagar e lançou um olhar ao carrinho. A pequenita estava toda enrodilhada na rede. Susana afastou-lha, levantou a criança e compôs-lhe a roupinha. As fitas da touca, em organdi inflexível, magoavam-lhe o queixinho minúsculo; Susana desapertou-lhas, e depois acalmou a menina suavemente, embalando-a. Surgiu nela uma ternura imensa, cega, quando sentiu aquele corpo macio, sem defesa, repousar nos seus braços, corpo que se curvava todo, retomando a posição que tivera no ventre da mãe. Tal impotência era demasiadamente grande e triste. Como dependemos dos outros, no começo da vida! Susana baixou a vista para o rosto miudinho. A menina deixara de chorar e olhava-a, com os làbiozinhos movendo-se sempre. Se Susana modelasse um rosto de nené, como exprimiria tudo o que nele se encontra? Aquela paciência, desarmada e nua, paciência submissa, como se o recém-nascido compreendesse já a sua eterna impotência na vida, não somente de hoje, mas de sempre...
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- Susana! Ah, bem, obrigada!
Lucília aparecera à porta, e a sua voz ressoava, aguda.
- Chorava tanto!-disse Susana, timidamente.
- Realmente, é um pouco... deve ter sono!
- Tinha acabado o meu trabalho e pensei em vir um instante...
Lucília tirou-lhe a criança, tornando a pô-la no carro e a baixar a rede.
- Entra, peço-te; desta maneira, nunca mais dormia; e, quando não dorme, está sempre a berrar.
Assim, visto em plena luz, o rosto de Lucília tinha uma expressão dura, hostil.
-Tenho pena... - balbuciou Susana. - A menina gritava tanto!
- Não vejo em que possa isso interessar-te, Sue.
- Não - replicou esta, vivamente -; bem entendido que não é da minha conta... mas esta manhã não me demoro, ainda tens que fazer.
- Lá por isso, tenho sempre; com dois filhos...---disse Lucília. - Era melhor entrares. Quando acabar, são horas de dar de mamar à petiza.
- Pois bem, virei à tarde, talvez. - Susana sorriu e, ao fundo dos degraus, voltou-se ainda, para acenar com a mão. Lucília era uma velha amiga, não valia a pena melindrar-se com o que ela dizia.
Voltando a casa, Susana ficou por momentos indecisa. Aquele olhar, longo e profundo, do nené, era a expressão da raça, e não a de uma só alma; a expressão da raça humana, contra a qual a criança, por falta de carácter próprio, não podia lutar ainda. Mais tarde, à medida que a pequenita fosse crescendo, com a sua personalidade, a sua vontade afirmar-se-ia, disfarçando esta nudez. Mas, agora, os seus olhos eram como microscópios, ampliavam e revelavam o início da vida.
Susana sentou-se no último degrau da porta; com os braços cingindo os joelhos, tinha o olhar fixo no jardim, sem ver coisa alguma. Esquecera já Lucília. Recordava apenas a criança, mergulhava naquela imensidade. E um desejo se agitava nela, profundo, cego, o desejo intolerável, doce, sombrio e solitário, que ela conhecia tão bem e não podia partilhar com pessoa alguma. Ergueu-se e subiu lentamente a escada, indo direita ao sótão. Amassou um pouco de barro fresco, depois do que formou e modelou um
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recém-nascido. cujos traços minúsculos, inacabados reflectiam uma paciência imensa, impotente e inexplicável.
A casa desapareceu-lhe sob os pés; por cima "a sua cabeça desaparecera também o tecto do sótão, não se lembrava de coisa alguma nem de ninguém, os últimos meses decorridos não existiam, os anos da sua existência transformavam-se no nada. Estava ali, de pé, e fazia uma criança com barro - modelava em barro aquela vida. Arredondava a argila, dava-lhe a forma do ser que, uma vez nascido, conserva ainda o jugo da matriz sobre o dorso curvo, sobre as perninhas sempre dobradas pelo joelho, sobre os bracinhos fracos, entrecruzados. Só a cabeça, grave, grande e livre, se levantava ligeiramente e contemplava a vida desconhecida com aquela paciência cruel. Depois de terminar Susana contemplou a sua obra fixamente, um pouco assustada. Nem sabia bem o que fizera, e tinha medo. O rosto, voltado para ela, parecia perguntar-lhe: "Para que nasci eu?"
- Não sei - respondeu-lhe, em voz alta. A sua voz despertou um eco no compartimento vazio e de repente notou o crepúsculo a envolvê-la. Olhou pela janela e ao longe, para lá da floresta, viu o triste pôr-do-Sol, muito vermelho...
"Trabalhei todo o dia", disse para si mesma, assombrada, enquanto tirava a bata e alisava os cabelos. Depois pensou: "Marcos deve estar a chegar! Marcos!" Não pensara nele uma única vez. com esta ideia, a casa reapareceu sob os seus pés, o tecto reapareceu-lhe também por cima da cabeça. Sem olhar mais para o trabalho, desceu a correr.
Parecia-lhe que regressava depois duma longa ausência, enquanto preparava à pressa o jantar de Marcos La em cima, no sótão, o objecto, por ela trabalhado ali ficara, como uma presença. Lá estava, fazia parte dela mesma muito embora separado. Sentia-se cansada, solitária e no entanto satisfeita Depois de ter estado tanto tempo afastada dele, estava impaciente por voltar a ver Marcos, tinha sede do contacto da sua mão, de o saber ali em casa, confiado e cheio de ardor. E afobava-se por ele, dum lado para outro. E finalmente entrouf por fim, e ela ouviu o seu apelo! "Sue! Onde estás?" precipitou-se, atirou-se de encontro a ele e conservou-o apertado fortemente.
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- Oh, Marcos! - murmurou. - Oh! Marcos!... - Pois que seria dela, se Marcos não viesse, à noite?
- Que dia tão comprido! - respondeu-lhe o marido. É medonho, quando não posso vir almoçar!
Mas, para ela, o dia passara como uma rajada de vento. E pensava, com o rosto oculto no pescoço do marido: "Este dia não foi mais que um espaço vazio na nossa vida". Não o vivera com ele; Susana recusava-se a viver, um dia só que fosse, sem Marcos. Precisava ficar estreitamente unida a ele. Ergueu a cabeça com impetuosidade e exclamou:
- Marcos! Peço-te, eu queria um filhinho.
- Bem, está bem - disse Marcos, aturdido, olhando fixamente a mulher; sentia-se comovido e sorria ligeiramente. - Que criança tu és! - disse ainda, com voz mal segura; e depois, pondo-se a rir: - Em todo o caso, vamos lá jantar primeiro.
- Rico jantar! - declarara Marcos; recostado para trás, ia enchendo o cachimbo; depois, acrescentara: - Vamos até ao alpendre.
Saíram e viram a lua-nova suspensa por cima da floresta. Sentaram-se ao luar, Marcos numa das cadeiras novas, de verga, Susana no primeiro degrau da escada, encostada ao joelho do marido. O luar era tão claro que empalidecia as luzes das casas. Marcos inclinou-se e voltou bruscamente o rosto da mulher para a claridade.
- Que é que te levou a desejares assim um filho? Ela meneou a cabeça:
- Não sei; talvez o nené de Lucília; peguei nele, hoje, um bocadinho, e enovelou-se-me nos braços.
Marcos levantou-lhe os cabelos, numa carícia.
- Lucília é que me tem feito temer que tivesses um. Hal aflige-se tanto com a maneira como sua mulher toma as coisas! Diz ele que os dois petizes vieram por acaso. Lucília ainda não estava em situação de os poder ter. Tinham resolvido esperar até que pudessem meter uma criada. E eu, tu bem sabes, Sue, também não posso, por enquanto. Devo dizer-te...
- Nunca deixarei que essa questão da criada possa interferir no que desejo fazer da minha vida - interrompeu ela, muito calma.
Marcos calou-se, e Susana sentia-o aspirar grandes fumaças do cachimbo. A mão, forte, alisava-lhe os cabelos e
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tocava-lhe na nuca. Estavam muito próximos um do outro, tão próximos que ela ia quase a dizer-lhe: "Modelei hoje um nené, Marcos; é talvez o que..." Mas ele falou antes que ela abrisse a boca:
- Às vezes pergunto a mim mesmo porque é que casaste comigo.
E a sua voz vinha ainda carregada dessa antiga e detestável humildade. Susana voltou-se, rápida:
- Marcos, eu amo-te!
- Não vejo porquê, sou um tipo tão vulgar...
- Nada disso!
- Sou, sim; as ruas estão cheias de homens como eu: Hal, tom Page, Bob Shaplin; somos todos do mesmo modelo.
- Por favor, Marcos: tu és muito diferente.
- Somos bons rapazes, sim, honestos, trabalhadores, mas nada mais seremos até morrermos. Farei como meu pai, que continua a atormentar-se na sua casinha da granja, a mesma que viu os seus começos, dele e de minha mãe; está à espera de melhores dias, que nunca mais chegam! Somos todos assim. Hal dizia-me, esta tarde, que logo que tivesse um aumento...
- Mas se eu te amo? E não amo Hal, nem tom, nem Bob...
- Não compreendo por que gostas de mim. Tu é que és diferente; não te pareces nem com Lucília nem...
-Não sou diferente. Sou como elas. Não quero ser diferente.
- Não podes deixar de o ser.
- Oh, não, cala-te! Sinto-me tão só quando dizes isso... Rodeou com os braços os joelhos do marido e agarrou-se
a ele. Agora já não podia contar-lhe como passara esse dia. Nunca lho diria, nunca.
- É necessário que tenhamos um filhinho - murmurou. - Não preciso de ninguém para me ajudar. Não tenho trabalho bastante e gosto de estar sempre muito ocupada.
- Mas, agora? - perguntou Marcos.
E ela sentia a mão deste tremer sobre o seu pescoço. Reteve-a na garganta, com as suas. O coração parecia bater-lhe de encontro à palma da mão do marido.
- Sim - disse muito baixinho. - Agora... Já! Marcos esperou uns minutos e contemplou-a, inclinado
para ela. Susana olhava também aquele rosto juvenil,
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anguloso, ao luar. Bruscamente, Marcos levantou-se, pô-la também de pé e passou o braço em torno dela. Entraram assim em casa. Chegou até eles uma canção pela rádio, vinda do fundo da rua: "Porque tomarás por um caminho, e eu por outro". Marcos fechou a porta, correu o ferrolho, e subiram a escada em silêncio.
Susana pensava muitas vezes naquela figurinha arredondada, lá em cima, no sótão, cuja cabeça se erguia num ar de interrogação sobre um corpo curvado segundo os contornos da matriz. Mas expulsava vivamente estes pensamentos. Um dia, lembrando-se da humildade de Marcos, subiu, resolvida a destruir a estatueta, a fazê-la em bocados e torná-la na argila primitiva. A sua decisão caiu ao ver-se em frente da figurinha. Transformara-se esta num ser dotado de vida própria, que não podia destruir. Como era estranho que, duma ideia do cérebro, lhe tivesse podido surgir aquele ser, indestrutível graças à vida que dele emanava! Contemplou-o longamente, reflectindo sobre esse rosto. No seio desenhava-se-lhe uma forma, com a mesma segurança que as mãos haviam tido para modelar aquele barro. Tão incompreensível era uma coisa como a outra. Ali, naquele sótão vazio, não chegava sequer a distinguir qual das duas criações tinha mais valor. O filho do seu ventre seria dotado de mais sensibilidade do que essa criatura saída do seu cérebro?... Fugiu dali, à pressa, com o vivo desejo de escapar a tudo isto.
É que, neste momento, só o corpo devia contar para ela. Sentiu prazer no brusco arrebatamento desse corpo em presença da criação. Logo que pôde assenhorear-se do germe da vida que lhe fora dado, ficou grávida. Tinha orgulho nisso e gabou-se a Marcos, uma manhã: "É certo, Marcos!"
- Sim?! Eu pensava... Enfim, é preciso fazermos os nossos cálculos.
Fizeram contas sérias nessa tarde. Marcos tivera um aumento de ordenado, cinco dólares por semana: "Toma-os, para pagar ao médico". Ela conservava-se sentada, com o queixo poisado na mão, enquanto ele fazia os seus cálculos.
- Chega-nos à justa - acabou por dizer, erguendo a cabeça de cima da folha de papel, coberta de pequenos números. - Ainda bem, pois afligir-me-ia muito se não pudéssemos pagar as despesas da criança, ao nascer. Mas
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tens a certeza de que poderás arranjar-te só com cinquenta dólares, para as roupinhas e o resto?
- Tenho.
Ela faria com que chegassem. Arranjaria tudo por suas mãos, e não gastaria muito.
- Também me seria fácil ganhar um pouco, pelo meu lado - disse.
- Não! Pretendo prover, eu. às necessidades do meu filho!
- Que é meu também! - murmurou ela.
- Bem sabes o que eu quero dizer - replicou Marcos em tom severo, estendendo-lhe a folha de papel. - Aí tens sobre que te basear. Dentro desses limites, tens carta branca.
E na manhã seguinte, quando a casa lhe apareceu com o costumado aspecto matinal, tranquila e asseada, sentou-se junto da janela, examinando os números cuidadosamente. Cinquenta dólares; dentro destes limites, tinha carta branca. Havia de ser engraçado ver o que se poderia fazer com isso, que lindas fazendas compraria, que materiais transformaria em objectos miúdos e delicados - seria divertido talvez. Mas ela andara pelas secções especializadas dos armazéns e sabia que cinquenta dólares...
"Os nossos filhos têm de contentar-se com o que pudermos dar-lhes", dissera Marcos na véspera.
Naquela manhã, ela estava só, e o seu olhar mergulhava na floresta profunda e verde. E por que é que não havia de dispor também de qualquer coisa? Motivo algum a impedia de contribuir com o que pudesse. com que direito é que só Marcos se despojaria até ao extremo limite? Uma mulher dá mais do seu corpo, do seu tempo, do que o homem. Por que havia de abster-se de juntar a isto o que pudesse oferecer sob outras formas? Susana faria do quarto pequeno das traseiras, exposto ao sol, o das crianças, que guarneceria com móveis pequeninos adaptados às necessidades delas. Inútil, para isso, empregar grandes riquezas. Seria injusto, para o nené a nascer, o poder ganhar algum dinheiro e recusá-lo. Ergueu-se bruscamente. Marcos punha-lhes limites, a ela e ao filho. Mas ela o forçaria a compreender. Depois de, por muito tempo, ter contemplado a floresta, subiu, vestiu o traje de passeio, pôs na cabeça um chapelinho escuro e dirigiu-se, em passo firme e rápido, para casa da senhora Fontane.
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Bateu.
- A senhora Fontane, está? - perguntou, em tom decidido, à criada que lhe apareceu, com a sua touca branca.
- A senhora Fontane está no jardim, com visitas e a serviçal hesitava em ir anunciá-la. Mas a própria senhora Fontane entrou de súbito, com os braços carregados de rosas.
- Olá! - exclamou. - Estávamos justamente a falar de si. Minha querida, estão todos doidos pelo meu Cupido. Hei-de mostrá-lo a David Barnes, logo que chegue. Venha até ao jardim. Dora, ponha-me essas flores em água.
Susana sentiu o braço da senhora Fontane deslizar pelo seu e lá foi arrastada pela sua voz animada, pois aquela senhora já não tinha dúvida alguma a respeito do seu Cupido, desde que todos gostavam dele. "Todas o querem, minha querida!" E agitou o braço livre, energicamente, para o sítio onde as senhoras se encontravam sentadas, indolentes, em volta do tanque; os seus vestidos formavam manchas azuis, amarelas e vermelhas, contra a sebe de arbustos verdes que lhes ficava por trás.
- Aqui a têm, a menina do Cupido! - exclamou a senhora Fontane; e quando aquela se aproximou, todas as senhoras voltaram rostos amáveis para Susana, que apertou mãos macias, carregadas de anéis, e ouviu vozes declarando entusiastas: "Adoro este rapazinho a mirar-se na água!" - "É muito mais que um simples Cupido. O que é que poderia fazer para mim?"
- O que é que desejaria? - perguntou Susana de repente. "Não, não confessaria esta visita a Marcos..."
com a sua voz grossa, a senhora Fontane anunciou:
- Usa agora o apelido Keening, mas o seu nome é Susana.
Acolheram-na logo alegremente, muito à-vontade: "Oh, Susana, venha ver o meu jardim! Também faz bustos, Susana? Tenho um filho adorável, com uma cabeça de Cristo menino".
Ela prometia, atraída por aquela deliciosa cordialidade:
- "com certeza que irei ver o seu jardim!" "Oh, como eu gostaria de conhecer o seu filho, minha senhora!"
Isto parecia-lhe uma página de romance, este jardim, esta temperatura doce de Setembro, estas senhoras ricas e lindas. Por que é que os ricos têm assim tanto agrado, tanta animação? E Susana pensava na pobre senhora
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Sanford, com a sua vivacidade inquieta. Entretanto, a dona da casa dizia:
- Susana tem uma habilidade extraordinária. Qualquer dia, realiza alguma coisa que nos vai deixar assombradas.
Susana levantou os olhos, um pouco assustada, e encontrou o sorriso amável e cheio de confiança da senhora Fontane.
- Oh, não! Realmente... - ia ela a dizer. Mas a outra interrompeu-a, convicta, enquanto se abanava com o chapéu:
- Afirmo-lho eu! Um dia, quando mostrar este Cupido, terei de dizer: "Sim, é um autêntico Susana Gaylord, um dos seus primeiros trabalhos. Habitava aqui. Eis a casa onde nasceu..." Oh! Tenho um espinho no polegar! - Fez um trejeito de dor e meteu o dedo na boca.
- Dê-me licença - disse Susana, tomando a mão da senhora Fontane; e, delicadamente, tirou-lhe o espinho.
- Olhem para estas mãos! - exclamou aquela senhora, pegando-lhe nelas e voltando-as em todos os sentidos. Já viram umas mãos assim?
Todas se inclinaram para aquelas mãos com apaixonado interesse. O próprio Marcos nunca as observara tão bem.
- Pois já repararam nas extremidades destes dedos? Compridos e fortes, e, no entanto, delicados como antenas. Curvam-se com a maior facilidade. - Virava o indicador de Susana, para trás, como uma mola. Esta, sentada, contemplava também os seus dedos, que nem pareciam pertencer-lhe. Haveria, realmente, qualquer coisa nessas mãos em que a senhora .Fontane dava palmadinhas?
- Quando me trouxe este Cupido, compreendi logo com quem tratava. Devo confessar que ao princípio temi que me fizesse qualquer coisa inaceitável; que fosse um trabalho de uma pessoa habilidosa, filha dum vizinho... Mas quando vi o Cupido, logo percebi que o caso era diferente... É que um dia...
- Mas eu não penso, de modo algum, em deixar esta terra - interrompeu Susana, vivamente. - É a minha, tenho cá os meus amigos, a minha família, e não poderia viver noutra parte.
A senhora Fontane sorriu e bocejou:
- Ainda está muito criança, Susana... Oh, meu Deus, que sono eu tenho! Parece-me que vocês deviam voltar para casa. Olhe, Susana, vá com elas e veja o que querem.
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Riam todas ao mesmo tempo.
Duas das senhoras disputavam-na gentilmente:
- Venha primeiro ver o meu jardim, Susana.
- Não, Diana; sabe muito bem que Miguel volta para o colégio dentro de quinze dias.
- Estou convencida de poder fazer a vontade às duas
- disse Susana. - Eu trabalho depressa, desde que tenha a minha ideia formada.
- Bem, então, primeiro o Miguel, e depois o meu jardim.
Fizeram-na subir para um automóvel e lá a levaram, enquanto a senhora Fontane murmurava:
- Agora, está lançada, Susana; Deus sabe até onde chegará.
Depois de percorrer alguns quilómetros através de campos, o carro parou em frente duma enorme casa branca, cuja parte primitiva pertencera outrora a um proprietário crivado de hipotecas. Susana encontrou-se num vestíbulo de paredes forradas de madeira pintada numa cor de marfim, depois passou para uma sala grande com cortinados de cassa da índia. Um rapaz forte, de catorze a quinze anos, de caracóis loiros, estava enterrado numa poltrona, a ler.
- Miguel! - chamou a mãe. Ele levantou a cabeça.
- Que é? - perguntou. Tinha voz áspera e uma cabeça de anjo.
- Ali a tem. Será tolice minha querer fazê-la reproduzir em pedra, em bronze, ou de qualquer outra forma?
- Oh, não! É esplêndida - disse Susana. E o terrível e belo desejo, tão seu conhecido, de novo irrompeu nela.
- Cale-se! - balbuciou o rapazito, por cima do livro.
- Cale-se o senhor - disse Susana. - Deixe-me examinar a sua cabeça. Sua mãe deseja que eu a copie, e hei-de fazê-lo.
- Não quero - respondeu ele. - Estou aborrecido com isto; ela fala sempre assim, mesmo no colégio, diante dos outros rapazes; não quero que copiem a minha cabeça!
- Pois digo-lhe que tem de ser! - declarou Susana, rindo. - Quero eu fazê-la. Vai ver como me saio bem. É muito interessante. Pode também manejar o barro se quiser. Espero fazer o busto de barro, e depois fundi-lo em bronze. Fica melhor de bronze - acrescentou ainda, voltando-se para a mãe.
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As duas senhoras ouviam. Susana sentiu da parte delas viva admiração, que lhe deu coragem.
- Venha a minha casa esta tarde - disse para Miguel
- aí pelas duas horas. Trabalharemos juntos no meu sótão.
O rapazito olhou-a com ar de dúvida; depois, replicou:
- Então, irei a cavalo.
- Muito bem... Agora vamos lá ver esse jardim, por favor.
- Sabe levar o Miguel - murmurou a mãe. - Nem imagina como ele é difícil! Eu fico sempre satisfeita quando o vejo ir para o colégio. Adeus, Susana. Quando poderei ver o busto?
- Dentro de oito dias, mas só no barro, já se sabe.
- Ai, é verdade, minha querida. Já me esquecia. Quanto me custará?
Susana respirou fundo e atirou-se de cabeça:
- Duzentos dólares - disse depois, com firmeza.
A mãe de Miguel olhou-a por um momento e respondeu:
- Duzentos. Muito bem, menina Gaylord. - Impossível adivinhar se achava pouco ou muito.
Uma vez no jardim, a senhora Vanderwelt disse-lhe, com a sua voz breve e seca:
- Como vê, os arbustos formam aqui uma abóbada natural, de maneira que ficaria aqui muito bem uma fonte.
- Sim - respondeu Susana, com os olhos fixos naquela abóbada. - Uma fonte, sim... - Sonhara sempre com combinações de pedra e de água. Há quem compre verdadeiros horrores sob o nome de fontes. Deve-se utilizar a água como fazendo parte, dum todo, e não como uma coisa à parte. - Dá-me licença para pensar nisto? Eu desejaria compor um quadro de pedra e de água, e não simplesmente uma fonte.
- De facto, isso parece-me tentador - disse a senhora Vanderwelt-; e quanto pensa...
- Não posso fazer ideia, antes de ter esboçado o meu plano. Se quisesse fazer-me o favor de indicar um limite...
- Pois sim, ponhamos quinhentos dólares.
- Entendido; não me esquecerei.
Mandaram-na levar a casa, e, quando aí chegou, o motorista veio abrir a porta do automóvel preto. Ela subiu a escada e entrou na sua casinha.
Ainda de chapéu na cabeça, sentou-se na sala, no mesmo sítio onde estivera horas antes. A folha de papel, com as
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importâncias escritas por Marcos, lá estava ainda sobre a mesa. Marcos pusera ali: "Cinquenta dólares (o limite de Susana?)". Pois ela saíra nessa manhã e ganhara setecentos. Pelo menos, havia de tê-los bem cedo; mas o que a atemorizava era essa outra coisa, vasta e sem limites, delimitações que o dinheiro nunca saberia igualar. Acabava de destruir, nessa manhã, as frágeis muralhas dessa casa, a casa de Marcos, muralhas que ele tanto se empenhava em manter à volta dela. Ultrapassara-as até. A sala pareceu-lhe minúscula, uma verdadeira ninharia, confrontando-a com o vasto aposento onde vira Miguel. E, no entanto, como gostava daquela salinha! Tinham-na instalado, ela e Marcos, para ali viverem juntos. Levantou-se, resoluta. Nenhuma razão havia que a impedisse de dizer a Marcos: "Meu "caro, já que tenho um trabalho à mão, por que não hei-de aproveitá-lo?" E depois falar-lhe-ia" da questão do dinheiro.
Na cozinha, ia reflectindo nisto, enquanto almoçava pão, leite e uma maçã. Era então só a questão do dinheiro que lhe tirava a coragem de falar a Marcos? Neste caso, teria sido simples. Mas havia outra coisa em jogo; havia até muitas mais. Depois, sozinha na casa tranquila, tudo desapareceu a seus olhos, excepto uma-cabeça de rapazito, uma abóbada de folhagem sombria. Esqueceu mesmo que tinha necessidade de dinheiro para o seu filho. A água e a pedra que efeito dariam entre a verdura austera dos velhos buxos, cujo aspecto druídico persiste até no jardim duma dama rica? Pegou no lápis e no bloco das receitas e pôs-se a desenhar. A campainha retiniu muito forte em meio dos seus sonhos. Apressou-se a ir abrir. Era Miguel, alto e elegante, tendo como pano de fundo o seu cavalo castanho-escuro, que o criado segurava.
- Vim cá só para ver o seu barro molhado e o resto
- disse em ar de desafio. - Onde é o sótão?
- No cimo da casa, naturalmente - respondeu Susana, conduzindo-o para lá.
Iria ele, agora, fazer-se esquisito? Abriu-lhe a porta do sótão a medo. Miguel olhou em volta.
- Está vazio - disse.
- O menino, eu e o barro. Que mais era preciso? E arregaçou as mangas, enfiou a bata, e, voltando as costas ao rapaz, pôs-se a amassar o barro. Ouviu-o então observar:
- Aqui está um nené engraçado.
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- Nasceu há pouco ainda.
Miguel calou-se, e quando ela se voltou de novo, ergueu o pano que cobria o busto de Marcos.
- Porque é que modelou um homem morto? - perguntou, num tom de horrorizado.
- Não está morto - respondeu ela, vivamente. - É que ainda não está acabado.
- Então, não acaba as coisas, nunca?
- Já se sabe que sim; hei-de acabar a sua cabeça, por exemplo. Ora venha cá; aqui está o barro.
Ele tornou a cobrir o busto e avançou para Susana, a fim de examinar o monte que ela acabava de amassar em cima da mesa.
- Não gosto de sujar as mãos - declarou.
- Então, faça outra coisa, porque isto não é realmente um trabalho asseado.
- Poderia desenhar. Eu desenho muito.
- E que desenha?
-? Principalmente cavalos.
Susana limpou as mãos, procurou entre os seus trabalhos e acabou por encontrar algum papel de desenho, lápis de cores várias e percevejos para pregar o papel. Segurou uma folha deste na parede ao lado da janela, deu os lápis ao rapaz e disse-lhe:
- Pode instalar-se aí e desenhar o seu cavalo. Miguel começou logo a desenhar, sem dizer palavra.
Então, Susana, vendo a luz cair sobre a cabeça loira, pôs-se também a modelar o barro e a dar-lhe umas semelhanças. Era difícil, pois havia muitos ângulos delicados, fugidios, e contornos infantis, inesperados. As faces tinham uma redondeza juvenil, mas a boca era caprichosa e dura. Nem uma só vez olhou para Susana, e esta trabalhou, assim, em silêncio, durante cerca de uma hora. Por fim, Miguel largou os lápis.
- Já basta. Acabarei amanhã.
Ela interrompeu-se também e veio ter com ele.
- Olhem! Mas, afinal, só desenhou árvores; pensei que queria fazer o seu cavalo...
- Hei-de entrar a galope na floresta, sobre o meu cavalo; por isso comecei pelas árvores, debaixo das nuvens brilhantes; amanhã esse brilho pode ter desaparecido. E depois, hei-de forçosamente parecer muito pequeno, em frente disto.
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Desenhara já a massa da floresta sombria, contra o céu claro.
- Sim, senhor, está bem - disse Susana-; está mesmo muito bem.
Ele aceitou o elogio sem responder, aproximou-se para ver o busto, e perguntou:
- Sou eu?
- Há-de sê-lo; agrada-lhe? O rapaz meneou a cabeça.
- Tem assim um ar sujo. Mas eu não sei com que é que me pareço. Mas tenho vontade de ir indo. Amanhã virei acabar o meu cavalo.
- Conto com isso - respondeu Susana. À saída tomou ainda, de passagem, um traço brilhante do perfil e imprimiu-o, com gesto firme, no barro. Depois, limpou as mãos e foi até à janela. Miguel montara a cavalo e afastava-se já. Susana olhou o desenho. Admirável a maneira como o rapaz apanhara as sombras da floresta ante o céu da tarde!
Custava-lhe anunciar a Marcos, alegremente, como projectara: "Meu querido, hoje ganhei dinheiro". Qualquer outra mulher, ela bem o sabia, gritá-lo-ia logo ao marido. Lucília, quando ganhava dois dólares ao bridge, gabava-se: "Hal vai ficar contente. Este mês, já fiz perto de doze dólares: quase com que pagar à mulher que vem tomar conta nos garotos, quando saio". Mas Susana ganhara muito e com muita facilidade. Marcos perguntaria: "Quanto é?" E quando lhe respondesse, os olhos do marido tomariam aquela expressão abatida e triste que ela tanto temia; e diria: "É mais do que eu ganho em três meses, e mesmo em quatro". Sentia vergonha de poder fazer maiores proventos do que Marcos, e não podia suportar a ideia de que, com isso, o humilhava. Havia ainda este problema, que ultrapassava o do dinheiro, e de que não poderia falar-lhe: aquele desejo, o mais forte que ela conhecera, aquela necessidade de solidão que a separava dele. Ignorava a razão disto, conhecendo apenas a vontade de estar só, porque então ninguém lhe fazia falta, nem sequer Marcos. Ora isto é que ela não lhe poderia confessar. Falar-lhe-ia do dinheiro e calaria o resto.
Na cozinha, atarefada entre o fogão, a mesa e o aparador, preparou o jantar que lhe agradaria. Mas isto só lhe ocupava uma parte do espírito, não passava de uma
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distracção para as suas mãos. E estas também não trabalhavam como quando modelava. Enquanto executava o que tinha a fazer, ia reflectindo, raciocinando. Inútil recusar-se por mais tempo a olhar de frente a espécie de mulher que ela era e a que desejaria ser para Marcos. A felicidade do marido estava antes de tudo; mas como o tornaria feliz, com o seu modo de ser? Havia, para mais, este parêntese posto por ele: "(Os limites de Susana)",
Pela janela da cozinha, olhou fixamente o céu por cima da floresta. O pôr-do-Sol extinguira-se já, mas o firmamento brilhava sombrio, e a estrela da tarde, suspensa lá em cima, parecia enorme pela proximidade. Lá estava, grande, imóvel, solitária e carregada de significado. De repente, Susana sentiu-se só consigo mesma, mas sem experimentar qualquer sensação de soledade. Passou o olhar pela cozinha, que por um momento lhe pareceu como que estranha, num local transitório, que poderia abandonar de um dia para o outro. De súbito, tomou uma resolução.
"É preciso que diga tudo a Marcos; ele deve conhecer tudo a meu respeito. É a única segurança possível". Depois, reflectiu: "Por que é que não me sinto em segurança?" . Desceu a persiana, escondendo a única estrela e o céu. Encerrou-se na sua cozinha. E Marcos gritou da porta:
- Parece-me que cheira a queimado, não?
Susana correu ao fogão e retirou o pastelão de carne; um dos lados estava já escuro, a querer queimar-se.
- Chegaste mesmo a tempo, Marcos! - exclamou ela, poisando o pastelão e lançando-se nos braços do marido. Este era tão benévolo, tão bom! Por que havia de temer contar-lhe tudo?
Depois de jantar, pediu-lhe:
- Promete-me, sim, que não te sentirás melindrado com uma coisa que tenho a confessar-te?
Estava bastante frio para ficar sob o alpendre, depois de jantar, mas Marcos envolvera-a no seu velho sobretudo de grosso burel, vestindo ele uma camisola de malha de lã.
- As estrelas já apareceram todas - disse. - Quando vim para casa, só se via uma por cima da floresta. Vamos, o Inverno não tarda aí. - E depois acrescentou: - Crês então que o que tens a dizer-me possa magoar-me?
Susana ajoelhou-se ao pé dele e olhou-o, mal distinguindo o seu rosto no crepúsculo; e disse:
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- É que eu posso magoar-te mais do que ninguém e tu podes fazer-me mal, porque nos amamos.
Ele olhou-a também, sem lhe distinguir os olhos, mas apenas as superfícies lisas das faces, do queixo e da testa, as sobrancelhas pretas, as linhas do nariz e da boca,
- Vamos, que há?
- Prometes?
- Tu não podes fazer-me mal; eu conheço-te.
- Promete!
- Pois sim; mas é inútil. Vem sentar-te nos meus joelhos.
Ela assim fez e o marido rodeou-a com um braço, vigorosamente.
- Marcos, eu reflecti no que ontem dissemos, e quero também a minha parte nisso, isto é, fazer o que puder. Pensei na minha modelagem, e fui visitar a senhora Fontane. Tive a sorte de encontrar lá algumas amigas suas, que me deram duas encomendas.
- Espera; levanta-te um pouco, deixa-me acender o cachimbo.
- O Cupido ficou um encanto, Marcos.
O fósforo flamejou, ele aspirou com força uma ou duas vezes e depois puxou Susana novamente para si.
- Continua - disse.
- Tenho de fazer um busto para uma e uma fontjj para outra.
- Estão aí a veranear, não?
- Estão. .
- E quanto?
- Oh, Marcos, peço-te, não leves a mal: setecentos!
- Setecentos! - exclamou ele. - Mas, Sue... Ela tapou-lhe a boca com a mão.
- Olha; não tem importância, isto. Oh, Marcos, deixa-me instalar um quarto de crianças no do fundo e comprar um bom carrinho e uma caminha! Por que não? se posso fazê-lo!
Marcos apertou contra os lábios a mão da mulher e beijou-a, deixando-a cair logo. Em seguida, meteu o cachimbo na boca. Susana apoiou-se de encontro a ele, com o coração mais leve já. Não se zangara, pronto! Por que é que ela julgara aquilo tão difícil?
- Isso vem dar mais força a uma ideia que me preocupava o espírito - disse Marcos; e, sacudindo a cinza
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do cachimbo, poisou este com cuidado, ao seu lado, ,no chão.
- Prometeste não te melindrares.
- Não se trata agora do que eu penso, mas sim do que é justo para ti, minha querida; e eu quereria ser justo, mas nem sei como.
Susana suplicou-lhe:
- Fica tal como és para mim, Marcos. Eu gosto tanto da nossa vida!...
Ele pareceu não a ouvir e apertou-a nos braços.
- Desejo que faças o que te agradar - murmurou.- Instala-te no sótão, como deve ser. É isso o que tu queres realmente; sempre o compreendi.
Ela endireitou-se, libertou-se dos braços que a prendiam.
- Mas eu não quero arranjar o sótão para os meus trabalhos. O que sinto é vontade de ter as coisas precisas para a criança, não para mim. Não percebo o que queres dizer.
- Vês? Tu é que estás melindrada, tu! Quanto a mim, quero apenas fazer-te compreender que não deves renunciar assim ao que te dá prazer, lá porque casaste comigo. Portanto, se há coisas que tens vontade de fazer e de que eu não sou capaz, fá-las.
Susana começou:
- Ora vejamos, Marcos... - mas calou-se logo.
- Eu não te satisfaço em absoluto, tenho a impressão disso - murmurou o marido, em tom triste.
- Oh, meu querido, meu querido! - exclamou Susana, aproximando-se-lhe de novo, na escuridão.
E ele murmurou, apoiando a cabeça no seio da mulher:
- Sei que és diferente de mim, soube-o sempre. Que direito tenho eu?...
- Cala-te! É como se me abandonasses, quando dizes essas coisas. Nunca mais tocarei no barro, nem nos pincéis.
- Não digas isso. Ouve, Sue, és injusta; acabei de te explicar...
- Dizes uma coisa, mas sentes outra. Melindraste-te até aos ossos, sem eu saber porquê. É necessário que te descubra e deixe de te fazer mal. É por causa do dinheiro?
Susana conservava-se-lhe ao lado, com uma das mãos posta sobre o ombro dele.
- Não... Pelo menos, não é só a questão do dinheiro...
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Ela insistiu:
- Gostarias mais de que não me servisse, para a criança, do que eu ganhar? Marcos, tenho de saber a verdade!
Na escuridão, ele respondeu, obstinado:
- Um homem prefere alimentar a família por si mesmo. Paz triste figura quando não consegue sequer comprar o necessário para o seu filho. Mas...
- Muito bem; não sairei dos limites que me impuseste. Ele interrompeu:
- Eu não devia, talvez, pensar assim. E depois, será esta a verdadeira razão? Nem sei... Não posso, sequer, exprimir-te o que sinto.
- Se nada dizes, como hei-de eu saber?...
Ele emudecera. Separou-os um longo intervalo cheio de silêncio e de perturbação. Depois, Marcos continuou, calmo e natural:
- Susana, meu tesoiro! Tenho de procurar ver claro em mim mesmo. Não tenho o direito de impedir-te de comprar as coisas para a criança, sob o pretexto de que não posso fazê-lo. Mas façamos isso a meias. Renuncio já a uma parte, do meu lado. - E procurava-lhe a mão.
- Mas se ainda assim te desagradar, hás-de dizer-mo, sim?
- Juro-to - respondeu Marcos, apertando contra o ombro a cabeça da mulher.
- Se assim não for, não continuo nem por um minuto mais, porque, para mim, tu és mais que tudo no mundo.
Marcos pegou de novo no cachimbo.
- Não tenho a certeza de que seja questão de dinheiro
- disse. - Levanta-te, enquanto acendo isto.
- Então, que é?
- Que me enforquem, se eu o sei... Assim, curva-te, para te sentir bem junto de mim.
Mesmo estendida nos braços dele, Susana não conseguia entregar-se-lhe absolutamente. "Preciso de adivinhar isto sozinha", pensou. Mas calou-se. Marcos nada dizia também, e ela sentia-se isolada nos seus braços. A Lua desaparecera. As luzes foram-se apagando, uma a uma, ao longo da rua, e a noite tornou-se mais escura. E a floresta, sob a luz das estrelas, parecia ainda mais sombria do que a noite.
- Subamos - disse Susana, agitada. - Sinto-me fatigada.
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- Nunca o deves estar. Nem te reconheço quando te queixas de cansaço.
Ela não respondeu, e deixou-se arrastar, quase levar, para o leito. Nessa noite, sentia desejos de se confiar a Marcos, de todas as maneiras possíveis. Deixou que a despisse, que lhe preparasse o chuveiro, e, já em camisa de dormir, foi ele ainda quem lhe arranjou os longos cabelos. Sabia quanto Marcos gostava de penteá-la, mas raramente lho permitia, por se irritar com a inconsciente falta de jeito do marido. Mas nessa noite deixou-lho fazer. Marcos estava trémulo, apaixonado.
- É um cabelo tão delicado, este! - murmurou. E bruscamente enterrou a cabeça entre os cabelos de Susana. Lindos cabelos, lindos! - Depois dum momento, acrescentou ainda, baixinho: - Creio que nem lhes conheço bem a cor, são escuros, castanhos, doirados, ou tudo isto ao mesmo tempo? - Puxou Susana para si, mas esta continuava a sentir-se solitária, embora ali tivesse Marcos. Parecia-lhe não estarem absolutamente sós, agora, principalmente nesses momentos em que, antes, se encontravam unidos mais profundamente. Pela noite adiante, perguntou a si mesma se a sensação de que a criança se ia fazendo maior, que tomava formas e se tornava hora a hora um ser mais distinto, seria a causa daquela mudança.
Não havia, pois, meio algum de descobrir o que é que tinha mudado neles. O que havia a fazer era levar a vida de todos os dias e terminar o trabalho prometido. Acabou o busto de Miguel, trabalhando nele lentamente. Até então, nunca pusera tantos cuidados em qualquer das suas obras.
O rapazito lá subia sozinho para o sótão, sem chamar por Susana; esta ia encontrá-lo já com um novo papel de desenho pregado e, quando ela entrava, dava-lhe os bons-dias, continuando a manejar os seus lápis. Nunca tocava no barro e cada desenho era diferente do outro. O primeiro lá estava também pregado ainda ao pé da janela. Trabalhara nele três dias num silêncio absoluto. A floresta era grande, sombria e misteriosa: no primeiro plano, um cavalo, a galope, dirigia-se para ela com o seu cavaleiro, Miguel, de cabelos ao vento, de rosto erguido e corpo estendido para o bosque. Animal e homem eram minúsculos, mas o rapaz surpreendera-os em verdadeiro arrebatamento. Os outros esboços eram menos bons. Desenhara-os a traços largos, imprecisos, indeciso sobre o que queria
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fazer. E nem uma vez só Susana lhe perguntara: "Que está a fazer?" Deixava-o trabalhar tranquilo, e trabalhava ela também, envolta no seu próprio silêncio e absorvida pelo rosto de Miguel.
Quando este foi para o colégio, aquela continuou a modelar de cor durante alguns dias, a fim de acabar o busto. Uma ou duas vezes, os traços do rapazito varreram-se-lhe da lembrança, esquecendo-os por completo. Então, olhou para os desenhos sem procurar compreendê-los, e o rosto de Miguel reapareceu na sua frente. Terminado o busto, a mãe veio vê-lo antes que fosse mandado para o fundidor de bronze. Ficou em pé diante do barro, contemplando-o fixamente.
- Está realmente parecido - acabou por dizer -; simplesmente, não consigo adivinhar o que é que está a fazer. Não compreendo a sua expressão. Em que está ele ocupado, Susana?
- Galopa para a floresta escura.
- É estranho! - murmurou a mãe.
Susana, sem responder, tornou a cobrir o busto com o pano. Mas, uma vez só, voltou a observá-lo. Olhou a sua obra longamente, sem pensar, deixando antes que as sensações se elevassem nela como nuvens que se dilatassem, a fizessem desfalecer, e se dilatassem de novo, arrastando-a com eles. Depois, em meio do silêncio, ouviu nitidamente a voz de Miguel passar entre os lábios de argila. E embora julgasse ouvir apenas sons, sem palavras, isso lhe bastou. Compreendeu que a sua obra estava acabada e estava boa. Mas, escutando, teve medo, de repente, sentindo-se separada de todos... separada de Marcos. Voltou-se, desceu as escadas a correr, sentou-se à secretária e escreveu à senhora Vanderwelt, dizendo-lhe que, de momento, não poderia encarregar-se da fonte. Consagraria ao filho uma importância mais proporcionada à que Marcos lhe destinava e seria melhor assim.
Depois de ter redigido e fechado a carta, Susana ficou-se a reflectir, e renunciou ao que tencionava comprar para o seu nené. Mais valia conservar-lhe intacto o amor dos pais, como base para a sua vida, do que dar-lhe alguns objectos. O amor é uma coisa estranha, sensível à menor mudança, a cada situação nova. Sonhara outrora com um amor tão sólido como a vida, tão constante como o tempo. Agora, aprendera já que ele tem de ser
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protegido, alimentado, vigiado. Dois seres que se amam nunca são completamente livres e naturais um em face do outro. Devem ter cuidado com o seu amor, evitar feri-lo ou deixá-lo esmorecer. Agora que Miguel partira, Susana não voltaria mais ao sótão.
Levara mais tempo do que seria preciso a completar aquele busto. E, já que se contentava com uma importância reduzida, precisaria de fazer ela mesma o que tinha projectado comprar, e isso demoraria muito mais. Quando o Outono foi substituído pelo Inverno, procurou pano para coser e novelos de lã azul-clara, e pôs-se a trabalhar. A mãe trouxera-lhe uma malita cheia de peçazitas de enxoval, amarelecidas mas limpas, e, um dia, a sogra, silenciosa, levou-a ao quarto desabitado da granja onde Marcos nascera; abriu uma gaveta e disse: "Se isto lhe for útil..."
Marcos, porém, era filho único, e Susana vira os olhos dessa mãe pregados nas poucas roupinhas que lhe restavam daquela única infância. Por isso respondera:
- Não será preciso; guarde tudo preciosamente.
- Eu queria ajudá-la - disse ainda aquela senhora.
- Quando for a altura, lembrar-me-ei - respondeu Susana tranquilamente.
A mãe de Marcos, mulher magra e quase muda, nunca saía da granja, e Susana muitas vezes dizia a Marcos: "Não seria melhor ires ver tua mãe?" Porque a verdade é que ele se afastara dos dois velhos, sentindo até uma espécie de rancor por os ver tão aferrados ao passado, sem admitirem a menor mudança. Susana insistia: "São tão orgulhosos de ti, Marcos! Vai visitá-los!" E ele respondia com impaciência: "Irei, mas é sempre a mesma coisa. Nada têm para me dizer, nem eu a eles".
Olhando a cabeça descoberta da sogra, Susana pensou: "Daria um busto esplêndido, de pedra. Crânio grande e duro, olhos encovados, boca larga..." Mas afastou tal pensamento. Não tornaria ao seu sótão por muito tempo; talvez até nunca mais lá voltasse.
- Por que não vais mais vezes a casa de teus pais, Marcos? - perguntou-lhe uma noite.
- Que fizeram eles por mim? O que sou consegui-o eu próprio.
- Deram-te a vida.
- A vida, só, não basta.
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A vida, só! Susana pensou na mãe de Marcos, que não encontrara mais nada para oferecer ao filho. E este não se contentava com isso.
No entanto, para uma mulher, o que havia de mais precioso para oferecer? Principalmente, quando é tudo quanto tem a dar!
Susana deu João à luz num quartinho do hospital. O médico gracejou com ela:
- É tão corajosa como uma mãe de dez filhos.
Ela, é que sabia como ele se enganava. Mas, enquanto esperava que o filho viesse ao mundo, passeando no quarto, prometera a si mesma que não soltaria um grito nem choraria muito alto. No quarto próximo, uma mulher berrava: "Ai, que vou morrer! Creio bem que vou morrer!" Susana, essa, desejava o seu filho; e, depois de ter ouvido aqueles gritos estúpidos, ao chegar a hora crítica, cerrou os dentes.
- Como vais, meu tesoiro? - perguntou-lhe Marcos, cujo rosto pálido apareceu à porta.
- Admiravelmente! - respondeu, em voz breve, com os olhos brilhando de dor e as mãos molhadas. A hora que seguiu foi passada em silêncio.
- Mas, realmente, nem chegou a sofrer, senhora Keening - disse-lhe a enfermeira.
"Que tonta!" pensou Susana.
João nascera. Deitada de costas, estava ainda mergulhada na dor. A enfermeira erguera por um momento uma coisa pequena e escura enrolada num cobertor. Ninguém sabia quanto Susana sofrera; estava saturada de padecer. Mas alegrava-se de não ter gritado.
Marcos, na ponta dos pés, veio beijá-la.
- O médico diz que nunca viu um parto tão fácil. Ela sorriu, ainda incapaz de falar. A dor mal começava
a diminuir, deixando-lhe o corpo fraco, completamente átono. Dormiu quase continuamente, dia e noite, durante duas semanas, depois de que acordou, voltando para casa. Antes de sair para o hospital, tivera o cuidado de fechar o sótão à chave, e, quando voltou, não o abriu.
O quarto de João era o centro da casa, embora não contivesse mais que o berço, uma mesa e uma cadeira. Mas Susana habituou-se depressa a este aposento nu. Nunca vivera tão perto duma criança e logo desde o princípio
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notou que ele tinha já a sua personalidade. Não lhe encontrava semelhança alguma com Marcos, consigo mesma ou com qualquer outra pessoa. O pequeno fora ao passado desconhecido e tomara aos mortos de outrora um arcaboiço forte, mãos quadradas de dedos curtos, cabeça redonda, olhos de avelã muito brilhantes e uma boca tão sorridente e calma, que Susana ria de ver tanto juízo naquele rosto de criança. Um dia em que tinha João sobre os joelhos, pensou no nené de barro que estava lá em cima no sótão, . e não pôde deixar de o ir ver. Só o olharia a ele, e desceria logo. Subiu, pois, e observou fixamente a estatueta. O barro, ao secar, gretara um pouco, e as finas rugas davam àquele rostozinho um ar de velhice estranha, prematura. A cabeça erguida fazia sempre a mesma pergunta: "Por que é que nasci?" Susana tornou a cobri-la à pressa e desceu logo. João, à medida que ia crescendo, cada vez se voltava mais para o pai. Susana bem podia cuidar dele e vigiá-lo todo o dia; o petiz nunca se lançara nos seus braços como nos de Marcos. Este idolatrava-o. Ao entrar em casa, ia logo direito ao quarto do filho, em vez de chamar a mulher, e, por vezes, era um barulho de risos q que anunciava a Susana a sua presença. Um laço estreito e quente unia esses dois seres, e, quando os ouvia rir juntos, Susana continuava a trabalhar na cozinha, em vez de ir ter com eles. Sentia-se ainda mais só depois do nascimento de João, como se tivesse terminado qualquer coisa sem ter começado outra. Os dias passavam no meio da rotina do trabalho manual e o seu espírito conservava-se em expectativa.
- Tenho esquecido as minhas amigas - disse uma tarde a Marcos, durante o jantar. - Sinto-me um pouco fora de tudo. vou dar uma recepção.
- Bravo! Há um século que não vês pessoa nenhuma. Terás forças para isso?
- Estou mais forte do que nunca.
Verdade é que ela se atarefava com uma energia que a vinda de João não enfraquecera.
- -Isto é trabalho demasiado, Susana-dizia-lhe a mãe, tristemente-já é tempo de arranjares alguém que te ajude!
- Oh! O João é tão bonzinho, que pouca pensão me dá
- respondeu Susana, com impaciência.
O pai veio um dia vê-la. Ouviu-lhe a bengala bater o chão à entrada; e, quando correu para ele, encontrou-o de pé, de barrete posto sobre a orelha.
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- Vendi uma poesia - disse. - Recebi vinte dólares. Tua mãe pretende que trabalhas em excesso - e rebuscava nos bolsos.
- Oh, meu Deus! - exclamou Susana. - Pois tenho o aspecto de quem está cansada? Eu acho até que não é o suficiente. Ora olhe para mim!
Ele fitou-a e pôs-se a rir.
- Realmente, pareces tão fatigada como a estátua da Liberdade - disse. - Então, por que não vens fazer-me um pouco de música?
- E o João...?
- Trá-lo. Por que não? Ouvir música será óptimo para ele.
- É verdade. Por que não?
Foi buscar o menino e levou-o; o avô arranjou-lhe um ninho de almofadas sobre o divã, no quarto lá de cima.
- Agora, não penses nele e toca.
E, tocando, ela esqueceu-o, de facto. Mas a melodia não fez senão aumentar a sua impressão de solidão inquieta. "Talvez tenha necessidade de ver gente - pensou. - É preciso que eu receba".
- E isso vai bem? - perguntou-lhe o pai bruscamente, quando ela fechou o piano. - És feliz?
- Sou, sim! - disse, sorrindo. - Por que não? Tenho tudo. Marcos faz bons negócios, ainda há dias vendeu a um escultor a vivenda dos Graingers. É curioso, isto, não é?
- Nem sempre é o bastante - observou o pai. A mãe chamou, do fundo da escada:
- Então, Susana, não desces?
- Desço, sim - respondeu, pegando no João, que dormia.
Em baixo, no quarto, a mãe embalou-o nos joelhos. O petiz adormecia facilmente, profundamente.
- Tens sorte em ele ser são - murmurou a mãe. E depois, mais baixo ainda, num sopro: - Sinto-me feliz por teres um filho. Um casal tem necessidade de mais alguma coisa, no fim de um ano ou dois. Principalmente a mulher. Ao princípio, está-se preso um do outro, e as coisas caminham. Mas quando a casa está arrumada e o marido vai e vem regularmente, sente-se o desejo de mais ainda. - Parou, embaraçada, e depois continuou: - Isto, no caso de tu e Marcos se parecerem com os outros.
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- Eu não sei; nós somos muito felizes.
- Tinham obrigação de o ser. Eu sei que os pais de Marcos são pessoas vulgares, mas boas. Creio que é essa a espécie que dá melhores maridos. Tive sempre a impressão de que, se o teu avô não tivesse sido músico de profissão, teu pai teria sido mais feliz. Herdou um espírito atormentado, e isso também me não facilitou as coisas, a mim.
- Como era o avô?
Entre assuas recordações da infância, lembrava-se de uma voz colérica, uma cabeça enorme com cabelos brancos encrespados e mãos agitadas sem cessar.
- Quase já me esqueci dele - respondeu a mãe.- Morreu há muitos anos. Nunca gostámos um do outro. Não percebia o que ele dizia. Falava de forma incompreensível. Eu prefiro as coisas claras.
João, deitado nos joelhos da avó, abriu os olhitos e teve um sorriso amável para as duas mulheres; estas sorriram-lhe também, esquecendo a sua conversa, unidas por ele, de momento; depois, a mãe de Susana suspirou.
- Está a crescer tanto!... Agora, Maria quer ir para outro colégio, embora saiba que, aqui, com o pai professor, a educação seria gratuita. É mais difícil de levar, ela, do que tu foste.
- Maria não sabe o que quer, e isso é mau. Deixe-a ir, mãe.
- Sim, sim; mas poderemos com a despesa? A razão que tua irmã dá é absurda.
- Qual é?
- Pretende que não pode trabalhar, se se sentir obrigada a manter-se sempre à tua altura, isto é, a ser sempre a primeira da aula, e tudo o mais.
- Era inútil, isso...
- Bem entendido. É o que eu lhe digo. Mas insiste em que a mandem para onde ninguém a conheça.
- Nesse caso, era melhor ir. - E Susana pegou no filho: - É preciso ir andando para casa. Marcos deve estar à minha espera.
A mãe acompanhou-a até à porta.
- Então, pensas que devemos ceder?
- Tenho a certeza - respondeu Susana. E sentiu crescer dentro de si, sem razão, a antiga dor, profunda e absurda, porque, bem entendido, era absurdo querer mal
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a Maria só porque esta tinha o desejo de se libertar da irmã mais velha.
No dia seguinte, convidou pelo telefone, umas após outras, todas as suas antigas amigas.
- Há séculos que não vos vejo e fazeis-me falta; sinto-me muito só, longe de vós, e João está-se já tornando um grande homem.
Todo o dia se atarefou a arranjar a casa. Apressou-se a tratar do pequenito e cantava, andando na cozinha dum lado para o outro.
- É bom ter-se que fazer - disse a Marcos durante o almoço-; não estou suficientemente ocupada!
Arranjara-lhe os seus pratos favoritos, que ele comeu com prazer.
- Pois eu não esperava senão restos, hoje - observou o marido.
- Oh, não levou nem meia hora, e é tão interessante! Reservara para depois o prazer de dispor as suas flores
em jarras. E punha nisto o maior cuidado, fazendo de cada raminho um quadro perfeito. Em seguida, vestiu-se e envergou a João um macaquinho de pano azul. Às três horas, com o petiz ao colo, abriu a porta às amigas; estas vieram, umas agora, outras logo, e a casinha tranquila encheu-se de tagarelice e de risos misturados com gritinhos de alegria e de surpresa. E foi este o ponto culminante daquele dia único: a casa cheia das suas amigas.
- Divertiste-te muito? - perguntou Marcos, comendo uma sanduíche. Toda a gente saíra já, e a casa voltara à sua apatia.
--João teve muito juizinho-disse Susana, entretida a lavar os pratos. Após o ruído de tantas vozes, o silêncio agora parecia morto.
Marcos pegou num pano e limpava os talheres à medida que ela os lavava rapidamente, com destreza.
A certa altura, Susana interrompeu-se e voltou-se para ele, com as mãos ainda a escorrer a água de sabão. Depois, disse em voz baixa:
- Tive uma impressão estranha: creio que, no fundo, elas não gostam de mim.
- Meu amor!- exclamou Marcos, pretendendo abraçá-la. Mas Sue abanou a cabeça.-
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- Não, Marcos, tenho as mãos cheias de sabão... E depois, não compreendo porque não gostam...
Ele continuou a limpar os talheres e perguntou:
- Fizeram alguma observação?
- Não... Não... Andaram a admirar tudo, acharam as sanduíches e os bolos deliciosos, fizemos uma partida de bridge maravilhosa... - Parou, a reflectir. - Mas senti que não me levavam a bem ter-me arranjado, sozinha, com João e tudo o mais.
- Esquece-as. É que se sentem envergonhadas. Na maior parte, as mulheres não passam de umas preguiçosas, que gritam por socorro logo que vêem um pouco de trabalho.
- Lucília disse uma frase estranha: "Deveríamos condenar Susana, porque nos torna mais duras as nossas condições de trabalho. É uma traidora". Gracejava, bem entendido, e todas riram.
- Já te disse: não penses mais nisso. Talvez não passemos aqui toda a nossa existência. Às vezes digo a mim mesmo que melhor seria abandonar a terra natal, onde todos se conhecem.
Ela prosseguia:
- Respondi a Lucília: "Tu tens dois filhos. Estou certa de que, nessas condições, também eu precisaria de ajuda". Mas não creio, Marcos. Tenho necessidade de estar ocupada em qualquer coisa; e não o estou suficientemente.
- Não penses nisso. Agradas-me assim mesmo. - Avançou e envolveu-a nos braços. Ao contacto daquele corpo sólido e bom, ela sentiu-se cheia de reconhecimento.
Afinal, tinha Marcos e João. Esperava demasiadamente de pessoas como Lucília. Contentar-se-ia com o que tinha: Marcos e João. Talvez que, cerrando bem os muros à sua volta e ajustando a casa à medida dos seus, não sentisse mais aquela impressão de solidão. Quando sonhamos, sentimo-nos mais sós.
Um dia, a campainha da entrada retiniu, e ela foi encontrar Miguel, de calças de montar e camisa azul, mais alto e mais forte.
- bom dia - disse este com meiguice e sorrindo.
- Oh, é Miguel!
- Vi o meu busto feito pela senhora e tive desejos de tornar a vê-la. O seu trabalho pareceu-me melhor do que nunca. Que fez mais, depois?
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- Nada - respondeu Susana - se não levarmos em conta um nené.
Miguel passou à frente e subiu a escada, direito ao sótão.
- Quer referir-se a essa criança por acabar que vi uma vez? Nunca mais me esqueci dela.
- Não; falo duma criança verdadeira, de carne e osso.
- Oh, isso! - retorquiu ele, em tom indiferente. Estava já ao pé da porta do sótão e empurrava-a com impaciência.
- Está fechada à chave - disse, agastado.
- Tenho-a fechada, sim.
- Abra, então.
Ela assim fez, e entraram juntos. O rapaz olhou para os desenhos, que encontrou tal como os deixara, pregados na parede.
- Coisas velhas - disse. - Não estão muito mal para um garoto, não é verdade? Creio bem que foi o ter trabalhado aqui, consigo, que me deu a ideia de me dedicar à pintura.
- Pois tem continuado?-perguntou Susana com ardor. Ele afirmou com um gesto de cabeça.
- Depois, tomei lições e não volto mais ao colégio; trabalhar em qualquer outra coisa é para mim tempo perdido. Irei para Paris. Mas não quero pintar segundo a escola francesa. Aprenderei apenas a servir-me dos meus pincéis. Em seguida, voltarei aqui, para pintar... Meu Deus! O que eu vejo todos os dias! Sabe que quase ninguém tem pintado coisas da América? Esta floresta está bonita, não? Também poderia fazer o seu retrato.
Miguel estava de tal modo à-vontade, tão seguro de si e cheio de energia, que ela se sentiu diminuída, posta de lado. Aquele insistiu:
- Agora, a sério. Diga-me: que tem feito.
- Repito-lhe: nada.
Não falou de João, porque já nem pensava nele. Tinha impressão de ter estado absolutamente inactiva.
Miguel olhou-a, e aqueles olhos azuis pareciam acusá-la; acabou por dizer:
- Devia envergonhar-se disso! - e voltou-se para examinar a estatueta da criança e o busto de Marcos.
- Estão na mesma, por acabar. Ela repetiu:
- Por acabar.
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- E a senhora sente-se feliz, satisfeita com a sua preguiça?
Ele olhava-a com um olhar fixo, que a varava; e o seu indicador, muito comprido, parecia apunhalá-la; Susana não pôde mentir.
- Nem por isso - disse em voz fraca; e depois, como se ele fosse já homem feito, acrescentou, humilde: -As circunstâncias da vida...
Mas Miguel não a ouvia, nada lhe interessando as circunstâncias da vida de Susana; e pôs-se a falar como se esta nada tivesse dito:
- Há um artista, o escultor David Barnes, o que comprou uma casa perto daqui, a velha residência dos Graingers...? Pois ele jantou ontem em nossa casa. Tendo visto o busto que a senhora fez, perguntou: "Quem executou isto?" e quando a mãe lhe explicou, respondeu: "Digam-lhe que vá procurar-me".
- Oh, Miguel, é verdade isso?
- É; foi até, em parte, por isso, que vim aqui hoje. Vai?
- Não sei.
E olhava para o desenho de Miguel: a floresta escura contra o céu, a pequena silhueta a cavalo que nela se precipitava perigosamente.
- Irá, sim.
- Não prometo nada; vamos a ver.
- Irá amanhã.
- Não sei.
- Se não for, arrepende-se até ao fim da sua vida. Ela voltou-se para recusar ainda, mas não pôde falar.
Os olhos estavam rasos de água e sentia o coração acabrunhado por um sentimento que não chegava a compreender.
- Até à vista - disse Miguel com doçura. - Irei ver David Barnes esta tarde e anunciar-lhe-ei a sua visita para amanhã às três horas. Conhece David Barnes, não? Foi o que fez aquela estátua enorme no ano passado, que teve o prémio de Chicago e que ele denominou: Titã primitivo.
Miguel partiu; Susana ficou só no sótão como perdida, assaltada por um desejo ardente, tão vasto e tão profundo, como nunca sentira outro que pudesse comparar-se-lhe. "Não posso levar João comigo, nem posso deixá-lo só" pensou; mas logo combinou consigo mesma: "Pedirei à mamã que venha ficar com ele; e depois, se for preciso, cá me arranjarei para tomar criada efectiva..."
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Desceu, deu banho a João e fê-lo comer, depois tratou cuidadosamente do jantar. Quando Marcos veio, não lhe disse coisa alguma a respeito desse projecto, que tinha de realizar-se, estava agora certa disso.
À porta da sala, Susana enfiou rapidamente as luvas e olhou em volta. Tudo estava em ordem. Lá em cima, João dormia. A mãe, sentada na poltrona grande, tirara os sapatos e, com os pés sobre um tamborete, folheava uma revista ilustrada.
Susana fizera-lhe as suas recomendações: "Se o menino acordar antes de eu vir, dê-lhe um pouco de sumo de laranja e pão torrado. Mas eu depressa volto".
- É preciso arranjar alguma coisa para o teu jantar?
- Está tudo pronto para pôr ao lume. Voltarei muito a tempo.
- Está bem. - E a mãe voltava as páginas; depois, com expressão vaga, começou a ler um conto.
Susana fechou a porta e lá foi, naquela bela tarde de Primavera. Dirigiu-se a pé até à paragem dos autocarros. Pediria ao condutor que lhe indicasse a paragem mais próxima da antiga casa dos Graingers. A seguir, tomaria o carreiro sob os velhos abetos de ramos pendentes, e depois... depois, não podia imaginar o que aconteceria. Mas penetraria na casa onde um grande artista realizava a sua obra; ouvi-lo-ia falar da sua arte e fazer-lhe perguntas a que ela não sabia responder, às quais ninguém mesmo, até ali, entre os seus conhecimentos, soubera responder. Toda a sua vida julgara errar sozinha por uma floresta escura, e eis que atingia a luz, agora. Iria aprender como se reproduz o que se vê, o que se quer representar.
Quando desceu em frente do portão dos Graingers, sentiu-se sobre um terreno novo e teve medo. Onde ia, e como acabaria aquilo? Podia voltar atrás, meter-se no autocarro, mas este seguia já, em meio duma nuvem de poeira; ou voltar então a pé... mas sonhara demasiado com este momento, durante toda a última noite.
- Que há? - perguntara Marcos, despertando do seu sono quando ela acendera a luz, incapaz de suportar a realidade dos sonhos.
Precisava de ver bem o que a rodeava: o quarto, o leito e a cómoda.
- Nada - limitara-se a responder, apagando logo.
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Agora, como no seu sonho, atravessou o portão e seguiu pela vasta álea ensaibrada que serpenteava até aos pilares da velha casa. Subiu a escadaria e bateu à porta. O seu sonho parara precisamente ali; nada imaginara mais para além. O artista seria talvez muito forte, muito rude, largo de ombros, como as suas obras: - Um Titã, criador de Titãs.
A porta abriu-se bruscamente. Um homem baixinho, de barba espessa, apresentou-se no limiar. Era ainda mais pequeno do que ela, e pançudo. Susana reparou logo também nas mãos quadradas e fortes como mãos de mineiro, de unhas sujas.
- Que deseja?
- Sou Susana Gaylord. Venho da parte de Miguel. Ele olhou-a sob as sobrancelhas embrenhadas, de pêlos
negros e rudes. Era tão cabeludo como um gorila.
- É a senhora a mulher em questão; entre. bom trabalho aquela cabeça, mas horrivelmente fundida. Tê-lo-ia feito melhor, a senhora mesma.
- Eu pouco sei - respondeu, envergonhada.-Achei o nome desta oficina num manual de escultura que me indicaram.
Barnes não respondeu e Susana seguiu-o para o antigo salão-nobre da velha casa dos Graingers, Estava cheio de volumes e caixotes, e algumas estátuas meio desencaixotadas já.
- Sente-se - disse-lhe. Susana sentou-se numa caixa, sem nada ver. Depois, bruscamente, ele perguntou ainda:
- Então, que deseja?
-- Não sei -- respondeu Susana. - Nem tenho a certeza de. querer coisa alguma.
Ele esfregou o nariz largo e chato com o grosso indicador.
- Fará bem ficando aí e olhando em volta até saber o que pretende - disse, irritado. - Eu volto já. Se cá a não encontrar, concluirei que não precisa dos meus serviços.
Voltou-se na caixa ao levantar-se, e saiu da sala com um passo tão desajeitado como o dum marinheiro. Susana ficou só. As estátuas de mármore e de bronze, inexistentes à sua entrada, tomaram vida, cada uma com o seu significado especial, e ela julgou ouvir-lhes as vozes, à medida que o seu olhar ia de uma para outra. Dois bailarinos, homem e mulher, surgiam do seu invólucro de madeira e de
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serapilheira. Eram habitantes de qualquer ilha selvagem, de corpos altos e delgados, rostos chatos e grandes olhos oblíquos. A mulher estava agachada, de cabeça atirada para trás, e o homem arremessava-se para lhe saltar por cima. Falavam entre si, mas não para Susana. Esta tinha a impressão de estarem murmurando palavras incompreensíveis. Conservou-se um momento em frente deles, e observou a maneira como os músculos, polidos, delicados e vigorosos, se preparavam para agir, móveis, sob a pele negra, macia e lisa. O artista devia ter visto esse par nalgum templo ou nas praias dum mar ardente.
Susana passou depois à estátua de uma mulher, uma mulher silenciosa, que esperava, de mãos juntas e cabeça inclinada. Sob as sobrancelhas delicadas, o olhar ansioso estava como que à espreita, e o mármore quente desse corpo parecia interrogar: "Não o viram, ninguém o viu vir para mim?"
Por trás dela, via-se estendida uma figura a todo o comprimento e Susana reconheceu Miguel, com o belo corpo nu, de punhos cerrados. Em volta, encontravam-se caixas meio-abertas, cheias, dentro das quais ela pressentia presenças prontas a sair. E custava-lhe a conter-se para não as arrancar dali, para não as libertar, a fim de poder vê-las.
Sobre uma mesa, via-se um monte de barro; incapaz de estar quieta, Susana dirigiu-se para ali, pegou num bocado e rolou-o entre os dedos, impaciente, ávida, desejosa de sentir aquela massa trabalhada pela sua mão. Achatou-a e depois abriu os dedos. O barro estava cheio de marcas e então, vivamente, modelou-o, aperfeiçoou-o,
- Que está a fazer? - A voz reboou, tão cortante, que Susana se sobressaltou; o rosto barbudo estava ali, ao lado dela.
- Nem sei - respondeu, estendendo-lhe o bocado de argila.
Ele pegou-lhe e olhou-o por bastante tempo. Reconheceu-se nele; aquilo era bem um esboço do seu rosto.
- Em que posso ser-lhe útil? - perguntou depois.
- Ensine-me o que preciso de saber - suplicou ela.
O artista poisou o barro e circulou por entre as suas estátuas, enormes em relação a ele. Susana ouviu-o por entre dentes:
- Uma mulher! Diabo! Diabo! Uma mulher com tal habilidade! - Parou, voltou-se e olhou-a com ar furioso:
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.Em todo o caso, você é vigorosa. Tem um aspecto tão
sólido como um homem. --E sou-o.
- Tem mesmo necessidade de o ser, e ainda mais, até.
- Tirou do bolso um barrete engordurado, castanho, e disse: - Vamos! Venha!
- Mas aonde?
- Ao sítio onde tem as suas obras. Preciso de ver qualquer coisa mais do que esse busto tão horrivelmente fundido. É necessário que lhe ensine tudo desde o princípio. Assim aprenderá a fazê-lo, a fundir por suas mãos. Hoje, julgam-se superiores a isso. Fazem pequenas modelagens, amassando um pouco de barro, e depois enviam-no a alguém, para que lho acabe. Por mim, não. A minha obra é minha desde o princípio ao fim. Por isso ela é o que é.
- Mas eu nada tenho para lhe mostrar - disse Susana.
- Deve ter por lá feito qualquer trabalho! - exclamou Barnes, tirando o barrete num gesto brusco e metendo-o de novo no bolso.
- Não, nada tenho - repetiu ela; e esqueceu as casas que varria, as refeições cozinhadas, as camas arranjadas; esqueceu Marcos e João, e acabou por dizer: - Só consegui fazer duas coisitas, um busto e uma estatueta de criança, e estão ambas por acabar.
Ele tirou de novo o barrete e pô-lo na cabeça, bruscamente; e resmungava: "Todo este tempo perdido!" saindo logo, resoluto. Ela seguia-o.
Ao fundo da escadaria estava parado um automóvel pequeno, muito sujo. O escultor meteu-se dentro e esperou que Susana se sentasse a seu lado. Rolaram a grande velocidade, entre um medonho ruído de ferragens, ao longo da álea, depois enfiaram pela rua, em direcção à casa de Susana. Esta nem sabia que horas eram, nem se preocupava com isso. Ao abrir a porta de entrada, viu a mãe a dormir onde a deixara, com a revista caída no chão. Susana indicou o caminho da escada. Ouviu João, que gritava, chamando para que o tirassem do berço; mas subiu logo ao sótão. Seguiram-na passos pesados. O escultor pôs-se a assobiar, enquanto ela abria a porta. Depois, Susana fez um gesto, mostrando:
- Como vê, nada tenho feito.
Mas ele não respondeu; dirigiu-se para a estatueta de criança curvada na sua atitude primitiva e coberta de
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poeira. Observou-a por muito tempo, fixamente; depois tirou o pano que cobria o busto de Marcos.
- Ah! - exclamou, após olhá-lo por um momento.- Este, não conseguiu apanhá-lo...
- Não.
- Foi copiado do natural...
- Sim.
- Talvez lhe faltassem qualidades, ao original; é pena, mas, no nosso ofício, nada se faz de bom grado quando não há algo de durável a reproduzir.
Ela não pôde responder: "É meu marido". Aliás, nesse momento tal facto pareceu-lhe mesmo indiferente.
Barnes voltou-se com um gesto brusco e disse-lhe, olhando-a bem de frente:
- vou a Paris nos fins do Verão. Faria bem arranjando as suas coisas para ir até lá comigo. Entretanto, conto consigo duas vezes por semana. Comece já amanhã.
Susana continuava muda, pois ele lhe ordenava o impossível; e, contudo, teria de ir, sabia-o bem.
--Não desça - acrescentou ele ainda; e avançou a passos pesados para a porta. No limiar, voltou-se e lançou um último olhar pelo compartimento vazio. - Não tem vergonha... - disse; a sua voz era glacial e os olhos tinham uma expressão de cólera. Saiu.
Susana ouviu João. Os seus chamamentos haviam-se mudado em choros. Desceu ao quarto pequenino e tirou o filho do berço. Tinham-no esquecido, e ele não podia conformar-se. Gritava muito alto, e a avó acorreu também. Susana ouviu-lhe os passos apressados na escada e a porta abriu-se.
- Olha? Estás cá? Não te senti entrar - disse, surpresa.
- Vim agora mesmo - respondeu Susana, calando o menino, deitado nos seus braços.
- Dói-lhe alguma coisa? - perguntou a avó, com uma sombra de remorso. - Devo ter adormecido. Ainda o não tinha ouvido.
- vou lavar-lhe a cara e levo-o já. Tem fome. A mãe murmurou:
- Nesse caso, talvez seja melhor eu ir indo, a preparar o jantar de teu pai.
- Sim, mãe, e obrigada.
- Repousei um pouco. João é muito bonzinho. E olhou-o com olhos ternos. - Então, adeus, filha.
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- Adeus, mãe.
Susana tinha a boca cheia de alfinetes de ama, e sustentava a criança com mão firme, enquanto lhe punha roupa asseada. Depois desceu com ele, deu-lhe sumo de laranja e uma bolacha, pô-lo no meio dos brinquedos, e começou a preparar o jantar para Marcos. O petiz lançava-lhe, de tempos a tempos, olhares incertos, depois do que continuava a brincar tranquilamente. Marcos entrou pouco depois, beijou Susana e ergueu o filho, fazendo-o saltar. O pequeno comeu, com o pai, o pão migado no leite, que a mãe deitara numa tigela; depois, subiram ambos, a dar-lhe banho. Susana fez-lhe um caracol na testa, enrolando-o com o dedo. Marcos e ela puseram-no no berço, cor-de-rosa e limpo, e apagaram-lhe a luz,
Desceram. Susana trouxe a refeição que preparara, Marcos sentou-se e dispôs-se para comer, com uma evidente impressão de sólido conforto. Pôs-se logo a contar o que fizera durante o dia, o tempo passado com pessoas que nunca chegavam a decidir-se a respeito das casas que visitavam, um erro de contas que lhe levara uma ou duas horas a descobrir, e as observações do patrão, dizendo que os negócios haviam triplicado nos dois últimos anos e que, se assim continuasse...
Enfim, tudo, precisamente, como nas outras noites. Susana escutava-o, tranquila, ao mesmo tempo que se ocupava do que ia precisando, mas, de súbito, o marido olhou-a e exclamou:
- Ora vejamos, Susana! Não ouviste uma única palavra do que acabo de dizer, e nem comeste! Parece-me que andavas por muito longe...
- Não - respondeu vivamente. - Estou aqui, Marcos... Olha, Marcos: aborrecer-te-ia que eu tomasse algumas lições de modelagem?
- Por que havia isso de aborrecer-me? Toma-as, sim. Gostavas, não é verdade?
- Gostava, sim.
- Tu não sais o suficiente - acrescentou ele com bondade. - Devias ir a casa das tuas amigas. Há quanto tempo se não vêem, Lucília e tu?
- Não tenho desejos de receber.
- Nesse caso, faze como te agradar.
- Pagarei eu as minhas lições.
- Muito bem - respondeu com indiferença.
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Depois do nascimento de João, evitavam sempre falar em dinheiro. Marcos não fazia pergunta alguma e entregava-lhe os seus vencimentos todas as semanas, ficando apenas com cinco dólares para si. Não queria saber do que ela fazia com o dinheiro, nem se este chegava ou não, a fim de ignorar o que ela punha do seu lado. Falava muito mais do que antes, e ela escutava-o:
- Pois é como te dizia, Susana; o patrão...
E falava, falava sempre, e ela olhava-o fixamente. O marido emagrecera um pouco, talvez; ficaria calvo antes de chegar a velho... Amanhã procuraria alguém para ficar com João, durante uma hora, duas vezes por semana, alguém que fosse desconhecido na rua, uma estranha que nada contasse, por indiferença. Ela se informaria na agência de colocações.
Marcos, depois de jantar, ajudou-a a arrumar a loiça e, bruscamente, disse-lhe:
- Esta noite, a bem dizer, nem me beijaste, desde que entrei. Estávamos tão entretidos, à volta do pequeno...
E tomou-a nos braços; ela conservou-se calada enquanto o marido a beijava; mas tinha vontade de se livrar dele, de suspirar e dizer-lhe: "Estou tão cansada, Marcos!" Ele, entretanto, poisara a cabeça no ombro da mulher, cabeça curvada, tão fraca como a duma criança, e ela deixou-o estar assim. Amava-o muito, verdadeiramente.
- Oh, Sue!-disse ele, com a respiração cortada.- Tu é que dás aos meus dias todo o seu valor!
E, de pé, amparando-o, Susana viu bem que ele dizia a verdade. Não deveria, jamais, esquecer o lugar que tinha na vida de Marcos, quando este a amava e quanto ela o amava também.
Encontrou uma inglesa, pálida, um pouco assustada, e contratou-a para cuidar do João duas vezes por semana.
Na agência, examinara à pressa várias mulheres e raparigas, mas o seu olhar apenas se detivera ao cruzar-se com o de dois olhos tímidos, dum tom azul-pálido, num rosto magro e branco.
- Desejaria falar àquela - disse para a corpulenta mulher sentada à secretária.
- Joana Watson, venha cá - ordenou ela. E Joana Watson avançou. Trazia um vestido de algodão preto e um guarda-chuva nas mãos enluvadas de preto também.
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- Esta senhora precisa de alguém dois dias por semana, para olhar por uma criança.
- Aceito! - disse Joana Watson com ardor. - Gosto tanto de crianças!
- Acaba de perder o marido, e nunca serviu. É bom ver isso - disse a mulher da agência, dirigindo-se a Susana.
E Joana foi. Deslizava pela casa como uma sombra, duas vezes por semana. Dependurava as suas coisas no armário da cozinha, e punha um avental branco sobre o vestido preto. Era silenciosa a ponto de parecer muda, mas nunca faltava. Era uma presença na casa, uma guarda a quem Susana podia confiar a parte da sua vida contida naquele lar, enquanto ela saía para ir viver o outro lado da sua existência.
- Que fazes tu? - gritou-lhe Lucília. - Entra um momento, Susana; em todo o Verão nem te vi!
Susana limitou-se a fazer-lhe um cumprimento com a mão e respondeu, sorrindo:
- Brevemente cá virei.
Um dia, voltaria a casa de Lucília; mas agora apressava-se e o coração voava-lhe sempre à frente. De sob o alpendre, Lucília seguiu-a com a vista, com uma expressão um pouco mordaz no rosto bonito.
Às vezes, David Barnes encontrava-se no grande estúdio, que fora outrora salão de baile, mas também sucedia estar ausente. Isso não tinha importância, pois Susana trabalhava no projecto duma fonte. Barnes amuara um tanto. "Uma fonte!" e até acrescentara, resmungão: "Bagatelas de jardim!"
Bastante; confusa, Susana dissera:
- Sempre desejei experimentar o que poderia fazer com uma combinação de pedra e de água. Mas se julga que...
- Não, não. Faça-o, se lhe apraz. O que eu penso nada tem a ver com isso.
E, sem mais dizer, ela começara uma fonte, diante da qual um adolescente, sedento, estende as mãos em forma de taça e recebe a água, que sai, com força, dum rochedo. Preocupava-se com a ideia desse corpo de rapaz. Ser-lhe-ia necessário um modelo, não o tinha, e não conhecia outros contornos além dos do corpo de Marcos. De cor, lá começou a desbastar o mármore que escolhera entre os que havia no estúdio.
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Até então, nunca ensaiara senão a modelagem no barro. Mas o desejo de esculpir, em vez de modelar, veio-lhe como uma sede inextinguível. Passara horas a ver David Barnes trabalhar o seu Titã. Depois, dissera:
- É preciso que eu trabalhe a pedra; fiz mal em tocar em qualquer outra coisa.
Barnes resmungou:
- O barro é mais fácil, principalmente para uma mulher.
Ela continuou:
- Não tenho dinheiro para comprar a pedra; mas talvez ganhe o bastante para isso com a minha fonte.
- Escolha um bloco para si. Pagar-me-á depois. É mármore do melhor. Compro-o a Kinnaird. Conhece Kinnaird?
- Não conheço.
-? É negociante de mármores.
E mostrou-lhe os blocos um a um.
- Escolha o seu. Nada de pressas... Palpe-o inteiramente. Veja o grão, a cor; cada bloco é diferente do outro. Um, quente; outro, frio... Alguns têm uma veia de bolor em pleno coração. É uma questão de sorte.
Meditou, pois; durante horas, diante dos blocos de mármore, examinando cada um deles. Acabou por escolher um pequeno, dum branco quente. Apalpou-o e perguntou:
- O senhor quer este?
Ele abanou a cabeça e continuou a espargir uma nuvem de estilhaços de mármore à sua volta. Nessa época, esculpia ele os seus Titãs, e estava já no décimo: a estátua de Galileu. Um dia, isto constituiria uma galeria histórica de mármore. Depois de haver observado Barnes uma vez mais, Susana pôs-se também a trabalhar, um pouco hesitante ainda.
Ao princípio, foi muito simples. Ela via claramente, através do mármore, a forma a obter. Fizera primeiro um pequeno esboço, depois uma dúzia deles, e, por fim, sob o olhar desdenhoso do mestre, acabava de executar uma imagem completa e cuidada do que queria representar. Aquele resmungou, por entre as barbas:
- Desenhar, desenhar... esses desenhos não são mais que resultantes da preguiça. Exprima aquilo que sente realmente.
E ela indicou-lho em traços hábeis. Barnes objectou:
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- O corpo está em demasia rígido. É o dum empregado bancário, dum agente de seguros ou dum pracista. É um autêntico corretor, um crítico ou um sargento do Exército.
- Por cima da barba, os olhos pestanejavam, olhando-a. Ela pôs-se a rir. - Nunca poderá fazer qualquer fonte com uns gebos assim - disse ele ainda, em tom seco.
Mas Susana não sabia que modificação realizar, e começou a destacar as primeiras lascas de mármore. O desenho que fizera desagradava-lhe cada vez mais. Poisou o cinzel e o martelo e olhou-o longamente. Era o corpo de Marcos, e não convinha ser este quem devia inclinar-se para recolher nas suas mãos a água da fonte. Onde encontrar, então, um corpo de rapaz, dum adolescente belo e esbelto? Não ali, pois todos a julgariam doida.
- O que é que não vai? - perguntou Barnes em voz rude, interrompendo o seu eterno e rápido martelar.
- Falta-me o modelo de que precisava, e não me atrevo a passar o meu esboço para o mármore antes de o imaginar devidamente. Este não me agrada. - E rasgou-o.
- E quem é que a impede de escolher o que desejar? Susana nem se atrevia a explicar-lhe que não saberia
como fazê-lo. Sempre acabaria por se arranjar, de uma forma ou doutra. O que os outros pensam não tem importância. Pagaria a um estudante da Universidade, onde eram todos pobres. Mas nessas famílias de indigentes que vivem na cidade, os filhos não devem ter corpos belos. Pensava nisto, quando o patear dum cavalo se fez ouvir diante da porta da vidraça que dava para um velho terraço arrumado. Miguel apeou-se e precipitou-se para o alto das escadas. Susana e David Barnes trocaram um olhar.
-- Por que não? - disse o escultor num tom indiferente.- E berrou: - Miguel! Miguel!-O rapaz abriu a porta e avançou a cabeça.
- bom dia!-disse, polidamente. - Susana: minha mãe deseja falar-lhe. Há alguém que queria ter um busto do filho, feito por si.
- Não me incumbirei de coisa alguma por agora disse Susana.
- Vem cá e despe-te - interrompeu Barnes. - Ela precisa de ti como modelo.
E Miguel entrou; obedeceu logo com bom-humor, desapertou o cinto, tirou a camisa de colarinho aberto e atirou com os sapatos, deixando os pés descalços.
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- Não posso demorar-me muito - disse amavelmente.
- Ficarás ao menos meia hora - respondeu Barnes. Vamos, Susana Gaylord.
Esta desenhava já tão depressa quanto o lápis lho permitia.
- Você inclina-se para beber pelas mãos, num jacto de água que sai da parede duma rocha - disse-lhe ela; e Miguel inclinou-se, indiferente, gracioso, arrendondando as mãos em forma de taça.
- Meu Deus, que sede tenho!-exclamou, de lábios entreabertos. - Começa já a fazer calor... Barnes, quero acabar o seu retrato. Preciso que venha pousar para mim esta noite.
- Um macaco velho sentado à claridade mortiça duma vela, é o que tens feito de mim lá nesse teu maldito retrato
- resmungou Barnes. - Cada vez que olho para ele, tenho medo de que as minhas barbas vão incendiar-se.
- Pois eu lá o espero - repetiu Miguel, rindo. Susana nem os ouvia. Ia apreendendo cada traço
daquele corpo jovem mas robusto, daquela bela cabeça. Verdade é que aquela cabeça já ela conhecia; mas não, tinha-se tornado maior: estava diferente, transformara-se. E as mãos, era preciso apanhá-las exactamente. Por felicidade, tinha joelhos lisos e direitos como os de uma mulher, e ancas estreitas. Olhou-o, e esse corpo apareceu-lhe em mármore, com a cabeça, a curva dos rins e as coxas sinuosas. Era aquele corpo que o seu bloco encerrava. Deixou a carne e o osso e atacou a pedra com segurança, dando-lhe forma à medida que a desbastava. Quando ergueu os olhos e suspendeu o ruído da sua maceta, a sala estava silenciosa. Tinham deixado Susana sozinha; há quanto tempo? Não sabia; mas o sol da tarde estendia-se já, amarelo, sobre o terraço abandonado, e tinha de voltar para casa o mais depressa possível.
O mármore não era já um simples bloco de pedra. Saía dele uma forma humana, que se recortava, viva, em frente duma rocha. Susana poisou o cinzel, alucinada...
Era preciso voltar para casa, deitar João, fazer o jantar para Marcos; este é que era o seu trabalho.
Quando o marido chegou, o jantar estava pronto; João, tendo já tomado banho e em traje de dormir, acabava de comer as papas. Depois de brincar um pouco com o filho, Marcos, ajudado pela mulher, deitou a criança; em seguida
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foram para a mesa e Marcos contou o que se passara durante o dia; e depois de repetir tudo aquilo de que se lembrava, perguntou, amável:
- E tu, estás satisfeita com a tua lição?
- Se estou! -Que fizeste?
- Martelei a pedra todo o dia como um forçado numa estrada.
Ele pôs-se a rir, Susana também, e estes risos impediram-no de notar que esta nada mais dissera.
O Verão passou sem que ela desse conta disso. Joana entrava furtivamente antes da hora combinada e prolongava os seus dias.
Quando Susana voltava, à tarde, sempre à pressa por saber que já vinha em atraso, encontrava os legumes lavados, a carne pronta, a mesa posta e João já banhado, pronto para cear.
- Não tenho em que ocupar o meu tempo, minha senhora-dizia Joana.-Assim, sempre tenho com que me entreter; mas nada terá a pagar-me além do combinado.
E Susana, sabendo a casa e a criança bem entregues, atrasava-se cada vez mais, no crepúsculo do Verão, enquanto houvesse luz, só se preocupando com a hora a que Marcos regressaria. Miguel "pousou" para Susana muitas vezes, até ela lhe conhecer de cor as linhas do corpo; e, entretanto, David Barnes, junto dela, parecia não lhe prestar atenção alguma. Contudo, observava-a de esguelha, continuando sempre a trabalhar; calava-se, mas, de repente, interrompia-a para lhe gritar, colérico, quando um traço lhe parecia mau ou o cinzel deslizava. Mas nada o tornava tão furioso como quando ela se sentia exausta. Então, berrava:
- Você não pode esculpir nem um maldito castiçal! Não passa duma artista de loja de bugigangas. Bata! Bata direito, certo e firme!
Recusava-se a pôr a mão no trabalho de Susana, ou até a demonstrar o que queria dizer. Era rude, brusco, não a poupava em nada.
- Esqueça duma vez para sempre que é mulher. O próprio Deus já o esqueceu. Cave mais esta linha, mais profundamente, dum golpe mais seguro; é isso, isso, isso!
E ela baixava o braço, feria o mármore.
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- Não quero ouvir o menor tinido - dizia, feroz. Ao terminar, a ponta do cinzel deve parecer-lhe tão sensível como a ponta do dedo. Por agora, o que precisa é de músculo.
À noite, os ombros doíam-lhe tanto que a dor a impedia de dormir; mas não queria que tivessem dó dela com o pretexto de se tratar duma mulher. Uma vez acabada a fonte, olhou-a com ar indiferente.
- Para uma primeira obra, está bastante bem - dissera Barnes. - Mas é preciso desbastar essa anatomia. Você fotografou um corpo muito bem. Não o fez partir do esqueleto. Quando estivermos em Paris, neste Outono, hei-de mandá-la a um dos meus amigos, que é cirurgião. Ensinou-me também, quando eu era novo, como você. Vi-o trabalhar tantas vezes, que já seria capaz de fazer, por mim só, uma operação importante. Deve começar a aprender o interior, sem o que continuará sempre a fotografar.
Ela ouvia, sem responder. A fonte, que pouco antes lhe parecera tão bela, tão próxima do que pretendia representar, perdia agora todo o valor.
- Venda-a, venda-a - dizia-lhe ele com modo duro.- Está suficiente boa para isso.
- E devo assiná-la?,
- Não; não vale a pena.
Vendeu-a, pois, à senhora Vanderwelt por quinhentos dólares. E quando a viu colocada entre os buxos sombrios, tornou a agradar-lhe bastante.
"Ainda que não seja uma coisa perfeita, fui eu quem a fez" - pensou; e gravou o seu nome, em letras pequenas, profundas e ocultas, no interior duma das mãos estendidas. Se um dia, mais tarde, quisesse renegar esta obra, a água, à força de a salpicar, ter-lhe-ia apagado o nome.
Um dia, no mês de Agosto, Barnes disse a Susana:
- Não assine coisa alguma antes de passar dois anos em Paris. Então, se eu estiver satisfeito, poderá começar a fazê-lo. Até lá, não sabe o suficiente para distinguir o que está bem do que está mal. Ao princípio, tudo nos parece bom. É preciso aprender a conhecer o que é mau.
- Mas eu ainda não disse que ia a Paris - observou ela, tranquilamente. - A verdade é que isso me é impossível.
Ele esculpia então Leonardo da Vinci, o seu undécimo Titã. Tinha um modelo, um homem que Susana nunca vira,
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e a si mesma perguntava em que é que ele lhe poderia ser útil, pois parecia que Barnes nem para ele olhava nunca. Este dissera-lhe: "Passeie, leia, faça o que quiser, mas não me aborreça. Não desejo ouvi-lo nem conhecer os seus pensamentos. Só lhe pago o corpo; o espírito não me interessa em nada. Eu possuo o que lhe hei-de pôr por trás do rosto".
Tendo ouvido o que Susana lhe dizia, voltou-se para ela, que desenhava o pormenor de um pé, e berrou-lhe:
- O que é que diz?! Até já escrevi ao meu velho mestre a seu respeito. Quero que ele me dê a sua opinião antes de lhe dedicar algum do meu tempo. Se for simplesmente plástica, não me interessarei por si. A escultura é a única coisa que conta. Essa fonte nada me diz, é apenas muito bonita. Podia da mesma forma ser modelada em barro.
- Tenho marido e um filho...
Ele voltou-lhe as costas e trabalhou, furioso, durante um quarto de hora. Depois, atirou a barba para o lado e gritou, de forma a dominar as pancadas da própria maceta:
- Qualquer mulher pode ter marido e um filho. Em que é que isso a interessa?
Sem a olhar, parou a meio; esperava uma resposta, embora parecesse não se interromper senão para estudar um traço, antes de prosseguir no trabalho.
- Mas amo meu marido e o meu filho - disse ela nitidamente.
Barnes pôs-se de novo a martelar ruidosamente e recusou-se a falar. Ao fim da tarde, Susana saiu um pouco mais cedo que de costume.
- Boa tarde - disse; mas ele não respondeu.
A questão nasceu entre eles nos fins do Verão. Barnes deixou de se encolerizar contra ela, quando notou que a sua cólera não a atemorizava. Pelo contrário, falava-lhe com grande bondade, expondo as suas razões.
- Susana, eu tenho conhecido uma data de gente, mas até agora ainda não encontrei a verdadeira habilidade. Você tem-na. Está em si. É você. E não é uma razão, lá porque casou nova, na ignorância disto, e porque já teve um filho, não é uma razão, isso, para se arrogar o direito de desprezar o dom que um Deus absurdo julgou por bem confiar-lhe.
- Poderia transmiti-lo a meu filho.
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O escultor fez uma careta de raiva, mas esforçou-se por ficar calmo.
- Escute, Susana. Admite que eu saiba mais que você?
- Em certas coisas, sim.
- Só nas que respeitam ao meu ofício?
Nunca proferia a palavra "arte", que o aborrecia.
- Sim; nesse caso, talvez.
- Para mim, é o único que conta. E para si também, embora pareça ignorá-lo. Deve saber que lhe é impossível transmitir esse dom a seu filho. De quem o recebeu? Houve já algum escultor na sua família? Ou mesmo um pintor?
Susana abanou a cabeça, mas, antes que pudesse responder, ele atirou-lhe ainda estas palavras:
- Não, ninguém lho deu. Pode continuar, encher mesmo de garotos o quarto das crianças, que eles se parecerão com os das outras mulheres; não serão melhores. E a Susana é incapaz de ser uma boa mãe! Uma mulher assim não pode sê-lo. Os seus pensamentos estão muito longe disso.
- Pois eu posso ser uma boa mãe - disse Susana, rude.
- Não vá imaginar que ignoro tudo o que respeita a garotos - prosseguiu ele - porque eu também os tenho. São três filhos e uma filha, e nenhum deles sabe pegar num cinzel, nem tem desejo disso.
- E a mãe deles?
- Três mães! - exclamou, escarninho. - Tive-os de três mulheres diferentes, e os garotos são todos iguais!
Susana calou-se e negou-se a continuar a conversa. Que podia ele saber da casinha na orla da floresta, ao fundo da rua iluminada, ou da confiança no amor de Marcos? Se fosse a Paris... Mas não iria a Paris, com João a esperá-la na cozinha, muito limpo e rosado, empoleirado na sua cadeira alta! Não iria, não.
Todos os dias ao fim da tarde, sentia-se certa de não ir. Mas pela manhã, enquanto varria e limpava a casa, lamentava ter no Banco aqueles quinhentos dólares da fonte. E David Barnes conhecia esse depósito, pois até se recusara a receber a importância do bloco de mármore. Susana esforçara-se por lhe entregar o dinheiro, mas ele respondera com cólera:
- Não quero o seu dinheiro. Guarde-o. Eu tenho todo o que preciso.
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-Os seus filhos... Mas ele atirou-lhe:
- Caramba! Não lhes dou nada...
- Nem às crianças?
- Nada tenho a ver com eles.
-Mas o senhor teve-os - disse ela, severa.
- Eu, não; as mães deles. - E riu, escarninho; depois rebentou numa gargalhada formidável.
Ela olhou-o por um momento, incrédula, estupefacta ante uma tal falta de coração da parte dum homem tão sedento de beleza.
- Onde,estão eles?
- Sei lá!
Falava com indiferença; mas, de repente, o olhar animou-se-lhe, e murmurou:
- Olhe, Susana, olhe!
Esta seguiu com o olhar a linha que ele traçava com o dedo sobre a superfície rugosa do mármore.
- Olhe como a cabeça se inclina. Até hoje, ainda o não notara. - E tinha uma expressão terna, animada; ela arrependeu-se de lhe haver querido mal por um momento, depois inclinou-se, compreendeu e disse baixinho:
:-O mármore abraça a curva.
- Sim, é isso. Vê?
Ela agitou a cabeça, afirmando, e ambos se olharam com perfeita compreensão, esquecidos já de tudo o mais.
Continuaram a discutir no dia seguinte. Havia aquele depósito no Banco. Susana não podia dizer: "Não tenho dinheiro", nem: "Quero empregá-lo em coisas para os meus", porque não sabia mentir. Confessou abertamente:
- Não posso ir porque nenhum deles compreenderia, nem meu marido, nem minha mãe, nem as minhas amigas; ninguém, excepto meu pai, talvez.
- E então? Que tem isso? - rugiu, torcendo as mãos duras, de dedos curtos. - Quer compreendam ou não, que importância tem isso?
E Barnes agitou-se, depois parou, sentou-se, acabrunhado, com as mãos sobre os joelhos, e disse em voz branda:
- Susana, lembre-se que pode ficar entre os grandes da sua geração, talvez mesmo de todas as gerações. É-lhe indiferente isto?
- Não; mas eu ponho a questão sobre outras bases.
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- Susana: sinto que encerra em si mesma um desejo mais profundo que o do amor e da união dos corpos, mais profundo que o da maternidade. É o de criar as coisas que observa e sente segundo a sua forma de ver muito especial. A não ser a Susana, ninguém o pode fazer. E ainda isto não é tudo. Tenho a intuição de que não pode aspirar à felicidade, mesmo à sua felicidade de mulher, se não puder satisfazer aquele desejo. Não... Espere ainda; cale-se... A partir de hoje, nada mais reclamarei de si. Mas a verdade é que já lhe reservei um lugar para três de Setembro, não no meu barco, não; eu parto na próxima semana, e para mais sei o que são mexericos. Avisar-me-á antes do meu embarque. Não; agora não ouvirei uma única palavra.
Levantou-se e saiu da sala bamboleando-se; Susana pôs o chapéu e tomou o caminho de casa. Sob o alpendre, Lucília tinha agora o terceiro filho sobre os joelhos; era um rapaz. Susana parou um instante e subiu aquela escada.
- Felizmente que é um rapaz - disse Lucília. - As mulheres têm uma vida demasiadamente dura neste mundo, para poderem ter vontade de para cá atirarem outras.
Susana inclinou-se, sorrindo, sobre aquele rosto rosado. Fez deslizar as mãos por baixo do corpinho e apertou-o contra o seu. O que é que há num corpo de criança assim apertado ao seio? Deteve-se, confusa e violentamente comovida. Tornou a poisá-lo, beijou o rosto de Lucília e afastou-se, antes de ter podido ver a expressão de surpresa que se estampou nos olhos da amiga. Lá ao fim da rua, esperava-a a sua casa; João riria ao vê-la entrar na cozinha e Joana diria na sua voz cheia de meiguice: "Teve tanto juízo, hoje! Posso ficar a servir-lhe o seu jantar, minha senhora? Está tudo pronto". E Marcos chegaria também. Apressou-se e correu para o cimo da escada. O coração ardia-lhe no desejo de estar em sua casa.
Durante toda a semana, absteve-se de voltar ao estúdio; nem escreveu a Barnes a menor palavra, parecendo nenhuma importância ligar ao assunto. Para si mesma dizia que era muito feliz em casa. Na véspera da partida de David Barnes, foi despedir-se dele. Encontrou-o só, a trabalhar, de joelhos aos pés do seu Titã. O sol da tarde caía sobre a estátua. Seguro da sua criação, o mestre dava marteladas rápidas. Ao vê-lo, sentiu a casa tremer sobre os alicerces.
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Barnes ergueu a cabeça quando a sombra de Susana pôs uma mancha negra no mármore.
- Então? -disse ele.
-Vim simplesmente para lhe fazer as minhas despedidas. - Sabia muito bem o que fizera tenção de dizer.
- Pois não irá? - E a sua voz era fraca, tão fraca, que poderia ter falado assim diante dum moribundo ou dum morto.
Ela agitou a cabeça; Barnes ergueu-se, deixando o trabalho, aproximou-se da mesa e rabiscou um bocado de papel: "Se alguma vez chegar a compreender que fez mal, escreva-me para esta direcção. Mas é inútil dizer outra coisa que não seja isto. A senhora não me interessa sob outro aspecto qualquer..." E voltou ao seu trabalho, pegou na maceta e no cinzel e ajoelhou-se de novo aos pés do Titã.
Susana voltou para a claridade intensa da luz da tarde sem saber se era noite ou dia. com o pedaço de papel na mão, subiu ao sótão e pô-lo sob a figurinha da criança por acabar. Depois passeou o olhar pelo compartimento desocupado. Estava mais vazio do que nunca, e assim, ficaria para sempre. Enquanto ali estava, de pé, ouviu os passos de Marcos no vestíbulo e a sua voz chamando-a:
- Susana! Vim muito cedo!
Desceu, correndo, e atirou-se-lhe para o peito.
- Marcos!... Marcos!... Marcos!... - exclamava. Ele perguntou, assustado:
- Susana, o que tens, minha querida?
- Oh, Marcos! -disse; depois, pôs-se a rir e afastou-se dele, enxugando os olhos. - Não te esperava tão cedo. E sinto-me tão feliz por te ver!
- Mas há alguma coisa?
- Não... Não... Amo-te!... Amo-te!... Abraçaram-se e beijaram-se como há muitos meses o
não faziam. E, nessa noite, ela voltou-se para o marido, resolutamente, na obscuridade, e disse:
- Marcos, é tempo de termos outro filho. Quero ter outro filho.
E ele, cheio de desejo e de temor:
- Sue, estás bem certa disso?
E Susana respondeu em tom firme:
- Muito certa, sim!
Dormiu sem sonhos, e quando despertou o sol inundava já o quarto. Após a saída de Marcos, absorveu-se nos
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cuidados da casa, com uma alegria que, pelo menos nesse momento, era completa. Sentia-se satisfeita, como quando se acaba de matar a sede. Foi para cima contente, voltou os colchões, bateu os travesseiros. Varreu, limpou o pó e depois, sentada nos peitoris das janelas, lavou os vidros. com os cabelos desgrenhados pelo vento do Outono, trabalhava com alegria, sentia prazer em espalhar ordem, asseio e frescura. Mas apenas uma parte de si mesma se interessava nisto; sentia-o bem.
Quando a porta se entreabriu, desceu, correndo. Era João que entrava, pela mão de Joana, de faces muito coradas e olhos escuros cheios de paz.
- Quero leite... e pão - disse.
- Vais já almoçar - respondeu a mãe.
- Posso dar-lhe a comida, minha senhora? - perguntou Joana, em cujos olhos pálidos havia uma súplica.
Mas Susana respondeu:
- Hoje, é a minha vez.
- Então, voltarei à tarde.
E Joana saiu, fechando a porta devagarinho. A sós com o filho, Susana levou-o, pô-lo na cadeirinha e deu-lhe o pão e o leite.
O petiz comia e pensava no que tinha feito.
- Fiz uma casa, uma casa grande.
- Sim, meu querido.
Susana concentrou nele os seus pensamentos, adorando-o, amando-o até ao sofrimento. O pequeno era muito lindo, tal como o sonhara: com os olhos de Marcos e a boca dela. Quando acabou de comer, levou-o para cima, despiu-o e, uma vez deitado, entalou-lhe a roupa, para a sua sesta. João olhava-a com aqueles olhos de Marcos, fiéis, amoráveis, e ela enlanguescia de amor por ele. No entanto, mesmo então e apesar do seu ardente desejo de ter muitos filhos, uma parte do seu ser conservava-se em expectativa, estranha a tudo. Repeliu esta impressão e chamou em seu auxílio a vida que escolhera, vida animada e cativante.
Nos fins do Verão, ela pensara, não sem um ligeiro sofrimento, até que ponto David Barnes lhe faria falta, ele e o seu estúdio, na antiga sala-de-baile, tão vasta, onde tantas coisas aprendia. Quando, naquela noite, exprimira a Marcos o seu desejo de mais um filho, uma parte de si mesma encontrava-se entregue à desolação.
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Entretanto, os dias decorriam felizes, apesar da ausência de Barnes, e sem outros trabalhos que não fossem as suas ocupações em casa e os cuidados a prestar a João e a Marcos.
Este dizia, satisfeito:
- Tenho andado muito ocupado este Verão, Susana. Sabe bem ter um pouco de tempo para conversar. No Outono e no Inverno compram menos casas.
E nem supunha que também ela andara absorta, longe dele. Marcos acabava de ter um novo aumento. Sentia-se feliz e expandia-se no relato pormenorizado dos acontecimentos do dia. Sentada ao pé do marido, à mesa ou sob a luz da lâmpada, ela cosia e ouvia, absolutamente satisfeita. Sim, estava muito contente, excepto às vezes, quando, ao calor e à claridade do lume, ouvia o vento uivar na floresta. Erguia então a cabeça e escutava. Lá em cima, João dormia, aconchegado. Tudo ia bem. Estavam seguros. Um dia sucedia-se a outro, na antiga trama tão conhecida, tão cheia de confiança. Mas à noite, ouvindo o vento, ela sentia, sabia, sem compreender donde lhe vinha essa certeza, que, para lá da sua satisfação presente, havia outra coisa. E quando Marcos subia com ela, e a rodeava com o braço, e ela lhe fazia o mesmo, em perfeito amor, Susana via abrirem-se à sua frente corredores compridos e nus, ao longo dos quais nunca se aventurara até ali.
Mas na maior parte do tempo, mesmo a seus próprios olhos, parecia semelhante às outras mulheres. Pelo Natal, compreendeu que esperava outro filho. Sentiu-se feliz e disse-o a Marcos, que lhe tomou a mão e a reteve entre as suas.
- E és tu que me dás os meus filhos! Até me parece um sonho. Tenho de tal modo a impressão de que poderias chegar a tudo o que quisesses! Eu não estou à tua altura.
- Não digas isso. Não quero ouvir isso!
- Mesmo se eu o sinto?
- Mesmo assim; cala-te.
- Porquê?
- Não sei. Cala-te.
Mas sabia. Precisava de o sentir seu igual, em absoluta camaradagem com ela. Porque logo que a presença de Marcos ou de João lhe faltavam, via-se de repente isolada. Perguntava a si mesma se as outras mulheres eram assim também, pois ela necessitava de tocar a carne firme, de
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encontrar outros olhares, de ouvir falar, sem o que o mundo desaparecia e lhe parecia ficar só. Mas não podia perguntá-lo a ninguém. - "Aliás, para nada serviria" pensava. - "Nasci assim; saber como as outras são não me auxiliaria em coisa alguma".
E quando pensava no futuro, com aquela preciência que às vezes a assaltava, via-se caminhando através de espaços desconhecidos, e sempre só. Sem Marcos, sem filhos, sem amigos. Fugia desta marcha solitária para se ocupar apenas do alegre presente. A visão nada significava, sem dúvida. E pode ser que em todas as vidas se vejam os anos vindouros sob um aspecto diferente, mais apavorantes do que os que se conhecem na hora que passa.
Susana devia ser semelhante às outras mulheres. Era-o, sim. Cozinhava, cosia, lia, tocava piano e escutava o marido. Ocupava-se de João e começava a contar-lhe as suas primeiras histórias, que ele saboreava com ardor, sem todavia as compreender bem. Permitia a Joana que falasse, com uma alegria triste, da sua juventude em Londres: cozinheira numa casa de muita gente, cujo dono fora para o Canadá durante a guerra, por estar velho demais para se bater. Casado em idade já avançada, esse homem, não tinha filhos para oferecer à Inglaterra e decidiu-se a emigrar com as filhas e a criadagem.
- Doze serviçais, ao todo, minha senhora - dizia Joana com um melancólico contentamento. - E teve até um ataque por a idade o impedir de ir bater-se ao lado dos outros. Deixámos então a Inglaterra, levando os carros e os cavalos, porque se lhe metera na cabeça que eram melhores para as crianças do que os automóveis. Tinha lá umas ideias muito suas, minha senhora. Depois, perdeu tudo quanto possuía e sofreu atrozmente. Os ricos fazem-me pena. Os pobres, minha senhora, nós, os pobres, fomos habituados ao nada. Mas é duro para os ricos que empobrecem. Mais vale estar habituado a nada. Assim, reconhecemos mais o pouco que recebemos.
Susana olhou a honesta figura magra de Joana e sentiu-se culpada por possuir tantas coisas.
Em Janeiro, o correio trouxe-lhe um fino sobrescrito azul, com selo de Paris. - "Uma carta do estrangeiro, senhora Keening", dissera.
Era de David Barnes, uma breve pergunta rabiscada na folha de papel. "Por que está a perder todo este tempo?"
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indagava ele. Susana sorriu, amachucou a carta na mão e atirou-a fora. O filho devia nascer em Junho. João ia crescendo. A casa estava toda arranjada, e na Primavera o seu jardim ficaria tão cheio de flores, que os que subissem a rua haviam de ver as corolas brilhar contra o fundo constituído pela floresta, tão vistosamente como bandeirinhas agitadas pela brisa.
Agora, que estava todo o dia em casa, as antigas amigas vinham sentar-se sobre o divã perto da grade da lareira, ou, na Primavera, no jardim, no banco que Marcos fizera. Conversavam, mexericavam, suspiravam a respeito do trabalho a fazer. Susana escutava-as, sorrindo, mas falando pouco.
Embora mulheres já, Susana via nelas as crianças de outrora, impacientes por acabar as suas tarefas, ávidas de divertimentos e de cinema. Amava-as com compaixão, entretinha-se com os seus problemas, quase envergonhada de não poder, em troca, expor os seus. Terminado o Inverno, veio a Primavera, e Susana conservava sempre a sua alegria robusta.
Lucília dizia, reconhecida:
- É agradável vir ver-te de vez em quando, Sue. No Verão passado, quando te visitava, nunca estavas.
- Andava a tomar lições - respondeu Susana, que sachava um canteiro de amores-perfeitos, enquanto Lucília sentada na relva, ao pé dela, descansava.
- Ah! Era isso então o que tu fazias!
E os olhinhos cinzentos de Lucília tomaram uma expressão de dúvida.
- Pois que havia de ser? Ia todos os dias a casa de David Barnes, no Verão que passou.
- Eu sabia-o, e confesso que isso nos admirava. Ele tem uma reputação detestável.
- Ignoro-o em absoluto.
- Oh, minha querida! Não conheces então a história de Vannie Elaine! Todos dizem que foi sua amante. E por isso deixara o marido. Diz-se que contava casar. Mas ele não o fez, apesar de haver um filho. Tipos assim não se casam. Eu creio que os artistas não procedem nunca como o comum dos mortais.
- Não sei nada disso - disse Susana. David Barnes representava para ela um par de mãos, de dedos curtos, sensíveis, activos e fortes; uma inteligência que emanava
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dos seus olhos tristonhos; uma voz colérica que a apostrofava do fundo da sua solidão. Joana apareceu no umbral.
- Enfim, tens sorte em ter quem te ajude - disse Lucília. - Preciso de ir já, porque o petiz deve estar a acordar. Bem precisava eu de uma criada. Marcos deve ganhar muito.
- Sou eu quem paga a Joana - respondeu Susana; mas logo se arrependeu destas palavras. Que interessava saber-se qual dos dois tinha a seu cargo a despesa com Joana? E Marcos não havia de gostar que se estivesse ao facto de que não era ele quem pagava tudo.
- Mas não poderás continuar assim - disse ainda Lucília, com decisão. - Hás-de vê-lo quando tiveres dois garotos. E depois, não o devias acostumar mal. Meu Deus! O que havia de ser de nós, se tivéssemos de ganhar dinheiro e, ainda por cima, deitar os filhos ao mundo!
- Eu quero ter seis! -declarou Susana, sorrindo. E sob os seus dedos um círculo de pensamentos se erguia alegremente.
- És doida! Eu tenho três e nunca possuo um momento de meu. Então, adeus, Sue.
- Adeus, minha querida - respondeu Susana, num desejo de paz.
Sozinha de novo, pensou em Lucília. A cidade estava cheia de Lucílias; um pouco mais gordas ou mais delgadas, velhas ou novas, estavam espalhadas por toda a parte. Como é que as mulheres podiam chegar a parecer-se tanto, ou, se eram diferentes, se tornavam, como a mãe de Marcos, mudas, solitárias e sem amigas, ou ainda, como Maria, eram novas mas ferozes? A sua própria mãe não passava de uma espécie "de Lucília. E todas viviam ao acaso, sem qualquer ligação com a vida real. Pediam um romantismo, que os homens, aturdidos, exaustos, não sabiam dar-lhes.
Ainda na véspera, à noite, Marcos murmurara, apoiado no seu ombro:
- És tão repousante! Mergulho na tua alma, e encontro-a sempre calma, profunda e viva. Nunca pedes coisa alguma, Sue. Tens bem a certeza de seres feliz?
- Absoluta.
Porque lhe pertencia cada instante da sua vida. "Não possuo um momento de meu", dissera Lucília. Mas Susana tinha-os todos, contidos todos na sua vida. Este mesmo,
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por exemplo, em que as suas mãos, animadas, penetravam no barro suave e mole; numa hora prepararia o almoço, e essa hora faria parte também da sua vida.
Joana ia sair com João. De súbito, parou, hesitante:
- Desejaria perguntar-lhe uma coisa, minha senhora...
- O quê?
- Quando nascer o nené, ainda vai ter necessidade de mim?
- Não creio, Joana - respondeu Susana, com meiguice. -. Quase não temos dinheiro, nós, e eu gosto de trabalhar.
- Julguei que se iria talvez dedicar à escultura. Susana reflectiu.
- Não sei. Nada posso dizer, por enquanto.
- Ah, está bem! Esperarei, e a senhora verá.
E Joana baixou-se, pegou na mão de João e, juntos, lá saíram; as compridas saias pretas, compelidas pelo vento da Primavera, batiam-lhe nas pernas magras. Susana ergueu a cabeça e, num relâmpago, os longos corredores vazios apareceram-lhe de novo. A rua, a casa, as árvores em botão tornaram-se tão irreais como a pintura dum cenário de teatro. Meteu decididamente a espátula no barro, e logo tudo retomou o seu verdadeiro aspecto, e ela reteve esse instante bem para si.
A dez de Junho, deu à luz uma filha, a que chamou Márcia. Marcos veio ao hospital, caminhando nas pontas dos pés com os seus sapatos, que rangiam; encontrou a mulher a sorrir.
- Tens o ar duma moeda nova - disse, falando muito baixinho -; se alguém me dissesse: "Ali está uma mulher que acaba de ter uma criança", rir-me-ia!
Ela afastou um pouco a coberta e mostrou ao marido a filhinha, escura, com cabelinhos pretos.
- Agora, já possuo a técnica disto-gabava-se ela, rindo. - Sei exactamente o que se deve fazer. Hão-de vir mais quatro, Marcos.
- Também há-de ser preciso que eu esteja por isso, creio bem...
Marcos ficou por muito tempo, sentado, a contemplar aquele rosto minúsculo, mergulhado num sono feliz. Susana nem procurou saber quais os pensamentos do marido. Conhecia-o muito bem. Marcos não pensava em nada de extraordinário. Susana sentia-se banhada num doce
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complentamente. Estava saciada. Acabava de apalpar as formazinhas sólidas de Márcia, com uma alegria que ultrapassava a de mãe. Era um corpo belo e perfeito, de linhas impecáveis, e fora ela mesma quem o formara. Sorriu, suspirou e adormeceu. Tranquila, esperando que a deixassem voltar para casa, Susana passou horas a pensar em tudo e em nada. Era o período de repouso após a criação. Outro se lhe havia de seguir. Dia viria em que teria de sair daquele leito branco e estreito para voltar ao anterior; e a qualquer coisa mais que a esperava, tinha a certeza. Até então, podia ficar assim, em estado de receptividade, de expectativa.
A mãe e o pai vinham vê-la todos os dias, mas nunca juntos. A mãe falava pouco: sentava-se, pegava em Márcia com uma alegria simples e, por fim, resmungava alto, após longas reflexões: - "Parece-se muito mais com Maria, quando nasceu, do que contigo". O pai lançava um olhar à pequenita e dizia vivamente: - "Penso que ela é como todas as crianças. "Aqui tens uma poesia: a Márcia, no dia do seu nascimento". Tossiu e leu em voz alta. Depois perguntou:
- Que preferes? Os vinte dólares que poderiam dar-me por ela, ou a poesia?
- Oh! A poesia!-disse Sue, rindo.
- Farias melhor querendo as duas coisas. Toma tudo o que puderes; e não será muito, afinal de contas... Sue, quando eu me reformar, hei-de ir aos mares do Sul, quer a tua mãe queira, quer não.
Susana estendeu a mão, rindo, para receber a poesia. Nas suas mais distantes lembranças, recordava-se de ouvir o pai falar em partir para os mares do Sul. Pequenina ainda, afligia-se, porque a mãe acreditava naquilo e exclamava todas as vezes: "Oh, Danny, que farias lá, tu?" E, vendo o receio da mãe, Susana temia um perigo. Mas os anos passavam, e a mãe deixou de se preocupar.
- Hei-de guardar esta poesia entre as minhas preciosidades.
O senhor Gaylord ficou satisfeito, mas ainda resmungou: - "Em todo o caso, fiquei com uma cópia".
Maria apareceu no último dia, de regresso do seu primeiro ano de colégio. Inclinou-se sobre Márcia; era uma Maria diferente, afectada, com saia e casaco azul-marinho, blusa branca e chapelinho escuro.
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- A menina parece forte - disse, em tom indiferente; depois sentou-se e acendeu um cigarro, com ostentação.
-O pai falou-te de mim? - perguntou, erguendo as sobrancelhas.
Susana fez que não com a cabeça.
- Mas há-de falar; está furioso
- Porquê?
- Porque não desejo continuar no colégio, não quero estudar mais. O que eu pretendo é arranjar uma colocação. O colégio é já uma coisa demasiadamente burguesa.
E atirou um círculo de fumo, depois outro e ainda outro.
- Que diz a mãe? - perguntou Susana, com cuidado.
- Oh! A mãe não tem uma única ideia na cabeça.- E Maria sacudiu a cinza com a ponta do dedo mínimo.
- Outra coisa seria se quisesse casar-me; mas eu ambiciono avançar na vida.
Susana baixou o olhar sobre Márcia, aninhada no seu braço.
- Também isto é a vida - disse.
- Talvez, mas não como eu a vejo - e Maria levantou-se, agitada; era uma rapariga morena, direita, com um perfil frio e regular, e boca vermelha e bem cerrada. A forma, a expressão dessa boca nunca mudavam. Desde pequena, não se tornara nem maior, nem mais carnuda, nem mais apaixonada.
- Susana - disse - eu não quero favor algum; mas se o pai te falar nisto, dize-lhe que sei bem o que devo fazer, peço-te.
- Se tens a certeza disso... - observou Susana, sem convicção.
- Se não for eu, quem há-de sabê-lo? Bem, adeus, Sue. É um nené interessante, o teu!
Susana repousou, ligeiramente fatigada, depois da partida de Maria; é que a irmã até lhe rarefazia o próprio ar que respirava.
Um ou dois dias mais tarde, o pai disse-lhe, com os olhos fixos em Márcia:
- Não sei se não seria preferível outro rapaz. As mulheres são terrivelmente difíceis hoje em dia. Tua irmã tem ideias revolucionárias; quer agora viver a sua vida, ir para Nova Iorque e arranjar lá uma colocação. Um rapaz, ainda podemos mandá-lo para o diabo; mas uma filha, é impossível! E é que não vejo outro partido a tomar com Maria.
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Susana calou-se; não sabia que responder. Num relâmpago da memória, ouviu a irmã tocar uma nota errada no piano, e repeti-la com teimosia, sem ver que se enganava.
Encontrava-se assim, misturada à vida dos seus, mas nunca por completo!
Finalmente, levantou-se e, amparada por Marcos e levando Márcia nos braços, voltou para casa. João e Joana esperavam-na à porta para a receberem. A casa ali estava, familiar, agradável, e Susana entrou nela alegremente.
Mas quando se encontrou em meio dos objectos pessoais que lhe eram caros, o coração palpitava-lhe mais forte e qualquer coisa se agitou dentro dela, como Márcia fazia antes de nascer; uma criatura encerrada no seu corpo e, no entanto, independente. Susana não se sentia inquieta, era feliz, pois o seu temperamento tendia para a felicidade. Uma rosa amarela, que florescia, sem ser esperada, entre a videira, por cima do alpendre, parecia-lhe tão interessante como a notícia lida num jornal na semana anterior, da oferta de cinco mil dólares feita a David Barnes pelo seu novo Titã, a estátua de Cristóvão Colombo, que a cidade de Nova Iorque desejava adquirir. A descoberta do Pólo Norte encantava-a da mesma forma, e ficaria maravilhada quando Márcia mostrasse o seu primeiro dente. Mas sentia-se capaz de abranger uma quantidade infinitamente maior de felicidade do que a que tinha actualmente. Dizia-lho um instinto, mais que um conhecimento reflectido. E embora a sua vida a satisfizesse, não lhe dava essa grandeza de paz a que poderia aspirar.
Esse instinto fez nascer um movimento tão cego e inevitável como o que força a árvore a lançar os seus ramos, e os ramos a lançar as suas folhas. Do fundo dessa perfeita felicidade, sentiu a necessidade de ir mais além. Uma vez, na sua infância, sentada na igreja, ouvira o pastor dizer: "O senhor castiga aquele a quem ama"; e ainda: - "A dor é-nos mandada para ensinar a alma humana e torná-la apta para maiores coisas". Mas ela nunca sofrera. Marcos, no seu amor, era a própria bondade; Os filhos tinham excelente saúde e eram fáceis de contentar, e os dias passavam-se sem sobressaltos. A própria Joana lhe dizia em tom sombrio: - "Goze de tudo enquanto puder, minha senhora; o fim vem sempre cedo de mais". Mas tais frases nada significavam. Nunca vira a morte, e a vida parecia-lhe eterna, o que a satisfazia. E este mesmo contentamento a obrigou
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de novo a criar, começando por um sentimento de agitação.
Tinha falta de trabalho. Embora se atarefasse nisto e naquilo, sentia em si uma energia ainda não empregada, uma função primordial não satisfeita. Começou a experimentar sensações que ultrapassavam o que o seu olhar notava, por exemplo, quando via uma árvore agitada pelo vento, João construindo as suas casinhas, Joana debruçada sobre as panelas, Joana levantando os olhos quando lhe abria a porta, Joana surpreendida por qualquer coisa, limpando as mãos ao avental, Joana... Joana... Joana não tinha curvas. O seu corpo era tão simplesmente talhado como uma laje de granito, e no entanto cada linha fora traçada, não quando do seu nascimento, mas pelo ser íntimo de Joana: a boca triste, muito direita, o queixo estóico, as mãos nodosas, os ombros magros, mas fortes, e os grandes pés chatos de inglesa.
Um dia, Susana chamou-a da porta da cozinha:
- Joana!
com um leve sobressalto, a interpelada ergueu a cabeça e enxugou as mãos ao avental:
- Minha senhora!
No jardim, João brincava ao sol estival; Márcia dormia no seu berço.
- Que está a fazer?
-A limpar as panelas e a caldeira.
- Então, venha comigo!
Susana ouvia os grandes pés subirem pesadamente a escada atrás dela, seguindo-a ao sótão. À porta, Joana tornou a limpar os braços ainda húmidos e olhou a patroa com ar tímido.
- Não se mexa! - disse-lhe esta, que acabava, de repente, de ver Joana na sua essência: a mulher humilde, de olhar inquieto, rodeada dos seus tachos e panelas, arrancada por momentos a uma existência perturbada, trágica e vivendo minuto a minuto na casa tranquila de outra, no meio de uma paz inestimável e precária.
Joana fixava os olhos em Susana. Conservava a sua expressão habitual, assustada, suplicante, e Susana apressou-se a amassar o barro, a começar a modelar, a representar essa criatura com gestos rápidos e seguros, no meio dum silêncio enorme. Havia muito tempo que não sentia este estranho apetite; mas a sua mão não podia esquecer
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aquela habilidade, que era um dom natural. Durante meses, não fizera uso dessa habilidade. Mas, nessa manhã, Susana voltava a encontrá-la, mais forte do que nunca, à força de ter estado comprimida; trabalhava com grande rapidez, enquanto Joana, com os olhos cada vez mais inquietos, se conservava em silêncio.
Por fim, Susana, que deixava correr as horas sem dar por isso, sentiu-se interrompida por alguns movimentos sacudidos de Joana, e exclamou:
- Está cansada. Deixei-a de pé por muito tempo! Que horas são? - O sol do meio diia rebrilhava sobre o telhado e ela sentia o rosto banhado em suor.
Joana respondeu, ansiosa:
- Não estou cansada, minha senhora; mas a menina está a chorar e o Joãozinho a bater na porta para que lha abram.
- Não ouvi coisa alguma-disse Susana, envergonhada. Escutou, e ouviu o choro agudo de Márcia, bem como
os chamamentos de João.
Mas Joana desaparecera já.
Susana fechou um instante os olhos. Nada a apressava, de momento. Sentiu o bater forte do coração; depois ergueu a cabeça e observou a sua obra. Diante de si, feita de barro, ainda escuro e húmido, viu Joana esboçada a traços rudes, mas de uma verdade clara. Tinha-a representado de pé, a limpar os braços molhados. Mas era mais do que Joana, isto. Todas as mulheres como ela eram ali evocadas: as que deslizam, humildes, até aos lares dos outros, limpam, cozinham, cosem e recebem admiradas os poucos restos que lhes juntam aos magros salários. E desses olhos, como da boca entreaberta, de toda esta forma inclinada, frágil, mas no entanto impossível de quebrar, saía uma voz que Susana ouviu. Não era aquele grito, tão claro, da criança, que perguntava porque a haviam feito nascer. Não; era um murmúrio monótono, em que se tratava de tachos e marmitas, de carnes a assar, de chãos de cozinha a limpar, de crianças chorosas a alimentar: nada mais; e só a morte a faria calar. Haveria um suspiro, e esta vida quase muda não seria mais que silêncio. Havia Joanas assim, aos milhares. Susana compreendeu-o. Foi até à janela e olhou a floresta, de olhos mergulhados na verdura do Verão. O sol espalhava-se por toda a parte; a rua brilhava sob os seus raios. O guinchar de uma rede suspensa subia do jardim ao lado.
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A casa estava tranquila. Joana levantara Márcia e dera de comer.a João; entretanto, à janela, Susana chorava. Sentia o corpo invadido por um- sofrimento que não podia analisar. Julgava chorar por Joana.
Já não tinha, agora, necessidade dum modelo vivo. Via claramente o que fazia. Dia após dia, lá ia para acabar a estátua, trabalhando com uma segurança de mãos que até então nunca atingira. Esta segurança provinha-lhe do seu trabalho com David Barnes. E trabalhou o rosto de Joana tão delicadamente que parecia apalpar os traços no barro. Semicerrava os olhos, e os dedos escavavam esse barro, fazendo ressaltar os planos ósseos, as superfícies. Todos os dias, ao abrir a porta do sótão, o fazia em êxtase, fechando-a logo sobre esta alegria tão íntima. Todo o seu ser palpitava de vida. Não falava disto a ninguém. Não tinha pessoa nenhuma a quem o dizer.
Uma noite despertou, roubada ao sono por uma claridade que lhe pesava sobre as pálpebras, e viu a Lua brilhante, cheia e clara como um sol, descendo do céu e filtrando-se pela janela em frente do leito. Sentou-se, surpreendida, e Marcos disse-lhe numa voz em que não havia qualquer traço de sono:
- Também acordaste! É a Lua. - E, depois de um momento, acrescentou: - Susana, deixas-me ir para a tua cama?
E ela respondeu:
- Certamente, meu querido. - Pois já alguma vez lhe recusara fosse o que fosse? Recaiu sobre o travesseiro e bocejou, sonolenta, mas tinha prazer em sentir a tepidez do corpo de Marcos. E quando este lhe disse: - "Aperta-me bem, Sue", envolveu-o nos braços com ardor; era-lhe caro, sem coisa alguma de repulsivo. A julgar pelos seus hábitos, não esperava o estremecimento súbito, gelado, que o percorreu. Ao luar, sentiu-lhe as mãos tornarem-se fracas e abandoná-lo todo o calor. Ficou um momento imóvel, depois beijou-a com ternura e entalou a roupa em volta dela:
- Dorme, Sue querida - disse em tom calmo -; eu não devia ter-te vindo incomodar.
Ela saiu logo da sua sonolência e protestou:
- Oh, Marcos! Amo-te!
- Está bem - respondeu Marcos, no mesmo tom de voz. E vestiu-se, enfiando o roupão e procurando as chinelas, às
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apalpadelas. - Creio que vou ler um pouco. Esta maldita lua não me deixa dormir.
Susana olhou-o fixamente. A voz podia ser cheia de ardor, mas sentia que Marcos não era o mesmo para ela.
- Marcos, há alguma coisa que te aflige e que me ocultas.
- Vai tudo bem. Dorme.
Aproximou a lâmpada e passeou os dedos pelos livros da estantezinha, junto da sua cama.
- Marcos, tu nunca me mentiste! - E sentia-se já demasiadamente desperta para poder dormir nessa noite.
- Amo-te!-disse ele, sem a olhar.
- Já sei: amas-me e eu amo-te também. Então, que há? Dize.
Marcos voltou-se para ela; os lábios tremiam-lhe.
- Então, Marcos! - exclamou Susana, aterrada. Nunca o havia visto chorar. Ergueu-se dum salto, veio junto dele, tomou-lhe a cabeça e poisou-a no seu ombro, murmurando:
- Marcos!... Marcos!... - Estreitou-o e sentiu o corpo do marido tremer e retesar-se, no esforço para reter as lágrimas.
- Que há? Vejamos, Marcos, não posso suportar isto.
- Nada - respondeu, com a respiração ofegante. Tenho apenas a impressão de que não és a mesma para mim. Não estou à tua altura.
Por um momento, pareceu-lhe que era ela o homem e ele a mulher. Já ouvira outras criaturas falarem assim dos próprios maridos. Um dia durante uma partida de bridge, em casa de Lucília, Trina Prescott tinha posto as cartas na mesa, dizendo: "Não posso continuar. Sou muito desgraçada! Rob já não faz caso de mim. Não é o mesmo". Elas tinham-na lamentado e Susana tinha levado Trina para casa. No dia seguinte Lucília apareceu, falou no caso e acrescentou: "As mulheres são tão fracas! Sempre queria ver o Hal atrever-se a mudar! Eu lhe diria! Ele jurou-me fidelidade". Vendo que não corria os mesmos perigos com Marcos, Susana deixara-as falar. Mas nenhuma falara dum homem chorando sobre o ombro da mulher, por sentir que esta se lhe escapava. Esta atitude dava a Marcos um aspecto estranho; não via já nele o camarada alegre, simples, de coração puro. Não desejaria qualquer mudança, mas não soubera reconhecer a tristeza de Marcos, em quatro anos que estavam casados, e horrorizou-se.
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- Senta-te, meu querido - disse, muito meiga; e Marcos obedecia como uma criança, agarrando-se a ela.
- Agora, explica-me cá: eu fiz-te mal e não sei em quê, o que é terrível. É necessário que mo digas. Amo-te tanto!
Marcos ficou muito tempo sem poder responder, pois não tinha ainda formulado, nem para si mesmo, o que ela procurava compreender. Sofria profundamente, sem adivinhar a causa do seu sofrimento.
- Tu és perfeita. Eu é que estou louco. A culpa é minha; não tua. Tornas a nossa casa num encanto... és admirável com as crianças... - Parou; depois continuou:
- És sempre boa e gentil para mim. Oiço os outros queixarem-se das mulheres. Hal não pode atrasar-se dez minutos sem que Lucília lhe pergunte a razão; e remexe-lhe os bolsos - é tão ciumenta! Ciumenta até da dactilógrafa do armazém. Quando os oiço, digo cá para mim: "Louvado Deus, minha mulher não é como esta!"
Susana ouvia-o e acariciava-lhe o ombro, que sentia estremecer sob o tecido fino do pijama. Marcos acrescentou ainda:
- Nada fizeste, tu, não é daí que isto vem.
- Se não é o que fiz, é então o que sou. Primeiro, o marido não respondeu. Afastou-se dela,
passeou pelo quarto, procurou o cachimbo, acendeu-o e, sentando-se junto da janela, olhou o luar. Depois, acabou por dizer:
- Talvez, sim, talvez.
Ela sentiu o coração confranger-se-lhe de medo. Mas falou com voz calma:
- É pior, então. Poderia impedir-me de te fazer sofrer; mas era difícil deixar de ser eu mesma. Não saberia que fazer. Não creio ter reflectido, nunca, no que sou. Tenho estado muito ocupada toda a minha vida; tenho sido demasiadamente feliz.
Marcos levantou-se, desceu o estore para ocultar a claridade, foi sentar-se sobre a cama, e disse:
- Não queria lançar-me nessas coisas. Já que não posso explicar-me, mais valia calar-me. Mas tenho constantemente a impressão de que não estás aqui, que não estás cá inteiramente. Fazes tudo de modo admirável, melhor que ninguém... Não o ignoro.
Ela suplicou:
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- Oh, Marcos, peço-te! Que é que me interessa senão fazer-te feliz? Se não o conseguir, tudo quanto faça não vale nada. Falhou!
.- Tu tornas-me feliz - disse Marcos, com firmeza. Fui tolo em ter dito a menor palavra. Tenho todo o conforto, cuidados, de nada te esqueces... - interrompeu-se, e, pouco depois, acrescentou: - excepto, talvez, de te entregares a mim por completo.
- Que queres dizer? Quando é que te recusei fosse o que fosse?
É ridículo, isto... mas parece-me nunca te ter tido completamente. Tu vês, Sue: quando te falo, conto-te o que me sucede, sem nada ocultar. Tu, porém, há tantas coisas que não me dizes! Ouves, sim, e isso ainda só com uma parte de ti mesma. Creio que é isto... sim... casei apenas com uma parte de ti mesma.
E olhou-a, grave, de rosto ansioso, no esforço de se explicar.
Ela compreendia. Pela primeira vez na sua vida, teve uma impressão de recuo. Pois quem é que tinha o direito de possuir o íntimo do seu ser? Dar-se inteiramente, não estava na sua mão. Cedia o que Marcos podia receber. Esteve quase a abrir a boca para responder secamente: "se queres tudo de mim, é preciso que sejas capaz de o tomar Se retive para mim uma parte do meu ser, nada posso fazer quanto a isso".
Contudo, Marcos dizia já, em voz mal segura:
- É como se estendesse para ti uma taça...
Ela poderia responder: "A taça é muito pequena!"; mas antes que tivesse tempo de falar, ele exclamou:
- Parece-me horrível, isto. No fundo, nem quero pensar. A desgraça é que eu não te basto. Sem dúvida, a taça é pequena.
Susana calou-se. Uma palavra sua bastaria para lhe soltar as lágrimas, para dar a Marcos o temor de a perder inteiramente. Mas, dos dois, era ela quem sofria mais. Não queria magoar ninguém. Magoar alguém, eis o grande pecado! Toda a sua vida ela se cpntivera, dissimulara os seus verdadeiros dons, com o receio de humilhar, de fazer mal. Mas não deveria sentir a necessidade de um constrangimento com Marcos, e, no entanto, escondia-se dele, escondia-se, e, instintivamente, ele percebera-o. Não via claro, agora. Reflectiria no que ele acabava de dizer,
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procuraria compreender-lhe o verdadeiro sentido. O seu primeiro dever era consolar Marcos, persuadi-lo, graças ao seu amor, de que, bastando-lhe a ela, devia também bastar-se a si mesmo. Que pudesse realmente satisfazê-la importava menos do que fazer-lho crer. Pondo de parte qualquer outra ideia, sorriu-lhe com todo o fervor, todo o ardor de que era capaz.
- Vem cá para junto de mim, meu querido - disse em tom firme e claro. - Estás em vias de dizer muitas tolices, sabes? Sou tão feliz!... És o meu tesoiro, o meu amor, o centro da minha vida.
E puxou-o para o peito. Dissera bem a verdade. Marcos era o centro donde a sua vida irradiava. Marcos era a sua terra; mergulhara nele as raízes, escuras e fortes, e o que, acima, florescia, dependia dele! E Susana atraiu o marido contra si, num abraço quente, persuasivo; riu um pouco, mostrou-se amante. Ele abandonou-se à boa disposição da mulher, estimulado, persuadido por ela. Nessa hora discreta da noite, à claridade da Lua, ela fechou as portas e viveu tão encantada como ele, de momento igualmente convencida. Havia, no entanto, uma diferença. Quando a hora passou, o sonho do marido persistiu. Repousava, com a cabeça no braço de Susana, meio-adormecido, de olhos fechados, sorrindo.
- Esquece o que eu disse, meu amor. Estava cansado, creio, depois de um dia de muito trabalho no escritório.
Ela ergueu-se sobre o cotovelo e observou-o.
- Então, amo-te, ou não? - perguntou-lhe.
Ele abriu os olhos e murmurou, humildemente:
- Sim. Mas ainda pergunto a mim mesmo porquê.
- Promete-me que nunca esquecerás que te amo.
- Juro-to!-disse ele, tão submisso como uma criança satisfeita.
Ela olhou-o e disse-lhe:
- Agora, dorme. Não te mexas; fica na minha cama, que eu irei para a tua.
Mas ele dormia já. Susana soltou o braço e deslizou para o outro leito. A respiração de Marcos tinha um ritmo tranquilo; ela é que não podia dormir. Marcos tinha razão, sim; mas era preciso que nunca o soubesse. "Não devo faltar a qualquer obrigação - pensava. - Assim, chegarei a ser, ao mesmo tempo, esposa, mãe e... eu mesma". Fora descuidada, negligente, deixara-se absorver por coisas que não
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diziam respeito a Marcos, e sofrera. De futuro, havia de saber fazer tudo melhor; esforçar-se-ia por se abandonar mais completamente, por se interessar mais pela sua vida de cada hora.
Por que é que não havia de ficar tal como nascera e não havia de chegar a tudo? Ser tudo ao mesmo tempo não abertamente, com ostentação, como certas mulheres que reclamam o seu direito à liberdade, mais para se sentirem independentes do que para agir? Marcos nunca a satisfaria completamente, é verdade. Mas também não poderia passar sem ele. Aliás, coisa alguma, por si só, lhe bastava: nem filhos, nem casa, nem pais, nem tão-pouco a cidade ou a beleza da floresta e do céu; e, no entanto, privada de tudo isto, não saberia viver. Também o seu trabalho a não contentaria plenamente. Se levasse a vida de David Barnes, passando dias inteiros a esculpir, a modelar, a criar, chegada a noite teria percebido o que lhe faltava.
Porque a existência à maneira de David Barnes tinha, no seu género, limites tão estreitos como a de Lucília Palmer, e a parte que aquele tomava na vida quase não era maior; se bem que a beleza fosse o alimento da sua alma, aspirava a uma forma de beleza especial, sem se importar com os outros. Não via a necessidade de fazer nascer as crianças, velar pelo seu crescimento, tratar da casa e da cozinha, cultivar o seu jardim, cantar e amar Marcos. Não compreendia senão aquilo que pudesse seleccionar, comprimir e exprimir por meio dum punhado de barro, ou, revelar na pedra. E tinha tanta necessidade de viver como de criar. As duas aspirações estavam juntas e não poderia excluir nada nem ninguém: Lucília, Joana ou Maria; e muito menos os seus filhos ou Marcos: "Voraz!" disse a si mesma, gravemente, enquanto Marcos dormia. "Sou tão voraz como o inferno!"
Mas por que não? Por que não monopolizar tudo o que podia tomar? A Lua escondeu-se; durante uma hora, Susana ficou na obscuridade, a reflectir. Ninguém poderia tomá-la completamente. Ninguém, nem Marcos, nem David Barnes, cada um dos quais a pretendia a seu modo. Ela corresponderia às necessidades dum e doutro, pois em ambos os casos gozaria também à sua maneira. Onde se encontrava o seu verdadeiro "eu", não o sabia e quase não se importava com isso. Colheria de cada coisa o que desejasse. Ninguém lhe imporia limites, nem por meio do amor,
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nem com censuras. O universo era o seu universo, com o que ele continha: horas, países, jardins, céus, crianças, núsica, seres humanos e estrelas. Quem a deteria? Encheria a sua vida até ao cúmulo; faria aquilo de que fosse capaz, e era capaz de tudo o que queria fazer. Quando a aurora iluminou o quarto, foi com prazer que viu nascer o dia. Quisera um lar, e tinha-o; agora, que Márcia ia em bom caminho, pôr-se-ia ao trabalho.
Em meio do bem-estar que esta confiança lhe comunicava, adormeceu bruscamente, para acordar duas horas mais tarde, ao chamamento alegre de Marcos:
- Olá, minha filha! Vais dormir todo o dia? Acordou. O sol entrava já pela janela, inundando tudo.
Marcos estava pronto, e lá de baixo vinha um apetitoso cheiro a cozinhado. Joana, que entrava cada vez mais cedo, todas as manhãs, estava a preparar o almoço. Ruído algum vinha do quarto das crianças; isto significava que Márcia bebera já o seu primeiro biberão e que João estava na cozinha. Susana não fez observação nenhuma a tal respeito. Pensou em Marcos e na noite que acabavam de passar. Puxou o marido para si, apoiou-lhe a cabeça de encontro ao peito, e ele murmurou:
- Esquece todos os absurdos que disse, Sue; nem sei o que foi que se apoderou de mim.
- Decerto. Esquecerei. - Apertou a cabeça de Marcos, beijou-a e saltou fora do leito.
- Dois minutos para me lavar, e já desço! -exclamou. Os seus olhos eram claros e brilhavam como os de uma
criança. Sorria, e quando ele a apertou um momento nos braços, abandonou-se-lhe de bom grado. Nunca esqueceria a atitude de Marcos nessa noite, nem qualquer das palavras proferidas. Pôs um vestido azul, de pano leve, desceu, correu a sentar-se e deitou a Marcos um olhar fascinador. Ele adorava-a, sentia-o, e isto era precioso para ela. Conservava esta adoração. E quando João entrou, tomou-o nos braços e fez-lhe cócegas; o pequeno ria, ofegante, e balbuciou:
- Mãezinha, mãezinha, gosto tanto, quando está alegre! Pois bem; seria alegre para João. Acompanhou Marcos
até à porta e, juntos, seguiram pelo carreiro do jardim; depois esperou, de mão dada com o filho, que o marido voltasse à esquina da rua.
- Que queres fazer hoje de manhã? - perguntou a João, com ar sério.
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- Quero fazer bolos, com areia - declarou aquele, gravemente, depois de reflectir.
- Muito bem. vou pôr-te um bibe e procurar um balde com água. O que peço é que os guardes, para eu os ver.
- Sim, senhora!
Havia Márcia a quem dar banho e alimentar, e ela entregou-se a isto com alegria. Cada um destes momentos lhe pertencia, para ser vivido.
Quando toda a família ficou pronta para o dia, Susana subiu resolutamente ao sótão. Porque a sua casa tinha de ser vasta, conter toda a sua vida, e uma parte desta estava ali, embora nem Marcos nem os filhos tivessem lá ido nunca. Fechou a porta e passeou o olhar em volta. Nada a impedia de fazer acolá um estúdio, onde pudesse, realmente, trabalhar. Até agora, só se servira dele dê longe em longe, vindo modelar, febrilmente, qualquer obra às escondidas, esboçada à pressa. Não trabalharia mais assim. Rapidamente, tomou nota do seu material. Faltava-lhe muita coisa. Faria uma lista dos objectos, dos lápis - não tinha senão aqueles de que Miguel se servira - das folhas de papel, dos utensílios novos e do barro, pois ali não poderia esculpir mármore. Arranjaria um divã e uma poltrona, visto não haver senão um caixote para se sentar. Poria também um tapete e umas cortinas. Tendo necessidade de mais luz, mandaria alargar a janela do telhado, ao norte. Fazendo estes projectos, sentiu-se de repente devorada por uma sede imensa. Queria agora dedicar-se a coisas de mais vulto do que simples fontes e estatuetas. Realizaria uma obra grande, um grupo.
Mas a casa era muito pequena, o sótão demasiadamente acanhado. Em todo o caso, Susana começaria por fazer um modelo reduzido do seu assunto. A ideia, essa, podia ter mais amplitude; mais tarde, reproduziria talvez esse modelo em tamanho natural. Quem sabe se, um dia, a não assaltaria o desejo de deixar esse sótão e construir ou alugar um estúdio? A esta ideia, teve de novo uma sensação de infinita grandeza: sentia-se capaz de realizar fosse o que fosse. Que é que a impediria?
Sentou-se sobre o caixote e pôs-se a reflectir. Os seus sonhos tomavam asas, na fantasia. Se fossem viver para o campo, numa quinta, haveria mais lugar para o seu trabalho e para os divertimentos das crianças? Não tinham pensado nisto, quando casaram, Marcos e ela. Uma casinha,
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numa rua familiar, perto de pessoas que se conhecem, eis o que lhes agradara. Era isto o que Marcos desejava; ergueu-se, agitada. Bruscamente, apercebeu-se de que era inútil mudar qualquer coisa nessa casa, pequena demais para ela. Queria ter outra, com espaço suficiente. Custou-lhe a conter-se até à noite, à hora de Marcos chegar. Durante todo o dia, teve a impressão de perder o tempo, naquela casa. Logo que viu Marcos, gritou-lhe:
- Marcos, vamos viver para o campo! Ele parou, com a mão no portão.
- Sair daqui? - perguntou, fixando a mulher.
- Sim - respondeu esta, impacientada. Marcos gastava tanto tempo a compreender-lhe o pensamento! Verdade seja que levara a pensar nisso todo o dia, e ele não...
- Necessito de mais espaço, dum lugar especial para trabalhar, e as crianças...
- Realmente, nunca arranjaste o sótão a valer - disse o marido, devagar.
- É muito pequeno mesmo para começar. Queria fazer uma coisa de vulto antes da volta de David Barnes: tamanho natural. Além disso, as crianças...
Marcos reflectia; depois disse:
- Há uma casa antiga com um bom celeiro. - De repente, pareceu muito cansado e dirigiu-se para casa. Espera um pouco, para me lavar e pôr à-vontade.
- Está bem, meu querido. Sou sempre tão apressada!
- E eu lento de mais...
Arrependida, foi até à cozinha. Esperaria, sem nada mais dizer, até que ele voltasse ao assunto, depois de jantar. Marcos entrou na sala e sentou-se com gestos de cansaço. Ela sorriu-lhe, e logo ele pareceu reconfortado.
- Se tens, na verdade, vontade de te mudar, conheço uma casa antiga, numa colina, com um regato, a uma légua, aproximadamente, ao sul da cidade.
- Poderíamos ir vê-la depois de jantar? - Mas logo se interrompeu: - Não, não, não. há pressa. Tu estás cansado.
- Podíamos ir; as tardes são compridas, agora.
- É pensando também nas crianças...
- Compreendo.
- O João o que quer é ir brincar para a floresta; mas eu tenho tanto medo daquele barranco grande!
Marcos ergueu a cabeça bruscamente:
- É justo - disse. - Não me lembrava. Pois bem,
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vamos lá esta tarde. Precisarei de tempo para pensar nisto. Mas mantenho o que tenho dito: dar-te-ei o que desejares.
-Não decidamos nada, por agora.
Pareceu a Susana, ao dizer isto, haver já deixado a sua casa.
Saíram da cidade pelo sul, tomaram um caminho de campo, e atingiram, através das árvores, uma velha construção de pedra bruta. Erguia-se, maciça e sólida, contra o céu da tarde, arroxeado. Barricavam a porta bocados de tábua em cruz. Sem nada dizer, Marcos arrancou-as, forçou a entrada; penetraram na casa e circularam pelas salas. À parte a poeira, estavam limpas, vazias todas elas. Susana parou um momento em cada uma; reflectia, fazia apelo à sua sensibilidade. Poderia viver ali? Era bem esta a sua casa? Calaram-se até se encontrarem sob o alpendre grande, sustido por pilares.
- O celeiro é lá em baixo... também de pedra - disse Marcos, apontando uma vasta construção.
- Isto bastaria, mesmo para mim - respondeu Susana. Sentia-se atraída: blocos de mármore, de granito... o celeiro podia conter uma imensidade deles.
- Gosto deste sítio - murmurou. - Olha estas colinas... e estas árvores velhas... Não há um poço lá em baixo?
- Não tomemos decisão alguma esta noite - disse Marcos em tom breve.
Ela foi da mesma opinião.
- Não; viremos outra vez, de dia.
Regressaram ao anoitecer e, depois de guardarem o carro, instalaram-se sob o alpendre da sua pequenina moradia.
- Dá-me a impressão - disse Marcos, em meio dum silêncio - de que não vivemos ainda plenamente nesta casa.
- Não a deixaremos, se assim o quiseres -r- respondeu a mulher, com calma; no entanto, sabia que tinham de partir. Porque esta casa não era suficientemente vasta para a conter a ela. Não faltava espaço para que a mulher de Marcos, a mãe das crianças, ali pudesse viver feliz; mas não o havia já para Susana Gaylord. Pensou: "Amanhã, irei ver o que aquilo é".
E no dia seguinte foi sozinha à casa de pedra; sentiu logo como se entrasse na sua residência. Passeou por toda ela e fez os seus planos.
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- Marcos - disse, ao meio-dia - devemos ir para lá. Ele ergueu para a mulher o olhar humilde e fiel.
- Pois bem, Sue, será como queres.
O próprio Marcos, uma vez terminada a mudança, declarou que a casa lhe agradava, preferindo-a à outra.
- Olha as crianças - disse Susana. - Só por elas, já valia a pena.
João corria para o ribeiro. Joana vinha com Márcia nos braços, com a face radiante de satisfação.
- Minha senhora, há framboesas no jardim do fundo. Hei-de fazer compota.
Num quarto pequeno por cima da cozinha, Joana era perfeitamente feliz. - "Seria disparate, para mim, ir e vir"
- observara, quando se instalaram. - "Não notará que estou cá, minha senhora, juro-lhe".
- É em ti que eu penso - dizia Marcos a Susana.
- Aqui, já poderei trabalhar.
No enorme celeiro vazio, colocou os seus materiais e utensílios. Impunha-se-lhe a vastidão do depósito. Susana abriu de par em par o largo portão, no qual se enquadravam as colinas, lá longe. Sobre o extenso campo verde, João, um átomo, circulava ao sol, e via-se o céu para além dos montes.
Em meio deste novo universo tão espaçoso, Susana sentia a antiga e formidável necessidade de pegar no barro, de amassá-lo e dar-lhe forma, de criar seres. Começou a desenhar os contornos dum homem e de uma mulher, colocou entre eles uma criança, e, ao cabo dum momento, pôs outro nené nos braços da mulher. As quatro silhuetas formavam a essência daquele universo. Desenhou-as dia após dia, muitas vezes. Cobriu inúmeras folhas de papel, levou horas a estudar os dedos, a boca, a expressão dos olhos. A mulher escapava-se-lhe sempre. Por fim, descontente, pôs de parte o lápis e o papel, e tomou o barro; talvez com o auxílio desta pasta sólida descobrisse uma forma mais nítida. Modelou as figurinhas muito mais pequenas que o natural; e hesitava, aperfeiçoava cada atitude. Se se saísse bem com a mulher, talvez esculpisse, finalmente, o seu grupo no mármore, quando David Barnes voltasse.
Por duas ou três vezes, durante esses dois anos de
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ausência, recebera dele curtas cartas. E na semana anterior o escultor enviara-lhe um postal: "Chego a 5 de Julho". Trabalhou, e os dias de Verão foram passando. Não via ninguém e não parava senão à tarde, quando o carro de Marcos voltava para o caminho estreito. Punha então de lado a sua obra, ainda que um traço devesse ser passado do pensamento para a realidade do barro. A pedra! Um dia viria, talvez, em que não trabalharia senão a pedra... Deixava tudo, lavava as mãos, e lá estava já ao portão, para receber Marcos.
- Que fizeste todo o teu dia? - perguntava-lhe este, sempre, depois de a beijar.
Dirigiam-se de braço-dado para a casa, depois ela acompanhava-o até lá cima.
- Para mim, foi um dia muito ocupado - continuava Marcos.
Ia lavar-se na casa-de-banho e voltava com os cabelos escuros ainda molhados.
- Essa gente em férias - ia dizendo, enquanto se penteava, em frente do espelho - dá-me bastante trabalho. Já podia ter vendido esta casa três vezes, depois que é nossa.
- Mas nunca a venderemos-observou Susana.-Ainda hoje não sei como pudemos viver na outra.
- Nem nos lembrávamos disso quando lá estávamos. Enquanto a considerámos o nosso "lar", tudo estava bem.
Ela calou-se. Ficara sentada, vendo o marido dar o nó na gravata. Agora, conhecia muito bem o seu Marcos. Sabia bem como torná-lo feliz. E tinha a certeza, quase sempre, de que ele o era na verdade.
Terminara o grupo do homem, da mulher e das crianças. Aquela, de repente, cedera, surgira do barro e, dócil, enfim, erguia-se, estreitando a criança, de cabeça um pouco voltada para o lado. Tendo terminado o grupo, Susana chamou do portão do celeiro: "Joana! Joana!"
Precisava de mostrar a sua obra a alguém, e Joana acorreu com Márcia. João também as seguia, atraído pelo tom alegre de sua mãe.
- Olhem - disse esta, solenemente, quando todos entraram e se colocaram em frente das escuras figuras de barro.
- Como consegue fazer estas coisas, minha senhora? murmurou Joana.
- Quem são? - perguntou João, timidamente.
- Pessoas que não conheço. Construí-os apenas.
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E observava-os, um pouco intimidada por eles, agora, que vivia tão apartada.
À tarde, quando Marcos entrasse, levá-lo-ia também ali. Afinal, Joana não tinha instrução alguma e os outros eram apenas crianças. Estava morta por ver a expressão de Marcos, quando lhe mostrasse o seu grupo. Não poderia ocultar-lho. Desejava ardentemente compartilhar tudo isto com ele.
E passou o dia junto das suas figuras. Examinava-as, sentindo-as cada vez mais próximas. Parecia que lhe falavam, ou que conversavam um com o outro. Enquanto os observava, julgou até que eles se iriam mexer, embora ela própria os tivesse aprisionado sob aquela forma; e pensava que os libertaria, se conhecesse a maneira de o fazer, mas ignorava-a.
Quando ouviu três toques de buzina, levantou-se e, sem pressa, foi ao encontro de Marcos.
- Vem ver o que fiz-disse-lhe.
- Pois já terminaste?
- A escultura está pronta.
De mãos dadas, foram até ao celeiro. Susana nada dizia.
- Vejamos - disse ele. E observava as quatro personagens fixamente, como João o fizera já: - Quem são?
- Umas pessoas quaisquer.
E esperou, enquanto ele as observava. Por fim, Marcos disse:
- Não olham um para o outro. Por que os fizeste assim?
- Que queres dizer? Modelei-os exactamente como eram.
- Desviam-se um do outro; sobretudo a mulher. Ora vê: afasta-se mesmo do seu nené. Uma mulher olharia para o filho, parece-me, Susana; ou para o homem.
- Então, parece-te falso tudo isto, Marcos? - perguntou, ansiosa. - Pois olha que a figura dela deu-me bastante que fazer. Não havia maneira de me sair, mas depois, subitamente, pareceu-me tomar esta atitude.
- Somos nós? - perguntou ele, num tom brusco.
- Não! Que ideia!...
- Onde arranjaste os modelos?
Ela hesitou. Na verdade, copiara a mulher do seu próprio corpo, de quem estudara todos os pormenores, nua em frente do espelho.
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- Pois a mulher parece-se muito contigo - acrescentou ainda Marcos.
- Simplesmente no corpo -disse vivamente Susana.
- Mais do que isso. Toda ela tem qualquer coisa de ti. Até os olhos. Vi-te voltar a cabeça exactamente assim e olhar para a floresta, por trás da nossa casita anterior. ÀS vezes, à mesa, eu falava-te, e, com essa mesma atitude, olhavas ao longe, pela janela, para a floresta.
- Se vais imaginar sempre que eu nos copio, a nós disse, irritada -não farei mais coisa alguma. Não quero correr o risco de te magoar.
- Não, não me magoas.
Invadiu-a uma estranha amargura, como um calafrio gelado.
- Pois não compreendes que é preciso que eu esteja liberta do receio de te fazer mal, sem o que não poderei trabalhar? Tenho necessidade de me sentir livre. Não posso estar sempre a perguntar a mim mesma: "Isto agradar-lhe-á?"
- Mas se me agrada! - exclamou Marcos. - Ora vejamos, Susana: eu acho isto estupendo! Sinto-me tão humilde, comparado contigo! É um encanto! Simplesmente...
- Simplesmente?
O braço de Marcos envolvía-a, mas Susana não se apoiava de encontro a ele, sem reparar que também a mulher que criara se conservava um pouco afastada do homem, que igualmente a cingia com o braço.
- É... não sei como exprimir o que sinto... Parece que me foges... É o tormento antigo... Persegue-me sempre; não estou à tua altura... sim, é isto...
Deixou cair o braço e meteu as mãos nos bolsos.
- Podia partir isto em dois minutos. Nunca mais se ergueria entre nós.
- Susana!-exclamou o marido, com uma expressão
de horror. - Passaste aí dias inteiros, semanas!
- Podia quebrá-la num momento - repetiu ela.
- Ora vá, Sue... Nunca to perdoaria. Ficaria desolado. Que felicidade querias tu que eu sentisse, vendo que não fazias o que te agradasse?
- Se sofres por minha causa... Ele interrompeu-a:
- Prometo-te nunca mais dizer qualquer palavra a nosso respeito.
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.- Mas pensava-lo, eu sei... Isso seria como se me pusessem algemas nos pulsos.
--Não... Pensarei noutra coisa - disse Marcos, com ardor. - Sue, dá-me um beijo, peço-te!
Susana voltou-se e viu-lhe o olhar suplicante, ansioso. Abraçou-o e sentiu também o contacto dos seus braços, envolvendo-a. Tinha, então, medo dela. Mas porquê? Por que a temia? Havia em si qualquer coisa que metia medo aos outros; e, quando se apercebia disto, ela mesma se sentia horrorizada. Aninhou-se bem de encontro a ele.
- Aperta-me muito - murmurou; e, obedecendo, ele envolveu-a nos braços. - Mais... Ainda mais!
Aconchegou-se bem contra o peito do marido. Mas este não podia apertá-la mais. Susana disse então, já calma:
- Anda, meu querido, vamos ter com os nossos filhos. Voltaram-se para sair. Susana fechou à chave a porta
do celeiro; depois, juntos, entraram em casa.
Chegando ali, Susana subiu a escada e escondeu a chave no fundo duma caixa pequena na sua escrivaninha. "Nunca mais o levarei lá" - disse para consigo. Sofria dentro de si mesma, sem saber onde nem porquê... Talvez não fosse mais do que fadiga. Penteou-se, envergou um vestido amarelo, que lhe fazia os olhos mais negros, e, depois, desceu tranquilamente. Sob o alpendre, ligeiramente abatido, Marcos fumava. Conservava Márcia apertada a si; João, sentado ao lado, sobre o degrau, envolvia os joelhos com as mãos, ao falar, à maneira do pai.
- Experimentei com as minhocas, paizinho, mas há uma espécie de peixes que não gosta delas.
- Então, experimenta com moscas.-A voz de Marcos era vibrante de interesse. - É preciso aprenderes que espécie de moscas empregar em cada estação, meu filho, e servires-te delas como isca.
Márcia embalava uma boneca de trapos, sem braços, e trauteava baixinho: "M-m-m..." O som das vozes chamou Susana ao sentido das realidades. Estes três seres é que constituíam a sua verdadeira vida. Avançou então até ao alpendre.
- Vamos, meus queridos! -disse em tom vibrante, profundo - estão prontos para o jantar?
João pôs-se logo de pé e Márcia deixou cair a boneca. Os olhos de Susana encontraram-se com os de Marcos e ambos se puseram a rir; sentiam-se assim muito perto um
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do outro, rodeados pelos dois filhos. Marcos levantou-se e poisou um braço sobre os ombros da mulher. A vida de Susana, bruscamente, condensou-se neles três. O que havia feito não era mais que argila fria.
O doce perfume das framboesas cozendo com o açúcar enchia a casa. Na cozinha, Susana e Joana faziam o doce. Os pequenitos estavam lá fora, ao sol, mas João ia e vinha sem cessar, atraído pelo fogão.
- Cheira tão bem!
- És como os moscardos, tu. - E Susana ria. As abelhas batiam contra a porta de rede, enlouquecidas por essa doçura a que não podiam chegar.
João contemplava os boiões de compota escura e exclamava:
- Eu comia isto tudo!
- Já vais comer um bocadinho sobre uma fatia de pão
- disse Susana alegremente. E foi buscar um dos pãezinhos doirados feitos por Joana.
- Para Márcia também - advertiu João, gravemente. Susana cortou as fatias, que cobriu com uma camada
espessa; os filhos não tiravam os olhos de cima dela. Olhou-os também, e sentiu-se logo invadida por um sentimento de intensa realidade. O tempo como que se deteve, deixando suspenso cada pormenor tal como se apresentava: a grande cozinha com o seu chão muito asseado e as janelinhas claras; Joana, ao fogão, deixando tombar, da comprida colher de estanho, as pérolas da calda vermelha; Márcia, na sua cadeirinha alta; João esperando, de olhos fixos nas mãos da mãe; e ela própria... Estendeu a João a sua fatia, e logo o tempo se pôs de novo a correr.
- Toma - disse -; come e ficarás melhor.
- E não damos às abelhas? - perguntou o pequeno. Elas estão com um apetite terrível.
Susana deitou um pouco de doce ainda quente num pires.
- Põe-no no degrau e repara no que se passa.
João saiu, e ela e Joana continuaram a encher os boiões, um a um, deixando-os depois, para que o doce pudesse arrefecer e engrossar.
- Como eu ia dizendo - prosseguiu Joana, retomando a conversa interrompida - meu marido era bom como o bom pão. Nunca bebia, a não ser um copo de cerveja no
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4 de Junho; fazia-o para festejar esse dia e demonstrar-me a sua independência, visto que ele era americano e eu inglesa. Mas não passava dum gracejo, minha senhora; ele trabalhava sempre, e nunca me bateu. Que mais se pode exigir dum homem?
- Sim, diz bem. Que mais?... - murmurou Susana.
- Há muitas que não tiveram a nossa sorte, minha senhora - acrescentou Joana em tom lamuriento -; o senhor Keening é também assim, não é verdade? Nunca bebe, e é sempre o mesmo. É um dom maravilhoso, esse, num homem.
- Decerto - respondeu Susana.
Quando Susana encerrou o seu ditoso universo entre os muros da casa e a linha dos montes traçada no céu, ouviu um dia o ruído discordante dum automóvel. Estava a coser um vestido cor-de-rosa para Márcia, quando a campainha retiniu. Chegou-lhe logo a voz de Joana e depois a de David Barnes, exclamando:
- Tive um trabalho dos diachos para encontrar esta casa!
Susana levantou-se logo e poisou o vestidinho. Joana, aparecendo, anunciava:
- Está lá em baixo um sujeito. É tão mal-humorado, "minha senhora, que deve ser, por certo, uma personagem
importante.
- vou já - disse Susana.
Mas não desceu logo. Ficou imóvel por um bocado, depois dirigiu-se ao quarto onde Márcia fazia a sua sesta. A criança despertou, bocejou e estirou as pernitas gordas. Susana tomou-a nos braços, vestiu-a de lavado e penteou-lhe os caracóis escuros.
- Temos uma visita - disse-lhe; e, com a pequenita ao colo, desceu à sala onde David Barnes a esperava. O artista olhava pela janela. No seu traje de fazenda grossa, parecia ainda mais atarracado, mais gordo do que nunca.
- Fi-lo esperar - disse Susana em tom alegre, entrando
- porque queria mostrar-lhe Márcia; quando aqui esteve, ainda ela não tinha nascido.
Barnes voltou-se. Tinha entre as mãos uma bengalita de espinheiro escuro; o barrete saía-lhe da algibeira; meteu-o para dentro com um gesto impaciente.
- E foi isto, tudo o que fez?
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- Pois não basta? - respondeu ela, com um olhar duro e brilhante. E sentou-se, com Márcia sobre os joelhos. Barnes conservava-se de pé, diante dela, de aspecto carregado. Susana achou-o mudado, envelhecido.
- Tem trabalhado?
Ela não respondeu. Márcia procurava a todo o transe libertar-se e, logo que se viu no chão, chamou: - "Jani!"
- Deixe-a ir. A criança não tem vontade alguma de ficar só consigo. Quem é essa Jani?
- Uma mulher a dias.
- Pois a petiza já a prefere a si. A senhora é uma mãe ridícula. Sempre lho disse.
- Isso não é verdade - respondeu Susana em voz baixa.
- O que é que tem feito? Suponho, é claro, que tenha feito alguma coisa...
- Terminei um grupo.
- Quero vê-lo-disse ele, em tom breve.
Agora, para Susana, já não existia senão o que Barnes quisesse deixar-lhe. A sua casa, Marcos, os filhos, tudo desaparecera. Só essa figura atarracada, feroz, existia, com aquela voz e aquele olhar furioso. Susana ergueu-se e subiu para ir buscar a chave que, semanas antes, guardara no fundo duma caixa; depois, sem dizerem palavra, dirigiram-se para o celeiro, onde ela não voltara mais desde a tarde em que lá levara Marcos. Este dizia-lhe muitas vezes:
- "Então, não vais trabalhar nas tuas estátuas, Susana?" E ela respondia-lhe sempre: - "Creio bem que não, meu querido. Prefiro passar estes bocados ao pé de ti e dos pequenos". Uma vez, na doçura calma e profunda duma noite no campo, ela dissera-lhe: - "Não seria mau termos mais filhos. Márcia vai já fazer dois anos". Mas ele respondera: "Não... ainda não. Quero que tenhas a certeza de o desejar".
- Ah, tenho a certeza! - murmurou Susana. Sob a sua cabeça, sentia o ombro do marido, carne e sangue, quente e firme.
- Não - respondera este-; não, ainda não... ...Abriu o largo portão do celeiro e David Barnes entrou.
Volteu-se logo para o grupo de barro, atraído por este como se fosse uma luz. Olhou-o demoradamente, e ela conservou-se a seu lado, esperando. A argila secara sob o grande pano atirado por cima das figuras; mas quando ela
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o retirou, estas apareceram intactas. Ao secar, haviam tomado um tom mais pálido, de prata polida.
Barnes observou-as sem nada dizer. O exame prolongou-se por muito tempo, mas ela esperou, paciente. Por cima das suas cabeças, ouvia-se o ruído dos pombos que tinham feito ninho entre as traves, e algumas penas flutuaram suavemente, indo cair sobre as cabeças das estátuas.
- Vejo que teima em não aprender anatomia - resmungou por fim. - Este grupo está tão diabòlicamente bem executado, que a senhora nem merece a sorte que tem. Mas os esqueletos não estão bons. Torno a repetir-lhe: é preciso que estude os esqueletos e os músculos. Não quero que torne a fazer as coisas ao acaso. Conheço um sujeito em Nova Iorque e irá trabalhar com ele duas vezes por semana. Não trata senão de anatomia.
Susana esteve quase a responder-lhe: "Não posso", mas não o fez, limitando-se a perguntar:
-? Mas como é que isso se conhece? Eu copiei o meu próprio corpo...
- Copiar, copiar, copiar... Pois é preciso deixar de o fazer! Um escultor constrói de dentro para fora, edifica as suas personagens da mesma forma que Deusas cria.
- Talvez fosse preferível que me limitasse a ser mamã
- disse Susana. Mas, logo em seguida, compreendeu as palavras de Barnes.
Este não ouvira aquela reflexão e prosseguia:
- A única vantagem que tem em ser mulher é que pode trabalhar enquanto um homem a alimenta e veste. Eu tive de fazer ninharias e vendê-las, para poder viver trabalhando.
- O senhor não me compreende - disse Susana com calor. - Eu sou diferente. Sou um ser humano... uma mulher que tem necessidade...
Ele nem a ouvia e continuou:
- Tive mesmo de fazer de imbecil com uma mulher. Pobre como era, devorado do anseio de produzir, tomado de desejo, persuadi-a a deixar o marido; e depois pensei que nunca mais me livrava dela. Levei anos a ver o que sei hoje... ninguém nem coisa alguma tem importância fora do nosso ofício. Repito-lhe; só o nosso trabalho tem valor para pessoas da nossa espécie, e poucas há. Mas somos nós que realizamos a tarefa do mundo; os outros não podem fazer mais do que olhar, com olhos esbugalhados.
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Arrancava-a ao seu universo e ela ali estava a seu lado: uma chama sem corpo.
- Deverei partir o meu grupo e recomeçá-lo quando tiver estudado anatomia?
- Não, não - respondeu ele, impaciente. - É bom, muito bom para não dever ser melhor e bastante bom para merecer que o acabem.
- Tencionava refazê-lo em mármore.
- Não. Reserve o mármore para o que tiver de mais perfeito. Deixei-a esculpir aquela fonte, para ver como se sairia disso. Um dia ou outro, porá o barro de lado e não lhe tornará a tocar. Está destinada a esculpir e não a modelar. Este grupo será fundido em bronze. Eu tratarei disso e até o apresentarei num concurso. Conheço um homem que quer uma estátua para o hospital do pai. Aí está o que ele precisa. Falar-lhe-ei nisso.
Barnes deu uma volta em redor do grupo, assobiando devagarinho; aprovava, meneando a cabeça hirsuta.
- Conseguiu qualquer coisa - disse por fim. - Fotografou estes malditos pormenores, mas logo se esqueceu e foi até onde devia ir. A mulher está esplêndida, com o seu olhar distante. Foi inteligente observar que os olhos dela não deviam cair nem sobre o homem nem sobre o pequenito. Meu Deus! A maior parte das pessoas pensaria que ela os teria fixos sobre o nené! Imbecis!
Enfiou o barrete até às orelhas:
- Prepare-se para começar a estudar os esqueletos, na terça-feira - disse ainda. E um instante depois já ela ouvia o automòvelzinho rolar sobre o saibro do carreiro.
Nessa noite, disse ela a Marcos, em tom indiferente:
- David Barnes veio hoje ver o meu grupo. Estavam sentados lado a lado, sob o alpendre grande.
A noite era semelhante a todas as outras. E Susana gostava que ela não fosse diferente.
- E que disse ele?
A voz de Marcos era agradável, mas um pouco fria. Susana aproximou-se e poisou a mão na do marido.
- Disse que não estava mal, mas que não sei o bastante, que me faltam bases.
- É um pouco forte, isso! - exclamou Marcos. - Tu fizeste uma coisa magnífica. Quero tornar a vê-la.
- Pretende que copio os corpos humanos, sem os criar.
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- Que quer ele? - resmungou Marcos.
- Quer que vá a Nova Iorque na terça-feira e que estude anatomia. Isto aborrecer-te-ia? Regressaria à mesma hora que tu.
Na penumbra, ouviu Marcos tirar umas baforadas do cachimbo, acabando por responder:
- Bem sabes que só desejo que faças o que mais te agradar.
- Irei apenas duas vezes por semana, e Joana é esplêndida para os pequenos.
Marcos calou-se; ela dissera o que precisava.
Ao cabo dum momento, Susana levantou-se, para se sentar sobre os joelhos do marido, aninhando-se, fãzendo-se pequenina entre os seus braços; ele apertou-a muito contra si.
Conservaram-se em silêncio por bastante tempo.
- És tão meiga!-murmurou depois. - És tão meiga, assim!
Pela manhã, depois da partida de Marcos, Susana subiu, para mudar de vestido. O marido esquecera-se de que era terça-feira, e ela cuidou bem de não lho recordar. Ao beijá-la, despedindo-se, observara, como de costume: "Dentro de dez horas, exactamente, estarei de volta", ao que Susana respondera: "Esperar-te-emos ao portão"; e João acrescentara: "Felizmente que Márcia já anda um pouco, porque assim virá até cá pelo seu pé".
Tinham descido juntos ao longo do carreiro, dizendo-lhe adeus quando ele se afastou. Depois, Susana voltara-se, de repente, para os filhos:
- João: a mãezinha, hoje, tem de sair; é preciso que ajudes Joana a olhar pela Márcia.
- Aonde vai?
- A Nova Iorque.
- Fazer o quê?
- Trabalhar.
- Então vai agora trabalhar todos os dias, como o paizinho? - perguntou o pequeno, inquieto.
- Não, não... Só de longe em longe... - e deixou-os ao sol.
Os pequenos olharam-na fixamente, perturbados por qualquer coisa que ultrapassava o seu entendimento. Mas Susana sentia-se forçada a partir.
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A estação não distava mais duma milha, na extremidade sul da cidade. Marcos bem podia tê-la levado até lá.
No entanto, iria a pé, por não querer que a manhã diferisse de qualquer outra.
Sentia-se capaz de tudo... Sim, até disto. Quando a conduziram à sala branca, imaculada, com as suas janelas claras, pensou um minuto, ao ver a longa forma sob o pano, que isso iria além das suas forças. - "Mas não, hei-de consegui-lo!"-disse para si mesma.
Avançou um homem de fisionomia amável e voz tranquila, dizendo:
- Miss Gaylord? Eu sou Creighton! O meu amigo David Barnes falou-me de si.
Susana apertou-lhe a mão, fina, asseada e ágil.
- Quer-vir? - Ela seguiu-o a um gabinete pequeno.- Agora é favor tirar o chapéu, enfiar isto e calçar estas luvas. É muito importante não se cortar, neste trabalho.
Susana obedeceu, embora o coração lhe fraquejasse. Creighton lançou-lhe um olhar agudo:
- É a primeira vez que faz isto?
- Nem nunca vi mortos, sequer - respondeu, envergonhada da fraqueza da própria voz. Pigarreou e falou mais forte: - Sou escultora, e o senhor Barnes diz que preciso de praticar anatomia.
- Meu Deus! - disse ele, com brandura. - Isso é bem de Barnes, lançar assim uma jovem como a senhora, de chofre, dentro disto. Por que não começa por estudar num curso de anatomia, qualquer coisa de menos duro?
- Eu posso bem - respondeu Susana, resoluta.
- Enfim - disse aquele, sem convicção - se vir que começa a sentir-se mal...
- Não desmaiarei, estou certa.
Quando ele levantou o pano, Susana sentiu-se feliz por verificar que aquele corpo tranquilo era belo. Se fosse velho, grosseiro... Mas não, era jovem, soberbo.
- De que morreu?
- Um mal estranho, no cérebro.
- E a família não fez objecções?
Era um rapaz socorrido pela assistência pública, e nunca foi normal. Passou a vida numa instituição oficial como pupilo. Agora, ao menos, o seu cérebro sempre servirá para qualquer coisa... Hoje parece-nos tranquilo; mas
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vi-o duas vezes quando vivia, e a sua expressão era torturada.
- Sofria?
- Sabe-se lá! Nunca pôde falar... Eu vou continuar o meu trabalho; pode também começar... assim...
E golpeou o corpo com mão rápida, segura.
- Não há sangue! - exclamou ela, surpreendida.
- Não. O corpo foi já preparado. Agora tem aqui o manual. Aconselho-a a proceder desta maneira: leia uma página... até aqui, e depois é que vai pondo em prática o que leu. Pode fazer-me todas as perguntas que quiser; eu vou trabalhando. Sente-se com coragem?
- Sinto-me.
Susana sentou-se e leu lentamente; forçou o espírito a concentrar-se e continuou a leitura com atenção até ao fim. Depois levantou-se e pegou na lâmina fina, afiada, delicada e forte... Sentia-se contente por não haver sangue. Aquela carne era como o barro. Toda a carne não é mais que barro. Podia tocar à vontade nessa argila fria, que não conhece sofrimento nem angústia... A pele é tão fina! A .carne parece estriada. E os músculos, como se encontram entrelaçados, se amoldam ao osso, se estendem e se movem! Depois, há ainda essa maravilhosa delicadeza dos nervos, o rendilhado estranho das veias e das artérias...
- Ainda não terminou? - perguntou-lhe ele por fim.
- São já horas de fechar.
Ela olhou-o com olhos alucinados.
- Nunca pensei que um cotovelo fosse assim feito. Agora, já sei - respondeu-lhe Susana.
De noite, ficou desperta, enquanto Marcos dormia. Não tinha sono. - "Tenho de descobrir como tudo isto é fabricado, antes de me meter a fazer seja o que for" - pensava. Ao fim dum momento, levantou-se e saiu de casa, descalça. Picou de pé, na relva, sob o firmamento. Não havia luar, e as estrelas eram claras e imensas. Susana sentia, sob os pés, a erva húmida de orvalho. Na tranquilidade da noite, ali se conservava imóvel, absorvendo todas as sensações.
"Estou penetrando no centro do mundo criado" disse para si mesma. Mas não sentia medo.
Nada podia contar a Marcos a respeito do que aprendia. As suas viagens a Nova Iorque, duas vezes por semana,
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tornaram-se um hábito, e aquele insistiu em a acompanhar à estação e ir à tarde ao seu encontro.
- Tu não podes ir tão longe debaixo de sol - dissera-lhe ele, ternamente. Uma ou duas vezes, também tinha perguntado: - "Que é que fazes lá, Sue?" - E ela respondera: - "Nada mais que estudar anatomia". - E como um dia ele insistisse: - "E que tal vais, de que maneira?" Ela dissera: - "Aprendo o funcionamento dos músculos e dos ossos". E ele: - "Deve ser um pouco aborrecido, isso". Ela então exclamara: - "Olha, ali, Marcos: uma garça-real, azul, no ribeiro!"
com efeito, uma ou duas vezes por ano, uma garça-real, azul, migradora, arrastada pelas correntes aéreas, perdia-se, vindo ter ao ribeiro. E, nessa manhã, lá estava uma. Marcos, muito interessado pelas aves, parou o automóvel. Juntos, examinaram a pesada mas graciosa ave, que molhava o bico e agitava as asas na água corrente, e, depois, se ergueu de novo no ar, por adejos sucessivos.
"Parece que é Deus que ma envia" - pensou Susana com um sorriso, pois via bem que nunca poderia fazer compreender a Marcos o êxtase que pode haver em descobrir, semana após semana, como são feitos ora a curva duma coxa, ora o peito do pé, ou ainda descobrir o admirável mecanismo da mão.
- "Creighton pretende que a senhora deveria ter-se dedicado à ciência" - dissera-lhe David Barnes, no fim do Verão, num dia em que viera ao laboratório examinar o trabalho de Susana.
- É que tem, de facto, um pulso seguro, Miss Gaylord; é admirável! - observara Creighton, sorrindo.
- E um coração frio - resmungou David Barnes. Felizmente, tem um coração frio. Ia apostar, Creighton, que ela não procurou, uma única vez, galantear consigo.
A tez clara de Creighton tornou-se vermelha e Susana sorriu. É que esses dois homens nada sabiam a seu respeito. Sim, conheciam-na em parte, e Marcos também, por seu lado; mas ninguém a avaliava inteiramente.
- Esta pequena há-de ser uma grande escultora declarou David Barnes; e a sua mão quadrada, grande e sensível, estava posta no ombro de Susana. - Não se devem desperdiçar estes dons com a ciência. Quando pensa ter terminado aqui, Susana? O Verão está passado. Eu volto para Paris e levo-a comigo.
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- Não.
- Pois ainda não terminou?
- Não, é que não irei para Paris.
- Porquê? Diabos a levem!
- Não posso deixar Marcos e as crianças. Creighton olhou-a, surpreendido.
- Sim, ela caiu em se casar - resmungou Barnes, amargo. - Nascida com o dom mais considerável que pode ser concedido a um ser humano, foi ligar-se a um qualquer. Quem é? Agente de propriedades, ou coisa assim; e tem até dois filhos dele. É necessário que os deixe, mas nem sequer o supõe, por enquanto. Deus a forçará a fazê-lo!
Creighton conservou-se calado, ocupado em lavar os seus delicados instrumentos, em examinar as lâminas agudas, que limpava com cuidado.
- O senhor não quer compreender que tenho necessidade de tudo isso - disse Susana. - Uma parte de mim mesma morreria, sem Marcos e os filhos. Não trabalharia então senão com metade do meu ser, e o meu trabalho de nada valeria, assim.
- Mas não há necessidade de passar toda a vida numa prisão, para saber o que isso é; duas noites bastam.
Susana calou-se. Havia coisas que não poderia explicar a David Barnes, como havia outras que não saberia dizer a Marcos. Ninguém pode compreender, abranger tudo... Nessa tarde, ao arranjar os seus instrumentos, sentiu, bruscamente, que nada mais tinha a fazer ali. Aprendera o que desejava saber. Estava pronta, agora, para qualquer coisa de maior.
- Adeus, senhor Creighton - disse, depois de David Barnes ter saído. - Já não volto mais.
- Sério? - disse ele, rápido. Depois, teve um sorriso pálido: - Isto foi para mim muito agradável, Miss Gaylord. Um dia, quando for célebre e eu vir uma estátua assinada por si, direi para mim mesmo: - "Talvez eu tenha contribuído um pouco para isto".
- E na verdade ajudou-me muito - respondeu ela vivamente. Trabalhara a seu lado toda a estação e conhecia-o, mas ficara desconhecida para ele.
- Sinto-me feliz por ter travado relações consigo acrescentou o cientista, enxugando as mãos a uma toalha.
- Estava longe de supor, bem entendido... Creio bem que nunca encontrei uma mulher casada que se interessasse
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por mais qualquer coisa além da sua casa. A senhora não se parece com ninguém.
Estas palavras familiares despertaram dentro dela longos ecos. Já quando criança, ouvira alguém dizer a sua mãe: - "Susana é diferente das outras pequenas, não é?" e a mãe respondera: - "Às vezes, nem eu mesma chego a compreendê-la". E Susana refugiara-se num canto para chorar um pouco, vagamente, sem saber porquê, consciente apenas duma impressão de solidão.
- Adeus! - disse, estendendo a mão a Creighton. O senhor foi muito amável comigo.
- Oh, nada, mesmo! - murmurou aquele; ela mergulhou por um momento os seus olhos nos de Creighton, ligeiramente inquietos, surpreendidos, e sentiu o contacto da sua mão seca e limpa. Ele hesitou um pouco, e depois disse:
- Creio que a senhora não há-de achar que este trabalho seja de facto construtivo, assim a cortar, a fazer sempre em pedaços. Mas é para permitir aos outros que avancem. Esforço-me por pensar nisto. É um trabalho-base.
- Decerto - respondeu Susana; e saiu, fechando a porta definitivamente, devagarinho. - "Também eu, também eu avanço", disse para si mesma.
David Barnes, sentado sob o alpendre, na frente da casa, batia com a bengala nas tábuas velhas, gritando para Susana:
- Quero que veja os grandes pontífices a trabalhar. Por enquanto, só me observou a mim.
- E para que havia de ver alguém? - respondeu ela, muito calma. - Eu tenho de trabalhar a meu modo; e depois, quero fazer coisas americanas e não francesas.
Ele bramou:
- Meu Deus! É tão ignorante como uma daquelas vacas
- e apontou para a colina. - Ninguém ouviu ainda falar de si; é preciso que possa dizer que é discípula de alguém que tenha nome.
- Oh, nesse caso - disse Susana para o acalmar -- o senhor é bem conhecido!
Ele gemeu:
- Mas Paris é-lhe necessário! Não poderá compreender a arte senão depois de ter estado em Paris!
Susana não respondeu. Seguida por Joana, Márcia vinha dançando pelo carreiro do jardim. Tendo caído, deixou-se
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ficar estendida. E hesitava, perguntando a si própria se deveria chorar ou não. Mas, tendo renunciado a isso, levantou-se, sacudiu as mãozinhas uma contra a outra e pôs-se a subir os degraus com passo alegre. Viram-na chegar ao último e voltar para Susana um rosto radiante. A mãe abriu-lhe os braços, pô-la nos joelhos e lançou a David Barnes um olhar cheio de orgulho.
- Espere que eles cresçam-disse o artista com dureza.
- Espere que partam... e hão-de partir na primeira ocasião, porque são egoístas, como todos os seres humanos; então, ficará sozinha, abandonada, e será já demasiado tarde!
- Mas então não compreende que não renuncio a coisa alguma? Hei-de reunir tudo. Verá.
- É impossível - disse David Barnes; e a sua voz tinha uma doçura que ninguém poderia supor-lhe. - Minha querida menina: vejo que não o sabe ainda, mas neste mundo temos de escolher. Falta o tempo para acumular tudo. - Barnes apoiou-se pesadamente à bengala, erguendo-se: -? Enfim, um dia espero tornar a vê-la, em Paris. Conto com isso firmemente.
- Quem sabe? - respondeu Susana, sorrindo. - Não lhe disse já que hei-de reunir tudo? Talvez Paris também.
-É impossível, repito-lhe. - E o tom era inexorável.
- Se quiser Paris, renunciará a isto. Não. Não discuta. Eu nunca me engano.
Ela pôs-se a rir e Barnes desceu a álea, passou o portão e seguiu pelo caminho; o corpo atarracado balançava-se para um lado e outro.
Susana seguia com os olhos o seu vulto solitário. Quando este desapareceu, ela conservou-se ainda sentada, tendo Márcia nos joelhos. João devia estar a voltar da sua pesca no ribeiro e Marcos a chegar também. O Sol estava quase a pôr-se e sentia-se no ar o frio doOutono. Márcia crescia rapidamente; ia fazer dois anos: Talvez devesse ir Apensando em ter outro filho. Mas Susana não estava agora muito certa de desejar outro, já. Queria primeiro poder servir-se dessa ciência ainda tão fresca no seu espírito. Havia meses que nada fizera. Era inútil apressar-se, com respeito a filhos. Era muito nova ainda e havia de ter tempo para tudo.
O portão abriu-se; era Marcos. Ouviu-o caminhar no carreiro e prestou atenção. Conhecia tão bem o ritmo
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daqueles passos como o bater do próprio coração. Tinham agora qualquer coisa de mudado, de arrastado. Chamou-o:
- Marcos! - E levantou-se, pondo Márcia no chão.
- Olá, Sue - respondeu o marido. A voz era fraca. Verdade é que frequentemente se sentia cansado, à tarde. A sua alta estatura dava uma impressão de vigor, mas não tinha energia, verdadeiramente. Não era infatigável como a sua mulher, com aquele corpo tão resistente.
- Não te sentes bem?-perguntou-lhe ela. Marcos aproximou-se e Susana notou-lhe o sorriso pálido.
- Sinto-me, minha querida. - Inclinou-se para pegar em Márcia e levou-a, subindo pesadamente os degraus do alpendre. Sentou-se: - Continuo a pensar que ficarei melhor agora, que o Verão vai passando. Mas não é nada, isto.
Susana reparou na palidez do rosto, naqueles olhos encovados pela fadiga.
- vou fazer-te uma boa sopa, muito forte - disse, pensando já apenas em seu marido.
- Sinto-me bem, Sue - disse ele no dia seguinte, ao almoço.-Não estou doente. Mas fez tanto calor este Verão!
Susana esteve quase a responder: - "Sim?! Nem dei por isso!" - Mas limitou-se a perguntar:
- Estás certo de te sentires bem?
Ele sorriu, inclinando a cabeça. E a habitual fidelidade tranquila daqueles olhos azuis, daquele rosto sem beleza e de traços fortes, rasgou o coração da mulher. Inclinou-se para ele, dizendo gravemente:
- Amo-te mais que a tudo no mundo.
- Deveras, meu tesoiro? - respondeu simplesmente Marcos; e ela viu que algumas lágrimas lhe subiam aos olhos. Levantou-se e veio junto dele, perguntando-lhe baixinho, enquanto lhe puxava a cabeça para o seio:
- Mas que tens tu, meu querido? Ele murmurou:
- Estou bem; simplesmente um pouco fatigado. Não assustemos as crianças.
João e Márcia olhavam para eles fixamente, com grandes olhos espantados. Susana voltou para o seu lugar, declarando:
- Vais arranjar uma licença.
Mas antes que ele pudesse responder, Joana entrou, com um sobrescrito na mão, estendendo-o a Marcos.
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- Um telegrama! - exclamou, assustada. - Alguma morte, sem dúvida.
- Quem poderia ser?-disse Sue.
- Que quer isto dizer, Sue? É para ti. Assinado: Barnes. Ela pegou vivamente no papel e leu:
"Viva Susana Gaylord stop Seu grupo preferido no concurso de Halfred Mead stop Procure encontrar-me aqui Nova Iorque no escritório deles onze horas hoje stop Adiada .partida barco sua causa Barnes".
Olhou para Marcos, mal respirando.
- Nunca pensei... Bem entendido que não vou...
- Irás, sim! Despacha-te a arranjar-te. Irei atrasado, por esta vez.
Ela obstinou-se:
- Não terei um instante de tranquilidade, sabendo-te doente.
- Repito-te que nada tenho. Voltarás mais cedo, irei eu mesmo buscar-te, e repousarei, deitar-me-ei até, se sentir necessidade disso.
- Prometes-mo?
- Está jurado - disse ele alegremente; e Susana subiu, para se arranjar.
- Realmente, não tens mau aspecto - disse-lhe ela da janela do seu aposento-; senão, não poderia ir, Marcos.
- Não tenho coisa alguma; e tu, tu estás encantadora, como sempre - respondeu-lhe o marido, de olhos levantados para ela.
Susana sorriu-lhe, atirou-lhe um beijo, e depois, num ar prático, disse:
- Creio não haver razão para nos inquietarmos pelas crianças; combinei tudo com Joana.
- És uma mãe perfeita. - E ela viu adoração no seu olhar. O comboio partia já: - Esquece-nos por momentos. Goza o teu dia plenamente, minha querida!
Ela acenou-lhe enquanto o seu grande vulto desengonçado se avistou. Depois o comboio contornou a colina e Marcos desapareceu.
Podia bem, sem risco, pô-los por um instante fora do seu pensamento. Fora do pensamento não quer dizer fora do coração. Sentada perto da janela, conservava o olhar fixo na paisagem movediça. O seu espírito corria para além
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das colinas. Em breve chegaria aos arrabaldes e depois aos prédios de Jersey e às torres trabalhadas, esculpidas, da cidade. Em imaginação, brincou com esses edifícios. Talvez um dia esculpisse um grupo de homens trabalhando no alto das torres. Reflectiu sobre este tema, formou planos, calculou a relação entre os seres humanos e essas torres que haviam construído. Os seus corpos poderiam ser de grandes dimensões, no primeiro plano, ou então, pelo contrário, muito pequenos, na sombra, como que esmagados pela sua obra. Recalcou esta ideia, indecisa, para um canto do cérebro. Primeiro, faria uma estátua apenas, não um grupo, um corpo humano, flexível e ágil. Uma vida intensa atravessaria ossos, músculos, veias e nervos, como uma corrente eléctrica. David Barnes tivera razão. A ciência, que a havia forçado a adquirir, era preciosa, uma verdadeira fonte de criação. Sorriu ao recordar que Creighton, em todo o Verão, não pudera compreender o que ela fazia. Mas os homens não entendem as mulheres senão como suas esposas, e a de Creighton, se ele a tinha, devia ser uma criatura preocupada com a sua casa e a sua cozinha, não podendo suportar o trabalho do marido. Susana julgava mesmo ouvi-la dizer, num tom frio: - "Meu marido é um homem de ciência", enquanto ia pensando: - "Não posso suportar esses cadáveres. Nem quero pensar nisso". Susana sorriu intimamente, ante esta visão.
O comboio serpenteou pelas ruas e um cheiro acre a pântano entrou pela janela. Lá ao longe, Susana distinguia já as torres, cor de pérola, erguendo-se num céu azul e nevoento. Respirou profundamente, de mãos crispadas uma na outra. Felicitou-se então por ter envergado o seu vestido cor de rubi.
No táxi, por entre o tráfego, Susana sentiu o coração bater-lhe desordenadamente dentro do peito e comprimia-o fortemente. Por si não sentia a menor excitação; mas aquele coração agitado batia de tal modo, que precisou de fazê-lo calar, ao entrar num tranquilo escritório coberto de espessos tapetes.
- O seu nome? - perguntou-lhe uma voz indolente por trás dum quadro telefónico.
- Susana Gaylord.
Apareceu uma cabeça loira; uma rapariga, estupefacta, observava-a.
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- Oh! Um instante. Faça favor de se sentar. - E gritou para o aparelho: - Miss Gaylord... Susana Gaylord... Sim, senhor; muito bem.
Susana sentou-se numa poltrona e esperou. No outro extremo da sala, os olhos azuis olhavam-na fixamente, sem pestanejar. Momentos depois, um rapaz de semblante agradável se precipitou para ela, de mãos estendidas.
- Miss Gaylord! Nós esperávamos um telegrama seu. Prevenimos já David Barnes, para que venha imediatamente.
Erguendo-se, Susana respondeu, timidamente:
- Nem pensei em telegrafar. Mandou-me chamar, e vim logo.
Mas o rapaz quase parecia não a ouvir. Tomara-lhe o braço e conduzia-a, por um longo corredor, para um salão quadrado, claro, cheio de móveis escuros.
- Sente-se, sente-se-disse ele. - A propósito: eu sou Jonathan Halfred; o filho de meu pai; nada mais sou. Agora, fale-me de si. Nem quero dizer-lhe até que ponto ficámos impressionados com a sua obra. É perfeita, absolutamente. O hospital edificado em memória de meu pai abre no próximo ano e nós queríamos um grande grupo no imenso vestíbulo quadrado da entrada; não encontrávamos coisa alguma de suficientemente grande (não falo do tamanho, mas do sentimento), e foi então que Barnes nos enviou a sua obra-prima. Já se sabe que será fundido em bronze, formidável, duas vezes o tamanho natural, pelo menos.
Os seus modos calorosos, o seu entusiasmo, a sua franqueza, o seu ar radiante arrastavam-na também. Repetia sem cessar: - Estou encantado, já se sabe, encantado!
Ela interrompeu-o então para dizer conscienciosamente:
- Creio dever confessar-lhe que nós, tanto o senhor Barnes como eu, não estamos de acordo em que seja esta a minha melhor obra. Aprendi muito, de então para cá, estudei anatomia durante todo o Verão.
- Mas o grupo não podia ser melhor!
Ela sorriu, sabendo o contrário. Mas foi-o deixando dizer. Os louvores não a enganavam, pois sabia por si mesma, pela sensação das suas mãos, o que lhe saía bem ou mal. A porta abriu-se e entrou David Barnes, que disse logo, dirigindo-se a Susana:
- Na verdade não merece a sorte que tem. Mas o certo
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é que a tem e que hei-de conduzi-la a bom porto. Venha a Paris. Pode levar também o rancho todo, corpos e bens. Mas compreenda-me: nunca fará verdadeiramente bom trabalho enquanto não os encerrar em qualquer parte, definitivamente.
Susana não lhe prestava atenção; a certa altura, perguntou a Jonathan Halfred:
- Posso ver o local onde vão colocar o meu grupo?
- Certamente - respondeu ele, cheio de ardor. - Iremos imediatamente. - Tomou o telefone: - Diga a Briggs que esteja à entrada, na avenida, daqui a cinco minutos.
Pouco depois, subiam todos para um automóvel fechado, através do qual nenhum ruído da cidade lhes chegava. Susana nunca vira nada de semelhante. Os dois homens conversavam, mas ela não ouvia. Dizia consigo mesma que, quando tornasse a ver as suas figuras de barro, já podia julgar do que elas valiam; tornaria a fazê-las, se não lhe parecessem suficientemente bem. A sua primeira obra tinha de não ser má. Voltou-se para David Barnes e interrompeu-o, sem sequer dar por isso:
- Se as figuras não me satisfizerem em absoluto, voltarei a executá-las. Agora já saberei como haver-me.
- Como aquilo está, é o suficiente para a venda; mas resolverá por si mesma - respondeu David Barnes.
Susana nada mais disse. Calava-se, rígida, ao aproximar-se da nova construção, ainda não completamente terminada. Havia portas de bronze que davam para um vestíbulo enorme, iluminado do alto por um vitral redondo colocado no tecto. Susana seguiu os seus guias e estacou no limiar.
- Aqui tem o grupo - disse-lhe Jonathan Halfred. Colocámo-lo ali apenas para ver o efeito. Mas, tal como está, é muito pequeno.
Levantou o pano que o cobria, e Susana viu as suas figuras sob a luz crua. Examinou-as como se não as houvesse criado, como se se encontrasse em frente de seres independentes, e depois, voltando-se para Barnes, disse:
- Tenho de fazê-las de novo.
- Na verdade... - ia Jonathan a dizer; mas Susana não o ouvia, falava com David:
- Têm o aspecto de pessoas, e tal aspecto é enganador. Mas Barnes respondia-lhe:
- Bem poucos, ao passar, darão pela diferença.
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- Mas eu lembrar-me-ei sempre, e sofrerei com isso. Trocaram os dois um longo olhar, e Jonathan Halfred
passeava dum para o outro olhos estupefactos, como se escutasse uma linguagem incompreensível.
- É preciso que isto seja muito maior.
- A senhora é ridícula - disse Barnes por entre dentes.
- É ridícula, e nada a deterá porque está na verdade. De facto, não precisa de mim. Volto para Paris.
Saiu e desceu a escadaria pesadamente. Susana dirigiu-se então a Jonathan:
- Prometa-me que fará destruir este grupo; enviar-lhe-ei qualquer coisa de verdadeiramente bom.
- Mas... mas...
Prometa-mo. Estará pronto a tempo.
- Parece-me uma tolice pura; mas, enfim, prometo.
- Agora, desejo voltar para casa.
- Oh, ficará para almoçar!
- Não. É preciso que volte imediatamente, que comece já. Vejo muito bem o que quero fazer.
Notara os defeitos ao primeiro golpe de vista. No comboio quase vazio, reflectiu calmamente, dizendo para si mesma que saberia dar-lhe o necessário remédio. Lembrou-se de que Marcos lhe pedira telegrafasse dizendo a hora da chegada e que, apesar das intenções, se esquecera de o fazer. Surpreendê-lo-ia, assim. Voltava muito mais cedo do que julgara possível. Mas era inútil demorar-se depois de ver o que devia fazer. Tinha pressa de chegar, de ir direita ao celeiro e de pôr-se ao trabalho. Em imaginação, via-se já modelando a argila nova.
Quando descesse do comboio, seria ainda muito cedo e iria directamente para casa. O ar seco e fresco permitir-lhe-ia apressar o passo. Em meia hora chegaria. Faria os seus planos pelo caminho: uns minutos para telefonar a Marcos, ver as crianças, ouvir o relato feito por Joana: "João está-se tornando muito vivo, minha senhora, e Márcia poe-se a imitá-lo... Eu hoje, disse-lhes"... E depois, imediatamente, deslizaria para o vasto celeiro fresco, amassaria o barro e pegar-lhe-ia: nem esboços, nem modelos. Os seus dedos sentiam a forma a dar, pronta já. Fechou os olhos, inclinou a cabeça, e viu de novo o vestíbulo quadrado, de aspecto tão nobre, o lugar iluminado onde o seu grupo seria colocado. Tinha consciência do poder que
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havia dentro de si e que lhe permitiria realizar plenamente a sua maqueta.
O comboio parou enfim, e Susana desceu para o cais deserto, atravessou a estação vazia e meteu pelo caminho que levava a sua casa. Não se lembrava de nada do que vira. O seu espírito estava cheio apenas dessa ardente necessidade de formar, de modelar essas personagens que a esperavam. Caminhava muito depressa... Vinte minutos, quinze, dez... Encontrou-se ao portão e levantou o fecho. À porta estacionava um automóvel desconhecido, um automòvelzito cinzento, coberto de pó.
Susana chamou:
- João! Márcia!-e avançou para o alpendre. A porta abriu-se e apareceu-lhe seu pai.
- Olha, o papá!-exclamou em tom alegre.
- Minha querida - disse este, grave. - Marcos está muito doente.
Em pé, ao cimo dos degraus, ela olhou-o fixamente:
- Mas estava bem... -disse, com a respiração cortada.
- Estava bem, ainda, esta manhã...
- Hal é que o trouxe, ao meio-dia. Lucília veio para cá na tua ausência. Metemos Marcos na cama e chamou-se o médico. É febre-tifóide.
Susana passou bruscamente diante do pai, subiu a escada e entrou no quarto de Marcos. Não era já o seu quarto. Estava uma enfermeira sentada à cabeceira da cama, e Marcos repousava, de rosto muito vermelho e olhos meio-fechados.
- Marcos, meu querido! - disse.
A enfermeira levantou-se à sua entrada e perguntou:
- É a senhora Keening? - Mas Susana nem a via.
- Meu querido, já estou de volta! - E ajoelhou-se ao lado do leito, apoiando-se contra ele.
Marcos abriu os olhos lentamente e voltou a cabeça para ela:
- O dia, bom? - inquiriu, em voz entorpecida, espessa.
- Por que não mo disseste esta manhã, meu amor? Eu não teria ido...
Marcos não respondeu. Passou a língua seca sobre os lábios secos e murmurou para a enfermeira:
- Água!
Esta trouxe-lhe uma chávena com uma pouca de água. Marcos bebeu e fechou de novo os olhos.
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- Há quanto tempo está ele assim?-perguntou Susana. O terror amolecia-lhe os ossos e uma náusea subia nela como uma bruma gelada.
- Há dias que devia estar de cama - respondeu a enfermeira em tom nítido, prático. - O médico está lá em baixo. Pediu que o prevenissem logo que chegasse. Seria melhor ir até lá e deixar repousar seu marido. - E pegou numa bacia, humedecendo a fronte e as mãos do doente.
Susana levantou-se devagar, com os olhos sempre postos em Marcos. Foi ao seu quarto, alisou os cabelos, lavou o rosto e as mãos, e desceu. Enquanto assim fazia, obrigava o seu universo a condensar-se em volta dessa hora de catástrofe. Sua mãe saía da cozinha: o rosto redondo e enrugado estava todo franzido.
- Mandei Joana com as crianças para nossa casa murmurou. - Joãozinho chorava muito.
- Oiça - disse Susana com voz forte. - Porque é que se fala baixinho logo que há em casa um doente? - Marcos não morreria. Foi ao salão onde estavam seu pai e o médico, um rapaz inteligente, que nunca vira antes. O médico velho que assistira aos nascimentos de João e de Márcia, tinha morrido; depois, nenhum deles precisara de clínico. Eram todos tão vigorosos!
- Senhora Keening, seu marido está muito doente disse-lhe ele, levantando-se e sentando-se logo.
- Foi muito súbito o mal; ainda esta manhã...
- Não reconheceram os sintomas. Creio bem que ele não é de natureza a queixar-se.
- Marcos nunca se queixa. Mas eu é que devia ter-me apercebido.
O médico tossiu por trás da mão:
- Há aí qualquer foco de infecção. Já mandou analisar a água do seu poço? Os poços, nas quintas velhas, estão por vezes contaminados.
- Não. Nunca pensei nisso.
- Ah! - E ela julgou ouvir o clínico dizer a si mesmo:
- "Pois era seu dever ocupar-se dessas coisas".
- Também nunca me lembraria de tal - observou o senhor Gaylord.
- Devia ter prestado atenção a isso - disse Susana. E como se estivesse a flagelar-se, declarou ainda: - Eu é que desejei vir para aqui. Se tivéssemos ficado onde morávamos, nada disto sucederia.
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O médico tossiu de novo.
- Vejamos, Susana, é inútil falar assim, quando o mal está feito.
O doutor calava-se. E Susana acrescentou vivamente:
- Sim, já não tem importância. Mas agora, que devemos fazer por ele?
- É necessáriolevá-lo para o hospital - disse o médico; e Susana via bem o prazer que ele tinha em dominá-la. vou já mandar-lhe a ambulância; até lá, tome todas as precauções possíveis. Preveni-la-ei.
Partira, e Susana olhou para o pai; depois levantou-sebruscamente, e disse, muito excitada:
- É melhor ir ver o que há a organizar. - Dirigindo-se para a porta, parou e beijou os espessos cabelos brancos da cabeça paterna.
Não podia ocupar-se de coisa alguma e girava em torno do leito de Marcos.
- Não deveríamos... - começou a dizer. Mas a enfermeira declarou com firmeza:
- Ele tem o que é necessário. Velarei por tudo. Susana desceu, a juntar-se ao pai. Este nem se mexera;
achou-o tranquilamente instalado junto da janela, como o havia deixado. Ela avançou, indo sentar-se no amplo vão da mesma janela. Vinha de fora o vento fresco dessa tarde de fins de Setembro. Susana contemplou o jardim, depois voltou o olhar para o pai. - "Terei feito mal?" - perguntava, como que a si própria. - "Deveria ter renunciado a esta metade da minha vida? Como poderia eu adivinhar que isso o salvaria?"
- É uma pergunta fútil, essa - respondeu-lhe o pai, que depois acrescentou ainda, em tom calmo: - Quando sacrificamos metade da vida por uma razão qualquer, mudamos de personalidade. Já não somos apenas metade do que estávamos destinados a ser, mas uma criatura diferente, torcida e deformada pelo sacrifício... Teu avô era uma espécie de homem que não vivia senão para a música; a mulher e os filhos quase morriam de fome. Jurei a mim mesmo nunca tratar uma mulher como ele fez com minha mãe. A tua era uma linda criança, quando nos casámos. Tinha eu vinte e dois anos; prometi cuidar dela; e como tremia quando não recebia salário todas as semanas, aceitei este lugar de professor, em vez de confiar na minha sorte de escritor. Creio bem que, afinal, a tratei ainda pior
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do que meu pai tratou minha mãe. Não sou agradável no convívio, pelo menos assim o presumo.
Susana não respondeu. Que mulher se teria ela tornado, se se tivesse conservado na sua casinha e houvesse tranquilamente destruído Susana Gaylord, hora a hora, dia a dia.
- O que o mundo não vê - prosseguiu o pai - é que não se trata, de modo algum, duma questão de trabalho. O mundo passará bem sem o pouco de música, de poesia ou de qualquer outra coisa que pessoas como tu e eu nos sentimos obrigados a criar. Mas trata-se de ti e de mim... Aqui tens o que eu aconselho: Faze o sacrifício dessa vida, se isso te for possível. Chegando aí, sentirás que ela te não era indispensável, e tudo será simplificado. As pessoas compreendem-nos e amam-nos mais quando nos parecemos com elas. Meu Deus! Como odeiam aqueles cujas cabeças os ultrapassam! E esforçam-se por as baixar e cortá-las-iam para chegarem a isso.
O senhor Gaylord calou-se. Susana contemplava as mãos magras e delicadas do pai; as palavras que acabava de ouvir repetiam-se dentro dela, na confusão do -seu espírito. Não podia saber agora o que deveria ter feito ou ter sido. Vivera duma maneira natural e inconsciente, como uma criança. E a mulher que ela era é que Marcos amava. Só disto tinha a certeza.
A casa estava tão tranquila, que .o ruído das máquinas que abriam um novo poço não fazia senão acentuar aquele silêncio. Susana mandara logo tapar o antigo. Ninguém tornaria a beber daquela água. Instalara-se em casa dos pais até ao fim dos trabalhos. A mãe suplicara-lhe:
- Fica até à volta de Marcos para casa. Consentiu então em dormir na casa da sua infância,
mas de manhã queria logo ir para a sua, pois, agora, os dias não pareciam compor-se senão de horas vazias, nos intervalos das visitas que lhe era permitido fazer a Marcos. As manhãs e as tardes passava-as a olhar o relógio, até ao momento em que podia abrir a porta do quartinho branco onde o marido jazia, imóvel, no seu leito. Ele sorria com um sorriso entorpecido quando a via entrar, mas mal falava. Todos os dias, a uma ou outra hora, encontrava lá o sogro ou a sogra, que não podiam ir juntos por causa das vacas a ordenhar e outros trabalhos de obrigação.
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- Que pensa? - murmurava invariavelmente o pai, em voz rouca; e ela respondia num tom firme e claro:
- Marcos há-de curar-se.
Mas a mãe pouco falava. Pegava na mão de Susana, conservava-a muito apertada, olhando-a com um sorriso que lembrava vagamente o de Marcos. Às vezes, ficavam juntas ao pé do leito do doente durante a meia hora permitida, e Marcos nada dizia. Passado esse tempo, saíam ambas sob o forte sol de Outono e Susana observava:
- Está um belo dia, não é verdade? Alegra-me, por ele, que o tempo se conserve bonito. O ar está tão vivo!
A mãe concordava. Elas sorriam e separavam-se, por não poderem falar mais. Dia após dia, Susana obstinava-se em crer que Marcos, chegado o momento próprio, saberia recuperar as forças e curar-se. Sentia necessidade dele. E Marcos sabia-o; ela repetia-lhe, sem cessar:
- Meu querido, está tudo parado até que voltes para casa. Esperamos por ti.
Quando lhe chegou às mãos uma carta de Nova Iorque, poisou-a na escrivaninha, sem a abrir. Não admitia a ideia de ter de distrair de Marcos o menor instante da sua vida. Quando não podia estar ao pé do marido, queria, ao menos, pensar nele. Temia pôr-se ao trabalho, com receio de o esquecer.-"Que má mulher eu sou!"-pensava.-"Mesmo agora, seria capaz de trabalhar e de esquecer aquele que amo!"
Recusou-se, pois, a pôr mãos à obra, e se às vezes, no vazio obscuro do cérebro, lhe apareciam personagens que teria podido criar, logo as repelia. Não queria conservar senão a imagem de Marcos. Tinha uma superstição estranha: e era que, pensando nele, lhe conservava a vida; Marcos não deixaria este mundo, se ela o não deixasse escapar-se-lhe do pensamento. Convencida disto, viu os seus temores desaparecerem. Havia de salvá-lo, sim. Até então, conseguira sempre o que desejava. O médico dizia-lhe, gravemente:
- Estou longe de me sentir satisfeito, senhora Keening. O doente não reage.
E Susana, no entanto, repelia toda e qualquer inquietação. Ela impediria Marcos de morrer.
- É um caso extraordinário - disse o doutor por fim.
- A doença não segue o seu curso normal para um ponto crítico. E não há melhoras nenhumas.
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- Marcos não está pior - observou Susana, obstinada.
- Entre os humanos, não há paragens - respondeu o médico. - A falta de melhoras representa já um recuo.
...Um dia, sem razão aparente, Marcos sentiu-se melhor e morreu nesse mesmo dia. Falou um pouco, ao ver entrar a mulher. Abrindo os olhos, perguntou-lhe:
- Como vão os pequenos?
- Muito bem, mas ansiosos pela tua volta, como todos nós.
Marcos e Susana ficaram sós, por instantes.
- Estou ainda... fatigado - disse ele em voz muito fraca.
- Sim, descansa; descansa bem, mas pensa em nós. Ele sorriu e perguntou ao cabo dum momento:
- Que andas a fazer agora?
- Nada - respondeu vivamente. - Não poderei fazer coisa alguma antes de lá estares connosco. Preciso que te sinta em nossa casa e curado já.
- Que farás... então? - perguntou ainda, com a voz cada vez mais fraca.
- Tornarei a fazer o meu grupo; mas só quando estiveres completamente bom.
- A mulher olhava para o lado, não era?
- Era, sim.
Marcos calou-se. Fechou os olhos e depois, bruscamente, enquanto Susana lhe observava o rosto silencioso, voltou a cabeça para a parede e, suavemente, morreu.
Como pudera morrer assim tão rapidamente, tão docemente? Se tivesse pensado que havia nele essa ideia de morte, retê-lo-ia, tomá-lo-ia, gritaria, para expulsar esse perigo para longe. Assim, quando gritou, já era tarde de mais. A enfermeira acorreu:
- O quê?!... Como?...
- Depressa, depressa... - e Susana ofegava.
Mas foi tudo inútil. Escapara-se-lhes sem esforço, sem pressa nem precipitação; debilidade apenas.
- Encontrei-lhe tal expressão de cansaço!-disse Susana com a garganta comprimida. Recordava agora, a cada instante, aquele último olhar. - Depois, fechou os olhos e voltou a cabeça.
- Renunciou, simplesmente - observou a enfermeira com ar de ressentimento. - Já vi outros fazerem-me o
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mesmo. Esforçamo-nos, fazemos-lhes tudo e mais ainda, e depois, um belo dia, sentem-se cansados e lá se vão. O médico estava ali. As suas mãos ágeis tactearam o peito de Marcos, os olhos, o pulso, as mãos. Depois tornou a cobrir-lhe o rosto.
- Faria bem voltando para casa, senhora Keening. Quer que chame seu pai?
- Não, não.
Sentia-se incapaz de mover-se, de reflectir no que devia fazer.
- Venha estender-se um pouco no outro quarto, minha senhora - aconselhou a enfermeira.
- Não - disse ainda.
- Devo chamar-lhe um táxi? - perguntou de novo o médico. Mostrava-se benévolo, mas Susana sentia bem que ele tinha pressa de ir às suas ocupações, nada tendo já a fazer ali.
- Tenho o meu carro - respondeu ela.
- Não se preocupe com as formalidades. vou telefonar a seu pai. Estou desolado, senhora Keening. Fizemos quanto era possível. Creio que lhe faltava certa força de vontade, talvez... nada sabemos... enfim, se me dá licença...
Susana pôde sair, enfim. Desceu com passo seguro até ao vestíbulo, subiu depois para o seu carrinho cinzento e entrou em casa. Não participaria o facto a quem quer que fosse. Os outros se encarregariam disso. Não tinha mais que um desejo: entrar, subir ao quarto que ela e Marcos haviam habitado juntos. A porta de casa fechar-se-ia para todos. Parecia-lhe impossível que ele assim houvesse deixado por completo o lar onde tinham vivido ao pé um do outro.
Tudo estava como que imóvel, quando chegou ao portão. Ao ouvido faltava-lhe um ruído ritmado, que não podia definir. Parou um instante, em meio do carreiro, procurando recordar-se. Nesse momento, um operário, vestido de azul, contornou a casa e gritou em voz forte e alegre:
- Até que enfim, minha senhora, chegámos à água, há coisa de meia hora! Sim, minha senhora; a duzentos pés de fundura, cinquenta dos quais em rocha, há um veio regular de água, a mais límpida, a mais deliciosa que alguém possa ter visto ou bebido!
E apresentou-lhe um copo de água.
- É muito tarde, agora - respondeu ela,
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Deixou-o e entrou rápida em casa, fechando logo a porta, enquanto o homem ficava a olhá-la admirado.
Telefonara para que lhe trouxessem os filhos, apesar dos protestos da mãe, surpresa e contristada,
- Susana, não devias ficar nessa casa! Vem para ao pé de nós por algum tempo.
- Não, quero ficar esta noite, esta noite mesmo. Quero que as crianças venham. Não há perigo algum. Já temos água pura para beber, agora.
- Mas não vais torturar-te, espero, Susana - disse-lhe o pai. - Não estarás tu a comprazer-te em sofrer o mais que podes?
Susana reflectiu um momento, depois do que respondeu:
- Sinto-me melhor aqui do que em qualquer outra parte. Joana trouxe as crianças. Susana jantou com elas tranquilamente e ajudou aquela a metê-los na cama.
- Devemos também beijar-te pelo paizinho? - perguntou João.
- Pois sim!
Os seus beijos infantis caíam-lhe no coração, mas Susana não deitou uma lágrima sequer. Joana chorava sem cessar, em silêncio, de rosto voltado, enquanto trabalhava...
Susana leu até altas horas, nessa noite. Depois de ter tomado banho e entrançado os cabelos, como era seu costume, deitou-se, pegou num livro e leu atentamente, horas seguidas. Não chorara até então, não podia chorar. Foi virando as páginas uma a uma, até se sentir exausta. Depois fechou o livro e olhou o relógio. Eram três horas; havia doze, exactamente, que Marcos morrera. Susana contemplou o leito vazio, e, levantando-se do seu, foi, num desespero, meter-se no do marido; aninhava-se então nas covas que o corpo dele deixara, mergulhava o rosto na almofada onde a cabeça dele poisara. E bruscamente, como a água brota da rocha, sentiu os olhos inundarem-se-lhe de lágrimas.
Veio gente e os que chegaram pensavam consolá-la com a sua simples presença, ou, ao menos, fazer-lhe esquecer que ele morrera. Vinham, em grupos, vê-la a tagarelar sobre outros assuntos, pondo nisto o maior cuidado. Hal comparecia todos os dias e repetia muitas e muitas vezes: "Se lhe puder ser útil seja no que for..."
".
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- Obrigada, Hal -dizia Susana; mas não. Mais valia acabar a noite entre as suas lágrimas, a fim de que de dia os olhos estivessem secos à chegada das visitas. No entanto, sempre dizia: - Se precisar, dirigir-me-ei a si.
Mas o género de coisas em que aquele pensava não entravam no domínio de Marcos. Este nunca se ocupara muito com o interior da sua casa, nem Susana se habituara a descansar nele, como fazem as outras mulheres. Sem dar por isso, fora ela sempre quem tratara de todas essas coisas que em geral pertencem aos homens. Marcos nem sequer pensara nisso. Susana sentia a sua falta em outras circunstâncias: por exemplo, o regresso à tarde. Nunca ela supusera, quando o marido vivia, como o dia atingia o seu ponto culminante quando ele voltava às seis horas! Agora mesmo, embora soubesse que ele nunca mais passaria naquela curva do caminho, escutava ainda, obstinada, até aquela hora passar. Depois, era a noite, que se alongava interminável na sua frente. Demorava-se o mais que podia a ajudar Joana a deitar os filhos, e todas as noites, contentes, estes a beijavam por Marcos. Este beijo conservava neles a lembrança do pai, e por isso ela aceitava o sofrimento que isto lhe causava.
Também à noite vinham visitá-la. Lucília quase nunca faltava, deixando" Hal com os filhos. E então tagarelava quanto podia sobre o que se passara consigo ou com as amigas durante o dia, ou sobre o que Susana deveria fazer para "distrair os pensamentos".
- Bem entendido: sei muito bem que isto não serve para já, Sue; mas logo que sentisses forças para tal, deverias voltar a frequentar o clube de bridge. Todas o dizem. Há tantas coisas que poderias fazer para encher os teus dias, Sue!
- Sim-respondia Susana, vagamente. Uma lua enorme pareceu roçar a beira do celeiro. Era a primeira lua-cheia depois da morte de Marcos. Sempre a tinham visto nascer; mesmo nas feias noites de Inverno, saíam a correr, dentro dos seus agasalhos, tremiam, aspiravam o ar gelado e riam. E Marcos dissera: - "Havemos de fazer isto, sempre, enquanto vivermos..."
Entretanto Lucília fazia qualquer pergunta...
- Não ouvi... desculpa...
- Dizia eu, simplesmente, que sempre indaguei a mim mesma a razão por que te encontravas em Nova Iorque
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quando Marcos adoeceu e ele não se cansava de repetir que não deviam prevenir-te, pois era assunto muito importante, o teu.
Marcos apareceu assim aos olhos de Susana, atingido mortalmente, mas insistindo em que não a chamassem por sua causa.
- Eu não queria ir nessa manhã; mas ele não concordou, prometendo-me que, se eu fosse, voltaria mais cedo para casa, para descansar.
- Dizia que isso era extremamente importante - repetiu Lucília.
- Então, também eu tinha essa impressão; mas agora parece-me que não vale sequer a pena falar nisso.
Lucília emudeceu por um instante. Procurava assunto para a conversa. Susana percebeu e disse com doçura:
- São todos tão gentis para mim! Hoje sinto-me melhor e creio que dormirei esta noite.
Lucília levantou-se e beijou-a com afecto:
- Então, desejo-te boa noite, querida Sue. Voltarei amanhã. Há um folhetim soberbo, que começou a ser publicado agora numa revista ilustrada. Hei-de trazer-to.
Saiu, fechando o portão com gesto rápido-, e Susana ouviu o automóvel partir. Depois, como no fim de cada dia, a noite caiu sobre ela. Havia agora, a viver, todas essas horas, até ao dia. Contemplou a Lua, suspensa no alto. Susana poderia ir para cima e deitar-se; mas era-lhe menos penoso pensar em Marcos, ali, do que encerrada na intensa solidão daquele quarto. E reviu então cada traço do rosto de Marcos...
Esta recordação trouxe-lhe a do busto que não chegara a acabar. Havia meses que nem pensava nele. Mas, nessa noite, assaltara-a um desejo intolerável de o ver no mesmo instante, de sentir os seus dedos passar sobre cada traço daquele rosto. Foi à cozinha, pegou num candeeiro e nos fósforos, atravessou o relvado banhado pelo luar e penetrou na escuridão imensa do celeiro.
Acendeu o candeeiro e pô-lo sobre um caixote. Dirigiu-se depois à prateleira que Marcos mandara fazer ao fundo do compartimento. Palpou, tacteando, os bordos rugosos, e os seus dedos encontraram as formas, tão suas conhecidas, do busto. Trouxe-o para a luz e tirou-lhe o pano que o cobria. O rosto de Marcos descansava agora entre as suas mãos, e assim o conservou, contemplando-o,
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de joelhos. Tornara-se, enfim, parecido. Graças à morte, ali estava, acabado já. Tinha-o ali, contemplava-o, e depois, inclinando-se, apoiou a cara contra a face de argila. Sentiu-a, fria, e os lábios imóveis contra a carne dela, Quente e macia. Susana embrulhou de novo o busto, tomou-o nos braços e foi pô-lo no seu lugar, na prateleira.
Nesse momento, notou a silhueta curva do recém-nascido e a impressão duma outra morte desabou sobre ela. Agora, que Marcos partira, já não teria mais filhos. Não pensara nisto ainda, mas esse nené, moldado por ela no barro, veio recordar-lhe tudo. De súbito, teve consciência da sua solidão na imensidade desse celeiro. Poisou o candeeiro e ficou de pé, aterrada por esse isolamento. Não a ouviriam chamar. Ninguém. Joana e as crianças dormiam, e não despertariam. Ninguém escutaria a sua voz. Ninguém teria o cuidado de procurá-la, como Marcos o faria; este nem teria pensado em a deixar ir sozinha, de noite, ao celeiro. Poderia estar ali qualquer vagabundo, parecido com o que se enforcara na floresta. Passeou os olhos em torno, tomada dum medo infantil. Por cima da sua cabeça, as traves formavam grandes sombras angulares. Susana encontrava-se dentro dum pequeno círculo fracamente iluminado, mas rodeada pelas sombras e por um silêncio negro. Tinha desejos de pegar no candeeiro e fugir dali. Mas para onde? - "Sou tonta!" - exclamou em voz alta; e a sua voz repercutiu no vácuo. Ouvia chocarem-se os sons cavos dos ecos. - "Tenho de fazer qualquer coisa com as mãos; de contrário, ficarei realmente louca!"
O olhar errou-lhe por aqui e por ali. Na sua frente, a paciente argila aguardava. Pegou nela, amassou-a e, lentamente, o contacto familiar dessa massa reavivou-lhe as recordações. Prometera refazer o seu grupo. Uma pilha de cartas estava sobre a sua escrivaninha e, bastantes dias antes, recebera um telegrama, que deixara sem resposta. À medida que amassava, tudo lhe ia voltando gradualmente ao espírito. Não tinha querido trabalhar. Nem sequer pudera pensar nisso enquanto Marcos vivia. Mas agora uma sensação nos dedos a despertou pouco a pouco da sua letargia. O corpo não dormira, mas algo dentro dela dormitava, como morto; menos morto do que Marcos, no entanto. Por intermédio das suas mãos, através dos ossos, veias, nervos e músculos, o desejo agitava-se, aquele antigo desejo, voraz, semelhante ainda a uma corrente eléctrica.
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Trabalhou rapidamente, com uma energia terrível, como se um obstáculo, por muito tempo, a tivesse impedido de o fazer, e esse estorvo tivesse, enfim, desaparecido. Esqueceu então o seu medo. Esqueceu tudo, até de madrugada.
E quando a alvorada chegou, teve de parar. Voltou para casa, devagar, com os tornozelos molhados pelo orvalho; lavou-se, deitou-se e dormiu como se estivesse embriagada.
Quando despertou, não voltou ao trabalho. Não sentia desejos disso. Tinha frio, à força de cansada, e no entanto era-lhe impossível manter-se no leito. Teve de levantar-se, vestir-se e deixar o dia retomar o seu curso.
- Sue, tu tens realmente aspecto de doente - dizia-lhe a mãe. - Se não queres vir para nossa casa, vou eu para junto de ti. Maria pode ocupar-se do pai durante uma semana ou duas.
Susana levara os filhos a casa dos avós, uma tarde, antes do Natal. O pai descera logo que ouvira os netos e fazia-lhes um barquito. Trabalhava a madeira admiravelmente; cada entalhe correspondia ao desenho que tinha na ideia. João, ao lado do seu joelho, estava mudo de .felicidade; mas Márcia cirandava, cantando: - "Um barquinho... um barco pequenino!"
- Não quero que me deixem aqui com Maria - resmungou o pai. - Cada vez temos menos assuntos para conversas, nas suas vindas dessa escola de comércio de Nova Iorque. Se alguém deve ir para tua casa, que seja ela.
- Pois sim - concordou Susana vivamente. - Por que não? Deixa-a ir, mãe.
- Se assim o queres - aquiesceu ela, um pouco contra-vontade, como de costume.
Susana não tinha desejo nenhum de ter Maria consigo. Não queria ninguém. Mas preferia Maria à mãe. Aquela não se ocuparia senão de si mesma; não pensaria em Susana, não notaria a sua palidez pela manhã... Quando poderia ela, outra vez, dormir longas horas num sono profundo, em vez desses bocados de inconsciência de que despertava, sempre, para recordar que Marcos não existia já? E Maria não lhe prestaria atenção alguma, não lhe gritaria: - "Susana, tu não comes!..." E quando tornaria a sentir fome?
- É muito gentil da tua parte vires passar aqui as tuas férias!-disse-lhe ela, quando Maria chegou com a sua mala. Parecia-lhe diferente, de cada vez que a via.
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Crescera muito e a sua tez amarela transformara-se: tornara-se morena, fina, bastante bonita; aprendera também a vestir-se.
- Não me aborrece nada vir - respondeu, indiferente.
- Onde é o meu quarto?
Joana arranjara bem o pequeno aposento dos hóspedes, e Susana pusera uma rosa amarela numa jarra, sobre a mesa do toucador. Foi até lá com Maria, e hesitou: Maria era, ao mesmo tempo, da família, e estranha. Mas Susana não se viu forçada a ficar, pois Maria lho fez compreender: -vou ter contigo num instante-dissera; e Susana desceu.
Custava-lhe ainda ter de falar, fosse com quem fosse. Acostumara-se à conversa fácil de Marcos, a propósito de pequenos casos agradáveis. Ele falava sem que a mulher tivesse dito antes coisa alguma, ou lhe respondesse depois; habituara-se assim a ouvi-lo, enquanto ia devaneando, pois o que o marido dizia não lhe prendia o espírito. Mas era reconfortante e entretinha-a. Agora, quando tinha de falar, sentia-se embaraçada. Maria também não era mais conversadora. Era assim como se não houvesse ninguém naquela casa. Lia durante horas, depois atirava o livro e saía para os campos, sem coisa alguma na cabeça. À noite, recolhia-se cedo no seu quarto, não dizendo mais que esta curta frase:
- "Boa noite, Sue; até amanhã".
E Susana lá ficava de novo sozinha com a noite. Havia uma imensidade de pequenas coisas que preenchiam o seu dia: os filhos, a casa, um pouco de costura. Marcos, outrora, seguia-lhe os dedos com os olhos, dizendo: - "Gosto de ver os teus dedos activos. Sabem exactamente o que querem fazer, e fazem-no depressa. Ela sorria, orgulhosa, da agilidade dos seus dedos fortes. Mas agora essa agilidade já não tinha valor algum, pois não estava marcado qualquer prazo para o fim do trabalho...
Susana podia ler um pouco. Às vezes, ia também à casa da sua infância tocar piano, até que um dia o pai declarou:
- vou mandar-te esse piano. Tenho o meu lá em cima, e ninguém, depois da tua partida, se importa com a música nesta casa.
- Bem entendido que Susana poderá levá-lo - disse a mãe, que parecia ligeiramente contrariada-; mas não podes dizer que eu não goste de música; uma linda melodia agrada-me sempre.
Ele não respondeu, nunca lhe respondia; e o piano lá
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foi para casa de Susana, que bem reconhecida ficou, pois a música a ajudava a passar algumas horas do dia.
Assim, empregado duma maneira ou doutra, o dia lá terminava, e ficava a noite imensa, durante a qual Susana não podia dormir. Desesperada com esta duração interminável, desperta de forma tão intensa, envergou o velho casaco azul, atravessou a erva gelada, entrou no celeiro e acendeu o candeeiro, mas sem a menor vontade de se pôr a modelar a escura massa de barro que, lentamente, ia tomando forma. Na primeira hora trabalhou com obstinação, porém contra o seu desejo, com a sensação sempre presente de que Marcos estava morto e, assim, nada podia interessá-la já. Depois, do fundo do cérebro, para além do seu pensamento e da sua consciência, o fogo de outrora foi despertando; do simples trabalho, passou à criação. Só então esqueceu que Marcos morrera; e tomou cada vez mais o hábito dessas noites, tanto mais que o esquecimento descia sobre ela logo que os dedos entravam em contacto com o barro, e isto era para Susana tão benéfico como um sono sem sonhos. E deixou, de dia, de temer a noite que se aproximava.
Receava ainda a véspera de Natal. Não podia esquecer a forma como Marcos e ela a festejavam, todos os anos. Agora, sem ele, Maria e Susana enfeitavam o pinheiro tradicional com os brinquedos que, sozinha, esta fora comprar. As duas irmãs não falavam a respeito do que estavam fazendo, trocando mesmo poucas palavras:
- Este canivete é para João - disse Susana. - Quer trabalhar a madeira como o avô. Vai ferir-se, sem dúvida.
- De qualquer modo, tem de cortar-se, mais cedo ou mais tarde - respondeu Maria. - Já se sabe que a boneca é para Márcia.
- Márcia não gosta de bonecas.
- Também eu nunca gostei - declarou Maria, bocejando-; e tu também não.
Susana aprovou com um gesto de cabeça:
- Penso que é por isso mesmo que continuo a dar-lhas. Em poucos minutos, tudo ficou pronto. Maria voltou a
bocejar.
- vou deitar-me-disse. - Não consigo dormir o suficiente desde que voltei. Em Nova Iorque, deitava-me tarde. Há tanto movimento! E isto aqui é tão tranquilo!
- Gostas do teu género de vida?
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- Adoro-o - respondeu Maria com ardor. - Espero passar bem longe daqui a minha existência. Há-de ser possível, espero. As alunas que terminam o curso têm quase assegurado um emprego. Estou a especializar-me em desenho, chapéus e vestidos... - A meio caminho da escada inclinou-se (alta silhueta angulosa, elegante e jovem) e acrescentou em tom indiferente: - Talvez pudesse ajudar-te, Sue; se tivesses vontade de modelar fontes, estatuetas ou outras coisas desse género, colocar-tas-ia.
Pela primeira vez depois da morte de Marcos, Susana sentiu uma dor que não se relacionava com aquele facto.
- Não tornarei a fazer nenhuma dessas puerilidades declarou com orgulho. - Ainda não disse, a qualquer de vós, que foi o meu grupo o escolhido por Jonathan Halfred para ser colocado no edifício construído em homenagem à memória de seu pai. É nele que trabalho agora.
- Halfred de Halfred-Mead? - perguntou Maria, em tom frio.
- Sim.
- Muito bem. E quando o soubeste?
- No próprio dia em que Marcos foi levado ao hospital.
- Não é muito teu, isso de guardar para ti coisas desse género. - As palavras caíam uma a uma, como outros tantos pedaços de gelo.
- Sem Marcos, pareceu-me que isso já não tinha importância.
Olharam-se. Entre elas, tremulava, suspenso, o antigo desacordo instintivo, que datava da sua infância. Susana esperava, na defensiva, que Maria o exprimisse em termos nítidos e secos. Mais valia exteriorizá-lo em palavras, a fim de que cada uma soubesse a que ater-se e as nuvens pudessem desaparecer. As duas irmãs, explicando-se, sentir-se-iam talvez mais próximas do que nesse momento, em que não sabiam que dizer.
Mas Maria voltou a cabeça:
- Boa noite, Sue; até amanhã.
Subiu a escada, e os saltos dos seus sapatos davam nos degraus pequenas pancadas secas.
Nessa noite, Susana atravessou a relva escura com cólera, e foi esta que lhe permitiu pôr-se logo ao trabalho com energia. - "Maria detesta-me" - pensou. - "E porquê? Detesta-me pelo que sou. Nenhum esforço da minha parte poderá fazer com que sinta afeição por mim".
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Interrompeu-se um instante e reflectiu.
Uma vez, em meio da noite, Marcos dissera-lhe que qualquer coisa que dela emanava se metia entre ambos, e os afastava. Então renunciara a si mesma, abandonando-se-lhe inteiramente.
"Sinto-me tão feliz por o ter feito!" - pensou comovida. Depois, bruscamente, voltou ao trabalho.
Mas a ideia de que Maria a não amava, não lhe causava emoção nenhuma. Não sentia senão cólera, e a cólera cura, porque faz esquecer. Susana trabalhou duas vezes mais depressa e melhor do que antes, e quando, às quatro horas, se meteu no leito, adormeceu logo, sem sofrimento.
Na manhã de Natal, Maria, com os seus olhos escuros e frios, observava João, que se empenhava em servir-se do canivete, e nem teve um sorriso para Márcia, que despira a boneca, a pusera de lado e começara a abrir os embrulhos. Maria nem parecia vê-los. Durante todo o dia, na casa paterna, se conservou à parte, como uma estranha, condescendente perante a árvore de Natal e os velhos gracejos do pai sobre a perua e o pudim flamejante. Susana, com a sua sensibilidade aguçada pela cólera, observava-a, sentia a sua presença, e essa cólera fizera-a passar o dia sem o desespero que tanto receara.
No entanto, nada disse a Maria. Lembrava-se daquela infância triste e obstinada, e da observação do pai, que, um dia, resmungando, lhe perguntara: - "Maria sofre, em segredo, dum cancro, dalgum amor que não conhecemos, ou de qualquer outra coisa?" - E Susana sorria ao responder-lhe: - "Maria, o que quer, apenas, é parecer já uma rapariga crescida".-O rosto grave de Maria conservava-se ainda infantil, e deixara ver o perfil muito juvenil quando, duma maneira imprevista, voltara a cabeça.
No dia seguinte, sentada ao piano, Susana ouviu de repente a campainha puxada com toda a força. Joana correu a ver do que se tratava, e Susana percebeu que ela pedia em tom duro: - "É favor tirar o sobretudo aqui, senhor". E logo em seguida entrava devagarinho e murmurava indignada: - "É aquele rapaz que ia, a cavalo, à casa antiga. Que necessidade havia de arrancar o puxador da campainha? Pois é o que ele fez" - e mostrava na mão o antigo puxador, de metal.
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Do vestíbulo, chegou até ela a voz de Miguel:
- Susana, onde está? Sinto-me desolado...
Ela saiu da sala e viu-o então metido no seu casaco de peles escuras, enorme e mudado; mas depois de tirar o casaco, num gesto brusco, logo lhe apareceu elegante, apenas muito mais alto, de facto.
- Estamos aqui no campo, a passar o Natal - disse, com semblante amável. Inclinou-se e beijou-a ao de leve nas duas faces. - Deixe-me sentar junto do lume e conte-me como é que... mas não me diga coisas tristes, pois já sei tudo; fale-me do seu trabalho.
Avançou a poltrona azul para junto do calor e conversou à sua maneira, um pouco estrangeirada. Estivera ausente por tanto tempo, que quase se não podia indicar ao certo o seu lugar neste mundo. Mas emprestava à sala uma atmosfera quente, brilhante e alegre. Susana inclinou-se para deitar mais uma acha no fogo; antes que ela chegasse, apanhara-a ele e tratara de arranjar o lume; as suas mãos ágeis e firmes manejavam os ferros habilmente.
Falava à vontade, era moço e vigoroso, e fazia realçar tudo, dava realidade a tudo o que o cercava: sala, casa, vozes das crianças na escada, chamas dançando, luz da lâmpada e cortinados pendentes. E, falasse do que falasse, o assunto da conversa tornava-se real também.
- Estive com Dave, há dias, em Paris - dizia; e logo Susana viu brilhar Paris diante dos seus olhos, cidade cheia de seres vivos. - Espera-a lá qualquer dia - acrescentou.
Susana sorriu sem responder. Nunca lhe ocorrera a ideia de poder deixar a casa onde ela e Marcos haviam vivido juntos. Mas Miguel transportava o universo para aquela sala, graças à sua voz e às suas conversas sobre os assuntos mais diversos. E depois, Miguel nunca vira Marcos.
- Estive em Constantinopla - disse - só a passar as férias, e no Inverno passado fui às índias, a fim de pintar o Himalaia. Sentia o desejo de pintar montanhas - não os Alpes, pois hoje há ali gente tagarelando em todos os cimos, mas as neves que pé algum tivesse pisado. A Susana certamente me compreende. No Himalaia, há montes que não deixam, quem quer que seja, atingi-los. À medida que se tenta escalá-los, vemo-los erguer a cabeça cada vez mais alto.
Susana inclinava-se, escutando. Ninguém, desde há
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muito, lhe havia realmente falado. Miguel desenrolava o mundo diante dela, a fim de lho mostrar. Susana esquecera até que havia um mundo. Ele continuou:
- Enviei os meus quadros para casa e fui à China pintar: desta vez, figuras. Mas não esses assuntos revelhos, de ricos mandarins, não, Sue; mulheres delgadas como flechas, como odaliscas, como... como finas estatuetas de marfim... mulheres modernas. Nada há tão belo para pintar, neste mundo... mas espere que os velhos bonzos da academia as vejam! O mundo ainda não as descobriu.
De súbito, parou, de olhos fixos acima da cabeça de Susana. Esta voltou-se. Maria estava ali, envergando um casaco muito justo, liso, vermelho-carregado, abotoado em cima, sob o queixo, e com um chapelinho a dizer com o vestido.
- Entra, Maria - disse Susana. - Apresento-te Miguel Barry. - Este estava de pé, esperando. - Miguel: minha irmã.
Maria estendeu a mão delgada e morena.
- Como está?-disse tranquilamente. E depois: Susana, vou passear antes de anoitecer.
- A que horas voltas?
- Não sei.
Se Maria julgou que Miguel a observava, não o deixou perceber de forma alguma. Conservava-se de pé, carregando mais o chapeuzinho de veludo vermelho; quanto a Miguel, não a deixava com os olhos. Ela voltou-se, indiferente, sem se apressar, e saiu. Passado um pouco, Miguel tornou a sentar-se.
- Estava a falar da China - disse Susana.
- É isso... - Miguel acendeu um cigarro e pôs-se a fumá-lo rapidamente. - Sua irmã tem um pouco o ar de uma chinesa. Nunca me tinha falado nela, Susana.
- Também nunca lhe falei de mim - respondeu-lhe esta com doçura. - Além de minha irmã, tenho ainda dois filhos, e pai, e mãe.
Mas ele nem a ouvia. Esmagou o cigarro no cinzeiro e ergueu-se bruscamente:
- Bem; tenho de ir.
Susana acompanhou-o até ao vestíbulo.
- Muito prazer em tornar a vê-la - disse ele, rápido. Embrulhou-se no seu casaco de peles e fechou a porta.
Joana, que punha a mesa para as crianças, olhou pela
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janela e resmungou: - "Aí está um rapaz desagradável e vaidoso. Uma dessas criaturas que uma mulher não gosta de ter junto de si".
Assombrada, Susana assistiu, em sua casa, ao rápido crescimento do amor entre Miguel e Maria. Este sentimento trazia-a fora de si, arrancando-a ao entorpecimento em que vivia desde a morte de Marcos. Não se parecia ele com qualquer outro amor conhecido, nem tinha relação alguma com a grande ternura que pouco a pouco se desenvolvera e os unira, a Marcos e a ela. Conhecera o marido desde pequena. Não havia época alguma da sua vida que não contivesse qualquer recordação dele. Fora sempre o mesmo rapaz agradável e bom, o mesmo rapaz tímido e gentil, e só uma noite lhe parecera como que estranho, depois de começarem a amar-se. Mesmo, então, não houvera nele qualquer loucura, apenas a vastidão sem limites da sua bondade amorosa. O seu amor conservava-se sempre como um vasto mar tranquilo, que mal vira agitar-se.
Todavia aquele amor novo era como um rio estreito, furioso, apertado entre rochas. Nenhuma suavidade o envolvia. Miguel vinha todas as manhãs e perguntava:
- Onde está Maria? Preciso vê-la. Susana chamava-a cá de baixo:
- Maria! Umas vezes, Maria respondia; outras, não. Quando
Susana não obtinha resposta, Miguel esperava, excitava-se e falava. Na primeira manhã, Susana fora abrir a porta de Maria.
- Venho apenas prevenir-te de que Miguel está lá. Maria dormia, muito esticada no seu pijama amarelo,
com a cabeça sobre os braços. Despertou e olhou a irmã.
- Por que é que ele não me deixa dormir? - perguntou, voltando-se e fechando de novo os olhos.
Susana cerrou a porta e desceu a encontrar-se con Miguel.
- Não quer levantar-se.
- Mas é preciso - insistiu Miguel. - Faltam-nos muito poucos dias.
- Eu não torno a ir chamá-la - disse Susana com doçura.
- Bem vejo que ela tem um feitio infernal - respondeu Miguel, sombrio. - Não importa. - E gritou, na escada: -
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Maria! Levante-se! Senão, obriga-me a subir. Eu não espero
mais;
Mas esperou. Maria acabou por descer, tranquilamente, bocejando ainda um pouco.
Ele deu então as suas ordens:
- Ponha o casaco e venha comigo. Trouxe o automóvel.
- Não irei a parte alguma sem tomar o pequeno almoço
- disse Maria; e demorou-se a tomar o seu café com torradas, e, depois, ainda, a fumar um cigarro. Não quis de forma alguma apressar-se, embora o visse ali de pé na sua frente, furioso.
O amor desenvolvia-se neles como um áspero vento de Primavera, que não tratavam de ocultar.
- Estou a tornar-me idiota-disse Miguel, um dia, a Susana. - Não posso comer nem dormir, mas não como se eu não soubesse já o que são mulheres. Não. É Maria. Fui atingido em pleno coração.
- Deveria congratular-me com isso, e não o faço respondeu Susana, lentamente. - É que não posso imaginar que o Miguel venha a ser feliz com ela. Maria tem de conseguir tudo o que pretende.
- Também eu - declarou vivamente o rapaz. - Quero casar com ela; pedir-lho-ei hoje, visto que parte amanhã.
Eram dez horas da manhã, e Miguel, de pé em frente do lume, esperava por Maria.
- Não deve voltar para essa escola de comércio; até fico louco quando penso que está nesses escritórios, no meio de tantos homens. Quero pintá-la. Desejaria pintá-la durante todo o tempo em que lhe faço a corte, mas não posso executar as duas coisas. Quando tivermos casado, passarei os meus dias a fazer-lhe o retrato.
- E ela ama-o? - perguntou Susana, pois era impossível percebê-lo.
- Certamente - respondeu Miguel, agastado. Susana seguiu-os com o olhar, quando saíram. O carro
voava pelo saibro da álea, depois ao longo do caminho duro e gelado, e através do campo hibernal. Quando estavam juntos, mal falavam; e, se não soubesse que se amavam, julgaria antes que se odiavam.
Estiveram ausentes todo o dia. Ao pôr-do-Sol, a porta abriu-se e entrou Maria, sozinha. Subiu; Susana encontrava-se ao piano. Enquanto esperava, tocou suavemente. Tinha uma impressão de singular tristeza, como se se
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sentisse velha, com a sua vida perdida, embora não tivesse ainda trinta anos. É que a vida não depende da idade... mas daquilo que se possui. E nessa noite Susana não se sentia contente com o que tinha.
Ouviu os passos de Maria na escada e, depois, na sala, atrás de si. Maria veio pôr-lhe a mão no ombro, fresca e leve.
- Então, Sue?-disse, na sua voz clara.
- Então? - perguntou Susana, abafando o som da música até quase não passar dum murmúrio.
- Já emalei tudo - disse Maria. Susana voltou-se, olhando-a. Maria retirou a mão, sentou-se na poltrona azul e cruzou as compridas pernas finas.
- Tu não és... tu não tens...
- Não me caso com Miguel Barry - declarou Maria, fitando-a. - Era disto que querias falar, penso eu.
- Contudo, ama-lo?
- Sim, amo; mas não tenho intenção nenhuma de casar. Já resolvi. Sei sempre o que quero.
- Enganas-te. E um dia o lamentarás.
-- Porquê? - E a voz de Maria saiu clara, mas fria.
- É a vida, isso. E tu não podes renunciar à vida e conservares-te viva - respondeu Susana lentamente.
Maria passeou o olhar em volta, pelo salão silencioso. Lá fora, as trevas desciam sobre a imobilidade de uma noite de Inverno.
- Nesta casa, quase não há vida. Tu nem sabes o que é a vida, Sue, assim separada de tudo.
- Tive Marcos. Tenho os meus filhos.
João e Márcia dormiam lá em cima. Tinham brincado lá fora, ao ar livre, sob o sol frio, até ficarem com as faces encarnadas.
- Não percebo como há mulheres que possam imaginar que um homem e um par de filhos constituam toda uma existência - disse Maria.
- São a terra donde brota a vida. Recusando-te a casar, nunca poderás deitar raízes profundas.
Não conseguia explicar o que pensava. Mas sabia que coisa alguma, nem mesmo a morte, podia roubar-lhe o que Marcos lhe dera.
- Nem eu pretendo ter raízes profundas - disse Maria.
- Não quero vegetar aí em qualquer parte, amarrada a uma casa. Apesar de tudo quanto digas, Susana, nunca
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poderemos ver as coisas pelo mesmo prisma. Tu tens qualidades, mas nunca foste complicada. Tomas esta cidadezinha a sério, manténs ainda relações com as tuas amigas de infância, com essa horrível Lucília, por exemplo! Malbaratas-te a ti mesma. Marcos era bom rapaz, mas não estava também à tua altura; longe disso.
- Não fales dele - disse Susana surdamente, com as mãos crispadas nos lados do banco do piano.
- Não quero falar; mas é que me serves de exemplo, simplesmente. - Interrompeu-se, com os olhos fixos nas unhas estreitas e pontiagudas. Depois acrescentou: - Deixaste perder os teus dons. Fechas-te aqui! Devias circular, conviver, travar conhecimentos! Assim, nunca poderás chegar a ser coisa alguma. Ignoram-te. Se eu tivesse metade do teu talento encontrar-me-ia já a muitas léguas do sítio onde tu estás, e para onde decerto terias ido se não te tivesses detido para casar com Marcos, ter filhos e tratares da tua casa como qualquer mulher vulgar.
- Preciso de tudo - declarou Susana. - Não posso limitar-me a isto ou àquilo como tu. Tinha necessidade de ter filhos, de sentir a vida espalhar-se em mim, não como uma chuva que me caísse sobre a cabeça, mas profundamente, como uma fonte que brotasse. Não podes compreender, tu. Pobre Miguel!
- Oh, isto há-de continuar, entre mim e Miguel! - disse Maria; e a sua voz clara era isenta de paixão. - Ninguém, hoje em dia, recusa um homem, pelo menos completamente, salvo, é claro, se ele nos desagrada. E Miguel é na verdade interessante. Em certo sentido, desejo-o até.
Susana protestou:
- Maria!
Esta abriu muito os olhos.
- O que é?
- Eu tratarei de pôr Miguel de sobreaviso!-declarou Susana com decisão.
A irmã sorriu e levantou-se.
- É melhor despedir-me antes de começarmos a disputar - disse. - Pobre Susana! - Inclinou-se, depondo um beijo rápido nos cabelos da irmã. - Eras muito mais bonita e fazias tudo muito melhor do que eu, e então sentia inveja de ti. Agora, já não. Prefiro ser como sou. Ao menos, sei o que quero. - E ia subindo a escada, enquanto falava, direita como uma espada, jovem, dura, inexorável.
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- Eu vivo - disse ainda - e tu estás morta.
Saiu, mas as suas palavras ficaram. Susana ouviu-as repetirem-se até ao infinito. Morta, ela, que acabava de padecer como Maria, com o seu temperamento, nunca poderia tolerar! Os mortos não sofrem. Neste momento, vivia em um nível que Maria nunca poderia atingir; sensível a tudo, às brasas que caíam do fogão que se apagava, à melodia que acabava de tocar, às estrelas brancas no céu todo negro. Vivia em cada instante da sua personalidade, ou no que fora, ou no que empreendera, e Maria não tinha este poder de vitalidade. Esta vida de Susana, que ela mesma escolhera, não era mais que o começo, as bases do que se seguiria. Do que se seguiria! Pôs o casaco, saiu de casa, atravessou a terra gelada, coberta de neve, e foi até ao celeiro. Acendeu o candeeiro e o fogão de ferro que comprara para colocar ali. Depressa começou a desenvolver-se um círculo de calor, dentro do qual se mantinha. Trabalhou assim até à meia-noite, sem um instante de repouso, consciente do poder que de si emanava, que corria ao longo dos seus braços, das suas mãos. Construíra as figuras cientificamente: aquele homem, aquela mulher, aquelas crianças. Conhecia-lhes o corpo intimamente, criava-as como se os seus contornos cobrissem carne, e, esta carne, os ossos e os órgãos necessários à vida.
À meia-noite, Susana apartou-se do trabalho, puxou para si um rolo de madeira e, sentada nele, considerou a sua obra. Distinguiam-se nitidamente as personagens cuja forma acabava de modelar. Faltava apenas terminar o que ressaltava já, de modo claro. Examinando-as, notou que essas figuras eram arrancadas da sua própria vida. Instintivamente, dera ao homem o aspecto de Marcos, e reconheceu-se a si mesma no gesto da cabeça da mulher. Rápida, levantou-se, aproximando-se, e olhou o rosto do homem. Era bem o de Marcos. E era estranho que, enquanto vivo, ela não tivesse conseguido representá-lo assim! A verdade é que a cabeça que dele fizera não passava duma máscara de morte! E agora que Marcos não existia já, encontrava-o ali, vivo, com aquela expressão tão sua conhecida, um pouco tímida, desprovida de audácia mas afável, cheia de bondade. A mulher continuava sempre com os olhos afastados dele.
Susana pensou que, se Marcos ali estivesse, sofreria amargamente.
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- "Fomos nós que tu representaste aí!"-diria lentamente; e depois perguntaria: - "Porque é que o teu olhar se desvia assim de mim, Sue?"
Mas Marcos não estava ali. Nunca mais voltaria. Quando a dor aguda que a alanceou se extinguiu, Susana, recordou-se e pensou: - "Agora, não sofrerá mais"; e ainda: "Tê-lo-ia feito sofrer muitas e muitas vezes, porque tudo o que eu crio é tirado da minha vida. Não possuo quaisquer outros elementos".
Aqui está o que Maria nunca poderia compreender: As viagens, o vaivém fortuito de rostos desconhecidos, de pessoas indiferentes, que não lhe demonstrariam interesse algum, não era uma existência que lhe conviesse; não. Ela precisava de viver, não no mundo que passa, mas nas profundezas do seu ser.
Apagou o candeeiro, abafou com cinza as brasas do fogão, tornou a cobrir o grupo com o pano e saiu. O céu estava escuro, mas a neve cintilava com um brilho fraco na obscuridade. Não havia vento. Susana parou um momento, cônscia da mais intensa solidão.
"Nasceria eu para estar só?" pensou. O ar feria-a, frio e seco, enquanto caminhava na neve. A casa -estava tão silenciosa como a noite, e Susana, sozinha, subiu devagar as escadas, indo para o seu quarto solitário. Ficou acordada por muito tempo. Vinha-lhe o pensamento de que Marcos se encontrava agora ao abrigo de qualquer pena que ela pudesse causar-lhe. Era inútil atormentar-se: "É preciso ter cuidado... não repetir o que lhe disse ontem. Vi bem como os seus olhos se entristeciam. É preciso ter paciência". Agora, podia já enlevar-se sem reflectir e seguir o seu caminho, pois o amor repousava num túmulo e o que ela era não o faria já sofrer. Se, por vezes, a assaltava um sentimento de desolação, noutros momentos via apenas a sua liberdade. Foi com esta liberdade que terminou o seu grupo; e foi assim que ela aceitou a solidão.
UMA vez terminado o grupo, preparou-se para o enviar ao seu destino. Sentia-se feliz, vendo que esse trabalho não era apenas uma obra de arte, mas também de técnica.
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com efeito, nas suas veias corria outro sangue além do do músico, seu avô paterno. O avô materno fora marceneiro e mestre de obras. A sua ciência forte, o seu conhecimento das ferramentas e da maneira de as utilizar voltavam a encontrar-se nela, naquele jeito para escolher a madeira, a pedra e os melhores utensílios. Destes, tinha poucos; mas nunca os comprara de qualidade medíocre e baratos. À medida que trabalhava, é que ia vendo os que lhe faltavam e que precisaria comprar, logo que lhe fosse possível. Possuía o dom de saber empregar os materiais rudes e ordinários e de os afeiçoar, de lhes imprimir uma forma, com as mãos e com o cérebro. Susana não tinha apenas de construir o corpo humano segundo o seu envólucro carnal, mas também de ter em atenção o esqueleto de madeira, calcular as dimensões e a força da armação destinada a suportar a formidável massa de barro. Precisava de serrar, martelar, pregar, torcer fios de ferro e medir as proporções do pedestal. Nos seus cálculos entravam tanto os números como os sonhos.
Acondicionou as estátuas para poder expedi-las por barco. Envolveu-as em metros e metros de serapilheira por cima de muitos trapos macios. De pé sobre um banco alto, chegava às cabeças do homem e da mulher. O carpinteiro fizera-lhe uma armação exterior, em duas partes, segundo as suas indicações; estava pronta, esperando. Inteiramente protegida cada uma das figuras, aplicaria ao grupo aquelas duas partes, como se fossem duas conchas, e ligá-las-ia por meio de tábuas compridas, pregadas. E cantarolava: - "E isto será a glória para mim"; deteve-se logo, impressionada, para dizer a si mesma: - "É a primeira vez que canto, e fi-lo sem pensar".
Ouviu bater o portão do celeiro e, ao baixar o olhar, viu Miguel, que a observava, de cabeça deitada para trás,( na sua gola de peles.
- Não me tinha dito que andava a fazer uma obra tão formidável - observou-lhe ele em tom de censura.
- Não mo tinha perguntado...
- Desejaria que tirasse tudo isso, para poder ver.
- Oh, não! Está já pronto para partir. E, realmente, não poderia suportar agora qualquer
atraso, de um dia que fosse. Retardado já aquilo estava. Acabara um dia por escrever a Jonathan Halfred, e este havia-lhe logo respondido que tinha todo o tempo que fosse
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necessário; o local estava pronto. Nessa manhã, telegfafara-lhe: "Segue o meu grupo", ao que aquele respondera: "Será recebido condignamente". Apertou a última corda e desceu os degraus.
- Agora, é preciso ainda fundi-lo em bronze; mas, se for à casa de Halfred, daqui por uns meses, lá o verá.
- com efeito, tenciono ir habitar em Nova Iorque disse Miguel em tom indiferente. - Deixe-me ajudá-la a arranjar isso.
Pegaram ambos nas duas partes da armação.
- Sustenha-as assim juntas por um momento, enquanto ponho a primeira tábua transversal - disse Susana. E o seu martelo ressoou, rápido e firme, pregando cada prego no devido lugar.
- Há dias, vi Maria em Nova Iorque - disse Miguel, elevando a voz.
- Sim?
- Jantámos juntos e demos uma volta por Central Park, de carro, ao luar.
Susana deteve o martelo no ar, por um momento.
- Desgosta-o que Maria se recusasse a casar consigo?
- Nem sei - respondeu Miguel lentamente. - Talvez que não, enquanto me permitir que a acompanhe quando me apetecer.
- E ela fá-lo-á?
- Sim, faz - disse ele, baixinho.
Susana voltou rapidamente aos seus pregos. Miguel estava mudado. Não era já aquele rapaz de cabelos brilhantes, cuja cabeça ela modelara, a fim de que a mãe pudesse sempre lembrar-se de como ele fora belo.
- Está aqui, no campo, agora?
- Não. Vim buscar todas as minhas coisas. Não sei quando voltarei cá.
Ajudou-a a acabar a embalagem e depois, armado de um pincel e de uma lata de tinta preta, traçou em curvas largas a direcção que ela lhe ditou: "Andrew Kenley Fundição Kenley - Montanha Alta - Nova Iorque".
Ajudou-a também a fixar umas rodinhas por baixo da armação e a fazer deslizar, assim, aquilo tudo, para a porta do celeiro. No dia seguinte, de manhã, um lavrador, que ela conhecia, o levaria no seu caminhão. Pela sua parte, tudo estava pronto. Miguel seguiu-a até casa, no crepúsculo que caía.
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- Quer entrar? - convidou Susana.
- Não, obrigado. Tenho de voltar para a cidade amanhã, muito cedo
Via-se que estava muito agitado. Ela sentia-o no som agudo da sua voz, no seu olhar, em tudo o que fazia. A cabeça e o seu perfil desenhavam-se nitidamente, negros, contra o céu.
- Então, adeus - disse-lhe ela.
- Adeus!
Se voltasse a fazer o seu busto, ninguém acreditaria tratar-se da mesma pessoa. Aliás, Susana a si mesma perguntava se poderia tornar a fazê-lo, se o conheceria suficientemente para isso. Ficou de pé, à porta, deixando-o afastar-se. Já não fazia parte da sua vida; qualquer coisa lhe faltava, uma distinção clara e pura, que outrora emanava dele como uma auréola. Agora, não pensava senão em Maria, e a auréola desaparecera. Viu-o ainda subir para o automóvel e partir a toda a velocidade; depois, lentamente, entrou em casa.
Quando viu a caixa, sobre o caminhão, balançar-se ao longo do poeirento caminho do campo, pareceu-lhe que era todo o mundo que partia, deixando-a sozinha, para trás; e ali ao sol, nessa manhã de Primavera prematura, ficara como que paralisada por aquela nova solidão. João e Márcia tinham vindo lá de dentro, a correr, para verem o caminhão; depois, pararam ao pé da mãe. A certa altura, João disse a Márcia:
- Vamos lá para o barco.
- Que barco?-perguntou Susana.
- Um que estamos a fazer.
- Onde?
- No pomar - disse o pequeno, impaciente. - Mas a mãezinha, não costuma fazer tantas perguntas!
E nem esperou pela resposta; saltava já através da relva, seguindo um plano misterioso por ele inventado.
- vou com João - declarou Márcia. E lá partiu, saltitando.
Susana seguiu-os com o olhar, orgulhosa dos filhos, mas um pouco triste, até certo ponto separada deles. Apesar dos seus esforços, não seria capaz de substituir Marcos. Não possuía o dom que este tinha, de entrar no pequeno mundo atarefado das crianças. Nem estas podiam penetrar no seu.
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Talvez não encontremos, nos filhos, verdadeiros companheiros. Susana desejara-os ardentemente. Não se esquecia de que fora ela quem pedira a Marcos que lhos desse. E se ele vivesse ainda, continuaria a desejar ter mais, pois, quando trazia um filho dentro de si, experimentava a alegria duma criação que dentro dela se cumpria. Mas os filhos nascem, crescem e partem. Todas as criações de Susana se completavam e depois lá se iam, deixando de fazer parte dela. E de novo ficava sozinha, sempre.
Susana voltou ao celeiro e esforçou-se por limpar bem os seus utensílios; depois, contou-os e guardou-os. Limpou também os restos de barro da modelagem, varreu, lavou e pôs tudo em ordem. Pez uma lista dos seus materiais e tomou nota do que tinha a encomendar na primeira ocasião. Quando saiu do celeiro, ao meio-dia, tudo estava pronto para um trabalho futuro, e não fechou a porta à chave.
Agitava-se, buscando dentro de si a obra a começar, pois o trabalho se lhe tornara uma necessidade. Deu um longo passeio nessa tarde, interrogando tudo o que via: o lavrador com a sua charrua num campo, um falcão despedaçando um coelho morto, um faisão que o medo fizera sair do ninho; esse ninho -ali estava a seus pés, um monte da erva informe, cavado no centro, que continha dois ovos escuros. Mas nada disto lhe servia. Podia modelar crianças, pela sua beleza, ou mesmo, como já pensara em fazer, esculpir ria pedra a magnífica cabeça, tão irritável, do pai. Mas nem estas coisas teriam personalidade integral se não proviessem duma necessidade íntima do seu ser.
Sem dar por isso, errara até à distante orla da Floresta do Vagabundo e penetrou-lhe na espessura. Por cima da sua cabeça, as folhas novas já davam sombra e os musgos reverdeciam no solo. Baixou-se para apanhar um feto cujos elos encaracolados eram macios como cabelos de criança, e depois avançou até ao barranco. Depressa ali chegou, num ponto diferente daquele em que Marcos e ela se haviam detido, e que não conhecia ainda. Olhou para o fundo do precipício, assustada, sim, mas não recuou, como outrora fizera. Não tinha ninguém para quem se voltar, fosse qual fosse o seu medo. Sentou-se num rochedo e contemplou, sem tremer, a estreita torrente verde que rolava por entre as rochas negras, mas também sem descobrir naquilo qualquer significado especial. Aquelas árvores e
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aquelas nuvens, aqueles frágeis fetos, a seus pés, não eram assuntos que pudesse explorar. Precisava de modelos fortes. Os seres humanos, cujo corpo não é senão forma, eram esses a sua matéria.
"Tenho de ir e de encontrar gente", pensou; e a descrição desses mundos povoados, nunca visitados por ela e a respeito dos quais Miguel lhe falara, voltou-lhe de novo ao espírito. "Tenho visto muito poucas coisas. E a mim mesma pergunto como tenho sido tão feliz". Maria pretendia que a irmã era como morta naquela cidadezita, e Susana respondera-lhe, convencida, que a vida se encontra onde se vive.
"Mas neste momento não vivo. Nada se anima em mim, e, se coisa alguma se me revelar, as minhas mãos não terão que fazer, e então morrerei, na realidade".
Ergueu-se, assustada. Precisava de sair daquela floresta antes que viesse a noite. Apressou o passo e em breve se encontrou, com surpresa sua, longe das árvores e ao fim da rua onde Marcos e ela haviam, antes, vivido. A sua primeira casinha ali estava na sua frente, fechada, abandonada, e o jardim cheio de ervas daninhas. Ninguém a alugara ainda. Examinou então aquela casa com outros olhos. "Como pude eu viver numa casa tão pequena?" No entanto, bastara-lhe, em dado momento.
Então, bruscamente, enquanto ali se encontrava, toda a vida que levara até esse dia como que pareceu concentrar-se, encontrar-se ali contida na casa fechada, tornada agora pequena de mais para ela. A cidade, os habitantes, os seus antigos amigos, os anos passados, tudo se juntou em torno da lembrança de Marcos e foi sepultado com este. Tudo morrera. Só ela existia, com os seus dois filhos, não possuindo mais que o futuro, e era para este futuro que ela tinha de dirigir-se.
Desceu a rua rapidamente, naquele crepúsculo. Por um momento, os olhos poisaram-lhe na casa de Lucília. As persianas estavam levantadas e todos se encontravam reunidos em torno da mesa de jantar. Lucília, de pé, cortava o pão, fatia após fatia. Susana voltou a cabeça e prosseguiu no seu caminho.
Nessa noite, escreveu a David Barnes: "Quero sair daqui". Interrompeu-se, olhando, através da janela, um lindo crescente da lua e, depois, acrescentou: "Talvez até Paris, visto que o senhor aí. está".
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Terminada a carta, estampilhada e fechada, desceu a álea estreita e foi deitá-la na caixa do distribuidor rural. Depois, voltou, através da noite pálida, e dormiu como nunca lhe acontecera desde a morte de Marcos.
Na manhã seguinte, acordou bem disposta e com o coração aliviado. Cantarolou um pouco, enquanto se vestia, e anunciou logo a Joana, depois de ter vindo para o andar de baixo:
- Vamos todos para Paris!
Joana levantou os olhos, respondendo:
- Estou doente, minha senhora, mas espero que não morra, muito embora ainda há pouco o tenha desejado. Paris! Mas não sei francês; como hei-de fazer os recados?
- Um barco!... Um barco!-exclamava João.
- E quem virá viver para a nossa casa? - perguntou Márcia, muito séria. Estavam ambos os petizes a almoçar, instalados na cozinha.
- Ninguém - respondeu Susana. - Fechá-la-emos.
- E não voltamos mais?
- Não sei... É provável...
- Também o espero - murmurou Joana.
Depois de almoçar, Susana foi prevenir os pais. Estavam ainda à mesa. A mãe disse-lhe:
- Desejaria que me confiasses os meninos, Susana. Lá no estrangeiro a alimentação é tão esquisita!
Susana reflectiu um pouco. Como encarar a partida, assim, sozinha e livre para trabalhar? Mas não poderia separar-se dos filhos. À noite, teria de voltar para casa, e eles representavam para ela o único lar.
- Não saberia como passar sem eles - respondeu. Embora estivessem muito melhor consigo, desta vez tentarão a sorte ao pé de mim.
- Paris!... - repetia o pai. - Paris! Sempre esperei ir até lá um dia, mas nunca o consegui.
A notícia deu a volta à cidadezinha.
Lucília ofereceu a Susana uma sessão de bridge e aquela ouviu então exclamações em todos os tons: - "Que coragem, Sue! -E com os filhos!-Devo confessar que a invejo! - Paris é tão encantador!-Considerar-nos-emos felizes tendo notícias tuas, Susana!"
- Que vais lá fazer? - perguntou Lucília, que estava a engordar muito. Enquanto cortava um bolo de cor escura,
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fez uma careta e lambeu ao de leve o indicador, a que ficara colado um pouco de açúcar. E esqueceu logo Paris:
- Aqui têm, minhas senhoras! - exclamou. - É um bolo esplêndido, se bem que não devesse ser eu a dizer isto.
As senhoras que a rodeavam, todas novas ainda, também já não pensavam em Paris, nem em Susana, nem em coisa alguma fora da sua existência. E riam, exclamando:
- "Oh, sempre fizeste bolos maravilhosos, Lucília! - Oh! Lucília!..."
E esta, sorridente e muito corada, nem se lembrava, sequer, de que fizera uma pergunta.
- Todo o segredo... Mas não, nunca o sabereis. Se vo-lo dissesse, copiar-me-íeis, e eu nada teria já a oferecer-vos de especial, quando fôsseis a minha casa!
- Oh, que má! - Como ela é mesquinha! - Nesse caso, nem quero tocar no teu horrível bolo!
Silenciosa, com um sorriso nos lábios, Susana bem procurava acamaradar com elas, como fazia quando pequena; mas, apesar dos seus esforços, sentia-se tão isolada como antes, na floresta do Vagabundo.
Nenhuma das suas amigas era viva. Se Susana tivesse querido representar qualquer delas na pedra ou no mármore, a matéria rude tê-las-ia desfeito, reduzido a nada, pois que eram ocas. Não havia nelas material algum de que Susana pudesse fazer uso. E se tivessem podido imaginar os pensamentos da amiga, tê-la-iam detestado. Susana, no entanto, não sentia qualquer má vontade contra elas.
Sentada, escutava-as, observava-as, admirando os lindos vestidos e as lindas mãos que se agitavam entre as cartas. De manhã, algumas vezes lhe sucedera interromper o trabalho para olhar um bando de avezinhas, muito juntas e chilreando com quanta força podiam, em variados tons, mas fracos em demasia para poderem ser tomados como música ou linguagem falada. E observava-as, entretida, um pouco comovida também, por compreender esses pequenos anseios, que nenhuma relação tinham com os seus.
- "Devo pensar em lhes deitar umas migalhas", dissera para si mesma; e muitas vezes pensava nisto...
- Já se sabe que hei-de mandar-lhes alguns postais ilustrados - prometeu.
- Oh, que maravilhas tu vais ver, Sue!
- Mas têm de me escrever também a contar-me como vão os filhos e tudo o que se passar na cidade.
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Prometeram também:
- Não faltaremos, querida Sue. - Felicidades, Sue!- Oh, tenho de me despachar; Larry já deve ter voltado para casa.- Meu Deus! Seis horas já! Tomás vai morrer de fome, desta vez! -Adeus, Sue! -Até à vista, querida Sue!
- Adeus! Adeus!
Partiram os quatro para Nova Iorque. Susana capitaneava-os. Tinham todos os olhos fitos nela; e, de cada vez que se voltava, lá via a fiel Joana, com o seu ar acabado, levando as crianças pela mão, uma de cada lado, de olhar espantado e ansioso.
- Eu já sou muito grande para ir pela mão, Joana murmurou João, puxando a sua.
-? Não os largarei, nem a um nem a outro, enquanto não chegarmos - respondeu ela, severa, com o suor a aljofrarrlhe o lábio. E o petiz teve de resignar-se.
Susana deixou-os num quarto de hotel enquanto saía para comprar os bilhetes e informar-se a respeito dos vapores no porto.
- Feche a porta à chave, minha senhora-disse Joana.
- O menino João é terrível quando se põe a discutir e eu não quero sair enquanto a senhora não tiver voltado.
Fechou-os, pois, meteu a chave no saquinho de mão e foi tratar do que tinha a fazer, até ter tudo pronto. Depois, durante as poucas horas que precederam a saída do barco, levou Joana e os filhos ao Hospital de Halfred, e, com certo acanhamento, explicou-lhes:
- Vêem? É ali, naquele vestíbulo envidraçado, que vão pôr o grupo que eu fiz.
- Sim, senhora!-disse Joana, circunvagando um olhar vago pelo grande recinto.
- Olhe, mãezinha! - exclamou João. - Um homem com balões!
- Onde? - perguntou Márcia. E correram para a rua.
- Além!
- vou dar-vos um a cada - e voltou-se tranquilamente, para os comprar. Realmente, pouco ou nada podia interessar às crianças saber onde colocariam o grupo que executara.
Já no barco, ao deixar o único país que então conhecia, Susana contou cuidadosamente o seu dinheiro.
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Sozinha não se teria preocupado com saber quanto levava; mas, agora, três criaturas dependiam dela, em absoluto. Examinou os bilhetes e viu se os cheques estavam ainda onde os pusera. Joana caminhava a passos largos na coberta, de mãos firmemente agarradas às mãozinhas inquietas dos meninos.
- Olharei por eles enquanto estiver a pé, minha senhora - havia ela dito a Susana. - Deitar-me-ei quando deixarmos o porto.
- Então, vou desemalar algumas coisas.
No camarote, Susana tirou para fora os pijamas e as escovas dos dentes, e tornou a contar o dinheiro. Tinha ali o do seu prémio e retirara do banco metade da importância do seguro de Marcos. Isso devia chegar, sob a administração de Joana, para poderem viver um ano. Entretanto, seria preciso ganhar para o ano seguinte. O seu trabalho representava não só uma arte, a satisfação dum desejo, duma necessidade, mas também o pão dos seus filhos e um tecto onde se abrigassem.
Voltou-lhe à mente a lembrança do último momento, em que se preparava para fechar a porta da casa. Experimentou então certo receio. Abandonava um abrigo, o único abrigo que possuía, para ir, sem motivo especial, para um mundo desconhecido. Mas não desejaria, de modo algum, dormir uma noite mais, que fosse, naquela casa. Sentia desejos de partir à aventura, sentia-se mesmo forçada a fazê-lo.
Interrogou o coração: "Tenho medo? Não. Eu sou forte"
- disse para si mesma, sem hesitar. Penteava os cabelos em frente do espelho, com grandes gestos rápidos. Tinha o rosto crestado pelo ar livre do campo, queimado pelo sol, e o corpo firme, potente, pois que, desde o dia em que decidira ir a Paris, deixara de existir a falta de energia que, depois da morte de Marcos, a tornara tão débil. Sentia-se capaz de qualquer esforço, por maior que fosse. Um ano! O que não faria ela, num ano?!
A porta abriu-se e Joana apareceu no limiar, de rosto coberto duma palidez esverdeada.
- Deixámos o porto, agora - disse em voz sumida.- Tenho de ir deitar-me - e empurrou os meninos para diante de si. - Não se esquecerá deles, minha senhora, entregando-se aos seus sonhos?
- Não. Não sonharei.
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- É preciso olhar por eles -disse aquela ainda, agarrada aos pequenos e com a cabeça apoiada à ombreira da porta...
- Certamente - concordou Susana. E olhou pela vigia. O barco levantara a âncora e avançava lentamente para o mar.
- Ora bem, Susana Gaylord - disse David Barnes-; cá está, finalmente!
O comboio deslizara até à estação, através dum pardacento Paris matinal., e logo, ao parar, a cabeça do escultor aparecera à portinhola.
- Cá está a família toda - acrescentara logo. - Vamos, venha; reservei-lhe um quarto, para si, numa pensão de família, e penso que talvez lá possa arranjar outro. Julgava que viesse só. Nunca imaginaria que arrastaria os garotos consigo.
- De outra maneira, não poderia vir - volveu Susana. Sem lhe responder, Barnes começou a vociferar com
um moço rubicundo; fez-lhe pegar nas malas, passou para a frente e furou através da multidão, atirando cotoveladas a um e outro lado. E ordenou:
- Sigam atrás de mim.
Conduziu-os até uma das portas, meteu os dedos à boca, lançou um assobio agudo e logo um táxi avançou para fora do nevoeiro.
- Arrumem-se aí dentro - disse; e, depois de todos terem entrado, fez-se tão pequeno quanto possível ao lado de Susana e gritou a direcção ao condutor.
- Tem tudo pronto, cá. Irá todas as manhãs, às oito horas, ao estúdio. Tem aqui o endereço. Está tudo escrito. Trabalhará lá com esse homem, que lhe ensinará um milhão de coisas que ainda não sabe. À tarde, por enquanto, virá a minha casa como aprendiza. Até agora, nunca a fiz trabalhar. Tratei-a como mulher, mais ou menos. A partir de hoje, isso acabou, deixa de ser mulher. É escultora. E não terá razão de queixa a respeito do que lhe mandar fazer. Aprenderá tudo. Já viu alguma vez uma fundição?
- Ainda não.
-Ah!...- e olhou as crianças. - Por que as trouxe?
- Eles são o meu lar. Barnes resmungou:
- Que precisão tem dum lar?
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Susana não protestou, mas também não estava disposta a deixar-se intimidar por ele. À porta da pensão, voltou-se e estendeu-lhe a mão.
- Foi tão amável! - disse-lhe, sorrindo. - Agora, de nada mais precisamos. Amanhã pela manhã irei ao estúdio, e de tarde procurá-lo-ei.
- Aqui tem a minha direcção-respondeu Barnes, dando-lhe um pedaço de papel. - Escrevi tudo aí. Estes nomes franceses não são fáceis de fixar... está bem assim?
- Absolutamente.
- óptimo - resmungou ele; e lá se foi, em meio do nevoeiro, a passos pesados.
Joana interrompeu a gorda francesa loira, que viera recebê-los:
- Onde vamos agora, minha senhora? - perguntou.
- Vamos almoçar e depois olhará pelos meninos, enquanto vou à procura duma casa para morarmos.
Seguiram a mulher ao longo duma escada escura mas asseada, e aquela fê-los entrar num grande quarto claro e nu.
- Un moment! - disse a francesa. - Et je vous apporterai lê petit déjeuner.
- Que diz ela? - perguntou Joana, desconfiada.
- Que nos traz já de comer - disse Susana, em tom alegre. - Joana, não a olhe dessa maneira, como se tivesse medo de que ela a matasse!
Mas Joana estava já a examinar o jarro de água, dentro da bacia:
- Nunca poderemos lavar-nos bem, assim; os franceses são, com certeza, pouco limpos.
- Não ficaremos a viver aqui - observou-lhe Susana.
- Tenho de procurar uma casa para nos alojarmos imediatamente, porque amanhã começo já a trabalhar, Joana, como nunca na minha vida trabalhei. É preciso.
- E aquelas framboesas todas a perderem-se lá em casa!... - murmurou Joana, enquanto tirava com jeitinho o chapéu e a capa de Márcia. - Vamos, queridinha; vamos lavar-nos e comer; e depois dormirá bem, cansada com tal noite. Que comboio aquele, minha senhora! Menino João, essa cara não está bem lavada!
- Vão todos descansar, depois - disse Susana com meiguice. - Eu vou procurar um sítio agradável para vivermos, e iremos para lá esta tarde.
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Susana não fazia ideia nenhuma do que iria encontrar. Mas precisava de achar uma solução. Não tinha senão esse dia, e não pediria qualquer adiamento sob o pretexto de que era uma mulher com dois filhos. No seu francês de colégio, embaraçado, enquanto Joana ia pondo manteiga e mel nos pãezinhos, Susana interrogou a gorda mulher loira a respeito dum local habitável: - "Junto dum parque, sendo possível, por causa das crianças, mas não caro".
- Sim, compreendo bem - respondeu a mulher vivamente.- A senhora é artista; e há as crianças. Sim, senhora, há casas, há partes de casa, algumas baratas, se não se importa de viver entre gente pobre, mas asseada, já se sabe, como todos os franceses. Entre nós, miséria não implica falta de limpeza. Não somos como os ingleses, louvado Deus! Até existem casas como pretende, nesta mesma rua. Deseja que o parque seja muito grande? Ao fim da nossa rua há um pedaço de terreno, onde colocaram a estátua dum velho general da província. Bem vê, foram pessoas lá da terra dele que a ofereceram e, vamos, não é muito bonita para Paris. Mas que quer? Tratava-se de uma oferta, e nós somos cheios de delicadeza, nós, os parisienses. Então, as autoridades mandaram colocar a estátua ali, entre os humildes. Não é bem no parque; mas os pardais vão muito gentilmente poisar-se-lhe sobre os ombros; tanto assim, que está toda cinzenta, sob a camada dos excrementos. Há também ali um banco, um pouco de relva e uma árvore; e depois, a rua é bastante larga.
- vou já ver - disse Susana.
Mas ao chegar à porta, voltando-se para um último cumprimento, apercebeu-se do ar aterrorizado de Joana.
- Se acontecer alguma coisa, minha senhora, não saberei dizer uma única palavra.
Susana riu-se.
- Nada há-de acontecer; mas aqui tem a direcção de David Barnes. - Deu o bocado de papel a Joana e saiu só.
Descendo a rua, que ainda não conhecia, indo de uma casa para outra e não vendo senão pessoas estranhas, sentia-se também reconfortada com aquele nome e aquela direcção rabiscados numa folha dum caderno de apontamentos.
Na comprida rua sinuosa, visitou todas as casas que tinham escritos, para alugar. Ouviu as explicações intermináveis e veementes: o sol penetrava por tal janela, mesmo
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no Inverno; ali, nunca se ouvia o barulho das carroças, de madrugada, nem os pregões dos vendedores; e tal quarto, que parecia sombrio, era miraculosamente fresco no Verão e quente no Inverno. Mas ela não se sentia em sua casa, em parte alguma. Necessitamos de sentir que um quarto está pronto para receber a vida; e nenhum deles a acolhia.
Chegou, enfim, ao extremo da rua. Mais valia ir ela mesma ver esse pedaço de relva e examinar se bastaria, como parque. Ali estava, já. As altas casas estreitas, de tectos irregulares como pontas de rochedos, afastavam-se de repente para servirem de lados a um pequeno quadrado arrelvado. E lá estava também, de facto, sentado debaixo dum castanheiro, única árvore que por ali se via, um velho general, de pedra cinzenta; Susana atravessou a rua e foi postar-se-lhe em frente. Haviam-no esculpido em granito da região. O escultor não devia saber servir-se muito bem dos seus utensílios, mas tinha trabalhado com amor. O uniforme era rígido e feio; havia, porém, ternura e bondade nos traços daquele rosto, e várias medalhas se ostentavam no velho peito altivo. Os pardais tinham-no, realmente, tomado à sua conta. Poisavam-lhe, em bandos, na cabeça e nos ombros. Um casal de pombas tinha mesmo ido fazer ninho no intervalo do braço. Em meio dessa cidade brilhante, azafamada e indiferente, o velho encontrava-se exilado, e só as aves lhe prestavam atenção.
"Gostava bem de morar aqui perto dele-disse para si mesma. - As crianças distraíam-se e Joana sentar-se-ia, a trabalhar, neste banco vazio". Em frente, nos quatro lados, havia lojas onde se fornecessem. Susana atravessou a rua e examinou as casas atentamente. Por cima de uma confeitaria, notou um escrito anunciando quartos para alugar; foi lá. Por detrás da montra com pãezinhos e bolos, uma mulher limpa e franzina, de cabelos brancos, fez-lhe um cumprimento amável. Levou depois Susana por uma escada íngreme e estreita, ao lado da porta do estabelecimento. Susana encontrou-se logo defronte de quatro divisões, muito asseadas, que comunicavam umas com as outras. Dirigiu-se para a janela e viu, lá fora, a cabeça inclinada e forte do velho general, e os seus ombros recobertos de uma camada cinzenta. O castanheiro estendia uma pernada verde em frente da vidraça.
"Isto servia-me", disse para consigo; e, dirigindo-se à velhinha, perguntou:
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- Poderíamos entrar já?
- Decerto, pois estão para alugar. Quanto mais depressa melhor, para a senhora e para mim.
Havia dois quartos. Joana ficaria no maior com as crianças; Susana poria ali um biombo para João. E reservaria o mais pequeno para ela só. Chegava muito bem.
Abriu a bolsinha do dinheiro e depôs o aluguer de uma semana "na palma enrugada e corada da velha senhora.
Todas as manhãs, Susana deixava a agitação daquela pequenina casa, toda atravancada: o alegre tagarelar em torno da minúscula mesa de jantar, que tinham levado para ao pé da janela; os pardais apanhando as migalhas depositadas pelos pequenos sobre o peitoril; Joana, com a sua inesgotável e desconfiada satisfação causada pelos modos tão perigosos dos estrangeiros e pela barafunda, os ruídos estrídulos, a energia com que a rua despertava para a vida matinal. Metia-se num ónibus, que a levava até ao extremo da cidade, a um enorme estúdio silencioso, onde o famoso escultor trabalhava. Na primeira manhã em que ali se apresentou, uma mulher com trajos e touca de camponesa pegara no cartão, dizendo-lhe em tom forte:
- Faça o favor de entrar e esperar.
Susana ficou de pé no pequeno vestíbulo empedrado, até que a mulher voltou, repetindo:
- Faça favor de entrar para o estúdio e esperar um pouco.
Entrou numa sala muito comprida, cheia de estátuas de mármore e alguns vultos tapados. Os minutos passavam, intermináveis, enquanto aguardava. Pôs-se a passear de cá para lá, mas ninguém aparecia. As janelas eram altas, e não distinguia mais que os cimos verdes das árvores; a espessura dos muros não deixava também filtrar qualquer som lá de fora. A mulher não voltou mais, e pareceu a Susana que a haviam metido ali, esquecendo-a.
Sentou-se, mas logo tornou a levantar-se, agitada. Circulou de novo entre as estátuas, mas, por fim, uma espécie de cólera se apoderou dela e sentiu a necessidade de sair e abandonar aquela casa. Um grande andaime, ao fundo da sala, atraiu então o seu olhar. Não o vira ainda, porque a sala fazia bruscamente um ângulo recto, seguindo ao longo de outro lado da casa. Foi até ali, cheia de curiosidade, e viu no interior um formidável bloco de
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mármore, meio esculpido com uma cabeça enorme, audaciosa. A cabeça e os ombros dum gigante estavam ali esquadriados, em traços duros e seguros. Observou esse bloco, impressionada pelo seu tamanho enorme, incerta quanto ao que ele viria a ser, e depois, incapaz de se conter, subiu a escada até ao cimo do andaime. Ali, sobre a tábua superior, viam-se diversos utensílios dispostos em ordem. O coração pulou-lhe à vista deles, e Susana levantou-os com cuidado, um após outro. Eram verdadeiras ferramentas, estas, delicadas e duma têmpera que satisfazia o sonho de qualquer escultor; instrumentos de mestre, admiráveis, fortes e leves. Pegou num cinzel e num macete. Estavam mesmo bons para a sua mão, como se o fabricante os tivesse feito por medida. Inclinou-se então para aquela cabeça gigantesca, inconscientemente forçada a experimentar o ferro sobre o mármore, e deu um ou dois golpezinhos com o cinzel. Era como se estivesse a servir-se dum pincel; o gume mordia tão suavemente e com tal precisão! Onde poderia adquirir ferramentas assim?
- Desça! - ouviu dizer a certa altura. A voz era tão doce e tranquila, que Susana quase nem se assustou. O som fizera-lhe deter as mãos sem que ela mesma sentisse qualquer abalo. Baixou o olhar através do andaime e viu uma cabeça erguida para ela, grande, escura, barbuda.
- Desça! - repetiu o homem. Tornou a colocar as ferramentas com cuidado nos seus lugares, desceu e encontrou-se face a face com um velho gigantesco, que envergava uma blusa castanha. De si, ele era já escuro como uma lontra, tanto a pele como os olhos; só a barba, de que fazia gala, era branca.
Ouviu-lhe a voz, tornada formidável de repente, de tal modo que Susana estremeceu. Berrava ele:
- Então, é a menina quem termina essa cabeça, em meu lugar? Uma rapariga que não conheço, que recebo apenas em atenção ao meu amigo Barnes, entra aqui e condescende em acabar, por mim, o meu trabalho. Muito obrigado, minha menina!
Os dedos, metidos pela barba, puxavam-na e torciam-na.
- Onde poderia eu encontrar uns instrumentos assim?
- perguntou Susana. - Preciso deles.
- E agora, quer ainda tirar-me as ferramentas! - exclamou o velho. Voltando-se, dirigiu-se às estátuas, a todos os seus trabalhos: - Meus amigos, as ferramentas. Onde estão?
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Ela reclama-as, a essas ferramentas que vos fizeram; dai-lhas, vamos!
- Por favor!-disse Susana.
Ele respirou fundo, colérico, tossiu, e depois, de repente, tornou-se razoável:
- Mas enfim, minha menina, o que é que a trouxe cá?
- O desejo de aprender, simplesmente - respondeu Susana com energia. - Aprenderei tudo o que o senhor puder ensinar-me.
- Nesse caso, a tarefa é inesgotável - disse ele, gravemente. Parou e torceu a barba, de olhos a brilhar. Volte outra vez lá acima e traga-me as ferramentas. Começaremos por aí.
Susana subiu a escada e apanhou os ferros, um a um.
- Note bem... - e, durante duas horas, falou-lhe dos instrumentos do ofício.
- Veio atrasada - resmungou David Barnes, de tarde.
- Que aprendeu hoje?
- Onde adquirir ferramentas. Gastei nelas metade do meu dinheiro, metade do pão de meus filhos.
De pé em frente duma secretária inclinada, aquele desenhava; ergueu a cabeça.
- Eu já lhe tinha dito que não era boa mãe - disse no seu tom de voz rude e gritante; mas os olhos brilhavam-lhe, olhando-a.
Susana não fazia senão desenhar, aprender a fazer armações, a amassar o barro, a preparar o gesso. Esqueceu que não tinha um corpo de homem e dobrou o ferro, torceu pesadas varas de metal, mediu a resistência e a carga duma gigantesca estátua de argila. Tudo o que até então sabia, reduzia-se a nada, tanto lhe faltava ainda aprender.
- Calcule - ordenou-lhe o Mestre - se o Laocoonte fosse feito de barro, que dimensões e que forma deveria ter a armação para poder aguentá-lo?
E ela ficou horas sentada, como uma estudante, calculando, mordendo o lápis, resmungando multiplicações, e quando, enfim, lhe levou o desenho, o Mestre desatou numa risada enorme, semelhante a um rugido.
- Oh, que tolice! - exclamou. - Ruiria, viria tudo por terra!
Susana ficou de pé, com o olhar fixo nas linhas rápidas que sobre o papel traçava o lápis preto do Mestre.
- Aqui tem - disse este - assim, a menina
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compreende... - e Susana sentia aquele traço negro, vigoroso, riscar-lhe o cérebro.
...Dera o resto do seu dinheiro a Joana, e esta guardara-o, não despendendo mais que no aluguer e na comida, como se do próprio sangue se tratasse.
- Prevenir-me-á quando já não houver mais que para um mês - recomendara-lhe Susana. Mas Joana nada dissera ainda...
O Mestre explicava:
- Em primeiro lugar o artífice; depois o artista... e isto pode até nunca chegar; tudo depende do que há lá no fundo, minha menina. Não podemos fazer-nos artistas; ou o somos, ou não o somos.
Susana não se atrevia a perguntar directamente: "E eu, sou artista?" Só a si mesma devia fazer esta pergunta e responder-lhe.
- A alma... - disse Barnes ainda, afiando com gestos delicados um fino cinzel - tudo depende da alma. Um pequeno talento e uma grande alma são preferíveis a um grande talento e uma alma mesquinha. E quando alma e talento têm a mesma envergadura, então... Vi isto uma ou duas vezes.
Ergueu a cabeça vivamente e olhou-a com olhos que brilhavam por trás das sobrancelhas escuras e espessas.
- Não tem nada a perguntar-me?
- Não-respondeu tranquilamente Susana.-Por agora, nada tenho a perguntar.
O Mestre continuou a afiar o cinzel. Depois, parou e retorceu as pontas do bigode. Entre este e a barba, os lábios luziam ainda, espessos e vermelhos. E declarou:
- A senhora não é mulher, sabe? Mulheres não perseguem a arte, como a vejo fazer. Só se lhe dedicam quando a vida lhes recusou aquilo que mais ardentemente desejavam. Mas, quanto a si, quase acreditaria que é isto, precisamente, o que mais deseja. O seu coração é transparente e frio, sinto-o.
Susana sorriu, sem responder. Ele falava-lhe muito. E ela sabia muito bem que, ao mais ligeiro frémito das suas pálpebras, ou a um tremor da sua mão, ele se arrojaria sobre ela com aqueles lábios vermelhos e quentes. Ouvira alguns bocados de conversa, entre os alunos, antes de o Mestre entrar: vários dos modelos eram amantes deste. Susana não escutava, pois não achava naquilo
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interesse algum. Percebia bem o que ele era: um ser ardente, em fusão; o calor corria-lhe pelas veias e, inflamado sempre, estava pronto, sempre também, a agarrar a paixão onde quer que esta se lhe deparasse. Mas Susana nenhum caso fazia das histórias que a respeito dele se contavam e que não valiam a perda de qualquer parcela de tempo. Olhava-o com grandes olhos cândidos e a mão conservava-se-lhe firme.
- A menina Gaylord é um pouco estúpida, às vezes, creio eu. Os seus olhos têm ainda a estupidez da infância.
- De facto, não tenho coisa alguma de intelectual aquiesceu, pacífica.
- Então, não trabalha com o cérebro?
- Não; com o cérebro, não.
- Nem mesmo tem coração - observou ele, bruscamente.
- Também não! - respondeu.
- Trabalha, então - gritou ele - com o estômago, não é assim?
Ela reflectiu e depois concordou:
- É possível.
- Ah! Nem sabe coisa alguma, absolutamente nada, sobre si mesma.
Uma tarde, no estúdio de David Barnes, Susana perguntou:
- Como hei-de eu saber o que sou?
Trabalhava numa placa de bronze, que esfregava com ácidos, estudando a patina. David Barnes respondeu:
- Se as ferramentas e os materiais lhe bastam, está bem. Você não é uma artista. Aprenda o ofício e, se isso a satisfaz, pronto. - E interrompeu-se, assobiando devagarinho.
- Então?...
- Será uma excelente ajudante, uma esplêndida desbastadora, para escultores como eu.
- Isso nunca poderá chegar-me - exclamou aquela, vivamente.
- Muito bem. Nesse caso, descubra o que poderá satisfazer-lhe a alma. - Estava sentado à sua grande mesa de desenho. Em volta desenrolavam-se largas folhas de papel, nas quais desenhava.
- Tenho de ir à América, no próximo ano -
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murmurou depois. - Vou fazer o Edison. - E olhou para Susana, acrescentando logo: - A dificuldade está em descobrir os Titãs. Uma vez encontrados, é fácil fazê-los. Mas quais são eles? Não é difícil escolher entre os que passaram já à história. A própria morte se encarregou da escolha. Mas a vida é menos clarividente. Em meio dos vivos, como discernir o maior, entre este e aquele?
Susana nem o ouvia. Havia semanas que trabalhava mais com as mãos do que com o cérebro. Todo o seu interesse fora absorvido pelo fabrico de moldes de gesso, pela preparação do mármore, a substância do bronze, os processos de moldagem. David Barnes alugara um carro e levara-a ao longo duma rua empedrada até a uma velha fundição, que se estendia num terreno vasto. Queria estar ali quando o fundidor, ajudado pelos dois filhos, retirasse do gesso o seu Napoleão. Susana estivera ao pé de Barnes, assistindo ao acabamento deste molde.
Agora, enquanto esperava, pôde ver como as artérias batiam na maxila do escultor, e surpreendeu nele uma expressão feroz. Mas Barnes sentiu o olhar de Susana e explicou:
- Nunca pude atravessar o momento em que a minha maqueta de barro é destruída, sem me sentir num suplício. É que é esse, de facto, o trabalho das minhas mãos. Quando estes homens mo tiram, embora saiba muito bem que assim é preciso, é com pena que lho entrego. É aquilo que eu criei. E se fossem cometer algum erro? Nunca conseguiria refazê-lo exactamente.
- Já alguma vez lhe sucedeu ter de começar de novo?
- Não. Mas sofro, apesar disso; e, no entanto, quando o bronze me chega, vindo da fundição, é como um novo nascimento: e o que era meu é-me restituído, mas completo e permanente.
Nunca deixara, como outros escultores, que o artífice lhe terminasse o bronze. Era ele mesmo quem o fazia. Não conseguia tomar alimento algum antes de saber se o trabalho resultara bom ou mau. Susana e ele poliam as superfícies lisas, fazendo-as reluzir e brilhar, peça a peça. E não era senão quando a obra estava definitivamente pronta, que rugia então, gritando que morria de fome. Punha o chapéu de qualquer maneira, saía e voltava logo com um grande bife, que grelhava sobre os carvões e que partilhava com Susana.
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...Nessa noite, voltou tarde, como sucedia por vezes. Caminhou pelas ruas de Paris, quase desertas já, de olhos fixos na sua frente por causa das formas solitárias que surgiam da sombra e a roçavam. Os seus trajos eram demasiadamente pobres para tentarem um ladrão, e o seu olhar, absorto e firme, não atraía os noctívagos. Se um bêbedo se lhe atravessava no caminho, afastava-o com a mão. O espírito ia-lhe preso apenas daquilo que ia aprendendo.
Neste tempo, comparecia todos os dias na fundição; observava o metal em fusão, que se agitava no cadinho, e via correr para dentro da forma o pálido líquido ardente. Inclinava-se então para a frente, esquecida das faúlhas e do fumo, até o molde estar bem cheio. Susana desejava com ardor, da mesma forma como desejara os filhos, chegar a fazer uma estátua completa, desde o barro até ao bronze. Criar as maquetas de barro não é mais que conceber. E ela queria ir até à criação absoluta: o barro em primeiro lugar, depois o molde em gesso, e enfim o bronze polido, bem liso. Mas ninguém fazia isto, nem sequer Dayid Barnes. E os outros escultores, que por intermédio daquele foi conhecendo, não se ocupavam senão do barro plástico. Conceber uma ideia e representá-la em barro já os satisfazia. Enviavam as maquetas e voltavam a recebê-las, sem se importarem de saber como é que, de barro, se haviam transformado em bronze. Mas Susana sentir-se-ia incompleta enquanto não franqueasse cada fase com a ajuda das suas mãos... "Sou artífice, ou artista?" perguntava a si mesma em voz alta, na obscuridade da rua.
O Mestre não cessava de repetir-lhe que as mulheres não podem ser artistas. São muito passivas, muito desprovidas do frio desejo de perfeição, muito preguiçosas. Não sabem dar-se, são máquinas e não criadoras, e falhas de imaginação. Susana ouvia-o e reflectia no que lhe dizia. Mas ela não se parecia com as outras mulheres. Um dia, declarara a Marcos, apaixonadamente, que não queria ser diferente; mas agora notava que, de facto, o era. As outras mulheres não trazem nelas aquele incessante desejo de perfeição na modelagem do barro e na escultura do mármore. As outras mulheres não deixam os seus lares para atravessar o mar e fazer estudos. E ela sabia bem que, se Marcos vivesse ainda, partiria mais tarde ou mais cedo, mesmo sem ele; tê-lo-ia deixado e viria sozinha, embora lhe confrangisse o coração. Antes morto. Depois, revoltou-a
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esta ideia de a morte de Marcos lhe parecer um benefício. Sentiu-se envergonhada, mas persistiu em dizer a si mesma, com obstinação: "Tenho de fazer o que o destino me ordena".
Chegou ao largozito e, na obscuridade, lá estava a silhueta do velho general, mais pesada ainda; abriu a porta que levava à íngreme escada, abandonando aquela pergunta cá fora, na noite, sem qualquer resposta. Em cima, à luz duma lâmpada, Joana consertava uma das peúgas do Joãozito, que enfiara na mão.
- Como estão?
- Os meninos tiveram hoje um dia muito bom. Levei-os num ónibus até aos jardins de que o polícia me falara. Há aí um, minha senhora, lá ao fundo da rua, que fala quase como um cristão.
- Veja lá não vão perder-se; como havia de tornar a encontrá-los, depois?
- Não perco, minha senhora; vejo sempre o caminho à ida, e volto pelo mesmo.
Susana entrou, nas pontas dos pés, no quarto grande onde os filhos dormiam, metidos nos seus leitozinhos. Puxou uma cadeira e sentou-se. Dormindo ou acordados, davam-lhe eles uma coisa que não procurava analisar, mas que lhe era indispensável. Os seus corpos pequeninos, o som das suas vozes, o seu tagarelar e o seu riso, todo o conjunto desses seres é que lhe fornecia uma base real à vida. Não os vira em todo o dia, e até mal pensara neles. Mas voltara à noite, porque estavam ali. À luz fraca de uma lamparina, distinguiu a cabeça de João, com a face apoiada numa das mãos, na atitude calma, bem ordenada, que convinha ao seu feitio. Márcia, essa, dormia toda estendida, braços abertos, cabelos esguedelhados, tal como o sono a surpreendera. Se não tivesse esses dois filhos, a fazerem-lhe um lar, para junto de quem iria ela, à noite, quando regressasse do seu trabalho? David Barnes tinha um leito de campanha por detrás dum biombo, no seu estúdio, e nem procurava saber se era dia, se noite. Dormia quando já não podia trabalhar. Ela, porém, tinha necessidade de abrir uma porta por trás da qual encontrasse uma lâmpada acesa e a mesa posta, e de sentir que seus filhos repousavam abrigados. E entrou pé ante pé, satisfeita.
Joana levantou-se para ir buscar o jantar. Susana sentou-se no seu lugar, passou as mãos pela peúga de João e
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fez correr a linha pelas malhas do conserto. Gostava de sentir as mãos ocupadas nesse trabalho íntimo e familiar.
- Como está crescido, o seu pèzinho! - disse para Joana.
- Tem de ter o tamanho relativo aos seus seis anos, minha senhora. - E Joana pôs sobre a mesa uma tigela de sopa. - Esta receita deu-ma a senhora cá de baixo e de quem não há maneira de eu poder saber dizer o nome. Mas a sua sopa é, de facto, boa. Cheirou-me logo, um dia, ao entrar em casa. "Que é isto?" disse eu, sorvendo pelo nariz, para lho explicar, porque é de compreensão lenta para a língua; então, levou-me dentro de casa e mostrou-me: cenouras, cebolas, um pouco de couve e a carne que houver.
- É óptima! - declarou Susana. Esquecia-se até de comer e, ao voltar, o perfume e o paladar da comida davam-lhe uma fome voraz.
- Talvez seja preciso mandar João à escola - disse ainda para Joana, que trazia uma salada.
- Seria bom para ele, decerto - respondeu Joana, servindo-a -; mas é pena que tenha de estudar às suas lições nessa língua que cá têm.
- Creia bem que vou dispor para mim do meu dia de amanhã e tratar de arranjar uma escola - declarou Susana. Havia muito tempo que não ficava uma tarde junto dos filhos. De tempos a tempos, sentia a necessidade de reconciliar-se com eles. "É preciso que não se esqueçam de que sou eu a sua mãe", pensou, ciumenta.
E, durante um dia, os pequenos não viveram senão com ela.
- Quero que seja a mãezinha a apertar-me o vestido. Vai-te embora, má e velha Joana.
- Mãezinha, eu desenhei uns pássaros - disse João.- Quero que os veja.
Depois de terem almoçado, levou-os a casa do senhor "Withers, o clérigo inglês que uma vez viera visitá-la.
- Andamos à procura duma escola para o João - disse. Encontravam-se numa pequena saleta, agradável, que
dava para uma rua de Paris velha e tortuosa e a mulher do clérigo, muito pequena, perguntou-lhes:
- Querem bolachas, meus meninos?
- Deixe-me reflectir - disse o clérigo.
- Uma escola francesa - acrescentou Susana.
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- Ah! Não acho que seja razoável ensinar-lhe numa língua estrangeira.
- Não o é, decerto - observou também a senhora Withers em voz suave. - Não o deixe perder a sua nacionalidade. É uma tentação tão grande! Sucumbimos sem dar por isso. Às vezes, até me sinto estranha quando voltamos à nossa querida Inglaterra. Se não fosse pelos fiéis, pelas ovelhas do Withers em Paris...
Afinal, Susana meteu João numa pequena escola frequentada pelas crianças da vizinhança. Não era uma escola conhecida do senhor Withers, nem que este aprovasse. Mas os pequenos franceses, rapazes e meninas, para lá iam todas as manhãs, asseadinhos, com os bibes de algodão. Susana foi até lá, no regresso da casa do senhor Withers.
- Certamente - exclamou a professora, de rosto fresco
- por que não, minha senhora? Não temos dúvida alguma em admitir pequenos ingleses, se consentem em aprender a nossa língua. Tem então seis anos? Um homenzinho! Os ingleses crescem tanto!... Ah! É americano. São ainda maiores que os ingleses... Amanhã, sim; por que não?
Depois, Susana levou-os ao Louvre. Detiveram-se em frente da Vénus de Milo.
- A mamã é capaz de fazer uma estátua exactamente igual a esta? - perguntou João.
- Não sei. - Susana esquecera-se da pergunta que a si mesma fizera na noite anterior e que, bruscamente, lhe voltou à ideia. Como aquelas superfícies eram lisas e os planos fluidos! Ângulo algum vinha quebrar a harmonia daquelas formas.
- Repara, João - observou com calor. - Toca-a. E levantou-o, a fim de que ele pudesse sentir o contacto do corpo liso.-Olha: as linhas deslizam, como se fossem água! Recordas-te da curva da vaga à proa, quando o navio fendia o oceano?
Os pequenos olhavam a mãe com grandes olhos atónitos.
- Venham, é tempo de voltarmos - disse-lhes. E, em casa, fê-los jantar, lavou-os e deitou-os.
João protestou:
- Eu posso muito bem tomar banho sozinho. com a Joana, sou eu que o faço sempre.
- Mas deixa-me limpar-te, apenas - pediu-lhe a mãe, quando ele saiu da banheira de zinco que Joana enchera com o auxílio dum jarro.
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E limpou-o, palpando-lhe a sólida magreza do corpo. As redondezas iam desaparecendo. Desenvolvia-se em linhas e em planos. Olhou-o um momento, como faria com uma estátua; o contorno do ombro e da coxa, o porte da cabeça... Estivera com eles todo o dia, com grande regozijo dos pequenos. Também ela se sentia feliz. Quantas vezes estendera o braço para lhes tocar, para os acariciar, pegar-lhes nas mãos, mas quando, assim, se sentia satisfeita, por um lado, por outro, uma ânsia enorme a torturava.
Depois de os meter na cama, disse a Joana, bruscamente:
- vou dar uma volta por aí, antes de me deitar.
Aberta a porta, a pergunta que deixara lá fora perseguiu-a logo. Atravessou o largozinho e sentou-se perto do velho general de província. Nos ombros deste, distinguiu as formas, sem cabeça, dos pardais adormecidos, de aspecto maltrapilho, penas eriçadas, bicos sob as asas. Ficou ali por muito tempo; viu fecharem a loja e o filho da lojista, um rapaz de cabelos negros, vir pôr os taipais, O largo a esta hora tornar-se-ia tão tranquilo como um campo da região de Susana, se não fosse aquele café existente lá ao fundo, à esquina; no entanto, também ali as mesas iam ficando vazias. Um homem passou com uma mulher; arrastou-a para a sombra do general e deu-lhe um longo beijo, ardente. - "Vamos!" - exclamou com um suspiro fundo; e ela apertou-se muito contra ele, um momento; depois, lá voltaram até à rua e prosseguiram o seu caminho.
Susana escondera-se mais, contra os joelhos do velho general; os dois amantes nem a viram, mas ela olhou-os com tanto ardor como se já os conhecesse. Avaliou o que aquela mulher devia sentir nos braços do homem e teve a impressão daqueles lábios colados à sua boca. Susana demorou-se, pensando neles e noutros que se lhes pareciam, em todos os homens da face da terra, e na maneira como a vida indestrutível irrompe neles. Era esta vida que ela quereria tomar nas suas mãos e torná-la imortal. Aqueles dois seres, o homem e a mulher, pareciam petrificados, como que feitos em mármore. A vida, em cada uma das suas cumiadas, é imóvel; o instinto junta-se à sensação pura. Só o mármore contém em si essa nobre imobilidade para a qual todo o movimento aflui. Toda a realização é imóvel.
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Susana levantou-se; sentiu uma força invadi-la. Conhecia as suas ferramentas e dominava os seus materiais. Mas as ferramentas não lhe bastavam, e os materiais não passam de meios. Mármore, pedra e bronze, carne, sangue e ossos, tais eram até então os seus meios.
"Quero criar seres!" disse para si mesma. Acabara com os cálculos e os metais, os moldes e as fundições. Conhecia bem o seu ofício. Faltava-lhe descobrir a sua arte.
- Quero um estúdio só meu!-disse a David Barnes. -O senhor é muito gentil deixando-me vir aqui, mas agora quero trabalhar a valer. Sinto a necessidade de estar só.
- Pergunto a mim mesmo o que é que a faz crer que já sabe tanto - resmungou aquele. Andava com um génio muito irritado nesses dias, cada vez mais convencido de precisar de voltar à América para o seu próximo Titã, pois este devia ser um contemporâneo. Até ali, arranjara-os todos na Europa, na Inglaterra: eram heróis antigos. Chegara agora à época actual. E gemia: - Vejo-me obrigado a ir à América; Edison não virá aqui. Então, pode a Susana ficar com o meu estúdio.
- Não, obrigada. O senhor estaria sempre aqui; não haveria maneira de me sentir só.
- Que fraca mulher! - exclamou David. - Se fosse forte, trabalharia em qualquer parte. Olhe para mim! Eu trabalho onde encontro os materiais de que preciso. As minhas mãos vão comigo e o barro é fácil de obter. Uma das melhores coisas que fiz até hoje, foi modelada numa taberna inglesa, com muita gente à minha volta, troçando de mim.
- Eu faria o mesmo - respondeu ela vivamente, pois o tom depreciativo de Barnes inflamara-lhe a cólera, da mesma forma que uma chama põe fogo à isca. - Mas o senhor é tão diabòlicamente autoritário, que até o sinto aí dentro, mesmo na sua ausência.
- Não me intrometo nos seus trabalhos, parece-me!
- A influência da sua personalidade age sobre mim, apesar disso - respondeu Susana. Entre eles, isto era como que um desafio para a luta.
- Aposto que ficará com o meu estúdio e que continuará a executar as suas próprias obras.
- Talvez isso fosse possível, se eu soubesse o que quero
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fazer. Mas ando ainda à procura do caminho a seguir. E as suas ideias e as suas palavras conservar-se-ão aqui, dispersas, como ecos, mesmo depois da sua partida. Não é isso o que eu quero.
- Embarco dentro de oito dias. Decida-se, pois, mulher! Esta sua qualidade de mulher pesava-lhe de tal modo,
que só a palavra era já para ela um ponto sensível. Respondeu logo:
- Muito bem; instalar-me-ei aqui. Mas quando o senhor voltar, sentir-se-á tão pouco à-vontade, que não terá desejos de aqui continuar.
Entretanto, antes do fim da semana, Joana declarou a Susana:
- Só tenho dinheiro para um mês, minha senhora; disse-me que a prevenisse...
Susana já se esquecera. Aspirou com força e disse:
- Está bem. É necessário que eu o arranje, Joana. Sentiu-se tomada por um terror súbito. Ficaria completamente só, sem ninguém em que se apoiar, quando Barnes fosse à América; e se não conseguisse arranjar com que sustentar os filhos... Considerava-se feliz por não o ter sabido mais cedo; agora, nada diria já a David Barnes. Havia de saber sair-se de embaraços na vida. Ajudou David a emalar as suas coisas e suportou-lhe o humor frenético desses últimos dias. Ele meteu cuidadosamente as suas ferramentas em caixinhas admiravelmente feitas. A ponta de cada cinzel era embrulhada num bocado de pele de camelo; e levava também uma enorme provisão de barro amassado por ele mesmo.
- A argila americana - resmungou - seca antes de se chegar a meio do trabalho; é a sua maldita facilidade. O barro deve conservar-se mole como a carne, até ao fim. Tenho um segredo que um dia lhe desvendarei, Susana; mas só quando estiver para morrer.
- Suponhamos que caía de avião, ou coisa parecida.,.
- Procurará no interior daquele Adão, lá ao fundo. E indicou com a cabeça uma pequena figura primitiva, em gesso.-O segredo está encerrado lá dentro, num bocado de papel. Ninguém o sabe. Bem, estou pronto para partir.
- E as roupas? Ele olhou-a:
- É verdade! - Tirou uma velha maleta de sob a cama, abriu uma gaveta e pegou em algumas roupas.
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- Um dia, parti sem me lembrar disto - disse, apressando-se. - Só me ocorreu já em viagem.
- E que fez então?
- Andei sempre com o que levava em cima de mim. Vamos, até à vista, Susana.
Abriu a porta, deu um berro no vestíbulo, e apareceu então um rapaz, que carregou ao ombro a caixa com as ferramentas. Barnes pegou na maleta cujos lados formavam bolsas. Susana sentiu sobre a face a escova áspera da enorme barba, e depois, repetindo novamente o seu "adeus", Barnes parou ainda no limiar e disse:
- Encontra, no armário, barro já preparado. Fará bem servindo-se dele, creio eu.
- Esplêndido - respondeu Susana.
Ele partiu. Da janela, viu-o ainda atirar a maleta para um carro de aluguer e afastar-se, sacudido, ao longo da rua estreita.
Demorou-se ainda um pouco, e em seguida, num gesto rápido e firme, abriu a porta do armário. O barro lá estava, realmente.
Susana mal teve tempo, todas as tardes, de se aperceber de que se encontrava no estúdio de David Barnes. A blusa do escultor lá estava dependurada numa porta. Os primeiros "estudos" dos seus Titãs alinhavam-se sob o beiral do telhado. Contentou-se com desobstruir um pequeno espaço para si mesma e nada mais pôde fazer. Os dias passavam um após outro e ela entrevia já como uma catástrofe esse fim de mês, quando Joana lhe estendesse a mão vazia. Era só ela quem podia alimentar os filhos. Se desanimasse, sentiria medo. Aquela cidade pareceu-lhe então, de repente, demasiadamente estranha. Absorvida como andava com o seu trabalho, não o notara até ali; mas agora, quando olhava pelas altas janelas, do lado do norte, pensava na Floresta do Vagabundo. As ruas pareceram-lhe exóticas, as pessoas ásperas e distantes. Voltou-se, chamou a si todas as suas forças. Não queria ter medo. Sentia-se capaz de chegar a tudo o que desejasse e de fazer o que fosse preciso.
Servir-se-ia dessa gente para ganhar o pão dos filhos. Aproximou-se do barro e pôs-se rapidamente ao trabalho. Modelaria figurinhas à semelhança das pessoas que via sem cessar: a velha senhora Jeure, da loja de baixo, o
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proprietário do café da esquina, com o seu estômago em forma de barril e que bebia vinho a todas as horas, os pequenos que brincavam aos pés do velho general, um condutor de táxi adormecido à beira do passeio, pela manhã, caído atrás da roda. Estes estrangeiros desfilavam-lhe pela mente. E os seus dedos como que tinham asas. Fazia as estatuetas, moldava-as em gesso e punha-as à venda na lojazinha em frente da qual passava diariamente. Tinha visto mulheres entrarem e saírem de lá com pequenos embrulhos, e havia até, nas montras, diversas coisas pequenas destinadas a presentes. Fabricava brinquedos apenas, é verdade, mas, apesar disso, nasceu dentro dela um certo contentamento, quente e suave. Cantarolou a meia-voz, deu por isso e reteve as palavras, para tomar consciência delas. "Oh, e será a minha glória, será bem a minha glória!" Era a canção de outrora. Não tornara a cantá-la desde que estava em Paris; e donde teria ela saído agora, senão do êxtase familiar das suas mãos?!
- Minha senhora, só tenho dinheiro para uma semana
- disse-lhe Joana, confiadamente. Voltava cedo do mercado, com as suas magras compras, num cestinho francês, de forma redonda. Não sentia inquietação alguma. O dinheiro viria de qualquer parte, duma forma ou doutra. O seu dever consistia apenas em gastá-lo o mais parcimoniosamente possível. Susana mandava João à escola, arranjava-lhe a gravata, procurava-lhe o boné.
- Adeus, meu filho. Não te esqueças de que és Americano.
- Pois pensa, mãe, que me esqueço disso alguma vez?
- Não, mas lembra-te de que és o único do teu país que eles conhecem e, olhando-te, terão de pensar em toda a América.
- Mãe: apesar de tudo, estou um pouco esquecido, sim. Nós não tínhamos umas macieiras e uma granja?
- Sim, meu querido, e ainda as tens. Adeus, até logo. Seguiu com o olhar a sua silhueta alta e fina: ia a
correr, pela rua, e sobressaía a todos os outros. Márcia, que algaraviava uma mistura de inglês e de francês, queria recortar bonecas em papel.
- Mãezinha, mãezinha, ou est lê tesoura, mãezinha? Susana encontrou-a e instalou Márcia junto da janela
aberta, cheia de sol.
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- Agora, a mãezinha precisa de ir trabalhar, minha querida.
Márcia não se importava lá muito; cantava com vozinha agradável, fina, de timbre agudo, uma canção que a senhora Jeure lhe ensinara, quando a pequena fugia a Joana para ir ver tirar os pãezinhos do forno.
- Não sei a que horas virei, Joana - disse-lhe Susana já da porta.
- Bem, minha senhora.
- Hei-de trazer algum dinheiro, hoje, sem dúvida.
- Está bem, minha senhora.
Susana saiu sob o sol de Outono. Voltou à direita e passou, como fazia todas as manhãs e à tarde, em frente da lojinha de brinquedos. Parou; duas das suas figurinhas haviam desaparecido: a senhora Jeure e o estudante. Entrou precipitadamente e encontrou o velho lojista.
- Monsieur, est-ce que...
- Ah! Ah! - respondeu ele, alegremente, detrás do balcão. Os bigodes brancos tremiam-lhe de satisfação. Meteu a mão na gaveta e estendeu-lha. Trazia um punhado de francos.
- Mês Américains! - exclamou o lojista, brincalhão.
- Merci, merci - disse Susana, sorridente.
Já na rua, contou o dinheiro. Fora uma bela venda. Ele ficara com a sua comissão, naturalmente. Meteu o dinheiro na bolsinha. Era agradável senti-lo ali, embora, na realidade, a importância fosse modesta. Os bonecos não bastariam para pagar o aluguer, a comida, a gentil professora da escola e o ordenado de Joana. Os dias iam-se tornando frescos e era preciso pensar também no carvão.
Susana dirigiu-se com passo firme para o estúdio, onde continuava a passar as suas manhãs, aprendendo, por todas as formas possíveis, tudo quanto não sabia ainda. O número das coisas que ignorava ia diminuindo; Susana tornara-se hábil sob diversos aspectos. Mas nem sequer sabia o mais importante, o que lhe era necessário. A si mesma perguntava o que desejaria fazer agora.
Abriu a porta do vestíbulo quadrado que levava ao estúdio, tirou o chapéu e o casaco, e envergou a blusa acastanhada, depois do que entrou. Às vezes encontravam-se ali alguns estudantes, embora o Mestre não tivesse um curso propriamente dito. Limitava-se a erguer os ombros fortes, dizendo que, se alguns rapazes, com qualidades, desejassem
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ir vendo e aprendendo, não tinham mais do que aparecer, e de tempos a tempos ele lhes faria algumas perguntas e lhes provaria a sua ignorância. Nada mais.
Mas ninguém vinha todos os dias, como ela, muito cedo, antes mesmo que ele tivesse acabado o primeiro almoço. Chegava todas as manhãs e retomava o trabalho deixado na véspera: o fabrico de uma armação, a forma a dar a um molde de gesso, a preparação dum bronze. O Mestre entrava, limpando os bigodes, onde haviam ficado restos de café e de mel.
- Ah, já cá está, Susana!
- Sim, Maitre. Que deverei fazer, quando terminar isto?
- Olhe para mim. Você está pálida!
Pegou-lhe pelos ombros e fê-la voltar a cabeça para a janela.
- Sinto-me muito bem.
- A senhora não come o suficiente. E nunca se diverte. À noite, é preciso distrair-se, sair com os outros estudantes. Vai para casa e que é que faz?
Ela sorriu, sem responder.
- Está apaixonada por alguém?
Susana agitou a cabeça vigorosamente. Apaixonada!... Estes franceses não pensam noutra coisa.
- Não, não pense no amor, Susana. É ele a grande maldição do trabalho. Uma vez, não digo que não. Todos devem amar uma vez, para saberem quanto isso nada vale. Já lhe sucedeu, a si?
Susana hesitou, mas depois respondeu com vivacidade:
- Sim, uma vez. - Pois não amara Marcos? O velho escultor deixou tombar as mãos.
- Então, vá trabalhar, vá-disse bruscamente. E voltou-se também para um formidável bloco de mármore, que se pôs a medir e a estudar. Andava a começar um trabalho novo: tratava-se de uma encomenda, uma estátua de Clemenceau.
Desde há dias que Susana o via fazer vários esboços.
"Como obter um corpo comprimido sob esta grande cabeça?" resmungava sem cessar. "O corpo quase não existe, é um simples acessório a juntar à cabeça feroz". Nada o satisfizera ainda até ali e há oito dias que rondava em volta do grande bloco de mármore; o descontentamento tornava-o irritável. De repente, exclamou:
- É verdade! Esquecia-me duma coisa, Susana.
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- O quê?
-Que horas são?
Ela consultou o relógio:
- Perto das dez.
- Então, não deve tardar esse indivíduo. Como se eu não tivesse já bastantes dificuldades com este velho monstro, era ainda preciso que Barnes me mandasse um novo aluno. Um génio, pretende ele. Assim me telegrafou. Um génio, nem mais nem menos. Um génio moderno. E Roberto que não vem hoje! Quando vejo, finalmente, o monstro colocado no mármore e quando, portanto, necessito mais do meu ajudante, é que Roberto deu um golpe na mão, distraindo-se com uma brincadeira insignificante, lá a seu modo. Não teve paciência para esperar e arranjou uma boticada qualquer para se tratar; infectou a mão e eu sinto-me simplesmente desesperado. A não ser que empregue o novo aluno... mas estragar-me-ia o monstro. O monstro é velho, é um primitivo. Muitas e muitas vezes tenho repetido a Roberto: - "Tu não passas dum ajudante, um excelente ajudante; nunca chegarias a ser escultor, percebes? Deixa as ferramentas em paz".
Susana vira muitas vezes trabalhar o ajudante Roberto, um homenzarrão moreno, amável, que arrancava os primeiros bocados de mármore, assobiando, inclinado sobre os esboços, ou então, com os lábios finos cerrados, media as anfractuosidades e os ângulos do modelo de gesso ou de barro, colocado na sua frente.
- Eu poderia substituí-lo-disse Susana.
O escultor olhou-a fixamente e retorceu os bigodes sobre os lábios vermelhos.
- Ah! - exclamou. - Isso é um "talvez"...
- Experimente - respondeu Susana; depois, pensou nos filhos e acrescentou logo, antes que a vergonha a impedisse de o fazer: - Dar-me-á o mesmo salário que a Roberto?
Pronto. Sentia-se envergonhada, mas estava dito. Roberto ganhava o suficiente para viver, talhando o mármore.
- Dinheiro! Sempre o dinheiro - resmungou o velho artista. - Isso é bem de vocês, os Americanos! E se me estragar o mármore?
- Pagá-lo-ei - disse Susana. E pegava já no cinzel e no macete.
- Não, não... - exclamou ele, aterrado. - E afinal de
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contas, sim; mas só quando eu aqui estiver na sala. Entende... quero ver todos os golpes!
Haviam entrado dois ou três alunos franceses e punham-se ao trabalho, ao mesmo tempo que os observavam com bastante interesse. Susana não os conhecia. Por vezes uns ou outros haviam-na convidado a passear, mas ela recusara sempre: - "Não tenho tempo para me distrair"
- dizia vivamente; e depois, como que lamentando-os, acrescentava: - "Agradeço muito".
Começou a desbastar uma aresta, um ângulo.
- Oh, meu Deus! - gemeu o velho escultor. - Assim tão depressa?!
- Eu vejo... descanse - respondeu calmamente. Mas na verdade não sentia a menor calma. Dentro dela, ia subindo um ardor febril. O corpo atarracado, insignificante, aparecia-lhe, surgia do mármore, sustendo a enorme cabeça, bela e feroz. Não havia outra maneira de proceder senão assim, aí está... esses dois grandes ângulos suprimidos à direita e à esquerda; mas a base tinha de manter-se forte, quadrada, para suportar o corpo comprimido contra o pedestal.
Abriu-se uma porta e alguém entrou. Ela nem se voltou; nunca se voltava quando abriam a porta. Ouviu o maitre dizer: - "Ah! Cá está, senhor". Ela afeiçoava, com o maior cuidado, o ponto onde o ombro se arredondava, maciço, rude. Era preciso não se esquecer de consultar o modelo. Mas havia um erro no modelo! O pescoço era demasiadamente comprido. Os ombros tinham de ser encurvados. Voltou-se, esquecendo tudo o mais; exclamou:
- Maitre, há aqui um erro no modelo... olhe... aqui. Os ombros têm este movimento... - E voltou a talhar com vigor.
Ele deu um pulo, a seu lado:
- Pare! Não faça mais... a senhora arruína-me...
E pegou-lhe na mão; e antes que Susana pudesse libertar-se, o seu olhar cruzou-se com o dum homem de olhos cinzentos, muito calmos, muito francos e belos, sob umas sobrancelhas negras, rectilíneas. Ela nem os viu bem, teimosamente agarrada ao macete e ao cinzel, que o maitre tentava arrancar-lhe.
- Deixe-me em paz! - exclamava. - Eu sei o que faço. Eu vejo-o, a Clamenceau. Nunca ele teve um pescoço assim. Olhe. - E pondo as ferramentas em segurança na mão
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esquerda, pegou num lápis e desenhou rapidamente.- É assim, maitrel Ele gemeu:
- Mas esse é o seu Clemenceau, ou o meu?
Ela olhou-o e pôs-se a rir. Depois, poisou o macete e o cinzel.
- Realmente, não posso ser ajudante - disse com orgulho. - Tinha-me enganado. Terá de esperar a volta de Roberto.
- Não... a Susana vai muito depressa - murmurou o maitre, perturbado. - É preciso ter paciência... paciência... E se tivesse razão?
Susana conservou-se de pé. Tinha a certeza de estar na verdade. Mas que tivesse, ou não, razão, isso pouco importava. A substância do mármore sob o cinzel, o instinto das suas mãos dirigindo a ferramenta tinham dado livre curso ao obscuro e feroz desejo de outrora. Queria criar uma coisa sua, qualquer coisa de grande...
- Sim, a senhora tem razão - disse o maitre, bruscamente.- Eu vejo da mesma maneira. Continue...
- Pedi-lhe dinheiro, há pouco, mas retiro o pedido, mon maitre. Não o quero. Se eu substituir Roberto, quer antes dar-me, em troca, um bloco de mármore, para mim?
Precisava de mármore. Continuaria a fazer figurinhas de barro para vender; mas se tivesse um pouco de mármore...
O velho escultor olhou-a fixamente. Acima dos bigodes, os seus olhos, de repente, pareceram profundos.
- Para que é mulher? - disse depois, tristemente. É uma mulher que me diz à mói... Barnes tem razão quando pretende que Deus, nos últimos tempos, se tornou pouco previdente, lançando os seus dons sem se importar onde.
- Suspirou, ergueu os ombros e puxou o bigode. - Sim. Afinal, que deseja? Um bloco de mármore. Bem; tê-lo-á, mas sob promessa de abandonar toda e qualquer ideia pessoal. A partir deste momento, seguirá o modelo. Deixar-me-á uma polegada de margem. Compreendeu bem? Seria capaz de acabar isso, com a sua teimosia habitual. Porque Susana é mesmo esta coisa abominável: uma mulher com um cérebro. Tenho horror a isso. Para que é que Deus me deixou entrever tanto talento através duma mulher?
Susana não prestava atenção alguma ao que ele dizia.
- Poderei escolher o meu mármore hoje mesmo, isto é, depois de acabar o meu trabalho?
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Ele resmungou entre dentes e afastou-se a grandes passadas Susana retomou o macete e o cinzel, num ponto ao mesmo tempo alegre e sombrio. Teria o mármore, sim; depois, começaria o seu trabalho, muito seu.
- Dir-se-ia que mete medo ao velhote - disse uma voz agradável, risonha.
Ela voltou-se, assustada, e viu um homem bastante novo, alto, de fato cinzento. Era o homem dos olhos cinzentos, também. Já o havia esquecido.
- Está apenas contrariado porque eu quis tocar no seu modelo-respondeu, em tom breve. Tornou a ir postar-se em frente do bloco e pôs-se a desbastar pequenas lascas dos braços, que, sob o mármore, lhe apareciam cruzados.
-- Eu sou Blake Kinnaird - tornou a voz agradável e clara. - David Barnes disse-me que procurasse Susana Gaylord.
- Pois bem, sou eu - respondeu, sem interromper nem por um momento os seus golpes de cinzel. Reflectia... quando descobrisse exactamente o mármore que lhe convinha, saberia bem qual o trabalho a empreender. O mármore lho diria. Andaria pelo meio de todos esses blocos até encontrar um do tamanho que desejava. Queria fazer qualquer coisa em grande. Era escultora e não modeladora... Tinha vontade de trabalhar o mármore directamente... sem desenhos, sem modelo, sem nada que não fosse a sensação da coisa sobre a pedra... Não escutou a voz, e nem voltou a cabeça para ver para onde o homem fora.
Susana estava há tanto tempo acostumada a ver-se só, que se sobressaltava sempre que ele lhe falava. Olhava-o, respondia-lhe e voltava ao mutismo em que vivia. E lá ia trabalhando dia a dia, desbastando o Clemenceau, a uma polegada mais que o modelo. É que, apesar do seu desejo de o terminar, a si mesma se proibira ir mais longe. "Fá-lo-ia tão bem como o maitre... Talvez melhor até!" dizia para consigo sem a menor confusão, pois sentia dentro de si uma força de que ainda não fizera uso. Estava certa, tão certa como da própria vida, de que faria uma grande obra, embora não soubesse ainda qual fosse, consciente apenas daquela força, não abatida e que pessoa alguma sondara, nunca. Nunca também, na sua vida, pudera empregá-la completamente. Marcos não reclamara dela senão uma
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pequena parte e os filhos pouco mais lhe pediam. Às vezes, tomada dum desejo de se consumir, prodigalizava-se com eles, a um domingo ou dia feriado.
- João, Márcia... Hoje vamos todos divertir-nos. Também eu quero viajar através do mundo sobre as nuvens e o vento. Ninguém nos vê, mas nós vemos toda a gente.
Os pequenos não a acompanharam por muito tempo. Depressa se cansaram daquela imaginação fecunda em excesso, daqueles projectos muito rápidos, mesmo para seu prazer. Afastaram-se dela.
- Não quero brincar mais a isso, mãezinha - disse João.
- Eu também não gosto deste jogo - acrescentou Márcia.
- Parece-me que prefiro ir fazer bonecos de madeira. E Susana sugeriu:
- Pois vamos todos fazer bonecos.
A verdade é que não queria ver-se separada deles; desejava ardentemente espalhar o seu potencial de amor, utilizá-lo. Mas a rapidez dos seus dedos desanimou-os. Esculpiu uma fiada de passarinhos num ramo de árvore, e João disse, descontente:
- Nunca chegarei a fazer uns passarinhos tão bonitos, mamã; preferia que não os fizesse.
Também ela nunca conseguiria amar os filhos com uma intensidade capaz de saciar todo aquele amor. Por vezes, quando os pequenos lhe passavam perto, não podia deixar de estender os braços, agarrá-los e envolvê-los num largo abraço.
- A mãezinha ama-vos tanto! - exclamava; mas este amor espantava-os.
- Aperta-me com muita força!-dizia Márcia; e João escapava-se-lhe.
Aprendeu assim a beijá-los muito depressa, largando-os logo...
Só o mármore era suficientemente vasto para satisfazer a força que tinha dentro de si. Passou horas a escolher o seu bloco. Quando não se pode ter mais de um, este é um tesoiro. O maitre mostrara-se generoso e dissera-lhe, agitando as mãos fortes:
- Pegue no que lhe agradar. A Susana não é Roberto, e terá mais do que ele, como salário. Que havia ele de fazer dum bocado de mármore?
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Susana vagueou entre aqueles blocos rugosos, procurando escolher o seu; apalpava-os, e reflectia. Cada um deles era como que a prisão duma forma. Invadiu-a de novo o estranho bem-estar familiar, silencioso, que dela se apoderava quando prestes a criar.
- Posso ajudá-la?
Aquela voz veio mais uma vez quebrar o silêncio. Ergueu o olhar e ia quase a recusar com cólera.
- Eu percebo disso - prosseguiu ele-; meu pai importa mármores. Olhe: neste bocado, por exemplo, encontra-se um veio negro; teria já o seu trabalho em meio, antes de o descobrir.
- E como o sabe? - perguntou, nem se lembrando já de o repelir.
- Vê este fio lodoso?
E apalpava o mármore com mão magra, nervosa. Susana teve de inclinar-se, muito perto, para vef o que ele tocava; e lá encontrou o fio quase invisível na rudeza da pedra quase em bruto.
- E esse, ali, e aquele também não são bons - acrescentou, rejeitando dois outros -; os outros além são muito belos, e, olhe: aqui tem o melhor de todos.
Escolhera um bloco arredondado. Susana examinou-o, desejou possuí-lo, mas preferiria tê-lo escolhido por si mesma, sem o auxílio de ninguém. Esperaria, pois, que ele saísse, para tomar uma decisão; não queria deixar-se dominar.
- Também trabalha o mármore? - perguntou-lhe.
- Oh, meu Deus! Não - e ria. - Isso é lento demais para mim. Eu modelo, deixando aos outros que se cansem.
Ela nem o ouvia já; pensava no mármore, ansiando pela partida de Blake.
- David Barnes falou-me muito de si - disse ainda a voz agradável.
- Deveras?! - Estremeceu, olhou-o, e depois voltou a cabeça: ele tinha uns olhos cinzentos, da cor do mar sob as nuvens.
- Pretende que a senhora é um grande génio.
- Nem eu sei ainda o que sou, e creio bem que ninguém pode adivinhá-lo.
Blake Kinnaird respondeu, rindo:
- Eu também não acredito; mas permite-me que tente descobri-lo?
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Ela agitou a cabeça gravemente:
- É impossível. Terei de consegui-lo sozinha.
Blake conservava-se tão junto dela! Era intolerável. Susana sentia a respeito dele um medo estranho, intuitivo.
- Tenho de ir-me!-disse bruscamente; e deixou-o só, mas com o olhar sempre fixo nela. Saiu e comprou um pãozinho e uma chávena de leite quente para o seu almoço. Desejava realmente possuir aquele bloco de mármore; só era pena que Blake... - "Ora! O que tenho é de não pensar mais nele!"-disse para si mesma, rapidamente e com grande firmeza. E foi o que fez.
Blake não se deixou esquecer. Vinha todos os dias ao estúdio, discutia a propósito das suas obras, ria quando o velho escultor torcia o nariz às figurinhas que ele modelava com tanta facilidade e desembaraço.
- Eu sou um moderno - repetia sem cessar. - Eu é que faço a minha técnica, se me dá licença. O meu trabalho é todo feito em planos. À bas o realismo! Eu não sou realista como o senhor.
O velho escultor, com as mãos crispadas nos panos ondeantes do seu casacão, gritava:
- Quem viu já, alguma vez, uma figura assim? Será uma trapalhada, um prato, uma bandeja para chá, tudo o que quiserem; um rosto humano, non!
Blake Kinnaird, respirando bom humor, apossou-se, com gesto firme, dos ombros maciços e redondos do Mestre.
- Se se puser a quinhentos metros de qualquer rosto humano, verá que ele se parece com um bule de chá ou com a respectiva bandeja. Ora ponha-se ali, no sítio onde a luz cai: assim! Como vê, sirvo-me da luz como de um dos meus materiais.
- Susana!-gritou o velho, sustido sempre por aquelas duas mãos vigorosas. - Venha cá, e olhe com os seus bons olhos honestos. Pois será isto uma figura humana?
Susana saiu do canto onde estava colocado o seu bloco, aproximou-se e examinou aquele barro que Blake, há alguns dias, modelava com grande rapidez e aparente negligência. Metade do tempo, passara-o ele a examinar a sua estatueta a boa distância; depois, aproximava-se muitas vezes, para a desviar ligeiramente, mais para aqui, ou para ali.
- É uma rapariga, no Outono-disse,-O vento sopra-lhe entre os cabelos, levantando-os.
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Então, viu ela a delicada criatura, que tremia protegendo o rosto com a mão. O vento soprava bem, realmente.
- Vê-a? - perguntou o velho.
- Vejo, sim - respondeu lentamente - mas como num sonho: hesitamos, quase que nos escapa.
- Olhe agora!-E Blake, largando os ombros do Mestre, deu um leve empurrão ao pedestal. Desde logo, não se via mais que uma porção de superfícies planas e de ângulos.
- Olha, desapareceu! - exclamou Susana.
- Nem sequer existiu nunca - observou ironicamente o velho.
Blake fez desandar vagarosamente e com toda a precisão a massa de barro.
- Lá a vejo outra vez!-disse Susana.
- Sim, agora também eu a distingo vagamente - confessou o velho escultor. - Quando a olho de repente e volto logo os olhos...
- Olhe-a muitas vezes - interrompeu Blake - e de cada vez lhe aparecerá mais nitidamente.
- É estranho - observou Susana, muito agitada. Embora não possa compreender, a verdade é que a vejo.
- Pois se a vê, não precisa de compreender - respondeu Blake.
- Esta gente... - murmurou o velho; e afastou-se aturdido, num passo um pouco vacilante. À sua volta, alinhavam-se as honestas estátuas clássicas sobre as quais passara a sua vida, corpos com membros sãos e de carne palpitante, troncos arredondados e cabeças muito nobres.
- Obrigado, Susana Gaylord - disse Blake Kinnaird.
Ela aproximou-se de novo da rapariga de barro; estudou-a num assombro, ao mesmo tempo intrigada e encantada.
- Nunca eu teria pensado em utilizar assim a luz. Mas, bem entendido, o senhor tem razão. A luz faz parte dos materiais; as superfícies planas concentram-se em si mesmas.
- Pois notou isso! - exclamou Blake com ardor. Estavam muito juntos um do outro. Ela esquecera-se
de que não gostava de o sentir tão próximo; tinha desejos de falar com alguém, o que não lhe sucedera ainda, realmente, desde que David Barnes partira.
- Vamos almoçar juntos!-disse Blake.
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Pois Sim; Bem gostaria de poder conversar sobre
toda esta maneira de trabalhar segundo a escola realista. O que pensa dela o senhor? Eu fui criada nessa escola, mas às vezes sinto-me como que aprisionada. Sinto a necessidade de me libertar.
Saíram do estúdio e ele levou-a até uma mesinha numa esplanada, chegando-lhe a cadeira.
O realismo é um fim... - dizia. - Não, Susana; hoje
não se contentará com pão e leite, apenas; eu é que vou encomendar o almoço. Vem cá, garçon] - Deu as suas ordens rapidamente, a meia-voz, depois do que tornou a voltar-se para ela. - ...A dificuldade está em tornar realistas os meios. Quando meios e métodos são realistas, o que resulta é a cópia, e não o realismo; e a cópia é falsa. A verdade, assim, não é senão meia-verdade, e mesmo menos do que isso, pois os tons e supertons ficam por exprimir. O que importa não é o que se exprime, mas o que se quis exprimir.
Ela comia qualquer coisa de quente e de saboroso, mas nem dava conta disso. Falava, ouvia, e ele aparecia-lhe, nos intervalos da conversa, belo a seu modo: alto, magro, anguloso; tinha os cabelos negros e mãos compridas e delicadas, muito mais delicadas do que as suas. De repente, ergueu-se.
- Tenho de ir trabalhar - disse.
- Onde trabalha, de tarde?
- No meu estúdio, quero dizer, no de David Barnes. Pô-lo à minha disposição.
- Permite-me que vá lá, de tempos a tempos? - perguntou ele, sorrindo; e como ela hesitasse, acrescentou logo: - Gostaria de ver as obras dele, que me autorizou a fazê-lo.
- Penso então que não tenho o direito de lho proibir
- respondeu Susana lentamente; mas depois, rápida: Não, não... não vá, peço-lho!
Não podia suportar-lhe a presença junto dela, quando esculpia o seu mármore. Logo que Blake se aproximava, a visão do que estava a fazer esvaía-se.
- Vá-se, vá-se embora, Blake! - pedia-lhe, angustiada, quando ele lhe aparecia, de manhã. Precisava de estar completamente só. Nas suas horas de trabalho, ainda suportava o maitrer quando este vinha rondar-lhe em volta com uns
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passos abafados, pois que se mantinha em silêncio Blake achava sempre que dizer e, ao som da sua.voz a imagem fugia para o seio do mármore, onde se lhe ocultava. E o contacto do rapaz era ainda pior do que a sua voz. Quando lhe poisava a mão sobre o braço (e ele tocava sempre em tudo) ela gemia:
- Deixe-me, Blake.... Uma vez, tendo ele passado a mão, num gesto inconsciente, sobre o mármore, toda ela se contraiu, repelindo-a.
- Não me toque assim! - exclamou.
Blake disse, em tom mais alto ainda do que ela:
- Mas eu não lhe toquei.
- Tocou, sim, e eu não posso suportar que me toquem.
- Está louca, Susana! Juro-lhe que não fiz mais do que tocar no mármore, ao de leve!
Susana limpou o rosto à blusa castanha.
- Por favor, Blake, deixe-me, quando estou a trabalhar!
- Se me for embora, permitir-me-á ir ao seu estúdio, esta tarde? - E sorria, travesso, malicioso. Ela, porém, olhava o mármore.
- Sim, sim... o que quiser, contanto que não estrague o meu trabalho.
Logo que ele partia, voltava a encontrar a sua solidão, dura mas abençoada. Uma vez só, a visão vinha de novo, saindo do mármore. Era uma mulher tímida, ajoelhada, jovem, viva, que esperava, inocente. Quando Blake se aproximava, ela desaparecia; depois, quando aquele partia, logo se libertava da pedra. E, então, Susana talhava e esculpia com mão rápida e segura, vendo a mulher nitidamente.
Blake não a interrompia quando vinha ao estúdio, enquanto ela modelava as suas figurinhas para a venda. Aquelas estatuetas encantavam-no.
- Susana, os seus pães e os seus peixes... são arrebatadores. Quero comprar-lhos.
Ela não aceitou:
- Não, pode comprar, mas na loja, como toda a gente.
- Economizava a comissão..." Abanou a cabeça e disse, decidida:
- Julgaria sempre que só quereria ajudar-me. E eu preciso de saber se me saio das dificuldades, por mim mesma. Mas não posso proibir-lhe que vá à loja onde se vendem.
- Tenho horror às mulheres independentes.
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Susana que olhava a figurinha que tinha entre mãos, interrompeu-se, erguendo a cabeça. Nunca se sentira mulher, junto dele, e essas palavras tornavam-na mulher. Viu-se envergando a sua blusa castanha, toda manchada, com os cabelos metidos dentro duma boina, a fim de os preservar da poeira da pedra, as mãos calosas, sujas, as unhas partidas à força de palparem o mármore em bruto. Tinha horror às mulheres independentes, como ela.
- Bem sei - disse com humildade - e todos os homens são dessa opinião; não é assim? Mas isto é mais forte do que eu; nasci já assim.
- Susana, não fala a sério, decerto; não acredita que eu o tenha pensado, não é verdade? - Caíra de joelhos, com aquelas maneiras muito suas, de súbita afeição, a que ela não conseguia habituar-se. Agora, tomara-lhe os pulsos, com força.
- Sim, sei o que o senhor sente - e ergueu a cabeça vivamente. - É o mesmo efeito que produzo em todos, penso eu. - E, libertando as mãos, tirou a boina e pôs-se a alisar os cabelos.
- Admiro-a de toda a minha alma - disse ele ainda, baixinho.
- Creio que o mundo não ama aqueles que admira até esse ponto - respondeu Susana, perdendo a sua firmeza.
- Já mesmo na escola, quase não gostavam de mim... quando eu alcançava os prémios, o senhor compreende...
- Susana, Susana!
"Não estaria ele a divertir-se à sua custa?" - pensou esta.
- A senhora é uma criança. Onde passou a sua vida? Tomara-lhe os pulsos, de novo.
Susana observou-o com olhos sombrios, perplexos. Que queria ele dizer com isto? Ela casara, tinha dois filhos, ganhava o pão para eles.
- Espere! - Mas por que não lhe largava os pulsos, enquanto falava? As suas mãos apertavam-lhos, como se fossem algemas; lutou para se libertar. - Não, não a largarei. A senhora foge, sempre só, mesmo quando lhe falo, escapando-se-me por entre os dedos e indo refugiar-se num canto secreto e solitário do seu ser. Eu hei-de restituí-la à vida.
Ela baixou o olhar sobre aquele rosto magro e tenso. Restituí-la à vida! "Eu estou viva", dissera Maria também;
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"e tu, tu estás morta!" Em certo momento, a sua casa enchera-se desse estranho amor ardente, impetuoso, entre Miguel e Maria. E sentira correr aquele rio desconhecido, como que um rio rodopiante, em cuja margem ela ficaria, enquanto as águas iam arrastando, varrendo tudo na sua frente. E ela bem o vira, mas detestava-o. Pois que amor era esse, que não dava, a Maria, vontade de se casar com Miguel? Blake falava, de peito apoiado contra os joelhos de Susana, e tendo o rosto entre as mãos dela, crispadas nas suas.
- Susana, já alguma vez lhe disseram como é bela, bela! Que os seus cabelos são os mais maravilhosos do mundo e duma cor que nem consigo definir, pois tão depressa me parecem escuros, como doirados? Ninguém lhe disse ainda quanto encantamento há nisto, de ter uns olhos negros com uns cabelos assim, uns olhos tão tímidos quando é mulher e tão corajosos quando é criança? Nunca lhe disseram coisa alguma a seu respeito, Susana?
Esta sentia-se arrastada para fora dum círculo duro e frio, e saía de lá, tímida, fremente, viva.
Agitou a cabeça lentamente, de lábios entreabertos, e olhos fixos sempre nos de Blake, cujo rosto estava ali tão próximo, tão próximo!...
- Não... - murmurou; e a sua respiração parecia ardente, sufocada na garganta - ...Não... Eu não quero...
Inclinou a cabeça.
- O que é que não quer? - murmurou ele também. Por que falavam assim tão baixo? Mais ninguém ali
estava...
- Não quero sair do mármore - disse ela, alto; e, arrancando as mãos das de Blake, correu para fora do estúdio.
Na rua estava frio; era mais tarde do que pensava. Que tinham feito, durante tanto tempo? Tendo saído sem o casaco e sem chapéu, não quis voltar atrás. Foi directamente para casa e nem se lembrou de que podiam vê-la...
Blake fazia-lhe, então, a corte? Não queria sabê-lo, nem sequer tornaria a vê-lo mais. Só sentia um desejo: o de correr ao encontro de João, Márcia e Joana. Tinha um refúgio ali. Como fora prudente, dando ouvidos à sua necessidade dum lar! Assim, nada lhe faltava. Tudo lhe fora dado, tudo conservara para si, à excepção de Marcos, que morrera.
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Subiu a escada correndo e entrou na sala. Joana estava a pôr a mesa para o jantar. As crianças iam-lhe trazendo os pratos. João exclamou, ao vê-la:
- Mamã! Os seus cabelos! O vento despenteou-os todos!
- Onde é que a senhora deixou o casaco e o chapéu?
- Esqueci-me deles. - E, de costas para a porta, olhava tudo em volta. Estavam todos como de costume; no entanto, observava-os. Pareciam-lhe diferentes.
- É perigoso andar assim - disse Joana.
- Queria voltar para casa; não sabia que era tão tarde, e saí a correr, tal como estava!
Márcia pôs-se a rir, com o seu riso argentino, muito alto, e poisou o prato.
- É tão engraçada, mamã! - E o som da sua voz era cheio de tolerância e de compaixão.
- Bem sei - disse Susana em tom humilde. Dirigiu-se ao seu quarto, penteou os cabelos e lavou o
rosto e as mãos. Sentou-se depois à mesa com as crianças, comeu a sopa que Joana fizera, os legumes e o pudim de pão. Estava sã e salva, em sua casa, sem correr o risco de que Blake viesse ali procurá-la. Blake não sabia onde ela morava. Mas enquanto comia e escutava aquelas vozes ali, abrigada, no círculo quente da lâmpada, o seu coração continuava a fugir, ao longo das ruas, longe de Blake.
Levantou-se muito cedo, foi para o estúdio e trabalhou na mulher ajoelhada, durante várias horas, antes da chegada de Blake. Este dormia até tarde. A manhã ia já em meio, quando ela ouviu o maitre queixar-se:
- Eh bien, outro jogo de triângulos. Desta vez o que é, meu bravo escultor? Não, deixe ver se adivinho... Uma rapariga no banho; não? Então, o quê? Ah! Uma mulher! lavando a roupa. Não? Pois confesso que não vejo coisa alguma.
- É um tigre - respondeu Blake tranquilamente.
- Um tigre?!
- Ainda não terminei o efeito da luz; depois verá.
- Muito obrigado; mas não estou muito certo disso. Um momento depois, ouviu-lhe a voz, perguntando
numa ânsia:
- Já notou como os pêlos do bigode do pobre velho vão rareando? Exaspero-o a tal ponto, que os arranca, é positivo.
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Sentiu-o aproximar-se, mas não quis olhar.
- Blake, o senhor tinha prometido...
De facto, prometera conservar-se afastado, de manhã, de forma a poder mandriar junto dela, pela tarde.
- Não... eu sou bom... Já me vou... Mas, querida Susana, é admirável, isso! Vejo-a, de joelhos, essa abençoada e adorável criatura! Estou morto por mirar-lhe a cabeça... - E aquela voz fazia-a tremer.
- Vá-se, vá-se, enquanto eu trabalho! - E dentro de si, gritava:"Quero trabalhar... E não posso, quando aqui está; não faço senão ouvi-lo. Quero ser livre". Mas calava-se, não se voltando sequer. Nem o olhava. Por fim, ele suspirou:
- Coração de gelo!... Susana, Susana!
Esperou que ele saísse. Depois, com a ajuda do seu macete e dum cinzel de esplêndido aço, tão fino como um lápis, escavou o mármore, à procura da mulher ajoelhada.
Não havia maneira de fugir-lhe, nessa cidade estranha. A tarde, era obrigada a trabalhar, por causa das crianças, e ele tinha então a certeza de a encontrar. Não se interrompia, quando o sentia entrar. Trabalhava ainda mais depressa do que nunca. Às vezes, dizia a si mesma que não tinha necessidade de lhe fugir, que os seus temores eram imaginários. Ele mostrava-se tão agradável, tão tranquilo! Em certos dias, não procurava sequer pegar-lhe nas mãos, nem chamar-lhe "querida Susana", nem falar-lhe da "sua bela boca entreaberta, tão vermelha como as bagas de azevinho do Natal!" Estendia-se sobre o divã, amável, indolente, desinteressado. Dizia, então:
- Esse velho não pode ensinar-me coisa alguma, Susana. Volto para minha casa. Ele não compreende a América moderna. Sou demasiadamente novo para ele.
E quando via que Blake já nem pensava nela, queria que ele pensasse, por uma espécie de perversidade, que a admirava e assustava. Estava furiosa contra si mesma, por causa do capricho que a levara a exclamar:
-Não quero que o senhor parta, Blake.
- Pois far-lhe-ia falta, minha querida?
- Um pouco, Blake. No entanto, a solidão tem também o seu lado bom. Trabalha-se, quando se está só.
- Um pouco, não. Muito!-disse ele, cheio de arrogância. - Far-lhe-ia muita falta, minha querida, porque já começa a amar-me.
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- Isso nunca! Nunca!-exclamou, furiosa. - Já tive isso tudo, eu!
Ele não a deixava falar-lhe de Marcos. E ria-se quando ela dizia ter sido casada.
- A senhora nunca amou na sua vida! - e ria-se de novo.
- Amei sim!-e chamava Marcos em seu auxílio.
Marcos, porém, morrera. Não podia vê-lo, não distinguia mais que o busto que dele fizera outrora e que deixara no celeiro da sua casa, envolto num pano. Era Blake quem vinha para ali, para junto dela, agora, naquele estúdio quente, iluminado pelo brusco sol duma tarde de Inverno. E ficava-se imóvel a olhá-lo.
- Nunca amou assim - disse ele, erguendo-a, apertando-a de encontro a si, levantando-lhe a cabeça, com a mão sob o queixo. - Nem sequer sabe que é mulher.
E os olhos de Blake semicerravam-se.
- É-o, sim! - acrescentou, com uma voz que de repente se abafava por detrás dos dentes cerrados.
Beijou-a, e ela nem se mexeu. Como era ardente o sol dentro do qual se encontravam! E o estúdio, que tranquilo! Mas não era silêncio, não. Ele fizera irrupção no seu silêncio, que desaparecera. E abandonou-se, pouco a pouco: primeiro, os lábios de Blake encontraram uns lábios fechados. Depois, ele mergulhou a boca na de Susana, penetrando no grande silêncio do seu ser, onde nunca pessoa alguma penetrara até então. Susana estivera só a vida inteira. Por fim, Blake separara-se dela.
- Nem parece que já tenha beijado alguém, até hoje
- disse, admirado e ligeiramente divertido.
Susana não respondeu. Olhava-o com grandes olhos cheios de lágrimas, tremendo,
- Não chore - prosseguiu ele ainda, rodeando-lhe o ombro com o braço. - Hei-de ser sempre tão bom para si, Susana! Tem todo o ar duma menina, ainda. Por que chora, querida?
- Tenho medo - respondeu.
Sim: tinha medo. E, pela primeira vez na vida, sentia-se desarmada. Ele desatou a rir.
- Casar-nos-emos.
Ergueu-a de novo, apertando-a, e beijou-a tanto, tanto, que também ela se pôs a rir, como há muitos anos não lhe sucedia; e, em meio do riso, gritava, sem se defender:
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- Oh, Blake! Blake!... , .
- Pronto! - disse este, poisando-a no chão. - Agora vá buscar o chapéu; vamos festejar o acontecimento.
Como um forte vento de Outono, ele varria tudo na sua vida, tomava decisões imediatas e largas.
- Casar-nos-emos muito em breve - dizia, no meio da
rua.
Mostrava-lhe um Paris que ela nunca vira. O Paris de Susana compunha-se então de tranquilas ruas tortuosas, do general de pedra, duns quartos pequenos por cima duma confeitariazinha, da velha senhora Jeure, de rosto miúdo. Havia também o Louvre, o Sena, as velhas livrarias e Notre-Dame, formidável e silenciosa; isto e as pessoas que fitava com um olhar agudo é que representavam o seu Paris.
Prolongaram a festa, noite após noite...
- Não viu isto ainda, Susana? É tudo Paris!
Ela agitava a cabeça, de olhar fixo acima da multidão que dançava, louca, em trajes de cores variadas. Ouvia diálogos alegres, inconvenientes, no teatro, e ria, no fundo um pouco envergonhada.
- Se algum dia me haviam de dizer que casaria com uma criança! - observou ele. - Sim, Susana, creia que é uma criança. Não tem coisa alguma de intelectual, asseguro-lhe, minha querida. Uma criança grande, inteligente, mas que nem sabe exprimir-se. Que farei de si? É como se introduzisse um cãozinho São-Bernardo em minha casa.
Ria, de olhos brilhantes, e ela sentia-se estúpida e humilde.
Era bem verdade que não sabia que dizer a Blake. Mas também, nunca falara muito, entretida sempre a fazer uma ou outra coisa. Quando alguém "Conversava, ouvia atentamente, aproveitava-se não só das palavras, mas também dos gestos e das expressões, do som das vozes, que se elevavam ou baixavam.
- Talvez tenha razão - respondia docilmente.
Mas havia também os belos dias no Bois, umas tardes frias, cheias de sol, em que ele tirava o casaco e remava num barquinho. Deixava então de temê-lo e, ao cabo de alguns passeios, perguntou-lhe um dia, timidamente:
- Aborrecê-lo-ia que eu trouxesse as crianças?
- É claro que não, se isso lhe apraz.
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Ela nada dizia, mas a verdade é que nem sempre se divertia perfeitamente sem eles. Sentia tanta vontade de mostrar a Blake como eram bonitos! Explicara-lhe já até que ponto desejara tê-los -ter muitos filhos. Detivera-se, então, corando, ao pensar, com uma delicada surpresa íntima, que teria agora esses outros filhos. A ideia de que poderia vir a ter filhos de Blake não lhe ocorrera até então. E mesmo agora, isso não era mais que um plano do cérebro, não uma sensação do corpo.
Mas já ele observava, em tom ligeiro:
- Susana, minha querida, a senhora não devia ter filhos. - E mexia a colher dentro dum grande copo verde. Estavam a almoçar, juntos, como todos os dias. - Isso só serve para lhe estragar o corpo. Nunca lho permitirei, já fica sabendo.
- Oh, Blake! Compreendeu-me mal. É diferente. Nem posso explicar-lhe o que sinto quando espero um filho. É como se não fosse só a minha cabeça e as minhas mãos a trabalhar, mas todo o meu ser, o meu sangue, o meu hálito...
- É a mim que a senhora ama, a mim - respondeu ele, subtilmente. Por cima do líquido esverdeado, os seus olhos apareceram, severos e um pouco frios. Ela ficou estupefacta.
- Sim, Blake; mas quando se ama, deseja-se ter filhos.
- Pois eu não quero, e estou deveras enfeitiçado por si, minha querida, por esses seus ares fora de moda.
Avançou a mão comprida, magra e tão bela, e acariciou a dela sob a mesa; Susana sentiu a respiração suspensa. Tal contacto assustava-a; Blake era tão forte e tão meigo! Não tinha, pois, que temê-lo. Seria sua mulher... mas então, por que é que, apesar de tudo, sentia ainda um pouco de receio? Depois de casarem, havia de querer ter filhos; dizia que não, sem dúvida, porque nunca casara e nunca tivera propriamente a sua casa. A mãe morrera-lhe quando criança e o pai conservara-se viúvo. Muito ricos, tinham viajado bastante.
- Desejava tanto vê-lo estimar João e Márcia! - dizia numa ansiedade. - Márcia tem pestanas muito compridas e João é tão bom rapaz!
- Mal posso imaginá-los. Filhos, a senhora! Não, decerto os inventa para me assustar.
Ela, porém, não gracejava.
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- Não, é verdade, Blake. E a sua afeição por eles é indispensável à minha felicidade.
- Nesse caso, prometo estimá-los - respondeu ele alegremente.
Mostrou-se, de facto, muito gentil com as crianças. Susana matutava se ele as estimaria realmente. A sua bondade testemunhava-se de forma bastante estranha. Chamava-os:
- Apanhem isso! - e lançava-lhes alguns francos. Comprem balões; gosto de ver os rapazes com balões.
- Hei-de gastar tudo isto em balões, mamã? - perguntou João, desolado.
Blake desatou a rir, com o seu riso alto e claro:
- Não, meu rapaz. Balões, quer dizer: tudo o que mais desejares. Disse isto, porque gosto dos balões.
- Então, hei-de comprar-lhe um - respondeu João, desejoso de se mostrar gentil nessa situação nova.
O rapazito temia-o um pouco. Susana sentia nele esse medo subtil, hesitante. Era muito educado e nunca se esquecia de lhe dar os bons-dias e de agradecer a Blake quaisquer presentinhos. Mas, na maior parte do tempo, sentia certa confusão.
- Que hei-de eu fazer disto, mamã? - perguntou um dia, depois de Blake ter saído, com o olhar fixo num tigre grotesco de terracota, que, com a cabeça virada para trás, olhava a cauda lamentosamente.
- Também não sei - respondeu Susana, sincera.
- Eu acho-o jolie - declarou Márcia, com o seu arzinho atrevido.
Márcia é que não se sentia nada assustada. Ninguém a intimidava e não temia coisa alguma. Ao princípio, declarara a Blake:
- O senhor agrada-me. Gosto muito de si.
- Muito bem - respondeu ele, amável-; aliás, toda a gente faz o mesmo - acrescentou, travesso- isto é quase toda a gente, porque, às vezes, Susana não gosta de mim.
;- Em todo o caso, eu gosto - respondeu Márcia, muito séria. Colocara mão protectora na de Blake, olhando para a mãe com aspecto arrogante. Era absurda a arrogância da criança, o amor duma criança, mas a verdade é que Susana sentira a necessidade de estender também a mão e de tocar Blake...
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- Se o tigre não te agrada, fico eu com ele. Então, dá-mo, João.
- Toma-o; eu não o quero. Márcia pegou logo no tigre e disse:
- Chamar-lhe-ei Blake. - E murmurava, acariciando-o:
- "Querido Blake, meu lindo Blake".
- Esse tigre é realmente muito feio; mas estou contente por não o teres manifestado diante de Blake - disse a mãe.
João arregalou os olhos.
- Oh! Eu nunca faria isso!
- Pois a mim agrada-me - repetiu Márcia.
Susana achava difícil anunciar a Joana o seu próximo casamento. Esperou, por isso, a hora em que as crianças já estivessem deitadas, para ir à cozinha, uma noite. Não sabendo como proceder, declarou logo, sem preâmbulos:
- Joana, vou casar.
Esta ergueu a cabeça por cima do fogão, exclamando:
- Oh, minha senhora! Mas não com um francês, não é verdade?
- Não, é um americano, de Nova Iorque.
Joana olhava-a fixamente; ainda não conhecia Blake.
- Pois existe um americano nesta cidade? Por mim. minha senhora, ainda cá não encontrei uma alma cristã,
Susana riu-se.
- É escultor também.
- Ah, é o tal! Os meninos já me falaram dele, mas esqueceram-se de me dizer que era americano. Bem desejo que isso seja para bem. Sabe-se lá. Cá por mim, acho que é preferível não acordar o gato que dorme. Já é muita sorte fazer-se um bom casamento uma vez. Não há muita gente de bem nesse mercado. Os bons maridos estão tomados, ou já morreram.
- Vai conhecê-lo - disse Susana. - Deve vir cá amanhã. Gostaria que os meninos estivessem apresentáveis.
Voltou-se, pronta a sair, sentindo-se pouco à-vontade na atmosfera sombria que de Joana emanava. Era ridículo. Susana não iria dirigir a sua vida segundo os gostos de Joana, que não tolerava qualquer mudança.
- Por que toma assim esse ar lastimoso? - disse, impaciente já. - Devia sentir-se contente por me ver novamente feliz.
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Mas Joana recusava-se a mostrar-se contente.
- E iremos viver em Nova Iorque?
- Sem dúvida.
- E todas aquelas framboesas a perderem-se la em casa, todos os anos! - tornou Joana.
Susana já não ouvia. Joana estava ao corrente; agora era preciso dar a notícia às crianças. Dirigiu-se ao quarto delas, onde os dois leitos se encontravam lado a lado.
- Já dormem, meus queridos? - Sentou-se na cama de João e procurou a mão de Márcia.
- Não - respondeu aquele.
- Eu estou já a dormir - disse a menina.
O irmão endireitou-se logo, exclamando em tom de censura:
- Márcia, não, tu ainda não dormes! Se assim fosse, não podia ela saber que está aqui, não é verdade, mamã?
- Mas tenho os olhos muito fechados, muito.
- Isso não tem importância - disse a mãe. - Bem podes despertar, porque vou fazer uma surpresa a vocês. Meus queridos, vou casar com Blake e iremos todos viver em casa dele.
João - a mãe sentia-o - não fazia a mais pequena ideia do que o casamento significa. Márcia, porém, abriu os olhos e guardou silêncio, de olhar brilhante fixo sobre a mãe, com uma expressão oculta e significativa.
- Onde é a casa? - perguntou João.
- Em Nova Iorque.
- E depois? - desta vez foi Márcia quem fez a pergunta, muito animada.
- Penso que é tudo - respondeu a mãe, admirada de não haver mais coisa alguma. - Ele vem visitar-nos amanhã e desejo que vos mostreis o melhor que puderdes. Fica a ser o vosso novo pai, como sabeis.
- Não sabia - disse João.
- E eu nem me lembro do primeiro-observou Márcia.
- Eu, um pouco-continuou João.-Era muito alto, não era, mamã? E brincava comigo quando entrava em casa.
- Era assim-respondeu Susana com voz firme. Marcos saiu vagamente das sombras. Veio ao chamamento do filho, e ela viu-o, como há muitos meses não lhe acontecia. Não pôde suportar isto. Márcia continuava a olhá-la com olhos imóveis e curiosos.
- Em que pensas, Márcia?
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- Blake gosta mais de si do que de mim?
- De mim, duma maneira; de ti, doutra - respondeu a mãe. E desviou o olhar daquele rostozinho frio, de traços tão perfeitos. - Vá, durmam... durmam... boa noite acrescentou rapidamente.
Sentiu-se muito orgulhosa deles, quando se apresentaram diante de Blake, tão aprumados, tão asseados. João fez um cumprimento seco, à francesa, e Márcia uma vénia. Nos outros dias, saltava logo sobre Blake, agarrava-se-lhe ao pescoço, joelhos muito apertados contra ele. Mas era como se fosse um estranho. Saudou-o sem dizer palavra. Em seguida, ambos os pequenos lhe estenderam umas mãozinhas muito lavadas.
- Muito bem, obrigado - disse Blake, gravemente.- Trouxe-lhe chocolates, minha menina; e para si, cavalheiro, uma caixa de lápis. - E apresentou-lhes as duas caixas.
- Muito obrigado... Muito obrigada... - disseram ambos, depois do que olharam para a mãe.
- Abram-na, vá, meus queridos. É muita gentileza da sua parte, Blake.
Mas João indagou:
- Já perguntou, mamã? Sabe...
Ela esquecera-se já do que seria e voltou para ambos uns olhos vagos.
- Sabe bem... Papá... - murmurou Márcia.
- Ah, sim! Como pude eu... Blake, que nome hão-de eles dar-lhe, a partir de hoje? - E sorriu-lhe. Ele mostrara-se muito bondoso, trazendo aqueles presentes. Sentia assim uma impressão tão agradável, vendo reunidos todos aqueles a quem amava! Joana trazia já o chá. Susana sentia-se bem em sua casa.
- Aqui tem também a nossa querida Joana - exclamou; e aquela fez uma reverência.
- bom dia - disse Blake, indiferente.
Joana baixou a cabeça e saiu bruscamente. Blake prosseguiu, de olhar posto em João e Márcia:
- Realmente, não gostaria muito de ver uns petizes já crescidinhos chamarem-me pai, assim de repente. Teria a impressão de que os dentes da frente me iam cair, o mesmo me sucedendo com os cabelos. Pôr-me-ia a tremer. Seria melhor chamarem-me Blake, muito simplesmente... Sim, tomarei uma chávena de chá, Susana.
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- Eu não lhe chamaria pai - disse Márcia, subitamente.
- Porquê? Que é que tem hoje, a menina, que está fria como um bloco de gelo?
- O senhor não é meu pai.
- Lá isso é verdade - respondeu Blake, vivamente. João voltou-se para a mãe:
- Não fazia diferença que eu fosse tomar o chá com Joana, mamã? Deve sentir-se um pouco só, na cozinha.
E saíram ambos, levando os seus pratos em equilíbrio; Susana olhou para Blake, muito orgulhosa:
- Não é verdade que são simpáticos?
- Muito simpáticos... Susana, vamos ver essa exposição de franceses modernos. - Consultou o relógio. - Temos de nos apressar.
Aquela levantou-se e entrou na cozinha. João e Márcia estavam sentados à mesa, como Joana, mudos todos.
- vou sair, mas pouco demoro-disse.
- Muito bem, minha senhora - volveu Joana, olhando para Susana com um ar lastimoso, por cima duma grande chávena de chá.
Susana hesitou:
- Até logo, meus filhos; não virei tarde.
- Boa tarde, mamã - disse João.
Márcia não respondeu; olhava a mãe com um ar de reflexão, ao mesmo tempo que mastigava devagarinho, com os lábios muito cerrados.
- Há qualquer coisa de estranho em Márcia - disse Susana para Blake, quando ambos iam já caminhando, naquela tarde fria e brilhante.
- É uma garota interessante - observou Blake. - Sob certos aspectos, é mais velha que você; nasceu já mulher, como sucede com outras, já instruída.
- Que quer dizer com isso?
- Esqueça-os por momentos - respondeu ele, impaciente.- Agora, está comigo, Susana.
Ela amava-os, amava-os muito. Mas quando passeava com Blake pelas ruas, deixava-os para trás.
Blake mostrava-se muito bom para os pequenos, com aqueles modos bruscos e alegres. Susana e ele tinham-se habituado a passar as tardes, sós, em qualquer lugar de diversão ou no estúdio; mas aos domingos levavam sempre
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as crianças, com Joana, ou ao Bois, ou ao teatro ou até a Fontainebleau, à medida que a Primavera ia avançando.
Blake nunca procurara fazer-lhe crer que preferisse estar a sós com ela.
Ora bem - dizia, alegre, quando a porta se fechava
sobre as crianças. - O seu dever está cumprido. Agora, Susana, faça-me o favor de não pensar senão em mim.
- Ah, nunca penso senão em si! - respondeu cheia de remorsos. - Quando estou com eles, sinto-me ansiosa por vir ter consigo. E quando trabalho, não faço senão ver as horas, eu, que em nada pensava até cair a noite, quando já não via o que fazia.
Blake apoderou-se dela, num riso triunfal:
- Você ama-me! - exclamou.
E aquele tom de certeza na voz fê-la estremecer...
- Mas então que há? - perguntou-lhe o maitre, uma manhã. - A Mademoiseile, que era tão infatigável para o trabalho, perde agora o seu tempo a examinar o que está feito. Como há-de terminar a tempo de enviar este mármore ao Salon? Está quase pronto, e não sai daí...
Blake ouviu-o; aproximou-se logo que o velho escultor virou costas, e, enquanto os outros condiscípulos franceses os olhavam disfarçadamente, cheios de curiosidade, murmurou, num tom de quem dá uma ordem:
- Acabe lá isso; vamos casar e voltar para casa.
- Quando? - perguntou, surpresa.
Todas as tardes ele lhe dizia: "Casar-nos-emos brevemente... muito brevemente...", mas a última palavra perdia-se entre beijos.
- Por que é que se decide assim tão depressa?
- Estou farto de tudo isto. Quero levá-la para minha casa.
Susana não respondeu. Deitou-se ao trabalho e terminou o seu mármore. Encontrou, por fim, alguns momentos da antiga solidão, tão fecunda. Esqueceu Blake durante alguns bocados, enquanto acabava os olhos, as mãos, a linha dos cabelos. Depois, cinzelou no pedestal de mármore rugoso, em pequenos traços profundos, estas palavras: Mulher Ajoelhada, e, em letras ainda mais finas, o seu nome.
Na semana seguinte, na véspera do dia em que deviam embarcar, casaram-se tranquilamente na repartição
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competente, depois do que Susana voltou para casa, exactamente como fazia em qualquer outro dia. Disse para os seus:
- Casámos hoje, Blake e eu. Joana exclamou:
-- Oh, minha senhora, mas dessa maneira, tão depressa!...
- Mamã! - exclamou João.
Quanto a Márcia, limitou-se a olhá-la, continuando logo o seu jantar.
- Eu não mudei -disse-lhes Susana, tranquilamente. Inclinou-se e beijou-os, depois do que se dirigiu para
o seu quarto, a tirar o chapéu e alisar os cabelos. Era a sua última noite naquele quarto pequenino. Blake dissera: "Despachemos isto; detesto os casamentos". Não fora, assim, uma boda, mas um simples contrato com as suas duas assinaturas. Blake ainda lhe pedira, com as feições tensas: "Vem ter comigo, ao meu quarto... esta noite. Por que não?" Mas ela abanara a cabeça: "Não, Blake; não posso deixá-los. Nunca ficaram sós, à noite". E voltara para casa.
Nem procurara convencê-la, embora ela estivesse preparada para a resistência. O rosto de Blake abrira-se; acendera um cigarro.
- Ora, Susana; hoje ou amanhã, isso quase não tem importância. - E sorrira. - Reservei o mais lindo camarote de luxo, para meu prazer.
Ela sentou-se e reflectiu. Amava-o inteiramente. Sabia agora que Blake descobrira nela uma mulher adormecida até à sua chegada. Junto dele, tornara-se nessa mulher tímida, fremente, cheia de ardor e viva, viva! Ele arrancara um envólucro após outro, até atingir o próprio âmago da feminidade. Não se importava para nada de que ela tivesse o poder de criar, de produzir. Que fosse escultora, que tivesse talento ou não, era-lhe indiferente. Ria-se todas as vezes que ela lhe falava a sério em trabalhar.
- Para que trabalhar, se me tendes para cuidar de vós?- dizia; e, sem lhe dar tempo para responder, exclamava com paixão: - Susana, sabes que há uma covinha à esquerda da tua boca? Espera, não te mexas... Deixa-me beijar-te.
Ela esperava, e esquecia...
Procedera precisamente como desejava. Então, para que pensava constantemente na sua Mulher Ajoelhada e na
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sorte que lhe estava reservada, sozinha entregue nas mãos de velhos académicos?
- Susana! Susana!
Começava o dia a ouvir chamar pelo seu nome. Dormia agora como nunca, desde a sua infância. Era a voz de Blake
que a despertava.
- És tão bela quando dormes, que sinto a necessidade
de te acordar para to dizer!
E ela acordava; o tal camarote de luxo era inundado do ar fresco do mar, de sol e do som da sua voz. Sentia-se bela, então, estendida, meio adormecida ainda, sob os seus olhares. Era uma mulher bela, nada mais, e tanto bastava.
- Susana, lembras-te de ontem à noite? Todas as manhãs, quando acordas, os teus olhos têm o ar de haver
esquecido.
Ela curvava a cabeça rapidamente, timidamente. Lembrava-se de tudo. Em face deste amor pormenorizado pelo seu corpo, julgava-se de mármore e que era ele quem a libertava, esculpindo-a, que era como se fosse de argila, e ele lhe desse uma forma. As mãos de Blake, tocando-a,
é que a definiam.
- Susana, deixa-me sentir a linha dos teus ombros, as tuas costas e a tua linda coxa, o teu joelho, o teu tornozelo, o teu pé delicado. O teu corpo é tão robusto! Não gosto das mulheres fracas.
- Preciso de ser forte, para o meu trabalho - dissera uma vez; e ele respondera, rápido:
- Não. És forte, porque é belo ser forte.
Esta adoração estava em vias de criar um novo ser, uma mulher consciente de si mesma, avisada. Isto não se parecia nada com um casamento e não reavivava qualquer lembrança. Sentia-se antes a sua amante, bela e amada. E o amor de ambos não ia além deles mesmos. Não tinham qualquer desejo de construírem um lar, nem de levar juntos uma vida vulgar. Não existia mais que esta proximidade, apenas, intensa, enternecedora, de toda a hora. Levantou-a do leito e envolveu-a num penteador de rendas. Os armários estavam repletos de roupas deste género, que ele mesmo escolhera.
- Vai lavar o rosto e pentear-te - disse-lhe.
Quando voltou, o almoço encontrava-se servido na
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saleta privativa. Comeram juntos, apaixonados e risonhos. Ele fazia-lhe esquecer tudo. Susana disse-lhe um dia:
- Deveria ir ver como estão os meus filhos.
- Não, não deves ir. O que deves é amar-me. Não tens outro dever, nem outro prazer.
Tomou-a então nos braços e ela abandonou-se de novo àquele momento. Cada um destes instantes é que constituía a vida, uma vida nova e brilhante. E ela ria, ria sempre. Dia após dia, o oceano dançava, num azul esplendente. Era lua-cheia. Susana mal via os filhos, sempre ajuizados e contentes, e quase nem pensava neles.
Cada pormenor parecia tão perfeito como peça admiravelmente dirigida. Blake sentia prazer com a perfeição dos pormenores; mas havia ainda a lua-cheia, o mar calmo, a sucessão dos poentes de cores fantásticas, que ele não poderia prever.
- Até me parece--disse ela, certa noite, encostada ao ombro do marido, à proa do barco - que terias sido tu quem encomendou tudo isto, sol, luar e mar cor de púrpura.
- E foi o que fiz - respondeu Blake, gravemente. Eu disse a Deus: "Ponde todos os maquinismos em acção; ela vai atravessar o vosso velho oceano". E Deus mostrou-se dócil.
Ambos se puseram a rir; ele cingiu-a de encontro a si e beijou-a.
- Blake - murmurou, com a garganta estrangulada. Blake, em parte creio no que acabas de dizer acerca de Deus.
E viveu esse instante duma maneira intensa, ela e Blake apertados um contra o outro, unidos pelo luar e pelo mar sombrio e polido.
"Nunca, na terra, poderá, seja o que for, macular a perfeição destes poucos dias passados no mar", pensou Susana, ao ver os edifícios surgir sobre o porto, indistintos ainda, contra o céu. Blake e ela haviam-nos vivido distantes do mundo. Agora seria preciso pensar seriamente no lar a construir, nos criados, numa espécie de existência que nunca levara, numa grande cidade. A maneira de viver de Blake desorientava-a. Conhecia-o tão Intimamente, e tão pouco sabia a seu respeito! Quando estavam sós, aquele
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conhecimento ultrapassava tudo quanto julgara humanamente possível. Mas depois, para além da porta do quarto, ele tornava-se bruscamente um outro homem, condescendente, um pouco impaciente, pronto mesmo a criticar.
Susana - observara-lhe ele à porta do camarote,
quando estavam já prestes a sair - esse chapéu não diz lá muito bem com o vestido castanho.
- Achas, Blake?! - Estava furiosa consigo mesma por se sentir tão humilde em frente dele. Deveria ter respondido tranquilamente: - "Pois eu não sou dessa opinião, Blake". Agora já não podia dizê-lo. Mais tarde, havia de chegar, sem dúvida, a poder exprimir uma opinião diferente da do marido.
- Logo que chegarmos, terás de comprar outro chapéu maior. Deves evitar os chapéus pequenos. - E, depois, acrescentara, com aquele secreto ardor que perturbava Susana ao ponto de lhe fazer esquecer logo o que havia desagradado a Blake: - Bela como és, tudo quanto usares deve fazer realçar a tua beleza.
Susana nunca pensara no seu rosto, nem no corpo, nem nos olhos, nem nas mãos, nem nos vestidos que mais conviriam ao seu género de beleza. Blake criava-a assim de novo, e ela sentia-se valer mais, graças a ele. Talvez fosse por isso mesmo que tanto se humilhava e escutava sempre as suas opiniões. "Estarei eu a fazer-me vaidosa?" perguntava a si mesma, admirada. Blake tornava-a diferente
do que fora.
Mas o barco estava amarrado; e Blake falava já:
- Pai, aqui está a minha bela Susana... Susana, olha
que o pai nunca abandona o campo; deixou-o hoje, por
amor por ti.
Tomara-lhe as mãos, entre as suas, um velho muito alto, de rosto delicado, magro, que envergava fato cinzento-claro. Ela sentiu a secura dessas mãos e também a duns lábios sobre o seu rosto; o olhar daqueles pálidos olhos de velho passou sobre ela, seco e fugidio. E ele disse-lhe, numa voz de timbre agudo:
- Há já muito tempo que desejava ver o meu filho casado, minha querida. Fui muito feliz no lar. Hoje, porém, ao vê-lo, felicito-me pelo facto de ele ter sabido esperar. Susana sorriu. Agradava-lhe aquele velho alto, tão fraco e que tremia já ligeiramente. E disse-lhe, pondo as mãos nos ombros de João e de Márcia:
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- Os meus filhos.
- Sim, sim - respondeu ele, num murmúrio, sem os olhar sequer. - Têm de vir passar o dia a Fane Hill. Mas não pegou nas mãos que os pequenos se decidiram a estender-lhe. Por detrás deles, conservava-se Joana, correctamente vestida de preto; estava muito pálida, e um pensamento furtivo atravessou a mente de Susana: "Deveria envergonhar-me; nem sequer pensei no seu enjoo". Mas antes que pudesse pronunciar qualquer palavra, já Blake os metera a todos num grande automóvel, e rolaram logo através das ruas da cidade, muito brilhantes a essa hora, até chegarem a um tranquilo maciço de casas à beira da água. O carro parou, a porta da fachada abriu-se e apareceu um criado de libré.
- Entra, pai? - perguntou Blake.
- Não-disse o velho senhor Kinnaird.-Não, vou para Fane Hill. Deveis estar fatigados. E, para mim, a cidade nada vale. Os pêssegos são esplêndidos; Liníay vo-los trará pela manhã. Um dos fox-terriers está doente. Tenho de regressar já.
Desceram do carro, que se afastou sem ruído. As crianças estavam pasmadas. Também Susana, bruscamente, se sentiu desorientada, nessa rua e nessa cidade desconhecida. Estava como que enregelada, não sabendo o que iria seguir-se. De repente, sentiu-se erguida no ar e poisada do lado de dentro da porta.
- Estás em minha casa, agora, Susana - disse Blake. E ela viu um vasto vestíbulo muito nu, mas belo. Ao fundo, encontrava-se um quadro feito pelo marido, uma indiana, sozinha, de pé, num quadrado de deserto luminoso, sob o sol branco e forte. A luz parecia brotar da tela. Ouviu, lá fora, a voz de Márcia, gritando: - "Pegue também em mim, Blake, faça-me saltar a entrada".
Blake meneou a cabeça, rindo. Passara um braço pelos ombros de Susana e apressava-se a mostrar-lhe as diferentes divisões. Ela voltou a cabeça e viu os filhos, hesitando, no vestíbulo:
- Vinde, meus queridos - disse-lhes. Mas já Blake dava as suas ordens:
- Aqui tens, Susana, os teus aposentos.
Subiram a escada, seguidos dos pequenos, que trepavam a custo pelos degraus de mármore, nas pontas dos Pés, gravemente.
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Blake dirigiu-se a João:
- Tu, Márcia e a Joana ficais todos no andar de cima.
- Então, venham comigo-disse Joana, levando-os na sua frente.
Blake abriu uma larga porta, e Susana viu de repente os aposentos que ele lhe destinara. Salas enormes, belas e quase nuas também, vazias mas engraçadas, com uns móveis simples e de linhas direitas, e janelas aos cantos, que deixavam passar uma luz suave.
- Nada de pequeno, nada de mesquinho, para a minha grande Susana - disse Blake. - Fui eu mesmo quem desenhou isto tudo.
- Mas quando? - perguntou-lhe ela, de olhar fixo naquela imensidade.
- Logo no dia seguinte ao do nosso encontro, creio.
- Observava-a, sorrindo.
Susana não encontrou resposta e deixou que o olhar divagasse à sua volta. ?- Agrada-te, isto?
- Sim - murmurou. - É magnífico. - Calou-se por um momento e depois só pôde acrescentar:-Obrigada, Blake, pelo teu amor por mim.
"A CASA está em ordem", disse para si mesma, examinando o salão, estreito mas comprido. Vivera já nessa casa de Blake um número suficiente dez semanas para saber quando tudo se encontrava pronto para o dia. Ao fundo do salão havia um jardim pequeno e depois, mais para além, East River.
Linlay, jardineiro escocês, vinha do campo uma ou duas vezes por semana para tratar das plantas em volta do lago. E, nesses intervalos, era o condutor do automóvel o encarregado de as regar. Nesse dia, acabava Susana de ouvir as queixas de Linlay:
- Bantie não rega isto devidamente, minha senhora. E, se mo permite, falarei ao senhor no caso.
- Oh, não, Linlay - respondeu ela vivamente-; não aborreça o senhor só por isso! Eu mesma falarei a Bantie.
Nessa tarde, quando fosse no carro ao Metropolitano, pensaria em dizer ao moço Bantie...
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Susana ia quase todos os dias, sozinha, ao Metropolitano. Fazia fresco, ali, não havia ninguém, e, assim, podia conservar-se sentada todo o tempo que lhe apetecesse, pensando e repensando naquilo que via.
A casa estava extraordinariamente tranquila no meio do Verão. Os meninos encontravam-se no campo. Blake, agitado, logo na primeira semana observara:
- Os pequenos não costumam ir para o campo, no Verão? ., ,
A verdade é que não deviam permanecer na cidade. Blake mostrara-se extremamente generoso, destinando-lhes toda a parte ocidental da casa; mas fazia muito calor. Certa manhã, Susana fora encontrar Blake no salão, com a cabeça entre as mãos por ver João saltar os degraus da escada.
Ela chamou severamente: - "João!" lançando-se para o vestíbulo no momento em que o filho saltava do último degrau. Mas viu tanta inocência no seu olhar interrogador, que nem pôde ralhar-lhe, limitando-se a perguntar:
- Gostarias de ir para o campo?
- Joana disse que me podia levar para a nossa casa, com Márcia - respondeu o petiz.
- A nossa casa, agora, é aqui.
- Sim, bem sei; mas eu queria referir-me à nossa casa verdadeira.
- Não - disse ela vivamente. - Prefiro que vão ambos para o campo; aprenderão a nadar, lá no rio, e muitas outras coisas. ""
Trabalhou com Joana, durante uma semana, nos preparativos. Blake foi magnífico; deu a João uma cana de pesca caríssima e explicou-lhe a maneira de empregar as moscas como isco. Poucas coisas havia que Blake ignorasse.
Mas na semana anterior, João escrevera à mãe, em segredo: "Poderia mandar-me uma linha ordinária, sem dizer a Blake? Os camaradas entendem que as linhas vulgares, e que toda a gente usa, dão mais resultado; e também nos servimos, de preferência, de minhocas". Então, a ocultas de Blake, pois por coisa alguma do mundo lho teria confessado, Susana pôs-se a procurar nas lojas de artigos de desporto uma linha das que se empregam vulgarmente, e mandou-lha.
Márcia era ainda pequena de mais para já poder escrever; mas todos os quinze dias uma carta em regra
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transmitia notícias pormenorizadas a seu respeito: estava de saúde, devia tornar-se esplêndida nadadora e montaria bem a cavalo, tendo muita inclinação para estas coisas, mas o apetite era caprichoso e o génio revelava-se um pouco intratável. Susana mandou perguntar: "Márcia não mostra ter saudades?" e a resposta foi: "Uma vez por outra, ainda fala do padrasto; mas, agora, pode-se dizer que não sente a falta de ninguém".
Quando eles partiram, Joana dissera com energia:
- com todos estes criados cá em casa, a senhora quase não terá necessidade de mim até à volta dos meninos. Aproveito para ir até nossa casa fazer uma boa limpeza por lá e arranjar a compota de framboesas.
Blake e ela achavam-se, pois, em sua casa.
- Sentes vontade de sair - perguntou-lhe, um dia, o marido.
- E tu?
- Não. Gosto de estar aqui. Adoro esta casa e esta cidade. E depois tenho cá umas ideias que quero realizar, em terracota. Nova Iorque é admirável no Verão, quando toda a gente sai.
Mas a verdade é que a cidade regurgitava ainda de habitantes.
Susana observava-os, às vezes, das janelas sobranceiras ao lago. E não fazia coisa alguma, absolutamente; dedicara-se toda ao amor de Blake.
Este, em certos períodos, trabalhava sem descanso. Instalara um estúdio no andar mais alto, dizendo a Susana, logo no primeiro dia, quando ali a conduzira:
- Querendo continuar a trabalhar, podes fazê-lo aqui, Susana.
- Espero bem que sim - respondeu, admirada. Mas continuava ociosa...
Blake pareceu não ter ouvido, continuando a mostrar-lhe tudo. Sentia-se orgulhoso da sua casa e sobretudo do estúdio, para o qual desenhara a planta, com as suas grandes janelas com cortinados e respectivo sistema de cordões e roldanas tão engenhosamente combinado, e inúmeros armários onde guardava os materiais, as pranchas de desenho, os utensílios... No sótão deserto, ou no estúdio arrumado de qualquer forma, mas tão prático, do velho Mestre, nunca Susana poderia idealizar tamanho luxo. Subia lá acima, muitas vezes, para seguir o trabalho do
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marido; mas, por si, nada fazia. Rodeada de tudo quanto poderia desejar, coisa alguma a atraía.
Aliás, para que apressar-se? Era agradável viver na casa de Blake, ser sua mulher. Era quase quanto bastava. Quando casara com Marcos, pensava sempre nas muitas coisas que queria empreender. Agora, porém, mesmo que Blake fosse pobre e ela obrigada a cozinhar e a fazer as limpezas, nada mais pediria do que o que de farto era, a amante de Blake. Nem podia pôr na sua imaginação um Blake pobre.
- Ainda não tenho a impressão de ser tua mulher, Blake - repetia-lhe a todo o momento.
- Isso não tem importância - respondera-lhe ele uma vez, naquele seu tom alegre -; foi um simples acidente, uma concessão feita às conveniências. A única realidade, nisto tudo, é seres tu aquela que eu amo.
Empilhara almofadas sobre o largo divã do estúdio, e, dali, Susana via-o trabalhar com extraordinária rapidez. Assobiava então, devagarinho e sem cessar, trechos de canções, interrompendo-se apenas para encher o copo ou para estender-se ao lado dela, num daqueles momentos de paixão que surgiam nele tão bruscamente, que Susana ficava como que desarmada, aturdida. O ardor, nele, surgia rápido, antecipava-se ao de Susana.
Observando-o, admirava-se às vezes de se sentir satisfeita. Não lhe vinha já o desejo de criar, talvez vergada ao peso da obra que o marido realizava tão rápida e alegremente. Comparado com o de ."Blake, o seu trabalho pareceria pesado e lento. Modelava ele, então, aquilo a que chamava a sua "galeria dos modernos". Uma ou duas vezes por semana, quando Susana abria a porta do estúdio, via logo um modelo, rapaz ou rapariga, de corpo magro. Blake desenhava-lhes as silhuetas rapidamente, traçando superfícies côncavas, irregulares, simultaneamente absurdas e verdadeiras.
- Não compreendo, de forma alguma, como isto é feito
- dizia-lhe então -; mas sinto que é artístico.
- É a única arte da época - respondera Blake em tom de indiferença.
Susana observou-o. Deveria contradizê-lo. Ele estava em erro. A arte não pode pertencer a uma época apenas.
- A única arte viva! - acrescentara depois, continuando logo a assobiar um bocado duma rumba que
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tinham dançado na véspera. Levava-a todas as noites para o meio de gente desconhecida e ambos, lá de cima, por entre as estrelas, olhavam as léguas e léguas de pequenas luzes, dispostas em fiada sobre a terra a seus pés.
Um dia, fizera a Blake esta pergunta:
- Eu deveria ir ver meus pais. Mas por que é que não sinto vontade alguma de o fazer? No entanto, julgava estimá-los. E estimo-os, sem dúvida.
Ele respondeu:
- É que eu estou a fazer de ti uma mulher sincera. E tu nunca desejaste ir vê-los, embora sintas que era o teu dever. É da natureza das crianças o detestar os pais.
- Não posso acreditá-lo! - exclamou, surpreendida. E reflectiu nisto, perturbada. Acontecia que Blake muitas vezes descobria certas verdades, acertando, sem esforço.
- Por que não vais vê-los, então? Por que é que eu me sinto perfeitamente feliz sem meu pai, e este nem vem mesmo passar uma noite junto de nós? Porque é que João e Márcia são tão felizes longe de ti?
Ela não respondeu. Quando Blake estava a trabalhar, como nesse momento, às feições tornavam-se-lhe duras, tão duras como as figuras angulosas que modelava.
- És duro, Blake. Porquê?
- Sem isso, não se chega a coisa alguma. A beleza pura é fria - respondeu, recuando para melhor observar a massa a que estava dando forma. - É o melhor trunfo que nós temos, nós, os novos, este de sermos duros.
- Mas porquê?
- É o desejo bárbaro da beleza. A beleza é fria. Não. Não havia nele doçura alguma. Ficava insensível,
mesmo nos momentos mais apaixonados. A própria ternura tinha o cunho da dureza... Qual fora a sua vida? Susana não procurava sabê-lo. Blake nunca a interrogara também sobre a dela antes de se conhecerem, nem ela falava a tal respeito. Viviam como se o presente contivesse tudo em si. E talvez fosse esta a verdade.
Susana foi para o seu quarto, fechou a porta e redigiu uma longa carta aos pais: "Sou perfeitamente feliz, meus queridos - escreveu no fim - e irei, um destes dias, fazer-lhes uma longa visita". - E mais adiante: "Já se sabe que Blake tem grande desejo de conhecê-los"; e por fim, num último pós-escrito, escreveu esta frase infantil: "Não
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esqueçam que os estimo muito. Sue". Mas por nada no mundo deixaria que Blake lesse esta carta.
Blake simpatizou logo com Maria.
Susana escrevera à irmã, assim que chegara a Nova Iorque, mas essa carta ficara sem resposta. Depois, Subtamente, decorridas já algumas semanas, Maria aparecera, entrando muito naturalmente, como uma visita costumada. Declinara o nome e esperara no comprido salão. Blake encontrou-a ali e partiu logo em busca de Susana, que lia no seu quarto.
- Está lá em baixo uma menina chamada Maria, que diz ser tua irmã. É interessante, mas não se parece nada contigo.
Susana desceu e encontrou Maria, toda de branco e preto, com as mãos pálidas cruzadas nos joelhos.
- bom dia, Susana! - disse. - Parece-me engraçado, isto de teres casado com Blake Kinnaird!
- Pois conheces Blake? - E Susana beijou o rosto fresco e pálido que Maria lhe estendia. Esta não beijava ninguém; limitava-se a dar a face, olhando para o outro lado.
- Eu, não; mas Miguel.
- Onde está Miguel?
- Acabamos de chegar da Noruega - respondeu Maria sem se perturbar. - Pintou os rochedos, a água e coisas deste género. Ele admira muito Blake; mas riu-se quando soube que havia casado contigo. Isto já muda muito de figura, para o teu caso, Susana. Miguel diz que nem pode imaginar o Blake casado. Enfim, terás assim a tua independência; ele não quererá filhos, nada disso.
Blake entrara, acendendo um cigarro, e os seus olhos cinzentos lançaram a Maria um olhar de lado.
- Que é que falavam de mim? - perguntou.
- Estava eu a dizer que Susana poderia conservar a sua independência, consigo - respondeu Maria com tanto aprumo como se sempre tivesse conhecido Blake.
De facto, não mostrava timidez nenhuma. Podia manter-se silenciosa, tratando-se de mulheres; mas com os homens, não.
- Nenhum de vós compreende Susana - observou Blake-; tu não tens quaisquer veleidades de independência, pois não é verdade?
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Maria sorriu:
- E já não manténs as tuas teorias?
De forma alguma - respondeu Blake, ousadamente.
- É a mulher mais feminina da sua espécie.
Sempre o supus - disse Maria, fazendo um trejeito
com os lábios. - Mas não se fie muito nela. Às duas por três, faz-se finória e apresenta-lhe um nené. Sempre desejou tê-los...
- Se tal fizesse, seria razão para divórcio - declarou Blake. - Eu casei com uma mulher chamada Susana Gaylord, e não Susana Gaylord C.a.
Ripostavam, e riam-se, cáusticos, absurdos. Blake entendia-se bem com aquele género de mulher; e, embora então o visse pela primeira vez, também Maria se encontrava, já, com ele, muito à-vontade. Susana, sentada, observava-os, sorrindo, cônscia de certa perturbação, como se estivessem a troçar dela. Sentia-se acanhada, de espírito lento e abatido. Quando Maria se retirou, perguntou humildemente a Blake:
- Por que casaste comigo, Blake?
- Nem faço a mais pequena ideia - respondeu este, com um olhar implicativo,
- Achas Maria bonita?
O salão estava mergulhado numa semi-obscuridade e por isso não podia ver o rosto de Blake.
Este estendeu a mão, pegou num cigarro e o fósforo brilhou, iluminando-lhe o belo rosto delgado, tornado frio de repente, numa atitude circunspecta.
- E eo?... Quanto a mim, não o sei. Mas vejo apenas que nada me custaria fazer o seu retrato. Tem linha. Mas não se parece nada contigo.
Susana tinha desejos de gritar: - "Blake, nem fazes ideia de como ela era feia em criança! Era simplesmente detestável!" Mas horrorizou-a tal falta de generosidade. Desde que amava Blake, já nem se reconhecia. Nunca, antes, tivera tais pensamentos a respeito de Maria. Um terror a assaltou ao ver-se tal como era, mas calou-se e pensou logo: - "Poderia dar agora qualquer coisa a Maria, qualquer coisa de realmente bonito e de caro. Blake é tão generoso comigo!"
O marido, de repente, levantou-se:
- Acendamos as luzes - disse -; tenho horror às casas sombrias.
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O salão tornou-se deslumbrante, com a luz. Blake apoiou-se à poltrona de Susana.
- Em que pensas? , ,
- Estava a pensar em que gostaria de dar um presente bonito a Maria...
Ele ria-se, inclinado para ela, mas os olhos cinzentos brilhavam, cortantes.
- Tiveste pensamentos ruins a respeito dela, e agora sentes-te envergonhada.
- Como o adivinhaste?
- Como és simplória, Susana! - disse ele, tornando a rir-se.
- Sou assim tão simples? - perguntou ela, fazendo-se muito humilde. - Demasiado simples para ti, Blake? Teria querido deter aquele riso. Por que é que troçava dela tantas vezes?
- Quando se é bom, é-se sempre simples.
E continuava inclinado para ela, olhando-a nos olhos. Susana ia a começar:
- Maria...
Mas ele atalhou-a:
- Maria é como todas as outras mulheres, e tu não. E está dito tudo.
- O mármore... - dizia o velho Kinnaird.
Susana e Blake encontravam-se então em Fane Hill, em virtude duma súbita vaga de calor, a fim de passarem ali uma semana. Blake, aborrecido, tinha abandonado o seu barro, dias antes.
- Cola-se-me tudo aos dedos. Trata de arranjar as coisas, Susana. Fane Hill é preferível a isto aqui. A casa, lá, chega bem; e o pai não nos há-de incomodar muito.
- Gostaria de o conhecer melhor. - Susana levantou-se dum salto. Só a ideia das árvores a fazia já ofegar.
- Sim, mas olha que não é fácil compreendê-lo. Blake lavava as mãos minuciosamente, perfumando-as depois, porque o barro deixava nelas um cheiro que lhe desagradava.
Uma hora depois, partiam, e Susana encontrou-se em breve sentada sob um grande olmeiro, com um refresco namão, escutando o velho Kinnaird. Blake, estendido no chão, de olhos fechados, pernas e braços estendidos, conservava toda a graça na sua prostração.
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O velho Kinnaird mexia devagar, com uma comprida colher de prata, o copo que tinha em frente.
- O mármore - dizia - é difícil de conhecer. Não basta toda uma vida, para isso. Creio bem que percebo hoje mais do que ninguém a tal respeito. Não me contento com vendê-lo; guardo os bocados mais belos, para os estudar e compreender, e acabo por cedê-los aos conhecedores.
"Ele poderia bem ser arrancado de um dos seus mármores", pensava Susana. Conservava-se fino e direito, sentado sob as árvores, cuja sombra, agitada por uma brisa ligeira, lhe roçava o fato de flanela creme. Sobre os sapatos brancos, um pequeno jox-terrier, negro, dormia um sono agitado, de ouvido alerta.
- A propósito - disse ainda a voz seca, de timbre argentino - se sentir vontade de trabalhar o mármore, terei muito prazer... Ainda possuo aí algum de Itália, que conservo há anos, pensando que Blake poderia um dia inclinar-se para isso. Mas segue outros caminhos...
- O que eu faço não exige mármore - murmurou Blake, sem abrir os olhos.
Susana sentira despertar um ligeiro movimento de interesse em qualquer ponto vago do seu corpo.
- Gostaria de ver esses mármores... isto é, mais tarde... Blake bocejou ligeiramente, sem perder o seu ar amável.
- Detesto o campo - disse muito baixo. - Torna-me estúpido. Adormece-me.
Tapou os olhos com o braço e logo caiu num sono leve.
- Por que não agora? - perguntou o senhor Kinnaird. Havia nele um ardor de que Susana não se apercebera
até então. Ergueu-se logo.
Deixaram Blake adormecido sobre a relva e tomaram por um carreiro sombreado.
- Conservo aqui todos os bocados melhores. Examino tudo o que sai e separo logo o que não quero vender, esses blocos que reservo para mim...
Tirou uma chave do bolso e abriu a porta dum vasto armazém de madeira bruta, situado ao fundo do carreiro e onde havia blocos de mármore de todas as dimensões.
- Estão à espera - disse ele, com suavidade. - Quereria escolher um para si? Trouxe aqui, uma vez, David Barnes, que levou três: um grande, para um dos seus Titãs, e dois outros mais pequenos. Num destes está agora a esculpir o seu Edison.
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Susana, incapaz de se conservar quieta, circulava por entre os blocos. Um frémito a agitava de novo.
- Não precisa de decidir-se imediatamente. Quando chegar o momento, já sabe o que há aqui. O mármore tem de ser escolhido com vagar.
- Eu sei - respondeu Susana. Quereria acrescentar mais qualquer coisa, mas não podia. Sentiu-se mais aliviada, quando o senhor Kinnaird fechou a porta. No entanto, ainda havia agitação no seu íntimo, como um presságio de sofrimento.
- Blake está enganado quanto ao mármore - disse ainda o velho. - É ele a única matéria, e não o barro, que convém ao verdadeiro escultor. Só os grandes sabem empregar a pedra dura. Mas ela assusta Blake.
Susana olhou o sogro, cuja fisionomia, ao falar do filho, se mantinha fria e calma. Ele continuou:
- O que Blake faz não resistiria ao mármore. É preciso haver um fundo sólido, sem o que o mármore se mostra rebelde. O mármore é para as obras puras, quer dizer, para o que é eterno.
Susana escutava, admirada de que ele assim sentisse. Mas nada respondeu. Nas profundezas do seu ser, qualquer coisa se agitava, tomava vida, como um filho.
Num dos primeiros dias frescos do começo do Outono, foi sozinha ao hospital de Halfred, para ver o grupo que fizera. Muitas vezes estivera tentada a falar dele a Blake, mas desistira. Tinha receio de lho mostrar. Fizera-o há tanto tempo já, que nem sabia se estava mau ou bom.
Preferia vê-lo sozinha, primeiro.
E nos fins de Setembro, numa tarde fresca, lá foi; passava gente, entrando ou saindo. Susana penetrou no vestíbulo e pôs-se a observar o seu grupo, com calma...
Lá estavam as figuras que criara, fundidas no bronze imutável. A pintura é destruída pelo tempo, os livros ganham bolor, morrem e desaparecem, a música cala-se; a sua obra, porém, boa ou má, subsistiria. Olhou gravemente o grupo de personagens, mais eternas que ela própria.
Quanto mais as examinava, mais lhe iam parecendo desajeitadas, enormes. Mas eram-no realmente, ou seria ela que se habituara às estatuetas de Blake, miniaturais e enviesadas? Havia-as modelado antes de conhecer Blake. Eram gigantescas: o homem tinha ombros largos, a mulher
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um seio volumoso. Julgava já ouvir Blake gracejar: "Eternamente realista, minha Susana!" Mas por que era, então, que essas figuras pareciam tão vivas? O metal sombrio reluzia de vida, parecia mover-se e palpitar, sob a luz que tombava lá do alto. Entraram duas raparigas e pararam ao lado de Susana, de olhar fixo, mascando qualquer coisa. Susana ouviu uma delas murmurar para a outra:
- A mulher tem um ar horrivelmente triste, não tem?
- Muito; dá vontade de chorar. Blake teria rido, se as ouvisse.
Susana saiu, voltando logo para casa. Nem sequer perguntou se Blake já entrara. Subiu ao seu quarto e fechou a porta. Despiu o traje de passeio, tomou banho, envolveu-se num roupão de cetim e estendeu-se sobre o divã. Blake dispusera espelhos nos ângulos em frente, e ela viu-se assim reflectida inúmeras vezes, até que o quarto pareceu estar cheio de lindas mulheres indolentes, vestidas de cetim cor de marfim e estendidas sobre divãs de cetim creme. Ergueu uma das mãos lânguidas, tornadas agora indolentes e brancas, como nunca, antes, haviam sido. As suas mãos... as suas mãos! E logo no espelho viu inúmeras mãos erguidas, lindas, flácidas e brancas. Deixou de olhar essas mulheres e ocultou o rosto entre os braços.
Quando Blake entrou, nem se mexeu! E, contudo, ouvira-o. Aquele colocou-se ao lado dela, que continuava imóvel. Sentiu as mãos do marido, que a agarravam pelos ombros, voltando-a para ele. Eram umas mãos vivas e duras, que sempre a magoavam um pouco, como se fossem cortantes.
- Olha! Então não dormias? Pois eu julgava-o.
Ela agitou a cabeça e Blake sentou-se. Nos espelhos, muitos homens altos, belos e finos se sentavam também e se inclinavam sobre lindas mulheres.
- Então, que há? - perguntou ele.
Mas nem esperou pela resposta. Os olhos cinzentos pestanejaram ao olhá-la, e, bruscamente, disse:
- Como és bela!
Nos espelhos, os homens inclinaram-se mais, tomando as mulheres nos seus braços. Ela olhou-os. Todos os homens eram Blake; mas nenhuma das mulheres era ela... Não; não reconhecia aquelas mulheres.
A sua vida, que sempre lhe parecera simples e completa, não era mais que um aglomerado de parcelas brilhantes,
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passageiras, que coisa alguma ligava entre si Não se ajustavam para constituírem uma vida. Susana ia dum aposento para outro, e esses aposentos, tão numerosos, nunca formariam um lar onde a sua alma pudesse viver. Tinha tudo. Nada mais que desejar. Blake amava-a apaixonadamente. Ela era a sua amante. João e Márcia haviam voltado para casa. Era sua mãe; e escutou o que tinham a contar-lhe.
- Apanhei cinquenta e seis peixes - dizia João e comemo-los. Gostaria tanto de que tivesse ido ver-nos, mamã!
- E eu fartei-me de nadar! - Márcia, cor de bronze, fazia que nadava em volta do quarto.
Joana chegou também, trazendo muitos frascos de geleia e conservas de frutas.
- O resto, deixei-o lá em casa, na cave-disse.
- Mas para quê? - perguntou Susana. - Não está lá ninguém!...
- Que sei eu? - respondeu Joana. - Havia ali qualquer coisa que me atraía. Limpei tudo muito bem. Parece que estamos no céu; tudo tão tranquilo!
Em volta, as paredes da casa de Blake pareceram a Susana, subitamente, estranhas.
- Que tal, o novo poço?
- Esplêndido, minha senhora. A água é óptima e fresca. Susana calou-se. Se Marcos tivesse bebido dessa água
pura e fresca, não teria morrido. Mas, nesse caso, também não existiria aquela vida com Blake, e nem podia pensar no que seria sem ele.
Era a amante de Blake, e este o seu amante.
- Põe o vestido oiro-escuro esta noite, Susana - disse ele, pois iriam dançar. - Devias usar sempre o oiro-escuro, minha querida. E deixa que eu te componha o cabelo. Vem aí toda a gente, que quererá ver com quem é que Blake Kinnaird casou. Bem sabes que sempre declarei que nunca me casaria, Susana. Diabos levem os teus lindos olhos.
E sabendo-se a amante de Blake, ela saíra, de fronte erguida, orgulhosa de ver como todos, tão alegres e belos, rodeavam seu marido. O braço de Blake apertava-a ligeiramente.
- Susana! Susana! - Apresentava-a a todos. Os olhos das mulheres encaravam-na curiosos e frios, mas os dos homens eram cheios de fogo. Susana olhava todos igualmente e pouco conversava. Nunca saberia como falar-lhes,
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pensava ao observá-los, ao ouvi-los. Não entendia o que diziam; Blake, esse, compreendia. Mesmo as mulheres sustentavam com ele conversas cintilantes. Todas elas tinham olhos que faiscavam, quando se voltavam para Blake; e esses olhares formavam à sua volta um manto quente. Mas nenhum podia atingi-lo. Estendiam para ele as mãos, ao falar, e ele afastava-as, como se ignorasse que se preparavam para lhe tocar o braço, a mão.
"Blake sabe guardar-se" - pensou Susana; e logo disse para consigo, surpresa: "Mas aprecia isto, gosta um bocadinho de cada uma destas mulheres". Sentada, calma, perguntava a si mesma, desta vez sem humildade e com uma simples admiração, por que é que Blake a teria desposado.
- Divertiste-te muito? - perguntou-lhe ele quando se foram deitar, às quatro horas da manhã. Estava ligeiramente embriagado; tomou entre as mãos a cabeça da mulher, levantou-lha e pôs-se a beijar-lhe a garganta. Ela conservou-se passiva, reflectindo naquela pergunta.
- Creio que sim - respondeu depois. - Mas é estranho! Não consigo recordar nenhum daqueles rostos.
- Bebeste demais, talvez - disse ele, rindo.
Não. Nada bebera durante toda a noite. Limitara-se a observar, a ouvir, a reflectir...
Um dia, Miguel veio vê-la. Encontravam-se sós. Ele fizera-se homem, de repente; Susana notou-o logo. O belo adolescente desaparecera; o seu ar de Cristo parecia nunca ter existido. Os cabelos loiros eram agora mais escuros e lisos. Usava bigodinho e o corpo engrossara-lhe. Não pronunciou o nome de Maria nem falou da sua presença na
Noruega.
- Estou nesta altura expondo... os meus fiordes disse. - Este Verão não fiz senão rochedos, água e nus
- sobretudo, rochas e água. Um corpo de mulher muito suave sobre um rochedo negro, com os escolhos em baixo, que Susana juraria estar na iminência de se afogar. Sente-se o desejo de a ver despedaçada, aniquilada. - Interrompeu-se, e depois acrescentou, em tom indiferente: Neste momento, só pinto coisas deste género... quando me sinto com disposição...
Levantou-se, foi até à janela e olhou o rio.
- Já não pinta cavalos? - perguntou Susana. - Saía-se
à maravilha nos cavalos a correr... Parecia-me sentir
passar o vento.
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-Pintei uns cavalos selvagens à volta duma poça de água, no deserto. É o velho José Hart quem os tem.
- Nada de especial. Eu estava no Oeste Nunca vira, até então, cavalos selvagens. Ouvia falar neles, mas não conseguia descobri-los. Uma noite em que não dormia, saí da cabana e escalei uma colinazinha arenosa. Fui a tempo, pois havia ali nove, bebendo no sopé da colma. Um era preto; os outros, brancos. Deram logo pela minha presença, pelo menos o cavalo preto, que era o guia. Ergueu a cabeça e relinchou, e logo fugiram todos a galope, em tropel, atrás do cavalo preto, pelo luar.
- Parece-me estar a vê-los. Oh, Miguel! Este acendia um cigarro; depois, disse:
- Tenho desejos de observar as reacções que terão um sobre o outro, a senhora e Kinnaird. Um dos dois tem de mudar... Mas custa-me a imaginar um Blake diferente do que conheci...
- Continua solteiro, não?
- Sim, felizmente! Casar seria o meu fim!
- Porquê?
E Susana recordava com quanto desespero ele desejara unir-se a Maria.
- Não permitirei a quem quer que seja que se aproxime demasiadamente. Não tenho a força de resistência necessária. Agora é que o compreendo bem. A minha personalidade sentir-se-ia perturbada. Não saberia que pintar... Consigo, é outra coisa..
- Como assim?
- Uma mulher... Ora!
E deu aos ombros. Ela repetiu:
- Uma mulher, sim; e então?
- com as mulheres é diferente. Elas são fundamentalmente fisiológicas.
Susana aprontava-se já para protestar, mas não o quis fazer.
Na noite antecedente, na obscuridade, uma vez Blake adormecido, ficara tranquilamente deitada, cansada e satisfeita. E satisfeita continuava, e por isso olhou Miguel, sem se perturbar, demasiadamente sincera para lhe responder.
Era a amante de Blake.
Outro dia, foi David Barnes quem entrou, com os seus
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passos pesados; estavam a almoçar, ela e Blake, e aquele aceitou logo o convite para comer também.
- Vós dois... - disse Barnes, passeando o olhar em volta da sala-de-jantar adornada com espelhos, que Blake ali mandara dispor formando ângulos, de forma que os três convivas se viam indefinidamente repetidos. - Blake, sempre supus que em Paris fizesse qualquer coisa que não fosse apenas casar-se.
- Ah! - respondeu Blake. - É que Susana faz parte dessa satânica categoria de mulheres às quais nada se pode propor fora do casamento. Isso não era com ela.
E ao mesmo tempo que falava, ia esburgando uns ossinhos de ave, com gestos vivos e precisos. As suas mãos magras eram hábeis.
- Deus sabe - prosseguiu depois - se eu tinha alguma vontade de me casar. Bem empreguei todos os meios para me livrar, não é verdade, Susana? Mas só havia a encarar uma solução: o casamento!
- Blake! - exclamou a mulher. - Desde o princípio, sempre me falaste em casamento...
Blake trocou um olhar com Barnes e disse:
- O caso é que não percebeu coisa alguma; é pouco inteligente, como sabe, Barnes.
Puseram-se ambos a rir. Ela corou, tomada de dúvidas sobre si mesma, e eles mais riram ainda. Por seu lado, Susana perguntava a si própria se acaso se não enganaria sobre o sentido das palavras de Blake.
- Sei bem que querem fazer-me arreliar - disse, então; a verdade é que não estava muito certa disso.
E menos o ficou ainda, quando, depois do almoço, Blake saiu, deixando-a só com David Barnes.
- Então, sempre quis voltar a casar-se, Susana - exclamou ele bruscamente.
Acendeu o cachimbo, estendeu as pernas e fez estalar os nós dos dedos emporcalhados. Continuou:
- Sempre julguei que tivesse acabado com isso e se deitasse ao trabalho. Não continua a sua obra? É por ser mulher. As mulheres não gostam do trabalho sério.
- Qualquer coisa, em mim, se sentia atraída para Blake
- disse Susana, com sinceridade.
- Pois olhe que Blake não fará como o outro, não me lembro do nome dele. Não terá a bondade de morrer novo.
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- E os olhos de Barnes tomaram uma expressão feroz. Blake viverá um bom bocado; deixará morrer seja quem for. desde que ele viva.
- Se Blake morresse, morreria eu também.
- Ah! Isso é o que a Susana pensa.
Ela calou-se e quando ergueu a cabeça, surpreendeu o olhar de Barnes fixo sobre ela com curiosidade, como se não a reconhecesse.
- Então? Que é que lhe desagrada nisto?
- Não se sente culpada?
- Culpada?
- Sim, culpada, culpada. A sua vida passa, e sem fazer coisa que se veja.
Ela abanou a cabeça:
- O viver já me basta. Barnes murmurou:
- Viver! Chama a isto viver! Então, é inútil falar-lhe neste momento.
Tratou de sair logo. Susana não fez caso, embora, no fundo, sentisse alguma pena dele.
- David Barnes vive num erro - disse ao marido, nessa noite. - Deixou que a arte lhe matasse a vida. E a vida deve estar sempre em primeiro lugar; não é assim, Blake? A arte vem depois, produto de tudo aquilo que vive: flor e fruto.
- Pois ainda pensas na arte? - perguntou Blake; e os olhos cinzentos riam, irónicos. - Julguei que tinhas acabado com tudo isso...
Susana tomou um ar estupefacto, mas, antes que tivesse tempo de responder, ele continuou, vivamente, de olhar animado:
- Susana, pensei num vestido que quero mandar fazer para ti. Um fino tecido de oiro, sobre vermelho. Estás vendo: o oiro menos flexível, rígido, sobre o tecido mole de seda vermelha...
E desenhou num dos blocozinhos de papel que espalhava por toda a casa. Ela inclinou-se para ver. Começava já a gostar daqueles vestidos que ele costumava desenhar. A princípio, sentia-se pouco à-vontade, quando o marido a vestia. Mas, agora, o seu corpo não era mais que argila entre as mãos de Blake. E abandonava-se, feliz por ao menos servir para isso. Não era ela a amante de Blake, e este o seu amante? E continuou a viver a sua vida.
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Tempos depois, lembrou-se de que David Barnes, naquele dia, lhe não falara dos seus Titãs, nem do seu trabalho.
Blake disse-lhe:
-? Minha querida! O Natal não conta, para mim. Mas, já se sabe, podes levar as crianças e ir visitar teus pais. Se não cumprisses esse dever, sentir-te-ias infeliz; eu sinto-me infeliz, cumprindo-o. Por isso, nem sequer irei fazer uma visita a meu pai; deixá-lo-ei jantar sozinho, em Fane Hill, como de costume.
- Nesse caso, que farás nesse dia, Blake? - perguntou-lhe, perturbada. Achava mau deixá-lo assim, nesse primeiro Natal.
Mas Blake detestava os aniversários, costumando dizer: "De que serve lembrar o tempo que passa?"
- Há mil coisas que poderei fazer, mas de nenhuma te falarei. Tudo o que te peço é que, se ficares, não enchas a casa de árvores e de papéis doirados, e que não deixes as crianças cumular-me de presentes, de que não sinto desejo algum.
- Está bem - respondeu ela, tranquilamente. E perguntava sempre a si mesma se Blake era sincero, nestes seus conceitos. Constantemente o observava, na esperança de descobrir, por um pequeno nada, o que não compreendia bem ouvindo-o falar.
Pela primeira vez sentia o desejo de se afastar um pouco de Blake. Quase não suportava a ideia de se separar dele uma só noite, mas sentia-se extenuada. Blake mantinha-a num diapasão que não era o seu. Apesar da sua inacção completa, tinha emagrecido. Assaltava-a o desejo de se sentar longe dele, ao pé do lume, numa casa tranquila, antiga, e de ouvir apenas os sons familiares. Em casa de Blake, tudo era rápido, de acordo com as diferentes necessidades. Os criados, nervosos, mostravam-se deferentes em demasia. Podia dizer-se que Susana nem conhecia qualquer deles. A própria Joana lhe parecia diferente: vivia num quartinho perto do das crianças, sem se misturar com o restante pessoal.
- Joana, vamos passar o Natal com os meus pais.
- O Joãozinho rezou para que tal sucedesse - respondeu a criada.
- Sinto vontade de descansar, embora sem saber de quê.
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Joana abriu a boca, fechou-a e saiu, para começar a arranjar as malas.
Tomada a resolução, as férias pareceram chegar demasiadamente rápidas, e Susana de novo se ligou a Blake: "Não quero deixar-te", dizia-lhe. Mas lá fora, no vestíbulo, João saltitava para um lado e para outro, só com um pé e Márcia estava já com o casaco e o chapéu novos. Tinha de partir, já se sabe;as crianças não suportariam a decepção. Mas, se fosse só, teria ficado. Tinha Blake no sangue, como um veneno embriagador, como um mal muito suave. Fechara a sua vida para tudo o mais.
- Sentes desejo de me deixares, de te afastares de mim
- disse Blake, com os olhos a brilhar.
- Sim? Como o sabes?
- É que mudaste um pouco, Susana; muito pouco, mas mudaste. Sinto-o, quando te tenho nos braços. Já não te abandonas completamente. Vai, e verás assim até que ponto te faço falta!
- E eu, eu far-te-ei falta, Blake?
- Já se sabe que sim. O caso é que não irei para aí aborrecer-me, por tua causa, nem de ninguém: tenho muito que fazer.
E beijou-a a seu modo: forte, brusco, feroz.
- Vá, vão! - disse. Os seus olhos fixavam-se sobre ela, certos da posse.
Amava-a, sim, mas sem ternura.
Estivera de tal forma privada de ternura, durante tanto tempo, que a casa da sua infância lhe apareceu como um mundo de conforto. Agradava-lhe as velhas poltronas e os divãs usados, os grandes leitos antigos e os cortinados já sem cor. Quando distinguiu o pai no limiar da porta, sentiu, de repente, vontade de chorar. João dirigiu-se logo para a cozinha.
- Há tanto tempo que não entro numa cozinha! dissera no automóvel.
E Márcia exclamara:
- Eu nunca lá entrei!
- Entraste, sim; mas não te lembras; se eu mal me lembro!
Márcia seguiu-o, correndo.
Susana ouviu o rir nervoso da mãe.
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- Tenho um chapéu e um casaco novo - exclamava Márcia com a sua voz aguda.
Susana, com os lábios a tremer, aferrava-se ao velho pai.
- Ora vamos, Sue, minha querida filha!-dizia ele, dando-lhe palmadinhas nas costas.
"Pai, atravessei difíceis momentos", sentiu ela vontade de dizer. E logo pensou: "Mas se isto é falso!" surpreendida com a sua falta de sinceridade.
Não era assim, de facto. Ela sentia apenas necessidade de ternura, de uma forma vaga e estúpida.
- Pergunto a mim mesma por que é que choro - disse, meio a rir, procurando o lenço. - É tão bom tornar a vê-lo, meu pai! Emagreceu! - E sentia-o fraco e velho.
- Sim, sim - respondeu o pai. - Vai; tua mãe espera-te. Os quartos estão prontos. Márcia fica no de Maria, que não vem passar o Natal... Tem lá outros projectos. Não compreendo nada nessa pequena, Susana. Talvez tu possas ver isso melhor. É como se não nos pertencesse.
- Há muitas pessoas como ela - respondeu Susana, que não desejava falar de Maria. Beijou o rosto moreno do pai e foi para a cozinha juntar-se à mãe. Encontrou-a sentada, junto da janela, cortando fatias para as crianças. A mãe estendeu ao beijo de Susana uma face suave e murcha. Joana estava já a descascar batatas.
- Está exactamente na mesma, mamã! - declarou Susana. Realmente, a figura, um tanto forte e firme, da mãe, não envelhecera, e não se lhe via nenhum fio branco entre os cabelos loiros, descorados. Só o rosto era um tecido de rugas, e a perda do viço da pele, tão fresca outrora, dava-lhe o aspecto de uma velhice precoce, emurchecida sem maturidade.
- Tenho saúde, sim. - Depois, examinou a filha: Estás magra, Susana. Parece-me que nunca te vi assim. Mas hás-de refazer-te... João está a querer parecer-se com Marcos, não é verdade? Mais pela figura do que propriamente nas feições.
- Ainda o não notei - respondeu a filha.
E olhou para João. Mas Marcos morrera já há muito; por isso viu João apenas.
- Os pequenos não devem lembrar-se nada do pai acrescentou ainda a senhora Gaylord, numa voz triste.
- Os pais dele encerram-se na sua dor. Nunca
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conseguiram vencê-la e não vão a parte nenhuma. Quase que não os vejo desde que o ano começa até que finda, pois nem frequentam já a igreja. Nunca mais lá foram, desde aquele domingo em que Marcos morreu. Lembras-te de que foi a um domingo. Dizem para aí que, nesse dia, perderam a fé.
- Nem tomei nota do dia da semana - respondeu Susana Talvez devesse ir visitar os antigos sogros. Mas para quê? com a morte de Marcos, também eles tinham deixado de fazer parte da sua existência. E que fé lhes poderia ela restituir... ela, que não vivia senão da hora presente, de parcelas de vida?
Estava calor na cozinha, que cheirava a especiarias. Uns gerânios, saturados de sol, floriam à janela.
A mãe de Susana polvilhava de açúcar as fatias de pão com manteiga.
--Apetece-me isso!-disse Susana. Em criança, corria, ao sair da escola, só com a pressa de as comer. Pegou numa fatia e deu-lhe uma dentada.
- Não sabia que gostava tanto de pão com manteiga, mamã! - exclamou Márcia.
- Pois gosto!
Era bom e apetitoso aquilo. Comeu devagarinho e até à última migalha, enquanto subia para o seu antigo quarto, onde nada fora mudado. Lá estavam os reposteiros persas aos quadrados azuis, a colcha azul e, ao sol, o tapete de trapos tecidos. Sentou-se na cadeira grande, de palha. Sentiu por todo o corpo uma distensão dos nervos e dos músculos, como se fossem-cordas de violino, demasiado tensas, a um diapasão elevado, agudo, que de súbito se soltassem. Voltava à normalidade. Tinha vontade de dormir, dormir, de não ter de ouvir nem de falar com quem quer que fosse. As crianças estavam bem ali; inútil preocupar-se com elas. Tudo parecia estar certo, naquela casa. Levantou-se e tirou o casaco de peles que Blake lhe dera. Pendurou-o no armário, onde encontrou o seu antigo penteador azul, lavado e engomado. Tirou o vestido, enfiou o penteador e estendeu-se sobre o leito; era fofo e enorme, lembrava-se ainda. E caiu logo num sono sem sonhos.
Quando acordou, viu a mãe inclinada sobre ela e a luz acesa, pois já era noite, lá fora.
- Começávamos a estar inquietos - disse-lhe aquela.
- Estás doente, Sue?
Susana fez um esforço para se erguer. A tranquilidade
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que ali reinava era assombrosa. Tinha-se de tal forma habituado ao ruído!
- Não - respondeu -; fatigada apenas. É tão bom regressarmos à nossa casa!
- O jantar está pronto. Fiz um prato de ostras.
Sentaram-se em volta da mesa iluminada; o pai inclinou a cabeça para "dar as acções de graça", enquanto João e Márcia paravam, boquiabertos, de colher suspensa a meio caminho. Susana nunca os ensinara a rezar antes das refeições. O cheiro da sopa suculenta chegava-lhe às narinas; e pôs-se a comer, em absoluto satisfeita.
Nada de extraordinário se passava na velha casa tranquila. Os pais quase não falavam entre si, nem com ela. Não se informaram do género de vida que levava, nem Susana lhes disse coisa alguma a esse respeito.
- Blake pede desculpa de não vir.
E a mãe, cujo olhar dava a volta à mesa, mal escutando, respondera:
- Foi pena, sim. Talvez para outra vez o possa fazer. Blake mandava-lhe todos os dias um telegrama. Susana
respondia-lhe e, assim, não sentia a sua ausência. Sentia-se surpreendida com isto, e, às vezes, até um pouco desconcertada. Mas o desejo viria, decerto. Um dia, uma noite, seria assaltada pela necessidade de o ver, e pela manhã diria: "Tenho de voltar para casa, para ao pé de Blake!"
Entretanto os dias sucediam-se e a vontade de partir não chegava. Esperava, em silêncio, nada pedindo além daquele profundo repouso. Certa vez, pensou na quinta, mas sem experimentar a tentação de ir até lá. Encontraria ali recordações de Marcos, e agora não tinha necessidade fosse do que fosse, nem de pessoa alguma. Sentia que qualquer coisa se libertava nela, lentamente, e voltava ao passado, como uma árvore, curvada sob um peso, se ergue quando a soltamos.
- Não gostarias de que convidasse as tuas amigas? -? perguntou-lhe a mãe.
Ela abanou a cabeça; que teria para lhes dizer?
Foram todos à igreja, no domingo antes do Natal, e Susana viu, logo no banco da frente, Hal e Lucília, com os três filhos. Depois da cerimónia, Lucília precipitou-se para ela, exclamando:
- Oh, Susana, que felicidade tornar a ver-te! Temos
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ouvido coisas extraordinárias a teu respeito! Não envelheceste nada, tu!... Oh, eu estou um horror! Pus-me a engordar depois do nascimento de Jimmy... Sim, e a minha filha Leora. ,v ,
Susana baixou o olhar sobre uma pequenita pálida e silenciosa, que era a única que se parecia com Mal.
- Uma vez ouvi-te chorar muito e fui pegar-te ao colo; não te lembras? - perguntou Susana.
A pequena fez que não com a cabeça, e Lucília desatou no seu riso forte, sonoro.
- Leora foi sempre uma choramingas - disse depois, enfadada. - Aqui tens Hal, Susana!
Ali estava ele, de facto, alto, tímido, bastante calvo. De súbito, veio à Susana a lembrança de Marcos. Se este vivesse, teriam continuado a fazer parte daquele meio. E que seria ela, então? Mas agora sentia-se muito distante já de tudo aquilo.
Deu longos passeios. O Inverno era suave.
- Há pouca neve este ano - declarara o pai, vendo os netos olhar para o céu à procura das nuvens. - Notei, no Outono, que as cascas do milho eram finas, e que os esquilos não se apressavam em esconder as avelãs; ainda aí as há por todos os lados, juncando a floresta. Isto significa que o Inverno será brando.
A véspera de Natal surgiu como um dia de Outono, inundado dum sol quente e bom. Susana foi até ao jardim da senhora Fontane. A casa estava fechada, os portões também, mas ela escalou um muro de pedra, muito baixo, e atravessou os canteiros cobertos de folhas.
O Cupido, de joelhos, contemplava a agua. Olhou-o como se o visse pela primeira vez. Não pensara mais nele, em todos esses anos, da mesma forma que esquecemos um filho que apenas viveu o tempo de tomar respiração. Susana examinou a estatueta sem sequer se lembrar de que a modelara para casar com Marcos.
"Está bastante bem - disse para si mesma. - O meu Cupido parece ter vida, apesar da minha ignorância de então. Realmente, duma forma ou doutra, cheguei a captar a vida, sem o suspeitar sequer.
Uma rajada de vento arrancou as últimas folhas, que foram cair para lá do Cupido; pararam aí, mas depois, arrastadas para mais longe, poisaram docemente na superfície da água, pouco profunda e silenciosa... Como tudo
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aquilo estava longe! Susana sentiu-se como que imersa no silêncio eterno.
O próprio Natal não foi o que esperava. Seguiu as tradições familiares, é certo, mas conservou-se de fora. Terminado o dia, quando se encontrou sozinha no quarto, deitada e pronta pára dormir, lembrou-se de que Blake nem sequer lhe escrevera. A sua prenda lá estava na árvore, um relògiozinho quadrado, rodeado de diamantes, mas nenhuma palavra a acompanhara. Haviam-no expedido directamente da relojoaria. Susana ainda chegou a erguer-se um pouco para telefonar, mas logo renunciou. Ficou um momento indecisa e depois adormeceu, sem dar por isso.
O pai dissera-lhe:
- Vem até lá cima tocar-me um pouco de música, Susana. Quase que nem a tenho ouvido nestes últimos tempos.
Ela foi e tocou alguns trechos que não via há bastantes anos. O pai ouvia, com a mão poisada sobre a boca. Era um costume seu, sempre que escutava com atenção.
- Ainda escreve poesias, pai? - perguntou-lhe, tocando sempre.
- Não; já renunciei a isso-e suspirou. Susana sorriu.
- Mas não renunciou aos mares do Sul?... - e a mão direita errava sobre as notas altas, suaves, enquanto as baixas a acompanhavam e lhe faziam eco, em surdina.
- Ainda penso um pouco, às vezes - respondeu o velho, sorrindo também, com o ar envergonhado duma criança. - Sempre estive convencido de que isso não levava a coisa alguma - rematou ele, em tom brando.
Fechou os olhos, e ela continuou a tocar durante uma hora mais, enquanto ele a escutava.
Depois de terminar o trecho favorito do pai, o de Sibelius, voltou-se.
O velho olhava-a, tremendo, com uma expressão de terror nos olhos azuis.
- Pai - exclamou ela, vivamente.
- Tomei por mau caminho, em qualquer altura da minha vida, Susana - murmurou. - Julgava seguir pela estrada real, e não passava dum beco sem saída. Não consegui chegar a parte alguma.
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-Não diga isso.
Susana foi para junto dele e rodeou-o com os braços, tomando-lhe a cabeça contra o peito. Envelhecer, compreender tarde demais que se enveredou pelo mau caminho, que não se pode já voltar atrás, deixando passar a vida em pequenas coisas, é isto a primeira morte.
- Malbaratei tudo -disse ele ainda, baixinho-; malbaratei-me a mim mesmo, até. Os anos enganaram-me... Nada fiz do que me propusera realizar.
Susana ajoelhou-se junto dele e conservou-o apertado contra si, presa dum terror ainda maior que o de seu pai; o sentido daquelas palavras penetrava-a até ao fundo do ser.
- Aí tens como isto se passa. Um ano segue-se a outro, e pronto. Um dia, ainda temos tempo diante de nós; no seguinte, já este não existe. Afinal, penso que isto quase não tem importância. O mundo nada perdeu, sem mim; eu é que deixei de tomar nele o meu lugar. Só por si, o facto é insignificante, suponho; mas, para mim, conta.
- Pai - murmurou Susana, ajoelhada a seu lado não falhou, verdadeiramente.
- Quando se não obteve o que se desejava, tudo o mais é como se deixasse de existir.
Depois, bruscamente, afastou-se e pôs-se em pé.
- Mas, enfim...
Desviara-se dela, porém o terror permanecia no seu olhar.
Foi desse terror que nasceu a luz que iluminou a alma de Susana. Esteve desperta toda a noite, envolvendo-a aquele terror com a violência dum raio. À sua claridade, compreendeu que era Blake a causa do mal. Ela, que não deveria submeter-se a ninguém, submetera-se-lhe por amor. Compreendeu também que Marcos fora inofensivo, porque o não amara suficientemente; mas Blake sufocava-a. Abandonava-se-lhe, deixando os anos passar sobre ela. Amava-o e temia-o; por medo da sua cólera, permitia-lhe que fizesse dela o que quisesse. Aí está a razão por que se extenuava e se sentia tão mortalmente cansada. Formava-a com um modo tão seguro como quando modelava as suas figurinhas de barro, e ela sentia o seu próprio espírito, tornado dócil, enfraquecer, muito embora não tivesse dado conta disto senão quando deixara Blake. Porque a forma que ele lhe
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impunha não era a sua verdadeira forma... Lembrou-se de que, um dia, o pai lhe confessara, numa das suas meias-confidências: "Quando me casei, tua mãe era uma menininha loira, de faces rosadas. Pensei que ela iria fazer impossíveispor mim; mas é o ser mais teimoso que há no mundo; só muito tarde é que me apercebi disto. É tratável, mas pouco inteligente, crê saber tudo melhor do que os outros e faz o que entende. Esmaga quem se encontrar a seu lado. Se, ao menos, eu pudesse deixar de a amar..."
Mas continuara a amá-la e, coisa terrível, amava ainda essa mulher em cujas mãos abdicara. Nunca se afastara dela, nem sequer por uma noite. Sonhava com ilhas no mar alto, e mandara construir uma cabana para si, à beira do lago. Apesar de tudo, porém, lá vinha para casa, mal chegava a noite, ao mesmo tempo cheio de amor e de aversão pela mulher.
E assim é quando nos sentimos presos... Precisava, pois, de se afastar um pouco de Blake. Havia de ser difícil, visto que o adorava. No entanto, não podia perder-se e continuar a viver, como sucede com outras mulheres.
Não dormia, presa de pensamentos amargos, e, em meio da escuridão do antigo quarto, procurou organizar o seu futuro. Blake era um veneno que trazia dentro das veias; fizera-lhe perder o próprio espírito. A paixão de Susana persistia e duraria sempre, embora fosse a mulher de Blake. Se não se desprendesse dele, pereceria. Precisava de voltar a ser senhora de si mesma, de dirigir a sua vida, enquanto era tempo ainda.
"Culpada!" Recordou-se subitamente desta palavra. "Compreendo agora o que David Barnes queria dizer. Sim, sou culpada, é certo". Quando se deixa o amor chegar a tal ponto, torna-se mau. Susana sentou-se no leito, rodeando os joelhos com as mãos. Que faria ela, se uma manhã, ao acordar, descobrisse que tinha os cabelos brancos e as mãos muito velhas para trabalhar? Se se deixasse também enganar pelos anos, que deslizariam por si em silêncio, secretamente, sem lhe chamarem a atenção com qualquer ruído que pudesse assinalar a sua passagem? Um dia viria em que seria tarde demais. Teria já fracas as mãos, e a vista embaciada.
Ergueu-se dum salto, acendeu a lâmpada e olhou-se fixamente no espelho. Viu-se nova ainda, vigorosa, com mãos capazes de trabalharem. Tinha tempo diante de si; e
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agora que conhecia o jogo pérfido dos anos, tomar-lhes-ia a dianteira durante todo o resto da sua vida. Observou-se. O repouso e o sol haviam-lhe dado cor. O vigor brotava-lhe do corpo. Quis ver despontar a manhã. Tivera bastante sono, mas aspirava ao dia. Que diria a Blake? A verdade simples: mostrara-se preguiçosa, até então, mas contava deitar-se ao trabalho. Se se risse dela, a puxasse para si, lembrar-se-ia de certo modo do despertar no limiar da velhice, quando a vida está a findar.
Havia de conseguir os seus fins. Voltou para o leito, aninhou-se no calor que ali deixara e pensou em Blake sem rancor. Nunca poderia senti-lo, por ele. Era graças ao marido que uma parte de si mesma se conservava terna e apaixonada, porque, em certa altura, fizera dela uma mulher semelhante às outras... Mas ninguém tinha o direito de a aprisionar. "Posso fazer seja o que for!" exclamou muito alto; e o som das suas antigas palavras confiantes expulsou os últimos terrores. Repousou, então, na noite silenciosa, e, com o tempo, adormeceu.
VOLTARAM para casa no dia seguinte ao de Ano bom. Blake não estava.
- O senhor julgava que a senhora não chegaria antes da uma hora - disse Crowne;olhando Susana como se se tratasse de uma visitante inesperada.
- Não importa.
Tinha, pois, uma hora para tomar de novo posse da casa. Seguiu as crianças até aos seus quartos, ajudando-os a desemalar e a dependurar as suas coisas.
- Gostava de viver sempre no campo - disse João.
- Também eu-e Joana suspirou.
- Eu, não - declarou Márcia.
Esta ia crescendo, tornava-se uma rapariguinha, com voz e gestos nítidos e precisos. Muitas vezes tinha perguntado a Susana: "Quando voltamos para o pé de Blake?" Admirava-o e adorava-o, porque ele se mostrava atencioso, em certos momentos. Blake brincava então com ela, depois esquecia-a durante dias inteiros. Ela seguia-o por toda a parte e falava-lhe com uma vivacidade afectada, que o
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fazia rir Susana dizia para consigo: "Preciso de a mandar para a escola, de a afastar dele. Não quero que se torne nesse género de mulheres de que Blake gosta". Susana tinha medo, por Márcia. Crescia nela, pouco a pouco, um instinto robusto e são. Havia em Blake qualquer coisa que não era absolutamente boa. Aniquilava todos aqueles a quem estimava ou que o estimavam a ele. Susana desejava já ardentemente ouvir-lhe os passos, ao mesmo tempo que tinha medo. Deixar-se-ia estar ali com as crianças, e ele lá iria ter.
Pouco depois, chegou, belo e de uma elegância impecável, muito alegre, feliz por os encontrar; deu a Susana o beijo habitual, rápido e seco:
- Como me sinto feliz por te ver, Susana! Tens as faces tão queimadas! Não resisto a dizer-te como achei longo este tempo. Mas não vás supor que me és indispensável, embora o sejas até certo ponto... Detesto o Natal!... Como estás, João? Márcia, vem cá, para te beijar.
Márcia correu para ele, que a ergueu e a beijou na boca. A petiza suplicou-lhe então:
- Beija-me outra vez, Blake!
- Márcia! - ralhou Susana, em tom breve.
- É só por gostar do perfume que Blake tem na cara observou João, cheio de desdém. - Disse-mo ela. - E conservava-se afastado, de mãos nos bolsos.
Blake pôs-se a rir e de novo beijou Márcia, ao mesmo tempo que olhava para Susana, com ar travesso.
- Esqueceste todos os teus passos de dança, Márcia?
- perguntou-lhe.
Ensinara-lhe um dia umas dançazitas, que, segundo ele, se coadunavam bem com os seus cabelos lisos e com a sua figura delicada.
- Não esqueci nem um só - e pôs-se a dançar. Susana viu os olhos da pequenita fixarem-se em Blake
e o corpo inteiriçar-se-lhe, segundo as ordens que ele lhe dava. Blake cantarolava uma melodia aguda, de notas sincopadas, e batia o compasso com um ritmo nervoso, desconexo. Quando acabou, Márcia tremia toda...
- Mais, mais! - pediu ela.
- Já basta - disse Susana. - Blake, isso faz-lhe mal. Nervosa em excesso já é ela.
- Mas gosta disto... - respondeu o marido, tranquilamente. - Não é verdade, minha filha?
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Esguedelhou-lhe os cabelos, e ela olhava-o, extasiada.
- Gosto... Gosto! -murmurou.
Susana a si mesma perguntava: "Que poder tem ele então?" , .
- ...vou mandar ambos para um colégio, no campo
- disse a Blake, nessa noite.
- Como quiseres - respondeu, indiferente. E olhava-a.
- Põe o teu vestido novo, Susana: o vermelho e oiro.
- Não, Blake.
- Porquê?
- Prefiro não o levar - e, com calma, escolheu outro, azul-pálido, que não punha há muito tempo.
- Não gosto do azul-declarou; e examinou Susana com um ar aborrecido.
- Sim? E eu gosto tanto! - Fingia não reparar nos olhares que Blake lhe deitava. Era muito pouco, isto, mas nunca assim teria procedido se a isso não fosse levada pelo terror.
Esse pouco de independência fez lentamente surgir das profundezas do seu ser um imenso desejo de recomeçar a trabalhar. Foi um despertar que lembrava o da saúde após a doença. Sentia-se bem, de músculos rijos e espírito claro e disposto para o trabalho. Desceram juntos. Blake rodeava-a com o braço, e a mão metida na cavidade quente, sob o ombro. Susana voltou-se para ele e sorriu-lhe; mas dominou a antiga submissão, tão pronta, do seu corpo, o doce abandono, o desfalecimento que nela produzia o contacto de Blake. Voltara a tomar posse de si mesma.
Quando ia para dizer: "Blake, desagrada-te que recomece a trabalhar?" declarou apenas:
- vou recomeçar a trabalhar, Blake. Foi ao almoço, na manhã seguinte.
- Por que não? - respondeu ele, atarefado; e partiu a casca dum ovo, com uma pancada seca. - Agora, que os pequenos estão no colégio, já não te basto. Eu sei. Senti-o, ontem à noite.
Susana olhou-o, procurando adivinhar-lhe a disposição. Blake continuava muito amável, apesar das suas palavras.
- Está até muito bem - acrescentou, alegre. - Terás um canto do estúdio e explicar-te-ei o meu segredo para misturar o barro. Ninguém mais o sabe. E a ninguém o diria, a não ser a ti.
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- Tens um segredo?
- Certamente. - E mostrou-se um pouco altivo: Como pensas tu que me arranjo para que essas frágeis figurinhas se conservem de pé?
Susana respondeu, num desejo de paz:
Creio que cada um tem lá o seu segredo. David
Barnes, lembro-me bem, guardava o seu no pequeno Adão de barro que tem no estúdio. Disse-mo ele. Tinha de se retirar um quadrado duma abertura feita nas costas.
- Qual é o segredo dele?
- Não sei - respondeu, admirada. - Tinha-me pedido que esperasse para depois da sua morte.
- E trabalhaste dia após dia a seu lado sem ver como ele fazia? - Blake olhou-a, levantando as finas sobrancelhas pretas.
- Já se vê que não! - Susana estava indignada. Blake desatou a rir.
- Querida Susana! Amo-te, porque não te pareces com ninguém.
- Não me acreditas?
- Sim, creio sempre em ti, não tenho confiança senão em ti. Hei-de dar-te o canto ao pé da janela, só para ti.
Estava tão amável e tão belo, que a custo ela pôde prosseguir no seu plano. Percebeu que o temia quando ele era desagradável, e que Blake bem o sabia. Era preciso acabar com isto.
Por isso forçou-se a acrescentar:
- Um canto não me bastará, Blake. Tenho a intenção de trabalhar o mármore.
- O mármore! - exclamou ele. - Sim, na verdade, dificilmente se podia meter um bloco lá em cima, no estúdio. Perdoa, Susana, a minha curiosidade: mas que contas tu fazer de mármore?
Não havia nisto nada de desagradável. A voz conservava sempre a nota de bom-humor e de alegria. Mas Susana deu conta de que nenhuma vontade tinha de se confiar a Blake, apesar do seu grande amor por ele.
- Ainda não sei - respondeu.
- Era o que eu pensava. Deixa-me que te aconselhe, Susana. Não deves trabalhar directamente o mármore; ninguém o consegue com êxito; apenas dois ou três grandes escultores se aventuraram a fazê-lo.
À maneira dum leão que ergue a cabeça, o coração
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altivo de Susana saltou dentro do seu corpo de mulher: "E como sabes que eu não sou uma grande escultora?" Esta voz ressoou dentro dela, mas Susana não lhe permitiu exprimir-se. E, silenciosa, distraída, sorria a Blake enquanto ele falava. Era ainda a sua amante, e ele era o seu amante. Mas ia reajustando as parcelas da existência, e até o seu amor, a fim de edificar a vida.
Lá fora, na rua, despediu Bantie, que a olhava fixamente.
- Obrigada, Bantie, mas eu mesma guiarei esta manhã.
- Há muito trânsito, minha senhora...
- Se limpar o jardim, fará uma bela surpresa a Linlay
- e, tomando o volante, sorriu de leve para o lado do motorista.
- Sim, minha senhora. - E o tom de voz era triste, pois nada lhe agradava tanto como guiar na cidade e tinha horror aos trabalhos de jardinagem.
Susana, porém, desejava sair sozinha e descobrir um lugar onde pudesse trabalhar, esquecendo Blake. Alugaria uma garagem ou uma sala numa casa velha.
As agências de locação conhecidas nada tiveram que oferecer-lhe. "Poderíamos alugar-lhe uma casa com estúdio", diziam-lhe, numa ou noutra.
- Não, não. Obrigada. Não é para viver que quero o estúdio. Tenho a minha casa.
Regressou depois, lentamente, ao cabo de algumas horas. Perto da residência de Blake, havia uns prédios habitados por gente humilde. Susana, só, encontrou-se dentro do dédalo dessas construções. Teve de guiar com prudência, por causa das crianças, ruidosamente entregues às suas brincadeiras, e que faziam tanto caso dos automóveis que passavam como das moscas voando. Por vezes, apareciam mulheres, chamando-as em altos gritos, enquanto alguns homens se estendiam pelos degraus emporcalhados. Nunca Blake ali viria. Susana parou em frente da porta duma casa em cuja janela um papel anunciava: "Quartos para alugar".
- Posso vê-los? - perguntou a um homem de cara suja, mas de aspecto agradável, encostado à porta.
- Sim, senhora.
Um enxame de garotos rodeou Susana, como praga de gafanhotos.
- Eu vigiarei o automóvel, minha senhora. Ficarei de guarda.
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- Porquê? Pois há necessidade de o vigiar?
- Decerto; pode suceder qualquer coisa - respondeu um rapazito de olhos negros e brilhantes.
- Terei então de dar uma moeda de níquel a dez de vocês, ou uma de prata a um só?
O problema era grave. Consultaram-se; depois, voltaram.
- Dê só a Smikey - gritaram. - Nós depois cá dividiremos.
Smikey avançou; era um garoto pálido, de olhos azuis inquietos e sem os dentes da frente.
- Queres então guardar o carro, Smikey? - perguntou Susana.
Por trás, os outros acicatavam-no; fez um sinal de assentimento, sem dizer palavra.
Ela entrou, guiada pelo homem de cara suja, e examinou os aposentos vagos. Eram três peças, formadas por breves divisórias que cortavam uma sala que devia ter sido de belas dimensões. O tecto era alto e numa das paredes via-se uma chaminé de madeira esculpida, mas deteriorada e cheia de nódoas. Blake nunca ali descobriria Susana!
- Seria possível tirar estas divisórias?
- Fá-lo-ei, para lhe ser agradável, minha senhora disse o homem. - Sou eu que trato de tudo, sendo ao mesmo tempo o porteiro do prédio.
- Seria preciso dar uma pintura nas paredes e no tecto.
- Encarregar-me-ei disso.
- E lavar as janelas.
- Isso é com a minha velha.
- Está bem; fico com a casa.
O homem respondeu, muito orgulhoso:
- Tratarei também dos papéis.
- Quando estará tudo pronto?
- De hoje a oito dias.
Ela desceu as escadas sujas. Em redor do carro, esperava-a uma chusma de rapazes silenciosos. Tirou uma moeda e deu-a, dizendo:
- Obrigada, Smikey. Eles murmuraram:
- E deu, hem!
Desapareceram logo ao fundo da rua, levando Smikey consigo, como ave arrastada pela tempestade.
Susana percorreu três quarteirões de casas, virou a
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esquina e encontrou-se no bairro onde, entre outras famílias ricas, ela habitava com Blake.
- Não quereria trabalhar aqui em minha casa, querida amiga? - perguntava-lhe o senhor Kinnaird.
Susana encontrava-se em Fane Hill e estava a escolher o mármore que aquele lhe oferecia.
- Ah, não! É magnífico isto aqui, mas era impossível.
- Não poderia trabalhar neste sítio retirado, sob a vista dos pálidos olhos benévolos do pai de Blake.
- É tão tranquilo! - murmurou o velho.
- Sim - respondeu com brandura - e encantador! Reinava, de facto, uma calma absoluta. O Inverno
decorria silencioso. A bela e velha casa onde Blake nascera erguia-se em meio das árvores enormes, adormecidas e moribundas, cujas folhas novas se preparavam, no entanto, para renascer.
Não faria coisa alguma, ali. Ficaria inactiva, dia após dia, deixando-se morrer com tudo o que morre.
- Escolha o que quiser - disse o ancião, abrindo a porta do compartimento onde guardava as suas reservas.
- Enviar-lhe-ei depois. Mas aonde?
Susana indicou-lhe o número e o nome da rua.
- Não conheço. Há aí algum estúdio?
- Eu é que instalei lá o meu.
E Susana circulava por entre os blocos de mármore. Sem ter a menor ideia do que se propunha fazer, escolheu quatro; um de Siena, dois te Serravezzas e, enfim, outro, preto, da Bélgica.
- Este é muito falso- observou-lhe o velho Kinnaird, com a mão, de uma palidez de cinza, apoiada sobre a pedra negra. - Tão falso como a beleza. Deve ter cuidado, ao trabalhá-lo.
E deu-lhe ainda, além dos que ela escolhera, mais três blocos de mármore de Paros.
- Há-de mostrar-me depois o que fizer - disse o velho. Estava de pé, contra a luz, diante da porta aberta, elegante, belo e pálido. Susana nunca vira uma estátua da velhice tão pura e cheia de encanto.
No entanto, ninguém podia chegar a amar este homem.
- Agradeço-lhe de todo o coração. - E, espontaneamente, estendeu-lhe a mão. O velho apertou-lha de fugida, com as pontas dos dedos, e retirou-se.
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- Blake - perguntou Susana, durante o jantar -lembras-te de tua mãe?
- Não; tinha eu dois anos quando morreu.
- Teu pai nunca falava nela?
- Não, a não ser para dizer que tinham sido felizes.
- Ele, ou eles?
- Creio - disse Blake, observando Susana - que ele apresentava a coisa assim: "Eu era feliz com a tua mãe". E não será tudo a mesma coisa?
Susana sorriu, mas abanou a cabeça.
- Pois eu creio que sim. Se tu não fosses feliz, facilmente o adivinharia.
- E se eu nada dissesse?
- Sabê-lo-ia da mesma forma-respondera, indiferente. Ela observou-o, reflectindo, procurando saber. "Não",
- pensou - "não compreende coisa alguma do que seja a minha felicidade". E para si mesma dizia que Blake nunca notaria nela a mais pequena diferença. A única mudança seria dentro de si mesma; invisível para os outros, impalpável. O seu amor, agora, estava disciplinado. Não a abateria já, até ao ponto de a conservar inactiva durante horas inteiras. Quando Blake trabalhasse, trabalharia também. Não lhe respondera coisa alguma quando lhe contara ter alugado um estúdio ali próximo. Mas, desde então, deixava-se ficar junto dela, de manhã. Quando Susana tinha de ir ter com ele ao estúdio, estender-se no divã e segui-lo com o olhar, Blake saltava cedo da cama, cheio de ardor por se pôr ao trabalho, e meia hora lhe bastava para almoçar. Agora, vinha para o quarto da mulher, atrasando-a com as suas manifestações amorosas. Aquela recalcava a sua impaciência. Mas Blake exclamava:
- Que tens, Susana? Não és já a mesma para mim!
- Pois não sou, Blake? - respondia, sem convicção.
- Então, por que queres levantar-te?
A princípio, quis protestar; mas, percebendo que o temia ainda, respondera com firmeza:
- Tenho o meu trabalho, tenho que fazer!
- Lamento - disse o marido; e pulou para fora do leito dela.
Tinha lábios finos, olhos cinzentos de ardósia, e a voz era tão glacial, que ela lhe pegou .na mão.
- Tu és o meu bem-amado, bem o sabes - disse docemente. - Beija-me, Blake.
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Ele beijou-a...
- Não quero que me repitas isso nunca mais - exclamou.
Ela suplicou-lhe:
- Deves amar-me, Blake.
- É o que eu faço. Mas conserva-te a mulher que eu amo.
Saiu, e não voltou, como costumava, para ver se estava pronta; Susana compreendeu que estava zangado.
Encontraram-se à mesa, ao almoço, e, embora procurasse animá-lo com os olhares e com a voz, ficou obstinadamente frio. Susana estendeu-lhe a mão, mas nessa altura entrou Crowne, e por isso a retirou logo.
Blake saiu quando acabou o almoço e ela ficou a vê-lo afastar-se.
Era um homem que podia ser, ao mesmo tempo, extremamente terno e glacial. Susana teve vontade de correr atrás dele. Em vez disso, porém, pôs o chapéu e o casaco e saiu. Bantie, no passeio, tirou o boné.
- Esta manhã vou a pé, Bantie-disse-lhe.
Não sentia desejos de subir para o carro de Blake e preferia ir sozinha até ao estúdio. Virou a esquina e desceu a rua. Havia ali uma multidão de pessoas que lhe eram desconhecidas. Nunca se cansava de as observar: eram italianos de tez escura, gregos morenos, suecos pálidos, checos maciços e eslavos de testa baixa. Olhavam-na de passagem. Um dia viria a conhecê-los. Mostravam-se muito gentis com ela, por saberem que alugara uma divisão no número 312; e todos ficaram boquiabertos quando o caminhão de Fane Hill trouxe os enormes blocos de mármore.
- São rochedos!-murmuraram as crianças, admiradas. Susana explicou às que se encontravam mais perto da
porta:
- Sou escultora. São para fazer estátuas de pedra.
Nenhuma respondera. Só um garotito soltara uma exclamação. Depois, tinham desaparecido, como um bando de avezitas.
No interior, a enorme sala estava quase vazia; apenas se viam ali os blocos de mármore, as ferramentas e uma cadeira. Susana sentou-se, pronta para o trabalho. Nada, ali, entravaria o seu mais ardente desejo; e ninguém também sabia onde ela estava. Cheia de reconhecimento, passeou o olhar em volta, para as paredes pintadas de fresco,
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para os vidros nus e reluzentes. Levantou-se, foi dum bloco para outro, palpando-os. Na véspera, saíra e comprara as mais belas ferramentas, as melhores, ao mesmo tempo delicadas e resistentes. O vendedor, no armazém, bem lhe repetia sem cessar:
- Estas, minha senhora, são absolutamente modernas; verdadeira economia de trabalho.
Mas recusara-as, escolhendo as mais fortes e mais simples.
Sentou-se. Tratava-se agora de começar, de pensar no que iria fazer. Mas então, longe de Blake, naquele sítio onde ele nunca viera, onde não poderia encontrá-la, notou que não pensava ainda senão nele.
E para si mesma dizia que, longe de se afastar do marido, procurava antes conservar intacto o estado presente. Blake devia compreender que, para isso, necessitava de ser ela própria, plenamente. Seriam duas criaturas no mesmo plano, cada uma delas completa em si mesma, e amar-se-iam mais, precisamente em virtude dessa plenitude; dia após dia, mostrar-lhe-ia o que entendia por isto.
"Hei-de consegui-lo", disse para si própria, firmemente. "Alcanço sempre tudo o que quero".
Repassou, em espírito, os anos decorridos. Nada lhe fora impossível. Pensar numa coisa, saber que a desejava, era obtê-la.
Que representava o casamento, a seus olhos? Ignorava-o. "Talvez as mulheres como eu não devam casar-se", pensou. Não eram Marcos nem Blake, mas ela mesma, quem não se prestava ao casamento. Uma parte do seu ser não reclamava a união. Reflectindo assim, foi invadida por um sentimento de isolamento intenso, o mais forte que até então sentira.
"Blake! Blake!" gritava baixinho. Desejava a sua mão, o seu contacto, a sua presença, fosse o que fosse que pudesse expulsar esta certeza de ter nascido solitária.
"Nunca seria feliz se não me tivesse casado, se não tivesse tido os meus filhos com Marcos e sabido o que significava ser a amante de Blake. É sempre a mesma velha história", disse de si para si, um pouco tristemente. Queria ter tudo, e este tudo não a satisfazia. No fundo, conservava-se solitária.
"Tenho de resistir - pensou ainda. - Eu sei quem sou.
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A sua vontade viera-lhe em auxílio, quando da morte de Marcos. A sua vontade! A sua vontade! Pegou nas ferramentas e poisou-as logo, o belo macete tão forte, o buril com a sua ponta tão perfeita. Lápis e papel. Pregou na parede grandes folhas e afiou o lápis. Depois, sentou-se de novo, fixando o olhar nos mármores incomparáveis, mas pensando apenas em Blake. Sentia desejos de correr para ele, de ver o que fazia, de se assegurar de que estava lá. Mas recusou-se a fazê-lo. Amaria Blake de todo o coração, mas, nela, o amor nunca poderia ser um fim. Deviam edificar uma coisa que os ultrapassasse a um e outro, que ultrapassasse o próprio amor. Era-lhe impossível fazer renúncia de si mesma, pois uma parte do seu ser não podia dar-se, apesar do desejo. E se essa parte não fosse utilizada, morreria, e a sua morte envenenaria todo o seu ser. Devia recordar-se do seu terror.
Quando voltou para casa, ao meio-dia, estava estafada, exausta, porém a sua vontade afirmava-se ainda. Reagindo contra a cólera de Blake, preparava-se para lhe declarar nitidamente: - "Blake, talvez fosse melhor não me ter casado contigo. Mas sou assim, e não sei mudar; e ainda que tivesses de deixar de amar-me, tenho de continuar a ser o que sou".
Mas Blake não estava zangado. Saiu do salão para vir ao seu encontro; e sorria, com o encanto dos primeiros tempos:
- Tiveste uma boa manhã, Susana? - E, sem esperar sequer a resposta, acrescentara logo: -A minha foi maravilhosa. Estava inspirado. Creio que me saí tão bem por te detestar. - Dizia isto com um tom tão amável, que Susana se pôs a rir, aliviada.
- Pois detestaste-me, Blake?
- Sim, um pouco. Agora, já te amo outra vez. Vem ver o que fiz.
Pegou-lhe levemente pelo cotovelo e subiu a escada com ela. Susana dizia para consigo: "Por que sou eu tão estúpida, tão grave? Ele esqueceu-me logo. Muito hei-de trabalhar amanhã!"
Blake abriu a porta do seu estúdio e ali, modelada em barro, logo uma gata assanhada parecia querer atacá-los. Como que libertando-se da peanha, com o dorso arqueado, furiosa, estendia as garras, cheia de graça e de elegância.
-Oh, Blake!-exclamou Susana.
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- Não é verdade que está magnífica? Chamar-lhe-ei A fêmea!
E desatou a rir, atirando-se sobre a mulher para a beijar. Esta perdera a manhã pensando nele. Não tornaria a fazê-lo; a si mesmo o prometia, ferozmente, sob o longo beijo que ele dava.
Foi o grande bloco negro de mármore belga que Susana atacou em primeiro lugar, mau grado a perfídia desta pedra, pois que uma enorme preta entrara no estúdio pela manhã, caminhando nas pontas dos pés, tão ao de leve como um tigre. Abrira a porta e fechara-a sem fazer qualquer ruído. Susana, que esperava, sonhando, olhou-a como se fosse uma aparição.
Era uma africana pura. A pele negra luzia, a boca semelhava-se a uma laranja cor de sangue, fendida, e o corpo, apesar de enorme, era firme.
- Precisa duma mulher para limpezas? - perguntou. A voz tinha um tom de contralto. - Trabalho a dias, lavo a roupa de muita gente rica, na outra rua.
- Entre, faça favor - disse Susana. - Como se chama? ,, - Delia. - Entrou, sentou-se sobre um bocado branco de mármore e pôs-se a rir, com os lábios arreganhados sobre os grandes dentes brancos. - Nunca, até hoje, limpei pedras.
- Donde é? Quem é? Quem eram os seus antepassados?
- Não tenho antepassados
- De qualquer modo, deve ter vindo dum sítio ou doutro. Seu avô...
- Meu avô estava em casa duma família na Virgínia; dizia-se que viera do outro lado do mar. Meu pai partiu lá para cima, para o Norte.
- Mas onde é que nasceu? - perguntou ainda Susana. E pensava: "Como é que esta africana escapara ao contacto de mãos brancas na sua negrura?"
- Pois nasci aqui mesmo, em Nova Iorque - respondeu, aborrecida - e cá estou. Nada mais tenho a dizer.
Deteve-se para ruminar os seus pensamentos, e depois continuou:
- Um dia casei-me com um verdadeiro mulato, mas creio que era muito branco. Não fazia senão bater-me. De qualquer forma, não valia grande coisa. Há muitos anos
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que o não vejo. Agora, estou para casar com um preto, mas não há maneira de o fazermos por causa dos meus filhos; são seis; o último ainda não tem um ano.
"O mármore da Bélgica", dizia Susana para consigo, sem a escutar. Conservava-se silenciosa, impressionada por tão formidável presença. As suas curvas largas, os ombros, aquele peito maciço, umas ancas como montanhas!
- Se lhe der o dobro do que ganha trabalhando a dias, deixa-me desenhar o seu retrato?
- Quer dizer, estar aqui sentada?
- Sim.
- Não ando vestida para isso; são as minhas roupas de trabalho...
- Mas eu não a quero vestida.
- Preciso então de tirar os trapos?
- Se não se importar...
Delia levantou-se e meneou a cabeça:
- Não, nunca me despi em frente duma senhora. Mas logo se deteve, tentada: - Não poderia ficar com qualquer coisinha em cima de mim?
- Já se vê que sim.
- E pode fechar a porta?
Susana correu o fecho. Delia suspirou:
- Tenho necessidade de dinheiro... Volte a cara para o lado...
Susana virou a cabeça.
- Pronto! - disse Delia. - Sinto-me maluca.
Estava sentada num bloco de mármore branco de Paros, com as mãos poisadas sobre os enormes joelhos nus, de cabeça inclinada para a frente, e ombros curvados.
- Devo estar ridícula - murmurou.
Susana nem a ouvia, entretida a desenhar nas grandes folhas de papel que na véspera pregara na parede.
Escolheu uns lápis, que logo pôs de parte para pegar em carvões de desenho, negros e macios. Delia observava-a atentamente; a certa altura, lamentou-se:
- Pois eu pareço-me com isso? Então, já perdi as minhas formas.
- Está esplêndida! - disse Susana, baixinho. - Magnífica! Magnífica!
Sentia-se um pouco esbaforida. Queria apreender, saber de cor rapidamente, as linhas daquele corpo, a fim de começar a trabalhar o mármore! Desenhou horas
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seguidas. A certa altura percebeu vagamente que Delia reclamava, como se estivesse muito distante:
- Que fome! Geralmente, costumo comer mais cedo... Susana olhou o relógio. Passava do meio-dia.
- Oh! Estou desolada! - exclamou. Tirou uma nota da bolsinha: - Tome. Vista-se e vá tomar uma boa refeição.
- Será preciso fazer a limpeza?
- Sim, amanhã. Deve haver muita terra e pedra a tirar. Susana examinou os desenhos atenta e longamente,
depois rasgou-os. As mãos ávidas conheciam já as curvas daquele corpo negro. Os desenhos, agora, não serviriam senão para manietá-la, limitá-la. Representavam Delia, apenas. Susana via mais para além. Trabalharia o mármore directamente, escavando-o para arrancar dele não só a simples Delia, mas a grande e sombria criatura feminina trazida de África para trabalhar e que espalhara a nódoa do seu sangue negro nas veias brancas duma nova América.
Foi nesse dia que Susana começou a gigantesca estátua, que mais tarde seria célebre. A negra estava sentada, de pernas afastadas uma da outra, com as mãos sustendo os seios pesados e doridos. Susana baptizou-a desde os primeiros golpes de cinzel: seria a Preta Americana.
A certa altura, ergueu a cabeça, impaciente; já se não via. A noite caía, sombreando a sala; e esta obscuridade parecia arrancar das mãos de Susana um corpo sólido, mais negro ainda. Não distinguia já os contornos do mármore. Mas sentia-os com os dedos. Ainda se a noite não viesse desfazer essa onda crescente que a excitava com a sua visão duma certeza forte!
Esteve assim um instante parada, na penumbra, para se impregnar bem da criatura que concebera e possuía agora; depois, despiu a blusa de trabalho, pôs o chapéu, o casaco, e, meia alucinada, saiu para a rua, dirigindo-se a casa. O coração cantava-lhe, aliviado, satisfeito, embora os braços lhe doessem. Este estranho e íntimo alívio (mais doce que qualquer outra coisa no mundo, mais doce que o amor) era a força criadora, o poder de realização.
Uma coisa a surpreendeu. Nada podia fazer à vista de Blake, nem sob o olhar velado do velho Kinnaird; mas já o mesmo não lhe sucedia quando a gente simples da vizinhança vinha vê-la trabalhar. Notou uma manhã que umas crianças desconhecidas a observavam através dos vidros
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e aproximando-se, descobriu que se encarrapitavam num pequeno rebordo da parede, agarrando-se com as pontas dos dedos ao peitoril da janela.
Entrem, se isto os diverte! - disse-lhes então.
Vieram todos para a porta, acotovelando-se e empurrando-se uns aos outros.
- Eu vou continuar.
Ficaram de pé, de olhos esbugalhados. A cabeça da negra surgia do mármore e Susana começava já os contornos dos ombros fortes.
Uma voz fina, de garoto, exclamou:
- Olha, é uma preta!
- É para um jazigo-disse outro. - Fui uma vez. a um cemitério, ehavia lá muitos anjos feitos de pedra.
- Mas as pretas não podem ser anjos! - observou uma voz desdenhosa. - Os anjos são brancos. Vi-os eu já, num presépio do Natal.
Demoraram-se ainda alguns minutos mais e depois murmuraram:
- Vamos; não há mais nada, aqui.
Partiram, em alvoroço, depois de examinarem tudo. Susana não se sentira incomodada com a presença dos garotos. Os seus olhos tão vivos, tão confiantes, não a embaraçavam. Pôs-se a cantarolar: - "Oh, e isto será a glória... para mim!" A antiga e enorme satisfação penetrava-lhe em todo o corpo, como a chuva lenta atinge as raízes mais profundas duma árvore sequiosa.
Susana não procurava compreender esta sensação, nem se admirava do seu temperamento. Bastava-lhe que fosse assim. Não procurava analisar.
Na veemência da sua alegria, teria desejado correr para junto de Blake: quando dois seres se amam, a alegria de um deve ser a do outro. Mas Blake andava furioso, nesses dias, porque a sua primeira exposição de quadros modernistas fora ridicularizada por um dos directores do Museu.
- Ora, meu querido!-disse-lhe ela, surpreendida com aquela cólera. - Pois se foi apreciada por tantos críticos!
Na manhã seguinte à da abertura da exposição, rodeara-se de jornais e lia à mulher tudo o que se dizia. Pronunciava, sem qualquer constrangimento, as frases brilhantes e bem torneadas, tais como "extraordinária e penetrante facilidade", "apanhou plenamente o abstracto", "facilmente
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o colocaríamos à cabeça dos nossos modernistas". Após tais louvores, o velho José Hart escrevera no Times, e Susana vinha cheia de entusiasmo, mas encontrara Blake furioso:
- Eu podia muito bem atacá-lo - repetia. - Como é que ele ousa tratar as minhas obras de superficiais? Engenhosas, ainda vá. Bem entendido, tudo isto é feito com intenção. Que velho imbecil! Queria talvez que continuássemos a copiar eternamente Miguel Angelo e os Gregos. Nem repara em que esses foram também modernistas, na sua época, e que foi graças a isso que sobreviveram. Cada um interpreta o seu tempo. Não há senão isto.
- Vá, querido. Trata-se de um velho e foi a única voz destoante.
- Nem se pode conceber a existência de outro tão estúpido. Mas tem influência. O Times não devia dar-lhe atenção!
A boca de Blake traçava então uma linha dura, as sobrancelhas franziam-se, não podia estar quieto. Não cessava de passear para trás e para diante, na sala.
- Parece-me que vou processá-lo por difamação -? disse ainda.
- Não sejas ridículo, Blake! Por que te incomodas com isto?
Ele berrou:
- Parece-me bem que tenho razão.
Andou aborrecido toda a semana, sem apetite e sem vontade de trabalhar. Depois, um dia em que Susana estava quase a perder a paciência, recebeu ela uma carta de Paris: a sua Mulher Ajoelhada fora recusada no Salon.
- Diabos os levem! Como ousam eles... - disse Blake sem azedume; e sorriu-lhe.
- Penso que realmente não estava lá muito boa - respondeu Susana tranquilamente; e dobrou a carta. Tinha abandonado a Mulher Ajoelhada, essa mulher em que trabalhava quando se apaixonara por Blake.
- E não te importas? - perguntou-lhe este com curiosidade.
- Decerto que me importo; mas nada me fará deter. Em todo o caso, parece-me que arrumei com a Mulher Ajoelhada.
- Oh! Sem dúvida há aí também um pouco de questão política. Tu és estrangeira, e os franceses são tão
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mesquinhos! E depois, és mulher, Susana. Já se sabe que não podias aspirar...
- A quê? - perguntou, muito calma.
- A fazer o mesmo que um homem - disse ele; e pela primeira vez, desde há muitos dias, se pôs a rir. - Não te atormentes por isso, Susana - acrescentou depois, com uma doçura desusada; e ela percebeu que Blake experimentava, com o facto, certo reconforto. Admirou-se, sem se preocupar com procurar a explicação.
Chegou a Primavera, e Susana notou que nem dera por ela até então. No campo, muitos sinais precursores a anunciam. Mas ali, em Nova Iorque, estava-se no Inverno e de repente, na manhã seguinte, era Primavera. Susana ia todos os dias a pé para o estúdio, conhecia já muitas das pessoas pelos nomes. O porteiro de rosto sujo chamava-se Dinny King, e a mulher deste fora um dia sentar-se ao pé dela, com um gémeo em cada braço. Arregalara os olhos vendo Susana trabalhar e, quando se levantara para sair, tinha declarado:
- Felizmente que tem tempo para se entreter com estas coisas. Já o disse a Dinny: "Eu nunca poderia fazê-lo; tenho sempre tanto que lidar!"
Susana conhecia também Larry, Pietro e Slavga. Smikey falava-lhe às vezes e nomeava os outros, apontando-os com o dedito sujo.
- São os Connigans; o pai morreu: este é Minty, e este Jim. Minty esteve numa casa de correcção. Aquele além é Izzy; não brincamos todos os dias com ele; só quando nos apetece.
- E ele não tem pena disso?
- Deixá-lo! - respondeu Smikey, com desprezo. Alguns factos chegavam ao conhecimento de Susana,
por pequenos pormenores, através dos gritos que saíam das janelas, das pancadas pesadas, das lágrimas, das idas e vindas dos médicos e sacerdotes. Certa manhã, viu um corpo estendido no passeio e um agente de polícia que berrava, pretendendo afastar a multidão. Micky King explicou-lhe:
- É a velha Brookes, lá de cima. Dizia sempre que um dia se atiraria cá abaixo, e fê-lo. Meu Deus! Como meu pai lhe queria mal! Mas nada pode já contra ela, agora que morreu!
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O dia estava esplêndido, tão cheio duma impressão primaveril, que a criatura de cabelos brancos, que ali jazia toda torcida, não o pudera suportar, sem dúvida.
- Posso ser-lhe útil? - perguntou Susana ao polícia.
- Não, obrigado, minha senhora. A não ser que pudesse livrar-me destes pequenos demónios. Dir-se-ia que se julgam num espectáculo inventado por eles.
- Venham comigo, todos! - ordenou Susana.-Vamos além à esquina buscar gelados.
E arrastou-os consigo; contou-os e comprou um sorvete para cada. Quando voltou, o largo estava despejado, o polícia fazia o seu giro, e os transeuntes circulavam pelo sítio onde a velha Brookes se encontrara estatelada momentos antes.
Oculta no meio de toda esta vida, Susana continuou a trabalhar regularmente, sem pressa mas sem atrasos, absorta horas e horas. Vinha a pé, pela manhã, ao sol primaveril, e, quando poisava as ferramentas, saía e voltava pelas brilhantes tardes de Primavera. Às vezes, um rápido aguaceiro fustigava os vidros, fazendo-lhe erguer a cabeça por um momento; os ruídos da rua morriam em meio do da chuva até voltar o sol, saindo logo as crianças em bando, para fazerem apaixonadas sondagens nos regatos e nas poças de água.
Sem descanso, dia após dia, Susana lá ia talhando o mármore, esculpindo-o; tão depressa fazia voar grandes lascas e bocados inteiros, como cinzelava, tão delicadamente como se pintasse a pincel, as curvas dos lábios e das pálpebras, a ponta dum seio, o contorno do joelho e do artelho. Nos princípios do Verão, acabara a sua Preta Americana.
Delia, terminada a limpeza, parou a examiná-la, depois desatou num riso estrídulo e declarou:
- Não gostava nada de me parecer com isto. A senhora aliviou-me bem, dizendo-me que a tirava da sua cabeça.
Interrompeu-se, séria.
- Não queria que me tomassem aí por uma qualquer.
- Ninguém acreditaria que é você, Delia.
- Não, decerto; e ainda bem.
Esta grande estátua era apenas a primeira duma longa série. Susana bem o sabia e a si mesma perguntava quantas faria, vendo à sua volta vários rostos e formas, desfilando. Todos os dias descobria uma que ficaria bem no mármore.
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Entre outras, escolheu uma sueca, que tinha restaurante, com o marido. Não tinham qualquer empregado, tratando ambos da cozinha, de lavar a loiça e de servir a freguesia, nas mesinhas recobertas de oleado aos quadrados vermelhos. Numa época anterior, ter-se-iam metido a caminho para os desertos do Oeste, atrás dos seus bois. Susana, sentada para lá da montra de smorgasbord que haviam arranjado, perguntara à mulher:
- Permite-me que venha até aqui e que desenhe o seu retrato enquanto trabalha?
- Por que não? - respondera, aborrecida. - Isso não nos fará mal algum, não é verdade, Gus?
- Não - resmungara este, com os braços carregados com uma pilha de pratos.
Durante duas semanas, Susana foi ali todos os dias; examinava os suecos, desenhava-os, ouvia-os falar um com o outro. Ao fim desse período, rasgou os desenhos e pôs-se a esculpir no mármore de Paros as figuras a que chamou: Americanos do Norte. Envergavam os antigos trajos suecos e pareciam arrastar consigo todo o aparato da sua civilização. Altos e magros, tinham fisionomia resoluta, com que enfrentavam o áspero vento do Norte.
Smikey entrou um dia, sozinho, fugindo ao calor que havia lá fora; sentou-se e olhou fixamente a cabeça que Susana desbastava.
- É Gus, não é? Parece-se com ele, mas este é maior. Susana respondeu-lhe afirmativamente com a cabeça,
e continuou a fazer saltar os duros estilhaços brancos.
Blake mostrava-se sempre muito amável com ela. Estavam talvez menos unidos do que antes, mas mais próximos em certo sentido.
Após a separação do dia, conversavam à noite animadamente, ao passo que, até então, vivendo constantemente juntos, conhecendo-se bem, quase não encontravam assuntos para conversa, expressando-se mais por contactos e carícias do que por palavras. No entanto, estas são um meio de expressão mais claro.
Uma noite, Susana chegou a casa com os pés doridos, por ter estado de pé durante tanto tempo. Os braços doíam-lhe também, mas nunca fazia caso do cansaço, graças à sua robustez. Depois de ter emagrecido, retomava agora as suas formas vigorosas e cheias. Subiu, a correr, lavou-se
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e vestiu-se rapidamente. Pôs um vestido de suave cor de ferrugem, e foi ter com Blake. Este estava talvez um pouco mudado, mas ela recusava-se a reconhecer o facto; a verdade é que não mostrava já pressa alguma de ir ao seu quarto, de lhe preparar a ablução ou escovar-lhe o cabelo, nem até de escolher o vestido que devia pôr. Esperava-a, cerimoniosamente, no salão. Nessa noite, quando Susana se inclinou para o beijar, limitou-se a corresponder-lhe com um beijo rápido. Ela não quis ainda prestar atenção a esta mudança; para mais, Blake estava entretido a ler um volume sobre a escultura jugoslava. Deixou-se cair a seu lado, meteu a mão na dele, e assim ficaram, sem se mexer, até que Crowne veio anunciar que o jantar estava pronto. Susana não procurou interrogar-se, sabendo muito bem que, submetendo-se ao marido, aceitando-lhe os caprichos, a sua impressionabilidade ficaria destruída. Afastavam-se, assim, levemente, um do outro; mas, sem isso, estaria perdida.
Jantaram sós e depois ela ouviu-o tranquilamente contar-lhe o seu dia; em seguida, subiram juntos e examinou com a maior atenção o trabalho do marido; apreendia facilmente o que ele quisera exprimir e o resultado obtido.
Blake trabalhava muito. Não era à maneira dela; no entanto, Susana sabia apreciar a beleza daqueles traços finos, dos olhos em amêndoa, das sobrancelhas arqueadas e daquelas figuras estilizadas de que ele tanto gostava e que realizava de maneira superior.
- É a beleza das matemáticas expressa sob forma humana - disse-lhe; e ele mostrou-se encantado. - Tu atingiste qualquer coisa de essencialmente grande - acrescentara ainda com calor, não só porque amava Blake, mas por estar convencida do que dizia.
Foi no Inverno seguinte, durante o qual ele fez o gesso que representava Márcia, e que modelou a figura de Sônia Pravaloff, a bailarina russa por quem todos andavam loucos. Trabalhava com rapidez. Num mês, terminou Márcia, alta e esbelta, com a cabeça inclinada: os cabelos lisos, cortados curtos, caíam-lhe sobre o rosto fino; as mãos, magras, estavam juntas. Era Márcia em pessoa, impressionável, agitada, de corpo ágil como o dum gato.
Márcia começava já a não querer aprender senão a dança, e, depois de ter visto Sônia, pelo Natal, todos os dias suplicava a Susana:
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- Não me mande mais à escola, mamã. Deixe-me aprender a dançar, a dançar a valer, como Sônia.
Sônia é uma ignorante - declarou João com calma;
- mal sabe ler. Pelo menos, nunca a vi com um livro

nas mãos!
- Eu também não gosto dos livros, não -declarou Márcia vivamente, mordiscando um dedo. - Parecem mortos. Oh, mamã! Deixe-me dançar... peço-lhe, suplico-lhe!
- Esta menina devia aprender - dizia Sônia também. Vinha jantar com eles muitas vezes, pois não dançava mais que duas ou três vezes por semana,
Blake representava-a na célebre terracota que não se assemelhava a nenhuma outra, e Sônia estava de tal modo impressionada por se ver sair assim das mãos do artista, que não abandonava o estúdio.
Depois de terminado, Susana pela primeira vez reprovou o trabalho do marido. Conservou-se em frente daquela figura voltejante, em silêncio. Blake esperava, seguro dos seus louvores.
- Estou bonita? Creio-o bem! - exclamou Sônia com ardor. Estava sentada sobre o enorme divã de Blake, de joelhos sob o queixo, tendo o corpo vigoroso, musculado, mas enxuto de carnes, dobrado debaixo do vestido de cetim branco, que só a custo a cobria.
- Oh, Blake! O senhor é um génio! Gosto tanto de ver como me fez!
Susana observou com animosidade:
- Há aqui qualquer coisa que é falsa.
- Que queres dizer? - perguntou Blake.
Ela esqueceu-se de que eram marido e esposa, e amorosos um pelo outro. Esqueceu-se de que, simples mulher, se dirigia a um homem. Não viu senão que aquela figura plástica não representava Sônia. Blake imprimira-lhe o seu próprio carácter; não saía de si mesmo para a ver qual ela era. Pela primeira vez o seu instinto errara quanto ao material a empregar. Susana compreendeu então que o marido se veria sempre limitado por si mesmo. Tudo o que escolhesse para fazer devia parecer-se-lhe; doutro modo, o seu talento não saberia apreender o assunto. As suas qualidades não tinham amplitude, embora fossem esplêndidas.
- Não me parece que a matéria plástica sirva para representar Sônia, Blake. - E Susana observou a bailarina.
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- Ora repara na forma da cabeça, no corpo. O barro?... Não; ela depende, precisa da arte glíptica. Muitas vezes o pensei. Quero eu dizer que se poderia fazer toda uma série das suas atitudes em mármore ou em pedra, em pedra muito dura, como a de Heptonwood. É que ela não é a mulher frágil, delicada, que tu representaste; é resistente, e o vigor da dança vem-lhe precisamente desse elemento de solidez. Atenuaste-a, a fim de que o barro pudesse contê-la; mas, apesar disso, a matéria não chega. O modelo escapou-se-te.
Susana reparou em breve que Blake ficara furioso.
- Estás a tal ponto enfeitiçada pela escultura, que nada mais vês. Aliás, não há figura que me escape.
- Mas eu gosto dos teus trabalhos, Blake.
- Pois esta é a melhor coisa que até hoje realizei.
- Para mim, prefiro Márcia.
Estava pronta a mostrar-se carinhosa, a ceder, a lisonjeá-lo, excepto quando se tratava do seu trabalho. É que este exige uma probidade absoluta.
Sônia observava-os, a um e a outro, com estranha expressão. Os olhos pálidos, oblíquos, luziam-lhe no rosto sombrio.
- Pois não vê Sônia, aqui? - perguntou ela, vivamente, a Susana.
- Não. Não tem a sua voz. Julgo sempre ouvir a de qualquer estátua que tomou vida. Mas esta continua simples estátua; é muda.
- Apesar disso, não deixarei de submetê-la à Academia- declarou Blake.
- Por que estás zangado comigo? - perguntou Susana.
- Não estou zangado; acho graça, até - e olhou para Sônia, sorrindo.
Mas este mesmo olhar, rápido, era ainda cheio de furor; Susana surpreendeu-o e, de repente, também se irritou:
-? Quer pousar para mim, Sônia? Esculpi-la-ei em mármore e mostrarei a Blake o que quero dizer.
- Pois também a senhora?-e Sônia desatou a rir com o seu riso russo, tão sonoro. - Por que não havia de querer? Será muito engraçado.
- Saiamos daqui - disse Blake bruscamente. - Aborrece-me esta casa.
Foram a um salão de dança, o que agradava muitas vezes a Blake, e Susana viu-o dançar com Sônia, tão
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maravilhosamente, que para ali ficou, com o rosto apoiado nas mãos, admirando-lhes a beleza e regozijando-se com ela. Quando ele voltou e lhe fez uma pergunta muda com um gesto frio das sobrancelhas, meneou a cabeça e sorriu:
- Prefiro tornar a ver-te dançar com Sônia. Esta abriu muito os olhos:
- A senhora não está a ser sincera!
- Está, sim - disse Blake. - Essa justiça temos nós de fazer-lhe: Susana é demasiado simples para mentir. Não tens subtileza nenhuma, querida Susana.
A cólera desaparecera-lhe, e Susana sentia-se feliz. Aliás, que lhe faltava inteligência era absolutamente exacto. O seu cérebro não funcionava com a rapidez e a facilidade do de Blake ou dos seus amigos. Os pensamentos saíam-lhe misteriosamente das profundezas do seu ser, do seu coração e das suas entranhas. Sentia-os agitarem-se dentro dela em embrião, e o sangue não transmitia ao cérebro, senão com o tempo, aquilo de que já tinha a intuição; enfim, não se exprimia senão quando a isso se via obrigada. Sorriu a Blake e suplicou-lhe:
- Dancem mais; são tão belos, ambos! Ele levantou-se, rindo:
- Oh, Susana, mulher perfeita! Vamos, Sônia, venha. Dançaram e, vindo não se sabe donde, um círculo de
luz branca caiu sobre eles, isolando-os dos outros pares. Reconheceram Sônia, e Blake estava encantado por ser visto com ela. A sua expressão era fria e grave. Parecia não ver ninguém, não sentir coisa alguma; mas Susana, que o conhecia, sabia bem que baixava as pálpebras e tomava aquela expressão porque nada lhe escapava. A orquestra tocou para eles uma ária melodiosa e envolvente; E Susana desenhou nas costas duma ementa, com um lápis que o criado lhe emprestou, os traços rápidos, vigorosos, da sua Sônia. Foi este o começo da Bailarina Russa, que um dia devia figurar na sua série americana.
Nessa noite, voltando a casa, foi a primeira a entrar no vasto salão; à porta, voltou-se, admirada de ver que se atrasavam tanto. Notou então que, na sombra do vestíbulo, Blake atraía Sônia para si e lhe dava um beijo violento e rápido. Susana entrou e aproximou-se vivamente do fogo. Quase em seguida, entravam eles, rindo.
?-Queres chamar para que nos tragam qualquer coisa de beber? -pediu Blake.
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Ela nem sentia o calor do fogo, muito embora Crowne tivesse empilhado ali muitas achas secas, que flamejavam. Blake e Sônia... Aquele beijo não os perturbara; não devia ser o primeiro, então.
- Sim, decerto - respondeu como em transe; e tocou a campainha. Depois sentou-se a um canto do divã, estendendo as mãos para a chama. Tinha frio, precisava de aquecer-se. Crowne trouxe whisky e soda; como Susana nunca bebia, preparara apenas dois copos.
- Crowne - ordenou em tom breve - traga também um para mim.
- Sim, minha senhora - respondeu ele, surpreendido.
- Está muito frio, não está? - perguntou ainda.
- Não acho - disse Sônia; e ria. - Tenho sempre tanto calor! Mas sinto sono, isso sim - e bocejou por detrás da mão morena. - Depois de beber mais um copo, terá de levar-me, Blake. Irei procurá-la amanhã de manhã, às dez horas, Susana. Veio-me agora a fantasia... o desejo... de me ver reproduzida no mármore. É que ele dura eternamente, não é? Quando eu for poeira apenas e o retrato que de mim fez Blake estiver feito em pedaços, como um velho pote de barro, o mármore subsistirá ainda.
- Perfeitamente - aquiesceu Susana. E pensava: "Não manifestaram qualquer perturbação; não era, pois, o primeiro beijo".
Deitada no seu quarto, aguardava que Blake voltasse do hotel onde Sônia vivia. Ele entrou depressa, sem se ter demorado, e sentou-se ao lado de Susana, na beira do leito. Parecia tão natural, tão encantador (aliás, era sempre encantador, às três horas da manhã), que esteve quase a perguntar-lhe: "Que necessidade tinham de se beijar, tu e Sônia?"
Ele daria aos ombros, riria e arreliá-la-ia. "Não estás com ciúmes, não? Um beijo não conta. Permito-me que beijes também quem tu quiseres".
E se ela declarasse muito sinceramente: "Não quero beijar ninguém senão a ti, Blake", limitar-se-ia a rir e a responder: "Pois beija-me, então" inclinando-se para receber aquele beijo.
- Sabe? Blake tem razão, Susana - dizia Sônia, enquanto dançava, lançando as frases aos poucos e mudando
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de uma pose estática para outra. - A senhora é tão simples -respondeu Susana. - Nem tenho vagar para
maes!
.- Sim? - respondeu Susana.
pensar nisso.
E desenhou rapidamente várias silhuetas.
- Blake é assim. - Pôs-se a dançar com passinhos curtos e nervosos. Exprimia Blake por meio do corpo. E era bem Blake, até certo ponto, ela, que em nada se lhe assemelhava.
Susana parou de desenhar e esperou. Era-lhe impossível continuar. Não sabia como apanhar as atitudes de Sônia. Observando-a, para si mesma dizia que nunca pensara em fazer o retrato de Blake. Não podia imaginar Blake em mármore. Havia nele qualquer coisa de efémero, que não se podia atingir nem reter. Sônia dançava rapidamente, em atitudes sacudidas e fugidias.
- Agora, a Susana...
Sônia parou; depois moveu-se com gestos lentos, profundos, elementares, um pouco rígidos.
- Tão simples - acrescentou - tão semelhante a uma criança, sem vaidade, sem garridices... Blake, sim, esse é todo galantarias... mas Susana não. Susana é triste, embora o ignore. Não é triste de si mesma; é-o porque sabe que a vida é triste, obscuramente, e que toda a alegria é fugaz. Só a tristeza é a longa realidade, tendo a dor por base; quando chegamos a compreendê-lo assim, temos a paz.
Susana não a ouvia. Desenhava tão depressa quanto o carvão lho permitia, em traços grossos, negros e ousados, que eram a maneira, tão sua, de fazer retratos, sem sentir a necessidade dum esboço. Traçava já, maciça e em três dimensões, a estátua que imaginava em mármore, indicando-lhe os contornos no papel.
- Pronto, basta. Tenho aquilo de que precisava. Sônia parou e pegou nos desenhos.
- Como os dois me vêem diferentemente! - exclamou.
- Qual das duas maneiras é que é Sônia? Em quem devo crer: em Susana ou em Blake? Quem sou eu, afinal?
Susana não respondia, nem ouvia. Errava por entre a sua colecção de mármores, e escolheu um bloco circular. Nem uma só vez pensara, nessa manhã, que Blake, na noite anterior, beijara Sônia. Pelo menos, a dor surda que
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havia lá, em qualquer recanto longínquo do seu ser, mal poderia chamar-se lembrança.
Sem piedade, Maria reacendera o incidente, numa manhã de Maio.
Acabava Susana a primeira das três imagens de Sônia, esculpidas num grupo maciço e cilíndrico. Cada uma delas representaria certo aspecto de Sônia, e os três formariam um todo: Sônia lançando-se numa bela atitude altiva, dum grande encanto; Sônia estática, os braços flectidos, batendo com o pé; Sônia inclinada como um salgueiro. Era esta a obra mais difícil que Susana empreendia, pois que o espaço faria também parte do conjunto. Os corpos não se tocavam, mas da massa central destacava-se um movimento que corria para o seguinte, e assim por diante, de forma que todos os corpos se encontravam ligados por um impulso contínuo. Susana traçara-os em linhas de uma simplicidade rudimentar, fazendo de Sônia, não uma mulher, mas uma dança.
Maria chegara ao meio-dia.
- Passei aqui para ir almoçar - disse - e embarco na semana que vem. vou a Paris. É a casa Parsdale Poore quem me manda lá, para desenhar uns figurinos. Quem costumava ir era a menina Blume, mas sofre dum ataque de apendicite... felizmente para mim!
Maria estava mais delgada do que nunca, e mais elegante. Sacudiu o pó da poltrona com o lenço e sentou-se.
- Almoças com Miguel? Não vos vejo há tanto tempo!
- observou Susana, continuando a trabalhar na curva do pé de Sônia, destacado do chão.
- Ora, Miguel! Está danado contra mim!
- Queres dizer que se separaram?
- Como havíamos de separar-nos, se nunca vivemos juntos? - respondeu Maria, observando as suas mãos delgadas e morenas, e as unhas cor de vinho.
Susana hesitou:
- Nada sei, de facto, pois nunca vi bem claro no que vos diz respeito. Mas nem te casas, nem queres casar com outro que não seja ele!...-
- O casamento... o casamento! - exclamou Maria, que perdera já a sua antiga reserva, ao menos aparentemente.
- Sempre te conheci obcecada pela ideia do casamento, Susana. Pensas que a vida das mulheres só dele depende...
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Se vier a casar-me, tratar-se-á apenas de uma operação comercial. E pode bem ser... Quando voltar, terei tomado uma resolução. É conforme...
Miguel tem-se mostrado paciente. - Susana delineou
um músculo no mármore com tanta leveza que a pedra tomou a naturalidade da carne.
- Esse nada tem a ver com isto - e a voz de Maria soou clara, arrogante à força de ser nítida. - Nunca casaria com ele. Se me casar, será com Bennyfield Rhodes.
Susana parou, olhando para a irmã:
- Nunca tinha ouvido falar nele.
- Mas o facto é que existe - respondeu Maria; e as suas lindas unhas arranhavam o estofo da poltrona como se fossem picos.-É o principal accionista lá da Companhia.
Susana poisou as ferramentas. Ainda de joelhos no chão, olhou para Maria com ar severo.
- É então por isso que casas com ele? - perguntou. Pela primeira vez notou como os olhos escuros de
Maria se conservavam impenetráveis, embora aparentemente olhassem a direito; aqueles olhos eram tão negros, que as pupilas desapareciam na obscuridade.
- A razão por que me caso, e mesmo se o faço ou não, são coisas que só a mim interessam.
- Como o conheceste?
- Vai muitas vezes ao estabelecimento.
- Que idade tem?
- Ainda não fez sessenta, e até parece mais novo.
- O Miguel deve estar furioso-observou Susana. Sentia um vago tédio. A humanidade não conservava
já o menor sentimento da honra nos seus actos. Os restos da saúde moral de outrora e de delicadeza haviam desaparecido do coração das gentes. Durante um furtivo segundo, lembrou-se de Marcos.
- Fui absolutamente franca com Miguel - e a voz de Maria soou de novo, retumbante e dura.-Nada lhe escondi. Dei-lhe tudo o que lhe podia dar; mas sabe bem que não poderia casar com ele.
- E porquê, Maria?
Ela tirou o chapéu, alisou os cabelos cortados curtos, e tornou a pô-lo, um pouco mais sobre a esquerda. Abriu a malinha de mão, tirou a caixa da pintura e polvilhou de pó-de-arroz o nariz muito direito. Voltou a pôr tudo dentro da malinha, fechando-a com ruído. Depois, disse:
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- Olha, Susana, aquela que casar com Miguel terá de renunciar a tudo. Ele nunca cederá. Seria preciso que eu fizesse parte dele mesmo. Ora eu não quero fazer parte de ninguém, nunca!
- Mesmo se o amasses?
- Mesmo assim. Poderia amá-lo, que nunca suportaria isso. Tu, tu não pensas. Contentas-te com teres impressões. Continuas a tua vida seguindo o caminho às apalpadelas, um dia e outro dia. Tens os olhos fechados; hás-de tê-los sempre assim. As impressões não contam quando se olha a vida prática. Se casasse com Miguel, não saberia sequer o dinheiro de que poderíamos dispor. A mãe, quando morrer, deve deixar-lhe qualquer coisa; mas parece disposta a viver cem anos. E ele nada ganhará pintando o género de quadros que prefere.
- E não poderias continuar a trabalhar como agora?
- perguntou Susana.
Pensava no pequeno Miguel, que subira ao seu sótão muito tempo antes e desenhara o retrato de si mesmo, galopando a toda a brida para a floresta sombria.
- Poderia, se quisesse; mas não quero. Se me casar, não trabalho mais; a não ser assim, fico como estou.
Susana pegou de novo no cinzel e no macete. Só ela, então, tinha tanta vontade de trabalhar, de trabalhar muito. Subitamente, irritou-se, e disse devagar:
- Mulheres como tu é que nos arrastam séculos para trás. Devemos esperar mais qualquer coisa do que aprender a colher tudo o que a vida tem.
Batia agora no mármore, com furor. Deixara de parte a delicada curva do pé e martelava a massa do soco. O estúdio ressoava com as pancadas. Mas, apesar da cólera, sabia bem o que fazia. As mãos voavam-lhe, animadas pelo instinto...
- Detesto essa espécie de mulheres que não pensam senão em tirar dum homem o mais que podem. Vê Lucília e esse pobre Hal. Ela julga-se mulher respeitável. E não vê que o reduziu a nada, à força de o explorar. Ele nunca fez outra coisa senão ajudá-la; trabalha todo o dia para a sustentar e vestir, e quando entra em casa, à noite, ajuda-a ainda a lavar a loiça e a. deitar os filhos, porque Lucília está cansada. É essa a sua vida. Ninguém conhece Hal devidamente. Nem ele mesmo teve tempo, nunca, para se aperceber do que é. Não, Maria, não cases com Miguel.
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É até favor absteres-te de o fazer. Talvez que, quando estiver convencido disso, te esqueça e fique o que é: um grande pintor. Seria pena ir estragá-lo, só para te permitir que vivesses sem fazeres coisa alguma!
Susana ia deixando cair estas palavras por entre as pancadas do macete. Maria respondeu-lhe então, com uma voz que lembrava um rio gelado:
- As tuas teorias não darão coisa alguma, Susana. Ninguém pode monopolizar tudo, nem mesmo tu. - Interrompeu-se, e depois acrescentou, calmamente: - Por exemplo: Blake não te pertence; é Sônia quem o tem. - E Maria ergueu-se. - Não tinha tenção alguma de to dizer. Não é coisa que me diga respeito. Soube-o todo o Inverno. Todos o sabem, menos tu. Repito-to apenas para te mostrar como te enganas... Perdeste-o. É que não podes ter tudo, muito embora sempre imaginasses o contrário.
Nada havia a replicar. Maria acabava de abrir-lhe um precipício debaixo dos pés. Susana nem força tinha já para erguer o macete, para bater no cinzel, para romper o mármore. Poisou as ferramentas e, subitamente, na sala silenciosa, sentiu a boca-seca.
- Sempre me odiaste; porquê?-perguntou; e sentia a língua tremer com ruído.
- Não, Susana-respondeu Maria, cuja voz, agora fraca, deixava transparecer um pouco de compaixão-; lamento-te mesmo. Todos conhecem Blake Kinnaird melhor do que tu. Aqui tens a razão por que eu me admirava tanto. E muito fizeste; estás casada há três anos, não? E Sônia é a primeira em quem ouvi falar desde então...
- Três anos no mês de Junho. - A voz de Susana mal se ouvia. Num belo dia de Junho, ela e Blake tinham entrado naquela repartiçãozita em Paris, para se casarem. Sentira que precisava de casar com ele, e decidira-se de repente.
- Miguel dizia-me, há dias, que nunca esperara que isto durasse tanto tempo. É que, na verdade, tu és muito pura, Susana; não te pareces nada com toda essa gente.
Susana, sempre de joelhos, ergueu os olhos para a irmã. Talvez Maria tivesse razão. Era simples, demasiadamente simples para Blake, para todos. A própria Sônia o notara também. Fora Marcos o único que não tivera essa opinião. Mas esse era uma criança, morrera muito novo. Susana sentia-se incapaz de compreender as subtilezas de
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inteligência daquela gente e de se pôr ao nível dela. Entranhava-se muito nas realidades, ou talvez nos sonhos.
- Bem, adeus. - Maria inclinou-se e encostou por um momento a face morena e fria contra a de Susana. - Sobretudo, não vás agora atormentar-te. É magnífica aquela coisa negra, lá ao fundo. Tenho de confessar, Susana, que fazes progressos.
Susana ergueu-se. Tinha a impressão de que Maria procurava ser amável; mas era já tarde, agora.
- Adeus, Maria. Desculpa ter-te falado assim. Sabes melhor do que ninguém o que te convém.
- Também creio - declarou Maria; e saiu, sorridente, confiada, com os lábios vermelhos e finos fortemente apertados.
Após a saída da irmã, Susana sentou-se na poltrona e recordou penosamente o momento em que Blake beijara Sônia. Que significava aquele beijo, como fora dado, e porquê? Susana não sabia. Se Blake não amava Sônia, que necessidade tinha de a beijar? Não se explicava, pois, senão amando-a.
"É preciso que lho pergunte", disse para consigo, muito simplesmente. Não entrevia qualquer outro meio. Não poderia espiá-lo. Não tinha tempo para o seguir nas suas idas e vindas durante o dia, pois havia o seu trabalho a fazer.
Olhou o relógio, assaltada pelo desejo de ir ter com Blake. Mas era uma hora, devia ter saído; não almoçava em casa senão quando ali trabalhava. E agora andava a preparar uma exposição. Ela sabia que Blake esperava vender logo para o museu alguns dos seus barros. Suspirou e tirou do bolso do casaco o embrulho de sanduíches que todas as manhãs Crowne lhe apresentava com dignidade, no momento de sair.
- Obrigada,. Crowne - dizia-lhe, e metia-o no bolso. Um dia, aquele perguntara-lhe: - "A senhora não preferiria que lhe levassem o almoço?" Mas assustada só com a ideia de criados, de pratos, tudo isto a interromper o seu trabalho, respondeu logo, vivamente: - "Oh, não! Prefiro as sanduíches".
Comeu-as, inclinou-se debaixo da torneira e bebeu como numa fonte. Depois hesitou um momento e, não chegando a decidir-se, pôs-se de novo ao trabalho. Interrompeu-o para dizer para si mesma: "E é no corpo de Sônia que trabalho; como é isto possível?" Esperou ainda uns
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minutos depois continuou. O desejo de prosseguir, de terminar o que começara, era mais forte que tudo o que a Sônia dizia respeito. Esta não existia; só existia a obra de Susana.
Na sala-de-jantar, Blake contava-lhe os seus dissabores. Esforçara-se por convencer o velho José Hart de que os barros que apresentava não eram mera brincadeira feita com terra. Quando acabou de falar, Susana perguntou-lhe:
- E é tudo, Blake?
- E chega, parece-me, para um dia - respondeu, muito amável.
Nele nada havia mudado. Susana observava-o enquanto falava, e de si mesma indagava se existiria qualquer transformação interior; porque o amor deve deixar qualquer marca por mais leve que seja. Mas ele examinava a mulher com os olhos cinzentos, frios e límpidos, a mão sacudia a cinza do cigarro sem o menor tremor, e ela nem sequer pôde verificar qualquer diferença no beijo que recebera à chegada.
Antes de jantar, no seu quarto, Susana ainda se sentiu tentada a pôr o vestido-vermelho e oiro que ele lhe mandara fazer. Mas teve vergonha de recorrer assim a uma quase garridice, e também não quis ir, entretanto, até ao ponto de envergar o azul, que desagradava ao marido; acabou, por isso, por escolher um outro, muito simples, de musselina de seda branca, e puxou para trás os cabelos, atando-os como costumava. Ele nada notou, no seu ardor de ir enumerando os "seus dissabores.
- Tenho uma pergunta a fazer-te - disse ela. Estavam sós então.
Crowne acabava de servir a salada e não voltaria antes de alguns minutos.
--Que é?
E Blake ergueu as sobrancelhas finas, olhando-a, mas a sua voz não deixava transparecer qualquer alarme.
- Maria veio hoje visitar-me. Disse-me que tu e Sônia estáveis apaixonados um pelo outro. É verdade, Blake?
Desta vez, fora colhido de surpresa. Poisou o garfo e limpou a boca.
- Por que é que Maria te contou isso? Susana respondeu com a mesma voz tranquila:
- Veio de certas palavras minhas que a magoaram. Estou certa de que, sem isso. não mo teria dito.
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Susana admirou-se de não sentir qualquer zanga contra Blake. Sentia apenas uma calma triste, sob o olhar dele.
- E queres zangar-te comigo?
- Não, mas necessito de saber. Dize-me o que há, claramente, Blake.
Mas este não podia explicar-se assim com tanta simplicidade. Esmigalhava um bocado de pão no prato.
- Sônia, já se sabe, tem amado muita gente; está-lhe no sangue, isso; faz mesmo parte da sua arte, penso eu.
- Se te limitasses a responder-me simplesmente, Blake?
- repetiu ela.
- Não é muito fácil, Susana. Não há relação alguma, por exemplo, entre o que sinto por ela e por ti. Não posso negar que me faz... pensar nela. Por que não o confessar? Da mesma forma poderia também queixar-me de te ter visto trabalhar no estúdio de David Barnes; e nunca o fiz. Pessoas como nós agem segundo a força que as impele. A nossa natureza reclama muito.
Susana arregalou os olhos:
- Pois pensaste alguma vez que David Barnes e eu?... Ele abanou a cabeça e estendeu-lhe a mão:
- Não, não, Susana! Repito-te: nunca o pensei. Tomei-te tal como eras, assim te conservo, e, faças tu o que fizeres, para mim serás sempre a minha Susana.
Havia tal tranquilidade no tom e na expressão de Blake, que ela se sentiu aturdida. Agarrava-se principalmente a uma frase que ele acabava de pronunciar, porque a verdade devia existir em qualquer parte, uma verdade absoluta.
- Queres dizer na tua, que te sentes obrigado a... a amar Sônia?
- Susana, minha querida, tão ingénua! Deixa lá Sônia. O que eu penso dela não tem nada a ver connosco.
- Mas não é assim, Blake; tudo o que pensas e sentes tem muito que ver comigo.
Isto, ao menos, era claro. Mas parecia-lhe que se esforçava por alcançar Blake através duma nuvem. Ouvia-lhe a voz, sem lhe ver o rosto.
- Susana, por favor! Deixemos esse assunto. - Impacientava-se já.
- Recusas-te então a dizer-me?...
- Não acho que isso deva interessar-te - respondeu Blake com uma secura glacial. Parecia-se agora, subitamente, com o pai, polido, frio e, sem ser desagradável,
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incapaz de sentir o que estivesse fora de si "Não me falarás mais nisso, minha querida", dizia o velho Kmnaird, com a sua voz seca, à mãe de Blake; e ela submetia-se humildemente: "Está bem, Artur; perdoa". Então, ele acrescentava: "Muito bem, muito bem". E mais tarde declarava a Blake: "Fui sempre muito feliz com tua mãe, meu filho". No entanto, apesar de ter muitos anos menos que o marido, há bastantes anos já que ela desaparecera. Blake, pequeno ainda à data da morte da mãe, não conservava desta qualquer lembrança. Talvez Susana tivesse já notado que o marido incarnava exactamente o velho Kinnaird e, então, nada mais importava. Não seria o mesmo se tivesse tido qualquer outro interesse... E bem no íntimo de si mesma exclamava com ardor: "Como tenho sorte em possuir qualquer coisa que vale mais que Blake... mais que o amor!... Se não tivesse senão o amor..."
Olhou fixamente para o marido e disse-lhe, sem antes ter tido intenção alguma de o fazer:
- Eu não tenho de obedecer-te, Blake. Parecia-lhe ouvir uma voz que saísse de qualquer das
suas estátuas. "Sou completamente independente de ti", dizia a voz.
- Susana...
- Não, espera, peço-te. Não acabei ainda. Procede lá como entenderes com Sônia. Mas até chegares a uma decisão que possas confiar-me, bem clara, deixa-me estar tranquila.
- Susana! És absurda!
- Poderia interrogar Sônia, mas não quero - continuou Susana, sem desviar o olhar de Blake. - Tu é que me hás-de dizer tudo.
- Mas nada posso dizer, não sei!
- Esperarei.
- Estúpido ciúme de criança - murmurou ele. Susana, tu és muito simples para seres deste mundo.
- Sou simples, de facto. Gosto das coisas claras e nítidas. Preciso de compreender a minha vida, as bases em que assento. Casei-me contigo, e, para mim, isso significa que não há dentro de mim lugar para mais ninguém. Levo a simplicidade até este ponto.
Ele interrompeu-a:
- Tu és uma mulher.
?- Sou mais do que isso: sou uma mulher que trabalha.
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E, pronunciando estas palavras, Susana viu perante si a sua obra; esta significava liberdade, segurança, era o seu refúgio, a sua maneira de expandir, e já não sentia medo. Quando Marcos morrera, sobrevivera-lhe; e se Blake amava Sônia, continuaria a viver também.
- Maria é que é absurda - disse, alto.
- Pois claro - observou Blake.
- Mas não é nesse sentido que eu o digo - afirmou Susana, resoluta.
Viu o olhar interrogador de Blake. Crowne entrou, para mudar os pratos, e ela calou-se; mas pensava, continuando a comer: "Maria é absurda, abandonando a sua situação; comer, dormir, conservar o espírito em paz são condições de trabalho, necessárias". Amara Blake ardentemente, e o amor aniquilara-a por algum tempo. Não se deixaria agora vencer pela dor. Afastaria o sofrimento do seu ser real, o único que lhe dava a força de agir.
Crowne pusera o café no terraço, e Blake seguiu Susana. Antes de se sentar, pegou-lhe no queixo e deu-lhe um beijo rápido. Ela não o repeliu, nem virou a cabeça. Deitou o café, apresentou-lhe a chávena e notou nos olhos dele uma expressão trocista, um pouco risonha e, depois, triunfal.
- Ao menos tenho ainda licença para te beijar! Ela olhou para outro lado e murmurou:
- O rio está lindo, não está?
A vista era realmente esplêndida. Uma bruma ligeira se estendia sobre a água, fria em relação à atmosfera quente da noite; essa bruma elevava-se depois em longas tiras de nuvens ondulantes e as estrelas encontravam-se como que presas num emaranhado de névoa. Era tão belo isto, que o coração de Susana se quebrou angustiado e algumas lágrimas lhe subiram aos olhos. Pôs-se a tremer, do choro contido. Queria muito a Blake. Amava-o ainda. Esperou um momento, com os olhos fixos na bruma, e depois pronunciou estas palavras em tom firme:
- Mas mantenho o que disse, Blake.
David Barnes, de regresso a Nova Iorque, examinava as sete estátuas que ela fizera já.
- São absolutamente originais-observou.-Não encontro aqui qualquer reflexo da França.
- São americanas - notou Susana.
- Não sei se a Susana sabe de certeza bem o que elas
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são... - E ao cabo dum momento, acrescentou: - Em todo o caso, Blake não exerceu influência sobre a senhora.
- Exerceu, sim!
- Não vejo...
Foi graças a ele que me desenvolvi - respondeu ela.
E como Barnes puxava pelas barbas com as duas mãos, esperando, visivelmente, que ela continuasse, Susana esforçou-se por exprimir o que sentia:
- Sirvo-me mais facilmente do macete e do cinzel que da língua, David... Creio que, quando Blake e eu começámos a amar-nos, é que me animei, fundindo a minha vida na dele. Estava perdida. Durante um ano inteiro, nada fiz. Em seguida, uma frase de meu pai mostrou-me que, se não voltava a mim... arriscava-me a morrer um dia sem ter conseguido realizar coisa alguma. O senhor compreende. Nesse caso, tudo me teria parecido vão. Pus-me, pois, ao trabalho, mas era preciso fazê-lo longe de Blake. É à medida que avançava, mais e mais me definia, era mais "eu". Mas era inconsciente, isto, a não ser a minha resolução de fazer o vácuo dentro de mim, de não pensar em quem quer que fosse...----.,
- Ah, enfim! Posso agora fazer-lhe a pergunta: por que é que casou então com Blake?
- É que Blake me trouxe uma coisa que nunca tivera
- respondeu. Depois, à lembrança de todas as horas de paixão que Blake lhe havia proporcionado, os seus lábios puseram-se a tremer e as faces tornaram-se-lhe ardentes sob o olhar tão preciso de David Barnes. Mas não devia desviar a vista, e por isso a conservava obstinadamente fixa sobre ele, ao dizer: - Blake fez de mim uma mulher.
David Barnes largou a barba com um gesto brusco e disse-lhe, com muita doçura agora: Susana, no primeiro dia em que entrou no meu estúdio, no campo, há muitos anos já, vi logo que era uma mulher, e muito bela. Sabia-o?
Ela meneou a cabeça:
- Não, David, nem nunca o pensei.
Barnes sentou-se-lhe em frente, de pernas cruzadas, no chão nu:
-Bem pensava eu que não o tinha notado, e não queria dizer-lho. Em Paris, quando a ajudei e a senhora trabalhava em minha casa, podia ter falado. E muitas vezes estive quase a fazê-lo. Mas não. Parecia-me que nenhum
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homem tinha o direito de lhe tocar, lá porque o acaso fizera de si uma mulher.
- Nunca pensei nisso... Nunca me veio à ideia...
- Eu sei. Mas se eu me tivesse atrevido...?
Ela voltou a agitar a cabeça e respondeu, com bondade:
- Não creio, David.
Este levantou-se, indo sentar-se no peitoril da janela.
- Não importa - disse, num tom seco. - Faça-me ao menos a justiça de reconhecer que nunca me atrevi. Blake fê-lo, e não tinha mais direito do que eu. Ele pensou em si próprio; eu pensei em si.
- Tenho confiança no senhor - disse ela. Barnes olhou-a longamente.
...Blake pedira, ela dera-se, e não sentia pena de o ter feito. Se pudesse escolher, tornaria a fazer exactamente a mesma coisa, porque o próprio Blake trouxera à sua vida uma plenitude. Sem ele, não teria podido ter tudo. Pensava ainda no marido com um forte impulso de desejo apaixonado. Amá-lo-ia sempre como agora, dessa maneira íntima e profunda. O seu espírito conservava-se separado do de Blake, os seus seres nunca mais se fundiriam, mas, enquanto o coração lhe batesse, continuaria a amá-lo dessa forma plena e intensa dos corpos, cega, aguda e torturante... Susana pensava nisto, em silêncio, enquanto David Barnes a observava. Depois, incapaz de lhe suportar a expressão por mais tempo, disse-lhe, bruscamente:
- Enfim, para voltarmos às realidades: é preciso expor estas coisas, Susana. Sete... é pouco... mas podemos juntar a estátua que estava a fazer em Paris. É tempo já de se lançar. Não há-de ser muito fácil, por se tratar duma mulher; é uma grande desvantagem. Os críticos esperarão de si apenas coisinhas bonitas. Será preciso encaixar-lhes bem na cabeça que não fabrica somente motivos de decoração para as árvores de Natal, ou ninharias. - Olhou ainda de novo, atentamente, para as figuras que representavam Sônia, e murmurou:
- Meu Deus! Que artista é!... Blake viu esta Sônia?
- Nada. Não viu coisa alguma.
- Pois não viu isto?!
E o rosto peludo de David tomou uma expressão vaga.
- Não. Andava ocupado... uma coisa e depois outra... Penso que a culpa foi minha, porque não sei falar muito e nada lhe disse do meu trabalho.
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Hum! E as enormes mãos ossudas puxavam de
novo a barba.- Seria interessante exporem juntos; simplesmente eu não gostaria lá muito de estar no seu lugar. Mas tenho uma ideia, Susana; exponha comigo. Os meus Titãs Tenho já vinte e um terminados. Exponho-os em Novembro. Ceder-lhe-ei um lugar para si. David Barnes e Susana Gaylord. Modéstia à parte, isso far-lhe-á um pouco de reclamo.
Susana sentia-se tão reconhecida por tanto entusiasmo, que avançou e lhe tomou a mão. Era a primeira vez que lhe tocava, e pareceu-lhe apertar a raíz nodosa duma árvore, Barnes, muito embaraçado, apertou por um instante, desajeitadamente, os dedos de Susana, e depois retirou a mão.
- Não lhe agradeço, sequer, David - disse ela, docemente. - Sinto o coração comovido por tanta bondade. Mas devo trabalhar sozinha, e a minha obra deve apresentar-se sozinha também. Não posso apoiar-me ao seu nome.
- A senhora não conhece nada disto. - E Barnes esfregou o grosso nariz chato.- Passei por isso muita e muita vez. Repito-lhe: já é bastante duro para um homem suportar tais aborrecimentos; uma mulher não lhes resiste. Não a tomam a sério. É uma patranha dizer que há igualdade. Os artistas são uma raça maldita, egoísta, repugnante; cada um procura derrubar os outros. Uma mulher, então, não tem nem a sombra duma probabilidade de vencer. Se tem valor, enfurece os homens. Estes já têm bastante inveja uns dos outros; mas quando uma mulher se apresenta como rival, é impertinência. São todas malditas desde o nascimento... se é que a senhora é mulher... pelo menos desde que tentem medir-se com os homens.
- Neste país cavalheiresco?!-disse ela, sorrindo de leve.
- Essas coisas de cavalheirismo - respondeu Barnes pomposamente - só se usam com as damas, e estas não são rivais sérias. Mas a senhora não é uma dama, que diabo! Ora olhe para essas mãos!
Ela examinou-as. Eram sujas, calosas, de unhas partidas. Dias antes, Blake pegara numa delas e, depois de a ter olhado, poisara-a de novo, fazendo uma careta: - "Mulher a dias!" dissera então; e ela sorrira-lhe, sem responder.
- Felizmente, tem os cabelos encaracolados -
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observou ainda David Barnes, com ar feroz - mas isso não impressionará os críticos!
Susana contemplava as suas sete estátuas, que, por seu lado, a olhavam também. Ouvira-lhes as vozes, nitidamente, cada uma por sua vez, estava certa disso; e afirmou:
- Não tenho medo; é-me indiferente ser mulher. Barnes tirou a boina do bolso, num gesto sacudido.
- Não me irei inquietar muito por sua causa - disse, dirigindo-lhe bruscamente um sorriso radiante sob a barba.
- Atravessou as sombras e está já do lado bom. Vejo-o bem. Prepare a sua exposição. Penso que não se zangará muito comigo se a for ver e disser nos jornais o que penso.
Saiu o limiar da porta, depois voltou-se e avançou a cabeça pela abertura; e os olhos riam-lhe, sob as sobrancelhas espessas:
- Olhe, Susana: se não fosse uma mulher, juro-lhe que a faria um dos meus Titãs. - E desatou numa gargalhada formidável, batendo com a porta. Susana ouviu gritos, foi à janela e viu rolar o automóvel ao longo da rua; a barba flutuava-lhe ao vento, a boina caía-lhe sobre uma das orelhas. Tirava moedas do bolso, semeando-as pelo caminho; atrás dele, muitas crianças se precipitavam para fora das vielas e das casas, mas Barnes assobiava, fingindo não as ver.
Foi-porque a sua vida com Blake lhe pareceu de repente não existir já, que Susana, pela primeira vez, lhe falou da sua obra. Sobre que era, então, que essa vida estava edificada (a si mesma perguntava com admiração e tristeza) para que os dias pareçam assim vazios, só porque, à noite, fechava o seu quarto ao marido? E o facto é que não podia abri-la, enquanto ele se recusasse a falar de Sônia, a abrir também, assim, uma porta em si mesmo, por onde Susana pudesse entrar.
Separaram-se ao cimo da escada, à meia-noite, e Blake sorriu; mas, por trás desse sorriso, Susana notou-lhe a expressão zangada; no entanto, o tom continuava leve, quando observou:
- Não será isso uma espécie de chantagem física, Susana?
Ela meneou a cabeça e respondeu com calma:
- Não, Blake; é muito simples. Só a ideia do teu corpo me dá agora um pouco de náusea; nada mais.
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Calou-se e sentiu que o impressionara. Começava a perceber que ele não sabia enfrentar as coisas simples
- É uma observação muito amável da parte de uma esposa! - disse por fim. E como ela não respondesse, acrescentou, quando se encontraram diante da porta do seu quarto: - Queres o divórcio, Susana?
Não! - respondeu tranquilamente. - Por que mo perguntas?
- Porque me não amas já.
- Oh, sim, amo-te! Amo-te sempre. Mas há o meu "eu", a minha pessoa, que se afasta de ti. Não posso forçá-la, não estaria bem!
Ele contemplou-a um bom momento, tomou-lhe a cabeça entre as belas mãos esguias e beijou-a na testa.
- Boa noite!-disse-lhe, afastando-se; e ela cerrou a porta; inútil fechá-la à chave. Conhecia Blake.
Mas não sabia quais os pensamentos escondidos por trás daqueles olhos dum cinzento-mar. Ela de forma alguma desejava uma separação. O que dissera era verdade; o corpo de Blake inspirava-lhe uma sensação de repulsa, por ignorar o que Sônia representava para ele. Não podia abandonar-lhe a sua carne enquanto aquela porta se conservasse fechada entre os seus espíritos. Não, seria muito vil. Um dia, Trina, falando livremente entre mulheres, dissera: "Temos de os aturar de tempos a tempos, mesmo quando estejamos cansadas como um cavalo velho, sem o que entrarão a azedar. É a única maneira de haver paz".
Susana reflectia nisto, estendida, sentindo o corpo fresco e tranquilo, à claridade da Lua, que entrava pela janela. Mas recusava-se a violar assim a sua personalidade; uma paz, comprada por tal preço, não era uma paz verdadeira. Havia nela uma coisa preciosa, que era ela-mesma, e que tinha de conservar íntegra. Não era só o seu corpo, era a energia que. seguindo para além de todos os obstáculos causados pela amargura, lhe guiava o espírito para a visão, e as mãos para a criação do que via. O próprio Blake não tinha o direito de interceptar esta energia, a torrente profunda da sua vida, pois isso seria a paragem definitiva, que lhe traria a perdição. Deitada no leito, a meio do vasto quarto pacífico, procurava em si qualquer outra coisa susceptível de oferecer a Blake, enquanto a paixão se conservava em suspenso.
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Foi então que se lembrou da sua faceta íntima, que nunca lhe confiara. Talvez que, conversando juntos, encontrassem um traço de ligação. De madrugada, tomou a resolução de falar a Blake das suas sete estátuas, e de lhe pedir conselho a respeito da exposição. Talvez isto lhe desse prazer. Não lhe esconderia mais esta parte da sua vida, a mais profunda, como até então tinha feito; não tornaria a esconder-lhe fosse o que fosse. Tomada esta decisão, sentiu-se mais feliz, mais calma, e pôde, enfim, dormir.
Não experimentou dificuldade alguma ao dizer-lhe pela manhã:
- Blake, queres vir ver o que tenho feito?
Ele estava belo e dava uma impressão de frescura, no seu fato cinzento-claro. Tinham corrido os estores na sala de jantar, e Crowne trazia o café e frutos gelados, Susana envergara um roupão prateado, de que Blake gostava. Tinha ao lado uma carta de João, escrita do campo. Sentia-se alegre, cheia de esperança, e fez logo a pergunta.
O marido descera primeiro; levantara-se enquanto ela se instalava e voltara a sentar-se. Olhou-a quando lhe falou.
- Já se sabe que irei. - Depois, ao fim dum momento, acrescentou: - Muitas vezes tenho sentido o desejo de falar contigo a respeito do teu trabalho, Susana; mas és uma mulher tão independente!
Sorria; no entanto, ela viu, ou julgou perceber, certo descontentamento no som da voz.
- Não sabia que pensavas nisso! - exclamou. - Esperava sempre uma palavra tua.
- Mas porquê? Pois não te mostro sempre tudo quanto faço?
Ela observou-o. Talvez se tivesse enganado a seu respeito.
- Não sei; aí tens... - acabou por dizer. - Este aspecto parecia-me perfeitamente independente de ti, sem dúvida por supor que te desagradaria. Ou talvez também por ser mulher; sentia que teria de dar provas, de atingir um resultado, antes de falar nisso. No fundo, sinceramente, nem sei, Blake. Sinto que devo fazer uma coisa, e faço-a. Pronto.
- Ah! Aí está porque és de tal modo formidável.
- Sou-o, deveras?
- Sim; não te alcançamos completamente, sabes?
- Não compreendo.
- Quero eu dizer que não pensas como toda a gente e,
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assim ficas um pouco à parte. Não é fácil aproximarmo-nos de ti, Susana. Quase todos os meus amigos te temem Sim?! volveu surpreendida. - Mas porque, Blake?
- Imaginam que tu te julgas um pouco... enfim, que os criticas, quando ficas sentada, a examiná-los.
Não nada disso! - E quase sentia vontade de chorar, É que não posso impedir-me de observar as pessoas. Faço-o maquinalmente, sem dar conta disso.
Discutiam assim, como estranhos, coisa que ela não pôde suportar; as lágrimas, que retinha, brotaram-lhe bruscamente dos olhos.
- Não digas que também tu não podes compreender-me - murmurou.
Mas ele, sem erguer a cabeça nem lhe ver as lágrimas, continuou a troçar:
- Pois não gostam as mulheres de fazer de misteriosas, de incompreendidas?
Sentia-se muito longe dele, longe de todos, como Blake acabava de dizer. Enquanto trabalhava, dia após dia, a humanidade escapava-se-lhe. Não tivera tempo para criar amigos, para passar bons momentos com quem quer que fosse. Os próprios filhos não tinham sido mais que simples aparições, no começo e no fim de cada dia. E agora tinha acabado as suas noites com Blake. Por causa do sol, via-o mal, como que muito distante. Pediu-lhe:
- Blake, dize-me qualquer coisa de verdadeiro! Fala-me! Se este o tivesse feito, se lhe tivesse falado, Susana teria
corrido para ele, ter-se-ia ajoelhado e, envolvendo-o com os seus braços, gritar-lhe-ia: "Sônia não tem importância; nada a tem, se me guardares junto de ti. Tenho necessidade de me sentir perto de alguém".
Mas ele erguera a cabeça e respondera com a mesma voz cheia de ardor:
- Que hei-de dizer-te, Susana? Que estás bela, esta manhã? Mas tu és sempre bela, e tenho-to repetido tantas vezes! Vá, almoça depressa, para irmos ver as tuas maravilhas!
Mergulhou as pontas dos dedos numa taça em que boiavam pétalas de rosas vermelhas e enxugou-as ao seu guardanapo engomado. Entrou Crowne trazendo uma travessa de rins, de que Blake se serviu com a sua invariável satisfação. Comia sempre com o maior apetite e no entanto
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conservava aquele corpo fino e elegante que a natureza lhe dera.
- Ora até que enfim apareceu alguém que sabe grelhar rins!
- Ainda bem - disse Susana, que passara horas preciosas à procura duma nova cozinheira, porque os rins nunca estavam ao gosto do marido; na véspera, Joana dissera-lhe, com aqueles seus modos um pouco rudes: "Eu não me importava de ir à cozinha preparar-lhe os rins, de que ele tem sempre que resmungar, desde que se diga claramente, lá em baixo, que fui especialmente encarregada de o fazer". - "Obrigada, Joana, vem sempre em meu socorro". E Joana respondera, num tom profético:
- "A senhora há-de realmente precisar de mim, de novo, num destes dias..."
- Vamos? - perguntou Blake.
Susana levantou-se. Os joelhos tremiam-lhe um pouco. "Mas eu não tenho medo dele"-disse para si mesma, baixinho; e acrescentou em voz alta:
- É só um momento, para mudar de vestido, Blake. Subiram para o carro, e Bantie conduziu-o solenemente
ao longo dos quatro quarteirões de casas até ao estúdio, cujo local Susana conservara em segredo até então.
- O quê, Susana - exclamou o marido - pois é aqui, no meio deste barulho e desta porcaria?!
- Vais ver. Há muito espaço lá dentro.
Subiu as escadas, à frente, a correr, e abriu a porta, fechada à chave. Mas quando ele entrou, olhando em volta, Susana pôs-se de novo a tremer. Pediu-lhe, então:
- Agora, senta-te um pouco; eu acomodar-me-ei no braço da poltrona.
Assim fizeram; ela aguardava, com o coração a bater fortemente. Quando David Barnes examinara as suas estátuas, sentira-se segura da sua obra; mas, agora, uma dúvida a assaltava, ante o olhar rigoroso de Blake. Pareceu-lhe que as estátuas se fechavam bruscamente numa reserva muda, ficando apenas uns blocos pesados, formidáveis. Ao lado dos trabalhos delicados e bem acabados de Blake, pareceriam rudimentares.
- Estou verdadeiramente assombrado!... - acabou por dizer. - São enormes! Quando fizeste tudo isto, Susana?
- Trabalhei nelas quase todos os dias...
- Não esperava encontrar coisas tão consideráveis.-
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Levantou-se e circulou por entre as estátuas. Susana sentia-as conscientes destes passos e desta aproximação. Mas conservavam-se passivas.
- Têm certa simplicidade, já se sabe... - começou;
mas deteve-se.
Lá de fora, chegavam os sinais estridentes de uma bomba de incêndio, passando a toda a velocidade em frente das janelas, e os gritos das crianças; a sala estremeceu, mas logo se tornou imóvel. Só as figuras maciças é que não se tinham movido.
- Vejo a tua ideia - continuou Blake, estudando as inscrições em cada uma delas. - É uma espécie de América primitiva, raízes, solo; os primeiros elementos, não?
- Qualquer coisa nesse género. Mais uma sensação do que uma ideia.
Ele deteve-se muito tempo em frente das três Sónias.
- Ah! - disse depois, num tom tranquilo. - Vê-la assim... uma espécie de camponesa. Eu vejo-a sob uma luz muito diferente.
- Mas é realmente uma camponesa. O pai era rendeiro croata; viveram entre os tártaros.
- Ela viu isto?
- Não; pelo menos depois de acabado. Veio apenas servir de modelo, ao princípio.
- Foi também o que me disse.
Sônia não voltara lá a casa, desde que se tornara ponto de discussão. Mas Susana sabia, é claro, que eles se encontravam ainda. E, contudo, Blake falava nela com indiferença, como se nada tivesse a ocultar.
- Só trabalhaste o mármore?
- Só... Tu não gostas do mármore; para mim, é o meu material.
Ele continuava a olhar sempre o corpo nu de Sônia; não o podendo suportar mais, Susana perguntou-lhe:
- E a minha preta? Gostas? Ele voltou-se.
- Sim. Está muito bem. - Depois acrescentou, com uma espécie de assombro: - Está realmente muito bem, Susana.
Ela teve vontade de exclamar: "Mas por que te admiras?"; no entanto, limitou-se a dizer:
- Sim; gosto muito dela, também.
Blake tornou-se então muito amável; explicou-lhe o que
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tinha a fazer para organizar a exposição, deu-lhe nomes e direcções, e perguntou-lhe mesmo:
- Queres que eu trate disso? Que te abra o caminho? Ela agitou a cabeça:
- Não. Isso distrair-me-á. Quero eu ocupar-me de tudo. Não te contraria que me sirva do meu nome, apenas?
- Por que não?
À porta, beijou-a ternamente e disse-lhe:
- Tudo isto é assombrosamente bom, a seu modo. Mas nada tem de moderno, Susana.
- Reproduzo o que vejo. Não sei em que categoria me irão alinhar.
Ele olhou ainda, fixamente, as estátuas de mármore, dizendo:
- Noto que não trabalhaste com o cérebro, mas com qualquer outra coisa; lá o quê, não sei... É trabalho instintivo, este; até certo ponto, incompleto. Começas por fazer um desenho, não?
- Começo; mas rasgo-o logo, e ponho-me a trabalhar o mármore.
- Ah! - exclamou. - As pessoas que o podem fazer são raras! - Susana não ficou muito certa de que Blake a contasse entre elas. Depois, inclinou-se e beijou-a:
- Adeus, Susana.
Saíra... Mas chegado à porta, deteve-se e uma expressão maliciosa lhe transpareceu no rosto:
- Queria que viesses almoçar comigo, hoje -disse de .repente.
Havia muitos meses que não almoçavam juntos. Parecia assente, isto; cada um seguia o seu caminho próprio, até à noitinha. Ela hesitou, olhando-o. Tinha pensado em passar o dia com as suas estátuas, a fim de as estudar, para as levar à perfeição completa. Se acreditasse que Blake lho pedia por amor, não teria hesitado um só momento. Mas aqueles clarões de malícia, que lhe brilhavam nos olhos, inspiravam-lhe dúvidas. Expulsou-as logo, porém.
- com todo o gosto - respondeu tranquilamente. Onde? Em casa?
- Não. Na Femme d'Or; - acrescentou, rápido: Aborrece-te que Sônia vá também?
Olharam-se. Desta vez, a malícia transparecia nitidamente.
- Um pouco, sim.
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Blake tornou-se meigo:
- Oh! só por esta vez! Tens de vir. Será a última. Sônia volta para a Rússia na semana próxima, e no Inverno instala-se em Moscovo. - Voltou atrás, apertou com força o ombro da mulher e saiu.
Após a partida de Blake, as estátuas, tão mudas em face da sua vivacidade, retomaram a existência própria; Susana afastou da ideia Blake e Sônia, e consagrou-se àquelas, inteiramente. Este esforço do espírito era-lhe agora possível Muito tempo antes, já quando da morte de Marcos, começara a tentar fazê-lo; mas, agora, a sua força de vontade atingia quase a perfeição. Por seu lado, Blake punha-se ao trabalho, caprichosamente, segundo a disposição em que se encontrava. Às vezes, gemia, desesperado:
- Meu Deus! Nunca mais poderei fazer coisa alguma! Era-lhe impossível trabalhar, quando a vontade não o
acicatava.
A ela, porém, bastava-lhe querer para se sentir perfeitamente disposta para o trabalho, do mesmo modo que, quando se carrega num botão, a alavanca se desloca, transmitindo força à grande .máquina geradora. O primeiro gesto depende da vontade. Realizado esse primeiro esforço, Susana sentia logo todo o seu ser posto em movimento, arrastado para a realização, cega para tudo o mais. Esta inconsciência não provinha dum adormecimento, mas, pelo contrário, dum desenvolvimento de energia... Susana polia, limava, mas levemente, porque a essência da sua arte consistia na rudeza e não na suavidade. As suas estátuas surgiam, violentas, da massa rochosa, ou pareciam erguer-se com esforço das altas colunas em mármore bruto. Susana esqueceu a entrevista combinada, e, quando se lembrou, era demasiadamente tarde.
"Não tenho necessidade de tornar a ver Sônia", foi o seu primeiro pensamento. E deitou um olhar de gratidão às suas figuras, que tão completamente a tinham absorvido. Continuou a trabalhar, feliz, embora com alguns remorsos. Blake teria ficado contrariado? Ora! Não daria nenhuma importância ao facto, sem dúvida... Talvez tivesse desejado um pouco de melodrama entre as duas mulheres. Ele era um tanto melodramático. Podia chorar como uma criança, de fadiga, ou quando um trabalho projectado não resultasse como esperava. Susana, que chorava muito raramente, inquietara-se ao princípio, porque quase nunca vira
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um homem desfazer-se em lágrimas. Mas depressa notou que Blake não sofria coisa alguma, ao fazê-lo; por isso o deixava chorar, sem protestar, e até, por fim, sem a menor pena. - "Não dás importância alguma a isto, Susana!" dissera-lhe Blake uma vez. - "As lágrimas aliviam-te", respondera; e logo ele parara de chorar, para lhe dizer: "Como tu és dura!" - ao que ela contestara, com firmeza:
- "Não; é que não quero ver-me feita em pedaços". Procurava estudar os meios de se preservar disso, sabendo que estas calamidades passavam por cima de Blake como uma chuva de Verão por sobre os campos. Mas já ela não era assim; e por isso tomava as suas precauções, a fim de não se ver destruída... Pensava: "Se se mostrar zangado quando eu chegar, à noite, dir-lhe-ei a simples verdade: que estava a trabalhar e me passou da ideia. Se se encolerizar, deixarei passar a tempestade".
Bruscamente, a porta abriu-se. Susana voltou-se e viu Sônia no limiar, com o seu vestido de pesada seda branca. Mantinha-se de pé, sorridente, com os olhos verdes, sombreados pelo grande chapéu branco.
- Posso entrar? - perguntou.
- Pode, sim. Estava exactamente a pensar que não tinha desculpa alguma a apresentar por não ter ido almoçar esta manhã, a não ser a verdade: esqueci-me do convite de Blake:
Sônia avançou lentamente:
- Que se esqueceu! Deixe-me ver-lhe os olhos! Ah, é sincera! Vejo que se esqueceu, realmente. Susana, não há, com certeza, outra mulher no mundo capaz de se esquecer de que eu almoçava com o marido.
Susana olhava para Sônia, procurando penetrá-la. Não podia deitar toda a culpa sobre Blake. Seria preciso estar enfeitiçado de corpo e alma, para não ver a boca risonha de Sônia, o largo rosto tão interessante, a graça ao mesmo tempo ondulante e rígida do seu corpo tão firme. E Blake não era homem, talvez, para se deixar prender completamente.
- Tinha pena de partir sem a ver, Susana - dizia a voz de timbre de oiro. - Sei que pensou muitas coisas a meu respeito e de Blake. Queria vir ter consigo, mas não o fiz.
Que haveria por detrás dos lindos olhos desta mulher? Susana em vão esquadrinhava aquele olhar. Sônia dirigiu-se para o grupo que a representava e observou-o
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longamente. Estendeu a mão forte e flexível, e acariciou o rosto de mármore.
Fez três Sónias. Mas não basta. Ha muitas mais. Há
uma que dizia: "Vai contar tudo a Susana"; outra: "Blake
e tu proporcionai-vos uma coisa necessária"; e outra ainda,
quem Blake afirmava: "com isto, nada roubo a Susana.
Ela compreende as coisas. Portanto..."
Ergueu os ombros, sorriu e estendeu as mãos para as três imagens.
Amam-se ainda, a senhora e Blake?
Que diz ele a isso?
Nem sim, nem não.
Pois eu digo: sim, e não. - Sônia olhou para Susana
bem de frente e pôs-se a rir com o seu riso eslavo, tão sonoro. - Mas não deve incomodar-se com isso. Acabou-se o que fizemos, Blake e eu. Volto para minha casa, por um. ou dois anos. Quando voltar, serei já uma criatura diferente. Nunca sou a mesma. Mudo de ano para ano. Olhe, prometo-lhe: tingirei até os cabelos doutra cor.
- Mas não poderá mudar os olhos - disse Susana. Havia em Sônia qualquer coisa em que se parecia com
Blake. Qualquer coisa que, sem nada ter de infantil, era um pouco selvagem no fundo, do domínio das fadas e duendes. Era o temperamento, muito diferente, em ambos, do de Susana. Esta sentia-se incapaz de mostrar, em grandes explosões, cólera, alegria ou mesmo perversidade. Tirava as suas estátuas do mais profundo da sua natureza, estáveis, semelhantes a rochedos. Tudo, na vida, contribuíra para formar estas bases do seu ser, de onde brotava, como de fonte inesgotável, a energia criadora. Não necessitava nem de vinho para a estimular, nem de amor para a alimentar. Não reclamava mais que a satisfação das necessidades quotidianas, a que não saberia furtar-se: alimentar-se e dormir, e algumas relações, muito simples, com os seus semelhantes, bem como de tempo para meditar e trabalhar. Era disto que precisava, e era-lhe indiferente conhecer as relações entre Blake e Sônia. Esta disse-lhe, enganadora:
- Não faça caso; siga o seu caminho, Susana.
- Oh, sem dúvida, é o que farei; é mesmo o que faço já! Os olhos de Sônia brilhavam, trocistas:
- Ah, Susana! - exclamou. - Adeus, querida Susana! Lembre-se de que esta Sônia não voltará mais. - E beijou Susana nas duas faces, com os lábios vermelhos, quentes
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e macios. - Não se parece com qualquer outra pessoa. Sentir-se-á sempre um pouco isolada, por isso mesmo; mas não estará só... Não lhe fiz mal nenhum; não a lamento, pois.
E, da porta, agitou a mão, em despedida.
Tendo partido, Susana continuava ainda a ouvir ressoar as palavras antigas, que a tinham seguido através de toda a sua vida: "Não se parece com qualquer outra pessoa". As paredes reenviavam-lhe o eco. E não lutava já para contradizê-las. Essas palavras já não a assustavam. Eram verdadeiras. Sentou-se um momento, descansou, pôs o chapéu e saiu para a rua.
- bom dia, senhora Gaylord - gritaram-lhe as crianças. Era o primeiro dia de grande calor, tinham aberto a canalização e uns doze de corpitos magros lavavam-se na água, que brotava impetuosamente. O alentado Bill, agente de polícia, mantinha-se à parte. Tocou no capacete, saudando, e gracejou:
- Ao menos, lavar-se-ão uma vez.
- Gostaria de estar no lugar deles - respondeu Susana, sorrindo. Todos eram seus amigos. Tinha muitos amigos assim, sem que vida alguma se misturasse com a sua.
Entrou em casa e, desde o vestíbulo, chamou por Blake. Não recebeu, porém, qualquer resposta.
Nem teve necessidade, à noite, de lhe dizer que se esquecera de ir ter com ele, pois Blake nem nisso falou. Esteve calado toda a noite, leu um pouco, depois ficou inactivo. Vendo-o agitado, Susana perguntou meigamente:
- Sônia far-te-á muita falta, Blake? Ele olhou-a de lado:
- A mim?! Nem nela pensava!
- Por que é essa tristeza, então?
- Não sei. Senti-me melancólico todo o dia. Parece-me que nunca mais poderei trabalhar.
- Ora! Já tens tido a mesma impressão e depois reanimas-te.
- Nunca me senti assim tão... vazio!
Deixou-se cair sobre o divã e fechou os olhos. As feições afiavam-se-lhe, distendidas pela tristeza; Susana, impressionada pela sua beleza, estudava-as sem se sensibilizar. Não poderiam ser reproduzidas no mármore... talvez no marfim... O marido abriu os olhos e ordenou-lhe:
- Vem cá.
Ela obedeceu e Blake poisou-lhe a cabeça sobre os
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joelhos envolvendo-a com os braços. Susana passou também os seus em volta dele, que se pôs a chorar baixinho. Vá, meu querido; então?-disse, mas sem sentir o menor desgosto. Ela ignorava em que consistia aquela aflição, e ele também, talvez pois doutro modo não lho teria ocultado. Chorava, arrastado por qualquer torrente profunda de melancolia sem causa, e ela conservava-o apertado, esperando pacientemente que voltasse a si, ou, quem sabe?, a ela. Não lhe era necessário já, mas continuava a ser-lhe querido. Se voltasse para ela, outro amor, que não se baseasse na necessidade, poderia nascer entre
eles.
Voltaria para ela, certamente. Entretanto, continuou regularmente, todo o Verão, a preparar a sua exposição e a fazer planos para a abertura, nos princípios do Outono.
- Novembro é o melhor mês para os estreantes tinha-lhe dito José Hart. Fora um dia visitá-lo, a conselho de David Barnes, à velha casa de pedras escuras onde vivia.
- Falei de si ao velhote - dissera-lhe Barnes. - Quer vê-la. Fará bem-indo lá, pois não são muitas as vezes que ele manifesta desejos deste género.
Mas quando entrou no salão de José Hart, este fingiu não se recordar de coisa alguma.
- Nunca ouvi falar em si - disse num tom breve, ao recebê-la. Os seus salões eram um museu de quadros e de estátuas.
Ao princípio, Susana não distinguiu nitidamente coisa alguma.
Em velhas molduras "doiradas, ricos e tristes rostos flamengos a olhavam, ladeando pálidas paisagens americanas, áridas e novas. De súbito, ao fundo da sala, notou os cavalos selvagens de Miguel. Era uma grande tela horizontal, bem observada. Nove cavalos dum branco de prata fugiam, ao luar, através do deserto sombreado pela noite; guiava-os um cavalo preto, mais rápido.
- Ignoro ainda o seu género de trabalho - dizia José Hart.
- Bem sei; mas há-de conhecê-lo.
- Decerto que não, se fabrica essas coisas saltitantes, modernas. Nunca as vejo.
Por toda a parte, os negociantes e os directores de galerias de arte haviam dito a Susana: "Se a senhora conseguisse que José Hart..."
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- Está a examinar aqueles cavalos?
- Estou, sim.
- É um Miguel Barry. Não há pintor novo mais desigual do que ele. Tão depressa faz coisas como esta: pureza de colorido, de forma, beleza absoluta, como pinta uma súcia de fantasias, mulheres nuas estendidas pelos rochedos: é o vício.
Susana não respondeu. Continuava a olhar os cavalos que galopavam, bravos e livres, através do deserto.
- Que material emprega? Não a lama, espero-o bem!
- O mármore, e fiz também um bronze, há tempos.
- Onde está?
- No hospital construído em memória de Halfred.
- Foi a senhora que modelou isso?
- Foi a minha primeira obra.
Pegou num copo de vinho, que poisara ao entrar Susana, e bebeu em silêncio.
- É pena que seja mulher - acabou por dizer.
- Julgo que isso não tem importância.
- Há-de ver o contrário. Só conseguirá alcançar os primeiros lugares, se for, realmente, superior a todos.
- Não é com esse fim que trabalho.
Hart não respondeu. Mas depois de ter enchido outro copo, de uma garrafa vermelha e elegante, remexeu nos bolsos, retirou deles um cartão e escreveu algumas palavras.
- Leve isto a um senhor chamado Gelwicks, a essa direcção - ordenou, com autoridade - e diga-lhe que sou eu que a mando.
- Obrigada-respondeu .Susana. Ele já lhe tinha virado as costas.
Susana ficou só por uns momentos, a observar ainda o quadro de Miguel; depois retirou-se.
"Tenho de dizer a Miguel que o vi", pensou. "É preciso que lhe diga até que ponto o achei perfeito".
Já esquecera José Hart.
...Era uma pequena galeria, muito simples. Susana fizera transportar para ali todas as suas obras, e, à última hora, até mesmo a Mulher Ajoelhada, vinda de Paris.
Foram ela e Blake que a desencaixotaram. "A Recusada!" exclamara Blake, ao arrancar-lhe uns bocados da serapilheira. Susana observou-a com um olhar crítico.
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- É muito natural que não a tenham aceitado. Vejo muito bem porquê Não está lá muito boa. Creio que nunca fiz coisa alguma de bom, em Paris. Na verdade, não sabia o que queria.
- Pomo-lo lá fora, então? - perguntou Blake.
- Não, deixemo-la estar. Afinal, sempre fui eu que a esculpi. , .
Ela e Blake tornavam a encontrar agora uma espécie de camaradagem.
E ele nunca tentou ultrapassar-lhe os limites. Susana sentia muitas vezes dificuldades em falar-lhe; esforçava-se então por se pôr a tagarelar, porque o mutismo lhes era insuportável. No entanto, aspirava a um silêncio completo e tranquilo. Mas, quando se calavam, o silêncio enervante, que surgia, não tinha coisa nenhuma de completo e de tranquilo.
- Creio que vou mandar vir do campo uma antiga estátua de Joana - disse Susana, de repente. - Parece-me que estava boa.
- Ah, a velha bruxa. - disse Blake, amável. Examinava então a negra. - Puxem-na dois centímetros mais para a direita - ordenou aos moços, que arquejavam, suados.
- Não, Blake - interveio Susana - isso dá-lhe um ar muito teatral. A luz deve cair, clara e a direito, sobre as minhas estátuas; nunca oblíqua.
- Os mármores são teus, minha querida.
Quando tudo ficou arranjado, Blake e ela circularam lentamente pela galeria. -
- Não deves aborrecer-te se os críticos te forem hostis.
- Já se vê que não - exclamou, surpresa.
Nunca lhe viera a ideia de preocupar-se com as apreciações dos críticos. Terminado o seu trabalho, louvores ou críticas já não podiam afectá-la.
A estátua de Joana chegou no último dia; Susana estava só, então, para a desencaixotar. Encontrou-lhe qualquer coisa de novo e de inacabado, mas, apesar disso, era bem Joana, que, muito impressionada, levantava os olhos do seu trabalho, enxugando as mãos ao avental. Fê-lo colocar perto da porta, um pouco à parte, num canto tranquilo onde Joana se sentiria bem.
Depois de ter pago ao último homem, examinou, sòzinha, cada um dos trabalhos, desde Joana até à sua última
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obra, que representava um mineiro galês vindo do oeste da Virgínia.
Descobrira-o por acaso. Viera a Nova Iorque como delegado a uma reunião do partido operário. Ela fora até lá, como ia a muita outra parte, sem perguntar a si mesma o que ia lá buscar, a não ser impressões sobre os indivíduos, e o homem fizera um discurso. Após a reunião, pedira-lhe que lhe servisse de modelo. E ele viera instalar-se e conversar, no estúdio, de ombros curvados, com as mãos enormes poisadas sobre os joelhos vergados.
- Não posso endireitar-me, menina. Andei por muito tempo dobrado debaixo do chão.
Era esta, até certo ponto, a obra-prima de Susana. Sentira o homem sumir-se debaixo da terra. Os olhos pareciam olhos de cego a quem tivessem roubado a luz, e assim os fez. As mãos eram grandes garras como as duma toupeira, fortes e desproporcionadas para o corpo arqueado, e assim as fez. com efeito, cada uma das suas obras era melhor que a anterior. Marchara sempre a direito, para a frente, e não era mais que o princípio, aquilo.
No dia que precedeu a abertura, levou lá João e Márcia. Tinham vindo a casa numas férias de Outono. Susana nada dizia, constrangida em frente dos filhos, ao mostrar-lhes as obras realizadas. Caminhava no meio deles, sensível a cada gesto, a cada palavra, desejando ardentemente a sua aprovação, enquanto explicava:
- Chamei a esta a Preta Americana. E aquela é a América do Norte. Aqui, é uma italiana, a quem chamei a Vénus da América; e além...
Sentia bem a atenção apaixonada de João. Estava quase tão alto como ela e trazia então o primeiro fato de calças compridas. Calado, deixava-se ficar para trás, absorto, diante de cada estátua: ouvia, olhava, de mãos metidas nos bolsos. "Se alguma vez se pareceu com Marcos pensou - tal semelhança desapareceu com a idade".
- Vejo exactamente o que quer dizer - afirmou a certa altura, sustento a respiração. - São admiráveis, mãe!
O coração desta rejubilou, dentro do peito. Márcia perguntou, impaciente:
- Por que é que são todas tão grandes e tão feias, mãe? Até Sônia está feia!
- Oh, cala-te! - exclamou João, defendendo Susana. Não compreendes nada disto.
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É que não gosto desta gente forte e pesada. - E rodopiou numa volta de dança sobre a ponta do pé com os braços erguidos e os dedos pendentes. Em meio das estátuas sólidas como pilares, pareceu-se assim com uma borboleta delicada, batendo as asas, instável, uma coisa que se pudesse apanhar e esmagar.
Todo o cérebro de Márcia lhe fugiu para os pés murmurou João.
Bem sei. - E Márcia cantarolou, a seu modo: -
"Penso e sinto com as minhas pernas e, quando danço, sou feliz!"
Estava encantada porque a olhavam, a ela, e não às estátuas de Susana. Avançou em direcção à porta, fazendo sempre piruetas, e disse, impertinente:
- Que necessidade tinha desta velha Joana, tão feia? Está medonha. Joana é tão feia!
- Está admirável, e tu bem o sabes!-exclamou João. Ao entrarem, depois, para o carro, disse timidamente à mãe: - Estou a fazer um retrato de Joana, também, de madeira. Às vezes pergunto a mim mesmo por que é que gosto tanto de trabalhar a madeira. Penso que será porque o avô e eu a trabalhávamos juntos. Desde que vim do colégio, Joana tem-me servido de modelo todos os dias.
- Mostras-me isso? - perguntou Susana.
- Eu já vi. É feio, porque Joana é feia - disse Márcia. João lançou-lhe um olhar desdenhoso:
- Sabe, mãe, como é a cara de Joana. Eu não acho que seja feia. "?
- Mas Sônia é bonita - interrompeu Márcia, com malícia. - Sônia e Maria são encantadoras e Blake é belo. Oh! Eu hei-de ser bonita, mãe, quando for grande. Se não for bonita, morro.
- Creio que o hás-de ser - afirmou Susana.
- Eu não - asseverou João, implacável.-A tua cara faz-me mal; não pensas senão em ti, Márcia.
- João!-repreendeu a mãe. E voltou-se para consolar Márcia. Mas esta conservava-se indiferente; não precisava de consolações, fosse de quem fosse.
- Blake gosta de mim, e não faço caso da opinião de João - observou, alegre. Chegavam a casa. - Não quero ver a velha Joana retratada em madeira - disse ainda; e afastou-se, saltitando.
No quarto de João, Susana disse a este:
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- Gostaria de que não falasses com esses modos a Márcia. - E ficou assombrada com a ponderação e a gravidade da expressão dele, ao responder-lhe:
- É que... não conseguimos ofendê-la. É preciso dar-lhe forte, senão põe-nos doidos. E, quando o consegue, mostra-se encantada.
O pequeno tirou do armário um embrulho e abriu-o. Era um bocado de madeira, de cerca de um pé de altura.
- É uma raíz que encontrei no campo. Parece-se com Joana. Olhe, só tive de esboçar o rosto. Já se sabe, ainda não está pronto.
Susana esqueceu Márcia completamente. Aquilo parecia-se realmente com Joana. João arrancara a casca e um pouco da madeira à superfície; e a silhueta curvada de Joana emergia da raíz contorcida.
- Está bastante bem - disse Susana. Sentia-se orgulhosa do filho. Ela é que o fizera, tendo-lhe dado um pouco do seu próprio ser. E disse-lhe:
- Precisarias de algumas lições? Não sei bem... João meneou a cabeça:
- Não, não quero, mãe. - Deteve-se, e depois continuou: - Nunca esculpirei para ganhar a minha vida. Assim, está bem. Prefiro dedicar-me aos estudos.
E enrolou cuidadosamente a estatueta de madeira num lenço velho limpo.
- Não poderia sujeitar-me a ganhar dinheiro por este meio, mesmo que tivesse habilidade para isso. - Depois, voltando as costas à mãe, repôs no seu lugar a estatueta começada, enquanto ia dizendo, com um ar indiferente, de meio-homem: - Sabe uma coisa? Márcia olha a vida à maneira dos gatos. Não pensa senão nela; isto preocupa-me.
- É muito novinha ainda - disse Susana, sorrindo. João sentia-se já destinado a arcar com responsabilidades. Realmente, ela encontrava nele qualquer coisa de Marcos, nos ombros e na nuca; logo que se voltou, porém, a semelhança desapareceu. No rosto, nada tinha do pai; a semelhança era só no corpo, dissimulada, espalhada de qualquer modo.
- Já não muda - disse João ainda. - É assim mesmo. Acho que se assemelha a uma terra cota... nem mármore, nem madeira... nada de duradoiro.
Susana devorava-o com os olhos, gozava com a sua presença. Tanta sensatez assombrava-a.
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Deveríamos trabalhar mais, juntos, tu e eu-disse
ela a medo.
Ele corou muito; a pele branca tornou-se-lhe escarlate. Bem gostaria eu disso; mas está sempre tão atarefada
- Não; nunca estou muito ocupada. Encontrei sempre maneira de ter todo o tempo que queria.
Estes momentos eram para ela uma doçura quase insuportável. Acabou com eles rapidamente:
- Trataremos disso, terminada que seja a minha exposição.
Susana dissera tantas vezes: "Uma vez terminada a minha exposição", que acabara por ter o pressentimento duma rotura, duma mudança na sua vida. Sentia isto duma maneira tão forte, tão estranha, que no dia da abertura se dirigiu muito cedo para o estúdio, fazendo planos para a sua próxima obra. Tomara notas, já, para uma série sobre a América, de que os sete trabalhos, agora expostos, não eram mais que a-primeira parte. Tudo isto lhe parecia tão frágil ainda! Nenhuma das suas obras futuras se lhe impunha. Para mais, já não tinha nenhum bloco de mármore, a si mesma perguntando se desejaria recebê-los ainda de Fane Hill. A seu pedido, o pai de Blake viera visitar a exposição, na véspera, ao fim da tarde, quando ela ali se encontrava só.
- vou mostrar-lhe os seus mármores - dissera-lhe, alegremente, ao abrir a porta.
Tudo estava pronto, terminadas já as últimas limpezas.
Ele conservava na mão o chapéu de coco, preto, e as luvas cinzentas. Juntos, Susana e ele tinham examinado cada uma das estátuas.
Em face do silêncio crescente do sogro, aquela falava cada vez mais:
- Lembra-se deste? É um dos blocos de Paros. Descobri as personagens num restaurante perto, onde ambos trabalham. Não estão soberbas? O marido serve a comida na atitude dum deus que alimentasse a humanidade.
- Ah, sim?! -E o senhor Kinnaird parecia ter as suas dúvidas.
- E aqui está o mármore preto da Bélgica - indicou Susana, poisando a mão sobre o joelho negro.
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Depois de ter observado tudo, ele sentou-se e passeou o olhar em volta.
- Não posso exprimir o que sinto - disse, com aspecto perturbado. E passou a mão livre pela testa. -Parecem-me tão formidáveis! Talvez por a sala ser muito pequena. Cada uma destas estátuas reclama espaço; assim, parecem esmagar-nos.
Susana esperou ainda um momento antes de perguntar:
- Não lamentará o ter-me dado os mármores?...
- Não, não - respondeu o velho, vivamente -; o que não esperava era figuras tão grandes, da parte duma... duma... duma dama. Precisamos de nos habituar, é o que é. Imaginava uma coisa mais leve... qualquer coisa de clássico.
- Mas são bonitas, eu sei. Ele desculpou-se logo:
- São muito vigorosas, minha filha. Verdadeiramente masculinas, pela técnica.
- Não creio que os homens e as mulheres difiram assim tanto, nas suas criações.
- Estou- morto por ver as opiniões dos críticos observara ainda o senhor Kinnaird, sem responder directamente.
Agora, no estúdio, Susana pensava nos olhos assustados do sogro. "Pobre velho! As minhas estátuas não lhe agradam lá muito. Não lhe pedirei outros mármores".
Mas aquele dia fora curioso e variado. Miguel entrara um instante e, depois de ter olhado em volta, assobiando baixinho, exclamara:
- Susana, são gigantescas, esplêndidas! Deveriam pô-las no porto, a fim de mostrar tudo o que entrou na formação da América! - E depois voltara para o lado uns olhos desvairados, enquanto articulava, com lábios que tremiam:
- Susana! Maria casou-se!
- Oh, Miguel! -e Susana caíra na cadeira, abatida por este acontecimento.
Depois dum gesto afirmativo de cabeça, ele acrescentou: -- Recusou-se a casar comigo, e foi buscar esse velhote
do Rhodes, bom sujeito, sim, mas mais nada!
A certa altura, teve de ceder. Sentou-se ao lado de
Susana, num banco, e poisou a cabeça no ombro desta,
que lhe rodeou o tronco com os braços.
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Oh, meu pobre rapaz! - murmurava, profundamente
penalizada.
Sou um imbecil! - e falava muito baixo. - É estranho isto. Não dormi em toda a noite. Maria chamou-me ao telefone, ontem, ao chegar. Rhodes tinha-a seguido para Paris. Mas nunca pensei que ela fosse capaz de o fazer.
Susana sentia-o tremer. O seu choro era medonho, parecia demoli-lo.
- Se eu fosse o Miguel, tentaria...
- Não posso esquecer Maria; não me diga isso.
- Não, mas aceite o facto ao contrário, faça-o entrar na sua vida. Tudo o que compõe essa vida lhe pertence. Não esquecerá nunca, não deve esquecer. O conjunto é-lhe necessário: o amor e a perda do amor; tudo!
E cingia Miguel contra si, esperando que se acalmasse. As palavras que acabava de dirigir-lhe, repetia-as para si mesma, porque a sua vida era feita não só com o que Blake lhe dava, mas também com o que lhe recusava. Este todo, reunindo o que tinha e o que lhe faltava, era-lhe indispensável.
- vou ao Norte, ainda não sei onde, para pintar disse Miguel, por fim desviando-se e voltando as costas um pouco.
Susana levantou-se, pegou num pano e sacudiu o pé, de mármore, de Sônia.
- Sempre tive a impressão de que não descobriu ainda verdadeiramente o que quer pintar. - Procurava as palavras próprias, consoladoras. Mas não as encontrava, e prosseguiu como pôde:
- Há uma espécie de matéria definitiva, que é a sua; quando a encontrar, começará a pintar de dentro para fora. Nenhum dos retratos que fez de Maria foi pintado do interior, do que ela é no fundo ou do que você é. Nada dá resultado se não houvermos compreendido o que trazemos dentro de nós.
Ele ouvia, sem responder, e ela prosseguiu, obstinada:
- Sinto-me satisfeita por Maria ter casado com outro. Casado com ela, você ficaria eternamente no mesmo ponto.
- Isso era-me indiferente - respondeu Miguel, em tom surdo. - A quem é que interessava que eu pintasse quadros?
- A ninguém, de facto. Alguns quadros, umas estátuas, um pouco mais de música, um pouco menos disto
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ou daquilo, que importância tem isso? Mas a felicidade duma vida também conta, e só a obtemos sabendo o que queremos fazer e se somos capazes de o fazer.
Susana calou-se de novo, procurando a forma de se explicar melhor:
- Há pessoas que são como poças de água, outras que parecem rios, correndo para o mar... Você é uma destas... precisa de seguir o seu caminho. O Miguel não poderia estar metido numa poça. Aprisionado, furioso, acabaria por transbordar, feroz e miserável. Deve conservar limpo o seu caminho.
Susana falava também para si mesma, enquanto polia o mármore ou sacudia uns grãozinhos de poeira. Procurava o que diria mais a Miguel, uma coisa real, reconfortante. De repente, lembrou-se e exclamou, cheia de alegria:
- Miguel, vi os seus cavalos!
- Os meus cavalos?! - e a si mesmo perguntava a que se referiria.
- Sim, os seus cavalos selvagens, o quadro que José Hart comprou!
- E como o achou, Susana?
- Perfeito... Simplesmente perfeito. Ao vê-los, senti... senti...
- O quê?
Cheio de ardor, Miguel tinha os olhos fixos nela. Era preciso explicar-lhe bem a sua impressão, impedi-lo de pensar em Maria, consolá-lo.
- ...Senti que você estava, enfim, liberto. Aquele deserto, o céu sem fim, esse frio luar, tão puro, sobre a água, aqueles corpos maravilhosos, que pareciam voar, que nunca foram domados, que nunca o seriam, por ninguém...
Olharam-se ambos nos olhos; dum para o outro passou uma compreensão extasiada, sem qualquer relação com eles mesmos.
- Compreendo - disse Miguel.
Aproximou-se do sítio onde ela estava ajoelhada, passou-lhe a mão pela face e saiu sem dizer palavra.
Após ele se ter afastado, Susana ficou imóvel por um momento; depois, foi ao telefone e pediu o número de Maria. Responderam-lhe que esta se tinha mudado e indicaram-lhe o novo número. Susana fez nova ligação e chegou-lhe ao ouvido uma voz de homem, agradável, sonora, um pouco arrastada.
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Desejava falar com Maria Gaylord, por favor -
e ouviu chamar: "Minha querida, querem falar-te". Depois, foi a voz arrogante, muito nítida, de Maria: Quem fala?
- É Susana.
O som da voz de Maria não mudou:
Estava para te chamar, Susana, a fim de anunciar...
- O Miguel já me disse.
- Sim? Nós só voltámos ontem. Decidi-me depressa, como vês.
E o timbre claro era sempre o mesmo.
- Participaste à mãe e ao pai?
- Não. vou escrever-lhes hoje. Susana ouviu de novo o rumor amável:
- Oh, Susana! Estou encantado. Maria não me tinha anunciado que ia expor. Acabo de ler o seu nome, e foi então que lhe perguntei se era da família..
"Deve ser o marido", pensou Susana; escutava e respondia, por uma palavra ou duas, àquela voz benévola, um pouco baça, um pouco ordinária. Ele não era culpado. Maria nunca lhe falaria da existência de Miguel.
Susana respondeu:
- Não, não tenho que fazer; amanhã, com certeza, terei muito mais. Pelo menos, assim o espero... Venham, sim. Agora estou só.
Depois, foi Maria quem falou, de novo:
- Benny quer ir à tua exposição; vamos imediatamente, logo que o automóvel Chegue.
- Não saio.
Esperando-os, Susana pensava na irmã; revia-a, pequena ainda, ao piano: Maria obstinava-se em tocar mal um fragmento de melodia, e tomava um ar aborrecido quando a advertiam de que se enganava.
- Apresento-te Benny - disse Maria.
Conservava sempre o rosto impassível, a voz compassada, e parecia muito elegante no seu traje novo, de saia e casaco, de veludo castanho-escuro. Susana voltou-se e distinguiu dois olhos azuis, cheios de bondade, muito pequenos no rosto redondo, vermelho sob uns raros cabelos brancos cuidadosamente penteados, através dos quais o crânio parecia escarlate. Sentiu os dedos apertados com efusão pela mão dele, gorda e húmida.
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- Nem sei como exprimir-lhe toda a minha satisfação!
- dizia a voz sonora.
O senhor Rhodes puxou do lenço de seda, enxugou o rosto e pôs-se a rir.
- Está bastante frio lá fora, mas eu transpiro sempre um pouco quando me impressiono; e encontrar-me consigo comoveu-me certamente, não é assim? - Voltou-se para Maria, que esboçou um sorriso, depois do que lançou um olhar às estátuas. - É isso... Meu"Deus! Maria, não me tinhas contado que tua irmã era uma verdadeira escultora!
- Não tive tempo para te dar todos os pormenores acerca da minha família.
- Realmente... - disse o senhor Rhodes, com jovialidade. - Mas vou começar a visitá-la imediatamente. Estou ansioso por conhecê-la, Susana. Principalmente os seus filhos. Adoro as crianças. Já fui casado, em tempos. Minha mulher morreu-me de febre tifóide, enquanto viajávamos por esse mundo. Nunca pensei em tornar a casar, até ao dia em que vi Maria no estabelecimento. - E de novo se pôs a rir.
Susana conheceu-o logo intimamente. Era fácil: um homem que começava a envelhecer, bom, amável, de uma ingenuidade natural. Susana lançou um olhar de censura a Maria, que a encarou fixamente, com arrogância. A criança aborrecida, teimosa, de outrora, subsistia nela ainda.
- Não é verdade que Maria é encantadora? - perguntou o senhor Rhodes.
Contemplou-a com amor e tomou-lhe a mão, dando-lhe palmadinhas. Ela tirara as luvas, e Susana viu-lhe o anel novo e reluzente, com uma roseta de brilhantes e esmeraldas.
-- O casamento faz-lhe bem - acrescentou o senhor Rhodes.
- Vendo-a, percebo que realmente a trata com a maior bondade - disse Susana em tom enérgico. Agradava-lhe esse homem pueril, amigável. Sentia desejos de recomendar a Maria que fosse bondosa com ele, porque não está bem mostrarmo-nos cruéis para com os velhos e os inocentes.
- Nunca poderei fazer bastante por ela, em minha opinião. - E o senhor Rhodes tomou um ar grave; brincava com a grossa corrente, de oiro, que se estendia um pouco sobre o colete arredondado. - Em todo o caso, um homem nunca é bom demais para uma mulher, e quando
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uma menina encantadora, como Maria, se confia ao pobre homem já velho que eu sou... - Nisto, deteve-se; as lágrimas amontoavam-se-lhe nos olhos azuis, muito límpidos.
Enfim, nunca farei o bastante. Que pode ela achar em
mim? Pouca coisa, decerto. - Hesitou ainda, depois acrescentou timidamente:-Devo confessar-lhe que me sinto sempre muito humilde, quando me examino. Ainda esta manhã, ao barbear-me, olhando-me no espelho, disse cá para comigo: "Que é que te faz crer que ela te ama, pobre velho gaiteiro?" E tive de raciocinar: Se casou comigo, é porque teve uma razão para amar-me e com certeza a extraiu da sua deliciosa natureza. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo, à vista de certos homens do meu conhecimento, como é que as respectivas mulheres, doces criaturas, puderam casar com eles. A bondade feminina é a única explicação. Então, já não penso mais... aceito o que me dá. É uma mulher admirável.
Contemplou Maria com adoração, e esta sorria com o seu sorriso frio, insensível, na sua estranha e misteriosa beleza.
Avançou a mão ao de leve na do marido; e murmurou:
- Meu bom Benny... - Depois anunciou apressadamente a Susana: - Vamos comprar uma casa na cidade; que dizes? E outra em Palm Beach! Benny passa meses no Sol, durante o Inverno.
- Terá de pegar nas crianças e em seu marido, e ir ver-nos - disse Rodes.- Mas olha, meu tesoiro, basta de tagarelar e vamos examinar tudo isto...
Nas costas dele, Susana observou Maria com um olhar grave; mas os olhos desta conservaram-se sem expressão, brilhantes, impenetráveis. "Quereria pedir-te", pensava Susana, cheia de cólera em face da sombria dureza daqueles olhos, "que não faças sofrer este bom velho: Feri-lo-ias ainda mais cruelmente do que feriste Miguel, porque Rhodes não tem defesa. À falta de ternura, mostra-lhe ao menos, bondade". Seguramente, teria sede de afeição. Suplicaria Maria humildemente, reclamar-lhe-ia a sua ternura, sem compreender por que é que ela lha recusava, longe de suspeitar que não a tinha para dar. E quanto mais cruel se mostrasse, tanto mais Rhodes se lhe aferraria, porque estava velho e sem refúgio algum, ao passo que Miguel podia, ao menos, fugir-lhe. Susana sofria pensando
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nele; a sua imaginação via já, ao longe, os anos futuros. Aproximou-se dele e forneceu-lhe explicações completas, com calor, embora o sentisse incapaz de as compreender.
- Dir-lhe-ei a história de cada uma destas estátuas, se mo permitir. Gostaria de que conhecesse tudo isto! E enquanto ia explicando, pensava: "Serei boa para ele. Hei-de levar-lhe as crianças, que o estimarão. É necessário que tire, ao menos, qualquer coisa do seu casamento com Maria..."
Ele respondia gravemente às suas explicações:
- Sim, já vejo. Acho isto maravilhoso. Sinto-me orgulhoso de si, que demónio! - e voltando-se para a mulher:
- Não é verdade, Maria, que nos sentimos extremamente orgulhosos dela?
Maria sorriu, dizendo:
- Pois certamente que sim - e, inclinando a cabeça, ajustou as suas peles.
- Crês que isto vai bem? - perguntou Susana a Blake.
- Não vai mal.
Tinham passado a maior parte do dia na galeria, e era quase noite. Toda a tarde tinham desfilado por ali pequenos grupos, pessoas isoladas e mesmo alguns pares. Multidão, não houvera; mas Susana também não contava com isso. Estava satisfeita, porque as pessoas que entravam, ao acaso, para ver a obra duma nova artista desconhecida, ali se conservavam, a olhar e a falar baixinho. Ouvia fragmentos de conversa, críticas, louvores, comentários mexeriqueiros.
- Isto é muito grande - dizia um rapaz ao seu companheiro mais idoso.
- com efeito - respondera o outro -; talvez em demasia para uma realização. Quando o artista visa muito alto, arrisca-se a escapar-lhe o todo.
- Em minha opinião, aqui nada escapou.
- Talvez, sim - concedeu o mais velho; deteve-se e . depois acrescentou: - Dir-se-ia que a rudeza destes trabalhos implica mais do que existe na realidade.
- Eu penso que é arte, isto - retorquiu o rapaz em tom áspero.
Sem pestanejar, o companheiro tornou:
- Talvez... talvez... mas eu pertenço a uma escola que é menos ambiciosa e mais tenaz; o que empreende, acaba-o em absoluto.
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- com todas as minuciosidades - disse o rapaz com desprezo; e afastaram-se.
Alguns aventavam:
- Não se diria ser a obra duma mulher... Outros erguiam os ombros:
- Gostaria de saber por que é que os artistas fazem as pessoas assim tão feias. Olhem para esta preta. Que vulgaridade!
Sozinhos, em casa, depois de jantar, Blake e Susana olharam-se, sorrindo.
Dia estranho, feliz, cheio duma alegria que Susana não conseguia definir. Julgara tirar o maior proveito do seu trabalho enquanto o executava, e atingir o máximo da realização, uma vez aquele terminado. Mas enganara-se; notava agora, lembrando as horas passadas, que nada seria completo, mesmo a seus olhos, enquanto não tivesse apresentado a sua obra a outros homens, quer fosse compreendida, quer não.
Susana ouviu a voz de Blake:
- Nenhum crítico importante apareceu ainda. Se amanhã assim continuar, telefono a Lee e a Sibert, e ainda a mais um ou dois que conheço.
- Não lhes digas que sou tua mulher - observou Susana, sorrindo.
- Isso não te acarretaria mal algum - respondeu, com agrado; e os seus olhos risonhos fitàvam-na.
- Não, Blake; não!
- Está bem, mulher independente. - E ria, mas um pouco contrariado. Quando ela o notou, isso pareceu-lhe intolerável, depois dum tal dia. Foi-se-lhe juntar no divã e apoiou-se de encontro a ele, sem outra ideia que não fosse a de conservar essa noite numa atmosfera de alegria.
Mas ao contacto daquele corpo, ele estremeceu. Depois, estendeu os braços e levantou-a contra si. Susana sentiu-o muito próximo, como há muitos meses não lhe acontecia, e abandonou-se àquele abraço. O seu trabalho estava terminado por agora. Sentia uma impressão de acabamento no fundo do seu ser; estava contente. De repente, uma parte de si mesma, ainda insatisfeita, voltou-se para ele.
"E Sônia?" perguntava-se a si própria. Mas Sônia partira. Blake nada dissera a Susana; nunca lho diria. Talvez fosse preferível isso. Enquanto sentia o quente abraço ir-se estreitando mais, os pensamentos de Susana
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precipitavam-se: Blake e ela nunca poderiam unir-se inteiramente. Era impossível, sem dúvida. A camaradagem com que sonhava, no amor e no trabalho, não poderia existir para mulheres assim. Precisava de assenhorear-se do que tinha e do que não tinha, porque o que nos falta faz também parte da vida. Tinha-o mesmo dito a Miguel. É isto que forma um todo. Se Blake e ela só tinham aquele meio de união, mais valia aproveitá-lo do que renunciar para sempre!
Parecia a Susana que Sônia os observava de muito longe, com os pálidos olhos ardentes; mas expulsou esta visão. Precisava de manter um laço sólido entre ela e Blake. Este apoiou sobre os de Susana os seus lábios mudos, escaldantes e fortes, e ela correspondeu-lhe, uma vez mais, com uma nova paixão misturada de tristeza.
Mas, pela manhã, lembrou-se, olhou-se e viu o seu corpo muito branco; pensou no mármore endurecido pelo lento trabalho dos séculos, até estar apto a ser utilizado pela mão, e quando esta mão efémera lhe imprimiu a sua marca e acabou a sua obra, o mármore lá continua, trabalhado já, por muitos séculos ainda. As mãos de Susana não eram senão carne, o seu corpo não contava mais que para um instante, a fim de lhe permitir espalhar uma energia que ficava sendo para ela o ponto mais obscuro do seu ser. Tinha consciência apenas duma força activa; e, não sabia porquê, privada desta força, não saberia viver.
Pensando no seu corpo mortal, disse para consigo com tristeza: "Como é que, só por si, ele nos manteria unidos, Blake e eu?" Porque a verdade é que, nessa manhã, não sentia Blake mais perto do que na véspera. Apesar de tudo o que a noite trouxera, Blake não se lhe aproximara mais. E Susana continuava a sentir ternura por ele, mas longínqua.
Quando desceu, atrasada, para o almoço, lia ele o jornal, de sobrancelhas carregadas.
- Vejo, Susana, que o teu velho amigo se pronunciou
- disse-lhe, num tom breve, ao vê-la.
A mulher avançou e passou-lhe os braços em volta do pescoço; a sua ternura, um eco da noite finda, persistia ainda nela. Quanto a Blake, a noite estava já esquecida! Bateu sobre o jornal com os dedos e disse:
- Barnes... É muito gentil, já se vê... mas por outro lado...
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Ela deitou uma olhadela para aquelas colunas. Blake leu em voz alta: - "David Barnes faz o elogio da nova escultora". E acrescentou: - Vai um pouco longe, ele. Quero dizer: mais do que devia, para teu bem. Isto assemelha-se demasiado a louvores pessoais, como se tu tivesses necessidade de ser amparada.
Susana dirigiu-se para o seu lugar. O marido continuou
ainda:
- Vai estimular os críticos; no entanto, eu podia telefonar a um ou dois dos de maior influência.
- Como quiseres, Blake.
- Verei.
Susana não pediu o jornal. Lê-lo-ia quando estivesse só. Afastou isto da ideia e olhou para Blake, que se conservava calmo e um pouco protector. Aquela noite, evidentemente, não representava para ele mais que uma coisa absolutamente vulgar, que simplesmente se fizera esperar um pouco, e não uma renovação. Desviou a vista, com uma espécie de vergonha.
- Será interessante ver o que se seguirá a este artigo
- disse Blake. - Tudo que Barnes escreve desperta a atenção... Já se vê que Barnes nunca compreendeu o meu trabalho.
O tom era de indiferença, mas com um ressaibo de azedume; e quando Susana ergueu o olhar, surpreendida, leu-lhe na expressão que ele estava vexado.
- Blake! Oh, meu querido! Isso é porque Barnes sente que tenho necessidade duma ajuda, e tu não...
- É certo que não preciso de qualquer auxílio no meu trabalho; mas teria achado isso uma demonstração de amizade, da sua parte.
- Penso que ele imagina que, na minha qualidade de mulher, vou ter grandes dificuldades. - Adulava-o de novo, procurando restituir-lhe o bom-humor; mas, bruscamente, deteve-se. E acrescentou: - Não é que eu peça qualquer ajuda. Atenho-me apenas àquilo que realizei. A questão de sexo não devia entrar em linha de conta quando se trata dum trabalho. - Sorriu-se, e disse ainda: - O trabalho é uma espécie de céu onde não há machos nem fêmeas.
- Hás-de ver que esse céu não existe, Susana; digas o que disseres, o facto de ser homem ou mulher já nos classifica.
- Recuso submeter-me a tal noção - disse Susana.
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Ele continuou:
- Desconfia-se das mulheres. Os grandes artistas, os grandes músicos, mesmo os grandes cozinheiros são homens; e...
- Oh, Blake, peço-te... essa velha teoria, e, para mais, vinda de ti...
- É que também me é, talvez, difícil tomar as mulheres a sério-disse ele, sorrindo com certa fatuidade.
Susana estava tão excitada contra ele e de tal modo furiosa consigo mesma, por se ter zangado a propósito duma discussão tão estúpida e tão gasta, que se calou. Comeu depressa e pouco, e levantou-se logo, dizendo:
- Creio que vou até lá ver como as coisas se apresentam hoje.
- Em breve lá estarei também.
Era impossível acreditar que a noite precedente tivesse realmente existido. No entanto, era verdade, tudo, e tornaria a repetir-se, assim era preciso. Caminhou para Blake e passou-lhe a mão pela face lisa. Este não fez qualquer movimento para ela, que se inclinou, beijando-o, e saiu.
José Hart falava-lhe, encavalitando as lunetas no seu grande nariz romano:
- Um pequenino cambiante, e as suas estátuas passariam por modernas. Se os nossos jovens artistas, tão vaidosos, quisessem ver, saberiam que a diferença entre os extremos, clássicos e modernos, é muito pequena, embora também muito importante. Mas a senhora dá-me a impressão de ter tocado uma corda que lhe é própria. É muito original, isto; um pouco maciço em demasia, sim, mas já o afinará, à medida que se vá desenvolvendo.
O velho Kinnaird encontrava-se lá. Na véspera, entrara e saíra sem pronunciar uma palavra. Agora, sentado num banco, examinava de novo as estátuas com o seu olhar pálido. Ia-se juntando gente e, depois que José Hart a distinguira dirigindo-lhe a palavra, todos olhavam Susana com insistência. Foi então que notou Blake. Este avançou, conversou um pouco com o pai e foi para ao pé dela, que lhe sorriu, sem dizer palavra. José Hart fazia uma espécie de dissertação e muitas pessoas o rodeavam já, para o ouvir. Vendo isto, o velho continuou a pontificar ainda mais:
- A originalidade não basta. Todos a têm. Os espíritos
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desequilibrados, infantis, são também originais, mas nada transmitem, ao exprimirem-se. A pedra de toque de toda obra de arte está naquilo que transmite; se nada nos revela, a obra não tem valor. Blake tomou a palavra:
A inteligência da pessoa que recebe a comunicação
tem de entrar em linha de conta; pode suceder que não apreenda senão o que é simples e fácil de compreender. A arte não pode ser julgada, inteiramente e em absoluto, pela opinião do espectador.
- A simplicidade não está necessariamente ao alcance de todos - declarou José Hart. - Assim, por exemplo, eu diria que estas estátuas são simples sob a sua aparência maciça, e, contudo, não são fáceis de compreender.
Blake lançou-lhe um olhar furioso:
- Pois são bem pouco complicadas, pelo menos para um espírito refinado - disse, num tom exasperado.
Ali estava, então, o que Blake pensava! Na sua cólera, num acesso de ciúme, confessara a José Hart o que lhe escondera a ela. Porque não tinha dúvidas de que só o ciúme artístico pudera ,írritá-lo àquele ponto. Várias vezes o vira assim ciumento. Se o estava dela, nada poderia curar a ferida aberta. Susana sabia que também nele existia um elemento mais forte que o amor. Blake não se tornava verdadeiramente feroz senão quando se sentia ferido, pisado, nesse ponto sensível. E ela ferira-o aí, inconscientemente, porque a sua obra agradara a um velho, rico, caprichoso, de gostos estéticos, e que tinha muitíssima influência. Nunca Blake lho perdoaria.
Percorreu a galeria com um olhar desolado. A multidão aumentava à medida que o dia ia avançando. A influência da opinião de Barnes fazia-se sentir, e os visitantes demoravam-se, conversavam seriamente, agrupavam-se em volta de diferentes estátuas...
...Para quê, se Blake não lho perdoava? A mulher que fora a amante de Blake exclamou nesse instante: - "Para quê?..."
E Susana respondeu-lhe: - "Tu não és tudo, não és senão uma parte de mim. E depois, há o verdadeiro e o falso. Existe uma justiça que está acima de ti, em que é preciso pensar".
Afastou-se, despercebida, e veio sentar-se perto do velho Kinnaird. Recusava sentir-se ofendida com as palavras de
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Blake. Este tinha o direito de dizer o que pensava. Mas sabia que essas palavras lhe eram dirigidas, e não a José Hart. Agora, estavam pronunciadas; não podia retirá-las. A discussão prosseguia, entretanto. Blake estava muito direito, de costas para ela; José Hart gesticulava. A tranquila voz do senhor Kinnaird soou aos ouvidos de Susana:
- Continuo sempre a vir admirar as suas estátuas. Cada vez me impressionam mais.
- Sinto-me feliz com isso - respondeu Susana.
A certa altura, viu José Hart fazer uma pequena saudação, seca, a Blake, e afastar-se. Esperou então que o marido viesse juntar-se-lhe. Mas não o fez; conservou-se um momento junto da porta, e depois saiu.
- Ainda não consegui classificá-la - dizia entretanto o senhor Kinnaird - e isto perturba-me. Não reconheço a técnica. Quanto a Blake, sim; é incontestavelmente moderno. Mas a Susana não. Também não tem coisa alguma de clássico, não lhe encontro qualquer traço de arte francesa. Então, o que é que tem em vista, ao certo, minha querida filha?
- Não sei coisa alguma. Absolutamente nada. Não Sei incluir-me em qualquer escola. Trabalho como respiro, inconscientemente. Sinto as coisas de momento a momento.
- Ah!-disse ele docemente. - É talvez assim por ser mulher?...
- Talvez - respondeu Susana, indiferente. Nem o ouvia já.
- Chamam-na ao telefone, senhora Gaylord - disseram-lhe. O dia estava quase terminado. Susana temia voltar para casa: e esperava, querendo habituar-se à ideia de tornar a ver Blake.
Ao telefone, ouviu a voz de Crowne:
- É um telegrama, minha senhora Deseja que lho leia?
- É favor, sim - respondeu, a si mesma perguntando o que poderia ser.
Crowne leu lentamente: - "Pai muito mal. Vem imediatamente. Mãe". - Há alguma resposta a mandar, minha senhora?
- Sim. Telegrafe para a mesma direcção: - "vou imediatamente. Susana". Diga a Joana que arranje a minha
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mala e a dela. Telegrafe também a minha irmã, para Palm Beach, Hotel Regina. Já sabe: Senhora Bennyfield Rhodes.
- Muito bem, minha senhora.
O senhor Kinnaird está aí?
Não, minha senhora.
Susana poisou o auscultador. Entravam visitantes, apressados, mais numerosos que nunca. Susana notou um homem magro que, em frente de cada estátua, tomava notas rápidas, num caderninho de apontamentos. O velho Kinnaird fixava os olhos tristes na estátua do rapaz italiano. Esquecera-se de Susana, e esta saiu sem se despedir.
Menos de uma hora depois, pronta já para deixar a casa de Blake, escreveu-lhe um bilhete.
"Meu querido: o pai está doente e apresso-me a partir, visto não saber onde encontrar-te". (Pedira a Crowne que perguntasse por Blake .para o seu clube, mas não estava). "Parto lembrando-me com saudade, da noite passada. Vem também, se te é possível. Terei grande necessidade de ti. Não sei o que me espera. Sou a tua Susana".
Meteu o bilhete no sobrescrito, fechou-o e entregou-o a Crowne:
- Dê-o ao senhor, logo que chegue.
Crowne inclinou-se e, depois de terem subido, ela e Joana, fechou a porta do carro. Bantie pôs o motor em marcha. Crowne entrou e fechou a porta da casa. E foi com a imagem desta porta fechada, no seu espírito, que Susana partiu.
"Se acreditasse em pressentimentos..." disse para consigo, perturbada; "mas não creio nisso..." Pensou em Blake com um brusco e ardente desejo. A cólera da manhã não importava coisa alguma. Em face da realidade, sabendo que Susana partira, Blake segui-la-ia logo, e talvez que, na velha casa modesta, arruinada, mas confortável, se encontrassem um ao outro como nunca até então. A voz de Joana interrompeu-a:
- O senhor Gaylord pareceu-me com muito mau aspecto, quando lá estivemos da última vez - disse, suspirando.- Enfim, todos seguimos o nosso destino mortal.
- Cale-se, Joana! Vê sempre tudo pelo pior.
- Às vezes, sucede, minha senhora; mas desejo sempre o melhor.
Susana não respondeu. Não via senão Blake; ninguém mais, fora dele. Blake não devia guardar-lhe rancor, sob
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pretexto algum. Pensava ainda nele quando chegaram à casa paterna e Hal Palmer veio abrir a porta.
- Hal - exclamou Susana. - Onde está a mãe?
- Lucília está com ela - respondeu Hal. O rosto, redondo e banal, era grave e os olhinhos azuis enchiam-se de lágrimas. - Chegas muito tarde, Sue. Teve um ataque. Fulminante.
Susana voltou-se para Joana:
- Telegrafe a Blake - disse; e, atirando com o casaco, foi ter com a mãe.
Havia horas já que ouvia o falatório da mãe. Ao entrar, Lucília levantara-se:
- Ah, meu Deus! Como me alegro por teres vindo, Susana. Fizemos tudo o que pudemos, mas nunca se substitui a família. Onde está Maria?
- Já lhe telegrafei - respondeu Susana. Coisa estranha! Em todos os momentos críticos em que a morte
a visitava, Lucília e Hal misturavam-se à sua vida. Durante um instante, as recordações da morte de Marcos assaltaram-na, mais próximas do que as da noite precedente.
- Agora que estás cá - dizia Lucília, cochichando bastante alto -volto à minha casa. Hal fez o necessário, compreendes, arranjou tudo. O clérigo veio imediatamente. Foi-se, mas virá ver-te, com certeza. Virão outros membros da família?
- vou mandar buscar as crianças - disse Susana e, já se sabe, meu marido deve vir também.
- Oh, sim, manda que eles venham! -exclamou a mãe, soluçando. - Far-me-ão bem. Já nenhuma razão tenho para viver.
- Ora, senhora Gaylord! - disse Lucília com a sua voz forte e fresca. - Não deve falar assim. Tem as suas duas queridas filhas, os seus netos adoráveis, e há ainda na cidade tantas pessoas, como nós, que a estimam! Lembre-se de que foi uma esposa e mãe admirável. Nada tem a censurar-se.
- Fiz quanto pude, eu sei - murmurou a mãe, enxugando os olhos.
- Não há coisa no mundo que não fizesse pelo seus
- observou Lucília ainda, com calor. - Agora, seja corajosa. Mas creio que Susana quererá arranjar-se um pouco após a viagem e ir depois ver o pai. - E voltando-se para
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Susana: - Está tão natural! Desde que a respiração cessou, a medonha vermelhidão, tão carregada, saiu-lhe do rosto, e todo o esforço...
Sofreu muito?
Não sabemos até que ponto, por não sabermos se
estava completamente inconsciente. Não proferiu uma palavra.
A mãe interrompeu:
- Acabava de ter uma discussão comigo, a propósito de nada. Conhecias a sua maneira de raciocinar, Susana. com a velhice, isso aumentava. Logo que eu abria a boca, contradizia-me.
- A paciência que a senhora teve!
E Lucília suspirou. A mãe prosseguiu, com os lábios inchados a tremer:
- Esta manhã insistiu em ir ao pátio; eu disse-lhe que não devia sair, porcausa do reumatismo. E acrescentei que, se se sentia bom para ir até lá fora, também podia descer à cave, a abanar o aquecimento. Há um ou dois dias que eu o substituía nisso, porque pretendia que as cinzas o fazia tossir. Voltou-se para mim e... enfim, tu sabes bem como ele falava... declarou que não tocaria mais na caldeira; eu respondi-lhe que isso não era trabalho para mulheres. Bruscamente, pôs-se muito vermelho, com as veias inchadas, como sempre que perdia... que perdia a cabeça... e caiu... - E pôs-se a chorar de novo.
Susana, ouvindo-a, viu cair o pai, morto em meio de uma questãozinha fútil. Mas não; não fora apenas esse instante tão curto que o matara; fora a cólera armazenada durante toda uma existência, passada ali, naquela casa que ele construíra e que toda a vida tinha detestado.
- Vou-me, então. - Lucília inclinou-se e beijou o rosto da senhora Gaylord. - Mandem-me chamar, caso seja necessário, sim?
Saiu, e Susana encontrou-se só com a mãe. Devia consolá-la, mas não podia. Chorava muito para poder falar; e não era a morte do pai que deplorava, mas a sua vida; vendo-lhe as lágrimas, a mãe de novo chorou.
- Vamos! - acabou Susana por dizer. - Devemos reagir. Mandaremos Joana, amanhã, buscar as crianças. E eu quero ir vê-lo. Vá descansar e deixe-me cá tratar de tudo. Estenda-se na cama; eu a cobrirei e lá lhe levarei o jantar.
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Ajudou a mãe despir-se e a envergar a sua velha camisa de noite, fora de moda. Custava-lhe imaginar que este corpo grosso e privado de beleza era o mesmo, fino e arrebatador, que conquistara seu pai e o conservara preso durante todos os anos da sua vida. Mas era bem verdade! Como a carne se transforma facilmente e com que facilidade também se desfaria o laço que se apertara de novo entre ela e Blake!
Alguns momentos mais tarde achava-se de pé na saleta onde tinham posto o corpo do pai. Estava estendido sobre o leito, vestido com o seu melhor fato escuro; os sapatos pretos reluziam, bem engraxados, os cabelos brancos estavam penteados. Rosto e mãos pareciam de mármore, e quando Susana lhe poisou a mão no ombro, sentiu-o frio e duro, sob o fato. Era como se tivessem vestido uma estátua. Susana não podia suportar a intolerável tristeza daquele rosto. Sentou-se ao lado do leito e recomeçou a chorar. Continuava ainda a lamentar, não a morte, mas a vida, a vida que esculpira aquela boca com uns traços tão dolorosos, que afundara aquelas órbitas, enviara àquele homem, na sua juventude, tantos sonhos de amor, para logo em seguida lhos roubar, e que, com a idade, lhe inspirara visões de ilhas livres nos trópicos e de mares azuis, enquanto a conservava amarrado ali àquela casita medíocre, de cidade pequena. Também a morte se não mostrava mais clemente, pois que, vendo-o desarmado, revelava o que ele ocultara enquanto vivo.
Susana saiu do quarto. E gritava dentro de si, com paixão: - "Todos nós devíamos ser livres, livres para nós mesmos, duma forma ou doutra. Ninguém deveria chegar à morte sem ter conhecido a liberdade!"
Quando lhe levou a comida, Susana encontrou a mãe a dormir. Ao ruído dos passos, esta despertou e exclamou com leve sobressalto:
- Susana, por que é que?... Oh, esquecia-me! Cada vez que adormeço, esqueço o que se passou!
Pôs-se a chorar, e Susana, poisando o prato, envolveu-a nos braços.
- Em todo o caso, procedi sempre da melhor maneira.
- Decerto - respondeu Susana; e pensava: "É absolutamente verdade; e é isso, precisamente, o que despedaça o coração".
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Ninguém poderia ter feito mais-disse ainda a senhora Gaylord, enxugando os olhos.
Ninguém - confirmou Susana, pegando de novo no
prato.
Susana aspirava, duma maneira indescritível, à sua casa. Porque a verdade é que a da sua infância não lhe parecia já um lar. O seu papel, ali, terminara com a morte do pai. Nessa noite, enquanto aguardava, tendo um pouco a esperança de ver chegar Blake, recordou os anos passados e compreendeu que, apesar dos cuidados da mãe, que as criara e alimentara, era ele quem lhes abria as portas da vida. Sem cessar, repetia, no decurso dos anos, cada vez que uma coisa nova se apresentava: - "Experimenta, experimenta... por que não?" Fora ele quem, pela primeira -vez, lhe metera um lápis na mão, lhe comprara terra argilosa. E fora porque ele talhava animaizinhos e aves na madeira, que viera a Susana e ideia de modelar. A mãe bem gritara, nesse dia: - "Que porcaria nessas mãos e no bibe!" O pai lançara então um olhar à mulher, enquanto dizia: - "Eu limparei tudo"; e elogiara Susana por uma estatueta que acabara de fazer; em seguida, levara-a à casa-de-banho e limpara-lhe as mãos com grande cuidado, dizendo. - "Não vale a pena lavar o bibe. Reservá-lo-emos para o barro. Hás-de precisar dele muitas vezes". Subira ao sótão e dependurara o bibe azul. - "Quando quiseres, já sabes: fica aqui". Instalara uma prancha em cima de cadeiras, em frente da janela, com um monte de barro e um jarro cheio de água para o amassar. - "Poderás vir para aqui; já não enfadas a tua mãe. A sujidade é-me indiferente, desde que se tire dela qualquer coisa". E durante os anos da sua infância, ali se sentara, feliz, em frente daquela prancha.
As inúmeras coisitas, que fizera, ergueram-se na noite, diante dela, e recordou-as. O sentimento da sua perda aumentou, intolerável. No entanto, era esta envergadura de seu pai (pensava ela, meditando nisto) que afastava Maria. Quando ele dizia: - "Experimenta", aquela recuava e respondia instintivamente: - "Não quero". - "Está bem", dizia ele; e todo o ardor lhe desaparecia do rosto. Após a partida de Maria, beijava e abraçava Susana, com força: -? "Tu és a minha filha, não és, Susana?..."
Maria enviara um telegrama: - "Lamento muito. Irei se
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vires que é necessário. Saudades. Maria". Susana não respondera. Quando tudo estivesse terminado, escreveria à irmã.
Pela meia-noite, o telefone tocou. Ela acorreu e ouviu a voz de Blake:
- Susana?
- Oh, querido! Tenho tido tanta necessidade de ti!
- Acabo agora mesmo de encontrar o teu bilhete dizia a voz, que parecia fraca e vir de muito longe. Estive fora todo o dia. Estou aflito, Susana. Como estás tu, minha querida?
- Eu... Oh, Blake, ele foi-se tão depressa! Quando cheguei, tudo tinha acabado.
- Estou desolado!-E Blake conservou-se em silêncio por um instante. Ela ouviu a vibração inútil dosfios e esperou, quase a soluçar. A voz voltou: - Susana, foi melhor assim. Oxalá meu pai se extinguisse da mesma forma.
- Mas nunca mais o verei! A casa está de tal modo vazia!
- Acredito. - Ouviu-o tossir ligeiramente. - Afinal, Susana, estava velho. Já tinha vivido a sua vida.
Ela sentiu desejos de gritar ao telefone: - "Não, aí é que está, justamente: é que não viveu a sua vida!" Mas não o fez. Uma espécie de prostração a penetrava ao ouvir a voz de Blake.
- Não te peço que venhas, Blake; a não ser que o desejes.
- Minha querida Susana - continuou a voz, com uma entoação de desculpa, a que se misturava um leve acento de desafio - eu nunca vou a enterros. Nem sei se acompanharei o de meu pai. Terei de ir ao meu, por força, mas espero que serei a única pessoa, então. Não quero lá ninguém, nem sequer tu. É um costume bárbaro. Não, Susana; vai, se assim é preciso, mas peço-te que voltes logo depois, pelo primeiro comboio. É absurdo ficar a lamentar-nos nestas ocasiões. - Ela não respondeu, e Blake chamou de novo:
- Estás lá, Susana?
- Estou, sim.
- Compreendes os meus sentimentos, não é verdade?
- disse ele em tom suplicante.
- Compreendo.
- Então... Haverá outra coisa que eu possa fazer, seja o que for, além de...?
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- Não, não, obrigada, Blake. vou deitar-me. Boa noite.
- É o que de melhor tens a fazer. Boa noite, Susana.
A voz extinguiu-se, lá longe, e Susana poisou o auscultador.
Como é que ela pensara na noite anterior - e seria apenas na noite anterior? - que a carne podia ser um laço?
Subindo a escada, desatou de repente num choro impossível de conter. Despiu-se, tomou banho e deitou-se, tremendo toda, sacudida pelos soluços. Não compreendia porque chorava assim, mas sabia que o seu desgosto ia mais além do que o causado pela morte.
No dia seguinte abriu a porta a João e a Márcia. Estava ansiosa por vê-los. Fora a ideia deste momento que lhe acalmara aslágrimas, na véspera. Dissera para consigo: -? "João e Márcia chegam amanhã!" E uma grande consolação iluminara o seu desespero. Eram os seus filhos, e amava-os. Pela manhã, pensou: - "Não devo agarrar-me demasiado a eles, pensando só em mim. Lembrar-me-ei de que nunca viram a morte, até agora". E, quando abriu a porta, não deixou o coração expandir-se e envolvê-los. Em vez disso, embora os beijasse com transporte para reconforto próprio, disse com animação:
- Venham, meus queridos. Têm frio? Joana, poderia fazer chocolate para nós todos?
Os pequenos sentiam-se pouco à vontade com ela, não sabendo em que era que a achavam mudada. Procurou conservar a sua atitude habitual, embora exultasse em face daquele ar de saúde das suas figuras, das suas faces frescas e dos seus olhos claros. Esqueceu os defeitos de Márcia, vendo apenas a sua graça encantadora de morena fina e elegante. João era forte, soberbo, um loiro de olhos azuis, como Marcos, mas belo e vivo, com gestos rápidos e boca delicada.
- Joana já nos preveniu, mamã - disse o filho, muito grave; - informou-nos de que o enterro seria hoje.
- Nós vamos? - perguntou Márcia vivamente.
- Vão - disse Susana, com calma. - A avó ressentir-se-ia se não fôssemos. E não há razão alguma que nos impeça de a seguir, pois que estimávamos muito o avô. Vamos vê-la. Está na cama, no seu quarto.
Entraram timidamente e ficaram de pé junto do leito.
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A senhora Gaylord pegou-lhe nas mãos e desatou em soluços.
- Sois vós tudo o que me resta - disse.
Voltaram uns olhos desolados para a mãe. Esta sentou-se sobre o leito e João fez o mesmo, pondo-se a acariciar a mão da avó.
- Estou desolado - disse com voz trémula.
Quanto a Márcia, olhava fixamente o rosto transtornado da avó.
- Temos ainda muitas razões para viver, não só uns para os outros, mais ainda por muitas coisas mais - disse Susana. - Agora, mãe, tomaremos qualquer coisa quente e depois levante-se e vamos dar uma volta juntas.
- Oh, não posso! - gemeu a senhora Gaylord, em meio dos seus soluços. - E depois, que diriam, Susana?
- Não precisamos de atravessar a cidade; vamos só tomar um pouco de sol, lá fora. Márcia, vai dizer a Joana que sirva o chocolate aqui.
O tom ponderado, muito natural, de Susana, sossegou-os.
- E vão vê-lo... antes... antes..,? - murmurou a senhora Gaylord.
Susana voltou-se para João:
- Gostarias de ver o avô como está agora, meu filho?
Ele olhou a mãe; os olhos abriram-se-lhe e empalideceu um pouco.
- Posso responder-lhe mais daqui a pouco, mãe?
- Por que não?
- O que é? - perguntou Márcia, que voltara.
- Estava a perguntar ao João se queria ver o avô - e a voz de Susana era a habitual.
Márcia parou no meio do quarto, declarando, cheia de ardor:
- Por mim, quero. Nunca vi ninguém morto.
- Pois vamos - disse Susana.
- Pronto-e Márcia enfiou a mãozita magra na da mãe. Esta ergueu-se e saíram juntas. João observava-as; ainda hesitou, mas não as seguiu.
Susana levou Márcia à saleta, e, sem dizer palavra, conservou-se de pé, com a filha, junto do leito; mas espiava o rosto da pequena, esperando qualquer expressão de susto. Márcia nenhum receio sentia.
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- Está tão quieto - disse, ao cabo dum momento.
.- Sim - respondeu Susana. - Penso que é isto a morte: a completa tranquilidade.
Após um momento, Márcia continuou:
- Assim, já a avó não dirá que não faço disto a menor ideia.
Susana não respondeu. Demoraram-se ainda um pouco e, depois, Márcia declarou:
--Agora, quero ir-me embora.
Saíram do quarto. João estava atrás da porta.
--Não quero vê-lo - murmurou, tremendo, com os lábios brancos.
- Assim, também ele não queria que entrasses - respondeu-lhe a mãe.
- A última vez... que o vi... andava a fazer-me o barco... o meu três-mastros... ria e, quando me disse adeus, prometeu enviar-mo dentro de três ou quatro dias... e assim fez. Crê que ele não se zangaria, por eu ficar aqui, sem entrar?
- É a melhor recordação que dele podes guardar; a que lhe daria maior prazer - e Susana, metendo a mão sob o braço do filho, levou-o dali.
Susana acabou por achar consolação em si mesma; veio-lhe no claro, e frio sol desse dia de Novembro.
O pai morrera-lhe; mas dessa morte faria ela surgir a vida. Dedicaria a seu pai a sua mais bela obra, nascida das recordações que dele guardava. Da consciência da sua perda, subiu uma chama límpida, o forte arroubamento dum desejo familiar. E este enlevo é que a susteve enquanto teve de se conservar de pé diante da cova aberta, com a mãe amparada a ela e a mão sob o bracito de João. Contemplou o céu iluminado pelo pôr-do-sol, que nesta estação chegava cedo, e não viu pessoa alguma daquela multidão; não ouvia uma só nota de música nem discurso algum. Conservava-se distante, num silêncio que só a ela pertencia, fazendo do barro do corpo de seu pai uma imagem duradoira. O ouvido distinguiu o ruído surdo da terra caindo sobre o caixão.
"O pó, volta ao pó..." Estas palavras não eram mais que um eco longínquo. Ela não via, nem ouvia.
"Esculpi-lo-ei num mármore sem veios", pensava, numa exaltação solene. E, com os olhos da alma, distinguia a estátua do pai, via-a já terminada, ouvia-lhe a voz e,
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esquecida da terra que se ia amontoando, ergueu a cabeça, sorrindo.
Blake dissera: - "Volta pelo primeiro comboio". Mas isso foi-lhe impossível. De regresso a casa, os pequenos olharam-se, não sabendo que fazer. E do fundo do silêncio que assim reinava, ela perguntou, sentindo o seu desejo tomar forma, em meio daquela solidão:
-Que diriam se fôssemos todos passar uns dias à granja?
Joana exclamou logo:
- É realmente boa ideia, minha senhora, se me permitem uma opinião. Não se estaria lá muito mal. Fiz uma boa limpeza, este Verão, como faço sempre.
- Sim - opinou João - sim, mamã.
- Eu nem me lembro já - disse Márcia.
- Agora, qualquer sítio onde esteja me é indiferente acrescentou a senhora Gaylord, com um suspiro.
Empilharam no carro o necessário para fazer as camas e comida, e partiram logo.
No último minuto, Lucília telefonara:
- Iremos aí esta noite; a primeira que se passa assim, é sempre tão dolorosa! Eu sei o que foi, quando da morte de minha mãe. À noite é que se sente mais, quando o corpo já lá não está.
- Mas vamos agora todos para a granja - respondera Susana; e, sem esperar mais, poisara o auscultador, fechara a porta à chave, apressadamente, e dirigira-se, correndo, para o carro, onde os outros a aguardavam.
Seria bom estarem ocupados em fazer as camas, em limpar, em cozinhar; estas necessidades vulgares auxiliam a cura. No dia seguinte, convenceria a mãe a olhar por essas coisas, e os pequenos poderiam correr por toda a parte. Deixá-los-ia interromper as aulas por algum tempo. Precisava de tê-los ali.
Conduziu o carro, de noite, até ao extremo da cidade e depois pelo caminho que percorrera no dia em que fora encontrar Marcos doente; ao longe da álea, por cima das suas cabeças, os ramos entrelaçavam-se, muito nus, contra o céu sombrio. Não havia luar, mas as estrelas brilhavam. Encontraram-se sob o pórtico familiar e Joana tirou da mala de mão a grossa chave de ferro:
- Pensei que talvez viesse até cá, e por isso a trouxe
- explicou.
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Susana entrou em primeiro lugar.
.Um momento - disse Joana. - Eu é que sei. Deixei
o candeeiro aqui, na mesa do vestíbulo, e fósforos de segurança; com os outros, é preciso desconfiar, por causa dos ratos.
O candeeiro lançou uns raios de luz, e todos olharam em volta, no vestíbulo.
- Estou a lembrar-me - disse João, em tom sonhador.
- Eu, não; acho engraçado estar aqui - declarou Márcia.
Mas Susana não os ouvia. Pensava: "Será necessário dizê-lo a Blake. Explicar-lhe-ei que tenho um trabalho que devo fazer aqui".
E logo compreendeu claramente que nunca chegaria a esculpir a estátua do pai na rua atravancada e ruidosa. Ele nunca lá fora - e-escapar-lhe-ia se agora o levasse até lá. Aqui, neste
silêncio, a esta distância, ser-lhe-ia possível.
Em pé, no seu terreno, parecia-lhe que, enfim, regressara ao lar.
ESCREVIA todos os dias a Blake. Não devia tê-lo ao corrente do que pouco a pouco ia descobrindo em si mesma? Começou por escrever: "Prolongo um pouco a minha estadia aqui, a fim de ver claro no meu trabalho. Compreenderás que há seres que nos aparecem mais nitidamente num sítio do que noutro. A ele, é aqui que o vejo".
Blake respondera: "Certamente, eu compreendo"; em seguida passara ao assunto que realmente o interessava: "Recortei todos os artigos sobre a tua exposição. Depois do de Barnes, cada crítico deu a sua opinião, como eu esperava. Em resumo: saíste-te muito bem. Todos concordam em achar que a tua obra tem mais mérito, quanto é certo que as mulheres têm poucas vantagens, sobretudo em escultura".
Estas opiniões já não a interessavam, e assim lho disse. É que o bloco de mármore, encomendado por telegrama, acabava de chegar e começava uma nova obra. O passado desaparecera. E Susana aceitava este esquecimento sem o compreender, assim como o impulso para esta nova criação.
Em casa, Joana tratava das salas e da cozinha. A senhora
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Gaylord limpava a baixela e consertava os cortinados. Chorava ainda de tempos a tempos e interrompia-se quando estavam ao pé dela, para contar o que tinha dito e pensado, e o que ele tinha respondido... João anunciou à mãe:
- Creio que vou esculpir em madeira a cabeça do avô. Gostaria de a ter. Convirá cerejeira? Encontrei um bom bocado, bem seco, na quinta. Ajuda-me um pouco no desenho?
Só Márcia andava perturbada:
- Não há que fazer aqui - repetia muitas vezes ao dia.
- Se não vamos para o colégio senão depois do Natal, mamã, que há-de ser de mim, todo este tempo?
Dia após dia, Susana ia adiando a partida. Circulava duma sala para outra, punha-se à janela, e reflectia, meditava ao contemplar os campos, as colmas e o céu. Perguntara a si mesma se, nesta casa, Marcos voltaria. Mas não. No entanto, a sua vida faria sempre parte da de Susana, como tudo o mais. As suas antigas amigas perguntavam-lhe: - "Quanto tempo ficarás aqui, Susana?" E esta respondia: - "Nada sei ainda". Susana seguira o seu caminho, que não era o delas; no entanto, ao encontrá-las de novo, logo voltaram a ocupar o antigo lugar na sua existência. Tudo o que outrora tivera, conservava-o ainda.
Recebeu uma carta de Barnes: "vou expor em Nova Iorque, em Janeiro, e depois voltarei para Paris, para ali residir. Terminei os meus Titãs. Não haverá mais nenhum, na minha vida. Sinto-me expulso do Olimpo. Vivi tanto tempo entre os deuses, que o meu olhar já não está em condições de observar os homens, tão pequenos. A senhora está já bem lançada. Os críticos não conseguem distinguir se lhes agrada ou não, de maneira que não corre o risco de que a esqueçam. Agora bastar-lhe-á seguir a sua norma. Não terá necessidade de quem quer que seja. Previna-me, se regressar à cidade".
Susana dobrou esta carta e pô-la de lado. Talvez não voltasse a ver Barnes, mas isso pouco importava. Haviam comunicado um ao outro tudo o que lhes era possível. Cada um dava, segundo os seus meios, o que o outro podia aceitar. Nada se perde.
Blake escreveu: "Começo a crer que não voltas mais".
E ela respondera: "Não sei ainda o que farei. Há momentos em que não vejo mais que o dia que segue".
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Foi então que ele lhe mandou um telegrama anunciando a sua chegada.
Susana recusava-se a investigar dentro de si se desejaria ou não recobrar Blake; deixar-se-ia guiar inteiramente pelo sentimento que ele lhe inspirasse. O facto é que percebia bem que já não o via com os olhos de outrora. Era uma pessoa desconhecida, a considerar de novo. E tratava-se de saber não só que efeito lhe faria, mas também como ele a acharia. Se Blake precisasse dela, Susana reflectiria. Mas por si, sentia-o bem, podia passar sem ele.
Nessa manhã, anunciou com um ar de indiferença:
- Blake chega hoje.
O rosto de Márcia iluminou-se:
- Admirável! Se soubesse, mamã, a falta que Blake me faz!
E a senhora Gailord suspirou:
- Pensar que teu pai nunca chegou a vê-lo!
João desenhava, sentado à mesa, e continuou sem proferir palavra.
- É preciso ir buscar outra carne, minha senhora-? observou Joana - o senhor não come guisados.
Blake chegaria às três horas, assim dizia no telegrama; Bantie o traria no automóvel. Susana arranjou-se com esmero e instalou-se no salão onde estavam todos. Um pouco depois das três, viu Blake embrulhado no seu casaco de peles; desceu do carro e, com a bengala na mão, subiu as escadas.
Foi Susana quem abriu.
- Então, Blake - disse.
- Como estás, Susana? - e inclinou-se para a beijar. De tal maneira esta se julgou em frente dum estranho, que esse beijo a surpreendeu. Esperou, enquanto ele tirava o sobretudo.
- É um sítio difícil de encontrar - observou Blake. Parece que ninguém o conhece. E que tempo glacial! A extremidade do seu belo nariz estava um pouco vermelha; esfregou as mãos uma contra a outra.
- Vem aquecer-te.
João trouxera várias achas e ateara lume no fogão. A sala, pouco mobilada, era quente, alegre e espaçosa. Joana pusera o chá perto do lume, sobre uma mesinha junto da qual se encontrava a senhora Gaylord.
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- Apresento-lhe Blake, mãe. - Aquele inclinou-se sobre a mão da velhinha, que lhe lançou um olhar um pouco assustado, enquanto informava:
- Dizia eu a Susana, antes de o senhor chegar... Mas nesta altura entrou Márcia na sala:
- Blake! Blake! Até que enfim! - Pusera o seu mais belo vestido de tafetá, enfeitara os cabelos curtos e pretos com uma fita que dissesse bem com eles, e tinha os lábios e as faces um pouco encarnadas demais.
- Márcia! - ordenou Susana. - Vem aqui!
A pequena olhou-a com ar bruscamente aborrecido e avançou lentamente.
- O que é?
Mas Susana puxara-a já para si e esfregava-lhe as faces e os lábios com o lenço.
- Não tens vergonha, Márcia?
E Blake desatara a rir, com o seu riso agudo, muito forte. Todos tinham o olhar fixo no lenço de Susana, sujo de encarnado. Os olhos negros de Márcia tomaram uma expressão de furor.
- Não vejo em que é que isto possa interessar-lhes!
- Deus do céu! - murmurou a senhora Gaylord. João entrou nesta altura:
- Eu bem lhe disse que a mãe não gostaria. Boa tarde, Blake. - Este apertou-lhe a mão; e os seus olhos riam, zombeteiros:
- Gostei muito de te ver, Márcia.
- Vai lavar a cara, Márcia - disse Susana. - E não te demores, filha. Joana fez uns bolinhos de passas.
No meio de tudo isto, Susana não pensava senão na presença de Blake; via bem, analisando cada um dos seus gestos, que estava desfeito entre eles, todo o liame carnal. O corpo de Blake era-lhe estranho; nenhuma fascinação encontrava nele. Não sentia desejos de lhe tocar na mão, e a simples ideia de que Blake poderia beijá-la inspirava-lhe uma sensação de repulsa.
Serviu o chá, assaltada por um desalento crescente, enquanto Márcia, de volta já, tagarelava como se nada se tivesse passado, empoleirada num joelho de Blake; a certa altura, escondeu o rosto no pescoço deste, murmurando sufocada:
- É de si que eu gosto mais! Blake de novo troçou dela.
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Susana sentia aproximar-se o momento em que Blake e ela deviam unir-se ou separar-se. Antes de cair a noite, tinha de tomar uma decisão. Bruscamente, levantou-se:
- Vamos, agora saiam; todos! Blake precisa de conversar comigo.
O tom que deu a estas palavras impôs-se à própria Márcia, e Susana e o marido ficaram, por fim, sós.
Esperava que ele pronunciasse as primeiras palavras, a fim de saber se a queria, ou não, ao pé de si. Se desejasse o seu regresso, se lhe sentisse a falta, ela teria de lembrar-se da promessa feita em certa repartiçãozinha de Paris. Esperava, pois, um pouco receosa. Parecia-lhe que ele ia falar, perguntar-lhe com ardor: "Quando voltas para mim, Susana?"
Mas quando Blake abriu a boca, foi para dizer:
- Estou aqui, em parte, para negócios, Susana. José Hart... - interrompeu-se, rindo. - Vais sentir-te muito lisonjeada, Susana... Esse velho excêntrico quer meter duas das tuas estátuas no Museu.
Ela estava tão estupefacta, tão violentamente perturbada, que lhe foi difícil esperar, ficar na expectativa e obrigar o seu espírito a ouvir aquelas palavras. O que ele dizia parecia-lhe agora sem importância. Não pôde responder logo.
Blake acendeu um cigarro, depois do que acrescentou:
- Barnes pede o teu consentimento; não sei bem a fórmula - e aspirou uma fumaça. - Penso que poderia eu tratar disso, em teu lugar.
Ela esforçou-se por reflectir; por fim, declarou:
- Não quero interromper essa série. Está incompleta. Terei de lhe acrescentar oito estátuas ainda, pelo menos; e se o Museu as quer, terá de ficar com todas.
Blake ergueu as sobrancelhas:
- Palavra, Susana! És muito pouco ambiciosa!
O tom era irónico, e ela indignou-se:
- Ambiciono tudo!
- Muito bem. Os meus cumprimentos! Ela não disse mais palavra.
- Devo dar essa resposta ao velhote? - perguntou ele, ao fim dum momento.
- Não. Dar-lha-ei eu mesma. - Depois, inclinando-se para o marido com um movimento impulsivo: - Blake, queres que falemos de ti e de mim?
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Era ela quem apresentava o problema. Blake ergueu os olhos para Susana, que sustentou o seu olhar, bem de frente.
- Que queres dizer?
- És feliz sem mim?
- E tu, és feliz sem mim?
- Se a vida, juntos, não tem já qualquer significado para nós dois, não poderei continuá-la... assim, contigo.
- Decerto - disse Blake, muito amável. Susana esperou em vão que ele continuasse. Uma acha deslizou para a chaminé, e ele adiantou-se a Susana, ao primeiro movimento desta.
- Dá-me licença. - E quando voltou a sentar-se, observou, divagando o olhar em torno: - Poderias fazer qualquer coisa de muito interessante desta velha casa, Susana. Tem certo ar...
- Sim - respondeu ela, simplesmente. Compreendeu então que nunca ele lhe deixaria ver o fundo do seu pensamento. Por tanto tempo fugira a toda a espécie de verdade, e que, forçado agora a encarar uma, se esquivava. Mas Susana, com a sua sinceridade natural, não podia dispensar essa verdade. Se deviam viver juntos, agora que o laço da carne se quebrara, seria intransigente; arrastá-lo-ia sem cessar para soluções que ele evitaria o mais possível, mas que o fariam detestar Susana, com o tempo, da mesma forma que esta tivera de deixar de o amar. Porque já o não amava. No entanto, nunca esqueceria o amor apaixonado, tão absoluto, de outrora.
Susana guardou silêncio, reflectindo, enquanto ele fumava. Ambos tinham os olhos fixos no fogo.
- Blake-disse por fim, docemente - aborrecer-te-ia muito se... se te pedisse que me deixasses aqui?
- É no divórcio que pensas?
- Se o preferes... A mim é-me indiferente. Mas permite-me que viva aqui, e aqui trabalhe.
- Não encontraste ninguém? Ela agitou a cabeça:
- Não. Ele sorriu:
- Teria compreendido, assim.
Susana não respondeu; era-lhe impossível saber o que ele pensava realmente.
- Fui muito feliz contigo, Susana - prosseguiu com a
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sua voz igual, agradável. - Ao princípio, sentia-me um
pouco duvidoso. Tu não és o tipo que... És invulnerável. parecia que me lançavas um desafio. Quis abater o teu orgulho, e apaixonei-me.
-O meu orgulho não está abatido - interveio Susana
tranquilamente.
Naquele momento, Blake mostrava toda a sinceridade
de que era capaz; ela compreendeu-o e declarou-lhe espontâneamente, cheia de simpatia:
- Eu sei que não sou mulher muito agradável para ter como esposa.
-Não estás completamente presente - disse ele, sorrindo; - e um homem gosta de ter a mulher em seu poder.
-Eu sei; a mim, ninguém pode possuir-me inteiramente... nasci assim!
Blake olhou-a sem responder; ela prosseguiu:
- Sempre quis ter tudo. Quis ser ao mesmo tempo uma
boa esposa, o género de mãe que os filhos estimam, e ir trabalhando; depois, quando tu apareceste, quis também tornar-me... o teu amor.
- E creio bem que eras tudo isso, sim.
- Não vejo porque é que falas de mim como se tivesse morrido. Estou mais viva do que nunca, mais consciente.
E era verdade. Graças a esta clarividência, é que notou, à viva luz da sua intuição e com uma triste humildade, que o seu grande defeito estava em si mesma, que diferia muito da medida comum para ser tolerada pelos outros humanos. Nunca tivera amigas, porque fazia não só a mesma soma de trabalho, mas muito mais. Como explicar, sem isto, a falta de afeição de Maria? E por que é que, quando Susana lhe estendia os braços, Márcia tantas vezes recuava, incapaz, com a sua frieza, de suportar o amor tão quente da mãe? Susana revelara-se muito altamente dotada a David Barnes, a quem bastavam os seus Titãs, a Marcos, e, agora, a Blake. Este teria facilmente perdoado a admiração de
José Hart pela obra de Susana; mas, como os outros, reclamara-lhe uma face da sua personalidade e tinha cedido sob o peso do que ela trazia a mais. Cada um deles, dando-se conta disto, se evadia por sua vez, tomado de amargura. Susana ultrapassava a medida vulgar, ninguém conseguiria nunca dar-lhe o bastante e, logo que o compreendiam, retiravam-se.
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Restava-lhe João, apenas. Devia ter cuidado com ele. Deixá-lo-ia trabalhar as suas estatuetas de madeira, sem nunca lhe fazer sentir a enormidade dos seus mármores. Até morrer, dissimularia sempre, diante dele, a sua própria envergadura.
- Pretendeste muitas vezes que eu era simples e até mesmo, uma vez, pronunciaste a palavra "estúpida" -"- disse a Blake. - Tinhas razão. Levei bastante tempo a aperceber-me daquilo por que me censuravam.
Blake não lhe pediu que se explicasse.
- Quis simplesmente dizer que eras ingénua e que esperavas que os outros te aceitassem tal como te apresentavas, duma maneira tão directa como a duma criança; mas já não és criança, tu, e os outros não sabem que fazer de ti.
- Sim, compreendo. Os homens... homens e mulheres... consideram os outros conforme o que eles mesmos são, segundo as próprias capacidades. E eu já devia ter percebido isso há muito tempo, não é?
A conversa era cortada por longas pausas, prudentes da parte dele, e cheias, nela, de pesares e de dúvidas. A tarde tocava o seu fim. Os raios de sol atravessavam o salão em linhas oblíquas, que caíam sobre o velho tapete azul que Marcos e ela tinham comprado quando iniciaram a sua vida. Esta vida passara, não existia já, mas tomara o seu lugar no conjunto. E agora, em frente das poucas palavras que Blake e ela poderiam trocar ainda, Susana sentiu a vida presente escapar-se-lhe também.
- Não sei dessas coisas - respondeu ele. - Não me peças, minha querida, que me meta em questões de psicologia. A verdade é que...--interrompeu-se e voltou a cabeça; depois, acrescentou: - Parece que o que possuímos, o deixámos escapar.
- Se eu assim não fosse...
- Não me teria apaixonado - terminou Blake. De pé, com o rosto ligeiramente pálido, de lábios secos, ia apertando o cinto do sobretudo. Susana sentiu de repente uma dor imensa, obscura.
- Oh, Blake, deste-me tanto!
- E tu também, Susana. - Mas quando ela lhe estendeu a mão, sacudiu a cabeça: - Não te inquietes - disse.
- Não procures reter o passado. Tenho pena de vê-lo desaparecer, gostaria de o conservar, mas nada subsiste dele.
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sei-o bem. Sempre tive o pressentimento do final, a propósito de tudo. Sempre. Antes de começar uma coisa, já lhe via o termo.
- Também sentiste isso, comigo?
- Talvez - respondeu lentamente. - Penso que sim, porque coisa alguma de tudo isto me parece estranho. Parece que o vivi já.
Pegou na mão de Susana e beijou-lha. Susana encontrou-lhe uma expressão gelada. "Deve ser assim na velhice", pensou, enquanto dizia:
- Havemos de ver-nos, às vezes; queres?
- Por que não? - Dirigiu-se à porta e inclinou-se para pegar no chapéu e nas luvas. A bengala caiu-lhe; baixou-se a apanhá-la.
- Escrever-te-ei - disse; - poderemos assim combinar as coisas. É curioso! - Parou, circunvagando o olhar pelo vestíbulo. - Tinha o pressentimento deste fim, quando hoje aqui entrei.
Era impossível saber se .sentia, ou não, qualquer desgosto. Susana poisou-lhe a mão no braço, dizendo gravemente:
- Se pensasse que te faria sofrer, lamentá-lo-ia sempre. ")
- E tu, tens pena?
- Penso que sim, Blake; sinto que hei-de sofrer.
- Sim, sofres porque tudo acaba, muito simplesmente; é o sofrimento do fim, ao qual procuramos escapar sempre, através de toda a nossa vida. Adeus, Susana; e obrigado.
Saíra tão bruscamente, que mais parecia uma desaparição. Susana viu-o subir para o carro, que se lançou num crepúsculo, sob as árvores, onde as sombras se tornavam mais espessas, mais negras.
Ela voltou para dentro, como que aturdida, o Sol havia-se ocultado; o fogo crepitava com uma riqueza contínua de brasas caindo, e a sala estava mais quente e luminosa do que nunca. Susana sentou-se, impressionada ainda. Blake soubera dar uma aparência de leveza àqueles instantes tão impregnados da certeza do termo dum prazo terrível. Tudo acabara. Sofria? Nem sabia. Tinha assim como que a impressão de Blake lhe bater e, sob a acção dum poderoso anestésico, lhe ter aceitado as pancadas.
"Sofres, simplesmente, porque tudo acaba", dissera ele.
Ah! Mas com ela tudo durava. Conservava ainda o que tinha antes, aquela residência que ambos haviam edificado, Marcos e ela; tinha a morte de Marcos; o violento amor, tão apaixonado, de Blake, que lhe ensinara a ser mulher; e tinha os seus filhos. Tudo isto possuía, para sempre. Era esta a rica experiência a que arrancava a sua vida, essa vida que de tal forma ultrapassava o seu corpo mortal.
Sim, havia de sofrer por vezes, à noite, talvez; mas, pela manhã, erguer-se-ia, pôr-se-ia ao trabalho, e não sofreria já. Esquecer-se-ia até de sofrer.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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