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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANDO O HIGHLANDER / Janet Chapman
AMANDO O HIGHLANDER / Janet Chapman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Série Pine Creek Highlander

Volume 2

AMANDO O HIGHLANDER

 

Quando Sadie Quill encontra um homem incrivelmente atraente tomando sol nu, ao lado de um lago, não consegue resistir à tentação de fotografá-lo. A reação do estranho é quase animal. Em segundos a tem presa contra o chão, arrebatando sua câmara. Sadie se defende e consegue fugir, mas será uma fuga temporária.

Descobrir a identidade do irresistível selvagem complicará a já difícil busca de uma lendária mina de ouro, que Sadie leva a cabo para honrar a memória de seu pai. O estranho é Morgan MacKeage, um guerreiro escocês medieval transportado no espaço e no tempo até o estado de Maine na atualidade, um homem com a força da natureza selvagem pulsando em suas veias... E o poder de libertar o frágil coração de Sadie.

 

 

                   No profundo dos bosques do Maine, época atual.

Sentado no alto escarpado de granito, o velho mago refletia em silêncio, alheio ao despertar do bosque que o rodeava, à catarata que caía bramando do precipício e à agitada poça, cheia de água espumante, que estava situada a uns trinta metros abaixo de onde ele se encontrava. Alisou a barba com o punho da bengala e deu um suspiro; seus preocupados pensamentos se centravam por completo no solitário pescador que estava lá abaixo. Fazia seis anos tinha causado um tremendo prejuízo a aquele jovem. Sim: ele e só ele era responsável por ter transformado a vida de Morgan MacKeage no desastre que era agora.

Mediante um feitiço, Daar tinha levado Greylen MacKeage ao século XXI, laird e irmão de Morgan; era seu maior deslize até a data. De acordo: Greylen realizou a viagem sem muitos problemas… Mas também o fizeram seis de seus inimigos, dois de seus homens e Morgan, seu irmão caçula. O feitiço alcançou inclusive seus zangados cavalos de guerra, e os catapultou a toda uma viagem inimaginável que os fez avançar no tempo.

Daar atribuía aquele desastre a sua avançada idade. Era velho, estava cansado e às vezes se despistava um pouco; por isso, em algumas ocasiões, a magia saía errada.

Em teoria, Morgan MacKeage devia estar morto há oito séculos, depois ter desfrutado de uma ou duas esposas e uma dúzia de filhos, mais ou menos. Mas em vez disso, o guerreiro escocês das Terras Altas que agora estava pescando tinha trinta e dois anos, não tinha se casado ainda e era um solitário. A Daar parecia quase um pecado que sua incompetência como mago tivesse jogado à deriva um guerreiro tão magnífico, tão forte e inteligente, e que se visse assim por sua culpa, sem objetivo nem direção.

Os ombros venceram sob o peso da culpa. Sim, ele e ninguém mais era o causador do desgosto daquele jovem, e já tinha passado da hora de consertar as coisas.

Uma mulher lhe viria bem…

Embora, por outro lado, talvez uma mulher só servisse para aumentar os problemas do jovem guerreiro.

Daar tinha descoberto que as mulheres do século XXI constituíam uma raça muito rara. Eram impetuosas, diretas, dogmáticas e teimosas; e, sobretudo, condenadamente independentes. Atreviam-se a viver sozinhas, trabalhavam para manter-se e com bastante freqüência possuíam terras, ocupando postos de poder nos negócios e nos governos.

Como um homem nascido em uma época em que as mulheres eram um simples equipamento ia lidar com as deste século, tão independentes? Como um viril guerreiro do século XII ia aceitar uma nova vida em uma época tão extravagante?

Os MacKeage viviam a seis anos no mundo moderno; seis anos adaptando-se, evoluindo e aceitando, por fim… Mas Morgan MacKeage seguia sozinho. Seu irmão, Greylen, estava felizmente estabelecido; tinha uma esposa, uma filha e um par de gêmeas a caminho. Quanto a Callum, cortejava uma mulher que vivia no povoado, e Ian se via em segredo com uma viúva duas noites por semana. Até Michael MacBain, o único de seus inimigos que tinha sobrevivido, era pai de um filho e seguia adiante com sua vida.

Apenas Morgan permanecia desligado não apenas da companhia das mulheres, mas também das próprias paixões da existência. Caçava, pescava e caminhava pelos bosques sem se dar trégua, como se procurasse algo que acalmasse o desejo de seus instintos.

— Vá com cuidado, ancião, a não ser que queira cair e se transformar em comida para os peixes!

Daar esteve a ponto de cair ao ouvir atrás dele a voz familiar de Morgan; então se levantou, voltou-se e olhou o jovem guerreiro com um cenho feroz.

— É um pagão, Morgan MacKeage, por tirar dez anos de vida do susto a um velho sacerdote.

Morgan elevou uma sobrancelha.

— A próxima vez que veja um padre, assegurarei-me de confessar os meus pecados.

Daar tentou endireitar os ombros e inchar o peito diante aquele insulto, mas em seguida desistiu, ao compreender que isso não mudaria nada.

— Agora está vendo um padre.

Morgan elevou a outra sobrancelha.

— Que Igreja aceita um druida em suas filas?

Daar apontou com o dedo ao guerreiro.

— Eu era sacerdote muito antes de me transformar em mago — apressou-se a replicar. — E, além disso, uma coisa não contradiz a outra; os dois caminhos vão na mesma direção.

Morgan se limitou a soltar uma risadinha enquanto dava a volta e começava a subir pelo atalho que conduzia para a cabana de Daar. Sem olhar para trás, disse:

— Vamos, ancião, se quer tomar o café da manhã.

Ao observar a réstia de trutas que se balançava pendurando de seu cinturão, Daar decidiu adiar o bate-papo sobre as maneiras do guerreiro. Depois de tudo, fazia dois anos que essa conversa se repetia com freqüência: desde que se viu obrigado a revelar sua identidade de mago para salvar a esposa de Greylen MacKeage das garras de seus seqüestradores.

E acaso o tinham agradecido? Absolutamente. Nem sequer pronunciaram uma palavra de desculpas, quando seu prezado e velho bastão acabou partido pela metade e jogado a um lago da alta montanha. O mesmo lago, por sinal, que por uma corrente subterrânea alimentava a cascata que saltava com força da lateral do escarpado, dando origem à poça cristalina onde se criavam as saborosas trutas que estava a ponto de comer como café da manhã.

— Tem essa adoentada bengala nova algum poder, druida? — Perguntou Morgan, caminhando a um ritmo cômodo e pausado.

Daar soltou um bufo e olhou a espada que Morgan tinha atada à mochila, metida em sua capa de couro.

— A você vou dizer — Murmurou entre dentes.

A espada media ao redor de um metro: ia da cintura do guerreiro até uns trinta centímetros acima de sua cabeça, e o punho estava voltado para um lado para poder agarrá-la com facilidade. Era tão grande como a espada de Greylen… E, igual a esta, capaz de destruir a nova bengala de Daar.

Morgan parou para ajudar o velho sacerdote a passar sobre um tronco caído no atalho.

— Já serve para torrar o pão? — Perguntou.

— Tem poder suficiente para que veja as estrelas se te bater com ela.

Não deu a sensação de que Morgan se preocupasse muito com sua ameaça, pois estava concentrado em tirar algo do bolso. Imediatamente levantou uma fita de plástico cor laranja, com ao redor de um metro de comprimento, e perguntou:

— O que sabe disto?

Daar entreabriu os olhos e olhou a fita.

— O que é isso?

— Não sei. — Morgan apoiou a vara de pescar no peito e, com as duas mãos, estirou a fita toda a largura. — Encontrei esta e várias outras atadas às árvores por todo o vale, e todas têm números escritos.

Com um gesto despreocupado, Daar fez ignorou da fita e em seu lugar jogou uma olhada às trutas; nesse momento, um rugido de seu estômago proclamou bem alto a fome que tinha.

— Provavelmente são agrimensores que estão marcando o fim da propriedade.

Voltou a dirigir-se para sua casa; tinha fome, maldição, e neste momento não estava para quebra-cabeças.

— É o que fazem nestes tempos modernos para assinalar as terras. Já não basta a palavra de um homem que afirme ser dono da terra, que chega até um rio ou até a cúpula de uma montanha… — Deteve-se ao dar-se conta de que Morgan não o seguia. — Diabos, menino: sua terra tem linhas desenhadas no mapa e marcadas nos bosques. Até estão nas escrituras que lhes deram quando seu irmão comprou a montanha TarStone. Hoje em dia, isso é o que tornam legais as coisas.

Morgan voltou a meter a fita no bolso e pôs-se a andar atrás de Daar.

— Não são confins — Disse. — Pelo que vi, não marcam nenhuma linha.

— Então, talvez sejam sinais de lenhadores. — Propôs o ancião, enquanto planejava mentalmente o que prepararia para acompanhar as trutas.

Sem deixar de caminhar, começou a examinar o chão do bosque, procurando cogumelos comestíveis.

— Possivelmente estejam fazendo um desmonte no vale. — Prosseguiu em tom distraído. — Talvez esses números sejam instruções para os lenhadores.

Morgan se pôs adiante para cortar seu caminho e o obrigou a parar de novo.

— Não. — Disse ele. — Encontrei algumas fitas nas terras dos MacKeage, e neste vale não vamos cortar árvores. Os lenhadores que contratamos estão trabalhando ao leste daqui.

Daar elevou a vista para os intensos olhos verdes de Morgan.

— O que é você quer? O que é tão importante para deixar que se estraguem um bom par de trutas?

— Quero que use sua magia e me diga o que está ocorrendo em meus bosques.

Daar elevou a bengala e usou-a para coçar a barba.

— Ah, de modo que está bem fazer feitiços quando convém a você, e não a mim? É assim que funciona a coisa agora?

Os olhos de Morgan se obscureceram.

— Há rumores de que vão construir um parque neste vale, e quero saber se tiverem se adiantado, e se atreveram a começar os trabalhos.

— E se for assim, o que importa?

— Não quero que haja um parque aqui. Uma quarta parte deste vale é terra dos MacKeage, e sou contra destruir tudo.

— Por quê?

— A terra é nossa.

A atitude de Morgan fez que Daar perdesse toda esperança de tomar o café da manhã logo, a menos que, simplesmente, fizesse uma fogueira ali mesmo e assasse as trutas em espetos. Assim, sentou-se no toco de uma árvore, rodeou com as mãos o nó superior de sua bengala e elevou o olhar para o jovem guerreiro.

— O que importam uns quantos milhares de acres se seu clã já possui quatrocentos mil?

— Que construam seu parque em outro lugar, sempre que não seja perto deste cânion.

Nesse momento Daar deixou de pensar em sua barriga e se concentrou no homem que tinha diante de si. Era uma débil faísca o que via naqueles verdes olhos de folha perene, em geral tão indiferente? Algo daquele bosque tinha atraído por fim o interesse de Morgan MacKeage?

— O que tem de especial este cânion?

Morgan se desprendeu as trutas do cinturão e levantou-as.

— Isto — Disse.

Depois balançou a vara de pescar e abrangeu o bosque com um gesto.

— Toda esta crista: o rio que aparece misteriosamente de um nada ao lado da montanha e o curto cânion descendo até o vale, as árvores… Se fixou alguma vez em seu tamanho, ancião? Ou em quão bons estão estes peixes? — Sacudiu um pouco as trutas. — São trutas de arroio, mas têm o tamanho de salmões.

Com o cenho franzido, Daar jogou um lento olhar ao bosque que tinha a seu redor. Sim, as árvores pareciam bem maiores que o normal, comparados com outros locais.

— São grandes — Reconheceu ele. — Nunca tinha reparado.

— Isso é porque há apenas dois anos eram iguais aos outros.

Aquela cifra produziu um comichão na memória do mago. Ao ver sua expressão de desconcerto, Morgan prosseguiu:

— Foi quando atiraram seu bastão no lago. É pela bruma. — Voltou a balançar a vara de pescar. — Vê? Sobe da catarata e tampa o cânion.

Daar quase caiu do toco em que estava sentado. A bruma procedia do arroio que saía do lago da montanha, onde estava seu velho bastão?

Nossa, diabos… Sabia que naquele lago a água era especial, pois dentro estava seu bastão mágico, mas não parou para pensar em conseqüências como aquela. Peixes enormes? Árvores muito altas? Uma autêntica selva tropical onde não deveria existir…

— É a magia — sussurrou Morgan, com voz quase reverente. — Todo este cânion é o resultado do que ocorreu faz dois anos. E não quero que se transforme em parte de um parque; centenas de pessoas virão de excursão por aqui e descobrirão a magia.

Daar se levantou.

— Tampouco eu quero que construam esse parque — apressou-se a reconhecer. — Temos que fazer alguma coisa.

— Tem que falar com Grei — disse Morgan. — E fazê-lo compreender que nossa terra não deve transformar-se em parte de um parque.

— Eu?

— Ele te escutará.

— Não. Neste momento está furioso comigo, porque sua esposa acaba de fazer um teste e o ditoso médico disse a Grei que Grace está grávida de gêmeas, não de gêmeos.

Morgan ficou assombrado.

— Dizem se é menino ou menina antes de nascer?

Daar deu de ombros.

— Pelo visto, agora sim.

Absolutamente resignado a saltar o café da manhã, o ancião sacerdote começou a voltar pelo caminho e escolheu um atalho que os levaria por cima da catarata, até uma colina que dava ao vale de baixo.

— Bom, vamos ver quão forte se tornou meu bastão.

Morgan se apressou a ajustar seu passo ao dele.

— Vai me dizer para que são as fitas de plástico? — Perguntou.

— Não, o bastão não é uma bola de cristal; é só um condutor de energia.

Enquanto caminhavam pelo atalho, Daar acariciou a suave e delicada bengala que usava desde que se perdeu a sua. Até agora só tinha dois nós, e isso indicava que seu poder ainda não era muito grande. Seu velho bastão, que Grei tinha cortado com sua espada e jogado no lago, estava infestado de nós que continham a força concentrada de mil e quatrocentos anos de energia.

— Se sua bengala ainda não pode fazer nada, por que subimos a crista? — Perguntou Morgan.

— Cale-se. Estou tentado recordar as palavras. — Ordenou Daar enquanto continuavam andando.

Não era tão fácil recitar feitiços de cor; da última vez que tinha posto a prova a bengala nova para algo mais complicado que acender fogo, acabou chovendo por mais de uma hora escaravelhos pestilentos. Menos mal que estava escuro.

Surpreendentemente Morgan obedeceu, e não demoraram para chegar ao topo do Fireline Ridge. Atrás deles, a uns três quilômetros, tinham o lago em cujo fundo estava seu velho bastão, e diante deles estava o profundo cânion que se metia no enorme vale abaixo.

Daar ficou estupefato. Daquele ponto panorâmico podia contemplar o leito do arroio: grandes e exuberantes cicutas, píceas e pinheiros, envoltos em um manto de bruma, elevavam-se a enorme altura do chão do bosque formando um maravilhoso tapete de intensa cor verde.

De repente, a bengala que tinha na mão começou a zumbir com suave energia. Uma quente e familiar sensação de poder subiu por seu braço, e Daar fechou os olhos para saborear o tato inconfundível de seu bastão, perdido fazia tempo.

Morgan recuou um passo ao ver que a vibrante bengala se retorcia e crescia em longitude e grossura.

— O que é isto, ancião? O que acontece? — Perguntou.

— Olhe, toca-o. — Daar estendeu a bengala. — Sente, Morgan. É a energia da vida.

— Não penso tocar essa maldita coisa.

— Não vai te morder! — Espetou Daar, zangado, ao tempo que empurrava a bengala no ventre do guerreiro.

Instintivamente, Morgan a agarrou para proteger-se e imediatamente abriu os olhos como pratos: a cálida vara de cerejeira passava suas vibrações através do braço até alagar todo seu corpo.

— Isso. É disso se trata, guerreiro: essa é a força da vida. Já não recorda como eram as paixões?

Morgan soltou a bengala, recuou e esfregou a mão na camisa.

— Não esqueci nada, velho. Venha, mostre com essa coisa o vale e diga suas palavras. Me diga o que está acontecendo aí embaixo.

Daar apontou com a bengala para o vale e começou a balbuciar em sua antiga língua. De repente, os nós da bengala se esquentaram e, subitamente, a brisa se transformou em um vento que formou redemoinhos de bruma em rajadas caóticas em torno deles. Os pássaros e os esquilos correram a esconder-se, e o longínquo fragor da catarata se transformou em um sussurro.

O ancião abriu um olho para observar Morgan. Tinha as mãos fechadas em punhos, os olhos entrecerrados, a cabeça colocada entre os ombros e apertava a mandíbula com tanta força que parecia que iam partir os dentes. E, além disso, o pobre guerreiro parecia estar contendo a respiração.

— Sairia muito melhor se me ajudasse. — Disse o ancião. — Pega a bengala comigo, Morgan, e se concentre. Sente primeiro a energia, e depois olhe com a imaginação.

Devagar, Morgan pousou a mão sobre o segundo nó da bengala e o agarrou com tanta força que quase fez lascas da vara. Juntos balançaram a bengala, que virtualmente tinha duplicado sua longitude, por cima do vale.

— Vamos. Diga-me o que vê, guerreiro. Diga-me e eu o interpretarei.

— Luz. Vejo uma luz cegadora que, entretanto, não me faz mal nos olhos.

— De que cor é a luz?

— Não a vê você mesmo, druida? É branca. Sinto o calor, mas não me queimo. E também é amarela: vejo faíscas amarelas.

— E o que faz a luz amarela?

— Está bailando por entre a luz branca em círculos, muito rápido, como se procurasse algo.

— Que mais vê?

— Há uma luz verde também, e persegue a luz amarela.

Com a bengala, Daar descreveu um arco maior; depois parou e se preparou para o choque de energia que sabia que vinha. A luz se fez mais intensa, e as cores formaram redemoinhos em um arco íris cegador. De repente, a bengala deu uma sacudida e puxou as mãos quando a nova energia entrou nele com a força de um tornado.

O guerreiro não estava preparado para aquilo e retrocedeu, cambaleando-se diante a investida, mas continuou segurando com força a bengala.

— Santo céu! O que ocorre, druida? Agora um grande negrume cruza girando a luz e golpeia com força as faíscas amarelas. A luz amarela está desaparecendo.

— E a verde, guerreiro? O que faz a verde?

— Persegue o negrume; mas quando o alcança, não há nada.

Daar soltou a bengala e recuou. O vento se acalmou, e ao momento retornou a bruma, assim como o fragor da catarata.

Sem deixar de segurar a bengala, que tinha recuperado seu tamanho normal, Morgan deu a volta para ficar em frente ao mago. Por fim, pálido e desconcertado, atirou ao chão a já silenciosa vara.

— Poucos mortais viveram o que acaba de viver agora, guerreiro. O que te parece meu dom?

— Não me disse nada, ancião. Só vi cores.

— Te disse tudo, Morgan: acaba de vislumbrar as energias que vagam por este vale. As emoções.

— Emoções?

— Sim. Não pareceu conhecida a luz verde? Não era do mesmo tom que o do tecido do clã MacKeage, o plaid que está usando?

— Se a luz verde me representa, então, a quem representa a amarela?

Daar mostrou um amplo sorriso.

— A alguém que ainda tem que conhecer.

— Que planta as fitas? É esse a luz amarela?

O ancião acentuou seu sorriso.

— Possivelmente.

Morgan franziu o cenho para ouvir sua resposta.

— E a negra?

— Ah, essa negra é outra força vital. Algo que açoita seu vale.

— Algo ou alguém?

Daar deu de ombros e se inclinou para recolher a bengala.

— O mal está acostumado a tomar forma humana quando deseja atormentar os humanos.

— De modo que a energia negra representa o mal? E se aproxima?

— Não, guerreiro: já está aqui. E também está aqui algo bom. Não esqueça a luz amarela, Morgan, essa luz também cobria seu vale.

— Mas eu tampouco a agarrava.

— Porque estava mais ocupado perseguindo o negrume.

O suspiro de Morgan chegou a Daar tão forte que o fez recuar um passo. Morgan MacKeage parecia a ponto de explodir em um ataque de frustração… Bem, certamente, não era paixão o que lhe faltava agora.

O mago elevou a mão para deter seu arrebatamento e se apressou a sugerir:

— Fale com seu irmão. Peça a permissão de Greylen para reclamar este vale como seu, e depois construa seu lar aqui. Ele não te negará isso.

Aquela proposta com fez que toda a fanfarronice desaparecesse do rosto do guerreiro.

— Um lar? Acredita que devo construir uma casa aqui?

— É um bom lugar para formar uma família — disse Daar; seu tom se voltou reflexivo. — A julgar pela intensidade das luzes que vimos, acredito que tenha pelo menos dois meses até que de verdade deva ver-se envolto neste mistério. Nesse meio tempo, tem que ser capaz de levantar uma casa. Se o conseguir, seu direito a terra será indisputável e acabará com a ameaça de um parque neste cânion.

Morgan ficou vermelho.

— Não vou ter uma família — murmurou ele — De modo que não necessito uma casa.

Nossa, pensou Daar, dessa maneira não teria filhos, não é? Agora estava entendendo. E era uma notícia muito alarmante, em vista de quão forte era a paixão que acabava de ver nas luzes, fazia um momento.

Claro que não ia contar a Morgan. Não, algumas coisas era melhor descobrir sozinho.

Como o sexo de uma criança ainda por nascer, por exemplo.

— Mas por quê? — Perguntou a Morgan. — Todos os guerreiros querem filhos varões.

Morgan levou uma grande mão à parte de atrás do pescoço e o esfregou.

— Graças a você, druida, eu já não sou um guerreiro: sou um homem que nem sequer deveria existir. Não sou nada.

— Isso não é verdade. Queira ou não, está vivo, Morgan MacKeage. Agora é um latifundiário, um membro desta comunidade e dirige uma estação de esqui com seu clã.

Morgan riu ao ouvi-lo.

— Durante o dia coloco os traseiros das pessoas em um teleférico, e passo os invernos subindo e descendo pela montanha, conduzindo uma máquina e alisando bem a neve. Chama a isso uma ocupação nobre?

— E é uma ocupação nobre caçar e pescar?

Morgan grunhiu:

— Pelo menos dou de comer a você, ancião.

De repente ouviu um grunhido procedente da bruma que ficava justo abaixo deles. Morgan se apressou a girar sobre seus calcanhares e tirou a espada em um único e fluido movimento.

Daar pôs a mão sobre o punho.

— Não faça mal a Faol — disse. — É meu mascote.

Ao reconhecer o nome do animal em gaélico, Morgan perguntou:

— Um lobo? — Tentou examinar na crescente bruma e depois se voltou um momento a encarar Daar. — Tem um lobo co o mascote?

— Sim, pelo visto agora sim. Apareceu na minha porta na semana passada.

— Nesta terra não há lobos.

O ancião deu de ombros.

— Talvez não estejam preparados para deixar-se ver.

Por fim, nesse momento, apareceu Faol; saía em silêncio da bruma, com a cabeça baixa e o cabelo do lombo arrepiado. Morgan agarrou ao ancião pelo ombro e, com um rápido empurrão, o colocou para trás. Depois, voltou a elevar a espada.

O lobo grunhiu.

Daar soltou um bufo de desdém e voltou a colocar-se entre ambos.

— Dois guerreiros, cada um me protegendo do outro… Vamos, parem já. — Olhou a Morgan — Faol pode te ajudar.

— Me ajudar com que?

— Seu vale, lembra? As luzes, o negrume… Faol te ajudará a descobrir o que está acontecendo.

A julgar por sua expressão, Morgan não dava crédito ao que ouvia.

— Mas se é um lobo!

— Sim, guerreiro, isso é o que é. Mas, como você, está sem rumo e necessita uma boa briga que o anime.

Por cima da cabeça de Daar, Morgan olhou Faol, e depois se voltou de novo para o mago com os olhos entrecerrados.

— É um de seus feitiços, druida? Fez aparecer o lobo para me aborrecer?

Daar levou a mão ao coração, embora inclinasse a cabeça para seguir olhando ao céu com um olho cheio de receio.

— Que Deus me mate se mentir. Faol é tão autêntico como a barba da minha cara. Simplesmente, apareceu em minha cabana faz oito dias.

Sem abandonar sua expressão cética, Morgan baixou devagar a espada até que a ponta tocou o chão. Então, com a mão livre, puxou uma das trutas de seu cinturão e jogou-a ao lobo.

Faol avançou até o pescado e voltou a grunhir.

Morgan soltou um desdenhoso bufo.

— Grande mascote…

Inquieto ao ver como dava de presente seu café da manhã, em seguida o mago ficou a reunir lenha para um fogo; iam comer já, antes que desmaiasse. Com rapidez, dispôs vários ramos em um monte, aproximou a bengala e murmurou algo entre dentes.

Imediatamente a lenha começou a arder.

— Já vai ver como eu me mostro mais educado se me lançar uma dessas trutas. — Disse o mago. — Não faça caso do animal e prepare com a faca uns espetos para assar o café da manhã. Eu poderia morrer de fome em sua companhia.

Morgan demorou um momento em se mover. Por fim, convencido de que Faol estava mais decidido a proteger sua truta que comer a eles dois, embainhou a espada e tirou sua adaga. Depois de despojar um galho de suas folhas, fabricou dois complicados espetos circulares, trespassou os três pescados que sobraram e se aproximou do já crepitante fogo. Nenhuma só vez durante sua tarefa deixou de estar atento ao lobo. Enquanto assavam as trutas, Daar lhe fez um pedido:

— Me dá sua adaga, por favor?

Morgan cravou a vista em sua mão estendida.

— Para que? — Perguntou, lançando outra breve olhada a Faol.

— Tenho que realizar uma tarefa enquanto esperamos o café da manhã.

Estava claro que o escocês não tinha nenhuma vontade de entregar a arma; depois de tudo, estava ao alcance do ataque de um lobo. Ao vê-lo titubear, Daar o tranqüilizou.

— Ele está mais interessado em comer a truta do que comer a nós. — Com a mão estendida ainda, dedicou-lhe um amplo sorriso. — Ou está com medo de me dar uma arma?

A resposta foi o olhar assassino de uns olhos verdes, um olhar suficientemente intenso para petrificar um homem. E por um instante o ancião se preocupou; talvez aquela paixão que Morgan tinha dentro de si se transformasse em um perigo para a pessoa a quem ela fosse dirigida.

Por fim, ele passou a adaga, mas ato seguido se apressou a tirar sua espada e a colocar sobre os joelhos. Faol levantou a cabeça ao ver seu gesto.

Com a adaga, Daar assinalou ao lobo.

— Reparou em seus olhos? — Perguntou ao guerreiro. — E no modo em que inclina um pouco a cabeça para a direita? Não te parece familiar?

Morgan e Faol se olharam fixamente; deu a impressão de que cada um estava resolvido a fazer o outro afastar a vista.

Sem romper o contato visual, Morgan respondeu:

— Não. Só é um lobo.

Daar suspirou e aproximou a afiada folha da adaga ao pequeno nó que havia na metade de sua bengala. Morgan só era um menino de nove anos quando Duncan MacKeage morreu… E os meninos de nove anos não têm tempo de fixar-se em coisas como a cor dos olhos de seu pai.

De repente, ao dar-se conta de que Daar levava a adaga até a bengala, Morgan perdeu o interesse pelo lobo.

— O que está fazendo? — Perguntou.

— Acredito que deveria ter um pouco de ajuda quando iniciar o caminho que parece decidido a percorrer — respondeu o ancião, ao mesmo tempo em que fazia alavanca no resistente nó.

Nesse momento a bengala soltou um vaio de protesto e começou a vibrar.

Morgan se apressou a recuar para ocupar-se das trutas.

— Não quero nada com sua magia. — Disse ele. — Deixe sua prezada bengala intacta; você necessita de seus poderes mais que eu.

Daar não fez conta. A bengala, enquanto isso, estava abrasando sua mão e se retorcia para evitar a folha da adaga.

Ao vê-lo, Faol gemeu, ficou em pé, deixou a truta imediatamente e recuou para o bosque. Morgan se levantou também, espada em riste, e começou a deslocar-se para a segurança das árvores.

E, de repente, o nó saiu disparado da bengala, bramando como um animal ferido, e rodou pelo chão do bosque deixando atrás de si um aceso rastro de chamas vermelhas e crepitantes. Faol soltou um chiado e desapareceu entre as árvores. Para sua parte, Morgan agarrou Daar pela cintura, levantou-o do toco onde estava sentado e o colocou de um puxão no bosque. Juntos se esconderam detrás de uma gigantesca pícea e dali olharam como o irado nó de madeira dava voltas, rodando em círculos frenéticos, ao mesmo tempo em que chispava, vaiava e soltava um arco íris de centelhas.

— Você está louco, ancião? — Sussurrou Morgan. — Não deveria fazer essas coisas.

Daar escapou de seu puxão e retornou onde estivera. Uma vez ali, recolheu sua agora mutilada bengala e a acariciou com ternura.

Enquanto tranqüilizava a trêmula bengala, disse a Morgan:

— Me dê esse cordão que usa no pescoço.

— Por quê?

— Porque já é hora de que se desfaça desse amuleto pagão. — Respondeu, elevando a vista. — É um apoio sem valor e não faz nada por você.

O escocês agarrou com força a pedra que levava no pescoço.

— Está há anos comigo.

— A velha Dorna não era uma bruxa de verdade. Está vendo ela por aqui, viva e praticando sua magia negra? Essa velha harpia está morta há oito séculos. Vivia às custas de homens e mulheres ingênuos e desesperados; essa pedra não vale nada.

— Eu não sou um ingênuo.

— Não, mas pelo visto tampouco está preparado para se desfazer de suas antigas crenças. Não aprendeu nada em seis anos? Isso que se chama ciência rebateu o que praticava Dorna, e que você chama magia.

— E como explica a ciência algo como você?

— Não o explica nem o explicará nunca. Simplesmente, algumas coisas terão que ser aceitas mediante a fé.

Pela expressão de sua face, o escocês não se importava com o comentário. Continuou agarrando o amuleto com um gesto protetor, até que finalmente arrancou o cordão do pescoço e o deu a Daar.

— Toma.

O mago deixou que a pedra se deslizasse até soltar-se e caísse ao chão. Então, com a bengala, assinalou o nó de cerejeira já silencioso, e lhe pediu:

— Me passe esse nó, sim?

Morgan ficou pálido.

— Você o recolhe — Sussurrou ao mago.

Quieto junto a uma rocha, o nó de madeira zumbia brandamente. Soltando um suspiro de impaciência, Daar se levantou de repente do toco e o recolheu; depois, com um olho fechado e o outro entreaberto, dispôs-se a trespassá-lo no cordão de couro.

Morgan se aproximou até ficar atrás dele.

— Não há buraco — disse. — E um cordão não pode atravessar a madeira maciça.

Justo nesse momento, sem esforço, o couro se deslizou através do nó de cerejeira, que não deixava de girar. Daar se apressou a atar o cordão e o devolveu a Morgan, que recuou e levantou uma mão.

— Não me aproxime isso!

— Não vai mordê-lo! — Espetou o mago, zangado. — Vamos, agache-se para que eu possa colocá-lo.

— Eu disse que não quero sua magia!

— E eu acredito que chegará um momento em que a necessitará. Se não para você, pense no vale. E na luz amarela, recorda? O negrume estava consumindo-a. — Replicou Daar; depois assinalou com o dedo. — Talvez tenha sobrevivido a sua viagem seis anos, mas quem sabe se sobreviverá a essa? É um temível guerreiro, Morgan MacKeage, mas me escute bem: não é invencível. O negrume é uma poderosa força vital que não tem nem bondade, nem compaixão, nem consciência. Se não conseguir detê-la, devorará tudo o que se interponha em seu caminho: a você, à luz amarela e, ao final, todo este vale. Este toquinho de minha bengala será sua maior arma contra ela.

O guerreiro necessitou um pouco de tempo para digerir as palavras do ancião sacerdote. Por fim se inclinou para frente, baixou a cabeça e permitiu que lhe pusesse o cordão no pescoço. Depois, ao tempo que recuava para admirar seu presente, disse-lhe:

— Se quiser que isto funcione, vai ter que lhe dar sua fé e, além disso, sua inteligência. O nó não é forte por si mesmo; tem que descobrir o melhor modo de aumentar sua força.

De pé, tão quieto como as montanhas e com o fôlego contido outra vez, Morgan o olhou com o cenho franzido.

— Como…? — Engoliu seco. — Como posso fazer algo assim?

Daar descartou sua pergunta com um gesto da mão e devolveu sua adaga.

     — Resolverá quando chegar o momento — disse. Como se temesse que um movimento rápido pudesse acabar com ele ali mesmo, o guerreiro esticou a mão com cuidado para pegar sua arma e depois, igualmente de devagar, colocou-a de novo no cinturão. — Ah, uma coisa mais, Morgan: não deve contar nenhuma palavra do que aconteceu aqui hoje. Em particular, ao seu irmão. Nenhuma só palavra sobre o extraordinário deste cânion, sobre sua visão ou sobre o presente especial que fiz para você. — Daar assinalou o nó. — Não quero que Greylen saiba que ainda existe um rastro de meu velho bastão e, certamente, tampouco quero que saiba que o novo vai ganhando força.

     Morgan esboçou um meio sorriso; era o primeiro indício de que começava a relaxar.

     — Não deve preocupar-se de que o conte a ninguém, ancião.

     De repente, Daar moveu o nariz e cheirou. O que estava queimando? Olhou ao seu redor. As pequenas chamas que o nó tinha acendido em seu chiado já se apagaram; em troca, a fogueira ardia com intensidade.

     — Maldição! As trutas!

     Esquecendo de repente o nó que levava no pescoço, Morgan correu para a fogueira e as tirou das chamas. Sustentou-as no alto e se voltou para Daar com um amplo sorriso.

     — Não terá que preocupar-se: só se queimaram um pouco por fora.

     Com o pé, jogou terra no fogo e apagou as chamas para deixar tão somente carvões que ardessem lentamente; depois pousou as trutas em cima e deixou que terminassem de cozinhar-se mais devagar. O sacerdote se reuniu com ele e juntos voltaram a sentar-se de cara ao fogo.

     Morgan olhou para o bosque, para o lugar por onde Faol se foi correndo.

     — Acredita que voltará? — Perguntou.

     — Sim, não acredito que tenha ido longe. É provável que esteja nos olhando agora.

     Com gesto vacilante, Morgan levou a mão ao cordão de couro que tinha no pescoço e devagar fechou a mão sobre o nó; em seguida abriu muito os olhos.

     — Está quente.

     Daar assentiu.

   — Sim. Irritou-o que o arrancasse da energia geral da bengala — explicou. — Mas já está contente. Se sentir sua energia, guerreiro, trabalhará melhor para te proteger.

     Em silêncio, Faol voltou para o limite do bosque e se deitou junto a sua truta. Desta vez Morgan não desembainhou a espada nem tirou a adaga do cinto; em vez disso, guerreiro e lobo se concentraram no nó que pendurava do pescoço de Morgan. Faol observou como este o acariciava brevemente antes de metê-lo por dentro da camisa.

     Daar sorriu; tudo o que acontecia aquele dia estava bom. Morgan havia tornado a encontrar sua paixão pela vida em um mistério que prometia lhe proporcionar uma batalha digna de lutar.

     Faol também tinha encontrado um novo objetivo.

     E, em certo sentido, o ancião notou que até sua própria culpa se aliviou.

     Por fim, depois de dez longos minutos de espera, as trutas ficaram prontas para comer. O mago observou a perícia com que o escocês tirava o café da manhã dos espetos, e isso o fez recordar um momento parecido, fazia quase oito séculos; então, em outra fogueira, o antigo laird MacKeage tinha ensinado a seus dois filhos pequenos a cozinhar a pesca.

     O que pensaria Duncan MacKeage de seus filhos naquele momento, do apuro que tinham vivido e de sua incrível viagem? Ficaria orgulhoso ao ver como tinham conseguido sobreviver e como enfrentavam suas novas vidas?

     Ou acaso Duncan já sabia então?

     Observou Faol, que descansava mais ou menos igual a Morgan: relaxado, mas disposto a ficar em ação de um salto se fosse necessário. Pela décima vez nos últimos oito dias, o mago se perguntou que poder tiraria um lobo dos Montes e o atrairia para que andasse entre humanos… E pela décima vez decidiu que, em realidade, não se importava muito em sabê-lo.

     Ao fim, o guerreiro lhe passou uma truta, e Daar mordeu o primeiro e delicioso bocado; já era hora. Seu estômago o agradeceu, soando outra vez. Depois se recostou em um dos pinheiros, muito altos por obra da magia, e observou como Morgan tomava o café da manhã.

     Devia mencionar que havia uma mulher metida no mistério daquele vale? E que essa mulher tinha um brilhante cabelo amarelo, que cintilava com a sensual promessa da paixão?

     Não, provavelmente não.

     Melhor deixar que certas coisas fossem uma surpresa.

 

                   Sete semanas depois

     Sob o claro sol de meio-dia, com cuidado para não fazer ruído, Sadie Quill entreabriu os olhos e concentrou sua atenção na borda oposta da estreita enseada; mal conteve o fôlego e observou como o jovem alce se metia devagar nas frias águas do lago onde estava a mãe. Embora o pequeno só tivesse três meses de idade, já tinha aprendido umas quantas lições sobre sobrevivência, a julgar pelo receio com que saía a uma zona descoberta.

     Mamãe alce levantou a cabeça para seguir seu avanço, e a água saiu a torrentes da boca enquanto seguia ruminando a deliciosa vegetação que tinha arrancado do fundo do lago. A água salpicou a cara do pequeno, que, assustado, retrocedeu dando tombos e caiu sobre os quartos traseiros na escorregadia borda. Seu zangado balido de protesto não causou efeito na mãe, que então já havia tornado a colocar a cabeça sob a água.

     Sadie conteve uma risadinha, elevou a câmara e introduziu o comprido objetivo através do arbusto de madressilva onde estava escondida. A cena era muito divertida; justo por isso gostava tanto de seu trabalho.

     Ainda seguia admirada por sua boa sorte: pagavam-lhe por ajudar a preparar o projeto de um parque natural. Dedicava-se a procurar possíveis convocações de atalhos e lugares de acampamentos, ao tempo que catalogava zonas geográficas de interesse, assim como a vida animal. As últimas dez semanas tinham sido um agradável sonho do que não queria despertar.

     Bom, quase tudo tinha sido um trabalho de sonho… Porque alguém estava lhe entorpecendo parte da tarefa. Entretanto, o fato de que lhe roubassem os indicadores supunha mais uma chateação que um contratempo, pois as fitas cor laranja não eram mais que uma ferramenta visível do projeto; em realidade, tinha as coordenadas cotadas no grande mapa que pendurava da parede de sua cabana e as localizava por satélite com o GPS portátil.

     Que algum idiota de curta visão acreditasse que roubando suas fitas ia atrasar o avanço do parque natural só representava um inconveniente. Contudo, de momento Sadie tinha deixado de procurar atalhos; confiava em que assim o imbecil acreditaria que tinha vencido.

     Essa semana decidiu dedicar-se a explorar a flora e fauna do vale, e a apontar em seu jornal as zonas que talvez quisessem ver os futuros excursionistas.

   A instância da mãe, o pequeno alce voltou a meter-se na água pouco profunda da abrigada baía. Sadie apertou o obturador da câmara, captou a foto e passou o filme; nenhum ruído traiu sua posição graças à engenhosa habilidade com a que seu pai tinha manipulado o equipamento para fazer silencioso o mecanismo.

     Durante anos, os dois tinham passeado por aqueles bosques tomando fotografias, igual a ela fazia agora; ao pensar que seu pai já não a acompanhava, Sadie se sentiu presa da tristeza. Frank Quill tinha ensinado a arte de mover-se em silencio entre os animais e lhe tinha infundido não só a apreciação mas também respeito pela natureza.

     E agora ela o agradecia do único modo que tinha conseguido encontrar: ajudando a construir um parque em sua memória.

     De repente, a mãe alce levantou a cabeça e olhou para a água limpa do lago. Sadie examinou a tranqüila superfície com a teleobjetiva até que lá, perto da borda contrária, viu que algo se movia.

     Algo nadava para eles.

     Inclinou-se para frente para ver melhor, e o ruído de seu gesto fez que a mãe alce a ouvisse e voltasse de repente a cabeça. Então a olhou diretamente e, por um momento, os olhares das duas se encontraram.

     Naqueles bosques não havia muitos motivos de preocupação para um alce adulto, mas uma mãe tinha que extremar a cautela, dada a vulnerabilidade de sua cria. Pelo visto, a presença de Sadie e o que fosse que nadava para eles transbordava o limite do que estava disposta a confrontar. Dando um grunhido de advertência, a mãe alce saiu da enseada empurrando seu pequeno na frente.

     Sadie soltou um suspiro de arrependimento por tê-la assustado e voltou a concentrar-se no lago. Não imaginava o que seria o que cruzava a nado pela parte mais larga da água, quando era muito mais fácil rodeá-la a pé. A maioria dos animais era preguiçosa por natureza ou, melhor dizendo, faziam um uso mais eficaz da energia que gastavam.

     Fosse o que fosse, aquilo que nadava para ela era muito pequeno para ser outro alce e muito grande para ser um rato almisclera ou uma lontra. Regulou o enfoque do objetivo e seguiu observando, até o que por fim viu um elevar-se e cair de braços que abria caminho pela água.

     Braços? Uma pessoa cruzava o lago a nado?

     Sadie podia contar com os dedos das mãos e os pés as pessoas que se encontrou naquele verão: fazia nove semanas, uns piragüistas que aproveitavam o que ficava da enchente da primavera; depois um biólogo, um guarda da reserva de caça, uma pequena partida de pesca e um casal de meia idade residente em Pine Creek que procurava cogumelos comestíveis.

     Entrou mais nos arbustos para ficar bem escondida enquanto aquele desconhecido não parava de aproximar-se. E sim: agora via que o nadador era um homem; além disso, tinha ombros largos, braços largos e fortes e uma braçada que cortava a água com extraordinária facilidade.

     Na baía onde estava escondida, e para a que se dirigia ele, havia muitas rochas arredondadas. Com graça lenta e rítmica, o nadador se moveu justo até chegar a uma das maiores; então pôs nela duas grandes mãos e saiu a pulso da água em um forte e perfeito movimento.

     Sadie piscou e afastou bruscamente o olhar do visor. Não necessitava a clara nitidez da teleobjetiva para ver que o homem estava nu.

     Em seguida voltou a olhar através da câmara e ajustou o enfoque. Estava tão nu como o dia em que nasceu. Sentou-se na rocha e agora afastava o cabelo da cara e o escorria em um acréscimo à costas.

     Nossa, caramba… O cara tinha um cabelo loiro escuro que chegava aos ombros, quase tão longo como o seu. Sadie aproximou mais o zoom e o dirigiu para o torso; quando apareceu na objetiva, esteve a ponto de deixar cair a câmara. Era enorme, e não se tentava uma ilusão óptica. Os ombros enchiam o visor, e quando o homem levantou as mãos para afastar outra vez a água da testa, seu peito se ampliou até alcançar proporções hercúleas.

     Sadie observou que o tipo nem sequer tinha a respiração agitada depois de nadar. Um exuberante tapete de pêlo molhado e escuro cobria seu peito, largo e muito musculoso, que subia e baixava com o ritmo regular de quem mal tinha subido alguns lances de escadas.

     Quem era aquele semideus dos bosques?

     Sadie aproximou mais ainda o zoom da câmara e se centrou na face; não o reconhecia como alguém do povoado. Fazia uns meses que tinha voltado para a região de Pine Creek, e desde sua volta tinha ido ao povoado só seis ou sete vezes procurar mantimentos, mas recordaria um rosto tão atraente e varonil em um homem de seu tamanho; sem dúvida, recordaria uns olhos verdes tão chamativos, emoldurados em um rosto tão atraente. A mandíbula, sombreada por uma barba loira avermelhada de dois dias, era quadrada, robusta e de aspecto obstinado. Do pescoço, grosso, pendurava um cordão de couro com uma estranha bola que lhe caía sobre o peito.

     Voltou a afastar-se com o zoom até enfocar todo o corpo do homem. No estômago se marcavam os músculos; tinha coxas largas e de aspecto robusto, e avultadas panturrilhas; inclusive os pés, que penduravam com um movimento de vaivém, entrando e saindo da água, pareciam fortes.

     Aquele homem era de fato granito maciço.

     E, além disso, estava voltado justo o suficiente para manter intacto seu pudor. Má sorte, pois não era todo o dia que Sadie se deleitava em semelhante amostra de pura e absoluta masculinidade. Apesar de sua vergonha por ser uma descarada voyeur, desejou que se voltasse só um pouquinho mais para ela; sentia curiosidade, maldição, e não via por que ia ter que desculpar-se.

     Gostava dos homens; em particular, os grandes, como aquele tipo. Ela media um e oitenta e dois descalça, e quando falava com os homens que conhecia, quase todo o tempo se via obrigada a olhar à altura das entradas do cabelo. Desde que chegara à puberdade e começara a crescer como uma erva daninha, desejava ser baixa; como as heroínas das novelas românticas que gostava de ler, queria ser valente, formosa e miúda… E estava farta de ser só uma das três coisas.

     De repente, a imagem do visor começou a desvanecer-se, e por um instante, Sadie custou acreditar que tudo tinha sido um sonho.

     Até que se deu conta do que acontecia: o visor se empanou.

     Bom, sim, sentia um estranho calor… E, além disso, estava respirando um pouco mais forte que o normal.

     Nossa! Ou tinha um ataque de culpa por ser uma voyeur, ou se tratava nada mais e nada menos que de puro desejo.

     Dava na mesma; não ia deter-se. Com o dorso da mão direita, embainhada em uma luva, secou o visor e depois voltou a olhar.

     O homem se deitou ao sol sobre a rocha com os braços dobrados sob a cabeça e os olhos fechados, desfrutando de do calor como um urso bem alimentado.

     De repente, Sadie recordou que estava olhando pelo objetivo de uma câmara. Se a aquele tipo não se importava em desfilar nu pelo bosque, por que ia ela a sentir-se culpada por um par de fotos? O único não sabia era em que lugar do jornal que falava sobre a fauna do vale deveria colocá-las…

     Provavelmente, no mais alto da cadeia alimentícia.

     Convencida de que estava adormecido, Sadie pulsou o obturador da câmara e rapidamente fez passar o filme. Depois ajustou o zoom e voltou a pulsar.

     Justo quando passava o filme para fazer outra fotografia, o homem ficou em pé de um salto, tão rápido que seu movimento ficou apagado, como um borrão… E de repente olhou diretamente para os arbustos onde ela se escondia.

     Maldição, não podia tê-la ouvido. Os animais não ouviam o ditoso estalo, e suas vidas dependiam do sentido do ouvido.

     Sadie inspirou e conteve o fôlego; não sabia muito bem se era por medo ou porque agora via uma panorâmica frontal completa do homem.

     Depois de baixar o obturador pela última vez, recuou, correndo para liberar do arbusto e, bobamente, ficou de pé; não demorou para se dar conta de seu engano: encontrou-se cara a cara com o gigante, com apenas uns cem metros de água entre ambos.

     Sadie não pôde mover-se. Posto ali de pé como um semideus, parecia impressionante, com aquele intenso olhar verde que lhe paralisava os pés.

     Sem deixar de olhá-lo nos olhos, em um sussurro disse a si mesma:

     — Vamos, Quill, se mova enquanto ainda conta com vantagem.

     Mas ele deve ter escutado, porque ficou em ação o primeiro; mergulhou-se na água e começou a nadar para ela.

     Sadie agarrou sua mochila e se enfiou no bosque. Logo que chegou ao descuidado atalho, pôs-se a correr e, a ritmo rápido e constante, tomou o caminho de sua casa.

     O bosque se apagava a seu passo. Esboçou um sorriso.

     O nadador não tinha nenhuma possibilidade de agarrá-la; primeiro teria que alcançar a borda e depois encontrar o atalho e descobrir que direção tinha tomado. Suas largas pernas devoravam o terreno sem esforço algum, e a onda de adrenalina que bombeava por suas veias inclusive a fez rir em voz alta.

     Aquilo era seu forte: muito pouca gente a deixava para trás. E menos ainda um homem nu e descalço que dava a impressão de pesar trinta quilos mais que ela. Necessitava-se muita energia para mover tanto peso pelo sinuoso atalho, agachando-se, rodeando ramos e saltando troncos caídos.

     Sim, desta vez suas largas pernas lhe davam vantagem e a salvavam da loucura que tinha cometido ao invadir a intimidade de um estranho.

     Após um momento Sadie reduziu a marcha, embora não tivesse coragem para deter-se. Claro que só um desequilibrado a teria seguido, mas só um louco nadaria nu em um lago de águas frias.

     Assim, afrouxou o passo até transformá-lo em um trote, mas seguiu correndo.

     Foi então que ouviu o estalo de um ramo a suas costas.

     Olhou por cima do ombro; se pudesse, teria dado um grito: o homem do lago estava a quinze metros dela. Sadie se voltou para frente para ver por onde ia, enquanto a adrenalina se derramava de novo por sua corrente sangüínea.

     Nada como ver um louco completamente nu lhe pisando os calcanhares, com o cabelo revolto e o olhar selvagem, para conseguir com que uma garota deseje ter ficado na cama pela manhã. Então correu como se diabo a perseguisse; agora inclusive ouvia o martelar dos pés daquele estranho e, virtualmente, sentia seu fôlego na nuca.

   Agarrou-se a um pequeno cedro para tomar uma curva, e foi nesse momento quando ele a apanhou; alcançou-a de lado, em um planar com todo o corpo. Sadie quis gritar, mas o homem a tinha deixado sem o pouco ar que ficava nos pulmões. Rodaram várias vezes pelo chão, e Sadie bateu a câmara e deu com ela na cabeça. Ao receber o golpe, ele soltou um grunhido de surpresa e agarrou seus braços, que não deixaram de mover-se enquanto seguiam dando voltas.

   Por fim se detiveram. Ele ficou em cima, segurando seus pulsos sobre a cabeça e esmagando as costas contra o chão… Sadie nunca sentira tanto medo em sua vida.

     Dispôs-se gritar de verdade, mas não pôde emitir nenhum som. Então empurrou o chão com os ombros e tentou tirar aquele homem de cima de uma sacudida, ao mesmo tempo em que ficava a dar chutes.

     Nesse momento ele trocou de postura: de estar sentado sobre ela passou a estender-se em cima e a apanhar as pernas com as suas.

     Imediatamente Sadie ficou quieta. Aquilo ia de mal em pior: agora tinha a um louco nu em cima… E ela usava shorts.

     Meu Deus! Agora que o via tão de perto já não era um semideus: era um deus feito, talvez se tratasse do Adonis. Seus amplos ombros e seu peito extraordinariamente largo tampavam a luz do sol, e seu quente fôlego roçava a face. Sentia cada centímetro de suas musculosas pernas contra as suas. E, além disso, notava algo… Outra coisa tocando a coxa nua; algo duro…

     Excitou-se; bem pela emoção da perseguição, pela sugestiva postura dos dois ou pelo que pensava lhe fazer… E nesse momento Sadie já não quis gritar; quis desmaiar.

     Mas o que fez foi fechar os olhos para não ter que ver seu triunfante e masculino rosto. Por que não se movia?

     Ao abrir os olhos de novo, encontrou-o com a vista cravada em suas mãos, que seguia mantendo por cima de sua cabeça. Imediatamente, ela abriu a mão esquerda e deixou cair a câmara ao chão; entretanto, ele continuou olhando um pouco situado por cima de sua cabeça.

     Esticou a mão e puxou a luva que cobria a mão direita de Sadie, mas ela a fechou em um punho para impedir que a tirasse. Diante aquele momentâneo obstáculo, o homem se centrou então em sua face.

     Ela voltou a cabeça para um lado.

     Ele puxou do queixo para que voltasse a olhá-lo de frente e depois, com suavidade, passou o polegar pelo lábio inferior sem deixar de observá-la, como se o fascinasse.

     Ai, Deus. Ia beijá-la?

     Devagar, o dedo desceu pela sua face e o queixo até o pescoço, e Sadie sentiu que tocava a abertura da blusa. Então se retorceu, frenética, e tentou morder o braço que mantinha as mãos sobre a cabeça.

     Nesse instante ele deixou cair toda a força de seu peso sobre ela, e a Sadie teve trabalho para respirar. Nossa… Não se tinha dado conta de que ele estivesse contendo-se um pouco. Ficou quieta, e de novo ele se levantou apenas para lhe permitir recuperar a respiração.

     Seus olhares se encontraram.

     A água do lago que gotejava do comprido cabelo loiro do homem e caía sobre o queixo e a garganta, e o pesado objeto que lhe pendurava do pescoço se aconchegava entre seus seios, provocando uma perturbadora sensação que descia até chegar à boca do estômago. Pouco a pouco, Sadie sentiu que sua roupa absorvia o suor dele; notou o toque do pêlo das peludas pernas contra as suas, o empurrão de seu peito a cada respiração… O calor de seu corpo a abrasava, até o ponto de que não conseguia reunir umidade suficiente na boca para falar.

     Embora tampouco lhe ocorresse nada que dizer a semelhante bruto.

     Como se percebesse seu desconforto, o homem esboçou devagar um meio sorriso, e seu olhar se separou do dela e retornou a sua mão direita. Desta vez Sadie não pôde evitar que tirasse a luva; fechou a mão, nua já, em um punho e sentiu que a face avermelhava de vergonha.

     Isso a enfureceu. Por que tinha que lhe importar que aquele homem a achasse repugnante? Talvez sua fealdade a ajudasse a salvar-se.

     De repente, ainda sentado escarranchado sobre ela, aquele desconhecido se incorporou e soltou seus pulsos. Instintivamente, Sadie se apressou a baixar a torcida roupa para tampar o estômago, mas sua mão tocou suas genitais. Com um grito afogado de consternação, Sadie deu uma sacudida e escondeu na camisa a mão coberta de cicatrizes.

     O bruto sorriu com expressão presunçosa, enquanto seus olhos cor verde selva cintilavam por estar lhe dando um susto de morte.

     Maldição, por que não falava?

     Nesse momento ele se inclinou para frente. Sadie ficou imóvel, esperando que a beijasse, mas ele se limitou a recolher a câmara, e com cuidado levantou o botão de rebobinamento e a abriu. Não foi tão suave, entretanto, ao arrancar o carretel. Depois atirou o filme velado e a câmara no chão, ao lado deles.

     A seguir abriu a mochila e derrubou seu conteúdo. Bisbilhotou no desastre que tinha feito e encontrou o GPS portátil; deu-lhe a volta, pulsou vários botões e voltou a atirá-lo no chão. Depois agarrou o celular, abriu-o de repente e em seguida o desprezou como se fosse lixo.

     Depois agarrou o cilindro laranja de fita de agrimensor.

     Durante vários segundos cravou a vista nele e depois ficou a lhe dar voltas na mão, enquanto passeava o olhar da fita para ela. Então tirou uma parte ao redor de um metro, puxou com as mãos até rompê-lo pela metade e deixou cair ambas as partes ao chão junto ao GPS e ao celular.

     Depois agarrou o pequeno cilindro de fita seladora que ela utilizava para as reparações de urgência.

     Mais de uma vez Sadie tinha ouvido que, freqüentemente, as vítimas de um crime morriam por suas próprias armas; de repente, compreendeu o que significava aquilo ao ver que o homem cortava uma parte da fita adesiva e lhe agarrava os pulsos. Então se deteve um momento quando viu as cicatrizes de oito anos de antigüidade que tinha no pulso direito e na palma da mão.

     Voltou a lhe passar a luva, embora Sadie tivesse trabalho para colocá-la, um incontrolável tremor lhe dificultava a tarefa. Além disso, ele seguia sentado sobre ela, perturbadoramente nu e sem pronunciar nenhuma palavra.

   Depois que acabou de colocar a luva, o desconhecido tomou suas mãos e as atou juntas com a fita adesiva. Depois baixou, deslizando-se por seu corpo e começou a lhe agarrar as pernas.

     Nesse momento Sadie lhe deu um chute no estômago, o bastante forte para fazê-lo soltar um grunhido, e depois rodou, ficou de pé como pôde e pôs-se a correr. Não tinha transbordado a altura de sua câmara quando ele a agarrou pelos tornozelos e puxou ela até fazê-la cair de novo no chão, desta vez de cara. Sadie olhou por cima do ombro enquanto enrolava a fita adesiva em suas pernas.

     O maldito louco estava sorrindo outra vez.

     Ela voltou a espernear com os pés atados.

     Ele deu um tapa em seu traseiro.

     Sadie fechou os olhos, apertou os dentes e afundou a face nos braços. Meu Deus, Adonis era um bruto sádico!

     De repente, um assobio forte e agudo cortou o ar; ela estremeceu e voltou de repente a cabeça para ver o que ele fazia.

     Estaria chamando um amigo?

     Olhou o conteúdo de sua mochila esparso pelo chão. Onde estava sua faca? Necessitava algo para defender-se, uma arma… Sem deixar de comprovar que ele seguia olhando em direção ao bosque, atento à espera que chegasse alguém, Sadie rodou até aproximar-se a um grupo de jovens pinheiros. Uma vez ali, encontrou um ramo baixo desprovido de casca e serpenteou para incorporar-se junto a ela. Quando voltou a elevar a vista, o encontrou olhando-a por cima do ombro, sorrindo ainda; não se preocupava absolutamente que fosse chegar longe, atada como um peru preparado para que o cozinhassem.

     Tá! Pois aquele peru não ia se meter na sua caçarola sem lutar.

     O homem se voltou de novo e assobiou outra vez; Sadie aproveitou para partir o galho ao mesmo tempo, de modo que a chamada ocultou o estalo. Rapidamente, meteu a afiada varinha sob o braço.

     Nesse instante o chão começou a retumbar. Ao princípio foi um som débil, mas pouco a pouco foi cobrando volume à medida que se aproximava, até converter-se em um trovão. Um enorme cavalo, completamente negro, apareceu de repente galopando pelo bosque e se deteve com suavidade apenas a meio metro do homem. Sadie teve que tampar a face para proteger-se da terra e as pequenas pedras que levantou ao parar.

     Um cavalo?

     Santa Mãe de Deus! Aquele bruto tinha um cavalo?

     Então Sadie recordou outra coisa: que uma vítima não devia deixar que seu agressor a mudasse de lugar; esteve a ponto de soltar um bufido de desdém diante o absurdo de uma advertência tão inútil. A que lugar mais afastado que aquele poderia levá-la?

   O cavalo era o maior animal de sua espécie que tinha visto. No lombo levava uma cela de aspecto estranho, e atada à cadeira ia um fardo de roupa, uma mochila e um comprido pau envolto em couro, que devia ser uma vara de pescar.

     Depois de jogar um olhar quase despreocupado para trás para assegurar-se de que seguia ali, o homem deu uns tapinhas a seu inquieto cavalo e, de um puxão, tirou a roupa da cela. Depois deu a volta para ficar de cara a ela e começou a vestir-se.

     Aquele tolo não tinha vergonha.

     Uma vez vestido, tirou da mochila umas meias três-quartos e umas botas, aproximou-se e se sentou junto a ela.

     Nesse momento Sadie chegou à conclusão de que aquele homem dava o mesmo medo vestido de tudo; na verdade, parecia maior ainda. Ainda calado como um mímico, algo que de verdade começava a tirá-la do serio, limpou os pés e se calçou.

     Sadie passou por cima o fato de que tampouco ela tinha sido precisamente muito faladora; claro que ela era a vítima e tinha direito a estar muda de espanto.

     Acabada a tarefa, o bárbaro se levantou, rodeou-lhe a cintura com as mãos e a elevou até deixá-la de pé diante dele. Então Sadie tirou o pau e o golpeou no centro do peito, mas o estranho objeto que levava a pescoço desviou o golpe e permitiu que lhe arrebatasse o pau das mãos. Com seus olhos cor verde selva, agora levemente risonhos cravados nela, partiu a vara pela metade e a atirou ao chão. Depois se agachou e colocou Sadie no ombro, que esperneou e se retorceu como se a vida dependesse disso.

     E então, por fim, gritou a plenos pulmões.

     Seu agressor ficou tão surpreso que a deixou cair no chão como se fosse um saco de farinha bichada e tampou os ouvidos; inclusive o cavalo retrocedeu alguns passos e meneou a cabeça, como se o grito também incomodasse a seus eqüinos ouvidos. Enquanto isso, Sadie colocou os dedos sob a fita adesiva que lhe atava as pernas.

     — Sou bode! — Mugiu, contente consigo mesma por ter recuperado a voz. — Suma daqui antes que o faça migalhas!

     Tampando ainda os ouvidos, o homem ficou ali sem mais, olhando-a de cima a baixo; logo, depois de menear levemente a cabeça, voltou-se e, com toda tranqüilidade, aproximou-se do cavalo. Desatou a vara de pescar da cadeira e a tirou da capa de couro.

     Nesse momento Sadie fechou a boca de repente. Aquilo não era uma vara de pescar: era uma maldita espada, grande e de aspecto aterrador.

     Esperneando, retrocedeu tão rápido como pôde até se chocar contra uma árvore, enquanto o homem se aproximava, olhando-a com os olhos entreabertos; deteve-se quando suas botas lhe tocaram os pés.

     Foi então que Sadie se deu conta de que o joguinho de gato e rato que se traziam tinha acabado. Fechou os olhos e esperou.

     Mas em vez da espetada na pele que esperava, sentiu a boca dele, quente e suave, sobre a sua.

     Abriu os olhos e se encontrou frente a uns profundos olhos verdes preciosos. O gigante elevou a mão, tomou um lado de sua face e apertou mais o beijo; seus doces lábios a obrigavam a responder.

     Sadie o separou de um empurrão.

     Ao mesmo tempo em que caía de costas, ele se pôs a rir, e sua risada, um profundo e escandaloso estrondo, ressoou por todo o bosque. Depois ficou de pé, sacudiu a roupa, deu a volta e se dirigiu de novo para o cavalo. Ao vê-lo afastar-se com aquela larga espada que sustentava na mão de forma tão indiferente e aquele passo longo quase presumido, um estremecimento arrepiou a pele de Sadie. Com elegância natural, ele saltou até a cela; depois aproximou de cavalo e, com a ponta da espada, cortou a fita seladora que lhe atava as mãos.

     — Vá de olho aberto, gràineag, até que nos vejamos de novo — Sussurrou ele.

     Dito isso, saudou-a com a cabeça, fez girar o cavalo e se afastou com estrépito em direção ao lago.

     Sadie ficou sentada em um aturdido silêncio enquanto via como o cavalo e o cavaleiro desapareciam no bosque. Deus, quem era aquele lunático?

     E que palavra tinha usado? Acabava de lhe jogar uma maldição?

     E o que queria dizer com o que “até que nos vejamos de novo”?

     Diabos, nesta vida não voltariam a ver-se.

     Ao menos até que ela levasse um revólver.

     Sadie demorou uns dez minutos em conseguir mover-se, e o fez à força de vontade; seguia tremendo tanto que teve que apoiar-se em uma árvore para ficar de pé. Enquanto se agarrava ao ramo e lutava por não cair, sacudiu a roupa e aproveitou para comprovar que de verdade estava bem.

     Depois empreendeu o caminho de volta para sua cabana.

     Pela primeira vez em toda uma vida de crescer naquelas montanhas, deu-se conta de quão vaidosa era ao pensar que sabia proteger-se só de todos os perigos que havia no bosque. Para quando chegou à cabana levava uma boa irritação, mas bem dirigido contra si mesma que contra ninguém.

     Podiam tê-la violado ou inclusive assassinado… Mas em vez disso, a tinha açoitado um gigante nu, muito bonito para ser de verdade. Não estava zangado, nem sequer se tinha mostrado muito violento; só estava decidido a lhe dar uma lição.

     E o tinha conseguido; mais do que Sadie estava disposta a admitir.

     Apesar de seu aborrecimento por haver ficado em uma situação tão vulnerável, não pôde evitar recordar a sensação do firme corpo daquele homem contra o seu e o roce e o sabor, tão sensuais, de seus lábios.

     Além disso, não sabia dizer se seu tremor era um resto do medo inicial ou a consciência de que o encontro lhe tinha parecido emocionante.

     Subiu correndo os degraus e abriu de um empurrão a porta de sua pequena cabana; depois se apressou a fechar todas as venezianas de madeira e a lhes jogar bem o ferrolho, com o que o interior ficou sumido na escuridão. A seguir pôs papel e lenha miúda na enorme estufa que havia no centro da habitação e acendeu um fogo. Deixou aberta a porta da estufa, sentou-se no chão diante dela e alargou as mãos para o calor.

     Nesse instante Ping, sua gata listrada cinza, saiu silenciosamente de debaixo da cama, bocejando e espreguiçando enquanto andava, e saltou a seu colo. Logo, sem deixar de emitir um forte ronrono capaz de despertar a um morto, estirou-se e lhe deu uma áspera lambida na bochecha. Sadie a apertou contra seu peito e afundou a face em seu pelo.

     — Ai, Ping — Sussurrou contra seu retumbante corpinho. — Não vai acreditar o que me ocorreu hoje.

     Seguia tremendo. Seu pequeno mundo, ingenuamente seguro, parecia em pedacinhos; tinha-o destroçado o duro corpo de um homem que tinha tido em suas mãos a vida dela.

     Sadie já tinha uma opinião bastante mal dos homens… De todos, exceto de seu pai. Em seus vinte e sete anos nunca tinha mantido uma relação que durasse mais de dois meses, e isso antes que o fogo a marcasse com cicatrizes em mais de um sentido. Claro que até então nenhum homem lhe tinha dado medo de verdade.

     Já não voltaria a ir a um encontro sem pensar que, embora fosse alta e forte, não era invencível.

     Nem sequer sua fealdade a protegia.

     Ou a teria protegido, depois de tudo? Acaso aquele homem não a tinha soltado porque tinha sentido pena dela?

     Nossa, isso doía.

     Nesse momento, sem lógica alguma, zangou-se porque aquele homem, pecadoramente bonito, possivelmente a tivesse solto por pena.

     Deixou de acariciar Ping e levou a mão aos lábios. Mas, sim, a beijara… Mas como, depois de ver as feias cicatrizes de sua mão. Teria sido um beijo de compaixão?

     OH, esses eram os piores: os beijinhos rápidos que a faziam ver que era agradável, embora não em um sentido apaixonado. Tinha recebido mais de um nos últimos oito anos.

     Ping protestou por sua falta de afeto dando topadas no braço; com gesto distraído, Sadie começou a acariciar à gata outra vez enquanto tentava comparar o beijo que tinha recebido aquele dia com aqueles beijinhos compassivos.

     Não, o tipo não lhe tinha pena: estava divertindo-se muito.

     Ou fora um beijo zombador?

     Nesse caso, seria igualmente mal; porque, se fosse de compaixão ou de brincadeira, se o beijo o dava um Adonis, as duas coisas resultavam igual de humilhantes.

 

     Quase anoitecia quando Morgan guiou a seu cavalo Gràdhag através da mágica bruma do cânion. Soltou uma risadinha ao recordar a cara da mulher ao dar-se conta de que ele ia bem atrás, quando tentou acertá-lo com o pau e ao afastá-lo de um empurrão quando ele a beijou.

     Simplesmente, não podia deixar de sorrir; se soubesse que o plantador de fitas que há dez semanas rondava por seu vale era uma mulher tão bonita, teria dedicado mais tempo a assustá-la e menos a construir a casa.

     Bom, aquele dia sim a tinha assustado bem; certamente demoraria bastante em encontrar mais fitas por aí.

     Seu sorriso não demorou para desvanecer-se quando, ao entrar na clareira, viu o druida sentado nos degraus da casa recém construída. Ignorando-o, levou o cavalo ao passo até o pequeno estábulo e desmontou. Daar se aproximou, tomou o animal pelas rédeas e lhe deu uma cenoura.

     Morgan meneou a cabeça. Gràdhag era o cavalo de combate mais feroz que um guerreiro podia desejar… Mas na presença do druida se voltava tão dócil como um gatinho recém-nascido.

     — Bom, o que tem feito? — Perguntou o sacerdote sem levantar a vista de sua tarefa.

     — O que o faz pensar que fiz algo? Sempre nado pelas manhãs.

     — Estava sorrindo como um tolo ao chegar, e isso me indica que algo te agrada muitíssimo. — Daar inclinou a cabeça e o olhou com os olhos entrecerrados. — E também está acostumado a significar que tramou uma diabrura. Como fez esse corte na cabeça?

   Morgan levou a mão ao cortezinho da testa e depois começou a desencilhar Gràdhag.

     — Sorrio, ancião, porque acabo de fazer um bom desastre nos planos de construção do parque.

     Daar o olhou com expressão receosa enquanto dava outra cenoura ao cavalo.

     — Como?

     — Afugentando a plantadora de fitas — Morgan soltou uma nova risadinha. — Provavelmente não tenha parado de correr ainda, e é melhor não se detém até chegar a Pine Creek. Essa demorará para voltar para este vale.

     — Essa?

     Morgan jogou a cela sobre o corrimão da cavalariça, agarrou uma escova e se dispôs a escovar o cavalo.

     — A que esteve marcando com fitas o vale é uma mulher; encontrei o cilindro de fita laranja em sua bolsa.

     — E como sabe o que levava em sua bolsa?

     Morgan deixou de escovar.

     — Porque olhei dentro.

     Daar olhou com intenção o corte da testa.

     — E a mulher te viu?

     De novo, Morgan exibiu um amplo sorriso.

     — Sim, nesse momento eu estava sentado em cima dela.

     — Sentado sobre ela? — O sacerdote abriu mais os olhos. — Mas o que foi que fez?

     Morgan atirou a escova no cubo e tirou do druida as rédeas do Gràdhag. Logo colocou ao cavalo na cavalariça e lhe abriu um fardo de feno.

     — Me diga, o que fez a ela?

     — Assustei-a, nada mais — respondeu. Deu a volta para ficar de cara ao ancião sacerdote. — A cacei e a assustei tanto que nem sequer podia falar.

     — Assustou uma inocente mulher que encontrou nos bosques? Está louco, Morgan? Isso é imperdoável, além de ilegal.

     — Essa mulher não é inocente, é a que está preparando o parque no vale.

     — Assim, então, pegou-a atando fitas às árvores?

     — Bem… Não — Respondeu Morgan, enquanto caminhava para a casa.

     Sua casa era um robusto edifício de dois andares de altura, feita de troncos que ele mesmo tinha cortado do bosque de ao redor e tinha serrilhado no povoado. Como não era muito grande, só tinha demorado dois meses em construí-la com ajuda de Callum. Tinha um alpendre que abrangia toda a fachada e várias janelas grandes que davam ao vale do rio Prospect, o qual brindava uma panorâmica esplêndida quando a neblina não era muito densa.

     Morgan subiu ao alpendre, abriu a porta e entrou em um amplo ambiente que servia tanto de sala de estar como de cozinha.

     Daar o seguiu, pisando em seus calcanhares; depois se aproximou da geladeira portátil que estava sobre a bancada e pegou uma lata de refrigerante.

     — Então, o que te impulsionou a persegui-la? — Perguntou.

     Morgan observou que o ancião lutava por abrir a tampa da lata; com um suspiro de resignação, aproximou-se, tirou-lhe a lata, abriu-a e voltou a dar-lhe.

— Tirou uma foto minha — Respondeu a ele. — Estava escondida entre os arbustos com sua câmara e me fez uma foto enquanto eu estava em uma rocha em metade do lago.

     Daar afastou a lata da boca.

     — Suponho que estaria nadando nu, como de costume, não?

     — Sim. — Morgan recuperou seu amplo sorriso. — Certamente, terá algo com o que sonhar esta noite.

     — De modo que a perseguiu pelas fotografias?

     — Sim.

     — Nu.

     — Bom, não me detive procurar minha roupa, ancião… E, além disso, essa mulher corre bastante rápido. Juro-lhe que as pernas chegam às orelhas.

     Daar se sentou e pôs o refrigerante sobre a formosa mesa de arce que tinha diante de si. Começou a dar voltas à lata enquanto, com gesto distraído, observava como girava a etiqueta. Por sua parte, Morgan, que não sabia se sua história o tinha zangado ou confundido, foi à geladeira e tirou uma lata de cerveja sem álcool. Apoiou-se na bancada, abriu-a e tomou um comprido trago olhando fixamente as costas do druida.

     — Que aspecto tinha essa mulher? — Perguntou Daar sem voltar-se. — De que cor eram seus olhos e seu cabelo?

     Morgan franziu o cenho para ouvir as perguntas.

     — Tinha os olhos azuis. — Disse, como se o detalhe carecesse de importância; não ia revelar ao sacerdote quanto o tinham cativado os olhos daquela mulher ao vê-los de perto. — Que tem a cor? Tinha a pele bronzeada, o cabelo loiro, os olhos azuis, e era tão alta como um homem.

     Daar se deu a volta no assento para olhá-lo de frente.

     — O cabelo loiro? Loiro avermelhado ou loiro amarelo? — Perguntou ele. — Recorda ter visto essa cor antes de hoje?

   Morgan se perguntou aonde queria chegar o ancião. A mulher era loira, maldição; há muita gente com o cabelo claro e os olhos azuis. Sua cunhada tinha os olhos azuis. Diabos, até o velho sacerdote tinha os olhos azuis.

     Embora no cabelo da plantadora de fitas sim que havia um marcado brilho cor mel, e em sua pele impecável, um matiz dourado que parecia um beijo do sol.

     Bom, uma pele impecável menos pelas cicatrizes que tinha em uma mão e as outras que viu aparecer pelo lado de sua cintura e que procediam das costas.

     De repente Morgan se endireitou e se separou da bancada. Jogando um olhar feroz ao sacerdote, disse:

     — Não é o mesmo. Essa mulher não é a luz amarela que vimos na visão: seu trabalho vai destruir o cânion.

     — Viu se a rodeava o negrume?

     — Claro que não; eu não pratico sua magia. Mas sim, tentou me matar, tentou me atravessar o coração com uma estaca.

     Daar lhe deu uma olhada assassina.

     — Não a machucou, não é?

     Morgan lhe devolveu o olhar.

     — Não, a menos que alguém possa morrer de medo.

     O olhar assassino do velho se escureceu. Então Morgan soltou um bufo de frustração e esfregou o pescoço.

     — Deixei-a sã e salva, ancião, embora espere que o bastante assustada para que se vá do vale e não retorne mais.

     Dando um suspiro de cansaço, Daar meneou a cabeça, voltou-se para a mesa e começou a brincar outra vez com a lata de refrigerante.

   — Ai, guerreiro — disse. — Talvez tenha acabado de afugentar o único bem que viu este lugar em mais de oitenta anos.

     — Explique-se. — Exigiu Morgan, ao tempo que se aproximava e se sentava à mesa. — Como pode ser bom algo que tenha a ver com o parque?

     — Você já reivindicou esta terra; se o parque não incluir seu cânion, que mal faz?

     — Porque os parques não põem uma cerca ao redor. — Replicou Morgan. — As pessoas passearão, e quando virem a catarata… E a magia, nada os manterá afastados daqui.

     O ancião voltou a suspirar.

     — Isso é certo. Mas deve haver algum modo de que tanto você como este parque existam em harmonia.

     — Já pensei nisso. — Morgan apoiou os braços na mesa. — Fiz com que nosso advogado consultasse o registro da propriedade no tribunal; as terras do vale seguem sendo de muitos proprietários, e ainda não se uniram para fundar o parque. E se eu comprasse este extremo sul do vale? Isso manteria às pessoas a quilômetros de distância.

     — Comprá-lo com o que?

     Morgan estava a semanas pensando seu plano, e a emoção de dizê-lo em voz alta pela primeira vez o animou. Inclinou-se um pouco mais.

     — Você me poria em contato com a casa de leilões onde vendeu as espadas do Ian e Callum, e várias de nossas armas.

     — Você não vai vender sua espada! Seu irmão te mataria!

     — Não, morreria antes que me separar dela. Mas minha adaga é um presente de meu pai. Tem quase nove séculos já e está adornada com pedras preciosas; proporcionaria dinheiro suficiente para comprar a terra.

     Daar se recostou na cadeira e acariciou a barba. Esteve sem falar um minuto inteiro.

     Morgan se impacientou.

     — No que pensa, ancião? — Perguntou por fim.

     — Penso que talvez funcione, se seu irmão estiver de acordo.

     Morgan ficou surpreso.

     — O que tem que ver Grei com isto?

     — Segue sendo seu laird.

     Morgan descartou o comentário com um gesto da mão.

     — Isso não significa nada hoje em dia, em particular neste país; já não é mais que um título oco.

     Então tocou a Daar surpreender-se.

     — Caramba, caramba… Como você gosta de ser fiel aos antigos costumes, Morgan MacKeage, e adotar os novos só quando te convém… Se é que aprecia sua pele, não comente essas opiniões com seu irmão. Grei segue decidido a devolver a este clã o poder que teve no passado.

     Morgan mostrou um amplo sorriso.

     — Com filhas?

     Daar assentiu.

     — Sim. E também com os filhos que lhe dará você, guerreiro.

     — Eu não vou ter filhos! — Espetou Morgan, zangado.

     — Às vezes os filhos aparecem sem avisar. — Repôs o ancião sacerdote com um meio sorriso de satisfação. — Às vezes desejam tanto nascer que penetram às escondidas quando ninguém os vê… Ou acaso pretende levar uma vida de monge o resto de seus dias?

   — Pode-se evitar os filhos.

     — Sim… — Disse Daar — Mas às vezes não, por mais cuidado que se tenha. Não é nada fácil enfrentar-se com a mãe natureza quando ela quer que algo aconteça.

     Morgan se levantou e pegou outra cerveja. Não gostava do que dizia o velho druida. Ele não queria filhos.

     Claro que, por outro lado, tampouco gostava de muito a vida de celibatário que levava agora.

     De repente, sem querer, em sua cabeça apareceu a visão de uma loira de atraentes pernas e olhos azuis. Quando estava deitado em cima dela se excitou, consciente de que só tinha que usar os joelhos para lhe separar as pernas… Ah, sim, não importaria sentir aquelas largas pernas rodeando sua cintura.

     Diabos, desejava a aquela mulher.

     Voltou-se para olhar pela janela e ajustou as calças. Maldição, queria que ela se fosse do vale.

     Mas também queria vê-la outra vez.

     — Há algo que não tem lógica em tudo isto — Disse Daar, da mesa.

     Morgan seguiu olhando pela janela e desejou com todas suas forças que desaparecessem suas urgências masculinas.

     — O que? — Perguntou com brutalidade.

     — Me perguntou por que começaram a trabalhar em um parque se nem sequer são donos da terra ainda.

     Esse comentário desviou o fio dos pensamentos de Morgan, que deu a volta.

     — Eu me perguntei o mesmo ao descobrir que o vale é de vários donos. — Reconheceu ele. — A maior parte pertence a duas fábricas de papel, mas o resto pertence a outros cinco indivíduos.

     Daar se voltou no assento para olhá-lo de frente.

     — Seu advogado pode descobrir quem vai construir este parque? Será o governo ou um grupo de particulares?

     Morgan assentiu com a cabeça.

     — Direi que o investigue — Disse. — Bom, vai me dar o nome dessa casa de leilões?

     — Não fala sério sobre vender a adaga, não? Foi um presente de seu pai.

     — E a terra que comprar com ela se transformará em sua herança: é de metal e pedras, ancião. Vender a adaga para adquirir propriedades só reforçará a lembrança que tenho de meu pai.

     — Falando de Duncan, viu Faol ultimamente? — Perguntou Daar.

     Morgan teve que reajustar suas idéias. Como tinham passado de Duncan ao lobo?

     — Sim. Essa fera leva investigando por aqui sete semanas. Fixou-se nas marcas de arranhões que tem a porta? — Perguntou, com uma sombra de irritação na voz; aquele maldito animal quase lhe tinha destroçado a carpintaria.

     Mas o sacerdote não voltou a falar mais do lobo. Levantou-se e saiu ao alpendre; o tamborilar da bengala marcava o ritmo de seus passos.

     — Quero que me leve para casa, e não nesse maldito inseto de andar brusco ao que chama “mascote”. — Se queixou, embora Morgan soubesse que compartilhava seu carinho pelo animal — Quero ir no quad.

     Morgan saiu atrás dele. Ao velho druida fascinava passear em máquinas, fossem caminhonetes, pisa neves, quads ou inclusive o teleférico que subia a montanha TarStone. De maio a outubro, exigia ir no remonte ao menos três vezes por semana, mas quando chegavam as neves, deixava-o; em sua opinião, só os idiotas montavam no inverno, com um tempo gélido e uns paus presos aos pés.

     Depois de acomodá-lo na parte traseira do quad, Morgan subiu ao assento da frente, mas antes de pôr em marcha o motor, o ancião lhe deu um golpezinho nas costas com a bengala.

     — Fez um trabalho estupendo com a casa — Disse quando Morgan se voltou para ver o que queria. — Qualquer mulher se sentiria orgulhosa de chamá-la lar.

     O escocês voltou a dar a volta, conectou o aceso e o motor afogou o murmúrio de seu desacordo. Não ia levar nenhuma mulher ali. Antes se congelaria muito o inferno.

 

     Esgotada tanto mental como fisicamente pela corrida daquela tarde, enquanto tentava deixar atrás a um louco nu e muito bonito, Sadie passou uma noite inquieta encerrada em sua cabana. Não parou de dar voltas na cama enquanto os pesadelos desfilavam por sua mente. Primeiro se viu presa no interior de uma montanha de pura cor verde que resplandecia de um ódio entristecedor. Depois corria sem rumo por entre um torvelinho de vertiginosa bruma negra que sorvia até a última gota de energia dos músculos. E, por último, estava apanhada dentro de uma casa ardendo. Uma aparição que levava uma espada e montava a cavalo cortava a única saída e ria dela, enquanto ela se encolhia de medo em um canto de seu dormitório cheio de fumaça.

     Sadie despertou com um grito encaixado na garganta. Nesse momento o estrondo de um trovão sacudiu a cabana com força, ao mesmo tempo em que o brilho do relâmpago abria caminho pelas frestas das venezianas. A vibração fez lascas a madeira e pedacinhos o vidro de uma das janelas do outro lado do quarto, e a chuva entrou em torrentes na cabana e empapou imediatamente tudo o que tocava.

     Sadie se pôs a lutar com o lençol que tinha enredado no corpo, e, como uma bala, Ping saltou da cama. O estampido de outro trovão e o branco cegador de outro raio afogaram seu grunhido de desgosto. Enquanto a gata desaparecia sob a mesa, Sadie correu para agarrar a veneziana que batia solta e voltou a fechá-la bem.

     Com o coração lhe golpeando ainda mais forte que a chuva sobre o telhado, retrocedeu devagar até que seus joelhos se dobraram contra uma cadeira. Ao sentar-se, estremeceu: outro trovão retumbou de maneira ensurdecedora. Então apoiou os cotovelos nos joelhos, deixou cair a cabeça e se obrigou a inspirar fundo para tranqüilizar-se. Ainda inclinada, colocou uma mão no peito e apelou a toda sua força de vontade para reduzir a marcha de seu coração antes que lhe partisse uma costela.

     Santo céu, que tormenta! A luz dos relâmpagos parecia capaz de transpassar as paredes, e seus brilhos eram contínuos. Um raio bateu em uma árvore próxima, e Sadie ouviu o chiado da seiva fervendo. E ali, sentada na escuridão que só rompiam as fortes chamas de luz, abraçada a seu empapado e tremente corpo, ficou esperando a que passasse a tormenta.

     Ao cabo do que pareceu uma eternidade, a chuva afrouxou até converter-se em garoa e os trovões se enfraqueceram. Então Ping tirou Sadie de seu transe ao saltar em seu colo e obrigá-la a abrir os braços para agarrá-la.

     Enquanto acariciava à gata atrás das orelhas, sussurrou:

     — Ai, Ping Pong, assustou-se com os trovões?

     Como resposta, a gata ronronou e depois se mudou de seu colo à mesa; uma vez ali, sentou-se e em seguida começou a lavar-se. Sadie deu um suspiro. A noite anterior, ao apagar o fogo da estufa, simplesmente se tinha metido na cama, ainda vestida de tudo, e tinha se envolvido nos lençóis para conciliar um sonho intranqüilo… E agora a tormenta despertava de madrugada.

     Entretanto, a luz de alerta trovejar que se afastava produziu nela um efeito surpreendentemente tranqüilizador. Pouco a pouco, suas energias foram recuperando o equilíbrio, e por fim os acontecimentos do dia anterior desapareceram de sua consciência imediata.

     Embora tivesse a impressão de que nunca iria esquecer quão vulnerável havia se sentido, a tormenta da madrugada também serviu para recordar que neste mundo todo tinha seus riscos: da vela que se deixa acesa em um estúdio e provoca um incêndio doméstico mortal, à invasão da intimidade de um desconhecido, que o incita à violência.

     Bom, em realidade o homem dos olhos verdes não se comportou de forma violenta, não? O certo era que não lhe tinha feito dano; só conseguiu seu objetivo de dar um susto de morte e lhe ensinar, além disso, uma rápida lição que não esqueceria com facilidade.

     Sim, o desconhecido não tinha pretendido lhe fazer dano físico; agora o compreendia. De fato, o que haveria feito ela se tivesse descoberto a alguém tirando fotos suas?

     Talvez tivesse sido menos bondosa.

     Quando se dispunha a levantar-se, deu um pulo ao sentir dor nos pés. Então se apressou a levantar um até o joelho e, ao ver o sangue, lançou um olhar às partes de vidro que cobriam o chão diante da janela quebrada. Cortou-se ao fechar a veneziana. Olhou o outro pé.

     Nossa, maldição, sangravam os dois.

     Coxeando, foi até a zona da cozinha, agarrou o estojo de primeiro socorros e depois retornou coxeando à mesa. Depois de limpar todos os pequenos cortes, examinou bem os pés, verificando se por acaso tinha ficado escondido algum caquinho de vidro. Satisfeita ao não ver nenhum, e encantada de que nenhum corte era tão profundo para precisar pontos de sutura, enfaixou os pés e cobriu as ataduras com grossas meias três-quartos de lã.

     Depois se levantou para comprovar sua obra.

     A pomada ajudava, assim como a almofadinha que formavam as ataduras e as meias três-quartos. Bem seguras com as botas, as pequenas feridas nem sequer a fariam andar mais devagar.

     De caminho por volta do banheiro que havia na parte traseira da cabana, tirou a roupa e a jogou na desarrumada cama ao passar. Logo comprovou o nível de água no depósito de acima e decidiu que ficava justo o suficiente para uma lavagem morna com a esponja.

     Quando se voltava para procurar uma toalha, viu-se no espelho e esteve a ponto de gritar. A mulher que lhe devolvia o olhar tinha o cabelo feito um matagal enredado, por entre a que apareciam inclusive palitos e agulhas de pinheiro. Tinha terra na testa e uma mancha de sangue seca na bochecha, e faltava um dos pequenos brincos de ouro.

     E depois estavam as cicatrizes, sempre as cicatrizes. Brotavam pela parte de acima do ombro direito, seguiam descendo pelas costas e depois rodeavam o lado esquerdo da cintura, formando uma desenquadrada colcha feita de recortes costurados em relevo.

     Levantou a mão direita, deu a volta e olhou as desagradáveis cicatrize que tinha na palma. Quando a viga em chamas esteve a ponto de esmagá-la, tinha-a empurrado freneticamente com a mão direita, tentando soltar-se.

     Fazia três anos que Frank Quill tinha morrido com as mãos cheias de cicatrizes… Eram o testemunho de sua força e de sua resolução por sair da casa em chamas levando, ao menos, uma de suas filhas.

     Sadie deixou cair a mão e se separou da imagem que a acompanhava fazia oito anos.

     Naquela noite, oito anos atrás, tinha deixado acesa no estúdio a vela com aroma a lilás. Por então, só pensava em um trapaceiro que morto há muito tempo e se chamava Jedediah Plum, no Jean Lavoie, o cozinheiro de um acampamento madeireiro, e no sonho obsessivo de ajudar a seu pai a encontrar o ouro de Plum.

     Sadie empapou a esponja na bacia de água morna e esfregou a face com energia para fazer recuar as lágrimas que ameaçavam aparecendo. Oito anos, e ainda as lembranças surgiam espontaneamente… A formosa Caroline irritada por encerrar-se com chave no estúdio do pai de ambas, em vez de sair com rapazes; Frank Quill concentrado na nova prova que reforçava sua crença de que o ouro de Plum existia de verdade… E a própria Sadie em casa, durante as férias de verão entre seu segundo e terceiro ano de universidade, igual de encantada na busca do tesouro.

     O esfregar jamais tiraria suas lembranças. O remorso não devolveria a sua irmã nem a seu pai. E, por enorme que fosse, seu sentimento de culpa nunca concederia seu maior desejo: que a filha a quem seu pai agarrou primeiro tivesse sido Caroline Quill.

     Sadie lutava diariamente para manter os demônios bem enterrados nos esconderijos de sua mente. E agora, em vez disso, dedicava todas suas energias a construir um parque em memória de Frank e de Caroline. Era muito pouco, certamente, comparado com os dias, meses e anos que levava sentindo falta da metade de sua família, mas confiava em que montar o parque lhe proporcionasse certa aparência de paz.

     Rapidamente, lavou-se e se secou; depois retornou à habitação principal da cabana e rebuscou na cômoda. Colocou uns jeans puídos, meteu pela cabeça uma regata de fina ponto de seda e a remeteu por dentro das calças. Depois de alisar as rugas até deixar a regata como se fosse uma segunda pele, que protegia suas cicatrizes, colocou por cima o sutiã e grampeou o fechamento entre seus seios. Sobre o sutiã colocou uma singela camiseta de algodão de cores vivas, de manga longa.

   Do montão de luvas que tinha acumulado ao longo dos anos, escolheu um de couro suave para a mão direita. No sótão de sua casa tinha outro montão igual metido em uma caixa, mas todos da mão esquerda; sua intenção era doar este montão de luvas sem usar a uma organização benéfica para pessoas que também tivessem cicatrizes que desejassem esconder do mundo.

     Voltou para banheiro e levou uma escova ao cabelo. Uma vez que teve eliminado todos os palitos e agulhas de pinheiro, rematou a tarefa colocando uma boina de beisebol e tirando o prendedor pela abertura da parte de atrás.

     Finalmente, passou revista a sua obra no espelho.

     Não estava mal para alguém a quem no dia anterior lhe tinham tirado dez anos de vida de um susto. Um pouco de cansaço aparecia sob uns francos olhos azuis, muito grandes para sua miúda face; um pequeno arranhão no queixo, provavelmente da resistência, e um bronzeado dourado que o verão tinha escurecido. Sadie levantou a mão esquerda nua e limpou a face, como se pudesse tirar as linhas de expressão que tinha nas comissuras dos olhos.

     Tinha que depilar as sobrancelhas.

     E também necessitava um corte de cabelo.

     Ao viver como uma monja nos bosques tinha descuidado todos aqueles rituais. Para que preocupar-se? Pelo visto, a Ping dava igual a sua companheira de quarto começasse a parecer uma indigente.

     Arrumaria o cabelo quando fosse visitar sua mãe e, de passagem, arrancaria as sobrancelhas. Voltou a olhar-se e deu um suspiro. Caramba, até compraria um pouco de maquiagem na loja.

     Sadie sabia que no momento em que entrasse em casa, sua mãe diria que já tinha organizado um encontro às cegas.

     Charlotte Quill costumava fazê-lo. Sadie a visitava todas as semanas, e quase todas as semanas um homem diferente morria por conhecê-la. Perguntava-se de onde continuaria tirando-os, sua mãe. Pine Creek tinha uma população de mil seiscentos e doze vizinhos. Estaria pondo anúncios no jornal do condado ou algo assim?

     Cinco encontros em nove semanas, e Sadie tinha dançado a impressionante quantidade de… Uma vez. E foi um baile rápido, não uma valsa, embora a verdade fosse que os detestava. Sempre tinha se considerado algo assim como uma fêmea de alce com patins: toda pernas e braços… E sem a menor idéia do que fazer com eles.

     Nenhum só daqueles tipos voltou a chamá-la, apesar de que a vários deu o número de seu celular.

     Claro que não sentia saudades; era mais alta que quatro deles, e o quinto cara, embora media uns dois centímetros e meio mais que ela, parecia tão tímido que apenas lhe estreitou a mão ao deixá-la à porta de sua casa.

     Talvez esta semana fosse diferente. Possivelmente quando fosse ao povoado, dentro de dois dias, sua mãe lhe dissesse que iam passar uma noite tranqüila em casa a sós as duas. Inclusive estava disposta a passar noite olhando álbuns de fotografias, se era o que a sua mãe gostava.

     Charlotte Quill era viciada nos álbuns de fotografias, neles conservava qualquer fotografia que houvessem feito alguma vez a sua família ou qualquer pintura escolar ou fita feita migalhas das medalhas ganhas, assim como as espertas de quadros de honra aparecidas nos jornais onde estivessem os nomes de Sadie ou Caroline; partidas de nascimento, de falecimento, certificados matrimoniais ou licenças de pesca…

     Um forte miado do Ping fez que Sadie se desse a volta; na entrada, com o focinho cheio de plumas, a gata lhe sorria de orelha a orelha.

     Sadie acudiu correndo e a pegou nos braços.

     — Não! Solta esse pássaro! Dê-me isso. — Com os dedos lhe abriu a boca à força e depois lhe apertou as costelas. — Cospe-o!

     Ping grunhiu baixo, mas deixou cair o passarinho na mão de Sadie, que deixou a gata no chão e tirou da casa o pássaro ao tempo que acariciava seu corpo inerte. Pousou-o no alto da velha manjedoura de pássaros e, em silêncio, afastou-se para observá-lo; ao cabo de uns minutos o diminuto passarinho se moveu, endireitou-se com estupidez e olhou a seu redor com aspecto aturdido. Ping se esfregou contra as pernas de Sadie, que a pagou nos braços e voltou a colocá-la na cabana.

     — Toma, coma a comida do prato. — Disse, deixando-a no alpendre. — Tenho que ir dar um passeio, mas voltarei na hora de almoçar. Então te darei comida de lata, se me prometer que não vai caçar mais hoje.

     Ping a olhou e piscou; depois elevou uma pata e começou a lavar-se. Sadie deu a volta e olhou para o bosque.

     Tinha que voltar ali esta manhã. A câmara de seu pai seguia entre aquelas árvores, empapada depois da tormenta da madrugada, e nada, nem sequer o susto do dia anterior, ia impedir que a recuperasse.

 

     Devido à dor de pés, Sadie demorou mais do normal em percorrer os quatro quilômetros e meio que havia até o lugar onde tinha deixado a mochila e a câmara de fotos; durante todo o trajeto soube que estavam seguindo-a, e agora, enquanto examinava o chão vazio onde deviam ter estado a mochila e a câmara, seguia sentindo que um silencioso olhar a observava da entupida mata.

     Não tinha medo. Sabia que não era o desconhecido do dia anterior, a não ser que o homem tivesse percorrido os quatro quilômetros e meio engatinhando.

     Não. A presença que notava justo além de sua vista tinha quatro patas; provavelmente era um lince ou uma raposa, um urso negro ou inclusive um coiote. Os ursos e os coiotes fugiam dos humanos, embora com freqüência os exemplares jovens se deixavam levar pela curiosidade mais que pelo bom senso.

     Anos atrás, Sadie e a seu pai os tinham seguido assim em várias ocasiões, e embora às vezes vislumbravam o animal que os espreitava, não ocorria com freqüência. Os animais não procuravam comida; só queriam ver o que era o que invadia seu território. Por isso Sadie ignorou dos olhos que a vigiavam. Estava muito ocupada tentando decidir o que teria acontecido a suas coisas.

     Não encontrava nem rastro por nenhum lado: nem mochila, nem GPS, nem celular, nem câmara… Nada. Nem sequer a fita adesiva com a que atara as mãos e as pernas.

     Deu vontade de chorar. Tinha perdido a câmara de seu pai, a que levava usando desde sua morte, fazia três anos… Como tinha cometido o descuido de deixá-la ali?

     E o que era mais importante, onde estaria?

     O desconhecido deveria ter retornado para levá-las, talvez tenha se mostrado clemente ao deixá-la partir, mas o mais provável é que aquele fosse o limite de sua boa vontade. Jamais voltaria a ver a câmara.

     Nesse momento um ramo de árvore estalou no bosque, a suas costas, e Sadie se voltou ao ouvir o ruído. Haveria posto nervoso ao animal ao deter-se ali? Estaria impacientando-se e queria que partisse?

     Jogou uma última olhada ao pequeno claro, mas como suas coisas não apareceram por arte de magia, deu suspiro de tristeza e se dirigiu a sua casa.

     Ao cabo de meia hora de marcha, tinha as ataduras dos pés tão enrugadas que era impossível andar. Sentou-se em um tronco caído, e justo quando se inclinava para desabotoá-las botas, viu-o.

   Em silêncio, o animal estava saindo do bosque a menos de nove metros dela.

     Sem dúvida era o maior coiote, mais esplêndido e de aspecto mais régio que já tinha visto. Seus olhos eram dois tranqüilos lagos de água verde e irisada, e o pêlo que lhe rodeava a face, compacto e cavado nas queixadas, limpava-se sobre duas orelhas grandes e atentas. Se Sadie estivesse de pé, as pontas teriam chegado à sua cintura. Suas sólidas e largas patas descansavam sobre enormes pés de largos dedos. A pelagem, densa e lisa, era da cor de cedro, salpicado de diversos matizes de cinza prateado.

     Verdadeiramente, era o animal mais formoso que já tinha visto.

     Sadie não se atreveu a mover um músculo; na realidade, quase deixou de respirar. Que fazia ali, mostrando-se diante dela? Se tivesse um grama de instinto, nenhum coiote se atreveria a aproximar-se tanto a um humano. Eram animais perseguidos, aos que se matava pela simples razão de que competiam pelos cervos que os humanos apreciavam tanto.

     Mas os coiotes não eram tão grandes… Nem tão atrevidos. E, nesse instante, lhe ocorreu que estava olhando nos olhos de um lobo.

     Em seguida descartou semelhante pensamento; era impossível: fazia mais de um século que não se viam lobos em Maine. Tinham-nos caçado até a extinção, e depois os lobos tinham sido bastante preparados como para não retornar… Até aquele momento?

     Sadie não sabia se era uma boa idéia manter um contato ocular tão direto com o animal, por medo de que fosse considerá-lo um ato agressivo… Claro que, por outra parte, ela não era tão valente para apartar o olhar.

     O lobo deu um bocejo para mostrar, com orgulho e precisão, todos e cada um de seus letais dentes, e depois se sentou sobre os quadris ao tempo que estirava as patas dianteiras. Depois, em vez de endireitar-se, ficou deitado ali, na metade do atalho, e começou a lamber as garras.

     Justo como Ping quando se aborrecia com a companhia dos humanos.

     Sadie só pôde olhá-lo de uma ponta a outra. O animal agia como se tivesse passado por ali um momento para realizar uma visita amistosa.

     Não sabia o que fazer.

     Levantava-se, simplesmente, e partia sem mais? Não, possivelmente o animal tomasse como uma grosseria.

     Bom, a menos que não fosse nem um lobo nem um coiote, e sim um híbrido doméstico. Freqüentemente no jornal apareciam anúncios por palavras que ofereciam em venda cachorrinhos mistos de lobo. Meu Deus, tomara que se tratasse disso; se era meio doméstico, possivelmente não se importasse que ela não correspondesse a seu desejo de passar um pouquinho juntos.

     Esquecidos já seus doloridos pés, Sadie se levantou devagar, com cuidado de não fazer movimentos bruscos. O animal levantou a cabeça de sua tarefa e a olhou.

     — Bom menino. — Disse ela com voz agradável e tranqüilizadora. — Agora vou seguir meu passeio até minha casa, nada mais. Você pode ficar limpando as patas se quiser; sei encontrar o caminho daqui.

     Enquanto falava, foi afastando do animal com passos receosos, sem tirar os olhos dele e mantendo-se de costas ao caminho.

     — Muito bom menino — Sussurrou, ao tempo que dava a volta devagar e ia aumentando a passo longo.

     Ao cabo de pelo menos dez passos olhou por cima do ombro para ver se a seguia.

     O lobo tinha desaparecido.

     Sadie retomou seu ritmo normal sem saber se aquele desaparecimento era algo bom ou não. De repente ouviu que um ramo se partia no bosque, a sua esquerda, e soltou um tremente lamento. Pelo visto tinham voltado para a mesma rotina de antes: ela caminhando pelo atalho e o lobo seguindo-a entre as sombras.

     O último quilômetro e meio lhe pareceu o mais comprido de sua vida, até que por fim divisou a cabana. Disse-se que sua corrida como habitante dos bosques estava passando por uma tremenda prova: de repente o bosque estava lotado de todo tipo de animais com os que não desejava ter nada que ver.

     E nesse preciso momento, para demonstrar sua idéia de que o vale se converteu na muito mesmo Grande Estação Central, viu um homem de estranho aspecto sentado em seu alpendre; devia ter ao menos um século de idade e estava acariciando o queixo de uma Ping que se encontrava em autêntico êxtase.

     Ao vê-la chegar, o ancião se levantou e se aproximou dizendo:

     — Bom, já está aqui, jovenzinha!

     Caminhava apoiando-se em um fina e delicada bengala, que devia usar para agarrar-se quando os pés se enredavam na larga batina negra, e tinha uma revolta juba branca e uma barba perfeitamente recortada. Um branquíssimo colarinho aparecia por cima do botão superior da batina.

     Um sacerdote?

     Não estava aquilo um pouquinho afastado para fazer uma visita paroquial?

     Sadie tomou a mão que lhe estendia e a estreitou; surpreendeu-a a força do apertão, embora este não fosse nada comparado com o olhar direto daqueles vivos olhos azuis, claros como o cristal.

     Ao tempo que fazia uma rápida exploração do terreno que rodeava a cabana em busca de um veículo ou de um companheiro de viagem, perguntou:

     — Está perdido?

     — Não, não; estou justo onde quero estar. — Respondeu ele sem lhe soltar a mão. — E te peço desculpas por aparecer em sua porta sem avisar. Sou o Padre Daar. E você é…?

     — Bem…, Sadie Mercedes Quill[1].

     Ele inclinou a cabeça sem deixar de olhá-la, enquanto um sorriso se esboçava em seu enrugado rosto.

     — Soa-me conhecido esse sobrenome, Quill. Sua mãe é Charlotte, por acaso?

     Ainda não tinha soltado sua mão, embora a verdade é que Sadie não se importou; gostava das pessoas mais velhas. Gostava de suas maneiras antiquadas, sua linguagem sincera e a atitude sem frescuras com que se tomavam a vida.

     — Sim, Charlotte é minha mãe. Conhece?

     O sacerdote meteu a mão de Sadie no ângulo do braço e começou a conduzi-la para a cabana.

     — Temos um amigo comum, Callum MacKeage; parece-me que ultimamente passa um pouquinho de tempo com sua mãe.

     Sim, ela já sabia; para falar a verdade, desde que havia retornado a Pine Creek sua mãe só falava Callum. Tinha-o conhecido o inverno anterior, em um jantar da associação de granjeiros, e após estavam saindo juntos.

     Subiram os degraus, a mão dela ainda em poder do ancião, e se detiveram na porta. Ping se esfregou contra a perna de Sadie, e então ela se soltou do sacerdote e pegou à gata nos braços enquanto voltava a olhar para o bosque por cima do ombro.

     — Talvez devêssemos entrar, padre. — Disse enquanto abria a porta de um empurrão. — Me seguiu um cão grande, e não quero que veja Ping.

     — Então é Ping, né? — Perguntou Daar, sem entrar.

     Voltou a acariciar à gata sob o queixo; depois olhou para os bosques e deixou ver um amplo sorriso.

     — Não há de que preocupar-se, lass. Dun… Bem, ou melhor, Faol sempre teve fraqueza pelos gatos. O lobo não fará mal a sua amiga.

     — O lobo? Então, viu-o? — Nesse momento caiu na conta de que o ancião tinha chamado ao animal por um nome — É seu?

     O sacerdote elevou as povoadas sobrancelhas até o descabelado e grisalho nascimento do cabelo.

     — Os lobos não têm dono, moça. São animais independentes.

     Justo nesse momento o animal em questão saiu do bosque e se sentou no limite do claro, olhando para a cabana. Inquieta, Ping arrepiou o lombo, e quatro garras se afundaram bem nos braços de Sadie, que entrou quase correndo e colocou de um empurrão a sua assustada mascote sob a cama. Depois se apressou a voltar, tomou pelo braço o padre Daar, puxando-o até o interior da cabana e fechou a porta.

     — Bem… É que pensei que estaríamos mais cômodos sentados aqui dentro, a resguardo do sol. — Disse sem muita convicção, ao tempo que olhava às escondidas pela veneziana quebrada. — Sente-se, Padre.

     Ele não se sentou; em vez disso, aproximou-se do canto onde havia uma grande maquete do vale, de metro vinte por dois metros quarenta. Observou-a com atenção e depois passou um dedo pela linha das montanhas.

     — O que é isto? — Perguntou.

     — É uma maquete do vale.

     Sadie foi a seu lado e assinalou um ponto negro situado perto do centro.

     — Aqui é onde estamos — apontou. — E isto é a montanha Fraser, a montanha Pitts, Yawning Ridge e Sunrise Peak.

     À medida que as indicava, foi movendo o dedo pelas cúpulas da cadeia oriental.

     — A esta parte do vale a chamam a cordilheira do Thoreau; compõem-na estas seis montanhas. — Acrescentou, assinalando o outro lado da maquete. — E no meio está o rio Prospect, que percorre o vale ao longo.

     O ancião se inclinou para aproximar-se mais e examinou os nomes que tinham as montanhas pegos.

     — Onde está a montanha TarStone? — Perguntou.

     — O TarStone estaria aqui. — Sadie pôs as mãos junto ao bordo sul-oriental do tabuleiro. — Não aparece na maquete porque não formará parte do parque.

     Ainda inclinado sobre a improvisada mesa, o ancião se voltou a olhá-la e com um gesto da mão abrangeu o vale.

     — Em teoria, tudo isto é um parque?

     — Sim, por isso estou aqui. Estou levantando mapas dos pontos de referência, e catalogo os diversos ecossistemas para ajudar a preparar um projeto de reserva natural.

     Ele se endireitou e se voltou de tudo para ela.

     — Um projeto? De modo que ainda não é um parque em realidade?

     Sadie meneou a cabeça e, com gesto distraído, passou um dedo pelo fio da maquete.

     — Não, ainda não. Fui contratada por um grupo de pessoas que preparam um plano de viabilidade para apresentá-lo à Assembléia Legislativa do Estado. Ainda está em uma fase inicial, e só se fez estudos sobre o papel, não de campo. Devo propor um traçado básico do parque, sugerindo onde situar os atalhos, os lugares de acampamentos e as estradas; também devo localizar o melhor lugar para instalar um centro de informação e pôr de relevo os pontos mais destacados.

     — Você sozinha? — O sacerdote voltou a olhar a maquete. — É uma tarefa muito grande para uma só pessoa.

     — Só sou o princípio de algo que demorará anos em desenvolver-se — explicou Sadie.

     Foi à janela e olhou para fora; em efeito, o lobo seguia ali. Agora se tinha deitado e voltava a polir-se.

     O Padre Daar se dirigiu outra vez à porta e a abriu.

     — Gostaria de um chá, Mercedes, se é que tem — disse ele. — E tem algo doce para acompanhá-lo?

     Sadie sorriu enquanto ia à cozinha e punha a bule no fogo.

     — Tenho uns pasteizinhos de chocolate e nozes que minha mãe fez — Disse.

     Baixou duas xícaras do suporte e rapidamente as enxaguou para lhes tirar o pó.

     — E não tem algo que Faol pudesse comer? — Perguntou ele.

     Sadie olhou mais à frente do Padre Daar; o lobo parecia estar dormitando.

     — Parece-me que não devemos lhe dar de comer, pai. Ficará por aqui se o fizermos.

     Ele se voltou e sorriu.

     — Você não gostaria de ter um lobo como mascote? — Perguntou, elevando uma sobrancelha. — Não acredita que, de vez em quando, talvez fosse prático ter por perto um animal grande como Faol?

     — Se de verdade for um lobo, é selvagem, e é perigoso lhe atribuir emoções humanas.

   Padre Daar deixou a porta aberta, retornou à mesa e se sentou.

     — Não tem muita magia na alma, não é jovenzinha? — Tomou um gole de chá e depositou a xícara de novo na mesa; de repente, um brilho reflexivo lhe iluminou os olhos. — Veja o que diz a isto: e se me ocupo desses cortes que tem nos pés e te prometo que manhã estarão curados de tudo? Não te pareceria mágico?

     Sadie ficou muda de assombro e baixou a vista até suas botas.

     — Mas como o soube? — Perguntou.

     — Está coxeando, e vejo vidros no chão. — Respondeu o ancião, ao tempo que assinalava com a bengala os restos da janela quebrada. Depois assinalou a parte do chão que ia da mesa a bancada, e vice-versa. — E, além disso, vejo rastros de sangue.

     Sadie se sentou para desabotoar as botas e, em silêncio, agradeceu a oportunidade de tirar bem as ataduras por fim; sim, lhe doíam os pés, mas tinha parecido grosseiro tirar o calçado diante de um convidado.

     — Obrigado pelo oferecimento, padre, mas já me ocupo eu. Você fique a vontade e desfrute de seu chá.

     Procurando que a mesa ocultasse o desastre de seus pés, tirou as botas. As meias três-quartos não saíram tão facilmente; tinham pregado aos cortes.

     — Vamos, menina, me deixe ver. — Disse o ancião, que já se ajoelhava devagar diante dela.

     Sadie ficou horrorizada e escondeu os pés debaixo da cadeira.

     Ele elevou o olhar e lhe dedicou um amplo sorriso.

     — É um pouco tímida com o que considera seus defeitos, verdade, Mercedes? Prometo não rir se tiver seis dedos nos pés.

     — Você não vai ocupar-se de meus pés, pai. É um convidado em minha casa.

     — Ao Filho de Deus não lhe caíram os dedos por lavar os pés de um homem. — Respondeu ele, agarrando-a pelo tornozelo e puxando o pé para examiná-lo. — Além disso, como vou fazer que acredite na magia se não me deixa fazer meu trabalho?

     A face de Sadie despedia calor. Valha-me Deus, se não desse um chute naquele homem, ia ter que deixar que limpasse e lhe enfaixasse os pés.

     Enquanto tirava as ataduras, Daar perguntou:

     — Onde está a pomada? — Nesse momento viu o estojo de primeiro socorros em cima da mesa. — Ah, aqui está!

     Então sua voz se transformou em um murmúrio.

     — E agora, a magia.

     Abriu o pote de pomada e, cerimoniosamente, colocou dentro o punho da bengala.

     Sadie estava fascinada, além de entretida. Aquele velho sacerdote era muito gracioso ao montar um número para lhe curar os pés por arte de magia. Bom, se o que pretendia era tranqüilizá-la para atendê-la, estava funcionando; já não se importava tanto que realizasse aquela humilde tarefa por ela.

     — Mercedes é um nome precioso. — Disse ele, enquanto ia tomando pomada da bengala e a colocava pouco a pouco nos cortes. — Era o nome de sua avó ou de alguma tia avó, possivelmente?

     — Sim, algo assim. — Disse Sadie. Cruzou os dedos e os colocou debaixo das coxas.

     Não tinha nenhuma intenção de contar a aquele homem que lhe tinham posto o nome por um carro; em particular, porque era ali onde a tinham concebido.

     Frank Quill tinha um retorcido senso de humor.

     Com um tapinha, o Padre Daar pôs em seu lugar a última atadura, endireitou-se e olhou para Sadie com expressão de expectativa.

     — Bom, que tal estão? — Perguntou.

     — Quentes; tenho os pés quentes como torradas.

     Era verdade; sentia calor, formigamento e um maravilhoso alívio nos pés. Teve vontade de dar um empurrão a Daar de quão bem se sentia; em vez disso, sorriu.

     — Obrigado, padre. O certo é que você sim que sabe fazer magia.

     Ele entreabriu os olhos e a olhou com expressão desconfiada.

     — Acredita que estou de brincadeira sobre a magia, não é? — Elevou a bengala e lhe mostrou o nó de madeira que formava o punho, coberto de pomada. — Quem dera estivesse aqui para ver seus pés pela manhã, quando despertar e ver que se curaram de tudo.

     Sadie lhe deu uns tapinhas no ombro.

     — A magia é coisa de contos de fadas, pai. Eu confio na medicina moderna… E também em sua amabilidade, porque sei que isso ajuda.

     Ainda ajoelhado diante dela, com os olhos um pouco mais baixos que os seus, o ancião lhe lançou um olhar feroz.

     — A magia não está aqui. — Disse, lhe tocando a testa com o dedo; depois a tocou justo por debaixo da clavícula. — Está aqui; muito dentro, em seu coração. Consiste em acreditar que, apesar de todos os pesares, tudo é possível sempre que abra a seu dom.

     — Você é um encanto.

     — Não. Não chame nunca “encanto” a um velho, a menos que queira irritá-lo. — Apoiou-se na bengala para levantar-se. — Até os sacerdotes têm seu orgulho.

     Rodeou a mesa, voltou a sentar-se e se dedicou a sua xícara de chá.

     Ignorando a reprimenda, Sadie também tomou um gole de chá enquanto olhava fixamente aquele homem estranho que estava ao outro lado da mesa. De onde tinha saído? E por que estava ali? Então assinalou ao lobo e lhe perguntou:

     — Por que o chama Faol? É um nome muito raro.

     — Escreve-se Faol, e significa “lobo”.

     — Em que idioma?

     — Em gaélico. Sou celta. Não sei se o tinha notado.

     Sim, aquele homem tinha um sotaque raro. Era gaélico, então? Ao melhor ele conhecia a palavra que o gigante tinha usado no dia anterior, quando disse que fosse com olho aberto até que se vissem de novo.

     — Padre, sabe o que significa grei-aj?

     Ele enrugou a cara.

     — E que idioma é esse? Parece que tem uma rã metida na garganta.

     — Não sei que idioma é.

     — Onde o ouviu? Ao melhor isso ajuda.

     Nossa… O que ia contar? Não tinha intenção de dizer nem pio sobre o encontro do dia anterior.

     Escorrendo o assunto, respondeu:

     — Não é mais que uma coisa que ouvi de uma pessoa. — Deu de ombros. — Não importa; só era curiosidade.

     O ancião meteu por fim o pastelzinho na boca e o mastigou sorrindo; depois de tomar um gole de chá, de repente se levantou.

     — Gostei muito desta visita, Mercedes. E agora me ocorreu que ao melhor aproximaria de casa nessa caminhonete de aspecto tão cômodo que tem estacionado aí atrás.

     Sadie ficou olhando fixamente. Que objetivo tinha tido sua visita? E aonde queria que o levasse agora?

     — Veio até aqui andando do povoado?

     Ele se dirigiu à porta enquanto agitava a bengala no ar.

     — Não, vivo na parte oeste da montanha TarStone.

     — Meu Deus, isso são quase quinze quilômetros a campo…! E vinte e dois pela estrada. Veio andando?

     Ele se voltou a olhá-la e se bateu no peito com a bengala.

     — Caminhar é bom para o coração, e não digamos para a alma. Mas, vamos, você já sabe, não é, Mercedes? Percorreste até o último centímetro deste bosque nas dez semanas que leva aqui, quase sempre a pé, conforme acredito.

     Nossa, como sabia?

     Maldição, quem era aquele homem tão estranho?

     De repente ele deu a volta, e antes que ela pudesse reagir, estava fora e já tinha descido os degraus. Faol se levantou e o observou enquanto rodeava rapidamente a cabana e desaparecia de sua vista. Então Sadie ouviu abri-la portinhola de sua caminhonete e depois fechar-se de uma portada.

     Durante um instante só pôde ficar ali, paralisada pelo desconcerto. Sentia que aquela visita, que tinha durado menos de uma hora, em realidade ia deixar a com muitas mais pergunta que respostas.

 

     Sadie não ia esperar dois dias para visitar sua mãe: ia naquela mesma noite. Tomaria um fim de semana comprido; era tempo suficiente para que partisse o desconhecido dos olhos verdes, sumisse o lobo e aquele estranho sacerdote se esquecesse de onde estava sua cabana.

     Que coisa tão estranha! O ancião comeu sua comida e bebeu seu chá, curara seus pés, tinha-a animado a que adotasse um lobo como mascote e a irritara por esconder suas cicatrizes. Não era domingo, mas Sadie tinha a impressão de ter escutado um sermão de quatro horas.

     De modo que, com toda a roupa suja já carregada na caminhonete e a geladeira portátil vazia metida no porta-malas, só faltava convencer Ping de que não era uma indignidade viajar em uma jaula para gatos.

     Depois de agarrá-la por fim, e justo quando acabava de colocá-la no assento dianteiro da caminhonete, outro veículo se aproximou da cabana. Sadie se apressou a fechar a jaula antes que a enfurecida gata escapasse e amaldiçoou seu nefasto sentido da oportunidade. Decididamente, aquilo era pior que a Grande Estação Central.

     Ao menos a este visitante, sim, conhecia. Antes que o motor se apagasse de tudo, seu chefe, Eric Hellman, saiu da caminhonete de um salto; levava a mão cheia de papéis e, a julgar por sua expressão, tinha uma missão a cumprir.

     Enquanto se aproximava dela a grandes passos, como saudação disse:

     — Continua viva, pelo que vejo.

     Sadie olhou a si mesma com fingida surpresa.

     — Isso me parece — Concordou.

     Dirigiu-lhe um amplo sorriso com a esperança de aplacar seu evidente mau humor, mas ao ouvir seu comentário, ele se deteve diante dela e deu-lhe um olhar assassino.

     — Estou desde ontem pela manhã te chamando no celular. Por que não responde?

   — Porque está quebrado? — Aventurou-se Sadie.

     Não apagou seu forçado sorriso, mas se preparou; sabia que se preparava uma reprimenda.

     A cara dele se acendeu.

     — É o terceiro em dois meses! O que faz, corta lenha com esses malditos trastes?

   Sadie quis lhe dizer que do último não tinha sido culpa dela, mas permaneceu muda. A ninguém importava o que tinha ocorrido no bosque no dia anterior; nem ao sacerdote, nem a Eric.

     Seu chefe prosseguiu zangado:

     — Pois este é o último! Me disseram que anularão o seguro da próxima vez que levar um telefone destruído. — Esticou a mão. — Me dê o outro para que o troquem, mas o próximo que quebrar sairá de seu salário.

     Incômoda, Sadie ficou olhando sua mão e moveu um pouco os pés; maldição, sabia que Eric necessitava o telefone destruído para que seguro o trocasse.

     — Não o tenho; está no fundo do rio Prospect, e a estas alturas provavelmente está na metade de caminho de Penobscot. — Armou-se de coragem para agüentar a seguinte explosão. — E o GPS também: a mochila caiu na água quando caí nas cataratas Portage.

     Em vez da explosão, produziu-se um silêncio. Eric lançou um rápido olhar ao caiaque que estava amarrado ao teto da caminhonete; logo, com gesto incrédulo, voltou a olhar a Sadie.

     — É uma magnífica remadora, Quill; esse bote não derruba em rápidos de dificuldade média.

     Ela deu de ombros.

     — Qualquer um tem um mau dia.

     — Por que a mochila não estava em uma bolsa impermeável? — Perguntou ele, olhando de novo o caiaque de quase seis metros de longitude.

     Em realidade, tratava-se de um caiaque de mar ou de águas tranqüilas, pois Sadie estava acostumada a ir por lagos e arroios, e embora de vez em quando descesse em águas de corrente rápida; não gostava de carregar dois botes, um para cada coisa. O pobre caiaque levava as cicatrizes do mau trato, mas seguia sendo uma magnífica embarcação, presente de seu pai ao cumprir os dezesseis anos.

     — A bolsa arrebentou — disse ela muito séria.

     De repente, pareceu que para Eric as brincadeiras tinham acabado; meneou a cabeça e perguntou:

     — O que fazia nas cataratas Portage? Acredita que o ouro de Jedediah está tão ao norte?

     — Estava levantando um mapa do rio, procurando possíveis lugares onde situar uma zona de acampamento.

     Seu chefe descartou aquele trabalho com um gesto da mão.

     — Essas coisas virão mais tarde — disse ele. — Tem que encontrar esse ouro, Quill, isso é o mais importante do parque.

     — Estou buscando-o, Eric; palavra de honra. Busco-o todos os dias que saio aos bosques. — Sadie suspirou e esfregou a testa. — Antes do incêndio, a obsessão de meu pai era encontrar o ouro de Plum, e você sabe disso. Passei todas as férias escolares, os verões e os fins de semana procurando a mina de Jedediah.

     — E por isso sugeri ao consórcio que te contratasse, Quill. Você é quem tem mais possibilidades de encontrá-lo. Conhece este vale e conhece a investigação de seu pai, assim por que não o encontra?

     — Talvez não exista, sabe? Inclusive meu pai expos essa possibilidade. O estado de Maine não é famoso por seu ouro.

     — Esse ouro existe. — Disse Eric com os dentes apertados. — Frank passou quase toda sua vida buscando-o.

     — Por afeição, Eric. Encontrou uns escritos sobre Jedediah Plum, inclusive descobriu um antigo jornal… Mas talvez não fosse mais que o delírio romântico de um excêntrico e velho ermitão. Jedediah afirmava que tinha encontrado a fonte das areias de ouro do rio Prospect, mas o certo é que morreu na pobreza faz quase oitenta anos.

     De repente Eric animou a face, e lhe deu os papéis que levava. Eram fotocópias de um antigo jornal manuscrito.

     — De onde tirou isto? — Perguntou ela enquanto que as folheava. — É o jornal que meu pai encontrou justo antes… Bom, pouco antes do incêndio.

     — Ah, sim? — Ele se aproximou para olhar por cima do ombro. — Frank tinha este jornal? Encontrei-o em um pequeno museu perdido, um museu das explorações florestais, que está a uns noventa quilômetros daqui. Deram-me permissão para fotocopiá-lo. É o jornal do cozinheiro de um acampamento madeireiro que viveu na época de Jedediah. Pelo visto, pouco antes de morrer, o velho ermitão retornou uma última vez, e o cozinheiro, Jean Lavoie, acreditou que procurava algo relacionado com o ouro, mas poucos dias depois Jedediah desapareceu. Encontraram seu corpo depois do degelo da primavera.

     — Sim. E também descobriram que o tinham matado com um tiro. — Acrescentou Sadie — Essa parte da vida… Ou, melhor dizendo, da morte de Plum está bem documentada. Não posso acreditar que tenha encontrado isto.

     Olhou Eric com um sorriso triste.

     — Eu tentei convencer a meu pai para que reatasse sua investigação, mas depois do incêndio ele não quis seguir procurando.

     Eric se separou dela e a olhou de frente com um sorriso pormenorizado.

     — Sinto muito, Quill. Mas se agora analisar este jornal, talvez encontre por fim a convocação. Eu o li pelo menos cem vezes, mas não conheço este vale tão bem como você. Talvez tope com o lugar onde estavam esses acampamentos madeireiros; isso te indicaria a proximidade da mina de Plum.

     — Quem dera tivesse o resto da investigação de meu pai. Há oito anos estávamos tão perto…

     — Queimou tudo? — Perguntou ele; um tom amável lhe suavizou a voz.

     — Sim. O fogo começou no estúdio onde guardava os papéis de sua investigação. — Confirmou Sadie enquanto se afastava e se dirigia a sua caminhonete.

     Ao ver que levava seus pertences, Eric disse:

     — Vai para casa? Só estamos na quinta-feira.

     — Necessito uns dias livres. E, além disso, quero me pôr em contato com os geólogos de Augusta.

     — Por quê?

     — Estive estudando a maquete e começo a me questionar se não será melhor abordar o mistério do ouro de Plum com diferente enfoque.

     — Um enfoque geológico? — Perguntou ele. De repente, não pareceu que o contrariassem tanto aquelas férias que Sadie concedia a si mesma.

     — Sim. Em vez de me concentrar em tentar seguir o rastro de Jedediah, que já quase não existe, por que não pensar em onde seria mais provável que a própria a mãe natureza tivesse posto o ouro?

     Por sua expressão, isso não convenceu muito Eric.

     — Seu pai não provou já esse enfoque?

     — Claro que sim. Mas todos seus mapas e suas fotos aéreas se queimaram junto com os papéis de sua investigação.

     Com o olhar perdido mais à frente do capô da caminhonete, Eric esfregou a nuca.

     — Isso não tinha me ocorrido. E tampouco sabia que tivesse ocorrido ao Frank.

     Sadie entrou na caminhonete e, ainda de pé no estribo, encarou-o.

     — Passe por minha loja no domingo. Vou te dar outro celular novo e, de passagem, poderá pegar outro GPS. — Seu chefe a olhou com expressão séria. — Desta vez será melhor que escolha um submergível e que o amarre ao pescoço. O dinheiro que atribuímos a esta fase do projeto está quase esgotado, e de hoje em diante, até que não arrecademos mais recursos, ou até que não encontre esse ouro, tudo o que perder sairá de seu salário.

     Ela fez uma saudação militar.

     — Entendido. Cuidarei de meu novo equipamento como se fosse meu próprio filho — prometeu.

     Esticou a mão para fechar a porta da caminhonete, mas ele a deteve, agarrando a maçaneta.

     — Ah, outra coisa. Os irmãos Doam estão no povoado. Pelo visto voltaram a procurar a mina a sério. Tem que estar preparada para eles, Quill. — Alertou-a Erick. — E se assegure também de ir um passo na frente deles, não atrás. Se encontrarem esse ouro antes que nós, nossos planos para o parque se atrasarão vários anos. Contamos com ele para o financiamento.

     Uma vez dada sua advertência, Eric fechou a porta, retornou a sua caminhonete e voltou para o povoado tão rápido como tinha chegado.

     Sadie estava a ponto de ligar o motor quando, bem a seu lado, o lobo saiu dos bosques, mas não a olhava para ela, olhava na direção em que partiu Eric. Tinha o lombo arrepiado.

     Os braços de Sadie ficaram trêmulos. O que havia dito o Padre Daar? Algo sobre que Faol a protegeria dos desconhecidos?

     Nossa, tinha que ir-se dali. E já.

     Mas antes de dar-se conta do que fazia, baixou o vidro e falou com lobo.

     — Obrigado, rapaz. — Disse em um sussurro.

     Faol voltou a cabeça e elevou a vista. Dedicou-lhe um tranqüilo olhar com seus régios e francos olhos verdes, e soltou um gemido.

     Sadie ficou olhando-o, boquiaberta, e depois meneou a cabeça para esclarecer as idéias. Estava agindo de forma ainda mais ridícula que o sacerdote ao atribuir emoções humanas a aquele animal.

     Certamente, era hora de ir para casa.

    

     Claro que em casa também lhe aguardavam um sem-fim de surpresas. E não foi a menor delas um homem, muito alto e muito nu, que encontrou ao entrar às escuras na cozinha de sua mãe; estava olhando dentro da geladeira e cantava em voz bastante alta e desafinada enquanto revisava seu conteúdo.

     Sadie soltou um grito e esteve a ponto de deixar cair ao chão a jaula da gata. Imediatamente a canção se transformou em um grito, e o homem deu a volta como se dispusesse a brigar. De repente, com os olhos como pratos e a boca aberta, agarrou uma das cadeiras da cozinha e a pôs diante do peito, ao mesmo tempo em que ficava tão vermelho como seu cabelo, da testa até os pés. Depois os dois olharam o um ao outro, em um silêncio tão denso que Sadie incluso ouvia os batimentos de seu coração.

     Nesse momento, apareceu Charlotte Quill.

     — Por que gritou, Callum? Deixou cair o leite? — Perguntou enquanto entrava na cozinha.

     Sadie ficou atônita. Sua mãe vestia a camisola mais sexy e mais bonita que já tinha visto.

     — Mamãe? — Disse com voz rouca.

     Então voltou a olhar ao homem. Aquele era Callum? E estava na cozinha de sua mãe? Nu?

     Voltou a olhar a sua mãe, que tinha parado em seco e se ruborizou até as raízes de seu loiro e revolto cabelo.

     — Ai, Meu Deus! — Sussurrou Charlotte.

     Foi Callum quem rompeu o triângulo dos olhares. Sem soltar a cadeira, que sustentava como um escudo para proteger o que ficava de pudor, aproximou-se timidamente de Charlotte; depois recuou até a porta e por fim desapareceu na escuridão do corredor. Por sua parte, Charlotte foi fechar a porta da geladeira, aproximou-se de Sadie, tirou-lhe a jaula das mãos e a deixou no chão. Depois ficou nas pontas dos pés e deu um beijo em sua ainda estupefata filha.

     — Olá, céu. Não te esperava em casa esta noite.

     — Já percebi.

     — Tem um tipo imponente, não acha?

     Sadie cravou o olhar em sua mãe e, de repente, explodiu em gargalhadas. A seguir a abraçou forte.

     — Ai, mamãe. Só você perguntaria a sua filha o que lhe parece o corpo de seu amante.

     — Bom, suponho que tenha lhe dado um bom olhar. — Disse Charlotte em seu ombro, lhe devolvendo o abraço.

     — Claro que sim.

     Charlotte se afastou e tomou as mãos de Sadie; com gesto distraído passou o polegar pelas cicatrizes cobertas pela luva.

     — Está envergonhadíssimo, céu. Provavelmente esteja vestindo e ensaiando o que te dirá quando voltar.

     — Talvez tenha eu algo que dizer; por exemplo, lhe perguntar que intenções tem contigo.

     — Quero me casar com sua mãe, lass — Disse Callum da entrada que dava ao corredor.

     Vestiu-se, embora com a roupa não resultasse menos impressionante. Estava claro que tinha tentado alisar o cabelo com a mão, mas tinha ficado bastante curto na hora de domá-lo. Então Charlotte soltou as mãos de Sadie e cruzou a cozinha para ficar ao seu lado.

     — Cale-se, Callum, agora não é o momento.

     — Que não é o momento, mulher? — Perguntou ele com um grunhido enquanto a olhava com um brilho nos olhos. — Sua filha acaba de nos pegar em uma situação comprometedora. Sua pergunta é razoável.

     Rodeou-a com um braço, em um gesto que indicava que não desejava mais intromissões, e olhou Sadie.

     — Nestes últimos dois meses, lass, pedi a sua mãe que se case comigo ao menos uma vez por semana, mas se mostra teimosa na hora de me responder.

     Sadie elevou os ombros.

     — Não me olhe. Custou-me dois anos conseguir que fosse me visitar Boston.

     Com expressão um pouco decomposta, ele deu uma olhada feroz a Charlotte.

     — Dois anos! — Exclamou ele. — Estou ficando velho, Charlotte, não posso esperar dois anos!

     Ela deu uns tapinhas no peito dele e depois se agachou por debaixo de seu braço para afastar-se.

     — Bom, Callum MacKeage, pois vai ter que esperar um pouco mais. — Replicou, enquanto que se aproximava da jaula.

     A gata de Charlotte, Kashmir, tinha entrado em silencio na cozinha e tinha o nariz pego à jaula. Assim que liberaram Ping, as duas gatas saíram correndo para zonas mais interessantes da casa.

     Sadie rompeu o incômodo silêncio estendendo sua enluvada mão direita.

     — Bom — disse ela. — Me alegro de te conhecer por fim, Callum. Surpreende-me que não nos tenhamos visto até agora.

     Ele tomou sua mão em um quente e suave apertão.

     — É que desejava que você e sua mãe passassem um tempo sozinhas. Sei que estava vivendo fora, na universidade. — Olhou a Charlotte e sorriu. — Está muito contente de te ter de volta.

     — E eu estou muito contente de ter retornado. Desta vez acredito que vou ficar.

     Callum voltou a olhar a Sadie; a cordialidade de seu sorriso suavizava os duros traços de sua face.

     — Bom, tenho que ir já. Que se divirtam as duas.

     — Não tem por que partir. — Apressou-se a assegurar Sadie. — Posso ir ao bar do Nadeau tomar uma cerveja.

     — Sozinha? — Perguntou ele com expressão um pouco escandalizada.

     A jovem se conteve para não rir, mas não pôde evitar que lhe escapasse um sorriso.

     — Bom, não estarei sozinha quando chegar lá, não? — Respondeu, controlando seu regozijo.

     Não queria zombar do amigo de sua mãe; ao menos, até saber se tinha senso de humor.

     Nesse momento Charlotte soltou um grunhido e foi ao resgate de Callum: empurrou-o literalmente para a porta.

     — Logo falarei contigo, Cal. Obrigado por esta… Mmmm, encantadora visita — Disse.

     Ficou nas pontas dos pés e puxou ele para baixo para que sua boca lhe tocasse os lábios. Então lhe deu um rápido beijo e o empurrou outra vez.

     Só que Callum não gostava que o apressassem. Beijou-a de modo um pouco mais meticuloso, e depois se endireitou e sorriu a Sadie.

     — Gostei de te conhecer por fim, lass. Vejo você novamente no sábado de noite.

     Dito isto, permitiu que Charlotte o levasse até a porta. Sadie se aproximou de sua mãe, e as duas o viram caminhar até a caminhonete que tinha estacionada a pouca distância, rua abaixo.

     — O que acontece sábado de noite? — Perguntou a jovem.

     Sua mãe se voltou; a animação iluminava seu já formoso rosto.

     — Vamos sair dois casais.

     — Você, Callum, eu e quem mais?

     — Seu primo, Morgan. — Charlotte bateu palmas. — Ai, não sei como não tinha me ocorrido juntar aos dois até agora! Morgan é perfeito, Sadie. É mais alto que você. Bom, em realidade é muito mais alto que você. E, além disso, é bonito e educado, e as poucas vezes que o vi, pareceu-me um homem muito interessante.

     — Se for tão perfeito, por que não está preso já?

     Charlotte franziu o cenho.

     — É que é… Bem... Pelo que Callum me contou, Morgan é algo assim como um solitário, céu. Está construindo uma casa no meio dos bosques, e isso lhe ocupa quase todo o tempo.

     — Estupendo, um ermitão. Desta vez me emparelhou com um ermitão alto.

     Sadie deu um beijo a sua apurada mãe, aproximou-se da mesa e se sentou.

     — Não se preocupe, mamãe. Sairei contigo, com o Callum e com Morgan, o Ermitão. — Assegurou, quando se sentou junto a ela. — Ouça, por que não quer se casar com Callum?

     A mudança de tema pareceu surpreender Charlotte, ou melhor, desconcertá-la um pouco.

     — Não se importaria que me casasse outra vez? — Perguntou por fim.

     Sadie se inclinou atrás na cadeira e cravou os olhos em sua mãe durante um minuto inteiro.

     — Está recusando esse homem por minha causa?

     — Claro que sim. — Charlotte esticou a mão e tomou as de Sadie. — Céu, você não se limitava a amar a seu pai, adorava-o. Sempre imaginei que não quereria que ninguém ocupasse seu lugar.

     — Ai, mamãe, ninguém o ocupará jamais. Mas isso não quer dizer que espere que passe o resto da vida sozinha, como se fosse uma espécie de santuário em honra de Frank Quill. Só tem quarenta e três anos. Ainda não está nem na metade de sua vida.

     Charlotte se afastou e, com gesto nervoso, ficou a tocar as dobras de sua camisola de dormir.

     — Só faz três anos, Sadie. Como posso viver com um homem durante vinte e quatro anos, e depois, de repente, querer trocar e começar uma vida nova tão cedo, como se ele não tivesse existido jamais?

     — Porque papai está morto e você não; porque não tem lógica que tenha deixado de sentir, ou de desejar, ou de necessitar contato humano e porque embora me tem, sei que isso não basta. Se ama a esse homem, vá adiante.

     Sem deixar de brincar com a camisola, em voz tão baixa que apenas se ouvia, Charlotte disse:

     — Continuo sem poder me casar com ele.

     — Por que não?

     — Porque estou grávida. — Sussurrou, por fim levantando a vista. Seus olhos eram dois afligidos círculos azuis.

     E, pela terceira vez em trinta minutos, Sadie ficou sem palavras.

     — Casei-me com Frank aos dezesseis anos porque estava grávida de você, Sadie. E embora o amasse com todo meu coração a você, a Caroline e a seu pai, e nunca lamentei nem um só dia de minha vida… Não posso começar outro matrimônio dessa forma.

     Sadie seguia sem ocorrer-se nada que dizer.

     Charlotte afundou a face nas mãos.

     — Ai, Sadie! — Exclamou com voz chorosa. — Sou tão idiota… Como deixei que me ocorresse outra vez?

     Sadie se levantou a toda pressa e se ajoelhou para envolver a sua mãe em um forte abraço.

     — Não é idiota. — Assegurou, ao mesmo tempo em que lhe levantava a face e limpava as bochechas. Depois dirigiu um cálido e carinhoso sorriso. — Só tem muito má sorte com os homens. Callum o que é, o segundo cara com o quem saiu em toda sua vida?

     Limpando as lágrimas com a camisola, Charlotte assentiu com um gesto.

     — Se dá conta? Dois namorados, e ambos me deixaram grávida.

     — Mas como?

     Charlotte a olhou piscando.

     — Do modo corrente. — Disse, enquanto sua cara se acendia como um tomate.

     De novo secou as lágrimas, e Sadie soltou um suspiro de frustração.

     — Já sei como. O que quero dizer é se não estavam usando algo. Desta vez já bem mais experiente para saber que existem anticoncepcionais. O que faziam papai e você todos estes anos?

     — Frank fez uma vasectomia justo depois de que Caroline nascesse. — Respondeu Charlotte entre uma breve ronda de soluços. — Jamais, em toda minha vida, utilizei anticoncepcionais. E nem sequer parei para pensar desta vez. Tão somente… Tão somente ocorreu.

     Suas últimas palavras coincidiram com outra ronda de pranto, e ao final voltou a afundar a cara nas mãos.

     Sadie deixou-a chorar em vez de perguntar se, ao menos, Callum não era o bastante preparado para ter usado algo ele. Levantou-se e decidiu que sua mãe necessitava um chá. Por sua parte, ela necessitava algo um pouco mais forte. Foi enquanto baixava o conhaque do suporte mais alta do armário quando, de repente, deu-se conta do que supunha todo aquilo.

   Ia ser irmã outra vez.

     A garrafa de conhaque ficou esquecida na bancada, porque Sadie retornou correndo junto a sua mãe, levantou-a da cadeira e a abraçou muito forte.

     — Vamos ter um filho, mamãe! Vou ser irmã outra vez!

     Piscando de surpresa, Charlotte elevou o olhar. Depois, devagar e sentindo o respaldo da imensa energia do amor, deixou ver o sorriso de uma mulher que assume sua situação.

     — Sim, não é? Vai ser irmã de novo, porque eu vou ter um filho.

     — É maravilhoso, mamãe! — Sussurrou Sadie como se quisesse manter aquele prezado segredo só entre as duas. — Pode se casar com Callum se de verdade o amar, mas também pode criar este filho sozinha: sabe que te ajudarei. Nada de pressões nem de histórias que se repetem. Desta vez não é uma menina assustada de dezesseis anos; tem-me.

     — Ai, céu! Não tem nem idéia de quão difícil foi então, nem das dificuldades que tivemos que confrontar, com seu pai tentando terminar seus estudos e trabalhando na serraria para nos manter.

     Depois de dar um rápido abraço a sua filha, pôs a ferver a chaleira de água. Depois voltou a colocar o conhaque no armário e em seu lugar tirou duas xícaras. Enquanto isso não deixou de falar.

     — Claro que amo Callum. Faz meses que sei. — Voltou-se e assinalou a Sadie com uma xícara de porcelana. Sua voz se voltou firme. — Não teria me deitado com ele se não o amasse; não sou desse tipo de mulher.

     Aceitando que sua mãe precisava estar ocupada, Sadie tomou assento à mesa e se apressou a assentir com a cabeça como uma filha obediente.

     — É só que não quero ter que me casar com ele. — Prosseguiu Charlotte. — Seu pai me amava, Sadie, mas sempre me deu a impressão de que teria empreendido coisas mais importantes se não tivesse tido o lastro de cuidar de nós.

     — Papai adorava levar a serraria. — Apressou-se a intervir Sadie. — E isso nunca o impediu de dedicar-se a sua afeição pela história de Maine.

     — Poderia ter sido professor universitário. — Replicou Charlotte, ao tempo que se voltava para baixar a bule.

     — Poderia. — Concordou Sadie. — Mas isso teria suposto deixar estes bosques, e tanto você como eu sabemos que jamais ele faria isso.

     Sua mãe a olhou de novo. Em seus olhos inchados pelas lágrimas havia um brilho de esperança.

     — De verdade, acredita nisso? Acredita que eu não fui um freio para Frank?

     Incapaz de estar mais tempo sentada, Sadie se levantou e foi para sua mãe. Tirou-lhe o esquecido bule da mão e a pôs na bancada com as xícaras. Depois tomou pelos ombros e a olhou diretamente à cara.

     — Papai nos amava, a você, a mim e a Caroline, e gostava da vida que levava aqui. Como pode duvidar disso?

     Charlotte afastou o cabelo da cara com uma mão tremente e soltou um cansado suspiro.

     — Não duvido… É só que estou tão confusa agora… E tão assustada… Como vou dizer a Callum que vai ter filho? Tem quarenta e oito anos; virtualmente estará aposentado antes que nosso filho tire a carta de motorista.

    Sadie rejeitou sua preocupação com uma risadinha.

     — Eu o ensinarei a dirigir, se Callum não resistir tanta tensão. Não passa nada, mamãe, agora as pessoas tem filhos mais tarde, de modo que não será a única senhora grisalha que vai às reuniões da associação de pais do colégio.

     — Vou ter que dizer-lhe logo, verdade?

     — Sim, tem que dizer-lhe, mas isso não quer dizer que tenha que se casar.

     Então Charlotte começou a rir.

     — Claro que sim, céu! — Deu-lhe um tapinha na bochecha e depois foi verter a água fervendo no bule. — Callum MacKeage é um homem à moda antiga. Quando souber que vou ter um filho, provavelmente me levará arrastada diante do pastor antes que tenha acabado sequer de contar. — Lançou a Sadie um amplo sorriso por cima do ombro; pelo visto, a idéia lhe parecia divertida. — Isso se antes não tiver um ataque ao coração. O pobre está tão obcecado com as convenções sociais… Por isso sempre estaciona a caminhonete rua abaixo, em vez de na entrada, para que as pessoas não saibam que está comigo até tão tarde. — Assinalou com um gesto a janela que dava à rua. — E se esforçou muito para que não o notasse, mas quando nos encontrou juntos esta noite estava morto de vergonha…

     Ela piscou um olho enquanto acrescentava:

     — E nu, além disso.

     Sadie se pôs a rir.

     — Pois se chegasse antes e os encontro juntos na cama, então sim que se teria derrubado de verdade… E teria chegado antes se Eric não tivesse aparecido pelo acampamento.

     — Eric se atreveu a penetrar nos bosques? — Perguntou Charlotte em brincadeira.

     Todos em Pine Creek sabiam que Eric Hellman detestava os bosques, e a todos parecia irônico que, precisamente ele, fosse dono de uma loja de artigos e acessórios para a caça.

     — Só pisou na terra de verdade para dar uns poucos passos… — Assegurou Sadie. — E conduzia como um louco, para chegar e ir mais rápido possível.

     — Mas por que foi até lá? Ele sabe que vem ao povoado nos fins de semana.

     — Encontrou o jornal de um antigo cozinheiro de acampamento que conheceu Jedediah, e estava desejando que eu o visse.

     Charlotte levou a bandeja à mesa.

     — Eu tentei falar por telefone com você hoje. — Elevou uma sobrancelha. — Tornou a te esquecer de carregar o celular ou quebrou outro?

     — Pois… Bem… Este me parece que perdi — Reconheceu Sadie.

     Com o pretexto de esfriá-lo, Charlotte soprou seu chá. Sadie olhou por cima da borda da xícara e viu que sua mãe estava esforçando-se para não rir.

     — Ouça, eu faço um trabalho que requer um esforço físico. — Defendeu-se. — E celular não é nada; deveria ter visto a cara do Eric quando disse que havia perdido também o GPS.

     De repente, ficou séria.

     — Além disso, perdi a câmara de papai.

     Charlotte se apressou a consolá-la. Compreendia o que aquela perda representava para sua filha.

     — Ai, carinho, lamento! — Esticou o braço e lhe deu uns tapinhas na mão. — Bom, ainda fica a que seu pai te deu de presente quando fez dez anos.

     — Mas não é o mesmo… E, ainda por cima, agora não me atrevo a usá-la; não quero me arriscar a perdê-la também.

     — Então te comprarei uma nova. — Charlotte se endireitou e sorriu ao pensar em seu plano. — E pede que a arrumem para que não faça ruído ao usá-la.

     — Então me preocupará perder seu presente. — Sadie soprou seu chá. — Acredito que é melhor que me a eu compre, assim não me sentirei mal se lhe acontecer algo. Sou muito sentimental.

     — Não, céu, é muito desatenta. — Replicou sua mãe em tom carinhoso. — Sempre está tão ocupada tomando tudo tão a sério que passa por cima dos detalhes da vida… E por isso necessita um marido.

     Sadie não respondeu a aquela meia verdade; talvez precisasse pôr mais interesse na hora de organizar-se, mas nem em sonhos necessitava um marido que o fizesse por ela. De modo que, em vez de discutir sobre isso, bebeu o tranqüilizador chá de camomila e desfrutou da calidez da cozinha de sua mãe.

     Sim, por isso tinha voltado para casa hoje; os cuidados maternais de Charlotte eram um bálsamo para sua alma. Sua mãe estava conectada com a realidade; sempre conseguia pôr as coisas na perspectiva adequada para que Sadie as visse, e sempre conseguia lhe dar a confiança que necessitava para seguir avançando… Apesar de sentir o peso da culpa como uma laje.

     Ela tinha a culpa de que Caroline e seu pai tivessem morrido. Ela tinha provocado o incêndio que matou a sua irmã e incapacitou a seu pai, até o ponto de que apenas cinco anos depois morreu de uma enfermidade cardíaca a pouca idade de quarenta e um anos.

   Frank Quill voltou a entrar na casa em chamas, e foi Sadie, não a inocente Caroline, a quem tirou.

     Uma tragédia evitável e sem sentido… E nenhuma só vez, jamais, nos oito anos transcorridos após, nem sua mãe nem seu pai a tinham condenado pela perda de sua filha menor. De fato, os dois se esforçavam por convencê-la de que amavam à única filha que Deus lhes tinha deixado, enquanto choravam a que tinham perdido.

     Isso fazia com que Sadie os quisesse muitíssimo.

     E agora, além disso, adorava a amizade de sua mãe. Charlotte Quill sempre agüentava o puxão quando a vida a apertava: desde ver-se grávida à idade de dezesseis anos, passando pela tragédia de fazia oito anos e pela morte de seu marido três anos atrás, até agora mesmo, quando se encontrava grávida de novo.

     Sadie só esperava chegar a ser algum dia a metade de mulher que era Charlotte Quill. E é que em seu interior sentia um desejo: a enorme necessidade de converter-se nessa irmã maior que admiraria aquela pequena criatura que ainda estava por nascer.

 

     Sadie estava de pé e já na metade do corredor quando se deu conta de que deveria lhe doer pisar no chão de madeira com os pés descalços. Então se deteve na entrada do banheiro e olhou as ataduras que cobriam seus pés. Moveu os dedos e depois trocou o peso do corpo de um pé ao outro para comprovar se doíam.

     Nada, nenhuma pontada, nem sequer a lembrança da dor.

     Sentou-se na borda da banheira, levantou uma perna até o joelho e se apressou a desenrolar a atadura e a girar a planta do pé.

     Diabos, não havia nem cicatrizes!

     Rapidamente tirou a atadura do outro pé e o observou com atenção, estirando a pele. Depois passou um dedo da ponta até o calcanhar procurando os diminutos cortes que deveria haver ali.

     Não havia nem vermelhidões sequer.

     Voltou a pôr o pé no chão e ficou olhando o corredor vazio. Os cortes não se curavam, nem muito menos desapareciam, em vinte e quatro horas. Era impossível.

     E, obviamente, aquilo não era magia.

     Baixou a vista e voltou a menear os dedos dos pés. Se não tivesse tirado as caquinhos de vidro ela mesma, diria que tudo tinha sido um sonho… Ou um estupendo anúncio publicitário da pomada que tinha utilizado.

     Mas não era magia.

     Tinha que ver outra vez aquele sacerdote. Tinha que sentá-lo e fazer que explicasse como curara seus pés só esfregando em sua bengala um pouco de medicamento que se vendia sem receita. E insistiria também em que, para começar, explicasse por que queria que acreditasse que aquilo era magia.

     Nesse momento sua mãe entrou no banheiro.

     — Sadie, o que faz sentada na banheira com o olhar perdido? — Assinalou ao chão. — E o que é isso?

     Ela agarrou as ataduras e as jogou no cesto de papéis que havia junto ao lavabo.

     — Só um recheio para que não me saiam bolhas nos pés. — Apressou-se a mentir. — Este fim de semana tenho que comprar botas novas. Ouça, recorda que papai tinha uma pistola pequena? Tem-na ainda?

     Charlotte a olhou franzindo o cenho.

     — Uma pistola? O que tem isso que ver com as bolhas?

     — Nada. É que acabo de recordar que papai sempre levava uma arma quando íamos de excursão, e pensei se a guardaria.

     Sua mãe a olhou com gesto preocupado.

     — Por quê? — Sentou-se na tampa da privada, de cara com Sadie. — Tem problemas na cabana? Alguém esteve te incomodando no bosque?

     Sadie meneou a cabeça.

     — Não, mamãe, nada disso. É que pensei que talvez devesse ter algum tipo de proteção.

     — Não fala sério sobre levar uma arma, Sadie. Seu pai só a reservava para casos de emergência.

     — E para isso eu a quero. Que acha, que vou por aí com ela amarrada ao quadril como um pistoleiro? Mamãe, no bosque estou segura. Só quero saber que posso cuidar de mim mesma se surgir algum problema.

     — Mas uma arma, Sadie? Sabe sequer como funcionam?

     — Vamos, esse é um comentário sexista.

     — Você sabe a que me refiro, e o sexo não tem nada que ver com a ignorância. Vai disparar nos próprios pés.

     — Papai me ensinou a usar uma arma de fogo quando tinha doze anos. — Olhou a sua mãe com um amplo sorriso. — E também me fez prometer que não lhe diria isso.

     E não tinha que ter o contado, a julgar pelo olhar de aborrecimento que sua mãe lhe lançou nesse preciso instante.

     — Já não tenho essa pistola. — Replicou Charlotte. — Quando seu pai morreu, a dei ao xerife Watts para que se desfizesse dela.

     — Por quê?

     — Porque eu não gosto das armas de fogo.

     Sadie revirou os olhos.

     — Mamãe, vive bem na metade de uma zona de caça; todas as malditas caminhonetes da cidade têm uma arma sob o banco traseiro.

     Charlotte não demorou nem um segundo em replicar.

     — Isso é diferente. São rifles e servem para levar carne às mesas do povo. — Ficou de pé e deu uma olhada feroz a sua filha. — E, além disso, se já não se sentir segura nos bosques, talvez devesse se mudar para casa e esquecer desse estúpido parque.

   Sadie se levantou também, principalmente devido à surpresa que lhe produziu o arranque de sua mãe.

     — Acreditava que achava uma boa idéia o parque.

     — Não se isso significa que minha filha tenha que viver nos bosques como uma ermitã e levar uma arma para sentir-se segura.

     Sadie soltou um bufo de frustração e esfregou a cara com as mãos. Em seguida, colocou o cabelo atrás das orelhas e se obrigou a sorrir.

     — Bom, ok, se tanto te incomoda, esqueça de que mencionei a arma. Estou perfeitamente a salvo fazendo meu trabalho.

     — Precisamente, essa é a questão, Sadie. Para você, esse parque não é um simples trabalho, mas se transformou em uma obsessão. Do momento em que Eric Hellman chamou Boston, largou tudo. Deixou uma carreira estupenda e veio quase correndo em menos de uma semana. E, além disso, olhe como está. — Acrescentou, agarrando a sua filha pelos ombros e fazendo que desse a volta para ficar de cara ao espelho. — Perdeu peso.

     — Não, ganhei músculos — Replicou Sadie, lhe jogando um olhar assassino pelo espelho.

     Como se não tivesse falado, Charlotte prosseguiu:

     — E não se cuida. Faz seis meses que seu cabelo não vê um par de tesouras, não está usando protetor solar e tem duas larvas peludas por sobrancelhas.

     — Hoje vou à barbearia.

     Sua mãe levantou a mão esquerda e lhe voltou a palma para o espelho.

     — Olhe, calos do tamanho de moedas de vinte e cinco centavos. Arranhões, picadas de insetos, unhas quebradas… — Observou com atenção os dedos. — Ou voltou a roer as unhas outra vez?

     Incapaz de pronunciar uma palavra, Sadie se soltou a mão de um puxão e cravou a vista no espelho.

     Charlotte lhe deu a volta para olhá-la de frente.

     — Esse parque te obceca tanto que está ignorando de novo os detalhes da vida. Ainda não tem nem trinta anos e já está se convertendo em uma dessas solteironas loucas que vivem sozinhas com um gato!

     Sadie só pôde olhar boquiaberta a sua mãe até que, por fim, separou-se dela.

     — Eu saio com rapazes! — Espetou zangada.

     Veemente, Charlotte não se tornou atrás.

     — Faz-o por inércia. — Replicou, ao tempo que agitava uma irada mão no ar. — E nessas saídas se dedica a afugentar sistematicamente a esses pobres sujeitos antes que cheguem sequer a te conhecer.

     — Esses pobres sujeitos são uns retardados. A três dei meu número de celular, e não me chamaram.

     — Deu-lhes o número de um celular que sempre está quebrado. — Charlotte voltou a gesticular com a mão. — São esses ditosos detalhes, Sadie… Tem que começar a viver no presente, não no passado… Nem tampouco em um futuro santuário dedicado a seu pai e a sua irmã. Quero que viva no aqui e agora.

     Sadie decidiu que, certamente, tinha chegado o momento de dar fim a aquela conversa. Deu um passo e abraçou forte a sua mãe.

     — Farei-o, mamãe, prometo. Começo hoje. — Inclinou-se para trás e sorriu. — Irei à barbearia, porei-me bem bonita e até comprarei algo novo para nosso encontro de amanhã de noite.

     Charlotte a olhou com expressão cética.

     Sadie colocou uma mão sobre o coração.

     — E prometo — Acrescentou — Que serei o encanto e a elegância em pessoa para Morgan MacKeage.    

    

     De um bom puxão, Morgan MacKeage apertou o nó da gravata e depois, com mão impaciente, alisou o peitilho de sua camisa de seda. Depois elevou o queixo para soltar a garganta e, com o cenho franzido, olhou-se no espelho.

     Callum se aproximou e olhou com intenção as trancinhas que caíam a ambos os lados da cabeça de Morgan.

     — Não pensará usar essas tranças no cabelo esta noite — Disse.

     Morgan se voltou um pouco e observou com atenção uma delas; depois, pelo espelho, devolveu o olhar assassino a seu primo.

     — E por que não? — Perguntou

     — Porque nesta época os homens não usam tranças. — Bufou Callum, dando-lhe uma palmada na parte de trás da cabeça. — E tampouco usam o cabelo tão longo. Parece um selvagem.

     Morgan foi à cômoda e pegou um curto cordão de couro.

     — É que sou um selvagem. — Reconheceu. Assinalou Callum. — E, além disso, aceitei ir a este maldito encontro só porque me encheu a paciência para que o faça. Mas não será fácil que corte o cabelo por uma mulher.

     Callum elevou as duas mãos em um gesto de rendição.

     — Agradeço o favor que me faz. E, além disso, não estou te pedindo que corte o cabelo, só desejaria que fosse um pouco mais… Bom, mais civilizado. Só esta noite. É pedir muito que resgate algo dessa simpatia que te fez famoso em outros tempos?

     Morgan colocou para atrás o cabelo, o recolheu na nuca com o cordão de couro e dedicou a seu primo um amplo sorriso. Definitivamente, o pobre Callum se apaixonou como um tolo.

     — Rogo-te que me diga uma coisa: o que acontece com Mercedes Quill, que necessita que sua mãe lhe busque acompanhantes? Tem as orelhas bicudas? Ou lhe faltam dentes? — De repente, seu sorriso se converteu em uma expressão carrancuda. — Maldição, melhor que não meça metro e meio de altura, dá-me calafrios tratar com mulheres baixas.

     De repente Callum empalideceu e, surpreso, Morgan observou como seu primo alisava com gesto nervoso o peitilho da camisa e olhava a todos lugares menos a ele.

     Ao fim, com voz pensativa, Callum disse:

     — Ah, não. Sadie (ela prefere que a chamem Sadie em vez da Mercedes) é uma lass formosa… E, além disso, é alta. — Acrescentou com um pouco de desespero. Deu um passo para frente e o olhou, por fim. — Mas há uma coisa da que quero te advertir.

   Morgan deu uma palmada no escritório.

     — Maldição, sabia que estava me levando a horta! Que mulher chega aos vinte e sete anos e ainda necessita que sua mãe lhe busque acompanhantes?

     Callum ficou na defensiva.

     — É uma mulher muito bonita — Disse ele. — Mas ninguém é perfeito.

     — E qual é o defeito dessa, Quill? — Perguntou Morgan, ficando um pouco na defensiva também.

     Aceitara sair aquela noite só porque estava em dívida com Callum, que o tinha ajudado a construir a casa. Diabos, sair uma noite com uma mulher, embora medisse metro e meio e lhe faltassem alguns dentes bem valia dois meses de duro trabalho… Ou não?

     Embora agora começasse a inquietar-se.

     — Sadie Quill é perfeitamente normal — Disse Callum, de novo sem olhá-lo.

     Começou a brincar com a gravata e a puxar o nó.

     — É só que… Bom, faz oito anos foi vítima de um incêndio… — Acrescentou olhando ao chão. Quando elevou a vista, em seus olhos cor avelã se lia a preocupação. — Tem algumas cicatrizes.

     — Está desfigurada? Queimou-se? — Perguntou Morgan. De repente, sua atitude defensiva desapareceu. Substituiu-a uma suspeita… E uma súbita idéia. — Onde tem essas cicatrizes?

     Callum fez um descuidado gesto com a mão.

     — Charlotte me disse que quase todas nas costas. — Respondeu — . No lado esquerdo e no interior de um braço.

     — E onde mais? — Perguntou seu primo. Suas suspeitas foram tomando corpo.

     Callum o olhou franzindo o cenho.

     — Também na mão. Usa uma luva de couro na mão direita para ocultar as cicatrizes. — Acrescentou ao mesmo tempo em que assinalava Morgan com expressão ameaçadora. — Agora não pode recusar-se a ir; prometi a Charlotte. E te juro que destruirei a casa tábua a tábua eu mesmo se não cumprir nosso trato.

     Morgan se esfregou as mãos e se dirigiu para a porta.

     — Não se preocupe; não tenho intenção de perder esta noite. — Olhou para trás por cima do ombro e viu que seu primo não o seguia. — E então? Vamos chegar tarde.

     — Outra coisa — Disse Callum, com os olhos entrecerrados de receio. — Quando te apresentar a Sadie, não vai estreitar lhe a mão a menos que ela ofereça primeiro. Talvez se mostre coibida com você porque é seu acompanhante, e não quero que se sinta envergonhada.

     Envergonhada? Diabos! Morgan não acreditava que a vergonha fosse a primeira emoção que ia sentir aquela mulher. Mas bem se sentiria assustada e… algo incômoda.

     Deu uma palmada no peito de Callum e, sorrindo, apressou-se a tranqüilizá-lo.

     — Não se preocupe, primo. — Disse. — Venha, agora mesmo acabo de pôr minha capa de simpatia para sair com a filha de sua mulher.

     Depois elevou a mão em uma saudação militar.

     — Com cabelo comprido, tranças e tudo, esta noite serei um perfeito cavalheiro.

        

     — Está segura de que Callum advertiu a esse cara de minhas cicatrizes? — Perguntou Sadie. Era a décima vez que o perguntava nos últimos dez minutos.

     Charlotte se aproximou para arrumar seu cabelo sobre os ombros. Tinha-o recém- cortado e haviam feito uma suave permanente. Depois sorriu com satisfação maternal.

     — Callum me prometeu que abordaria o tema de forma discreta. — Assegurou com carinho. Alisou a blusa nova de seda e lhe desabotoou o botão da garganta. — Então, não tem por que parecer como se estivessem te estrangulando. Tem um pescoço esbelto e elegante, e uma garganta preciosa; faça-os destacar.

     Automaticamente, Sadie elevou a mão para aproximar as bordas do pescoço, mas não voltou a fechar o botão.

     Depois de alisar as mangas, Charlotte terminou tomando as mãos e sorrindo de novo.

     — A cor dessa blusa realça seus olhos, e essa nova regata é muito mais bonita que essas velhas camisetas que usa sempre. Mereceu a pena ir às compras em Bangor para procurar este modelo e ir a um salão de beleza profissional. Está muito bonita, Sadie.

     Ela sentiu que lhe esquentavam as bochechas. Então soltou as mãos e rematou a tarefa de sua mãe alisando a parte dianteira das brancas calças de linho. Depois comprovou como ficavam os sapatos novos. Era a primeira vez em sua vida que não levava sapato baixo; sua mãe tinha insistido em que o acompanhante desconhecido era bastante mais alto que ela, de modo que a convenceu para que colocasse saltos de cinco centímetros.

     Só esperava não quebrar seu esbelto e elegante pescoço tentando caminhar com aqueles sapatos.

     E, além disso, esperava que Morgan MacKeage não resultasse ser um retardado.

   Não sabia explicar, mas o certo era que estava nervosa diante a perspectiva daquela noite. Embora não o reconheceria a sua mãe por nada do mundo, também lhe preocupava estar convertendo-se pouco a pouco em uma dessas solteironas loucas que vivem sozinhas com um gato. Quantos sapos mais teria que beijar antes de encontrar a seu príncipe?

     O mais triste era que começava a considerar-se afortunada porque os sapos queriam lhe dar um beijo.

     De repente, cheia de nervosa energia, voltou a perguntar:

   — Está segura de que Callum preparou o ermitão para o que vai encontrar esta noite? Quero dizer, não só minhas cicatrizes, mas também às vezes sou um pouco desajeitada.

     Charlotte foi até a porta da cozinha e acendeu a luz do alpendre com um estalo do interruptor.

     — Não é desajeitada. — Disse com veemência, ao tempo que a olhava outra vez. — É graciosa quando quer; o que acontece é que quase nunca se esforça.

     Contrariada ao ver que sua mãe quase coincidia com ela, Sadie perguntou:

     — Por que ia fazê-lo?

     — Porque suas aptidões trocam em proporção direta a seu interesse por algo. Quando desce rápido em seu caiaque, não é desajeitada. — Charlotte foi suavizando a voz à medida que se aproximava dela. — Quando fotografa animais, nunca comete falhas. — Segurou-lhe os ombros. — E com o casal adequado, dança como Ginger Rogers.

     Um pouco apaziguada, Sadie deu a volta, elevou as costas e olhou a sua mãe por cima do ombro.

     — Tampa-me as cicatrizes bem a regata? — Perguntou. — Fica lisa nas costas?

     Charlotte a inspecionou com olho crítico, franzindo as sobrancelhas.

     — Tão lisa como o bumbum de um bebê. Todo um metro oitenta e dois de preciosa mulher.

     Com um amplo sorriso, Sadie se voltou para ficar de cara a sua mãe.

     — Acabo de me arrumar com tanto esmero para sair com outro retardado?

     Charlotte meneou a cabeça.

     — Não, céu, arrumou-se para si mesma. Porque embora você e Morgan não conectem esta noite, pode pensar sem medo de se enganar que o problema não é seu, mas sim dele.

     Sadie se aproximou e lhe deu um beijo na bochecha.

     — Por isso te preciso — Sussurrou — Ajuda-me a ver as coisas de outra maneira.

     Sorrindo com carinho, Charlotte começou a dizer algo, mas de repente se deteve ao ouvir que uma caminhonete se aproximava da entrada. Imediatamente lhe iluminou a face.

     — Aqui estão — Disse.

     Deu a volta, foi correndo à porta e, depois de alisar o vestido, abriu-a de par em par.

     Sadie a seguiu a um passo mais tranqüilo enquanto meneava a cabeça e sorria ao ver a emoção de sua mãe. Charlotte Quill havia tornado a apaixonar-se de verdade… E, além disso, estava radiante. Não só era o amor, mas também a promessa da pequena vida que, em segredo, se aconchegava segura em seu ventre.

     Pensou que adoraria espiar por um buraquinho quando por fim revelasse o segredo a Callum MacKeage.

     As portas de uma caminhonete se fecharam de repente, e Sadie olhou às escondidas por cima do ombro de sua mãe. Dois homens se aproximavam caminhando ao alpendre. Suspirou com alívio; sim que Morgan o Ermitão era alto. Um primeiro, e difícil, obstáculo vencido.

     Certamente não era um retardado, a julgar por seu passo viril, decidido e arrogante. Inclusive a essa distância, advertiu que se movia com confiança. Pelo visto, não lhe desagradava absolutamente encontrar-se em um encontro às cegas.

     Recuou para que sua mãe recebesse a seus convidados, ao mesmo tempo em que se apressava a alisar o punho da blusa sobre a prega da luva com a esperança de tranqüilizar as mariposas que agora lhe amotinavam na barriga.

     Callum entrou primeiro e se deteve metade do passo para cravar a vista em Charlotte. Com voz séria e solene, disse:

     — Juro-te, mulher, que está mais bonita cada vez que te vejo.

   Soltou estas palavras, tomou-a em um abraço de urso a repentinamente ruborizada mãe de Sadie e lhe deu um beijo nos lábios. Com a face como o tomate, Charlotte se afastou e se apressou a concentrar sua atenção de novo na tarefa de alisar a roupa. Depois tentou tocar no cabelo, mas Callum a colocou sob o braço e fez que se voltassem juntos para olhar a Sadie, ele com um sorriso tão amplo como um menino com sapatos novos.

     — Sadie — Disse ele. — Quero te apresentar meu primo Morgan.

   Voltou-se um pouco, movendo consigo a uma ainda nervosa Charlotte.

     — Morgan, apresento Sadie Quill.

     Sadie mal ouviu o que dizia Callum. Seus pés estavam com pesos de chumbo cravados no chão. A visão tinha debilitado e reduzido e o martelar de seu coração tentava lhe abrir um buraco no peito, enquanto o forte zumbido do bombear do sangue retumbava nos ouvidos. A boca tinha ficado seca e um nó do tamanho de uma bola de basquete tinha encaixado na garganta.

     Só pôde olhar fixamente, boquiaberta, a seu acompanhante.

     Estava quase à porta da cozinha, justo dentro da soleira. Seus largos ombros virtualmente tocavam a madeira do marco, tinha as mãos metidas nos bolsos das calças em gesto relaxado e seus olhos cor verde bosque, muito familiares, faziam-na sentir que as mariposas de seu estômago estavam a ponto de escapar voando.

     Seu acompanhante não era um retardado, era o louco do lago. E devia passar a noite com ele?

     Morgan deu um passo para ela.

     Agindo só por instinto, Sadie deu o mesmo passo para trás.

     De repente, nos olhos dele brilhou um brilho de malvada travessura… E então deu um novo passo adiante, tirou a mão do bolso e a estendeu.

     Aquele imbecil… Aquele imbecil que ria em silêncio, desafiante e provocador, estava desafiando-a precisamente a que pusesse sua mão direita enluvada na dele!

     Callum tossiu no punho. Sadie o olhou um segundo e viu que estava jogando a Morgan MacKeage um olhar assassino, tão intenso para tombá-lo. Em seguida, ela voltou a olhar a seu maldito acompanhante. Morgan não prestava nenhuma atenção a seu primo. Seguia com os olhos cravados nela, estendendo-lhe a mão.

     Então Sadie olhou a sua mãe. Charlotte parecia horrorizada, mas a horrorizava a situação ou a incorreção da própria Sadie ao não saudar o primo de Callum?

     De repente o aborrecimento foi a seu resgate. Morgan MacKeage tinha nascido imbecil e provavelmente morreria imbecil, mas nem por isso ia ela permitir que se comportasse como um imbecil essa noite.

     Não tinha nenhum direito de brincar assim com ela. Embora o espiasse nadando nu quatro dias antes, não tinha direito de continuar castigando-a pelo que, em realidade, só tinha sido uma pequena falta, um engano inocente que qualquer um teria cometido dadas as circunstâncias. Se fosse o reverso, teria gostado de ver Morgan MacKeage limitando-se a voltar-se de costas diante o espetáculo de uma mulher nua nadando em um lago.

     Portanto, agora tinha duas opções: estreitar a mão que ele insistia em lhe estender, ou cuspir nela (se é que obtinha que voltassem a lhe funcionar as glândulas da boca) e subir depois correndo e dando gritos seu quarto.

     As duas possibilidades a faziam sentir um nó no estômago.

     Então, elevando o queixo e armando-se de coragem para sentir seu apertão, esticou a mão direita e a pôs firmemente na dele. Morgan fechou com suavidade os dedos sobre a luva e fez uma ligeira inclinação.

     Depois, com um leve sotaque em suas palavras e um tom cortês que seus risonhos olhos desmentiam por completo, disse:

     — Certamente é todo um prazer, Mercedes. Não sabe quanto desejei vê-la… Outra vez. — Acrescentou em um suave sussurro que só ela ouviu. Esboçou um meio sorriso e olhou a Callum. — Podia ter me advertido, primo, de que era tão formosa para cortar a respiração de um homem.

     Callum elevou uma povoada sobrancelha e sorriu com gesto tenso.

     — Acredito que tinha comentado — Disse.

     Com suavidade, Sadie puxou a mão com a esperança de recuperá-la em algum momento da noite. Nesse instante Morgan MacKeage lhe lançou uma pícara piscada que, sem palavras, a fez saber que estava mais que a par de seu desconforto, mas em vez de soltar a mão, passou um comprido dedo até mais à frente da prega da luva e o posou no interior de seu pulso, diretamente sobre seu apressado pulso.

     Ao sentir aquele íntimo contato, Sadie deu um pulo e depois se estremeceu ao notar o fogo que subia pelo braço até chegar ao peito. Puxou com mais energia para soltar-se, mas, com um sorriso já abertamente malicioso, Morgan MacKeage se negou a soltá-la; em vez, disso ficou a seu lado, fez que estendesse o braço e a ancorou a seu lado.

     Continuando, dirigindo seu olhar à habitação em geral, disse:

     — Vamos? Acredito que temos reserva para as oito em ponto.

     — Necessito meu pulôver — disse Sadie, fazendo outra tentativa por soltar-se.

     Como se não tivesse falado, ele se dirigiu para a porta, dono já de todo seu braço além de sua mão. Enquanto quase a arrastava consigo, replicou:

     — Não o necessitará. Faz uma cálida noite de final do verão.

     Conduziu-a pela porta e se deteve um instante no alpendre. Então baixou a voz para que só ela o ouvisse.

     — Se tiver frio, lass, eu te esquentarei de boa vontade — sussurrou ele.

     Sadie tinha frio já; um frio que a impregnava até os ossos. De maneira nenhuma poderia passar todo um jantar com aquele homem depois do que lhe tinha feito quatro dias antes… E em particular, tendo em conta que sabia exatamente como era Morgan MacKeage sem roupa.

     Uma gota de suor escorregou entre os seios. Como ia passar um jantar inteiro com aquele Adônis sem ficar em ridículo mais do que já se pôs? Como sorria uma mulher a um homem, como falava e compartilhava com ele a comida, sabendo que a gravata e a jaqueta não eram mais que uma capa de verniz civilizado que cobria o corpo de um deus?

     Claro que, por outra parte, como ia deixar a sua mãe na mão agora?

     Estava bem apanhada… Em mais de um sentido.

     Com o braço dela ainda em seu poder, Morgan a tirou do alpendre e se encaminhou para a gigantesca caminhonete de quatro portas em que tinha chegado com Callum. Só depois de abrir a porta a liberou por fim. Então lhe soltou o braço, agarrou-a pela cintura e a subiu ao assento traseiro, e antes que ela desse um grito afogado de surpresa, fechou com suavidade a porta.

     Sadie se encontrou sentada junto a sua mãe. Em silêncio, Charlotte lhe passou a bolsa; um perplexo sorriso lhe animava a cara.

     — Pelo visto, Morgan é um desses homens a quem gosta de controlar. — Disse em sua voz se notava uma evidente aprovação. Deu um tapinha no joelho de sua filha. — Justo o que necessita.

     Sadie sorriu.

     — Quer dizer que é a espécie de acompanhante que põe a seu casal no assento traseiro? — Com um gesto assinalou os assentos dianteiros, ainda vazios. — Por acaso estamos em 1955?

     Meneando a cabeça, Charlotte lhe devolveu o sorriso.

     — Já disse que Cal é a moda antiga. E se você parar a pensar, é encantador. Sempre que saímos, Cal se preocupa que tenhamos um acidente e o airbag me faça mal ao abrir-se.

     Inclinou-se para acrescentar em um sussurro:

     — Uma vez viu nas notícias algo sobre que eram perigosos para as pessoas baixas. — Então deu a risada. — Cal diz que sou muito pequena, e isso o preocupa. Imagina? Acredita que sou pequeninha.

     Sadie se conteve para não revirar os olhos.

     — Comparada com Callum é pequena, mamãe.

     Lançou um olhar pelo pára-brisa para ver os dois homens. Estavam de pé diante da caminhonete, falando. Não ouviu o que diziam, mas ambos mostravam uma expressão sombria; pelo visto, Callum dava uma bronca em Morgan. Bem feito. Aquele imbecil arrogante necessitava uma reprimenda. E como Callum tinha um tamanho mais indicado para fazê-lo, Sadie adorou pensar que o namorado de sua mãe estava encarregando-se da tarefa.

 

     Com o pretexto de alisar a gravata, Morgan passou a mão pelo nó de madeira de cerejeira que zumbia suavemente contra seu peito. O amuleto do druida tinha começado a esquentar-se e a vibrar um pouco assim que Mercedes Quill pôs a mão na sua.

     E agora aquela maldita coisa seguia sem querer acalmar-se.

     Estava sentado a uma das diminutas mesas do restaurante encravado na borda do lago Pine. No salão só havia uns quantos comensais atrasados, pois a maioria já tinha se mudado ao bar continuo, que, além disso, tinha pista de dança. Com gesto distraído, Morgan escutava a tranqüila música da sala e o bate-papo que trocavam seu primo e a mulher deste; claro que sua atenção se centrava em sua própria acompanhante.

     Arrumou-se muito bem e não recordava em nada a duendizinha dos bosques com a que se topou fazia quatro dias. Quase tinha esquecido quão alta que era… Embora não sua formosura. Mercedes tinha o cabelo loiro e brilhante que caía em ondas até a base das costas, uma pele dourada que tinha recebido o suave beijo do sol e um corpo do mais feminino, que lhe provocava uma tensa reação em sua própria pele. Estava arrebatadora, e durante o jantar ele já tinha reparado em que mais de um lhe jogava um olhar.

     E não é que ela percebesse; parecia absolutamente alheia ao efeito que provocava nos homens.

     E isso o agradava.

     Também se alegrava de que Mercedes fosse mulher de muito poucas palavras. Tinha-lhe tirado possivelmente uma dúzia de frases em toda a noite, e quase nenhuma dirigida a ele.

     Mas o que mais gostava, o que mais o atraía dela, era justo o que mais o inquietava: seus olhos. Eram da cor do céu outonal recém lavado por uma chuva que balança rápida; faiscantes, cheios de energia… Vivos.

     E desejava possuí-los.

     E possuir a ela. Queria rodeá-la com seus braços, puxar de seu precioso e flexível corpo até juntá-lo com o seu e concentrar os cinco sentidos em sua beleza.

     Levantou-se e lhe estendeu a mão; a mão esquerda desta vez.

     — Eu gostaria que me acompanhasse à pista de dança. — Disse, assegurando-se de que a voz não traísse seus pensamentos.

     Seu convite pareceu horrorizá-la de verdade. Mercedes se apressou a afastar a vista dele para olhar a pista de dança, e depois o olhou de novo. Dava a impressão de que acabava de lhe pedir que se tirasse toda a roupa.

     Bom, isso chateava. Porque, exceto quando em casa de sua mãe lhe tinha pedido que desse a mão das cicatrizes, tinha sido um perfeito cavalheiro toda a noite. Diabos, tinha-a colocado no assento traseiro da caminhonete, onde estaria mais segura; tinha-lhe pedido um delicioso salmão para jantar, e acabava de pedir uma taça de vinho doce, do que ela só tinha tomado um gole.

     De repente Morgan viu que Mercedes dava um pulo como se lhe tivessem dado um chute e que depois dirigia um brusco olhar a sua mãe e franzia o cenho. E então, cansado de estar ali, de pé e com a mão tendida, sem obter resposta, limitou-se a ficar atrás dela e puxou de sua cadeira. Como se a tivesse beliscado, Mercedes ficou em pé como uma flecha e o olhou carrancuda.

     — Prefiro não dançar — murmurou.

     Ele a pegou pelo braço e a conduziu até a pista.

     — Prometo não pisar nos seus pés. — Assegurou, enquanto a envolvia em seu abraço.

     Aquilo era o mais agradável que tinha descoberto sobre a sociedade moderna: a música lenta. Era como cortejar em público; uma coisa perfeitamente aceitável e que inclusive se fomentava.

     Sim, certamente, gostava de dançar.

     Salvo que dançar com Mercedes Quill era como ter um cavalete do telhado de sua casa: estava mais rígida que uma tábua e parecia igualmente pouco disposta a colaborar. E, além disso, Morgan não demorou para descobrir que eram seus próprios pés os que corriam o perigo de sofrer um pisão.

     Santo céu, aquela mulher não sabia dançar! Quando queria guiá-la sutilmente em uma direção, os pés dela iam para o outro lado e tentavam levá-lo. Morgan não pôde evitar que lhe escapasse um sorriso… E isso pareceu acentuar ainda mais o cenho franzido dela.

     — Ai, lass, pelo menos uma vez, só durante cinco minutos, confia em mim — suplicou a ela.

     Agarrou-a mais forte pela cintura e fez que os dois se movessem com um ritmo que se ajustava à música.

     — Eu não gosto de dançar.

     — Pelo geral, ou só comigo?

     — As duas coisas.

     Ele soltou uma risadinha, puxou-a para aproximá-la mais e colocou sua cabeça sob o queixo. Sim, era agradável dançar com alguém sem ter que inclinar-se para abraçá-la.

     — Talvez desfrutasse um pouquinho mais se tivesse bebido o vinho — insinuou.

     Ela elevou a cabeça bruscamente.

    — Não bebo vinho.

     Morgan suspirou por cima de sua cabeça e rezou pedindo paciência. Que difícil era comportar-se como um cavalheiro com uma gràineag!

     Esforçando-se todo o possível por não parecer contrariado e voltando a lhe baixar a cabeça para que não visse seu cenho franzido, perguntou:

     — Então, por que não me disse isso?

     — Porque não me deu oportunidade — Murmurou ela em sua jaqueta. Apressou-se a elevar a cabeça outra vez. — Assim como não me deu a oportunidade de pedir meu próprio jantar.

     — Pois comeu o salmão.

     — Porque dá a casualidade de que eu gosto do salmão.

     — Então, qual é o problema?

     Ela o olhou e piscou. Começou a dizer algo e depois, de repente, deu um suspiro e voltou a apoiar a cabeça em seu ombro. Um amplo sorriso apareceu nos lábios de Morgan. A Mercedes seguia custando trabalho dar com as palavras; por ele, estava bem. Só lhe importava sua linguagem corporal.

     Pouco a pouco, a mulher que levava nos braços começou a relaxar-se, e juntos se moveram com a suave música enquanto, devagar, aprendiam a balançar-se em harmonia.

     Ele a desejava; assim de simples, assim de urgente. Desejava a Mercedes Quill com a paixão de um homem perdido fazia muito e que necessitava a âncora de uma mulher especial. Embora, em realidade, o que desejava era que a paixão de Sadie, a ponto de explodir, se acendesse em seus braços. Juntos, provavelmente, iluminariam todo o vale.

     Nesse momento, do outro lado da pista de baile, ouviu-se gritar:

     — Nossa, mulher alce!

     Mercedes deixou de mover-se, voltou a ficar rígida como um pau e afundou os dedos nas costas de Morgan. Embora não estivesse seguro, lhe pareceu como se tentasse meter-se o dentro da jaqueta.

     — Alce! — Repetiu a voz, mais perto desta vez. — Quando retornou?

     Quem perguntava ia aproximando-se, acompanhado de outros três homens e de duas mulheres.

     Mercedes deixou de tentar esconder-se até que por fim se soltou dos braços de Morgan e deu a volta. Uma rápida olhada a sua expressão indicou a Morgan que aquele não era um agradável reencontro com velhos amigos. Mercedes tinha avermelhado de repente.

     — Sim, é você! — Disse o homem ao chegar junto a eles. — Acreditava que tinha um trabalho em Boston. O que era…? Ah, sim, meteorologia. Segue sendo garota do tempo?

     Ela lançou um envergonhado olhar pela sala.

     — Bem… Não. Voltei para casa.

     — Ouça, isso está bem. Justo agora íamos ao bar do Nadeau a tomar uma cerveja. Quer vir? — Depois de olhar um instante a Morgan, o cara voltou a olhá-la. — Traz para seu amigo se quiser.

     — Não, Peter. Estamos com minha mãe e seu amigo — disse ela.

     — Vamos, venha, alce, assim nos poremos em dia de nossas vidas. — Disse ele ao mesmo tempo em que tentava enrolá-la lhe lançando um murro ao braço.

     Nesse instante Morgan avançou um passo e lhe agarrou a mão antes que chegasse a tocar Sadie.

     — Peter, não? — Perguntou.

     Este fez um gesto afirmativo enquanto, de forma discreta e infrutífera, tentava recuperar a mão.

     — Bom, Peter, pois meu par se chama Sadie, não alce. E se tentar lhe dar um murro outra vez, quebrarei sua mão. — Terminou com suavidade.

     Antes de soltá-lo apertou a mão o suficiente para que o entendesse.

     Bom, ao Morgan pareceu que sua advertência tinha sido muito educada segundo as regras modernas. Mas, pelo visto, Sadie tinha se ofendido. Rapidamente, tornou-se e agora o olhava com os olhos muito abertos e uma expressão de incredulidade.

     E o idiota do Peter parecia estar ainda mais surpreso. De fato, tinha aproximado um passo, e o mesmo estavam fazendo os três homens que tinha atrás.

     Suavemente, Morgan empurrou a Mercedes até pô-la a suas costas. Ela agüentou ali três segundos antes de voltar de um salto a seu lugar para interpor-se entre ele e os quatro homens, que já adotavam uma postura defensiva.

     — Se criar uma cena, ajudarei-os a te dar uma surra! — Sussurrou, com voz muito mais ameaçadora que o gesto daqueles homens.

     — Quer ir com eles? — Perguntou ele, tentando evitar que lhe escapasse um sorriso.

     Ela estava vermelha como um tomate… E estava claro que não era consciente da cena que estava montando.

     — Não, não quero ir com eles, e tampouco quero que se produza uma briga. — Disse ficando nas pontas dos pés para lhe sussurrar ao ouvido. — Alce é um velho código de quando íamos ao colégio. Peter o disse sem nenhuma intenção, e não tentava me machucar me dando um murro. Vamos, deixa de se comportar como um troglodita, MacKeage!

     Morgan tinha duas opções: ou enviar de um empurrão àquela desenquadrada aos braços de seu primo, que se aproximava já, e sucumbir ao premente desejo de dar um murro no nariz do idiota do Peter… Ou acabar de dançar com ela.

     O que fazer?

     As duas coisas pareciam estimulantes. As duas seriam igual de satisfatórias. Com um amplo sorriso dirigido a Callum, Morgan esticou a mão, voltou a puxar Mercedes para seus braços e deu a volta para ficar de costas aos intrusos; era uma forma elegante de ignorá-los como possível ameaça a sua velada. Depois, fazendo caso omisso do grito de surpresa dela, tranqüilizou com um gesto Callum, que tinha detido seu avanço por entre os bailarinos. Mas seu primo não retornou a seu assento até que os quatro homens e as duas mulheres, visivelmente desconcertados pela repentina perda de uma briga, afastaram-se sem mais.

     — Nunca lance ameaças que não possa cumprir, lass. — Sussurrou Morgan no cabelo de Sadie. — É um cacoete que pode ser perigoso algum dia.

     Ela se apressou a afastar a cabeça de seu ombro e ficou olhando-o em silêncio. Seu rubor se atenuou um pouco, mas em sua face ainda era evidente seu aborrecimento.

     Morgan elevou a mão e enredou os dedos no cabelo para que não afastasse o olhar; enquanto, com suavidade, seguia enrolando seu corpo para que se balançasse com o seu ao compasso da música.

     — Se me desculpar por te atemorizar o outro dia, fará uma trégua em nossa guerra silenciosa? — Perguntou a ela. — E começará possivelmente a passar bem esta noite?

     — Não.

     Por que não o surpreendia sua resposta?

     — Dará um chute na canela se te disser quão formosa está esta noite?

     As elegantes e arqueadas sobrancelhas de Sadie se uniram e seus olhos se entreabriram, como se suspeitasse que ele estivesse brincando com ela. Então Morgan deixou de tentar conversar amavelmente e, em vez disso, empurrou-lhe de novo a cabeça para que a apoiasse em seu ombro; não ia ceder ao impulso de beijá-la… Ali mesmo na pista de dança, diante Deus e toda aquela gente.

     Vá se era um assunto do mais espinhoso tentar possuir a uma gràineag…

     E também do mais divertido.    

    

     Sadie não entendia Morgan. Tão logo a cravava para que saltasse, como a defendia de um assunto vergonhoso, como lhe dizia que estava bonita…

     E, além disso, era um mandão. Aquele tipo não tinha deixado de manipulá-la durante toda a noite. Não parava de levá-la daqui para lá: primeiro lhe pediu o jantar e as bebidas, e depois a levou pela pista de dança como um sargento de instrução.

     E agora estavam fazendo a pé os três quilômetros de volta até sua casa, porque tinha decidido que fazia uma noite estupenda para dar um passeio à luz da lua.

     Sadie ainda não entendia por que gostava.

     Era possível que o aroma de um homem fosse tão sexy? Tinha estado junto a muitos homens, mas quando se encontrou nos braços de Morgan, na pista de dança, só pensou em quão excitante era seu aroma. Um aroma quente e masculino, com um leve toque a bosque.

     E seu contato era igual a seu aroma… Igual de excitante e acolhedor. Ainda não podia acreditar que tivesse sido capaz de relaxar o suficiente para aproximar-se tanto a ele. Caray, que garota não estaria encantada de ver-se nos braços de um deus alto, forte e muito bonito? Teria que estar louca para não aproveitar o momento, não apoiar a cabeça em seu largo ombro e não balançar-se com a música como se fosse uma deusa.

     Por isso tinha se despedido de sua mãe e de Callum e aceitara a seguir o plano de Morgan de acompanhá-la a casa andando.

     Não tinha nenhuma pressa de que se acabasse aquele encontro de sonho.

     Sadie suspirou na calma da tranqüila noite. Não ia ter mais remédio que reconhecer que seus atos de fazia quatro dias tinham estado errado. Durante aquela noite, Morgan tinha demonstrado ser um cavalheiro, assim, ao menos, corresponderia agindo como uma dama. Teria que desculpar-se.

     — Lamento ter feito fotos suas o outro dia. — Disse, mantendo o olhar à frente, para o caminho. — Não tinha nenhum direito a invadir assim sua intimidade.

     Parou ao se dar conta de que estava falando com ar. Então se voltou. Ele estava muitos passos atrás, olhando-a fixamente… E não sorria.

     — Maldição, MacKeage, sinto muito, tá? É que você… Bom, surpreendeu-me, e não parei a pensar o que fazia.

     Sem responder a sua desculpa, não muito cortês, Morgan tirou devagar a jaqueta e caminhou até ela. Então a jogou pelos ombros, juntou as lapelas e a manteve bem apanhada.

     Sadie conteve o fôlego e elevou a vista. Estava igualmente apanhada nas profundidades daqueles olhos da cor das folhas perene, iluminados pela lua.

     — Você gostou do que viu pelo visor, lass? — Perguntou ele, sustentando seu olhar com firmeza.

     Sadie não tinha nenhuma intenção de responder a aquela pergunta.

     De repente ele sorriu e afrouxou o puxão da jaqueta. Depois tocou a ponta do seu nariz com um dedo e lhe piscou um olho.

     — Dá na mesma se você gostou ou não. — Disse enquanto prosseguia o passeio de volta. — É o único corpo que tenho, e terá que se acostumar a ele.

     Por um instante Sadie ficou piscando e olhando suas costas enquanto o via afastar-se. Depois correu para alcançá-lo, tropeçou com os saltos e começou a dar saltos enquanto tirava depressa primeiro um sapato e depois o outro… E então tropeçou com ele, que tinha parado sem avisar e a olhava de frente.

     — Não se descalce. — Esticou a mão para lhe tirar os sapatos. — Talvez haja vidros ou partes de metal na rua.

     Ela se apressou a meter os sapatos nos bolsos da jaqueta e depois passou na frente dele, caminhando pela calçada, para ficar na frente uma vez mais. Por cima do ombro disse:

     — Fui descalça os primeiros dez anos de minha vida.

     Enquanto as passo longos dele o levavam rapidamente a seu lado, acrescentou:

     — Além disso, conheço um sacerdote que tem uma bengala mágica que me cura assim. — Estalou os dedos no ar.

     De repente, algo a deteve e a fez dar a volta de forma tão brusca que um dos sapatos caiu ao chão.

     — O que você sabe de um sacerdote que tem uma bengala mágica? — Perguntou ele.

     Sadie piscou outra vez. Morgan se tinha posto muito pálido e estava alarmantemente tranqüilo, salvo pelo fulgor inquisitivo de seus olhos, agora entre negras e cor esmeralda.

     — Eu… Conheci o ancião sacerdote que vive na montanha TarStone — respondeu ela, sem saber como interpretar sua reação.

     — Quando?

     — Outro dia. Na quinta-feira. Veio me visitar.

     Morgan lhe apertou os ombros.

     — Não se aproxime do Daar. — Disse ao mesmo tempo em que a sacudia um pouco. — Me entende, Mercedes? Não se aproxime desse velho padre.

     Ela só pôde olhá-lo boquiaberta.

     Ele a sacudiu de novo.

     — Não acredite em nada do que te diga.

     Uma vez dada sua ordem, Morgan girou sobre os calcanhares e se dirigiu para a casa dela outra vez. E outra vez Sadie se encontrou olhando boquiaberta a suas costas. O humor de Morgan trocava mais freqüentemente que o tempo.

     Correu para alcançá-lo e o agarrou por braço.

     — Espera! — Disse — Quero te perguntar uma coisa.

     Ele se deteve e a olhou.

     — Quero saber se foi você quem me roubou os marcadores.

     — Os marcadores?

     — Minhas fitas cor laranja. Esta noite você mesmo disse que não queria que se construa um parque no vale do Prospect. Agarra-me as fitas para deter o projeto?

     — E agarrar as fitas o deterá?

     — Não.

     — Não estavam algumas dessas fitas em terras dos MacKeage? — Perguntou ele enquanto cruzava de braços sem deixar de olhá-la.

     Sadie baixou os olhos até o nó de sua gravata.

     — Algo assim — Apressou-se a reconhecer. — Mas roubar as fitas não vai deter os planos do parque.

     Ele a puxou pela mão e começou a caminhar de novo, desta vez pela grama, em direção ao passeio fluvial do povoado, que entrava no lago Pene. Consciente de que ele não tinha respondido a sua pergunta, Sadie deixou que a levasse até um banco. Estava resignada ao fato de que, provavelmente, não admitiria lhe haver roubado os marcadores.

     Quando a deixou no banco, Morgan perguntou:

     — Por que querem fazer um parque no vale do Prospect? — Ficou de pé frente a ela, apoiado no corrimão do passeio.

     — Por que não? É um vale precioso e tem muitos elementos recreativos que nos permitirão oferecer seu uso em todas as estações: camping, senderismo, caiaque, circuitos em moto neve, pesca… O público virá aqui a praticar qualquer esporte de aventura.

     — Falou no plural. A quem se refere com isso de “nos permitirão”?

     — Agora mesmo se trata de um grupo de homens de negócios de todo o estado que formaram um consórcio. Eric Hellman me contratou para que ajude a elaborar um projeto que se apresentará à Assembléia Legislativa do Estado.

     — Esses homens de negócios, que benefício tiram? Por que se uniram com a esperança de construir um parque aqui?

   Sadie franziu o cenho ao ouvir a pergunta.

     — Talvez porque querem que esta imensa terra virgem fique protegida para as gerações futuras.

     — Ou talvez é que esperam lucros? — Replicou ele em voz muito baixa. — Doarão toda a terra a este parque, ou pretendem vender parcelas para edificar casas de veraneio?

     — Precisamente, essa é a questão. — Sadie se inclinou para frente para particularizar mais. — O parque não só abrirá uma formosa parte de terra ao público: também ajudará a que cresça a economia desta zona, igual fez sua estação de esqui. Olhe todas as lojas e botequins que surgiram desde que abriram. No inverno, a população de Pine Creek quase se duplica; com um novo parque, esse auge econômico durará todo o ano.

     — E, então, que se consegue, Mercedes? Outra cidade pequena cheia de hordas de gente, que invadem o território virgem e empurram os animais até abandoná-los em extensões cada vez mais reduzidas de terra?

     Sadie ficou de pé e deu um forte puxão das lapelas da jaqueta para ater-se, Morgan se separou do corrimão e a agarrou pelos ombros.

     — Eu sei por que esses homens de negócios têm proposto esse projeto, mas não entendo sua conexão com ele. Que espera obter?

     Ela hesitou entre apartar-se ou apoiar-se em seu amplo peito.

     — Nada — Disse.

     Aquele homem estava conseguindo zangá-la. Mas seu aroma seguia sendo tão excitante…

     — Percorro esse vale desde que aprendi a caminhar. — Elevou a vista para seus sérios e profundos olhos verdes. — Só desejo contribuir a conservá-lo.

     — Não existiu felizmente o vale todos estes anos sem sua intervenção? E as pessoas não vão de excursão, a pescar e a caçar? Não acredita que transformá-lo em um parque acabará destruindo-o, se cada vez vier mais gente?

     Maldição, embora a chateasse, Sadie encontrou certa lógica em seu raciocínio. Além disso, acaso não tinha ela essa mesma preocupação? Não seguia sentindo essa inquietação?

     — Por que está tão contra o parque? — Perguntou ela. — Provavelmente, sua família seria a que se beneficiasse mais. Seu hotel estaria cheio inverno e verão, e o restaurante do refúgio da cúpula poderia estar aberto todo o ano.

     — Já está aberto todo o ano. E, além disso, quanto lucro necessita uma família? Em particular, se for às custas da terra.

     De repente Morgan lhe soltou os ombros, voltou a tomar a mão direita e começou a caminhar de novo para sua casa.

     Sadie decidiu que era hora de mudar de tema… E, provavelmente, de estabelecer um limite entre eles.

     — Eu gostaria que me devolvesse minha câmara — Disse.

     Era muito bonito, alto e masculino… E também muito sexy para que se sentisse atraído por ela. Seguro que quando Morgan MacKeage fazia amor a uma mulher, os dois se despiam, suavam e se consumiam por completo o um no outro… E, além disso, manteriam as luzes acesas. Na cama não haveria mantas nem lugar onde esconder-se: tudo ficaria ao descoberto.

     Pois bem, embora vivesse um século, jamais se despiria diante de um homem.

     Em particular, diante de um que poderia competir com Adonis.

     — Que câmara?

     — Como? — Perguntou Sadie, completamente perdida em seus pensamentos. — A câmara que eu levava o outro dia, aquela a que tirou o filme. Quero que me devolva a mochila, o GPS e a câmara.

     — Eu não tenho a câmara; deixei-a no chão.

     — Deve ter voltado logo para agarrá-la, junto com todo o resto. — Apertou a mão que tinha a agarrada sua. — Quero que me devolva minhas coisas.

     — Palavra de honra, lass, não voltei a pegar seus pertences. — Disse ele em voz baixa. — Você voltou para buscá-las?

     — Sim. — Sadie suspirou na noite. — Não verei mais minhas coisas, não é? Alguém deve ter passado por ali e as encontrou.

     — Comprarei-te uma câmara, Mercedes. Perdeu a sua por minha culpa.

     — Dá na mesma. De todas maneiras, essa câmara não pode substituir-se, era de meu pai.

     Morgan a fez deter-se e a olhou com expressão séria.

     — Sinto muito — Se limitou a dizer.

     Sadie endireitou os ombros.

     — Foi minha culpa. Não pensei em minhas coisas.

     Ele elevou um dedo até sua bochecha, afastou-lhe uma mecha de cabelo da face e o recolheu trás da orelha.

     — Não começamos com muito bom pé, não é, lass?

     Sadie fechou a mão esquerda em um punho e o meteu no bolso, decidida a não passar um dedo pela bochecha de Morgan.

     Por Deus, como a atraía esse homem… Com independência de que o tivesse visto completamente nu fazia quatro dias.

     Bom, talvez isto tivesse um pouquinho que ver… Mas não era só o estranho despertar do desejo que sentia nesse preciso instante, ao elevar a vista para seus quentes e fascinantes olhos cor verde selva. Era o calor de seu tato, o modo em que lhe agarrava a mão enluvada como se fosse uma coisa absolutamente normal, a forma de olhá-la, de sorrir, e o modo em que a fazia sentir-se… Especial.

     — Começado o que? — Perguntou Sadie.

     — Como?

     — Você disse que não começamos com muito bom pé. Começado o que?

     Morgan puxou-a para frente e a fez perder o equilíbrio; ela se inclinou para ele, e então ele a soltou para rodeá-la com os braços. Depois a estreitou com força contra si, e seu peito subiu com outro profundo suspiro.

     Por cima da cabeça de Sadie, ao tempo que a abraçava mais forte, sussurrou:

     — O início de uma prudente, mas importante amizade.

     Sadie quis afundar a cara em sua camisa e por se a chorar.

     Amizade…

     Maldição! Ela desejava seu corpo, e ali, entre seus braços, na metade da rua iluminada pela lua, tinha esperado, como uma tola, que se referisse ao início de uma intensa aventura amorosa.

     E lhe oferecia amizade.

     Sadie se afastou com um brusco gesto e, depois de lhe lançar um olhar assassino para comunicar o que achava de sua oferta, deu a volta e começou a caminhar outra vez para sua casa.

     Era evidente que se zangou… Em silêncio, Morgan ajustou o passo ao dela sem saber se sentir aborrecimento ou regozijo.

     O que sim sabia era que se sentia muito frustrado, e é que desejava a aquela mulher com uma força quase dolorosa. Seus sentimentos para a Mercedes eram profundos. Não queria levar-la à cama sem mais: queria possuí-la, queria capturar aquela potente energia que experimentava sempre que a tinha perto, e agarrar-se a ela.

     Enquanto caminhava pela escura rua seguindo o ritmo da silenciosa mulher que estava a seu lado, voltou a passar os dedos pelo nó de madeira que levava no peito e que não deixava de zumbir com suavidade. Se ele fosse um cavalheiro, não começaria nada com ela essa noite: acompanhá-la-ia até a porta de sua casa, despedir-se-ia com palavras corteses, partiria e não voltaria a vê-la nunca mais.

     Sim, isso é o que deveria fazer…

     Se fosse um cavalheiro.    

    

     Quando chegaram ao alpendre da casa, fazia um momento que Sadie pensava com pavor no compassivo beijo na face que provavelmente Morgan lhe daria, e no lânguido sorriso com que mentiria dizendo que o tinha passado muito bem essa noite e que possivelmente voltariam a ver-se logo por aí.

     Bom, pois desta vez não, e menos com este homem.

     O certo era que tinha passado uma noite maravilhosa. Morgan MacKeage tinha sido um acompanhante quase perfeito: atento, considerado, divertido e entretido. Tinha dançado como Fred Astaire e a havia feito sentir-se como Ginger Rogers. Caray, até a ameaça de briga da pista de dança tinha sido estimulante.

     Não queria um beijinho, e menos vindo de um tipo que provavelmente era capaz de dar a uma garota o melhor beijo.

     Além disso, não ia permitir que esse homem arruinasse o primeiro encontro maravilhoso de verdade que tinha tido em sua vida… Porque não ia deixar que a beijasse.

     Mas antes de acabar de formular seu pensamento, uma das grandes mãos do Morgan lhe rodeou a base do pescoço e, devagar, atraiu-a para ele. Com a outra, levantou-lhe a face e, justo antes de lhe tocar a boca com seus lábios, sussurrou:

     — Me pergunto se seu sabor é tão delicioso como seu aspecto.

     Sadie deixou de respirar quando seu abraço a cobriu por completo, enquanto sentia como ele esticava a mão sobre seu cabelo e lhe rodeava as costas com resolvida decisão. Inclinou-lhe a cabeça e fez mais profundo seu beijo, animando-a a abrir a boca para poder explorá-la com sua língua.

     Ela ficou tão afligida que perdeu o rastro de seus pensamentos, só podia pensar em uma coisa: não queria que ele parasse.

     Como tinha os braços presos aos flancos, só pôde mover as mãos para agarrá-lo pela parte de atrás da cintura. E, maravilha de maravilhas, inclusive teve que ficar nas pontas dos pés para lhe devolver o beijo.

     Diante seu tímido gesto, ele deixou escapar um descarado grunhido de aprovação e apertou o abraço, com o que voltou a deixá-la sem fôlego. As línguas dos dois se entrelaçaram e ambos se deixaram levar por seus desejos. Sadie lhe massageou as costas com os dedos, ao mesmo tempo em que se dizia, simplesmente, não seria melhor meter-se o sob a pele para estar mais perto.

     De repente, ele rompeu o contato e lhe inclinou a cabeça para descobrir o pescoço. Sadie gemeu assim que sua boca lhe roçou a garganta; um brilho de luz brilhou no fundo de seus olhos, e então soltou os braços, esticou as mãos e lhe agarrou os ombros. Nesse momento ele a sustentou no alto, levantando os pés do chão, e avançou com ela até que Sadie notou que suas costas se apertavam contra a lateral da casa. E ele se aproximou mais ainda, até acomodar-se entre suas coxas.

     Com apenas a fugaz inquietação de que talvez ia inflamar-se de forma espontânea, Sadie lhe rodeou a cintura com as pernas e deu a bem-vinda à tormenta que se preparava no mais profundo de seu ser.

     Com a boca, Morgan abriu um atalho de fogo que desceu pela garganta até a abertura da blusa. Seus dentes rasparam um instante a pele, e então saltou um botão. Sadie sentiu o calor de sua boca na sensível pele da base da garganta e sussurrou:

     — Morgan…

     Fechou os olhos e deixou cair para trás a cabeça até apoiá-la na casa. Depois lhe puxou o cabelo, soltou-o da fita de couro e o acariciou com os dedos; por fim cedia ao impulso que tinha esperado toda a noite: tocar uma das finas trancinhas que agora caíam a ambos os lados da face.

     Ele elevou a cabeça, cravou os olhos nela e depois voltou a tomar posse de sua boca com a mesma profundidade que antes, mas de forma muito mais íntima. Sadie sentiu que a cabeça dava voltas vertiginosamente… E no centro só via uns olhos de um verde intenso.

   Com as mãos tremendo de crescente paixão, estreitou Morgan contra si enquanto se deleitava com seu sabor. Suas línguas cercaram uma cordial discussão; seus lábios se encaixaram… E até o martelar de seus corações se compassou.

     Um estremecimento sacudiu Sadie como um pequeno terremoto quando ele liberou sua boca para respirar e depois soltou o fôlego com aspereza enquanto pousava sua testa na sua.

     — Temos duas opções, Mercedes: ou fazemos amor agora mesmo, aqui no alpendre, ou entra correndo em sua casa e fecha a porta com chave.

     Em um gesto enérgico, projetou para frente os lábios para respaldar seu ultimato; era uma prova concreta e evidente que indicava às claras a opção que preferia.

     A Sadie ardiam as bochechas, e não sabia se o calor brotava dele ou de seu próprio interior. Mas sim se dava conta do perto que estava de cometer um suicídio emocional.

     E do muito que desejava cometê-lo.

     Imediatamente investiu a energia do puxão com que o tinha pego pelos ombros e o empurrou com frenesi, enquanto desenlaçava as pernas de sua cintura e punha os pés no chão do alpendre. E outra vez voltou a empurrá-lo ao ver que Morgan seguia abraçando-a com força sem deixar de olhá-la fixamente, com um olhar que indicava seu desejo de decidir por ela.

     De repente ele a soltou, deixou cair as mãos aos flancos e recuou um passo.

     Sadie estremeceu. Com o cabelo solto em emaranhadas ondas, um gesto severo pelo desejo negado e os olhos escuros e insondáveis, Morgan tinha perdido a máscara de cortesia.

     Voltava a ser o mesmo louco que a tinha açoitado pelos bosques quatro dias atrás.

     E, de repente, sentiu-se igualmente vulnerável que então.

   Sadie deu a volta e, a provas, procurou o trinco. Fez-o girar com força, lançou seu peso contra a porta até que esta se abriu, e depois entrou correndo e fechou de uma portada. E, além disso, seguindo a amável insinuação de Morgan, jogou o ferrolho com um girou desesperado e recuou até a segurança das sombras da cozinha.

     Ficou ali, às escuras, respirando pesadamente, atenta se por acaso ouvia os passos dele nos degraus do alpendre. Demoraram cinco minutos em soar, e nesse tempo, cada carícia, cada sensação, cada emoção que tinha provocado o beijo de Morgan cruzaram por sua cabeça como se fossem faíscas de energia que ganhasse vida. Sadie levou os trêmulos dedos aos lábios e se estremeceu outra vez.

     Deus bendito! Como a tinha beijado!

     Entretanto, não foi até mais tarde, já deitada na cama, nua porque cada centímetro de sua pele estava extremamente sensível, com o coração ainda a ponto de explodir no peito e a mente ainda trêmula de confusas emoções, quando Sadie se deu conta de que Morgan MacKeage não se limitou a lhe dar um beijo digno de tirar o chapéu: tinha mandado o ditoso chapéu revoando até além da cúpula da montanha Fraser.

 

     Sadie custou quase toda a manhã soltar-se com suavidade das garras de sua mãe. Charlotte queria saber como tinha perdido um sapato, por que a jaqueta de Morgan se encontrava feita uma enrugada bola no chão da cozinha e o que lhe tinha parecido o acompanhante que tinha encontrado.

     Ainda não acabava de acreditar nas débeis desculpa e os exagerados elogios que tinha encontrado para satisfazê-la.

     Aquela manhã se alegrou de que Eric abrisse a loja cedo para recolher o GPS e o móvel novos, uma mochila e mantimentos, assim como uma nova câmara, muito cara. Agora por fim estava de volta em sua cabana, embora ia sentir falta da Ping; tinha-a deixado na casa de sua mãe se por acaso o lobo retornava e decidia que a gata resultava um saboroso almoço. Dissesse o que dissesse o sacerdote, não ia confiar sua mascote ao Faol.

     Sadie abriu a porta da cabana e pôs a nova mochila e os mantimentos sobre a mesa; depois se aproximou da maquete do parque e observou com atenção a cadeia montanhosa oriental.

     Na noite anterior Morgan MacKeage contou que construíra uma casa na metade da subida da montanha Fraser, onde possuía uma quantidade considerável de terra que descia todo o caminho até chegar ao rio Prospect, e isso implicava que era dono do canto sudeste do projetado parque natural.

     Tirou o mapa que lhe tinham dado o dia que aceitou o trabalho, estendeu-o sobre a maquete e voltou a estudá-lo com atenção. Era indubitável que o limite do parque, esboçado em rotulador verde fluorescente, incluía a ladeira ocidental da montanha Fraser. Eram quase cinco mil acres: uma parte pequena mais muito importante do parque. A estrada de acesso do sul cruzaria a terra de MacKeage para que as pessoas entrassem por Pine Creek.

     De repente, algo fez que Sadie se endireitasse. Meteu o cabelo atrás das orelhas, escutou e não demorou para ouvi-lo de novo: era um suave e apenas audível buf.

     Fechou os olhos e deixou cair a cabeça. “Maldição…”, pensou. Tinha suposto que aquele condenado lobo já não estaria ali. Passou-se três dias inteiros vadiando ao redor da cabana, esperando que ela voltasse?

     E agora queria que saísse a saudá-lo?

     Foi até a janela e olhou às escondidas. Ali estava, sentado justo no limite do bosque, com o olhar cravado na cabana. Nesse instante Sadie soltou um grito afogado, correu à porta e a abriu de par em par.

     O lobo tinha sua velha mochila na boca.

     A que tinha perdido.

     E parecia estar cheia.

     Faol se levantou e, meneando a cauda, deu vários passos para frente. Por sua vez, Sadie desceu devagar os degraus e se deteve uns dez passados do lobo quando este soltou outro surdo buf.

    — O que tem aí, rapaz? — Perguntou ela. — Onde encontrou isso?

     Ele se aproximou um passo e deu um gemido baixinho.

     Sadie recuou um passo.

     Ao vê-lo, Faol se sentou e, com suavidade, pôs a mochila no chão diante dele. Depois levantou a cabeça, e desta vez seu latido foi mais forte, quase exigente.

     Nem por todo o ouro de Plum Sadie ia aproximar um centímetro mais a aquele enorme animal de aspecto aterrador. Tampouco tinha intenção de inclinar-se a pegar a mochila; para isso teria que pôr a face a só uns centímetros dos dentes de Faol.

     Enquanto isso, o animal ficou sentado, olhando-a fixamente e levantando uma nuvem de terra com a cauda. Então gemeu de novo, ficou de pé e recuou vários passos.

     Mantendo dez passos entre eles, Sadie caminhou para frente, compassando seu avanço à retirada do lobo, até que de repente se deteve só um metro ou metro e meio da mochila.

     Lançou-lhe uma olhada e esteve a ponto de gritar de alivio ao ver que o objetivo da câmara aparecia pelo zíper. Depois voltou a olhar o lobo. Tinha a língua pendurando e seus redondos olhos, de um verde limpo e irisado, olhavam-na diretamente. Uma vez mais, ele voltou a gemer baixinho. Então deixou de olhar a ela para olhar à mochila e depois a olhou de novo.

     Sadie deu outro receoso passo para frente e esperou, sem deixar de observá-lo. Ele elevou uma pata e começou a lavar-lhe a lambidas.

     Ela deu outro passo para frente.

     O lobo bocejou e depois avançou as patas dianteiras até ficar deitado; qualquer um teria dito que lhe trazia completamente sem cuidado que ela estivesse ali.

     Depois de dar dois receosos passos mais, Sadie enganchou a correia da mochila com o dedo gordo do pé e, devagar, puxou-a para si.

     Faol apoiou a cabeça sobre as patas.

     Com a mochila já a seus pés, Sadie se agachou, procurou provas a correia e a agarrou forte; depois se endireitou devagar. Continuando, de costas à cabana e sem afastar os olhos do lobo, que continuava deitado, recuou até sentir o alpendre nas coxas. Então, mantendo uma cautelosa vigilância sobre seu visitante, sentou-se, abriu o zíper e olhou dentro.

     Esqueceu-se por completo do lobo quando cravou a vista no conteúdo da mochila. Primeiro tirou a câmara de seu pai e depois derrubou o resto no alpendre; tudo estava ali: GPS, celular, fita de topógrafo, faca, garrafa de água e inclusive a fita seladora feita migalhas com a que Morgan a havia atado.

     Tudo. Tudo estava ali.

     E, além disso, tudo seco.

     Sadie olhou a Faol. Agora estava sentado direito e a olhava fixamente, com a língua outra vez pendurando, o olhar impassível e a cabeça inclinada, como esperando que lhe falasse.

     Para lhe dizer o que? Obrigado por me devolver minhas coisas, lobo?

     Estreitou a câmara de seu pai contra o peito e riu em voz alta. Estava ficando louca, e além não se importava.

     — Obrigado, rapaz! — Disse, ao tempo que fazia gestos agitando a câmara. — Não sei onde encontrou minhas coisas nem como soube que devia trazê-las aqui, mas obrigado de todo coração.

     Limpou as repentinas lágrimas que brotaram inesperadamente dos olhos. A câmara de seu pai… Outra vez a tinha.

     Então se apressou a entrar na cabana e procurou entre os mantimentos que estavam sobre a mesa. Procurou a bolsa de carne-seca de boi que lhe tinha comprado Eric aquela manhã, abriu-a com rapidez e partiu uma parte. Depois voltou a sair, desceu os degraus e se dirigiu para do lobo.

     — Isto talvez vá contra todas minhas crenças sobre dar de comer aos animais selvagens, grande e precioso lobo, mas nunca conheci ninguém que merecesse uma recompensa tanto como você. Toma! — Lançou a carne seca ao chão, diante dele. — Te prometo que te trarei mais do lugar de onde tirei esta. A próxima vez que vá ao povoado te comprarei a bolsa maior da prateleira.

     Faol cheirou a comida que tinha diante sem tocá-la e depois elevou a cabeça e olhou a Sadie.

     — Ouça, que não é da barata — Disse ela. — É boi de primeira.

     De repente o lobo elevou o focinho e soltou um comprido e lastimoso uivo, antes de dar a volta e afastar-se trotando até desaparecer no bosque.

    Enquanto o eco daquele grito inquietante se desvanecia no ar, Sadie sentiu calafrios na coluna vertebral. Depois cravou o olhar no lugar por onde Faol tinha partido. O lobo não sabia que a mochila lhe pertencia; só era um animal que tinha encontrado uma coisa no bosque e a tinha levado até ali, igual a Ping presumia lhe levando troféus de caça.

     Isso devia ser. Sem ir mais longe, fazia um momento não tinha gostado da comida porque tinha um rastro humano. O mais seguro era que acabasse de encontrar a mochila e, como cheirava a ela, levasse-a até ali.

     Claro que sim. Era uma explicação completamente lógica.    

    

     Morgan imprimiu mais potência a seus cansados músculos e fez avançar seu esquentado corpo pelas fria e tranqüilas águas do lago. Era sua segunda travessia e, pelo visto, seguia sem controlar as emoções que turvavam seus pensamentos.

     Mercedes Quill, ela era a responsável por seu estado de ânimo naquela tarde. Passara todo o dia pensando nela.

     A noite anterior partiu do alpendre dolorido e frustrado, e ali mesmo decidiu que a faria dele… Com as condições que fossem precisas e fazendo uso de qualquer meio possível.

     Essa mulher era dele. Quando a noite estava a ponto de acabar, de pé sob uma lua envolta em neblina e olhando a catarata, Morgan gritou que lhe pertencia. Disse a Deus, ao bosque e a tudo o que pudesse ouvi-lo que aquela mulher de olhos azuis que percorria o vale era dele.

     Subiu a pulso à rocha arredondada que estava na metade da baía e deixou que o sol poente banhasse seu corpo. Então fechou o punho em torno do nó de cerejeira que lhe pendurava do pescoço e observou como o céu dançava em um radiante mostruário de cores, riscando um arco que ia de um delicado azul até um vermelho quente e vivo.

     E mais ou menos no centro, viu Mercedes.

     Sim. A noite anterior, no alpendre, excitada por seus beijos, seus olhos eram do mesmo azul intenso que agora tinha o céu. E então Morgan fez outra promessa: que voltaria a ver aquela cor, estimulado por sua mútua paixão enquanto faziam amor.

     Mas primeiro tinha que dar com o modo de explicar a Mercedes que ao entrar em seu vale e plantar a primeira fita tinha entrado no mundo de um homem antigo e possessivo.

     Um mundo do que não voltaria a sair jamais.

     Nesse momento um suave latido chegou até ele através da água. Voltou-se e viu Faol, de pé na borda do lago, olhando-o fixamente.

     — Vá, maldito animal! — Disse, dando-lhe as costas. — Não estou de humor para agüentar sua companhia.

     Faol latiu de novo, desta vez mais alto, com mais urgência.

     Morgan mergulhou na água e voltou a cruzar o lago a nado para se afastar do lobo. Com braçadas menos apressadas e sem alterar apenas a respiração, pensou de novo na visão do druida e no negrume que pululava pelo vale perseguindo a luz amarela.

     Não podia dizer a Mercedes que estava em perigo, porque não podia lhe explicar como sabia semelhante coisa… E tampouco podia deixar que descobrisse seu cânion. Era uma mulher muito inteligente e curiosa e conhecia muito bem aquele bosque para não dar-se conta de que ali atuava algo mais que o mero capricho da natureza. E além disso era muito moderna para entender que aquilo era obra da magia de um druida zangado.

     De repente tocou o fundo e ficou de pé; depois limpou a água da face e a escorreu do cabelo. Caminhava para a praia de cascalho quando se deteve o ver o Faol no limite do bosque, com o olhar cravado nele.

     — Maldição. Vai! — Disse.

     Voltou-se e percorreu a praia para onde estava Gràdhag, mas ao aproximar-se, o cavalo recuou vários passos e começou a fazer cambalhotas, nervoso, sem mover do lugar. Morgan se deteve e olhou atrás.

     Faol ia seguindo-o a dez passos de distância.

     Tirou a espada de sua capa, atada à cela, e se voltou para enfrentar-se ao lobo ao tempo que elevava a arma com gesto ameaçador.

     — Esta noite não quero nada contigo!

     O animal baixou a cabeça e deixou cair algo que levava na boca. Então Morgan baixou a ponta da espada e olhou ao chão com os olhos entreabertos.

     — O que é isso? — Perguntou, aproximando um passo.

     Faol gemeu e adiantou algo com o focinho.

     Morgan se agachou diante dele, colocou a espada sobre os joelhos e recolheu um objeto metálico. De repente uma língua quente e úmida lhe deu um lambida no lado da face.

     A surpresa fez que caísse para trás.

     — Maldito inseto…! — Limpou a cara com o dorso da mão. — Melhor que não esteja decidindo se serei boa comida.

     Esticou a mão e tocou ao lobo no lado da face, justo debaixo da orelha direita. Faol lhe deu com o focinho na palma e depois soltou um grunhido de satisfação no fundo do peito; então deu um passo para frente e, de um empurrãozinho, colocou o objeto esquecido na mão de Morgan.

     Este se centrou no que parecia ser o carregador de um rifle de caça; um rifle potente, a julgar pelo tamanho das balas.

     — De onde tirou isto? — Olhou ao lobo enquanto lhe dava a volta ao carregador na mão — Onde o encontrou?

     Faol deu a volta para internar-se no bosque, mas antes de chegar se deteve e olhou para trás. Então Morgan ficou de pé, voltou a colocar a espada na capa e agarrou sua roupa da cela. Depois de vestir-se depressa e meter-se no bolso o presente de Faol, montou em Gràdhag e se dirigiu com ele para o bosque para seguir o lobo, que corria já pelo estreito atalho que ia obscurecendo-se.

     Faol se meteu por um caminho mais amplo que discorria em direção norte e se afundava mais no vale. Morgan o seguiu durante vários quilômetros com o passar do rio Prospect até que, de repente, o lobo deixou o caminho e de um salto subiu ao topo de um montículo. Então Morgan deteve o Gràdhag e seguiu a pé, cruzando o bosque sem fazer ruído.

     Vozes masculinas atravessavam baixinho a calma da noite. Bruscamente, Faol se deteve e se deitou. Morgan fez o mesmo e observou os dois homens que estavam no acampamento que ficava debaixo.

     — Santo Deus, Dwayne! Não conheci ninguém tão idiota como você! Como diabos pode perder um carregador cheio de balas?

     — Juro-lhe isso, Harry, deixei o carregador aqui mesmo.

     Em tom queixoso, Dwayne assinalou uma lona pintada que estava estendida no chão.

     — Estava limpando as armas e fui à caminhonete a por um trapo para encerar. Mas quando tentei voltar a armar o rifle, não encontrei o carregador. — Sustentou em alto o farol de gás enquanto examinava o chão— Tem que estar por aqui, em algum lugar.

     Harry também examinou o chão do bosque com uma lanterna, e, enquanto procuravam, Morgan jogou uma olhada ao acampamento que os dois homens tinham levantado. Pelo visto pensavam estar no vale bastante tempo: tinham caixas de mantimentos empilhadas junto à parede exterior de uma grande barraca de campanha, vários bujões de gás, mochilas e uma canoa atada ao reboque da caminhonete.

     Tinham instalado o acampamento perto do rio, embora a suficiente distância para que não os visse ninguém que descesse em barco pelo Prospect.

     Morgan não gostou que estivessem ali, no vale da Mercedes. Tinham toda a pinta de ser um par de caçadores furtivos. Embora naquela zona faltavam ainda várias semanas para que se abrisse a temporada, perto da lona, apoiados em uma árvore, havia dois rifles de caça de grande potencializa.

     Segundo sua experiência, tanto a de fazia oito séculos como a dos últimos seis anos, os caçadores furtivos eram gente ladina que só pensavam em si mesmos e constituía um perigo para tudo o que se cruzasse em seu caminho.

     Algo que seguro que Mercedes acabaria fazendo, se não deixasse de plantar suas fitas.

     Depois de deixar que Faol vigiasse a aqueles homens, Morgan deu um silencioso suspiro, retrocedeu até baixar o montículo e se aproximou do Gràdhag. E enquanto cavalgava na noite, tentou decidir como protegeria Mercedes ao tempo que tentava proteger o vale da própria Mercedes… E todo isso, sem deixar que sua ânsia de possuí-la o desviasse de nenhuma das duas tarefas.

 

     No que ao tempo se referia, no Maine setembro e março eram meses de transição, e fazia muito que Sadie tinha decidido que também eram os mais interessantes. O motivo eram os equinócios, quando o sol estava justo sobre o Equador e igualava as horas de luz e as de escuridão. Esse era o momento decisivo das estações, a ofensiva final das massas de ar que se moviam com a inclinação da Terra e originavam grandes batalhas entre os ares quentes do sul e os ares frios procedentes do norte.

     E, a julgamento de Sadie, setembro era a época mais estupenda do ano para viver no Maine, apanhada em metade dessas eternas guerras meteorológicas.

     De modo que, tendo isso em conta, ao preparar suas coisas aquela manhã encheu uma bolsa impermeável para o caiaque com umas calças curtas, camisetas, capas e jerséis grossos. Também colocou uns calções largos, um traje impermeável completo, uma barraca de campanha e comida para vários dias.

     A seguir comprovou o equipamento: GPS, celular, câmara nova, cinco carretéis de filme, fósforos, acendedor, faca, garrafas de água, fita seladora, duas lanternas e várias cordas. Em outra bolsa impermeável, esmeradamente dobrados, colocou os mapas e a fotocópia do jornal de Jean Lavoie que lhe tinha dado Eric, assim como seu próprio jornal das últimas dez semanas.

     Satisfeita ao fim ao ver que o tinha tudo, dirigiu-se à porta da cabana. O plano era ir de carro até a cabeceira do Prospect, uns doze quilômetros rio acima, além da montanha Fraser, e depois fazer a rota rio abaixo; vinte e sete quilômetros em três jornadas, se não se entretinha muito.

     Com sorte, convenceria a sua mãe para que fosse a recolhê-la de carro ao extremo do vale. Do contrário, teria que fazer uma excursão de volta bem larga até a caminhonete.

     Sadie abriu a porta da cabana com o pé e acabava de sair ao alpendre quando de repente se deteve e deixou cair tudo o que levava. Então olhou fixamente a nota que alguém tinha enganchado, torcida, no poste: “NÃO VÁ AOS BOSQUES HOJE.”

     Arrancou o papel e o deu uma olhada feroz às letras que uma mão, evidentemente masculina, tinha rabiscado com vigor: “NÃO VÁ AOS BOSQUES HOJE.” Nada mais: nem o nome do autor da nota, nem explicação alguma. Só um mandato que, em teoria, devia obedecer.

     Morgan MacKeage estava manipulando-a de novo, desta vez à distância. E, além disso, cada segundo do encontro de fazia duas noites, esperava que ela fizesse conta.

     Com o cenho franzido, olhou ao bosque que havia diante da cabana. Do que ia aquilo? O tipo se limitava a deixar uma nota e esperava que ela o obedecesse como um cordeirinho?

     Enrugou o papel na mão, espremeu-o com enérgico aborrecimento e o atirou ao bosque. Maldição: pagavam-lhe por fazer um trabalho, e Morgan não esperaria que trocasse de planos só porque gostasse de pôr à prova a amizade que havia entre os dois. Dava-lhe igual a seus beijos fossem espetaculares, não ia seguir lhe o jogo.

     Valente descarado, deixar uma nota semelhante em lugar de ter a delicadeza de bater na porta e explicar suas razões…!

     O que fazer? O que fazer?

     Se ficasse na cabana, que mensagem lhe transmitia? Que era uma pequena lass boa e obediente, a que ele podia dobrar a seu capricho?

     Embora Morgan não lhe parecesse um homem que desse ordens à ligeira… E ela tampouco era uma mulher que ignorasse uma sugestão dada sinceramente, se a respaldava uma razão de peso.

     Agitou o punho em direção aos bosques e gritou:

     — Maldição, MacKeage! É um arrogante imbecil!

     Ao não obter resposta a seu sonoro arrebatamento, soprou de frustração e retornou junto a suas coisas caídas no chão. Depois de recolher a bolsa impermeável que tinha os papéis dentro e tirar o jornal do Jean Lavoie e seu próprio jornal, e zangada consigo mesma por deixar que seis singelas palavras lhe fizessem trocar seus planos, desceu os degraus pisando forte e, dando passo longos, foi para um par de arces muito altos entre os quais pendurava uma rede.

     Esteve a ponto de enforcar-se ao meter-se na rede e ao final acabou no chão, em meio de uma nuvem de terra que a fez ficar a tossir.

     Tinha que controlar-se ou, se não, ia terminar se machucando. Certo: não se aproximaria dos bosques hoje, mas Morgan MacKeage ia receber um sermão sobre a amizade… No caso de que voltasse a vê-lo alguma vez.

        

     Assombrou-a a quantidade de trabalho que tinha feito, impulsionada por uma boa dose de aborrecimento. Primeiro tinha passado mais de três horas deitada na rede, absolutamente absorta no jornal de Jean Lavoie e rabiscando com frenesi nota em seu jornal que a ajudariam a localizar os movimentos de Jean pelo vale. Agora estava dando um bom encerado a seu velho caiaque ao tempo que repassava mentalmente o jornal de Jean Lavoie.

     Nos princípios da década de 1900 em toda aquela cercania se realizaram tremendos cortes, e pouco a pouco o acampamento madeireiro onde Jean cozinhava foi mudando rio acima com os lenhadores. Conforme tinha tirado limpo do jornal, pelo visto houve ao menos três acampamentos, ou possivelmente quatro, que se levantaram durante um período de seis anos.

     Mas tudo aquilo tinha ocorrido fazia mais de oitenta anos; agora os restos dos acampamentos estariam podres e certamente se teriam convertido de novo em parte do bosque.

     Além disso, e apesar de seu gosto por detalhes, Jean Lavoie não tinha muito talento como escritor, e ainda por cima o jornal continha tantas palavras franco canadenses que a leitura era virtualmente impossível em algumas passagens.

     Contudo, tirou algo em limpo: ao que parecia, durante o quarto ano da temporada em que Jean trabalhou como cozinheiro, Jedediah Plum visitou o acampamento número três que, pelo visto, estava no lado oeste da montanha Fraser, longe das bordas do rio Prospect.

     Sadie deu a volta ao caiaque sobre a mesa dobradiça e começou a esfregar com cera a parte de cima. Tinha que encontrar o acampamento número três: era o último lugar testemunhado onde se havia visto vivo o Jedediah. E, além disso, o lado oeste da montanha Fraser também estava perto da zona onde seu pai suspeitava que se encontrasse o ouro.

     Entretanto, apesar dos anos de investigação, só tinha conseguido situar o lugar em uma área de uns dois mil acres, e procurar uma pequena lacuna cheia de areias de ouro em dois mil acres era como tentar encontrar uma agulha em um palheiro. Havia centenas de diminutos arroios que desciam destas montanhas, ou talvez milhares, e qualquer deles podia ser a origem do ouro de Jedediah.

     Sadie atirou na mesa o trapo coberto de cera, agarrou outro trapo limpo e começou a esfregar o caiaque com fortes movimentos circulares. No dia seguinte iria até o pé da montanha Fraser e estabeleceria ali seu acampamento, embora não procuraria o arroio de Jedediah, e sim o lugar onde tinha estado o terceiro acampamento madeireiro; se o encontrasse, talvez, só talvez, acharia também uma pista que a levasse até o ouro.

     Nesse instante o som de uma caminhonete que avançava rápido irrompeu em seus pensamentos. Elevou a vista e viu que era Eric Hellman, que chegava levantando uma nuvem de cascalho, carregada de pó e agulhas de pinheiro, que estragou seu jardim recém rastelado.

     De um salto, Eric saiu da caminhonete e avançou para ela a grandes passos.

     — É segunda-feira. — Disse ele. — O que significa que está trabalhando, Quill. Por que não está por aí procurando o ouro do Plum?

     Sadie colocou os braços cruzados e lhe deu uma olhada assassina.

     — Porque agora mesmo estou decidindo onde procurar. E, além disso, Eric, a questão é outra: se acreditava que eu andava procurando o ouro, o que faz aqui?

     Suas palavras, e muito possivelmente sua atitude, detiveram-no metade de um passo longo.

   — Eu… Bem, trouxe as fotos aéreas que me pediu — Respondeu.

     Elevou as mãos vazias e as olhou; então deu a volta e retornou à caminhonete.

     — Esta manhã fui a Augusta. — Prosseguiu, falando por cima do ombro; abriu a porta da caminhonete, tirou um tubo de cartão e voltou até ela .Não quis esperar a que as mandassem por correio. Quando passou pela loja ontem e me disse que lances necessitava, pensei que era mais simples as sem mais esta manhã.

     Estendeu-lhe o tubo.

     — E aqui estão. Ia deixar isso na cabana.

     Sentindo-se um pouco idiota por tê-lo arreganhado, Sadie agarrou o tubo, tirou as fotografias e as desenrolou em cima do caiaque.

     Eric olhou as fotos por cima de seu ombro e lhe disse:

     — Tenha muito cuidado com elas, custaram uma pequena fortuna.

     Sadie se voltou, surpreendida.

     — Não havia dito aos de Augusta que eram para o parque? Não tinham que te haver cobrado nem um centésimo.

     Eric meneou a cabeça.

     — Nem pensar, Quill. O consórcio corre com os gastos até que o parque se aceite, e depois o estado se encarregará dos custos. Por isso tem que encontrar o ouro de Jedediah, para que tenhamos todos os recursos que necessitamos.

     Sadie apertou os dentes. Não gostava da insinuação que havia em suas palavras.

     — Pois possivelmente o ouro não exista. — Replicou em seguida. — Maldição, Hellman, ninguém me disse que o consórcio contava com esse ouro para financiar-se.

     — E como diabos acredita que vamos comprar a terra? Tem idéia do que custam as terras madeireiras produtivas?

     Sadie voltou a cruzar os braços e, com os olhos entrecerrados, dirigiu-lhe um olhar penetrante.

     — Está dizendo que de verdade um grupo de inteligentes homens de negócios dá o dinheiro para este projeto apoiando-se em uma lenda?

     — Jedediah Plum não é uma lenda! — Replicou Eric. Agora era ele quem estava zangado. — Esse homem rondou por esta cercania durante quase sessenta anos. Conhecia cada centímetro do terreno e encontrou ouro. Quando o velho Caçador veio ao povoado, meu bisavô o viu. Diabos, aquele verão Jedediah pagou cervejas a todos.

     De repente suspirou, sentou-se na mesa dobradiça e elevou a vista para ela.

     — E os planos para o parque são de verdade, Sadie. O parque ajudará a esta zona de infinidade de maneiras, e ao final reuniremos os recursos que necessitamos para comprar a terra. Mas se encontrarmos o ouro de Jedediah, isso acontecerá muito antes.

     — Bem, pode que encontremos um filão de verdade, mas como não somos donos da terra, não poderemos entrar e pegá-lo sem mais.

     Eric deixou ver um amplo sorriso.

     — Sadie, até seu pai sabia que não há nenhuma mina. Jedediah procurava ouro crivando, não cavando, e se um crivo e se encontra ouro nas areias de um rio, pega. Enquanto não esteja no chão e sim em águas estatais, quem o encontra fica. E isso quer dizer que ficaremos com o ouro legalmente para construir nosso parque.

     Eric se levantou, enrolou as fotografias e voltou às colocar no tubo. Depois usou o tubo para assinalá-la.

     — Assim, eu digo a você, senhorita, empregaria cada hora de luz disponível para procurar. Se os irmãos Doam encontram o ouro antes, demoraremos anos em arrecadar o dinheiro que necessitamos.

     Sadie recordou as acusações que Morgan tinha arrojado fazia duas noites.

     — Que interesse tem nisto, Eric? — Perguntou a ele. — Intervém como ecologista ou como homem de negócios?

     Ele revirou os olhos.

     — Desça das nuvens, Quill, o consórcio o formam homens de negócios. É uma situação em que todo mundo ganha: tiramos proveito de ter um formoso parque em nosso jardim traseiro, e além se protege a terra.

     — Se é que encontro o ouro.

     Eric deu um golpezinho no caiaque com o tubo das fotografias.

     — Esse é o plano. — Concordou. — Então procure se manter na frente do Harry e Dwayne nesta pequena corrida.

     — Doam estão procurando quase tanto tempo como eu. — Disse ela. — E agora não estão mais perto que faz três anos.

     — Não conte com isso. — Disse Eric. — Como acredita que consegui o jornal?

     — Como? — Perguntou Sadie em voz baixa.

     — Em realidade, descobriram-no Harry e Dwayne, mas foram tão idiotas como para fanfarronear disso. Uma noite, enquanto não estavam, coloquei-me às escondidas em sua casa, fiz uma cópia e depois devolvi o original a seu lugar. — Fez um gesto afirmativo em direção à rede, onde viu a cópia roubada, e a assinalou com o tubo. — Então procure encontrar a relação entre Jedediah e o cozinheiro antes que eles.

     Mas antes que Sadie pudesse lhe comunicar o que pensava de sua ética mercantil, um grunhido grave e ameaçador saiu do bosque justo à direita de onde estavam. Eric, que não estava acostumado a sentir-se a gosto naquelas paragens, voltou-se surpreso e abriu muito os olhos ao ver o lobo que estava de pé na borda do claro. A toda pressa, retrocedeu um passo de lado para que primeiro a mesa e depois Sadie se interpor entre ele e o grande jogo de dentes que exibia o animal.

     Mas o que provocou o calafrio que de repente desceu pela coluna vertebral de Sadie não foi Faol, não. O que fez que lhe secasse a boca foi o homem que estava de pé junto ao lobo.

     O escritor de notas tinha voltado para o cenário de seu decreto.

     Por que não a surpreendia que aqueles dois seres de olhos verdes e aspecto selvagem se conhecessem? Quase sem mover os lábios, Eric perguntou:

     — Quem diabos é esse? O cara parece pior que seu cão.

     — É Morgan MacKeage. — Sadie baixou a voz para que não ouvisse o outro lado do claro. — E se deseja que o parque funcione, a primeira terra da montanha Fraser que terá que comprar é a sua, sem ela não há acesso ao vale pelo sul.

     Só para chateá-lo, acrescentou:

     — E isso não é um cão, Eric, é um lobo.

     Ele ficou rígido e se aproximou dela um pouco mais, mas, pelo visto, Faol não gostou que o fizesse, e avançou e voltou a grunhir, com o lombo arrepiado em sinal de advertência.

     — Santo Deus! — disse Eric quase sem respirar. — Ande, Quill, me leve a minha caminhonete!

     Mais por vontade de que partisse que por piedade, Sadie rodeou a mesa dobradiça e foi para a caminhonete, mantendo-se entre Eric e os recém chegados, enquanto tentava não rir ao ver que seu chefe lhe pegava ao flanco como uma sombra. Juntos caminharam a curta distância que havia até o veículo, e uma vez ali, ela abriu a porta. Eric subiu rapidamente, fechou de uma portada e trancou-a. Depois pôs em marcha o motor e subiu os vidros.

     Só então se voltou para lançar a Sadie um olhar feroz. Ela correspondeu com um sorriso, agitou os dedos em uma despedida zombadora e se afastou justo quando seu chefe dava uma volta e saía de marcha ré com a caminhonete, levantando outra nuvem de terra e deixando no cascalho um sulco de quase três centímetros de profundidade.

     Sadie sacudiu a roupa, voltou-se e se dirigiu de novo à cabana, ignorando por completo seus hóspedes. Recolheu a bolsa impermeável, a mochila e a barraca de campanha, e levou tudo à caminhonete. Depois abriu a porta traseira e lançou as coisas dentro, e ao voltar-se esteve a ponto de se chocar com Morgan MacKeage.

     — Eu não gosto de seu chefe. — Disse ele, sem sair do meio.

     — Neste momento, a mim tampouco. — Se apressou a replicar ela, enquanto o rodeava.

     Foi à mesa dobradiça, agarrou o caiaque e o jogou no ombro. Quando girou em redondo, Morgan mal teve tempo de agarrar o focinho do bote antes que o golpeasse no peito.

     — Maldição, Mercedes! — Arranco o caiaque do ombro e o pôs no seu. — Estou tentando falar contigo!

     — Quão único desejo escutar é sua explicação de por que deixou essa nota no alpendre esta manhã.

     Ele se acomodou melhor o caiaque e lhe dirigiu um amplo sorriso.

     — Não posso acreditar que tenha ficado.

     Sadie o olhou com o cenho franzido.

     — Era uma prova, ou havia algo perigoso nos bosques?

     Ele ficou sério.

     — Caçadores furtivos. — Respondeu concisamente. — Ou isso me pareceu. Mas, segundo seu chefe, esses dois homens são seus competidores, e isso os faz inclusive mais perigosos.

     Com um gesto da mão, Sadie rejeitou o comentário e voltou a dirigir-se para a caminhonete.

     — São os irmãos Doam. — Disse a ele. — Nenhum deles é capaz nem de atar os sapatos, e mais que para ninguém, são um perigo para si mesmos.

     Deteve-se diante a caminhonete, agarrou um extremo do caiaque e o levantou até ao reboque. Depois deixou que Morgan o deslizasse até seu lugar enquanto ela ficava no estribo para amarrar o bote.

     Enquanto lhe lançava uma correia às mãos, perguntou-lhe:

     — E o que sabe você de que sejam nossos competidores? Quanto tempo esta aí, nos escutando?

     — O suficiente para saber que este parque que está tão decidida a construir ao melhor não se faz realidade.

     Sadie deu uma olhada assassina por cima do teto.

     — Sim, se fará realidade, porque vou encontrar esse ouro e vou dá-lo ao consórcio. O Parque Natural Frank Quill se construirá, embora tenha que revirar todas as rochas deste vale.

     Ele se deteve, apoiou as mãos no teto e cravou os olhos nela.

     — Mas por quê? Por que um parque, precisamente, e por que aqui?

     Sadie esticou a última amarração de seu lado, e então apoiou também as mãos no teto e o olhou.

     — Porque este é o vale que meu pai amava. Aqui é onde passei todos os verões, todos os fins de semana e todas as férias com ele. A alma de Frank Quill ainda ronda estes bosques, procurando o ouro de Jedediah.

     Com o cenho franzido, Morgan acabou de assegurar seu lado do caiaque, depois rodeou a caminhonete e ficou diante de Sadie. Ela o encarou e imediatamente se encolheram os dedos dos pés: uma reação diante o que intuiu que se morava.

     — Impressionou-me muitíssimo que tenha ficado esta manhã. — Disse ele, justo enquanto a rodeava com seus braços e seus lábios entravam em contato com os dela.

     Sadie ficou rígida, manteve a boca bem fechada e tentou não notar quão bem cheirava Morgan, nem como acelerava o coração ao sentir seu forte corpo tão intimamente apertado contra o seu. Não podia beijá-la sempre que quisesse.

     E um pouco mais importante ainda, ela não podia querer que o fizesse. Graças ao encontro do sábado de noite tinha aprendido que responder aos beijos de Morgan MacKeage talvez conduzisse, em um tempo muito breve, até a intimidade… E a intimidade significava despir-se.

     E isso não podia ocorrer.

     Sentiu-se girar pelo espaço, e até que tocou o capô da caminhonete com as costas não se deu conta de que Morgan acabava de pegá-la nos braços e agora estava quase jogado sobre ela.

     Maldição, era um verdadeiro macho dominante quando se tentava beijar.

     Ao notar que tirava de dentro das calças a camiseta, afastou a boca com um grito afogado, ao mesmo tempo em que lhe agarrava a mão para deter seu avanço. Além disso, deu-lhe um forte empurrão no ombro para afastá-lo.

     Foi como tentar empurrar uma montanha… E de repente se encontrou olhando uns olhos de um verde compacto, tão escuros e vertiginosos como o bosque durante uma tormenta.

     — Mas isso é… Eu não… Não pode…

     Fechou a boca de repente e deu uma olhada feroz.

     Ele se limitou a observá-la, por um longo momento. Depois jogou para trás a cabeça e riu a gargalhadas. Ao fim se endireitou, puxou-a para incorporá-la e, quando esteve de pé contra ele, abraçou-a forte.

     — Algum dia, lass, sua boca alcançará a seu cérebro. — Disse, sem parar de rir nem de estreitá-la. Depois puxou seu cabelo para lhe jogar a cabeça atrás e lhe deu um beijo intenso, embora breve, nos lábios. — Embora tenha minha permissão para atrasar esse dia vários anos mais ainda.

     Ela tentou afastar-se, mas ele não a soltou.

     — Bom, lass, aonde vamos com tanta pressa esta tarde? Tenho que levar meu barco? — Lançou uma rápida olhada ao caiaque e depois a olhou outra vez. — Porque tenho que te dizer algo: usa uma embarcação muito rara; a minha não é assim.

     — Eu vou ao Prospect montar meu acampamento. E quanto a você, vai para sua casa e nem em sonhos se meta em meus assuntos.

     Ele meneou a cabeça e a olhou com um amplo sorriso.

     — Ai, Mercedes. Ainda não entendeu? Ao ficar hoje, deu-me sua confiança.

     — Eu fiquei porque tinha coisas para fazer.

     Escapuliu-se de entre seus braços, foi à rede e agarrou o jornal roubado e seu próprio jornal. Ao dar a volta, encontrou Morgan sentado no alpendre, esperando-a. Faol estava sentado junto a ele. Tinha a cabeça inclinada em um gesto de curiosidade, e com o olhar seguia todos seus movimentos.

     Se não soubesse que era impossível, pensaria que aqueles dois arrogantes idiotas riam dela.

     Sadie foi a sua caminhonete a grandes passos e ignorando Morgan e o lobo que, em silêncio, ajustavam o passo ao dela. Então entrou, mas antes de poder fechar a porta, Morgan tinha posto uma mão no teto, apoiava um braço no bracelete interior e a impedia de partir.

     Sadie o deu uma olhada assassina.

     Ele a olhou com um amplo sorriso.

     — Até mais tarde, gràineag — Disse ao mesmo tempo em que fechava a porta com suavidade.

     Ela baixou o vidro.

     — O que significa isso? — Gritou-lhe à costas enquanto ele se afastava.

     Morgan se deteve, voltou só a cabeça e lhe piscou um olho.

     — É uma palavra carinhosa, lass. E vai muito melhor que essa luva que leva na mão direita.

     Com aquela adivinhação se enfiou nos bosques, e Sadie observou como Faol corria para alcançá-lo. O lobo se deteve justo antes de entrar no bosque e se voltou a olhá-la; deu um só latido, depois deu a volta e se desvaneceu também na paisagem.

     Depois se ouviu o tamborilar de uns cascos de cavalo que atravessavam os bosques, e Sadie ficou escutando até que só se ouviu um eco que se apagava. Morgan MacKeage e sua estranha turma de animais partiram, desaparecendo de forma tão súbita como tinham chegado.

     Então se voltou e olhou fixamente pelo pára-brisa o caminho que tinha diante.

     — Um termo carinhoso, né? — Sussurrou para si. — Pois a mim também me estão ocorrendo uns quantos para você, MacKeage… E duvido de que lhe agradem mais do que eu gosto do meu.

     Dito isto, fez girar a chave no contato e colocou em movimento a caminhonete. Ia enfiar-se naqueles bosques com a esperança de que o vale fosse o bastante grande para evitar os irmãos Doam, a seu chefe, ao lobo e ao Morgan MacKeage… Enquanto procurava o ouro de Jedediah.

 

     O problema com o desejo, tal como Sadie o via, era que os acalorados hormônios não tinham sentido de discrição; simplesmente, contentavam-se escolhendo o primeiro homem bonito, adequado ou não, que tivesse a desgraça de cruzar-se em seu caminho. E era justo essa imprudência o que agora lhe provocava aquele problema.

     Porque, certamente, seus hormônios gostavam de Morgan MacKeage.

     Com um gesto distraído, jogou outro pau ao mortiço fogo e tomou um gole de chá de camomila, enquanto observava como a lenha prendia e flamejava. Uma umidade própria de um verão tropical flutuava no ar, carregada com a promessa de tormentas, por isso tinha situado o acampamento longe da ameaça de uma súbita enchente do rio, longe das muito altas árvores que possivelmente atraíssem algum raio e também do caminho por onde, de repente e sem avisar, pudessem cair rochas desprendidas da montanha Fraser.

     Igual ou melhor, de repente e sem avisar, seu coração podia cair sob o feitiço dos inesquecíveis, profundos e fascinantes olhos cor verde selva de Morgan.

     E esse era o problema. Como ia dizer a Morgan, assim, pelas boas, que o que ela queria não era amizade, mas sim uma boa transa? E como ia ser possível algo assim sem ter que tirar a roupa?

     Pelo visto, seus hormônios não compreendiam que não podia despir-se sem mais e meter-se na cama de um salto… Ao menos, se não queria que imediatamente Morgan saísse dando outro salto e pusesse-se a correr, horrorizado.

     Pôs a xícara de chá sobre uma pedra, perto do fogo, e tirou devagar a luva da mão direita. Depois flexionou os dedos, voltou a palma para cima e olhou fixamente o labirinto de cicatrizes que lhe marcava a Lisa pele, como as brancas linhas de um tecido de aranha.

     Sempre que tentava olhar suas cicatrizes com objetividade, quase conseguia convencer-se de que não eram feias. Não eram nada mais que pele danificada que havia feito um eficaz trabalho de cura.

     Ao menos podia utilizar a mão. A pele, embora tensa e um pouco mais áspera que sua versão original, seguia cumprindo bem sua função de proteger o osso, os músculos e as cartilagens que havia debaixo.

     Então estendeu bem os dedos. Era a visão romântica de si mesma a que a fazia calçar a luva cada manhã, colocar uma camiseta interior e usas manga longas, e também a que às vezes o fazia desejar que seu pai não tivesse chegado até ela a tempo.

     — Usa a luva para esquecer o aspecto que tem sua mão?

     Sadie caiu do tronco em que estava sentada e aterrissou no chão, dando um grito de surpresa. Seu pé golpeou a xícara e a mandou ao fogo; o líquido chiou ao evaporar-se nas brasas e a xícara de plástico explodiu em vistosas chamas.

     Nesse momento a risada divertida de um homem chegou até o acampamento, e atrás dela, as formas em sombra de dois corpos: um muito alto e o outro baixo e coberto de cabelo.

     — Maldição, MacKeage, caminha pelo bosque como um fantasma!

     Ele voltou a rir e se agachou diante dela. Sadie conteve o fôlego. Parecia mais impressionante que os pinheiros centenários que se sobressaíam sobre aqueles bosques, mais robusto que as montanhas e muitíssimo mais selvagem que o rio que corria em rápidos apenas a cem metros dali.

   Tinha o ondulado cabelo loiro solto, com duas finas tranças que lhe limpavam a face. Seus ombros eram largos o bastante para acelerar seu coração, e suas mãos, que estavam postas nos joelhos, eram o bastante grandes para fazer que lhe secasse a boca. Às costas levava uma mochila; as correias esticavam a camisa sobre o peito e punham de relevo todos os músculos que um homem necessitava para fazer que a cabeça de uma garota ficasse a dar voltas.

     — Vamos, lass, me deixe te ajudar.

     Sadie cravou o olhar na mão que ele estendia. O que acontecia com aquele homem, que sempre insistia em lhe agarrar a mão direita? Ignorando o oferecimento, e um pouco irritada por ter pensamentos lascivos enquanto ele parecia absolutamente alheio à questão, deu a volta e se levantou sem sua ajuda. Imediatamente pôs certa distância entre eles e, ao mesmo tempo, meteu a mão direita no bolso.

     Morgan se voltou em cócoras e se sentou no tronco que tinha sido ocupado por ela. Depois esticou a mão, recolheu a luva do chão e a levantou para observá-la bem à luz do sol poente.

     — É feita de um formoso couro suave. — Esfregou a luva entre os dedos e elevou a vista para ela. — O necessita para proteger a pele, Mercedes?

     Ela fechou o punho dentro do bolso e apertou os dentes para não grunhir de frustração.

     — Não — disse concisamente, ao mesmo tempo em que elevava o queixo e estendia a mão esquerda para que lhe desse a luva.

     Mas em vez disso, Morgan a lançou a Faol. Em seguida o lobo o agarrou e a olhou, com a luva pendurando da boca como um rato morto.

     — Então, por que a usa? — Perguntou.

     Suas palavras atraíram de novo a atenção de Sadie, que lhe dedicou um olhar assassino.

     — Mas o que acontece com você? É um traço escocês essa necessidade que tem de ser grosseiro? Primeiro esse ancião sacerdote intrometido, e agora você… O porquê uso uma luva é meu assunto.

     Ele meneou a cabeça e esboçou um meio sorriso. Depois soltou a mochila e a deixou cair no chão.

     — Já estou aqui a gràineag — Disse.

     — O que significa isso?

     — Direi isso se vier aqui se sentar comigo. — Respondeu ele, ao tempo que dava um tapinha ao tronco, a seu lado.

     Imediatamente Sadie começou a suspeitar, de modo que ficou onde estava, cruzou os braços sob o peito e enterrou a mão direita nas dobras do forro da jaqueta.

     — O que faz aqui, MacKeage?

     Ele recolheu a mochila, ficou a desabotoar as fivelas e abriu a lapela superior.

     — Pareceu-me que procurar ouro poderia ser uma boa aventura. — Lançou-lhe um amplo sorriso. — E fazê-lo com você pode ser muito divertido.

     Enquanto ele voltava a concentrar-se no conteúdo de sua mochila, Sadie ficou boquiaberta e sem fala. Queria procurar ouro do Plum? Com ela? Pretendia que viajassem juntos, compartilhando o bote e as comidas?

     E o acampamento?

     Morgan tirou da mochila uma garrafa de vinho, deixou-a no chão e depois agarrou o bule que ela tinha deixado perto do fogo para que se mantivera quente. Depois de observar o bule, fez uma careta e derrubou o chá no chão.

     Incapaz ainda de recuperar a fala, embora sem saber de todo se era pela impressão de ouvir suas intenções ou pela curiosidade que despertava o que fazia, Sadie só pôde ficar quieta e olhar. Enquanto isso, Morgan tinha posto o já vazio bule na churrasqueira, sobre o fogo. Depois procurou em sua mochila outra vez, tirou um saca-rolha e rapidamente abriu a garrafa de vinho e a verteu quase toda no bule.

     Algo chocou contra a coxa de Sadie, que deu um pulo de surpresa. Baixou o olhar e descobriu Faol de pé, a seu lado, que, com a luva ainda na boca, cravava nela seus imperturbáveis e irisados olhos verdes. Sadie se apressou a afastar-se até pôr uns dois metros entre ambos.

     Então Morgan voltou a reclamar sua atenção.

     — Não te fará mal, Mercedes. — Lançou-lhe outro amplo sorriso. — Começo a pensar que esse inseto te tomou simpatia.

     — E eu começo a pensar que pensa muito. Você não vai procurar o ouro de Plum. — Com um gesto da mão assinalou seu acampamento. — Não pode entrar aqui sem mais e dizer que vem comigo. Eu não vou de aventura: vou construir um parque.

     — Um parque que, segundo seu chefe, só se fará realidade se encontrar o ouro. Eu te ajudarei. — Seu sorriso se alargou, e seu já impressionante peito se inchou uns quinze centímetros mais. — Sou um caçador muito bom.

   Sadie teve vontade de gritar de frustração mas ao mesmo tempo, também de aproximar-se o e lhe dar um muro na cabeça. Em vez disso, esfregou as mãos nas coxas. Não tinha intenção de compartilhar seu acampamento com aquele homem, nem sequer uma noite, porque provavelmente faria alguma idiotice, como lançar-se sobre ele no mesmo instante em que ficasse adormecido.

     Em tom paciente, explicou-lhe:

     — Procurar ouro não é como caçar algo para o jantar. É uma tarefa pesada e frustrante, que com freqüência depende mais da sorte que da habilidade.

     Mas não lhe prestava atenção: voltava a ter o nariz metido na mochila. Desta vez tirou uma latinha prateada; abriu-a, tomou um pingo do que fosse e o jogou no bule do vinho, que já soltava vapor.

     — Morgan, tem que ir. — Insistiu Sadie em tom um pouco desesperado. — Não pode vir comigo, e nem em sonhos vamos compartilhar o acampamento.

     Já que Morgan estava ocupado ignorando-a e revolvendo na mochila de novo, foi Faol que respondeu. Sem soltar a luva, o lobo se aproximou da parte traseira do fogo, deitou-se como se instalasse para passar a noite, pôs a cabeça sobre as patas e fechou os olhos.

     Morgan tirou duas xícaras de lata da mochila.

     Então Sadie girou sobre seus calcanhares e entrou no bosque.

     Parou justo além da luz do fogo e deixou que seus olhos se adaptassem à escuridão. Quando pôde ver, dirigiu-se para o rio.

     Aqueles dois eram mais teimosos que duas mulas: metiam-se em sua vida pela força, desenquadravam-lhe os nervos e nenhum dos dois tomava em conta seus desejos de que a deixassem sozinha. Pelo visto, Faol tinha decidido que gostava da companhia dos humanos e tentava ganhar seu afeto. E quanto ao Morgan, era muito bonito e egoísta para que ela pudesse estar tranqüila ao seu lado.

     Provavelmente tinha sido por isso que aceitou o encontro às cegas. Conhecendo sua mãe, quase certamente teria falado ao Callum do ouro de Plum, e, por sua vez, seguro que este falou dele a Morgan. Assim saiu com ela e a deixou sem sentido a beijos com a esperança de ganhar seu afeto, igual ao lobo. E agora se acreditava que ia procurar o ouro com ela; desse modo, depois reclamaria sua parte e não ficaria dinheiro suficiente para financiar o parque ao que se mostrou tão contrário.

     De repente, Sadie deu um tropeção e caiu de cara na terra úmida da ribeira. Deu a volta até ficar sentada e se voltou a olhar a canoa verde escuro que estava sobre o cascalho, acima.

     Fazia uma hora, aquele bote não estava ali.

     Avançou engatinhando para dar uma olhada mais de perto. Era um barco antigo, de sólida construção, feita de cedro e lona, ao menos de seis metros de longitude. Também era pesada. Necessitou toda sua força para pô-la direita e deixar ao descoberto a mochila de lona que estava escondida debaixo.

     Imediatamente esticou a mão e agarrou a larga espada, embainhada em couro, que estava junto à bolsa. Depois de acomodar-se no cascalho, apoiou as costas na canoa e depois puxou a pesada espada e a pôs no colo. Desatou os cordões de couro da parte superior e, com estupidez, tirou devagar a enorme arma de sua capa.

     A luz da lua cintilou na folha.

     — Vá com cuidado, lass, não vá abrir um talho nas mãos.

     Sadie elevou a vista e a menos de três metros se encontrou com Morgan, que levava duas xícaras fumegantes. Aproximou-se dela, sentou-se a seu lado e lhe pôs uma xícara na mão.

     Justo antes de dar um gole ao dele, disse-lhe:

     — Parece-te raridade isso de ir carregando uma espada.

     Ela se levou a fumegante xícara ao nariz, cheirou-a e se estremeceu sem querer.

     — Nossa. O que é isto?

     — Ponche… Ou algo bastante parecido. Bebe, lass, é melhor do que cheira.

     Sadie não queria ofendê-lo recusando seu obséquio, embora tampouco entendesse por que devia preocupar-se por seus sentimentos; mesmo assim, deu um tímido sorvo. E, de novo, todos os músculos de seu corpo se estremeceram de forma incontrolável.

     Morgan soltou uma risadinha e tomou outro gole, este maior, de seu vinho. Enquanto isso, com gesto distraído, Sadie tocou a folha da espada.

     — Sim, é bastante raro que vá pelo bosque carregando com uma espada. Pesa muito. Por que a leva?

     Ele deteve os dedos lhe cobrindo a mão nua com a sua.

     — Porque é uma arma muito eficaz. — Levou sua mão aos lábios e lhe beijou a palma suave.

     Sadie ofegou e conteve o fôlego.

     Acabava de lhe beijar as cicatrizes.

     Ela não soube o que fazer, o que dizer, como agir…

     Por isso, sem pensar, tomou outro gole de vinho.

     Imediatamente saltaram lágrimas de seus olhos, e aquele gosto tão potente fez que fechasse a garganta em uma reação defensiva. Estava a ponto de romper a tossir.

     O homem que estava a seu lado soltou outra risadinha e deixou sua xícara para lhe agarrar a mão direita entre as suas. Ignorando seu puxão para soltar-se, deu a volta à mão até pô-la com a palma para cima e desenhou com suavidade as cicatrizes com um dedo.

     — Quer me falar do incêndio? — Perguntou.

     Sua voz baixa e de timbre grave fez que Sadie sentisse um calafrio pela coluna vertebral.

     — Não.

     — De sua irmã, então; de seu pai…

     — Não.

     Ele riu baixinho e lhe soltou a mão. Depois tirou a espada do colo e a colocou no chão a seu lado. Logo voltou a agarrar a xícara daquele veio tão horroroso que Sadie seguia sustentando e o pôs junto à espada. Por último, tomou-a pela cintura e a pegou nos braços. Em um abrir e fechar de olhos, Sadie se encontrou montada escarranchado sobre suas coxas, com os olhos à altura dos seus.

     E deixou de respirar outra vez.

     — Então, se não está de humor para falar, o que faremos o resto da noite, lass?

     Com tudo os hormônios de seu corpo dançando de repente como as faíscas de um rastro de pólvora, Sadie considerou suas opções. Estava sozinha no bosque com um homem muito bonito, longe de tudo, sem nada que os incomodasse… E talvez fosse agradável voltar a sentir aquela sensação de formigamento no fundo do peito.

     Ele dedicou um amplo sorriso e lhe deu um empurrão.

     — Não te peço que solucione os problemas do mundo. — Brincou ele. — Só procuro sugestões a respeito de como ocupar o tempo.

     “Poderíamos nos beijar até que as rãs criem cabelo”, pensou ela.

     De verdade, adorava o sabor de Morgan MacKeage. Gostava do modo em que cheirava, o tato de seu corpo e o modo em que despertava os cinco sentidos.

     Mas não era capaz de reunir coragem para começar algo que acabaria com ela tirando a roupa.

   Nesse momento, Morgan respondeu a sua própria pergunta, não com palavras e sim com gesto. Tomou a face e a atraiu até seu beijo, enquanto lhe inclinava a cabeça para chegar bem à boca.

     A resistência de Sadie se quebrou sob o assédio de seus sensuais e tentadores lábios. E quando suas mãos lhe rodearam as costas e a puxaram contra seu firme corpo, sentiu calafrios pela coluna vertebral.

     Então deixou de lutar, com Morgan e consigo mesma. Deslizou a boca pela mandíbula dele, desenhou-lhe o bordo da barba com os lábios e sentiu um grunhido que retumbou através de cada centímetro de seu próprio e tremente corpo. Depois notou como lhe esticavam os músculos e o ouviu conter o fôlego.

     Deixou cair as mãos até seus ombros, até seu peito e por fim lhe cravou os dedos na camisa. Desta vez foi ela quem gemeu enquanto seguia o rastro de seus dedos com a boca e lhe beijava o pescoço e a garganta. Então se dedicou aos botões da camisa; um se abriu, o seguinte saltou… E outros, pobrezinhos, retiraram-se sem lutar.

     Sadie afastou a camisa e voltou a conter a respiração. Era esplêndido… Melhor do que recordava.

     Seguia levando no pescoço aquele objeto de aspecto estranho, pendurado de um cordão de couro sobre o peito. Parecia feito de arenisca ou de madeira; tinha umas linhas em espiral que davam a impressão de estar em movimento contínuo.

     Uma ilusão do sol poente.

     Ou de suas próprias emoções talvez.

     — Por que não seria um petardo? — perguntou, ao tempo que soltava um resignado suspiro.

     Ele se inclinou para trás e a olhou com os olhos entreabertos.

     — O que é um petardo?

     Sadie lhe dedicou um sorriso lento, amplo e cálido.

     — É uma palavra carinhosa. — Sussurrou, enredando os dedos no arbusto de pêlo de seu peito. — Uma que vai melhor que essa espada que leva por aí como se fosse um guerreiro medieval.

     Tão rápido que nem sequer teve tempo de gritar, encontrou-se tombada de barriga para cima no chão, com o Morgan muito sério em cima dela.

     — Não me devolva minhas palavras, Mercedes.

     Contente de voltar a ter o cérebro ao mando de seus hormônios, Sadie lhe dedicou um enorme sorriso com o ponto justo de sacanagem.

     Mas ele não respondeu; de repente se havia posto tenso. Tinha a face elevada ao céu e a cabeça inclinada a um lado, como se estivesse escutando algo com atenção.

     — Ouviu isso? — Sussurrou.

     Sadie conteve o fôlego e escutou também. E então ouviu o mesmo que ele: o retumbar amortecido de uma tormenta que se aproximava.

     — São trovões. — Disse, olhando para o céu em direção oeste. — O fronte se aproxima.

     Voltou a olhá-lo e sorriu.

     — Pelo carregado do ar, vamos ter um bom dilúvio. Trouxe uma barraca de campanha?

     Mas ele seguia sem escutá-la. Soltou-a tão de repente e se apartou com tanta rapidez que Sadie não pôde conter um grunhido de surpresa. Então Morgan ficou de pé e olhou para o oeste, com as mãos crispadas em punhos e o semblante tão feroz e ameaçador como o turbulento céu.

     Sadie se levantou como pôde e o agarrou a manga.

     — Não é mais que uma tormenta, Morgan. Esta noite uma frente fria desce do Canadá para levar a umidade.

     Ele se desembaraçou dela e retrocedeu vários passos. Sadie o olhou, atônita. Aquele homem, grande como um urso, tinha medo de tormentas? Um súbito relâmpago brilhou ao outro lado do vale, e então viu que Morgan dava um violento pulo.

     Do mesmo modo, naquele instante viu bem sua expressão. Embora ferreamente controlado, em cada linha de seu rosto se gravava um gélido terror.

     — Morgan… — Disse, aproximando-se dele de novo.

     Ele deu outro passo atrás e levantou as mãos para deter seu avanço.

     — Não se aproxime de mim, Mercedes — Disse ele. A advertência tornava áspera sua voz.

     Um raio caiu no alto de uma montanha, ao outro lado do vale, e a surda onda do trovão se aproximou deles. Outro brilho mais para o norte, depois outro… As descargas ressonavam como disparo de canhões com o passar do rio. Naquele momento, como adiantamento da tormenta que se morava, levantou-se um vento de poente que formou no ar um torvelinho de folhas em torno deles. E em seguida chegou a chuva com surpreendente força, arrancando mais folhas das árvores e aumentando a confusão.

     De repente, Morgan girou sobre seus calcanhares, dirigiu-se a grandes passos até sua canoa e agarrou a espada. Sadie correu trás.

     Ele se voltou e lhe gritou:

     — Falbh!

     Ela se deteve no ato ao ver que a espada a assinalava.

     — Fora daqui! — Morgan brandiu a espada em direção aos bosques. — Volta para seu acampamento!

     Assustada e desconcertada de uma vez, não pôde mais que cravar os olhos nele. De repente Morgan voltou a embainhar a espada, elevou-a por cima dos ombros e a acomodou à costas. O raio voltou a brilhar, desta vez mais perto, e um aroma de ozônio cruzou o ar enquanto o trovão sacudia o chão e reverberava com força.

     O resplendor do relâmpago e a chuva torrencial obrigaram ao Sadie a piscar… e depois piscou outra vez ao se dar conta de que só estava olhando as árvores.

     Morgan MacKeage tinha desaparecido.

 

     Daar deteve de repente seus passeios de um lado a outro pelo alpendre de sua cabana e, com o cenho franzido, olhou ao céu; estava cada vez mais escuro. Ao longe, o brilho dos relâmpagos formava um aura sobre as montanhas ocidentais.

     Outra tormenta ia visitar o vale.

     Algo estava passando ali: algo mais que o simples conflito de Morgan e Mercedes sobre a construção de um parque. Fazia oitenta anos, desde morte de Jedediah Plum, que naquele vale havia um desequilíbrio entre o bem e o mal. O frustrado Caçador de ouro ainda vagava por ali à espera que a justiça se cumprisse por fim. E nesse tempo, a escuridão tinha ido crescendo e cobrando forças com vistas ao inevitável enfrentamento.

     Daar levava todo o verão tentando descobrir o motivo daquele iminente conflito de forças. Por que ali, no vale de Mercedes? E por que tinha que ser agora, justo quando ia deixar o Morgan instalado em uma vida nova e prometedora?

     Esfregou a nuca e suspirou cansado. Pelo que sabia, a morte violenta de Jedediah Plum tinha ficado impune, e o espírito de cobiça do assassino ainda seguia vivo em seus descendentes. Um mal sem castigo, cometido fazia oitenta anos, tinha inclinado a seu favor a balança da energia do vale. O negrume que Daar e Morgan viram princípios do verão estava arraigada ali desde aquele longínquo assassinato.

     Além disso, através de seus feitiços, tinha sabido que precisamente fazia pouco, nesta geração, a escuridão tinha cobrado ainda mais força. De novo outros assassinatos, relacionados em certo modo com Jedediah Plum, tinham ficado impunes.

     A luz amarela, que simbolizava não só a Mercedes, mas também a sua família, parecia estar igualmente implicada; era possível que Caroline Quill tivesse sido a segunda vítima da escuridão e Frank Quill a terceira.

     E talvez Mercedes estivesse em perigo de converter-se na quarta.

    Durante as últimas semanas, Daar tinha provado vários feitiços em uma tentativa de derrotar o negrume, mas as forças que se agitavam não davam seu braço a torcer. O enfrentamento ia ocorrer ali e agora, e afetaria a quantos cometessem a loucura de cruzar-se em seu caminho. As energias tinham que recuperar o equilíbrio, e era preciso desfazer graves males. Um simples e solitário Caçador de ouro procurava a paz.

     Que Mercedes e Morgan estivessem justo em meio a esse combate era algo que ficava fora do controle do mago. Este havia feito todo o possível por protegê-los. Agora correspondia ao guerreiro unir-se com a mulher contra a escuridão e conseguir que os dois atravessassem sãs e salvos a voragem que se aproximava.

     A delicada bengala de Daar começou a vibrar em sua mão, e ele a elevou para o céu e a brandiu em direção ao vale abaixo. Então viu o brilho de uma luz verde, carregada de energia, que lhe era familiar. Cruzava correndo o bosque, desesperada e perseguida, errando sem rumo em busca de segurança.

     Daar meneou a cabeça. Nenhuma de suas palavras tranqüilizadoras convenceria Morgan de que não corria perigo de ser enviado de novo através do tempo. Levava dois anos fazendo aquela promessa ao grupo dos escoceses, mas só Greylen parecia acreditá-lo.

     Provavelmente, porque acreditava que ao lhe atirar o velho bastão o tinha deixado sem poderes.

     O zumbido se fez mais forte, quase premente. Daar lutou por controlar seu bastão enquanto este atirava para a turbulência da tormenta que se aproximava… E nesse instante uma luz amarela, tão brilhante e viva como o sol, cruzou como uma centelha a mente do mago.

     Daar sorriu. Semelhante paixão em alguém tão inocente… Semelhante decisão, um vigor tão poderoso… Certamente, se havia alguém capaz de captar e manter o interesse de Morgan MacKeage, essa era Mercedes Quill.

     Era uma boa partida para o guerreiro: forte, inteligente e proprietária de coragem que se necessitava para combater a seu lado. E Daar se alegrou disso, porque se tinha compreendido os sinais que levava semanas interpretando, sua busca do ouro estava levando a Mercedes Quill até o núcleo mesmo de uma guerra sem quartel.

        

     Morgan corria sem direção, mas com uma só idéia: afastar-se da Mercedes. Tinha que protegê-la da tormenta e do pânico de uma viagem que enviasse a ele, e possivelmente ela, a qualquer que estivesse perto, através do tempo.

     Por muito que queria correr para Mercedes, e não ao contrário, para afundar-se em sua suave fortaleza e agarrar-se bem até que passasse a tormenta, não a poria em semelhante perigo.

     Mas se ele não estava ao seu lado, quem ia mantê-la a salvo da escuridão que rondava o vale?

     Ao pensar nisso, deteve bruscamente sua fuga e tentou orientar-se olhando com os olhos entrecerrados sob a chuva torrencial. Embora lhe parecesse ter percorrido uma centena de quilômetros, não se tinha afastado nem sequer um do rio. Nesse momento o relâmpago brilhou de novo, seguido quase imediatamente por um trovão que sacudiu a terra. A tormenta o rodeava. O vento inclinava as copas das árvores mais altas e arrastava as folhas, já outonais, dos carvalhos, arces e haja.

     De repente, entre o retumbar do trovão, chegou-lhe uma voz aguda e insistente, fraco ao princípio, mas mais forte à medida que ia aproximando-se.

     Morgan deixou cair o queixo no peito e fechou os olhos. Mercedes, a exasperante e pequena gràineag, estava buscando-o.

     Tinha que escolher entre seguir fugindo para mantê-la segura ou fazer caso a seu próprio egoísmo e voltar junto a ela. Maldição, tinham que estar juntos.

     Fosse nesta época ou em outra, ele a protegeria. Enfrentaria a qualquer provocação, sempre que não se separassem.

     Mas acaso tinha direito a fazê-lo? Podia escolher o destino de Mercedes por ela? Certo que estava a ponto de entregar-se a ele, mas compreendia do tudo o que implicava essa entrega?

     E, além disso, estava tão desesperado e era tão egoísta para não lhe explicar as antigas leis da reclamação de esposa até depois de fazê-la sua?

     Morgan não gostava das normas que regulavam os matrimônios na sociedade moderna, de modo que quando fizessem amor não haveria marcha atrás: Mercedes seria sua por toda a eternidade.

     Entrou no refúgio de uma gigantesca pícea. Agora a chamada soava mais perto e ressonava de várias direções, levada pelo vento. Na voz havia um eco de desespero e inquietação… E talvez um pingo de aborrecimento.

     Morgan não pôde evitar sorrir. Sua pequena gràineag era do mais tenaz. Era capaz de afogar-se buscando-o, e inclusive pegar uma pneumonia… Mas não se renderia; sabia por que estava demonstrando ser igual dominante que ele.

     E só por essa razão saiu a seu encontro.    

    

     Tão rápida e misteriosamente como tinha desaparecido, de repente Morgan se apresentou diante dela: parecia um escuro e formidável espectro, só visível ao brilho dos relâmpagos que atravessavam o céu com luzes de alerta pulsados de luz.

   Ainda tinha desabotoada a camisa, e a correia de couro da espada seguia lhe cruzando o peito. A água corria em furiosos riachos pelos severos planos de seu rosto até baixar pelo pescoço e pelo poderoso corpo, que parecia esculpido em granito.

     Durante um breve instante, em uma chispada de luz especialmente cegadora, Sadie compreendeu com claridade o perigo em que se encontrava. Morgan MacKeage não ia negociar. Não faria concessões nem aceitaria desculpas.

     Exigiria sua rendição absoluta.

     E depois exigiria mais ainda.

     O ar que havia entre eles chispou de eletricidade. Então o objeto que pendurava do pescoço dele pareceu cintilar e vibrar de energia, e começou a desprender um resplendor etéreo. As terminações nervosas de sua pele cobraram vida. Não sabia se era a tormenta que ressoava em torno deles ou o sangue correndo por sua cabeça, mas lhe custava trabalho manter o equilíbrio. O coração queria saltar do peito, os joelhos queriam dobrar-se… E não podia deixar de tremer.

     De repente Morgan deu um passo adiante e a levantou nos braços, abraçou-a contra ele e afundou a cabeça em seu pescoço.

     — Muito tarde, Mercedes. — Grunhiu em seu cabelo. — Vai acontecer agora. E nós dois teremos que aceitar as conseqüências.

     Embora tivesse compreendido do que falava, Sadie não o teria rejeitado. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e se agarrou a ele com força. Morgan entrou no bosque até que encontrou uma saliência rochosa que os protegeria da tormenta. Então a pôs de pé no chão, tirou a espada e a deixou na terra. Depois reuniu a erva que crescia na base da saliência para formar um suave leito.

     Trabalhou depressa, em silêncio, com um cauteloso olho posto em Sadie, como se temesse que fosse pôr-se a correr. Ela ficou paralisada, incapaz de apartar a vista dele.

     Ao fim ficou direito, voltou-se e tomou nos braços de novo. Então a beijou com uma paixão que confinava com a angústia. Sadie não deixou de beijá-lo até que os dois estiveram no chão. Podia cheirar a chuva que esquentava a pele de Morgan, saboreava os bosques com os que ele tanto se identificava, sentia a tensão que ia acumulando-se em cada um de seus músculos…

     Ele a cobriu com seu corpo, rodeando-a por completo.

     E Sadie deu a boas-vindas ao arrebatamento de emoção que alagou seus sentidos. Suas mãos começaram a explorar, a tocar, a afundar-se em sua carne. Abriu a boca para ele, puxou-lhe o cabelo em uma tentativa de aproximar-lhe mais ainda e suas línguas se encontraram.

     Quanto a ele, suas mãos estavam por toda parte: puxava-lhe da roupa e esfregavam a pele que ficava ao descoberto e parecia arder. Embora, apesar de sua urgência, o tempo parecesse ter se detido, Sadie o ajudou com movimentos frenéticos a arrancar toda a roupa dos dois. A tormenta foi ficando cada vez mais longe de sua mente, que se concentrou unicamente neles… Só ficaram o calor, a luz e os sentimentos.

     Ele enlaçou os dedos com os dela e lhe elevou as mãos por cima da cabeça, enquanto com a boca desenhava um atalho pela face que desceu pelo pescoço até acabar entre seus seios, já nus. Um ardente calor seguia a seus lábios; uma trêmula espera os precedia. Então lhe beijou o mamilo direito, tomou com a boca e chupou. Sadie se estremeceu, deu um grito e arqueou as costas de prazer.

     A boca seguiu movendo-se sobre seus seios. Com os dentes lhe arranhou a pele e fez sentir calafrios por todo o corpo. Sadie lhe rodeou a cintura com as pernas e voltou a arquear as costas, notando que sua ereção empurrava seu ventre.

     Ele se levantou um pouco, o justo para olhá-la fixamente na face. O vertiginoso fulgor de seu pendente, que agora brilhava mais, deixava ver umas feições sérias e uns olhos que a resolução voltava severos.

     — Aceita-me, Mercedes? — Perguntou em voz baixa e gutural. — Com tudo o que tenho que oferecer? Aceita-me?

     De repente, ela notou a boca seca como o deserto e só pôde assentir com um gesto.

     Ele empurrou contra seu ventre e depois recuou de novo.

     — Diga, Mercedes. Diga em voz alta para que todos o ouçam. Aceita-me?

     — Sim, Morgan. Tudo o que me ofereça.

     Ao ouvir aquelas palavras, parte da tensão desapareceu do rosto do guerreiro. Seus músculos se relaxaram um pouco e deu a impressão de que quase se derretia sobre Sadie. Sua boca voltou a procurar a dela em um beijo que desta vez era diferente, mais possessivo.

     — Me agarre pelos ombros, lass, e se agarre bem. — Sussurrou.— Será desagradável só um momento, prometo-lhe isso.

     Desagradável?

     Como podia ser desagradável nada que tivesse que ver com aquilo? Tremia de desejo senti-lo dentro dela.

     — Ande depressa, Morgan — sussurrou com voz rouca.

     Um meio sorriso, lento e exasperante, apareceu na boca dele.

     — Assim encontra as palavras quando as necessita, né, gràineag? — Disse-lhe enquanto se movia para trás e esticava uma mão entre eles dois para guiar-se entre suas coxas.

     Sadie aspirou e conteve a respiração enquanto que, devagar, ele empurrava contra ela. A boca de Morgan retornou a sua boca, suas mãos lhe apanharam as mãos, e por fim seus quadris se moveram na direção que ela desejava.

     Tensão calculada… Incrível prazer… Consciência de um calor que alarga, cheia e balanço em espiral… O momento de que tinha falado durou toda uma vida medida em segundos.

     E, de repente, ele estava dentro dela.

     Foi Sadie quem se moveu então: elevou os quadris para aceitá-lo, cravou-lhe as unhas nos ombros e se estirou para lhe apanhar a boca outra vez. No mesmo instante em que ele começou a mover-se, gemeu, e ela tragou seu gemido. Depois Morgan balançou aos dois em um ritmo que desencadeou repetidas correntes de fogo, que cruzaram todo seu corpo.

     O prazer se duplicou; triplicou-se. Dando um grito de absoluta alegria, Sadie levou a boca até o ombro de Morgan e sentiu a força de seus músculos contra os dentes enquanto ela se esticava em torno dele.

     Morgan se deteve, ergueu-se e jogou atrás a cabeça com um grito.

     Então ela abriu muito os olhos e viu que aquela pedra que levava a pescoço de repente se animava, acendia-se como se a tivesse alcançado um raio e a cegava para tudo o que não fossem sensações. E o que sentia agora era Morgan, muito fundo dentro de si, pulsando contra o palpitar de seu útero.

     Soltando um grunhido como o de um urso ferido, ele deixou cair todo seu peso sobre os cotovelos, jogou para trás o cabelo e a beijou com ternura no nariz. Seu coração golpeava contra o dela, sua respiração era pesada… E Sadie era consciente de cada fumegante centímetro dele que lhe tocava a pele nua.

    Pouco a pouco, a tormenta retornou a sua consciência. Seguia chovendo, mas o trovão ia afastando-se já, e as chamas perdiam intensidade até voltarem-se meros rastros de luz. Foi suficiente para ver com claridade o brilho de triunfo que bailava nos olhos do Morgan.

 

     Tinha que desculpar-se.

     Como um animal no cio, acabava de tomar a sua mulher no bosque, em meio a uma maldita tormenta. E o que devia ter suposto a experiência mais agradável da vida da Mercedes, o mais provável é que tivesse sido um desastre.

     Salvo por um leve tremor que lhe percorria o corpo, e que ele notava debaixo, estava alarmantemente quieta. A desculpa teria que esperar. Antes tinha que fazê-la entrar em calor, fazer que se levantasse e se vestisse, e levá-la a toda pressa ao acampamento.

     Com o maior cuidado, separou-se dela e se ajoelhou. Imediatamente, Mercedes se afastou como pôde, cruzou as mãos diante do seio e procurou com frenesi um lugar onde esconder-se.

     Isso o impressionou; ia necessitar muito mais que uma maldita desculpa. De boa vontade teria dado o braço com que dirigia a espada para que aquilo não tivesse ocorrido.

     Mediu pelo chão até encontrar sua camisa, sacudiu-a e tentou colocá-la em Mercedes.

     Ela deu um pulo, ajoelhou-se e quase saiu correndo antes que ele a agarrasse, mas Morgan conseguiu rodeá-la pela cintura com um braço e a estreitou contra seu peito. Ao senti-la tremer fechou os olhos, rezou pedindo perdão em silêncio e depois lhe sussurrou a mesma súplica.

     — Perdoa o que fiz, lass, mas tem que me deixar que a vista. Vai pegar um resfriado.

     — Sei me vestir sozinha.

     Em sua voz, débil e distante, não havia nem rastro de emoção. Morgan se alarmou. Agora tremia com força, e todo seu corpo estava frio como a neve.

     Então voltou para sua tarefa de vesti-la.

     — Me dê uma bronca amanhã, gràineag. — Disse — Até te dou permissão para que use minha espada, se ficarem forças para levantá-la.

     Confiou com toda sua alma em que fosse assim; seria a prova de que não tinha pego uma pneumonia.

     Mas não fez falta esperar o dia seguinte: Sadie ficou a lutar com surpreendente energia, retorcendo-se e tratando de escapar de seu abraço, sem que Morgan acabasse de compreender por que lutava com tanto frenesi por fugir dele. Só o entendeu quando lhe rodeou as costas com as mãos; nesse mesmo instante ela se apartou serpenteando e dando chutes.

     Eram aquelas malditas cicatrizes o que tentava esconder. Estava horrorizada se por acaso as visse e ficasse com nojo.

     Imediatamente se separou dela.

     — Calma, Mercedes. Deixarei que você se vista. — Disse enquanto lhe recolhia os empapadas calças e a camisa. — Toma, aqui tem sua roupa. Está molhada, mas dentro de uns minutos te terei de volta diante um bom fogo. Vista-se.

     Morgan se levantou, sacudiu suas próprias calças e os pôs; a sensação do tecido úmido lhe raspando a pele o fez estremecer. Depois colocou as botas e jogou a espada sobre o ombro antes de sacudir sua camisa e oferecê-la a Mercedes outra vez.

     — Toma. Também está molhada, mas é de lã e te abrigará um pouco mais.

     Ela só estava a meio vestir. Com as pressas, abotoou-se mal a camisa. Tinha as calças subidas e agora lutava com o zíper. Suas trementes mãos faziam que a tarefa fora quase impossível.

     Então Morgan perdeu a paciência que tentava conservar, rodeou-lhe os ombros com sua camisa e tomou nos braços.

     A primeira reação de Sadie foi gritar; a segunda, tentar lhe dar um murro na cabeça, mas não teve boa pontaria.

     — Vai matar nós dois! — Queixou-se. — Peso muito!

     Ele não pôde conter a risada.

     — Ai, gràineag, o dia em que não possa te levar nos braços, será porque fará três anos que estou na tumba. — Levantou-a um pouco no ar para acomodá-la melhor e lhe deu um rápido beijo na suja testa. — Agora se cale e guarda suas forças, porque amanhã vamos ter um bate-papo que nos faz muita falta sobre as regras deste combate.

     O mais provável era que estivesse pensando lhe dar um sermão.

     Agasalhada no quente abraço de Morgan, Sadie olhou fixamente o teto da barraca de campanha que Morgan MacKeage enchia quase por completo.

     Nesse momento decidiu que era muito agradável despertar e encontrar-se aconchegada contra um urso adormecido.

     Claro que também era um pouco desconcertante.

     O cara estava nu de tudo.

     Ao que parecia, se apaixonara por um exibicionista; quase tinha visto mais vezes Morgan nu que vestido.

     Justamente o contrário que ela, que desejava manter-se tampada até o queixo.

     Daí o sermão que se morava.

     Supôs que Morgan ia brigar com ela por agir de forma tão recatada, tão exageradamente recatada que até era insensata. Era consciente de que a noite anterior ele se preocupou porque estava molhada e tinha frio.

     Por isso se calou e deixou que a levasse nos braços de volta ao acampamento (toda uma experiência em si mesmo). Depois se lavou, colocou várias capas de roupa seca e se meteu na cama. Ficou calada inclusive quando Morgan entrou na barraca e se acomodou a seu lado.

     Agora, com a vista cravada no teto que iluminava o amanhecer, perguntou-se como conseguiria sair de seu abraço e da confusão que tinha montado com aquela arrebatada aventura amorosa.

     Mas primeiro estava o assunto de sua regata, que devia estar perdida em algum lugar do bosque junto com o sutiã e que a estas alturas estaria molhada e cheia de barro. Tinha mais sutiãs, mas aquela era a única regata que tinha e queria recuperá-la.

   Com cuidado e contendo o fôlego, levantou o braço de Morgan de sua cintura e o pôs brandamente junto a ela. Depois, com extrema precaução, desceu o zíper do saco de dormir, dando um pulo cada vez que soava um estalo metálico. Tirou primeiro uma perna e depois a outra, e depois, sem fazer ruído, rodou até ajoelhar-se e recuou até a porta.

     Mas antes de chegar se deteve, surpreendida pelo que via. O homem estava estendido de barriga para baixo, totalmente nu; tinha todo o corpo bronzeado, salpicado com uma fina capa de pêlo clareado pelo sol. Justo por cima da nádega direita, uma tremenda cicatriz de pele mais clara, um vergão de quinze centímetros, cruzava-lhe a cintura. E no ombro direito tinha outra cicatriz, menos larga, mas sem dúvida igualmente antiga.

     Tinha os pés sujos, e a pele da calejada planta era grossa. Pelo visto, não acostumava a usar as botas com mais freqüência que a roupa. A seu lado, quase tão alta como ele, estava sua espada. Sadie conteve um bufo. Por que não a surpreendia que dormisse com aquela coisa? Depois prosseguiu seu exame.

     A mão do Morgan descansava, relaxada, no lugar onde tinha estado ela. Era uma mão grande, longa, forte. Quanto a seu enorme corpo, abrangia quase toda a barraca: os pés tocavam a porta e a cabeça quase tocava o fundo. Devia medir perto de dois metros. Era formoso, esplêndido… E salvo pelo cordão de couro que sempre levava a pescoço, estava absolutamente nu.

     Sadie se desfez de seus sensuais pensamentos, deu a volta e desceu devagar o zíper da barraca, justo o suficiente para sair engatinhando. Depois seguiu engatinhando até chegar ao fogo, ou mais bem já aos rescaldos, que Morgan tinha reavivado a noite anterior. Uma vez ali, ficou de pé e se deu conta de que só levava postos as meias três-quartos, e de que suas botas deviam encontrar-se em algum lugar do bosque com o resto de sua roupa.

     Maldição… Foi para as bolsas impermeáveis que estavam junto à barraca, agarrou uma e voltou a levá-la até o fogo. Depois tirou as sapatilhas de reserva e as pôs. Ao cabo de um momento voltava a estar de pé e atravessava correndo o bosque, tentando recordar onde teria deixado seus objetos mais íntimos.

        

     Morgan tomou seu tempo para vestir-se. Estava bastante seguro de aonde ia Mercedes e suspeitou que demoraria um pouco em orientar-se. A noite anterior não tinha prestado muita atenção ao lugar do bosque onde fizeram amor.

     Já a tinha horrorizando bastante.

     Aquele mesmo dia ia esclarecer coisas com ela, uma vez a levasse de volta ao acampamento. Primeiro lhe encheria a barriga de comida e depois teria um pequeno bate-papo com ela sobre a nova e, com um pouco de sorte, tranqüila vida que tinham começado na noite anterior.

     Mostraria-se pormenorizado, mas firme.

     Paciente, mas pertinaz.

     Tranqüilo, mas resolvido.

     Ela tiraria de cima aquele recato de uma vez. E respeitaria sua autoridade.

     Baixinho, Morgan soltou um bufido desdenhoso; com certeza que sim… Mercedes ia aceitar seus mandatos com toda a elegância de uma gràineag.

     Esboçou um sorriso ao pensá-lo, enquanto jogava a espada à costas e se dirigia para o bosque a passo rápido. Em menos de um minuto deu com o rastro de Sadie e depois, durante quase quilômetro e meio, seguiu seu perambular sem rumo.

     Inclusive antes de vê-la, ouviu-a espirrar.

     Maldição, estava resfriando-se.

     Deteve-se uns vinte passos de distância e ficou olhando enquanto Mercedes revolvia folhas com a ponta do sapato. Já tinha encontrado suas botas, as meias três-quartos dos dois e a roupa interior de ambos. Agora empurrava as folhas e os paus que cobriam o chão, mas de repente se deteve e esticou a mão para agarrar uma fina camisa, mais parecida com um trapo que a um objeto de vestir.

     De repente ficou rígida e deu rapidamente a volta, ao tempo que escondia as mãos à costas como um menino pilhado em falta. Então ele se separou da árvore e caminhou para ela.

     Sadie deu um rápido passo para trás, mas ao dar-se conta do que fazia voltou a adiantar um passo enquanto o olhava com o queixo elevado. Morgan se assegurou de que seu sorriso não transparecia o que pensava daqueles movimentos.

     — O que é tão importante para que tenha tido que escapulir esta manhã e vir aqui? — Perguntou.

     Ela subiu um pouquinho mais o queixo e entreabriu seus formosos olhos azuis.

     — Nada. Eu não me escapuli, caminhei.

     — Então, o que é isso que acaba de recolher do chão agora mesmo?

     Sadie ruborizou, e seu queixo baixou um pouquinho.

     — Isso é meu assunto. Vim aqui só porque queria um pouco de intimidade.

     Devagar, sem deixar de olhá-la, ele meneou a cabeça e se aproximou mais.

     — A intimidade individual já não existe entre nós, Mercedes, acabou ontem à noite. — Esticou uma mão. — Me mostre o que tem aí.

     Ela recuou dois passos.

     — Você não entende!

     Nossa, pois ele estava seguro de que sim.

     — Ontem à noite minhas mãos cobriram cada centímetro seu, mulher. Sei exatamente o aspecto que tem debaixo de sua roupa… E sei exatamente como se sente.

     Ela abriu mais os olhos, e empalideceu. Quanto a Morgan, com o tom decidido de quem se apóia na verdade, prosseguiu:

     — Também sei que não tem motivo para se sentir vulnerável comigo, porque quando a olhou não vejo cicatrizes, nem tampouco as sinto ao te tocar, só experimento sua beleza.

     Nesse momento, antes que tivesse tempo de dar-se conta de sua intenção, equilibrou-se sobre ela. Teve que passar o pé dentro do dela e atirá-la ao chão para que não machucasse seu rosto, e também teve que lhe agarrar as mãos para evitar que o matasse de porradas… Mas ao final, embora um pouco enlameado, saiu vitorioso. Deu-se a volta até ficar sentado no chão, com Mercedes no colo, e o segurou as mãos, que seguiam escondendo o trapo.

     Ao vê-lo de perto esteve bastante seguro do que era.

     Então suspirou e esfregou a testa com a mão livre. Maldição, iam ter o bate-papo com a barriga vazia.

     — Isto tem que terminar. Entre nós não há lugar para o recato ou o acanhamento. — Assinalou a camiseta de fina malha de ponto que ela acostumava colocar como uma segunda pele e que agora apertava na mão. — E, além disso, é um pecado que uma mulher oculte segredos de seu marido.

     Contava com o grito afogado que ela soltou…

     Mas não com o cotovelo, pequeno e bicudo, que lhe cravou nas costelas.

     Antes que pudesse agarrá-la, Mercedes tinha escapado de seu colo e estava de pé diante dele, com as mãos convertidas em punhos aos flancos, os olhos soltando fogo e a tez tão vermelha que era um milagre que não explodisse.

     — Isso é uma piada de mau gosto, MacKeage!

     Ele se levantou devagar. Com esmero, foi sacudindo o barro das calças sem afastar o olhar nem uma vez do indignado rosto dela.

     — Piada? A que se refere com isso?

     — Refiro ao que acaba de dizer, o de que uma esposa não tem segredos para seu marido… Como se isso tivesse algo que ver conosco. Bom, maldito seja, pois quando encontrar marido, assegurarei-me de recordar seu conselho!

     Naquele instante, como se recebesse um murro, Morgan se deu conta de que a única desorientada ali era aquela enfurecida mulher. Voltou a esfregar a testa e fechou os olhos enquanto rezava pedindo forças… E muita paciência.

     Por fim a olhou de novo e, com a voz o mais tranqüila possível, disse-lhe:

     — Mercedes, não falava em brincadeira, porque você já é minha esposa.

     — Não sou.

     Ele assentiu com gesto brusco.

     — Sim que é. A cerimônia teve lugar aqui mesmo.

     Logo, acompanhando sua explicação com um gesto que assinalava o chão, prosseguiu:

     — Lembra que te perguntei, muito claramente, se me aceitava? — Seu tom se fez mais enérgico quando ela abriu a boca para protestar. — E, muito claramente também, você disse que sim.

     — Não estava me casando com você! Foi só uma aventura amorosa.

     — Pois já parece: Somos marido e mulher.

     — Mas se não houve padre… Nem testemunhas, Por Deus! Isso não é válido diante nenhum tribunal de justiça.

     — Mas é válido para a lei de Deus. Você é minha esposa, Mercedes; já não é uma Quill, e sim uma MacKeage. E que Deus proteja a tudo o que não o entenda assim. — Avançou e, enquanto lhe agarrava o queixo com firmeza, aproximou-se o suficiente para que Sadie sentisse o caráter definitivo de suas palavras em todo o corpo… Até os dedos dos pés. — E isso inclui você, esposa. Porque este não será um de seus casamentos de hoje em dia; você cederá diante seu marido e respeitará minha palavra. E com esse fim teremos uma união tranqüila, embora tenha que te dar com a espada de plano no traseiro.

     Dito isto, Morgan girou sobre seus calcanhares e se afastou dali a grandes passos, deixando que Mercedes assimilasse o que acabava de escutar. Porque, queria ou não, ia fazer que essa mulher cumprisse sua palavra dada a noite anterior e ia mantê-la como sua esposa.

     E, maldição, inclusive seria generoso e lhe concederia uns quantos dias para que se acostumasse à idéia.

 

     Mãe de Deus… Mas o que tinha ocorrido ali na noite anterior? Como haviam passado da amizade ao matrimônio em menos de uma semana?

     E o que tinha sido da arrebatada aventura amorosa?

     Sadie dobrou os joelhos e se sentou no chão, apertando a regata contra o peito. Aquele homem não podia falar a sério. Que estavam casados? Casados de verdade? Quer dizer, que tinham que organizar os deveres domésticos, viver juntos e todo o resto?

     Não, aquele cara devia estar trocado as bolas. Era como seu primo Callum: um pouco à antiga, nada mais. Exato, Morgan agia como um neandertal. Como era dominante, e como talvez se sentisse culpado pela noite anterior, tentava que ela não morresse de calor por tudo aquele desastre.

     Não, isso tampouco; é que estava louco, sem mais. Porque nele não havia nem um grama de compaixão. Fazia um momento, no sussurro de sua voz só se percebia uma inquietante ameaça: quão mesma brotava de seus olhos.

     Bater com a espada de plano no traseiro?

     Aquele homem era um salto atrás na evolução do ser humano.

     Ou isso… Ou ela se colocou em uma confusão.

     De repente notou que alguém a estava olhando e ao elevar a vista se encontrou com Faol, sentado a uns três metros de distância. Desta vez levava um pau na boca; de sua luva preferida não havia nem rastro.

     Em seguida o enorme lobo ficou a choramingar como um cachorrinho, levantou-se e se dirigiu para ela, meneando a cauda enquanto avançava. Sadie esmagou os joelhos contra o peito e conteve a respiração; naquele preciso momento não estava em condições de enfrentar a outro arrogante macho.

     Faol se deteve bem diante dela, abriu a boca e deixou cair o pau a seus pés, que soou como metal ao se chocar com uma pedra. Sadie deu um pulo.

     E voltou a dar outro quando, de repente, a língua do lobo saiu disparada e lhe tocou a mão com que rodeava os joelhos em gesto de proteção. Aquele calor úmido a fez sentir um formigamento que foi direito ao coração.

     Faol a olhou fixamente, sem tornar-se atrás e sem avançar. Então, com gesto tímido e muito assustado, Sadie esticou a mão devagar e lhe tocou o lado da cara. Imediatamente a língua voltou a sair disparada e lambeu a mão.

     E, continuando, o lobo inclinou a cabeça de novo para recolher o objeto que tinha solto.

     Não era um pau, e sim algo metálico; um concha de sopa, parecia. Quando Sadie a pegou de sua boca, Faol recuou vários passos, deitou-se e começou a lavar as patas.

     Sadie deu voltas à concha de sopa enquanto o observava com atenção; parecia uma velha concha de sopa de cozinha meia bolorenta. Assinalou ao lobo com ele.

     — Isto não equivale a troca pela luva, rapaz.

     Como se a língua tivesse pregada na pata, Faol deteve sua tarefa a metade da lambida e elevou as caninas sobrancelhas para olhá-la. Quando pareceu que ela compreendia que lhe dava igual, voltou a lavar-se.

     Por sua parte, Sadie examinou de novo o presente. Esfregou a concha de sopa com a manga para lhe tirar um pouco de ferrugem e depois olhou com os olhos entrecerrados algo que pareciam umas iniciais arranhadas na peça.

     “J. L.”

     Automaticamente, estirou as pernas e endireitou a coluna vertebral. J. L.? Jean Lavoie? Era a concha de sopa do velho cozinheiro, procedente de um dos acampamentos? Então olhou outra vez Faol, voltou a assinalá-lo com a concha de sopa e lhe perguntou:

     — De onde tirou isto? — Não quis expor o fato de que estava falando com um lobo. — Pode me guiar até ali?

     O animal se levantou, meneou a cauda e a olhou fixamente. De repente deu a volta e ficou a trotar pelo bosque, mas logo se deteve para voltar-se. Soltou um latido seco, deu vários passos mais e gemeu.

     Esquecendo de repente todas suas preocupações por encontrar-se casada, Sadie se apressou a dobrar a ensopada regata e se levantou como pôde. Depois recolheu depressa as botas e a roupa, e pôs-se a correr atrás do lobo.

     Diminuiu a marcha e ficou a caminhar assim que advertiu que o traiçoeiro animal a levava de volta a seu próprio acampamento, o acampamento onde, sentado junto a um fogo agora muito vivo, Morgan MacKeage estava preparando o café da manhã. Parou na borda do claro, franziu o cenho e olhou suas coisas, que estavam junto à barraca. Como ia guardá-las sem enfrentar-se por força a aquele homem meio louco?

     — Deveria comer algo antes de irmos. — Disse ele sem afastar o olhar de sua tarefa.

     Como um furacão, Sadie entrou no acampamento e passou por diante do Morgan em direção à barraca de campanha. Entrou engatinhando, enrolou rapidamente seu saco de dormir, saiu recuando, fechou o zíper da barraca e levou suas coisas aonde estavam as bolsas impermeáveis.

     Em silêncio, seguiu com seus preparativos sem deixar de sentir que dois pares de penetrantes olhos verdes observavam cada um de seus movimentos, e teve que apelar a toda sua força de vontade para acalmar seus nervos. Era preciso que não lhe tremessem as mãos, que não fechasse a garganta e que não empanassem os olhos de lágrimas.

     Sadie MacKeage.

     Mercedes Quill MacKeage.

     Fechou a mão em um punho e, com força, colocou a roupa na bolsa para afundá-la mais. Maldição… Dava-lhe na mesma quão bem soasse: não era a esposa daquele homem. Não estavam casados só porque ele o dissesse.

     Fechou de repente a bolsa com uma violenta sacudida, depois a agarrou, a jogou ao ombro e se dirigiu ao rio.

     Nesse momento Morgan se levantou e bloqueou o caminho.

     Ela cravou a vista nos pés dele.

     — Primeiro come o café da manhã, mulher.

     Sadie afastou o cabelo da face e o deu uma olhada assassino.

     — Deixa de me chamar “mulher”! — Gritou, ameaçando-o com o punho. — E deixa de me dizer o que tenho que fazer! Não sou uma menina, não estamos casados, e não respondo…!

     Morgan avançou para ela, e Sadie recuou um passo, enquanto o assinalava com o dedo e, em tom zangado, acrescentava:

     — E se voltar a me fazer uma gracinha, farei-te uma cara nova.

     Ele baixou a cabeça para que não visse seu sorriso e tomou cuidado de não machucá-la quando se jogou outra vez sobre ela, ao tempo que girava o corpo para levar o pior da queda ao aterrissar.

     E, além disso, abraçou-a com mais força quando ela voltou a atacá-lo com socos e espernear. Ao mesmo tempo, disse que tinham devido embebedá-lo seus beijos naquela noite, a noite que, do alto do escarpado envolto em bruma, tinha-a reclamado como dele.

     Agora compreendia que não ia ser um matrimônio tranqüilo.

     Tentou lhe agarrar os braços, que não deixavam de agitar-se, afundou a face em seu pescoço e voltou a sorrir. A quem diabos importava que a vida fosse tranqüila? Só se alegrava de uma coisa: já não parecia que Mercedes queria chorar.

     Ele segurou as mãos colocando-as entre os corpos de ambos, agarrou-a bem, lhe rodeando as costas com os braços, e depois a deixou lutar em vão até que por fim se esgotou.

     Só então lhe retirou com suavidade o cabelo da face.

     — Outra vez faz ameaças, gràineag, que não pode cumprir. — Deu um beijo na vermelha e zangada bochecha. — Essa imprudência deve vir de não ter tido irmãos maiores que lhe chateassem de menina.

     — Me solte! — Sussurrou ela, tentando liberar-se de novo.

     Morgan rodou até ficar de barriga para cima e se sentou com ela no colo.

     — Depois que negociemos uma trégua. — Prometeu, pondo-a cômoda, mas sem deixar da tê-la apanhada.

     — Você não negocia.

     — Desta vez, esposa minha, tentarei. — Acariciou-lhe a ponta do nariz. — Mas se deseja que colabore no futuro, não faça que me arrependa nesta ocasião. Bom, por qual de meus pecados quer começar?

     Sentiu-a inspirar muito fundo e de forma algo trêmula, e quando por fim elevou a face para olhá-lo, deu-se conta de que estava fazendo verdadeiros esforços por parecer mais tranqüila do que se sentia.

     — Isto de estar casados… — Começou ela com voz tremula.

     Morgan lutou contra o nó que sentia nas tripas.

     — O que ocorre com isso?

     — Não pode decidir sem mais que estamos casados. — Tentou estalar seus cativos dedos. — São necessárias duas pessoas para contrair matrimônio; duas pessoas conscientes.

     — Eu lhe perguntei. — Replicou ele. — Não recorda o que me disse?

     — Acreditei que me pedia permissão para… Bom, para fazê-lo. — Concluiu em um débil sussurro, baixando a vista ao peito dele. — Não que me perguntava se desejava me casar com você.

     — Pois lhe pedirei isso agora. Quer se casar comigo, Mercedes?

     — Não.

     Morgan era de outra opinião. Elevou-lhe o queixo para que o olhasse e lhe disse:

     — Então temos um pequeno problema, lass: eu considero que já concordou.

     Ela abriu mais os olhos e depois, de repente, entrecerrou-os.

     — E se eu não o considero assim?

     Ele dedicou um enorme sorriso e, uma vez mais, acariciou-lhe a ponta do nariz.

     — Responderei a isso dentro de uma semana.

     Ela voltou a abrir mais os olhos.

     — O que ocorreria dentro de uma semana?

     — Então nos sentaremos a falar deste matrimônio. Mas durante os próximos sete dias — Se apressou a prosseguir, antes que ela estudasse seu plano muito em detalhe — Se considerará minha esposa.

     Deu-lhe um suave empurrão.

     — Lamento sobre ontem à noite, Mercedes. Não devia acontecer.

     Ela levantou de repente a cabeça.

     — Não?

     — Assim não. — Esclareceu ele. — Não debaixo de uma saliência, em meio de uma tormenta tão forte… Não esteve bem de minha parte.

     — Eu o provoquei. — Soltou ela de boas maneiras. — Quer dizer, segui-o. E… Eu o desejava também.

     — Ah, sim, a aventura da que falou.

     Sadie o olhou com o cenho franzido.

     — O que tem de errado em uma boa aventura amorosa, arrebatada e à antiga? Quase nenhum homem a deixaria escapar.

     — Mas a maioria das mulheres sim. — Rebateu ele. — Com essas idéias se rebaixa.

     — Sim, claro. Quantos sapos você teve que beijar?

     — O que têm que ver você e os sapos com o que estamos falando?

     — É igual. E outra pergunta: por que colocou na cabeça que nos casamos, de todas formas? Deseja sabotar o parque tão desesperadamente que está disposto a se casar para consegui-lo?

     — Sabotar?

     Morgan sentiu que o irritado suspiro de Sadie se transmitia pelos corpos dos dois.

     — Está aqui só por isso, não? — Disse ela. — Saiu comigo a outra noite porque sabia que estava trabalhando no projeto do parque. E agora está aqui, insistindo em que é meu marido, para me impedir de encontrar o ouro que deve financiar esse parque.

     Santo céu, aquela mulher tinha uma mente retorcida… E, além disso, má opinião dele. Não, esta não ia ser uma união tranqüila.

     — Não haverá nenhum parque. E o ouro não tem nada que ver, porque não penso vender minha terra a seu grupo de pessoas, e sem essa terra não haverá parque. — Repetiu, se por acaso ela não o tinha ouvido a primeira vez.

     Depois lhe deu um empurrão não exatamente terno.

     — Além disso, o parque não tem nada que ver com nosso matrimônio. — Prosseguiu com veemência. — Te desejo e agora te tenho; é assim simples.

     — Bom, não sei por que. — Disse ela, com um estremecimento na voz. — Nem sequer o faço bem.

     — Fazer o que?

     — A… Amor — Sussurrou. Sua voz soou um pouco mais forte ao continuar. — Quando parou…

     Morgan só pôde cravar a vista naquela pobre e desconcertada mulher; não sabia nada absolutamente de homens… E depois, sem saber qual seria sua reação, jogou atrás a cabeça e soltou uma boa gargalhada.

     — Não tem graça! Estou me desculpando.

     — Ai, lass… A verdade é que não rio de você. — Disse ele com um resto de risada. — Bom, sim que rio de você, mas sobre tudo rio de mim mesmo. Parei porque estava esgotado, Mercedes.

     — Esgotado do que?

     Nossa, diabos, já via que ia ter que ser direto.

     — Estava esgotado de fazer amor com você. Esse grito que dei foi devido ao prazer e a satisfação que senti ao verter minha semente dentro de você.

     — Que verteu você…?

     De repente Sadie fechou a boca de repente, entortou os olhos, e a face se pôs quase verde… Antes de ficar branca de tudo. Então sua voz se transformou em um chiado sussurrado.

     — Você… Você não usou nenhuma proteção, não é?

     — Não.

     A face se pôs verde outra vez. Ao ver que levava a mão ao ventre, Morgan recuou, temendo que estivesse a ponto de vomitar.

     — Talvez eu esteja grávida! — Deu uma olhada feroz, o bastante zangada para que ele recuasse mais. — Por todos os diabos, não penso ficar grávida!

     Escapou de seu colo de um salto tão brusco que Morgan grunhiu de surpresa e se cobriu com os braços em atitude protetora. Ela deu a volta em redondo e o assinalou com um dedo.

     — Não penso cometer os enganos de minha mãe! — Gritou. A cólera voltava a lhe ruborizar a face até tingir a de um vermelho aceso. — E certamente não tenho a mais mínima intenção de transformar em tia a minha irmãzinha com menos de três meses de idade!

     Depois daquele arranque se afastou dando fortes pisões em direção ao rio. Por sua parte, Morgan se tornou para trás e esfregou a face com ambas as mãos em um intento de desfazer-se dos ecos daquela trégua tão desafortunada. Então reparou nas últimas palavras de Mercedes. Que irmãzinha? Contou nove meses para frente com os dedos, depois subtraiu três…

     E por fim caiu na conta do que queriam dizer suas palavras.

     Charlotte Quill estava grávida!

 

     Com a preocupação estampada em cada tensa linha de sua face, Charlotte Quill passeava acima para abaixo pelo alpendre da cabana de Sadie. Enquanto isso, de pé na porta da revolta cabana, Callum observava como sua mulher se preocupava cada vez mais.

     Em um momento dado, Charlotte se deteve diante dele e em tom de aborrecimento maternal perguntou:

     — Quem haverá feito algo assim? E onde está minha filha? — Cravou-lhe as unhas no braço. — Callum, havia sangue no chão!

   Suas últimas palavras soaram como um sussurro. Ele esticou a mão, puxou-a e a acolheu em um grande abraço.

     — É sangue antigo, Charlotte. — Assegurou. — E Sadie está bem, garanto-lhe isso.

     Retirou-se um pouco e se inclinou para olhá-la nos olhos.

     — Sei com certeza que Morgan ia vê-la. E isto é obra de um homem sozinho, de modo que não tem por que preocupar-se.

     Charlotte se soltou, recuou um passo e o olhou fixamente.

     — Como sabe?

     — Pelos rastros de barro que deixou. Aconteceu esta manhã, depois da tempestade.

     Ela reatou seu ir e vir ao tempo que passava as mãos pelos braços. De novo se deteve e se voltou com rapidez para olhá-lo de frente.

     — Vou procurar minha filha. — Declarou de repente. — Não estarei tranqüila até que não veja por mim mesma que Sadie está bem.

     Por seu tom, deu a impressão de que esperava resistência, e Callum conteve um sorriso. Charlotte era quase tão previsível como o amanhecer. Em realidade, do momento em que viu os destroços da cabana, ele já tinha planejado mentalmente uma excursão de acampada ao vale.

     O primeiro sinal de que tinha acontecido algo foi a porta arrancada de suas dobradiças; a segunda, o aroma de comida recém aberta que saía do oco da porta. Assim que soou o tamborilar das botas de Callum nos degraus, uma família de mapaches saiu correndo da cabana com os bigodes cobertos de migalhas.

     Embora ordenasse a Charlotte que voltasse para a caminhonete, não lhe fez caso e o seguiu em silencio até dentro, e em silêncio deu uma olhada ao redor para ver os destroços. Os móveis estavam caídos, havia uma janela feita pedaços e alguém tinha rachado a cama com uma faca. Charlotte não recuperou a voz até que viu a maquete do vale, que ela tinha ajudado a Sadie a construir. Então se converteu em uma mãe concentrada em uma tarefa: vingar a violação do lar de sua filha. Agora estava furiosa, preocupada… E disposta a desafiá-lo se atrevia a contradizer seu plano.

     Callum alargou as mãos e voltou a puxá-la até seus braços.

     — Deixarei-te em casa para que prepare suas coisas. — Liberou por fim seu sorriso quando Charlotte mostrou sua surpresa com um grito afogado. — Enquanto isso, eu recolherei minhas coisas e depois irei pegá-la.

     Recuou e a olhou.

     — Alguma idéia de aonde pôde dirigir-se Sadie?

     Era evidente que sua atitude servil seguia surpreendendo-a, porque Charlotte só pôde menear a cabeça.

     — Não leva um celular? — Insistiu ele.

     Ela assentiu, mas franziu o cenho.

     — Sim, embora não pude me pôr em contato com ela nem uma vez nestas dez semanas: ou o perde, ou o quebra, ou deixa que se acabe a bateria.

     Afastou-se; de novo retornava seu aborrecimento maternal, multiplicado por três.

     — Juro-te que às vezes essa garota tem pior senso que um mosquito. Passa o tempo indo daqui para lá, com a cabeça posta ou no passado ou no futuro, mas nunca no presente. Quando não está derrubando-se no remorso, planeja a absolvição de seu imaginário pecado… — Com um gesto de irritação, assinalou os bosques que rodeavam a cabana. — Como este estúpido parque que tenta construir; para ela não é um ato de alegria, e sim uma obsessão destinada a conseguir o perdão de seu pai.

     Callum tentou seguir a lógica feminina.

     — Perdão para que? — Perguntou.

     — Por matar a ele e Caroline.

     O homem ficou pasmado.

     — Mas se Sadie não matou seu pai. — Disse — Nem Caroline… Eu acreditava que tinha sido um incêndio…

     — Que ela provocou. Foi dormir e deixou uma vela acesa no estúdio.

     — Mas Frank morreu faz só três anos.

     — De um problema do coração. — Explicou Charlotte. Em seu rosto se marcaram a inquietação e um prolongado pesar. — O incêndio lhe danificou os pulmões, e nunca se recuperou de tudo.

     De pé, muito quieto, Callum olhou fixamente a sua mulher; estava consternado.

     — Você culpa a sua filha? — Perguntou.

     A indignação retornou de novo, e então ele a viu fechar as mãos, bem apertadas aos flancos, até as converter em punhos, como se estivesse dominando-se para não lhe bater.

     — Claro que não! — Espetou Charlotte, zangada. — Eu amo a minha filha.

     De repente seu aborrecimento se veio abaixo e se lançou nos seus braços. Afundou a face em sua camisa e deu um forte gemido de angústia.

     — Ai, Callum, não sei como ajudá-la! Faz muito que vive com essa culpa, e nada do que eu diga ou faça a fará mudar de opinião… E agora esta obsessão se tornou perigosa, alguém entrou em sua cabana e a revistou de cima abaixo!

     Ao concluir deu outro gemido.

     Callum a estreitou contra ele e a balançou.

     — Calma, mulher… — A tranqüilizou. — Você não pode fazer nada. Esta é uma viagem Sadie que tem que fazer.

     Jogou-a para trás, afastou-lhe o cabelo da face e lhe sorriu com doçura.

     — Mas já não viaja sozinha, pequena: Morgan está com ela e a mantém a salvo de quem quer que seja que fez isso. — Deu-lhe um rápido beijo na testa e depois voltou a lhe sorrir. — E se conheço meu primo, mantê-la-á tão distraída que sua filha não terá tempo de lhe dar voltas nem ao passado nem ao futuro: estará muito ocupada tentando fazer frente ao presente… E os cuidados do Morgan.

     Deu a impressão de que Charlotte queria acreditá-lo; queria confiar em Morgan MacKeage. Callum voltou a beijá-la, desta vez nos lábios e muito mais apaixonadamente.

     Nossa como amava a esta mulher que tinha entrado em sua vida como um vendaval só fazia seis curtos meses… quando lhe atirou sem querer toda uma terrina de feijões fervidos no colo durante um jantar da associação de granjeiros.

     Por então ele não procurava amor; diabos, nem sequer lhe parecia possível semelhante coisa. Desde que, seis anos atrás, a tormenta os levasse a todos ali, Callum só tentava manter-se a distância daquele estranho mundo novo. Tentava ser forte diante o medo e a incerteza, e também frente à solidão que acompanhava a ambas as coisas.

     Mas Charlotte Quill fez saltar pelo ar todas suas promessas quando o jantar se aterrissou no colo, e ela, apuradíssima, tentou se desculpar. Aquela noite a visão de Charlotte foi como um muro no peito de Callum. Por isso aceitou seu oferecimento de limpar a roupa manchada e levá-la a sua casa no dia seguinte.

     Agora utilizaria a excursão de acampada em proveito próprio. Ao melhor inclusive manteria Charlotte nos bosques até que concordasse casar-se com ele.

     Não se preocupava Sadie, sabia que Morgan estava com ela. Sabia por que o cavalo de guerra de seu primo, mimado até ser perigoso, ficava no Gu Bràth enquanto Morgan estava fora. Só esperava que Ian não se deixasse levar por seus desejos e matasse de um tiro ao teimoso animal.

     A contra gosto, separou-se de Charlotte e a manteve a distancia com firmeza.

     — Não me tente, mulher. — Disse com um tenso sorriso. — Temos que planejar uma viagem e temos que recolher as coisas.

     Deu a impressão de que ela engoliu a língua. Limitou-se a cravar os olhos nele, um pouco despenteada e com expressão de encantamento.

     Sim, aquela ia ser uma aventura das mais interessantes.

        

     Sadie não estava segura de como, mas pelo visto tinha concordado em ser a esposa de Morgan durante sete dias. De todos os caprichos estúpidos que podiam ocorrer a um homem, de onde teria tirado a idéia de que estavam casados?

     Com gesto preguiçoso, afundou a pá do remo na água e deixou que a corrente do rio fizesse quase todo o trabalho. Sua atenção se dividia entre o lobo que trotava pela borda e o homem que remava na canoa, diante de seu caiaque.

     Quanto mais ia conhecendo Morgan MacKeage, menos o entendia; simplesmente, era raro. Além disso, davam-lhe igual as fracas desculpas que lhe tinha brindado: ir carregando com uma espada a todas partes já passava de excêntrico.

     E depois o do matrimônio… Mas que espécie de conceito medieval era aquilo de que duas pessoas maiores de idade fazer amor significava uma obrigação para toda a vida?

     Mas o que mais a assustava era ter aceitado tão facilmente seu estrambótico plano. Estava apaixonada?

     Não… Mas desejava Morgan. Só por isso tinha decidido passar a semana fingindo que estavam casados, já que era o único modo de ter uma aventura com ele.

     Assim de novo se encontrava justo onde estava na noite anterior, antes que chegasse a tormenta: outra vez tentando calcular como fazer amor… sem tirar a camisa.    

    

     Por sua parte, Morgan tentava calcular como faria para falar com Mercedes. Seu silêncio o preocupava. Fizera mal as coisas na noite anterior ao reclamá-la do modo em que o fez e, para cúmulo, essa manhã as tinha arrumado para meter-se em um bom aperto do que era difícil sair. Mercedes Quill não era mulher a quem agradasse que dissessem o que tinha que fazer nem como… Embora fosse para seu próprio bem.

     Estava decidida a levar adiante o projeto do parque.

     E ele estava decidido a detê-la para proteger seu cânion.

     Para cúmulo, aquele maldito lobo não ajudava. Faol tinha levado a Sadie uma espécie de ferramenta e agora os guiava até o lugar onde a tinha encontrado.

     Um lugar que estava perto do arroio místico que atravessava seu cânion.

     Morgan olhou para oeste, para a montanha Fraser, tentando descobrir se do atalho onde estavam se viam as altas árvores; decidiu que sim, mas só porque ele sabia o que estava procurando. Em realidade, como o cânion era profundo, as altas árvores pareciam estar quase à mesma altura que o bosque vizinho.

     A bruma, entretanto, elevava-se como a fumaça de um fogo onde ficassem rescaldos, embora depois a brisa do noroeste a dissipava devagar. Claro que, como era outono e a manhã estava fria, também subia bruma do rio no que se encontravam.

     Com gesto distraído e lento, Morgan colocou o remo na água para que o barco tomasse uma curva do rio. E foi então quando a proa se encontrou de focinho com um alce macho, que ficou igual de surpreso que ele.

     Bom, segundo sua experiência, aos alces, fossem do sexo que fossem, não gostavam de surpresas. E aquele gigantesco macho não era uma exceção. O corpulento animal se encabritou, agitou a água com os cascos dianteiros e investiu contra ele.

     Amaldiçoando a pesada carga de sua canoa, Morgan afundou bem o remo no rio e tentou avançar contra a corrente enquanto se separava da trajetória do alce.

     A força de seu impacto ao bater no bote bastou para fazê-lo recuar, ao tempo que estilhaçava a madeira e lhe arrancava o remo da mão. Então Morgan se agarrou às amuradas para manter o equilíbrio e capear aquele temporal de águas revoltas.

     Quando o animal voltou a encabritar-se e investiu pela segunda vez, Morgan procurou sua espada, que dava tombos no fundo do barco, e a desencilhou como pôde. Um grito de alarme de Mercedes lhe chegou por cima de outros sons: o de mais madeira estilhaçada e o do soprar do enfurecido alce.

     Morgan começava a sentir-se um pouco furioso.

     Uma grande bolsa caiu sobre ele enquanto dois grandes cascos baixavam e faziam pedacinhos a amurada. O maldito alce tentava subir no barco para matá-lo.

     Morgan elevou a espada, agarrou a bolsa e a separou de um empurrão. Depois fincou a arma bem fundo no pescoço do animal, que deu uma violenta sacudida e um indignado bramido. Nesse momento, o grito de sua esposa se cortou bruscamente e se transformou em um alarido horripilante.

     O alce escoiceou, e um casco, afiado como uma navalha, fez um talho na sua coxa. Então fez girar a espada e a afundou mais, até sentir que passava a omoplata e chegava ao coração.

     Já com os tremores da agonia, o pesado alce se afundou devagar na água depois obter seu único triunfo: rematar a destruição da canoa. O bote partiu em dois, afundou e Morgan caiu ao rio com todas suas coisas.

     Sem soltar o punho da espada, o guerreiro esperneou para a borda do rio empurrando o alce já morto. Ao tocar fundo, voltou-se, arrastou o animal pela gargalhada e, quando viu que roçava o cascalho, soltou-o e lhe tirou a espada. Só então se deixou cair no chão seco.

     Ali ficou, estendido de costas com os olhos fechados, exausto, enquanto respirava pesadamente. Seus músculos ainda se estremeciam com uma energia que conservava a tensão do combate. Ao mesmo tempo foi dizendo mentalmente uma réstia de maldições, tão ofensivas que talvez Deus acabasse matando-o. De repente sentiu o afresco de uma sombra na face, mas seguiu com os olhos fechados. Resistia a abrir os olhos; não desejava ver o olhar feroz e acusador de sua esposa.

     Então uma quente língua lhe lambeu um lado da face para beber a lambidas a água do rio que lhe gotejava do cabelo. Morgan abriu os olhos de repente, incorporou-se e, de um empurrão, afastou Faol ao tempo que soltava outro palavrão, desta vez em voz alta. O lobo recuou e decidiu ir examinar a peça.

     Por fim Morgan olhou a seu redor, procurando a Mercedes. Estivera parando o bote e estava ao lado, de pé, com os olhos muito abertos cravados nele e a face completamente desprovida de cor.

     Morgan fechou os olhos e voltou a amaldiçoar em voz alta. Sua mulher acabava de presenciar um ato de violência que não compreendia e que talvez não perdoasse jamais.

     Ao fim se decidiu a falar, e sua voz cruzou os vinte passos que os separavam.

     — Não posso mostrar clemência com algo que está empenhado em acabar comigo — Disse.

     Ela seguiu em silêncio, com o olhar fixo.

     Teve vontade de uivar.

     Mas foi Faol que elevou o focinho e soltou um uivo que ressoou por todo o vale.

     Morgan voltou a olhar a Mercedes, e desta vez, de repente, a encontrou só a meio metro de distância. Seus escuros olhos azuis ainda pareciam enormes e impassíveis; sua face estava pálida e gasta, e continuava olhando-o fixamente, em silêncio. Ele seguiu a direção de seu olhar até a ensangüentada espada que ainda tinha na mão direita.

     Abriu os dedos e a deixou cair ao chão enquanto elevava a vista para ela, que recuou um passo. Deu a volta para levantar-se, e Mercedes se apressou a dar outro passo atrás.

     Morgan limpou o sangue das mãos nas calças molhadas enquanto se dirigia para ela, igualando cada passo de retirada com outro de avanço. Ao final esticou a mão para tomá-la pelos ombros, ignorou seu pulo e a sustentou com firmeza.

     — Diga o que está pensando, Mercedes. — Ele ordenou. — Diga para que possa te responder.

     Viu que ela engolia seco e que seus olhos foram até o corpo do alce. Então a sacudiu e fez que voltasse a olhá-lo.

     — Quando Deus deu ao homem inteligência e livre-arbítrio — disse ele. — Estava nos dando o modo de sobreviver neste mundo. Matar um animal para comer ou em defesa própria é um ato natural, não uma ação reprovável.

     Incapaz de seguir olhando sua expressão afligida, puxou-a para agasalhá-la em seu abraço e a estreitou com veemência. Em tom mais suave, prosseguiu:

     — Esse alce agiu segundo sua própria lei, lass, a lei que lhe deixou o sangue de seus antepassados. Que nós dois tenhamos coincidido hoje não foi mais que uma amostra da viagem da vida. — Ao sentir que ela começava a tremer a estreitou contra ele ainda mais, e de novo recorreu à súplica. — Diga algo, Mercedes. Me dê sua ira ou sua dor.

     Nesse instante, com uma voz em que não havia nem rastro de emoção, ela perguntou em seu ombro:

     — Será assim desumano quando proteger este vale de mim?

     Morgan fechou os olhos ao se dar conta de que o conhecia mais do que ele desejava; já sabia que não ia recuar quando se tentasse proteger seu lar.

     Puxou-lhe o cabelo para obrigá-la a olhá-lo.

     — Quando chegar o momento, querida minha, farei o que tenha que fazer para manter a salvo este vale…

     Ela tentou afastar-se, e então ele se apressou a acrescentar:

     — E também para manter a salvo você. Porque você e esta terra são tudo o que me importa agora; sem um dos dois, não sou nada.

     — E quem é você, Morgan MacKeage?

     — Seu marido.

     Ela tentou afastar-se de novo, mas ele a agarrou bem.

     — Sou também seu maior aliado, Mercedes. Confie em mim e encontraremos o modo de arrumar isso.

     Bom, pelo visto tinha que pensar durante ao menos um minuto. E nesse tempo Morgan viu brilhar em seus olhos emoções que iam da esperança ao receio… Até que ao final a cólera ganhou a batalha.

     — Maldição…!

     Beijou-a antes que ela pronunciasse o palavrão: inclinou-lhe a cabeça, cobriu-lhe os lábios com os seus e tragou suas palavras ao lhe colocar a língua na boca. Ela emitiu um som parecido a um miado, e ele não soube se era de boas-vindas ou protesto. Em realidade não importou, pois não demorou para encontrar-se descendo em espiral e afundando mais na magia de seu feitiço.

     Tinha um sabor doce, fresco e maravilhosamente vivo. Sentia-a apaixonada por seus braços; o bastante forte para ser proprietária de seu coração e o bastante firme para ancorar sua alma errante.

     Tinha viajado oito séculos para encontrá-la e não ia deixar que nada se interpusesse entre eles.

     Morgan sentiu um grande alívio e uma grande felicidade quando, por fim, ela pareceu derreter-se contra ele, ao mesmo tempo em que elevava os braços e puxava o cabelo para fazer mais intenso o beijo.

    Mas então estremeceu ao sentir de repente uma pontada de dor em todo o corpo.

     Separaram-se ao mesmo tempo: Mercedes com um afogado grito de surpresa; Morgan com um grunhido, enquanto se apressava a levar uma mão à perna para tampar o grande buraco que tinha nos jeans.

     Ela afastou a mão.

     — Está ferido…! — Voltou a soltar um grito afogado. — Está sangrando!

     De repente, Morgan se encontrou sentado no chão, enquanto Mercedes lhe desabotoava as calças. Incapaz de não sorrir, recostou-se nos cotovelos e deixou que sua agora aflita esposa se ocupasse da ferida. Elevou-se o suficiente para que descesse as molhadas calças até as botas, mas de repente viu que Mercedes se detinha, franzia o cenho e a seguir lhe agarrava a mão, o fazia tombar de tudo e punha a mão sobre a coxa.

     — Mantém a pressão — Disse em tom zangado, enquanto começava a desabotoar os cordões das botas.

     Demorou uns minutos em liberar as pernas. Depois, com cuidado, retirou-lhe a mão para examinar a ferida e elevou a vista para ele. A preocupação pareceu obscurecer os olhos em contraste com sua pálida tez.

     — Precisa… Necessita pontos de sutura — Sussurrou, como se a notícia fosse a afundá-lo.

     Ele quis tornar-se a rir, mas não se atreveu. Mercedes começava a deixar-se levar pelo pânico. A mão que cobria a sua estava tremendo; o estremecimento de sua mandíbula fazia bater os dentes e em seus olhos voltava a ver-se um brilho de lágrimas sem verter.

     — Tem agulha e linha, não? — Perguntou agarrando a mandíbula. Ela assentiu devagar, e então ele, assentindo a sua vez, sorriu com expressão tranqüilizadora. — Prometo não uivar como esse lobo, lass, quando me costura. Mas, ouça, antes de ir procurar a linha, acredita que dará com minha mochila? Dentro há uma garrafa de uísque escocês que talvez facilitaria um pouco a tarefa.

     — Em meu estojo de primeiro socorros tenho analgésicos. — Disse ela. — Mas não se podem misturar com o álcool.

Morgan subiu uma sobrancelha.

     — O uísque é para você, esposa minha, prefiro que tenha o pulso firme quando me colocar uma agulha na pele.

     Deu um grunhido de surpresa quando de repente ela ficou de pé bruscamente, e outro grunhido, desta vez de aprovação, ao ver que fechava as mãos até as converter em punhos, cruzava os braços e lhe lançava um olhar assassino.

     — Não tem graça, Morgan. Dar pontos em uma ferida como essa não é para rir. Deveria ir a um hospital.

     Ele deu uma olhada à borda onde estavam e pousou a vista no único bote que ficava antes de olhá-la de novo.

     — Alguma sugestão sobre como iremos a esse hospital? — Perguntou.

     Ela se animou de repente.

     — Meu celular! — Exclamou ela. — Ligarei a minha mãe para que venha a por nós.

     Correu a seu caiaque e ficou a rebuscar na parte dianteira. Em seguida se endireitou com o celular na mão, mas de repente seu sorriso desapareceu.

     — Dá na mesma, Mercedes. — Apressou-se a assegurar ele. — Não necessito um hospital. Me costure, me enfaixe a coxa e estarei como novo em uns dias.

     Entretanto, ela se negou a olhá-lo. Inclinou-se para rebuscar na escotilha outra vez até que se endireitou com uma bolsinha vermelha na mão. Depois, por fim, retornou junto a ele.

     E, como o idiota que era, Morgan não pôde evitar perguntar:

     — O que aconteceu ao telefone?

     — Ficou sem bateria.

     Morgan começou a desabotoar os botões da empapada camisa e logo se tirou toda a roupa salvo os molhados calções, cheios de barro. Deixou-os postos só porque não queria que sua mulher se distraísse enquanto o costurava.

     Ela lhe passou duas pastilhas, mas em seguida deu uma olhada a seu corpo nu, e de repente colocou a mão na bolsa, tirou outra pílula e a pôs na mão com as demais.

     Ele as olhou com atenção.

     — São para a dor? — Perguntou.

     — Diminuirão.

     — E a cabeça? Também me embotarão as idéias?

     — Só se tiver sorte.

     Ele devolveu as pastilhas.

     — Guarde-as então. Não posso me permitir estar torpe agora mesmo.

     Sadie tentou dar-lhe de novo.

     — Mas é que as necessita. Não posso te costurar sem elas. — Elevou uma sobrancelha perfeitamente arqueada. — Ou teme que me aproveite de você?

     Ele deu um golpezinho na ponta de seu insolente nariz.

     — Não, lass, essa preocupação nem me passou pela cabeça. — Olhou rio acima e depois voltou a olhá-la, subitamente sério. — Não estamos sozinhos neste vale, Mercedes. Os irmãos Doam estão aqui, procurando o ouro, e não quero estar drogado se de repente aparecerem.

     Ela descartou sua inquietação com um gesto.

     — São inofensivos — disse ela. — Procuram o ouro de Plum a tanto tempo como eu. Para eles, é uma afeição, quase um jogo.

    — Também vão armados com potentes rifles. — Replicou ele. — E pelo que sei, procurar ouro não é uma atividade perigosa.

     — Como sabe que levam armas de fogo?

     — Vi-as.

     — Conheceu Harry e Dwayne?

     — De certo modo. — Disse ele, assentindo. — Os vi, mas eles não me viram.

     — Espionou-os?

     — Acreditei que talvez fossem caçadores furtivos. — Disse ele. — Aquele dia que te pedi que não se aproximasse dos bosques, tentei me inteirar do que esses homens pretendiam fazer.

     — Em algum momento te ocorreu perguntar, sem mais?

     Morgan lhe dirigiu um amplo sorriso.

     — Que graça tem isso? — Levantou a mão e passou um dedo pelo lado da bochecha. — Por que não vai procurar minhas coisas antes que se afastem mais rio abaixo? De verdade, me viria bem um gole desse uísque.

     Ela titubeou. Parecia debater-se entre lhe levar algo de beber e lhe cravar na coxa a agulha que sustentava entre os dedos.

     — Estarei bem, Mercedes. Não deixarei de apertar a ferida até que volte.

     Por fim ela ficou de pé e se encaminhou para o caiaque, mas em seguida se deteve e se voltou a olhá-lo.

     — Lamento que esteja ferido, Morgan. Acreditei que o alce só bateria no bote e depois sairia correndo.

     — Eu sei, lass; isso eu também esperava. E não se preocupe por minha ferida, tive piores. Ficarei bem dentro de uns dias.

     De repente, a expressão dela se animou e reluziram os olhos. Então o assinalou com um dedo ameaçador.

     — Fica aquieto… — Disse — Ou terá que se ver comigo.

     Ele assentiu com gesto solene e depois a animou a partir com um gesto. Por fim a viu subir a seu estranho bote e governá-lo com mão perita até meter-se na corrente.

     Sem deixar de sorrir, Morgan voltou a apoiar-se nos cotovelos e deixou que o débil sol de outono lhe esquentasse a pele enquanto contemplava como Mercedes desaparecia devagar mais à frente da curva do rio. Gostava que não desse medo devolver suas palavras, gostava de seu descaramento e, também, sua resolução na hora de enfrentar-se a ele com engenho e vontade.

     Mas, sobretudo, gostava de seu traseiro. Mercedes tinha o traseiro mais bonito, mais firme e mais delicioso… Além das pernas mais longas, que jamais tinha visto em uma mulher. Sim, agradava-o em todos os sentidos, gostava tanto seu corpo como seu espírito.

     Juntos teriam uns filhos estupendos. Daria-lhe filhos fortes que cresceriam para amar e conservar aquela terra, igual a seus pais. Agora se alegrava de que o ancião sacerdote o tivesse convencido para construir um lar aqui. E também de que Grei tivesse tido a previsão de lançar a bengala de Daar à lacuna.

     Porque, como seu irmão, ele também estava decidido a não deixar nunca aquele mundo novo que se tornou subitamente interessante.

     Quando Mercedes desapareceu por fim depois da curva do rio, Morgan introduziu a agulha e o fio em sua pele e se apressou a arrumar a ferida… Antes que voltasse sua esposa e lhe fizesse algum desastre na perna.

 

     — Tem que deixar a perna tranqüila.

     — Não, tenho que evitar que adormeça.

     — Faol voltou a comer seu alce.

     Morgan murmurou umas quantas palavras em gaélico ao mesmo tempo em que lançava uma pedra ao lobo para afastá-lo do alce morto, que seguia na borda do rio. O lobo lançou um grunhido de protesto, afastou-se e depois se internou trotando na mata.

     — Temos que procurar um guarda de caça para informar da peça. — Disse Mercedes da fogueira. — E, além disso, tem que pôr um pouco de roupa; o sol vai caindo.

     Morgan deixou de puxar o couro do já limpo alce e arranhou o peito nu enquanto jogava uma olhada à roupa que se secava junto ao fogo. Vestia as calças, embora estivessem cobertas de sangue. Levou as vísceras do animal o bastante longe para que não os incomodassem os animais carniceiros, e agora estava preparado para lavar-se; o problema era que toda sua roupa limpa seguia molhada depois da queda no rio.

     Mercedes tinha levantado já a diminuta barraca de campanha para que estivesse seca ao anoitecer; junto a ela estavam suas bolsas impermeáveis, e Morgan as olhou. Tinha que comprar algumas daquelas bolsas, pois era provável que no futuro passasse bastante tempo acampado com sua esposa e seus filhos.

     Ela parecia tão a vontade no bosque… Parecia sentir-se tão cômoda ali, sentada sobre os troncos, cozinhando em uma fogueira e dormindo no chão… Governava o bote como se tivesse nascido com um remo na mão, e caminhava pelos bosques com a confiança e o entusiasmo de um andarilho decidido a aproveitar a vida.

     Morgan se deu conta de quão afortunado era por ter encontrado a uma alma tão antiga na época moderna.

     Aproximou-se do fogo e pegou uma de suas ainda úmidas camisas.

     — Por que necessitamos de um guarda? — Perguntou.

     — Porque é ilegal matar um alce fora de temporada. E inclusive em temporada se necessita permissão.

     Depois de colocar a camisa, Morgan se sentou diante de Sadie.

     — Mas se amanhã pela tarde já o terei esquartejado e o terei levado ao Gu Bràth… Ninguém tem por que sabê-lo.

     Ela entreabriu os olhos.

     — Isso o transforma em caçador furtivo.

     Aquilo Morgan gostava muito pouco; mas ainda gostava menos ouvir da boca de sua esposa.

     — Pois não o sou. Esse animal não morreu por minha culpa: eu não saí a caçá-lo, embora isso não signifique que vá deixar que a carne se desperdice.

     — Provavelmente, o guarda te deixará que fique com o alce quando explicarmos o ocorrido. Ele tampouco quererá que se desperdice. O que é Gu Bràth?

     — É a casa de meu irmão — Disse ele.

     — Acreditei que se chamava Centro Turístico da Montanha TarStone.

     — Esse é o nome comercial, mas nossa casa se chama Gu Bràth.

     — É escocês? O que quer dizer?

     — “Para sempre” — Respondeu ele. — Significa que agora estamos aqui para sempre.

     — Mas você já não vive com seu irmão, não é?

     — Não. Precisamente neste verão construí uma casa na montanha Fraser.

     Subitamente interessada, ela se aproximou um pouco.

     — Tem nome sua nova casa?

     Morgan se recostou em uma rocha, cruzou os braços sobre o peito e lhe dedicou um amplo sorriso.

     — Quis deixar essa tarefa nas mãos de minha esposa.

     Ela franziu o cenho, afastou-se um pouco e voltou a concentrar-se na comida que estava preparando. Removeu a sopa em pó que tinha vertido de um envelope de alumínio e acrescentou mais água.

     Morgan ficou de pé, agarrou a espada e um pouco de roupa limpa e depois lhe tirou a garrafa da mão.

     — Vou procurar um lugar para me lavar e para pegar um pouco de água para beber. — Disse a ela. — Antes que escureça muito.

     — Tem que descansar para recuperar da ferida.

     Tomou-lhe o queixo e lhe elevou a face.

     — O que preciso é que estenda nosso saco de dormir na base dessa saliência dali e que ponha debaixo uma grossa capa de erva seca.

     Observou que, de repente, ela abria mais os olhos.

     — O que…? O que tem de errado a barraca? — Sussurrou Sadie.

     — Eu não gosto das barracas de campanha. — Respondeu ele, conciso. — Não me deixam olhar o bosque.

     — Mas o mantêm seco quando chove.

     Ele se inclinou e lhe deu um rápido beijo na boca.

     — A natureza nos proporciona proteção. Essa saliência nos manterá secos esta noite. Bom, agarra-me a perna porque não quer que vá ou porque está pensando em me deixar outra marca?

     Ela deu um tapinha no joelho e soltou sua mão, ao tempo que lhe lançava um olhar feroz.

     — Ouça, me diga por que é sempre tão cauteloso. Age como se todo mundo fosse vir atrás você.

     Morgan acomodou a espada por cima do ombro sem deixar de olhá-la.

     — Não cheguei até aqui para morrer nas mãos de uns idiotas. — Agachou-se para ficar a sua altura e voltou a tomar seu queixo. — E você também deve se manter em guarda, Mercedes. Nesta cercania mora uma tormenta e não tem nada que ver com o tempo. Aqui há perigo.

     Embora ela tentasse afastar-se de novo, ele não a soltou.

     — Não brinco. Não pode confiar nos irmãos Doam. Tem que ser tão cautelosa como eu.

     — Espera que confie em você sem pestanejar, não?

   Ele dedicou um amplo sorriso e estendeu os dedos para lhe rodear toda a face.

     — Espero obediência, gràineag, se tratar de sua segurança.

     De repente ela se inclinou para frente, agarrou-lhe os ombros e o empurrou até fazê-lo perder o equilíbrio. Os dois acabaram no chão, ela em cima dele. Então o beijou e deslizou a língua dentro de sua boca enquanto apertava sensualmente seu sexy corpo contra o dele.

     Imediatamente Morgan pôs as mãos no delicioso traseiro e a empurrou contra sua ereção dando um frustrado grunhido. Desejava-a outra vez.

     Mas não assim, com apenas a terra como leito.

     Fazendo um esforço, agarrou-a pelos ombros e a levantou. Depois, com os dentes apertados e o olhar cravado nos inchados lábios de Sadie, pousou-a no chão, a seu lado.

     — Esta noite, esposa minha, terminaremos o que começamos ontem à noite.

   Ela o olhou piscando e depois se afastou como pôde. Então Morgan soltou outro palavrão, levantou-se e se internou no bosque sem olhar atrás.

     Sadie não soube se acabava de rejeitá-la ou de ameaçá-la… Nem se devia sentir-se insultada ou atemorizada.

   E tampouco soube decidir se Morgan seguia chamando-a “esposa” para irritá-la, ou se realmente acreditava que era preciso não parar de lhe recordar aquele desconcertante detalhe.

     Gostaria de ser sua esposa… Possivelmente. Imaginou o que seria despertar junto a Morgan cada manhã durante o resto de sua vida: ela com a camisola de dormir abotoada até o pescoço, e ele em pêlos e mais atraente que nunca.

     Então soltou um bufido, voltou junto ao fogo e ficou a remover a sopa. Estava tecendo um sonho… Mas o certo era que fazia anos, desde antes do incêndio, que não se sentia tão viva nem tão emocionada com o que pudesse lhe proporcionar o futuro.

     Isso era o único que impedia de fazer realidade seu sonho: aquele estúpido incêndio. Tinha matado a duas pessoas que amava. Seu descuido e a pouca atenção que prestava aos detalhes tinham desembocado em uma tragédia tão atroz que nunca obteria o perdão. Suas horríveis cicatrizes não eram nada comparadas com a morte de sua irmã e seu pai: as merecia, todas e cada uma delas.

     O que não merecia era um marido tão bonito como Morgan MacKeage… Embora isso não queria dizer que não o amasse ou inclusive que acabasse aceitando casar-se com ele, se é que ele seguia insistindo nisso.

     E tampouco queria dizer que, em um futuro, ele não correspondesse a seu amor.

     Pela extremidade do olho vislumbrou um movimento e se voltou a tempo de ver aparecer uma canoa. Dois remadores a levavam para a borda onde ela tinha parado seu caiaque. Então se levantou, examinou os bosques se por acaso via algum rastro de Morgan e depois, devagar, aproximou-se para saudar Harry e Dwayne.

        

     Morgan começou a coxear assim que esteve seguro de que Sadie não o via. Esfregou a coxa, que lhe dava ferroadas, e amaldiçoou sua má sorte por ter saído ferido.

     Embora, por outro lado, melhor ele que Mercedes. Esticou o peito ao pensá-lo. Ela podia ter ido no primeiro bote, podia ter tido que enfrentar o alce… E ele possivelmente não tivesse chegado a tempo para defendê-la.

     Ou podia ter estado sozinha nos bosques, como no verão, e acontecer algo: cair durante uma de suas caminhadas plantando fitas, afogar-se ao descer algum dos rápidos mais impetuosos do rio ou, simplesmente, pegar umas febres e não ter a ninguém que a cuidasse.

     Por experiência própria sabia que Mercedes era temerária e que não sempre pensava antes de agir. Diabos, e se tivesse feito fotos a outro cara em vez da ele? Que perigos teria confrontado então?

     Aquela mulher necessitava um guardião.

     Parou em um arroio que desembocava no rio e observou o leito transparente e cristalino que desaparecia devagar no Prospect, de águas um pouco salobras. Então se desviou e se dirigiu corrente acima enquanto elevava a vista para as montanhas que tinha diante.

     Sabia onde se encontrava, e isso não gostava. Aquele era o mesmo arroio que saía do escarpado atravessando seu cânion e depois, ao final, chegava ao vale. E ele e Mercedes estavam acampados a menos de setecentos metros de distância.

     Não queria que ela visse esse arroio. Não queria que se desse conta de que era algo especial. Quando contasse com sua lealdade, então lhe mostraria a catarata.

     Em silêncio, Faol cruzou em seu caminho. Deteve e levantou o focinho em um sorriso quase humano.

     — Cão sarnento… Deixa em paz esse alce ou porei a secar sua pele pendurado na parede ao lado dele!

     Faol baixou a cabeça, meteu-se no arroio e começou a lamber a água, sem preocupar-se absolutamente por sua ameaça. Então Morgan recordou que, em teoria, ele também procurava água potável. Avançou até ficar mais acima do lobo e se ajoelhou na borda. Depois afundou a garrafa e deixou que se enchesse. Depois de tampá-la, pô-la na erva e então se agachou para beber.

     Uma intensa e crepitante sensação atravessou todo seu corpo assim que seus lábios tocaram a água. Morgan agarrou o nó de madeira que pendurava de seu pescoço e se afundava no arroio: agora vibrava com a força de um milhar de abelhas que elevassem o vôo. Endireitou-se bruscamente enquanto sentia que o calor penetrava em seu corpo e umas faíscas de luz verde bailavam diante seus olhos.

     O lobo deu um rosnado de alarme e, ao passar como uma bala por diante dele, atirou-o de costas na ribeira. Em seguida o formigamento diminuiu, e o nó de madeira se tranqüilizou até emitir só um suave zumbido.

     Morgan o elevou do peito para vê-lo melhor. A madeira de cerejeira girava e empurrava contra sua mão em direção ao arroio.

     Bom, a magia procurava a magia. O que notava era a reclamação do antigo bastão de Daar, que corria pela água. Então elevou o nó sobre a cabeça, agarrou-o no punho e voltou a levar a mão ao arroio.

     Umas espetadas de energia lhe subiram pelo braço como um raio, atravessaram seu peito e se estenderam por cada centímetro de seu corpo. Em seguida a ferida da coxa começou a lhe dar ferroadas enquanto o calor se concentrava em torno dela como se aproximasse um atiçador quente.

     Retirou a mão, e a sensação se deteve.

     Abriu o punho e cravou o olhar no nó de madeira que girava, vibrava e brilhava com potente luz. O que havia dito o druida? Que aquele nó era condutor da magia e que Morgan devia encontrar um modo de aumentar sua força?

     Bom, pois pelo visto acabava de fazê-lo.

     E não que compreendesse. Desde que o aceitara, tinha molhado o nó em muitas ocasiões, mas aquela era a primeira vez que tocava precisamente essa água… E esse era o segredo: tratava-se do arroio mágico de que bebiam as muito altas árvores, que criava peixes enormes e cuja energia lhe percorria o corpo naquele momento.

     Voltou a passar o cordão pela cabeça e depois ficou de pé. Depois desabotoou a camisa e a lançou ao chão, tirou depressa as botas e as calças e os jogou junto à camisa. Por último arrancou a bandagem da coxa e observou a ferida.

     A pele de ao redor pulsava e puxava os pontos de sutura com os que a tinha costurado. Dentadas bordas de carne lhe ardiam, inchavam-se e palpitavam para juntar-se. De repente os nós do fio se romperam, e Morgan sentiu uma chicotada de dor que chegou aos dentes.

     Meteu-se no arroio até o peito e se sentou para ficar submerso até os ombros. O nó de madeira entrou na água e, imediatamente saíram dele faíscas, disparadas em todas as direções, que espalhavam borbulhas de luz em torno de Morgan. Este deixou que a energia o invadisse. Fechou os olhos e se inclinou para trás até que só sua face buscasse o ar.

     Um redemoinho de cor cruzou por sua mente, e uma sensação cálida lhe rodeou a pele em uma manta de calor tão intenso que lhe custou trabalho respirar. O zumbido se fez mais forte. A água fervia, e as borbulhas explodiam a seu redor como as faíscas de uma fogueira.

     Morgan se afundou por debaixo da superfície, retorcendo-se e esperneando em uma tentativa de deixar atrás aquele caos. Parecia sentir a força de uma legião de homens; era como se fosse dono de um poder que lhe permitiria dobrar as leis da natureza.

     E que, além disso, ofereceria-lhe a capacidade de curar a si mesmo.

     Então voltou a ficar em pé e depois afastou o cabelo da face e deixou que a água lhe caísse em cascata pelas costas. Agarrou o nó de madeira no punho e visualizou sua ferida. Depois mandou o calor até ali e ordenou a sua carne que se fechasse. Dobrou o joelho esquerdo para esticar a pele da coxa…

     E de repente não sentiu nenhuma dor. Só a calidez da carne flexível.

     Abriu os olhos e olhou a seu redor. As faíscas tinham desaparecido. A água voltava a estar mansa e descia em calma para o rio. Seu corpo estava fresco, sua respiração era regular; seus músculos estavam relaxados…

     E também se sentia maravilhosamente vivo.

     Abriu o punho e olhou o nó de madeira que, também em calma, zumbia baixinho em sua mão; mas agora parecia diferente ao tato: mais suave, menor…

     Maldição, claro que era menor. Tinha gasto parte de sua magia!

     Morgan se levantou, deixou cair de novo o nó contra seu peito e foi caminhando para a borda. Uma vez ali, deixou-se cair no chão e ficou deitado de barriga para cima, com o olhar cravado nas nuvens que o sol poente pintava de vermelho. Assim esteve vários minutos, imóvel, tentando assimilar o que acabava de acontecer.

     De repente se incorporou e observou sua coxa. Não havia ferida, nem pontos de sutura, nem sequer uma cicatriz. Passou as pontas dos dedos pela suave pele coberta de pêlo.

     Nossa, diabos, como ia explicar isso a Mercedes?

     Nesse momento, com muitas precauções e muito mais silenciosamente que quando partiu, Faol saiu da mata, aproximou-se e lhe deu um empurrãozinho pelas costas. Depois soltou um nervoso gemido e deu vários passos ao trote descendo pela borda do arroio.

     O lobo se deteve, voltou-se para ele e grunhiu, com a cabeça baixa e o cabelo do lombo arrepiado em atitude agressiva. Depois elevou o focinho, cheirou e deu vários passos mais para o rio, só para voltar a deter-se e soltar um latido.

     Morgan agarrou sua roupa limpa e se apressou a vestir-se. Depois recolheu do chão a garrafa de água e a espada e pôs-se a correr atrás do lobo sem abandonar as sombras da cheia mata que flanqueava o arroio. Manteve-se alerta, atento àquilo, fosse o que fosse, que fazia avançar Faol com o sigilo de um caçador.

     Avançaram rio acima para onde ele tinha deixado Mercedes, e quando se aproximavam do acampamento, ouviu as vozes. Então se agachou atrás de um denso arbusto, na proteção de uma saliência rochosa, e observou como sua desobediente esposa se aproximava do rio e saudava com amabilidade justo os mesmos homens a quem tinha ordenado que evitasse.  

    

     — Nossa, mas se não é Sadie Quill! — Disse Harry, saudando-a com o remo. — Faz mil anos que não a vemos. Acreditava que tinha partido a grande cidade para ser garota do tempo.

     Ela agarrou a proa da canoa para que não golpeasse uma rocha e depois recuou um passo quando Harry saltou. Juntos, os dois puxaram o bote, carregado até a margem, até deixá-lo pela metade na borda, com um risonho Dwayne metido dentro.

     — Olá, Sadie! — Saudou-a sorrindo, e assinalando-a com o dedo acrescentou. — Tenta ganhar e encontrar o ouro de Plum antes que nós?

     — De fato, já vou ganhando. — Replicou ela imediatamente. — Tenho todo um dia de vantagem, Caçadores preguiçosos.

     Dwayne deu uma risada, e deu de ombros.

     — Desta vez não, jovenzinha. — Disse ele. Sorria tanto que apenas lhe viam os olhos. — Desta vez temos algo melhor que um mapa.

     — Dwayne — Espetou Harry — Saia do barco antes que o vire.

     Com trabalho, seu irmão percorreu todo o bote até que se encontrou com que não podia ir além dos bens que levavam. Então resolveu o problema entrando na água sem mais e caminhando até a borda. Sadie recuou, se por acaso lhe dava de sacudir-se como um cão para secar-se, e sorriu ao ver que passeava o olhar pela borda e de repente abria muito os olhos com expressão de surpresa, ao tempo que assinalava o alce.

     — Tem um alce morto! — Gritou. Começou a correr para ele. — Matou um alce, Sadie!

     Ao chegar junto ao animal se deteve tão de repente que esteve a ponto de cair. Então se voltou a olhá-la e de novo a assinalou com o dedo, desta vez meneando-o como uma mãe que exorta a um menino travesso.

     — Estes não se matam, jovenzinha. É ilegal.

     Sem pressas, Sadie foi atrás de Harry, que tinha seguido seu irmão para examinar o alce.

     — Eu não o matei. — Disse a Dwayne. — Foi meu marido.

     Nossa, que diabos a tinha impulsionado a dizer aquilo?

     — O alce atacou seu bote, e ele se defendeu.

     — Tem marido? — Perguntou Harry. Primeiro a olhou surpreso, depois examinou o acampamento procurando indícios de um homem e por fim voltou a olhá-la com os olhos entrecerrados. — Trouxe de Boston um desses caras da cidade?

     Devagar, Sadie meneou a cabeça; ainda não se tinha recuperado do fato de que acabava de lhes dizer que tinha um marido.

     — Não, é daqui. Chama-se Morgan MacKeage.

     — Ouvimos falar desses MacKeage. — Respondeu Harry com os olhos entrecerrados ainda. — São donos da estação de esqui.

     Embora parecesse mais interessado no alce que na conversa, Dwayne interveio com voz aguda e estridente.

     — São gente rara. — Disse, e de repente deixou de tocar o alce e olhou a Sadie ainda sorrindo. — O que a fez se casar com um deles? Dizem que são um grupo de caras grandes e mal-encarados que só vão ao seu.

     Ela não pôde evitar responder com outro amplo sorriso. A imperturbável jovialidade de Dwayne sempre era contagiosa.

     — Sim, são grandes. — Concordou. — Provavelmente por isso me casei com Morgan. É mais alto que eu.

     Dwayne a examinou da cabeça aos pés e depois, de repente, endireitou-se em toda sua altura de quase metro oitenta, inchou o peito e lhe lançou outro sorriso de dentes torcidos.

     — Bom, Sadie, se soubesse que procurava marido, me teria devotado a me casar contigo. Não me importam absolutamente as cicatrizes de sua mão. Acredito que é bem bonita tal como é.

     Sadie sentiu que lhe derretia o coração diante seu sincero oferecimento.

     — Obrigado, Dwayne. — Respondeu, ao tempo que assentia agradecida. — Mas Morgan tomou a dianteira. Vai ter que ser mais rápido na hora de dizer a uma garota que a acha bonita.

     Com a face vermelha, Dwayne fez um movimento de cabeça enquanto, nervoso, lançava uma rápida olhada pelo acampamento.

     — Espero que seu marido não tenha ouvido isso. — Sussurrou. — Não quero que pense que estava me colocando em seu território.

     Com um gesto da mão, Sadie rejeitou sua preocupação; depois o pegou pelo braço e o conduziu para a fogueira.

     — Não se ofenderá. — Assegurou enquanto caminhavam. Guiou-o até uma rocha e o fez sentar-se, enquanto que, com um gesto, indicava ao Harry que se sentasse no tronco. — Bom, que tal se fizermos uma troca, cavalheiros?

     — O que necessita, Sadie? — Perguntou Dwayne. — Está ficando sem mantimentos?

     Ela respondeu que não e, enquanto meneava a cabeça, apressou-se a examinar o bosque se por acaso via Morgan. Confiou em que se afastou bastante em busca de um manancial e em que não apareceria de repente, empunhando a espada como um selvagem. Só necessitava vinte minutos para falar com Dwayne e Harry, depois deixaria que seguissem seu caminho sem problemas.

     — Pensava trocar algo de jantar por uma olhada a isso que têm, e que é inclusive melhor que um mapa. — Disse enquanto ficava de cócoras para remover a sopa e lhes enviava seu delicioso aroma.

     Os dois pares de olhos que se cravavam nela se entreabriram, e por fim o sorriso desapareceu da cara de Dwayne, que voltou a assinalá-la agitando o dedo.

     — Não vamos dizer nem um pio, jovenzinha.

     — E por que segue procurando o ouro? — Perguntou Harry. — Já não o necessita, os MacKeage são ricos.

     — Ah, sim? — Perguntou ela elevando uma sobrancelha.

     Os dois homens assentiram.

     — São donos de quase toda a terra de por aqui, subindo até o Canadá. — Prosseguiu Harry, ao tempo que assinalava com um gesto o lado ocidental do vale. — E, além disso, têm esse elegante complexo turístico.

     — Sigo procurando o ouro porque nunca foi para mim, como já sabem. Meu pai o buscava só para comprovar a lenda, mas queria doá-lo a uma boa causa. — Sadie elevou a outra sobrancelha. — Quais são seus planos?

     De repente, Dwayne ficou a sorrir de novo e se esfregou as mãos.

     — Vamos comprar esposas — Respondeu.

     Assentiu para demonstrar que falava a sério.

     Sadie deu um grito afogado e perguntou:

     — Comprar o que?

     De tudo o que esperava ouvir, como uma caminhonete nova ou talvez arrumar a casa, o das esposas era o último imaginava que desejariam aqueles dois irmãos solteirões.

     — Esposas — repetiu Harry. Franziu o cenho ao ver sua expressão de susto, e então se acomodou melhor no tronco e lhe dirigiu um olhar feroz e defensivo. — Encontramos esse catálogo onde compram mulheres. Até vendem viagens a Rússia para conhecê-las.

     — Nós as escolhemos. — Acrescentou Dwayne. Inclinou-se para frente, e a emoção fez que baixasse a voz até convertê-la em um sussurro. — Eles dão uma festa elegante, e todas as mulheres vêm, e então as conhecemos e escolhemos.

     Harry também baixou a voz em tom reverente.

     — Mas é para casar-se com elas — Explicou ele. — Não são prostitutas nem nada, são mulheres respeitáveis.

     — Passam uma má situação, nada mais. — Completou Dwayne. — Por isso querem casar-se com homens ricos e vir a América do Norte.

     — E quando encontrarmos esse ouro — disse Harry, ao tempo que endireitava as costas, inchava o peito e passava os polegares por debaixo dos suspensórios. — Nós seremos norte-americanos ricos. Teremos dinheiro suficiente para ir a Rússia, comprar nossas esposas e trazê-las par cá para que nos cuidem em nossa maturidade.

     — E, além disso, conseguiremos molhar sem ter que pagar. — Interveio Dwayne.

     Imediatamente se tampou a boca com a mão e ficou vermelho como um tomate ao dar-se conta do que acabava de dizer.

     De repente, Sadie reparou em que estava olhando-os boquiaberta como a tola do povoado e fechou a boca de repente, enquanto sentia uma onda de calor que subia às bochechas. Aqueles dois velhos verdes iam comprar esposas? Da Rússia?

     — Todo este tempo… Estiveram procurando…? De verdade pensam comprar esposas? — Terminou com um grito.

     Voltou a fechar a boca de repente, inspirou profundamente e se esforçou por manter a calma.

     — Seremos bons maridos. — Disse Harry em tom defensivo. — Cuidaremos bem dessas mulheres.

     Sadie elevou as mãos em gesto suplicante e se apressou a mostrar-se de acordo.

     — Não duvido de que o farão. — Por um instante olhou Harry e Dwayne antes de começar de novo. — Todos estes anos que levam procurando o ouro do Plum… Sempre foi por esse motivo?

     Os dois homens assentiram, mas foi Dwayne quem falou.

     — Não agüentamos nossa comida. — Reconheceu. — E às vezes nos sentimos sozinhos, sobretudo no inverno.

     Harry meneou a cabeça.

     — E por isso não vamos compartilhar nosso segredo — Disse ele. — Não somos jovens precisamente, e temos que encontrar esse ouro este outono.

     — Por que agora, depois de tantos anos? — Perguntou ela.

     — Porque queremos filhos! — Explicou Harry em tom impaciente. A julgar por sua expressão, acreditava que teria devido adivinhá-lo sozinha. Voltou a inchar o peito. — Um homem quer deixar um pouco de si mesmo quando lhe chegar o momento de ir-se deste mundo.

     Ela teve que tossir para dissimular que se engasgou. Filhos? Caramba! Se os dois irmãos tinham quase sessenta anos!

   — Ouça, Sadie — disse Dwayne. — Suponho que se encontrar esse ouro antes e quer doá-lo a uma boa causa como queria seu pai, pensará que Harry e eu somos boas causas, não?

     — Não teria que nos dar tudo — Acrescentou seu irmão.

     Pelo visto, tinha gostado da idéia de Dwayne; inclinou-se para frente e esfregou as mãos. Sadie teria jurado que quase via como lhe formava uma idéia atrás das franzidas sobrancelhas.

     — Poderíamos pôr em comum nossa informação, procurar o ouro juntos e depois dividir os lucros.

     Dwayne meneou a cabeça ao tempo que olhava a seu irmão com o cenho franzido.

     — Já tentamos com seu pai, recorda? — Disse. Olhou ao Sadie e voltou a dirigir-se a ela meneando o dedo. — Sem querer ofender, jovenzinha, mas como queremos comprar duas esposas, vamos necessitar todo o ouro. Temos que reservar uma parte para quando voltarmos a casa, e assim cuidar bem delas.

     Harry devolveu o carrancudo olhar a seu irmão: não tinha gostado que jogasse por terra seu plano tão cedo. Então lançou um rápido olhar a Sadie e depois, de repente, levantou-se.

     — Devemos ir já. — Deu uma cotovelada a seu irmão para que ficasse em marcha. — Temos que montar o acampamento antes que escureça.

     — E por que não ficamos aqui? — Perguntou Dwayne, já de pé. — Ela já tem um fogo aceso.

     Harry meneou a cabeça e deu um empurrãozinho a Dwayne em direção à canoa.

     — Tem um marido. — Recordou a seu irmão. — Talvez queira um pouco de intimidade.

     Dwayne, que de novo deixava ver um amplo sorriso, de repente ficou de um vermelho tomate. Sem querer que Sadie o ouvisse, sussurrou ao Harry:

     — Ah, refere-te a que talvez queiram fazê-lo…

     Desta vez o empurrão de Harry não foi tão suave: de um bom tranco, colocou a seu irmão no rio. Dwayne se agarrou à canoa e recuperou o equilíbrio. Depois seguiu caminhando e se encarapitou na popa. Depois de agarrar a proa e empurrar o bote para águas profundas, Harry subiu rapidamente e agarrou seu remo.

     Dwayne se despediu agitando o seu no ar.

     — Adeus, Sadie! Diremos onde está a mina do Plum depois de que tiremos todo o ouro! — Gritou enquanto entravam na corrente e deixavam que esta os separasse da borda. Depois deu a volta no assento, sem deixar de mover o remo e de sorrir. — Ou melhor, até lhe damos uma pepita para que se console!

     Quando começaram a deslizar-se para a curva do rio, Dwayne ainda seguia dizendo adeus com o remo e falando.

     — Saúda seu marido de nossa parte! — Gritou. — E recorda, jovenzinha, que se não te tratar bem, pode vir nos ver mim e ao Harry! Não nos dão medo esses MacKeage!

     Pelo visto, Harry não achou graça que seu irmão o colocasse contra sua vontade em um assunto tão perigoso, e com o remo golpeou a água, de modo que empapou o Dwayne. Este balbuciou algo entre dentes enquanto tirava meio rio de cima.

     O último Sadie viu deles foi que ambos remavam com frenesi, Harry decidido a deixar atrás a seu irmão e Dwayne decidido a apanhá-lo… Esquecendo, parecia, que ambos estavam sentados nos dois extremos do mesmo barco.

 

     Com a vista cravada no lugar por onde Dwayne e Harry tinham desaparecido, Sadie lutou com a borbulha de risada que ameaçava explodir no ventre.

     Comprar esposas… Durante todos esses anos, aqueles dois velhos verdes procuravam o ouro porque estavam seguros de ter encontrado o modo de fazer menos solitários os largos invernos.

     Retornou ao acampamento movendo a cabeça em um gesto de incredulidade e seguiu até mais à frente do fogo, para deter-se justo diante de uma enorme rocha arredondada. Então cruzou os braços sob o peito e sorriu a alta moita que havia ao lado.

     — Bom, entende agora por que são inofensivos? — Perguntou à entupida madressilva.

    Morgan saiu de trás da madressilva e ficou de pé diante de Sadie, embora não parecia nem muito menos tão regozijado como ela. Cintilavam-lhe os olhos à última luz do sol poente.

     — Acredita que um homem poderá vender a uma esposa nesse catálogo de que falavam? — De repente deu um suspiro e esfregou a nuca. Sua voz adotou um tom cansado. — E não é que fossem me dar muito por você. Uma esposa desobediente não pode valer nem cem dólares.

     Sadie decidiu ignorar seu pouco sutil ameaça.

     — São boa gente, Morgan. — Disse a ele. — Entre os corpos dos dois não reúne nem um só osso mau. Qualquer um deles daria até a camisa que leva posta a quem a necessitasse.

     — Reconheço que é verdade que parecem mais um perigo para si mesmos que para alguém. — Agarrou-a pelos ombros. — Mas quando se trata de dinheiro, até o homem mais anti-social se volta letal, Mercedes. As pessoas se cegam com a promessa das riquezas e agem sem pensar.

     — Dwayne e Harry não.

     Soltou-se de uma sacudida, foi para a fogueira e depois de tirar da churrasqueira a sopa, que já fervia, pô-la a esfriar no chão. Depois agarrou a colher e assinalou com ela a Morgan.

     — São meus amigos. — Sublinhou suas palavras com um gesto, como se cravasse o ar com o coberto. — E terá que confiar em minha opinião. Em teoria, o matrimônio é coisa de dois, Morgan. Diga-me, acredita que sou estúpida?

     — Como?

     — Acredita que sou estúpida? — Repetiu ela. — Que sou uma ingênua que necessita um homem que a cuide?

     Ao ouvir sua pergunta, ele a encarou com os olhos entrecerrados e fez uma careta enquanto pensava na resposta. Sadie quase riu em voz alta. O pobre sujeito parecia um desses homens a quem sua esposa acaba de lhes perguntar se as calças deixam o traseiro gordo: compreendia que qualquer resposta que desse estaria errada.

     Deixou de assinalá-lo com a colher e começou a remover com ela a sopa para que se esfriasse mais rápido. A recozida janta começava a parecer-se a umas papa.

     — Não acredito que seja estúpida. — Disse ele por fim com voz cautelosa. — Só acredito que é muito confiante.

     Sadie deixou cair os ombros; resposta errada.

     — Muito confiante… — Repetiu — Refere-se a como confio em você?

     Observou que Morgan inspirava fundo e soltava o ar com um áspero suspiro. Antes de olhá-la outra vez, esfregou a face com as mãos e, devagar, meneou a cabeça.

     — O que quer de mim, Mercedes?

     — Quero que respeite minha opinião no referente a Dwayne e a Harry. Até que algum dos dois faça algo que demonstre o contrário, quero que os trate com amabilidade. E, além disso — Acrescentou, assinalando-o outra vez com a colher ao ver que ele começava a falar — Quero que confie em mim.

     Ele fechou a boca de repente e começou a pensar outra vez. Enquanto isso, Sadie deu um precavido gole à sopa e esteve a ponto de sofrer arcadas. Sem pensar duas vezes, derrubou a panela e atirou ao chão o jantar. Depois rebuscou em sua bolsa impermeável, tirou duas barrinhas de cereal e lançou uma a Morgan.

     Este a agarrou, observou-a atentamente com olhar crítico e depois dirigiu o mesmo olhar a Sadie, que se elevou de ombros.

     — Ouça, provavelmente não obteria nem cinqüenta dólares por mim. Está começando a pensar isto do matrimônio?

     — Começo a pensar que já é hora de deitar-se. — Respondeu ele, ao tempo que se levantava e atirava a barrinha de cereais sobre a bolsa.

     Aproximou-se do saco de dormir que ela tinha estendido junto à saliência rochosa enquanto tirava a espada das costas. Então Sadie apressou-se a ficar de pé.

     — Quero mais uma coisa, Morgan.

     — E qual é? — Perguntou ele, voltando a cabeça para olhá-la e elevando uma arrogante sobrancelha.

     Bom, maldição… Não sabia como tinha ocorrido, mas durante os próximos sete dias ia fingir ser a esposa daquele homem, e aceitava que isso incluía dormir com ele. E não é que se importasse, para falar a verdade, gostava da idéia. Mas primeiro tinham que deixar claras algumas coisas.

     Nervosa, secou as mãos nas coxas e começou:

     — Sou… Sobre dormirmos juntos. Não é que não queira… Mas…

     Ao ver que Morgan se voltava de tudo para ficar de frente, quase perdeu a coragem, mas levantou os ombros e elevou o queixo. Aquele muito bonito, maciço e perfeito exemplar de homem não ia intimidá-la, ou não se chamava Sadie.

     — Quero estabelecer algumas normas — disse, por fim. — Vou ficar com a camisa, e minhas costas é terreno proibido.

     Em vez de discutir, ele se limitou a encolher os ombros e assentir em sinal de aceitação antes de dar a volta outra vez para a cama. Já ali, deixou a espada no chão e começou a tirar a roupa. Sadie jogou sua barrinha de cereal sobre sua bolsa impermeável e se enfiou na escuridão, em direção ao rio.

     Tomou seu tempo para lavar-se antes de enrolar dentro dos jeans o sutiã, a regata, as calcinhas e a luva. Depois, só com a camisa de flanela posta, voltou a dirigir-se para o acampamento… E para o marido que a esperava.

        

     Morgan apertou os dentes quando sua esposa se meteu na cama junto a ele, e afogou um grunhido quando suas longas pernas nuas se deslizaram junto às suas. A testa se cobriu de suor, o sangue correu a concentrar-se na virilha… E com o mínimo controle que restava, deixou quietas as mãos.

     — Do que é feito seu colar?— Perguntou ela, enquanto sua mão ia ao nó de madeira que levava a pescoço. — Sempre parece estar brilhando.

     Ele queria equilibrar-se sobre ela, e aquela mulher queria falar… Morgan respirou para tranqüilizar-se. Claro que ao melhor falar não estava tão mal. Era evidente que Mercedes necessitava um pouco de tempo para acostumar-se a compartilhar cama com ele, e possivelmente essa distração serviria a ele para manter seus impulsos sob controle.

     — É feito de madeira de cerejeira.

     Tirou-o de sua mão e o elevou entre os dois.

     — E não sei por que forma redemoinhos assim. Deve ser um efeito da luz — disse ele, ignorando o fato de que a luz se partiu com o sol.

     — Por que o usa?

     — É um presente de um velho amigo.

     — Tem o mesmo aspecto que a bengala que Daar levava. — Murmurou Sadie. Olhou o nó de madeira com o cenho franzido. — Era de cerejeira e tinha uns nós iguais que este.

     — Ele me deu isso. — Reconheceu Morgan. — Esse ancião louco disse que era um amuleto de boa sorte. Acredito que esteja um pouco caduco.

     — E, entretanto, você continua usando seu presente.

     — É mais velho, e não quero ofendê-lo.

   Ela lhe deu uns tapinhas no peito, contente com sua resposta. Depois deixou a mão ali e com os dedos lhe acariciou com suavidade o peito esquerdo. Morgan fechou os olhos e rezou pedindo paciência.

     Em seguida, voltou a abri-los de repente: os lábios dela acabavam de roçar os seus.

     Aquela bruxinha conseguira apanhar suas mãos, e as retinha com o desespero de uma mulher decidida a sair-se com a sua. Depois, foi empurrando as mãos dele até colocá-las por cima da cabeça, enquanto o deixava sem sentido à força de beijos e serpenteava para colocar-se sobre seu corpo.

     Como tinha prometido, só usava a camisa e da cintura para baixo estava completamente nua. Cada centímetro de pele que lhe tocava o corpo fazia que os músculos do Morgan reagissem, esticando-se. Embora ela não pesava nada, custava-lhe respirar.

     Sua virilidade apareceu pelo ventre de Mercedes em um movimento ascendente que Morgan não pôde evitar. Então lhe apertou as coxas com os joelhos e se esfregou contra ele com movimentos lentos e sensuais.

     Ele grunhiu em sua boca e soltou as mãos para agarrar seus quadris, em uma tentativa de fazê-la desacelerar.

     Ela afastou bruscamente a boca, e com os lábios foi descendo por sua garganta até chegar a seu peito, e uma vez ali, foi beijando-o com suavidade.

     Quando se sentou escarranchado em seu colo, ele voltou a grunhir. Estava sendo muito apaixonada e sincera em seu desejo, e não queria afastá-la por temor a não cumprir o trato.

     Maldição, só queria fazer amor com ela.

     — Não corra tanto, Mercedes — resmungou, com os dentes apertados.

     Ela se esfregou contra ele.

     — Mas é que te desejo… Já. Quero te sentir dentro de mim outra vez. — Replicou ela em um rouco suspiro, mal roçando seus ombros com os dedos.

     Ele conteve um grunhido quando as mãos de Sadie desceram pelo interior de seus braços e por suas costelas e se detiveram para lhe acariciar os quadris.

     De verdade, esperava que sua desobediente esposa fosse escutá-lo? E, além disso, por que criticava sua sorte? Agradava-lhe sua agressividade, sua sincera e inexperiente paixão. Em particular, gostava que parecesse ter esquecido seu acanhamento com ele.

     Mercedes se movia inquieta sobre ele e o beijava, deixando-se levar pelo erotismo e também pela surpresa. Então Morgan se limitou a render-se. Abraçou-a e rodou até ficar em cima. Com um empurrãozinho, abriu-lhe as coxas e se colocou no meio, e depois lhe apanhou o cabelo para deter seus inquietos lábios, ao menos, o suficiente para beijá-los.

     Depois balançou os quadris para descrever sensuais círculos, usando sua ereção para aumentar o desejo de Sadie. Ela gemeu em sua boca, fincou-lhe as unhas nas costas e rodeou forte sua cintura com as pernas.

     Ele elevou a cabeça e cravou os olhos nela, apenas sem ver sua expressão à pálida luz da lua.

     — Confia em mim até o ponto de que possa te tocar em qualquer lugar menos nas costas? — Perguntou.

     — Sim — Sussurrou ela enquanto se esticava contra ele.

     Sem deixar de abraçá-la, ele deu a volta até ficar ao seu lado. Então começou pelo umbigo, que acariciou e tocou brandamente com a ponta dos dedos para apreciar sua resistência ou sua aprovação. Ela se elevou para sentir mais seu toque e emitiu um gemido de prazer que o fez estremecer-se. Nesse momento ele abriu a mão de tudo até lhe cobrir o ventre de quadril a quadril, e depois baixou mais, fazendo pressão com a palma sobre seu lugar mais sensível.

     Ela fincou os dedos no peito, subiu a cabeça para encontrar seus lábios e o beijou.

     Morgan baixou mais a mão, tomando-a, e deslizou um dedo dentro dela. Então tragou seu grito afogado, apanhou seu inquieto joelho entre os sues e usou o polegar para fazê-la sentir ondas de prazer, que a invadiam em espiral. E nesse momento a sentiu esticar-se contra sua mão e elevar os quadris procurando mais.

     Então se afastou e rebuscou sob a borda do saco de dormir. Recordava a preocupação de Mercedes diante a possibilidade de ficar grávida, e ele tampouco tinha pressa por formar uma família. Ao menos, até que os dois estivessem de acordo.

     Encontrou o pacote prateado que tinha escondido ali enquanto ela se lavava, e se apressou a proteger-se. Depois se elevou por cima dela, abriu-lhe as coxas com os joelhos e, devagar, entrou deslizando-se em seu agradável calor.

     Acabava de encontrar seu lugar prometido no céu: era tão cálida, tão formosa, ambos se acoplavam tão bem o um no outro… Cobriu-lhe a face de beijos enquanto recuava devagar, para depois avançar e recuar de novo até estabelecer um ritmo que a fez esticar-se outra vez.

     Naquele instante, Morgan perdeu o que ficava de controle. Com uma investida, entrou por completo nela, com mais ímpeto, e se retirou só o suficiente para fazê-lo de novo. Desta vez levou-a consigo até aquele lugar cegador, cheio de branca energia, que tinha encontrado na noite anterior. Mercedes estremeceu, gritou de prazer e fez que ele se lançasse também ao torvelinho, dando um gratificante grito cheio de arrogância.

     Morgan deixou cair a cabeça em seu ombro, mas, em vez de suave pele, tocou a flanela de sua camisa. Ficou ali imóvel, ofegando, enquanto saboreava a sensação dos tremores que ainda a faziam estremecer-se.

     Embora não gostaria de mover-se, sabia que ela precisava respirar, de modo que por fim rodou até ficar de barriga para cima e agradeceu sentir o frio ar da noite sobre a pele úmida. Imediatamente ela se aconchegou contra ele, rodeou-lhe a cintura com um braço e pôs o outro perto de sua cabeça para poder passar os dedos pelo cabelo.

     E ele ficou ali, quieto… E esperou.

     Ela demorou uns minutos em falar.

     — Foi maravilhoso — sussurrou ela, enquanto o acariciava.

     Ele respondeu com um grunhido e passou a mão acima e abaixo pelo braço revestido de flanela. Sim, tinha sido maravilhoso…, embora não exatamente tão satisfatório como esperava por culpa da camisa que ela usava. Esse era o motivo de seu repentino mau humor. Não queria que nada se interpusesse entre eles: nenhum tecido nem, sobretudo, suas cicatrizes.

     Mercedes necessitava tempo… E ele devia ter paciência. Só assim poderia curar seu acanhamento.

     — E, como estamos casados, faremos isto sempre que quisermos? — Perguntou ela.

     Morgan se perguntou aonde a levavam seus pensamentos.

     — Sim — Respondeu.

     — E com tanta freqüência como quisermos?

     Ele inclinou a cabeça o suficiente para ver sua expressão e esteve a ponto de tornar-se a rir; de repente, seu aborrecimento desapareceu. Mercedes parecia se alegrar muito com a idéia de fazer amor com tanta freqüência quanto desejasse. Então lhe deu um toque na ponta do nariz e a acomodou bem perto dele para que sua cabeça descansasse sobre seu ombro. Depois puxou o saco de dormir por cima de suas costas e a amassou melhor nele.

     — Não com tanta freqüência, esposa minha. Depois de fazer amor, a mulher fica fraca e necessita pelo menos até a manhã seguinte para recuperar as forças.

     Sadie ficou calada de novo, e ele não soube se devia sentir-se encantado ou preocupado. De repente, ela bocejou e se aproximou como um gato satisfeito e bem alimentado. Pelo visto, aceitava como verdadeira sua ridícula afirmação.

     Ao cabo de um instante, no silêncio da noite se ouviu o sussurro de uma voz sonolenta.

     — Morgan…

     — Sim?

     — Quando encontrar o ouro, darei parte dele a Harry e a Dwayne.

 

     Essa coisa do matrimônio tinha suas vantagens, e uma delas era ter um corpo muito grande e quente junto ao que aconchegar-se.

     — Bom dia, esposa.

     Sim, era de dia… A manhã depois, para ser exato. O que diz uma mulher a um homem com o qual teve relações íntimas há algumas horas?

     Sadie decidiu seguir seu exemplo.

     — Bom dia, marido.

     O sorriso de Morgan se fez ainda mais amplo.

     — Recuperou as forças? — Perguntou. Tinha a voz rouca, e em seus escuros olhos se apreciava um propósito evidente.

     — É… É de dia.

     Ele assentiu.

     — Sim, é de dia.

     — Não podemos… Não deveríamos… Não, Morgan, sigo estando bastante cansada.

   Ele cravou o olhar nela durante outro muito longo minuto e de repente afastou o edredom. Enquanto se levantava agarrou as calças, e depois, enquanto se vestia, disse:

     — O que vamos fazer? Pensava te levar ao local de um antigo acampamento madeireiro que conheço e que não está muito longe daqui. — Deu de ombros outra vez e começou a colocar a camisa. — Acreditei que talvez fosse o que está procurando e aonde nos guiava Faol… Mas se você precisa descansar mais, volta a dormir.

     Sadie ficou em pé como uma bala… Antes de recordar que estava nua da cintura para baixo. Por um momento a bochechas (as da face e os do traseiro) se avermelharam tanto que deu a impressão de que iam sair bolhas de vergonha. De um puxão, baixou as abas da camisa para tampar-se… Agora a exibicionista era ela, e ele era quem olhava com interesse.

     — Dê a volta — Disse.

     — Não.

     Por que não estranhava a resposta de Morgan?

     — Não tem um alce que esquartejar ou algo parecido?

     — A tarefa seria mais fácil com um beijo de bom dia.

     — Não.

     Diferente dela, ele sim pareceu surpreender sinceramente sua resposta.

     — Por que não? — Perguntou, cruzando os braços e lhe lançando um olhar feroz.

     — Porque se me beijar, uma coisa levará a outra, e estarei tombada de barriga para cima em menos tempo que se demora para espirrar.

     Ele esboçou um sorriso, descruzou os braços e colocou as mãos atrás das costas.

     — Prometo não pôr um dedo em cima, lass, só os lábios.

     — Não vou beijá-lo. Ao menos até que nos dois estejamos vestidos de tudo, e eu tenha tomado o café da manhã algo para recuperar forças. — Lançou-lhe um sedutor sorriso para demonstrar que não a tinha enganado com seu comentário da noite anterior sobre a debilidade das mulheres. — Embora aposte meu barco que você precisa comer mais que eu.

     Sem se importar, pelo visto, que tentasse zombar dele, Morgan girou sobre seus calcanhares e se dirigiu rio abaixo até desaparecer entre a mata.

     Sadie deu um suspiro de alívio, afastou o cabelo da face e alisou o peitilho da camisa sorrindo. Pois bem, acabava de sobreviver a sua segunda noite com Morgan MacKeage.

     E tinha a sensação de que as coisas tinham ido bastante bem. Caramba, inclusive se sentia orgulhosa de si mesma. Tinha arrumado para fazer amor com um homem sem pôr a nenhum dos dois em uma situação violenta. E não só não precisara que golpeá-lo outra vez, mas também acabava de ganhar um importante duelo de vontades. Essa manhã se sentia muito esposa e começava a pensar que, depois de tudo, talvez aquele matrimônio pudesse funcionar. Pelo visto, podia suportar o viver com Morgan.

     Talvez até chegasse a acostumar-se à idéia de que era raro. E o daí, se o homem levava uma espada por toda parte? Estava claro que sabia usá-la: na tarde anterior não teve problemas para matar o alce. A Sadie não devia importar por que fosse sua arma predileta, mas sim que não fosse empregá-la com ela.

     De repente, uma brisa se levantou e elevou a aba da camisa. Um estremecimento passou por seu traseiro nu e subiu por toda sua coluna vertebral. Então se deu conta de que seguia de pé sobre o saco de dormir e que, salvo pela camisa, continuava estando nua.

     Fazia frio; inclusive havia cristais no chão. Apressou-se a procurar sua roupa e depois se deu mais pressa ainda em ficar a sós depois de estar vestida e com as botas atadas se endireitou para jogar uma olhada ao diminuto prado onde se encontrava.

     Perdido o combate de manter-se nos ramos, das árvores choviam folhas que flutuavam pelo ar como mariposas ébrias. A geada e depois o repentino: calor do sol nascente tinha partido os caules e as tinham deixado cair até seu inevitável final: converter-se em alimento para que crescesse a nova flora do ano seguinte. Era o ciclo da vida, que não se detinha.

     — Vejo que o café da manhã parece tão promissor quanto o jantar de ontem à noite.

     Sadie deu a volta em seu assento e lançou um sorriso a Morgan. Depois agarrou uma das barrinhas de cereal, já completamente congeladas, e a lançou.

     — Quando viajo só faço uma refeição quente ao dia. — Explicou. Alargou o sorriso ao ver que ele olhava o café da manhã com o cenho franzido. — Me limito a comer frutos secos, barrinhas de cereais ou carne-seca até o jantar.

     Nesse momento a brisa levou o eco de umas vozes, e os dois olharam rio acima para descobrir sua procedência. Sadie ficou de pé como um raio assim que reconheceu a voz de sua mãe. Aproximava-se uma canoa, e Charlotte Quill ia sentada na proa, remando, sorrindo e falando com Callum, sentado na popa.

     De repente, o humor de Sadie caiu em picado. Levou as mãos à face para tampar um ofego e só pôde olhar com expressão de mudo sobressalto através dos dedos.

     Maldição… Chegava sua mãe.

     Deu a volta em redondo e correu para Morgan. Depois o agarrou pela camisa e ficou nas pontas dos pés para que seus olhos ficassem justo à mesma altura que os dele.

     — Nenhuma palavra sobre estarmos casados. — Sussurrou em tom de urgência, agarrando o peitilho da camisa dele. — Entendido? Nada de beijos diante de minha mãe, nada de me chamar “esposa”… E esconde essa ditosa espada!

     Pronunciou as últimas palavras em um grito afogado, ao mesmo tempo em que se afastava e corria para o canto onde tinham dormido.

     A toda pressa, enrolou o saco de dormir, foi correndo à barraca de campanha intacta e o atirou dentro. Depois voltou para a saliência rochosa, dispersou a chutes a erva seca, emaranhada e condensada, que tinha posto como cheio e, com frenesi, examinou o acampamento procurando qualquer outro indício revelador.

     Maldição, mas que diabos fazia sua mãe ali?

    

     Morgan ainda não tinha movido nem um músculo, e muito menos obedecera sua ordem de esconder a espada. Em seguida, Sadie o fez por ele. Correu outra vez à saliência e de um chute pôs parte da erva seca sobre a arma. Depois alisou o peitilho da camisa, inspirou para tranqüilizar-se, desenhou um amplo sorriso em sua face e, sossegadamente, encaminhou-se para o rio para dar as boas-vindas a sua mãe.

     Morgan não teve coragem para dizer a sua esposa que nem todos os enganos do mundo ocultariam a culpa que tinha produzido a repentina chegada de sua mãe. E que apesar de seus esforços por indicar o contrário, Mercedes tinha a face como um tomate e estava envergonhada até a ponta do pé. Pelo visto, não se dava conta de que a ninguém em seu são julgamento, e em particular a sua mãe, pareceria inocente encontrar a sua filha compartilhando acampamento com um homem.

     Contudo, Morgan imitou seu passo tranqüilo e se dirigiu devagar para Callum e Charlotte. Depois de agarrar a canoa, puxou-a de lado para a borda, e depois esticou a mão e tirou Charlotte nos braços para que não molhasse os pés.

     A mulher deu um grito muito parecido aos que sua filha tinha tendência a dar, e depois elevou a vista piscando e o olhou com uns olhos que eram um reflexo exato dos da Mercedes.

     Morgan chegou à borda e, com cuidado, pousou-a no chão, enquanto olhava a sua esposa sorrindo. Rapidamente recuperada de seu atordoamento, Charlotte correu para sua filha e lhe deu um abraço maternal.

     — Como estava preocupada com você! — Sussurrou o bastante forte como para que todos o ouvissem. Então se afastou um pouco e tomou a sua filha pelos ombros. — Roubaram sua cabana!

     Nesse momento, Mercedes inverteu as posições e tomou a sua mãe pelos braços.

     — Alguém entrou em minha cabana? Quando?

     Quem respondeu foi Callum, que já se endireitava depois de puxar a canoa até a borda.

     — Ontem pela manhã — Disse.

     Olhou Morgan e depois a Mercedes.

     — Fomos a sua cabana para te fazer uma visita, lass, e então descobrimos os destroços. E sua mãe — assinalou a Charlotte com um gesto da mão — Não teve descanso até saber que estava a salvo.

     Com expressão de assombro, Mercedes voltou a olhar a sua mãe.

     — Quem faria algo assim? Não tenho nada que valha a pena roubar.

     Antes que Charlotte pudesse responder, Callum disse:

     — Parecia mais destruída que roubada. Dava a impressão de que o homem que o fez procurava algo.

     — Os irmãos Doam estão meia jornada atrás de nós… — Interveio Morgan, e depois, olhando a seu primo, acrescentou. — Você disse um homem.

     Callum deu de ombros.

     — Talvez houvesse mais, mas só encontrei os rastros de uma pessoa. Pertenciam a um homem pequeno, mas forte, possivelmente de cem quilos de peso.

     Sadie deu uma olhada assassino a Morgan.

     — Não eram Harry e Dwayne — disse ela. — Foi um estranho.

     — O que te faz estar tão segura? — Perguntou ele. — Tem idéia de quem pode ter feito algo assim? Além dos Doam, há alguém mais procurando o ouro?

     Sadie meneou a cabeça.

     — Que eu saiba, não. Durante anos as únicas pessoas que sequer acreditavam na existência da mina de Jedediah foram meu pai, os Doam e Eric Hellman.

     Morgan se aproximou dela.

     — Bom, agora levará a sério minhas advertências?

     Antes que ela pudesse lhe responder, sua mãe deu com um dedo no braço tentando chamar sua atenção outra vez.

     — Aí há um alce morto — Disse, ao tempo que assinalava borda abaixo.

     Rapidamente, Sadie olhou a Morgan e, depois de assentir, foi com sua mãe ver o alce. Os dois primos foram atrás delas, e, enquanto caminhavam, Morgan examinou a zona. Suspeitava que o perigo que tinha espionado na visão do druida estava aproximando-se.

     Callum lhe deu um empurrãozinho no ombro e indicou com a cabeça que desejava falar a sós com ele, e como Morgan viu que as duas mulheres estavam incutidas em sua conversa sobre o alce morto se afastou um pouco e seu primo o seguiu.

     Sem deixar de estar atento às mulheres, Callum disse em voz baixa:

     — Me diga como posso te ajudar. Trouxe arma de fogo, se por acaso as necessitar.

     — O que te faz pensar que necessito uma arma de fogo?

     Callum deixou ver um amplo sorriso.

     — Passaram mais de oito séculos, primo, mas não é tempo suficiente para que me tenha esquecido esse olhar.

     — Que olhar?

     — Está vigilante, Morgan. Sente-se perseguido, e tem o olhar de um homem que está a ponto de trocar as voltas e converter-se em caçador. — Esfregou as mãos. De repente parecia ter ficado do mais contente. — E, além disso, desejo te ajudar. Não, exijo te ajudar. Agora mesmo não me viria mal uma boa briga.

     Morgan lançou uma olhada às mulheres para assegurar-se de que não o tinham ouvido.

     — Não me perseguem — espetou zangado.

     As duas tinham retornado à canoa de Callum e Charlotte, e estavam rebuscando por entre os bens. Morgan voltou a olhar a seu primo.

     — É a Mercedes a quem perseguem, tal como demonstra que tenham saqueado sua cabana. E acredito que o motivo de que esteja em perigo seja o ouro; ou isso, ou alguém não quer que se abra esse parque natural.

     — Alguém mais, além de você? — Perguntou Callum com ironia.

     — Isso é diferente; eu quero deter esse projeto sem pôr em perigo Mercedes.

     — Por que está tão em contra o parque? Só é uma pequena parte de nossa terra.

     — De minha terra — Apressou-se a replicar Morgan.

     Soltou um cansado suspiro, levou uma mão à nuca e tentou relaxar a tensão que pouco a pouco ia acumulando-se neste local. Tinha que fazer com que Callum compreendesse… E decidiu que já era hora de lhe revelar seu segredo; só então seu primo entenderia a magnitude do problema.

     — Esse cânion é especial — Explicou. — A catarata nasce no lago onde jogamos o bastão de Daar, e, em certo modo, tudo mudou a seu redor. As árvores crescem mais altas, as trutas são do tamanho de salmões, e inclusive o granito do mesmo cânion é diferente.

     Callum recuou um passo.

     — Pela magia do druida? — Sussurrou. Sua face tinha empalidecido.

     Morgan assentiu.

     — Sim, a magia procedente de seu antigo bastão. Mas Daar não tem nenhum desejo de que Grei saiba. Teme o que faria meu irmão.

     — O mais provável é que dinamitasse essa lacuna.

     Com um gesto afirmativo, Callum sublinhou sua crença de que o laird estava resolvido a que o bastão de Daar não voltasse a aparecer jamais.

     — Então é por isso pediu a Grei essa terra? Para proteger o ancião sacerdote?

     — Algo parecido — Murmurou Morgan.

     Voltou a olhar às mulheres. Estavam descarregando a canoa, e pelo aspecto da bagagem, Charlotte planejava ficar um mês. Então se voltou para Callum.

     — As pessoas sairiam do parque passeando, descobriria o cânion, e isso atrairia ainda a mais gente.

     Aturdido, Callum meneou a cabeça.

     — Se Charlotte descobrisse que algo assim estava relacionado conosco, não aceitaria casar-se comigo.

     — Não tem intenção de lhe falar sobre nosso passado? — Perguntou Morgan.    

Seu primo pareceu absolutamente horrorizado. Voltou a menear a cabeça e com muito esforço disse:

     — Diabos, não! Já viu o que aconteceu quando MacBain o contou a Mary Sutter: a mulher saiu correndo e ao final acabou morta.

     — Pois Grace sabe. — Recordou Morgan. — E, entretanto se casou com Grei de todas formas.

     Callum ficou na defensiva.

     — Grace é cientista. — Disse. — E os cientistas estão acostumados a descobrir maravilhas. Compreendem que há algo que governa as forças da natureza e que não pode explicar-se. Diga-me, você pretende falar com Sadie de seu passado?

     Sua pergunta, feita em voz baixa, devolveu a questão a Morgan.

     — Eu não gosto dos enganos — Disse.

     Suspirou e voltou a massagear a nuca. Depois, em tom mais tranqüilo, acrescentou:

     — Não sei. — Sorriu abertamente. — Pensava em deixá-la grávida primeiro.

     Sua confissão fez que Callum voltasse a ficar horrorizado.

     — E não acredita que isso é enganá-la?

     — Talvez fosse um bom plano. Já a reclamei, e uma criança nos uniria com mais força… — Alargou seu já amplo sorriso. — Está dizendo que você não pensou que possivelmente um bebê apressaria seu noivado?

     Então deu a impressão de que Callum incluso ficava tonto.

     — Nunca faria algo assim com Charlotte! — Sussurrou. — Teve que casar-se aos dezesseis anos quando ficou grávida de Sadie. Não a obrigarei a contrair outro matrimônio desse modo.

     Morgan não teve coragem para dizer que era muito tarde, que já estava grávida de seu filho… Além disso, correspondia a Charlotte fazê-lo. De modo que decidiu mudar de tema.

     — Viria bem sua ajuda — Disse.

     Dizer a suas mulheres que tinham oito séculos de idade era uma decisão pessoal que ao final cada um deles teria que tomar… Mas não aquele mesmo dia.

     — Necessito que alguém se encarregue desse alce — Prosseguiu Morgan. — E, além disso, pelo visto tenho que notificar às autoridades que o matei. Se me ajudar com este assunto, agradecerei por isso. Não tenho vontade de deixar a Mercedes indefesa justo agora, e menos com a notícia que nos trouxe.

     — Matou o alce com a espada? — Perguntou Callum. Sabia muito bem que Morgan raramente levava um rifle. — Me Diga, o que Sadie acha de sua arma?

     Seu primo deu de ombros.

     — Parece que vai acostumando-se a ela.

     — Juro que daria todos os dentes por voltar a ter minha espada. Faz seis anos que me sinto nu. — De repente Callum sorriu. — Embora não acredite, há muito que dizer a favor de um bom rifle. Não é necessário estar perto de um inimigo para acabar com ele.

     Morgan voltou a examinar a paisagem.

     — E vice-versa. — Olhou de novo a Callum. — Tampouco seu inimigo precisa estar perto.

     Voltou a esfregara nuca. De repente a tensão se duplicou.

     — Diabos, alguém poderia estar nos vigiando agora mesmo, apontando com uma arma a Mercedes…

     — De verdade, acredita que existe esse perigo?

     — O druida me advertiu que uma presença ronda este vale; algo escuro. — Morgan tomou cuidado de não contar a Callum sua visão. — Talvez Mercedes esteja em perigo, por isso quero ficar com ela agora. Quero que encontre de uma vez esse maldito ouro, e depois quero falar com ela sobre o parque.

     — Sem lhe contar sobre seu cânion? — Apontou Callum.

     Morgan assentiu.

     — Vai ter que contentar-se só sendo proprietária da terra, mas não abri-la às pessoas.

     Callum lhe deu uma palmada no ombro tão forte que o fez cambalear-se.

     — Por ter tantos anos, primo, às vezes é muito imaturo. Viver com uma mulher que tirou seu sono é mau presságio para um matrimônio tranqüilo. Diabos, é muito perigoso!

     — Sim, bom…

     Morgan girou sobre seus calcanhares e se dirigiu outra vez por volta das duas mulheres. Confiava que Charlotte fosse melhor cozinheira que sua filha; devia haver provisões para o café da manhã entre todas as coisas que havia trazido.

     Enquanto se afastava, voltou-se a olhar por cima do ombro e em voz baixa disse:

     — Mas é melhor que comece a pôr em ação parte dessa sabedoria tão antiga. Você também tem problemas femininos dos que se ocupar… E me parece que talvez sejam tão cansativos quanto os meus.

 

     Aquela mesma manhã, Sadie decidiu que ter um marido tinha outra vantagem: ele carregava a maior parte do equipamento.

     Tirou dos ombros a mochila, mais leve que de costume, e com gesto distraído a deixou cair ao chão enquanto observava com atenção o velho acampamento madeireiro. Parecia um animal adormecido, esquecido pelo tempo. Aí estava, o acampamento número três.

     O último lugar onde haviam visto vivo Jedediah Plum.

     A Sadie não custou trabalho identificar os restos do que devia ser a cozinha de campanha. Do telhado só ficavam as vigas. Tinha a porta quebrada e várias janelas, e no interior cresciam uns grandes álamos que soltavam suas últimas folhas como amarelos flocos de neve sem derreter. A menos de seis metros de distância, justo à direita, caídos e confundindo-se quase com o chão do bosque, havia dois barracões situados em sentido perpendicular à cozinha, compridos, estreitos e baixos. Apoiados na viga central de um deles, apareciam torcidos e oxidados restos do tubo de uma lareira. Várias das enormes madeiras que formavam as paredes se soltaram das cordas que as seguravam; os estragos do tempo e a natureza os tinham convertido em pó de turfa que cobria o chão em torno das cabanas. E naquela acre turfa cresciam jovens píceas que procuravam a luz do sol que se filtrava por entre as poucas árvores centenárias que tinham escapado da serra dos lenhadores.

     O edifício onde no passado se instalou a serraria estava à esquerda, mas longe já da zona de descanso e de comer. Provavelmente para que um grupo de homens dormisse com relativa tranqüilidade enquanto outro trabalhava.

     Graças a seus anos de estudar jornais e livros de história, Sadie sabia que, pelo geral, a serraria funcionava dia e noite, em turnos de dez horas. A manutenção se realizava durante os descansos de duas horas, que era quando se trocavam e se afiavam as serras, engordurava-se a maquinaria e limpavam as cascas e os refugos do turno anterior para facilitar o trabalho da seguinte ronda de serrado.

     Às vezes as árvores se serravam no ato, e depois as madeiras eram levadas ao povoado arrastando-os pela terra gelada, mas outras vezes se deixavam as madeiras inteiras e na primavera se levavam rio abaixo. Pelo visto, aquele acampamento era uma serraria portátil, o que indicava que devia ser algo assim como um povoadinho auto-suficiente.

     Devagar, Sadie deu a volta para olhar com atenção o lugar; incapaz de acreditar o que via, meneou a cabeça em um gesto de assombro.

     E, por fim, olhou a Morgan.

     — Com certeza a serraria de meu pai se encarregou de algumas destas madeiras. — Disse — Só que então quem cuidava dela era o avô Quill.

     Morgan negou com a cabeça e, sorrindo, corrigiu-a.

     — É mais provável que fosse seu bisavô. Este lugar tem pelo menos oitenta anos.

     Sadie voltou a olhar a seu redor.

     — Não posso acreditar que isto tenha estado aqui todos estes anos, como um povoado fantasma, sem que ninguém documentasse sua localização.

     Ele deu de ombros.

     — Para que iam ter esse trabalho? Instalavam-se, faziam sua colheita de árvores e depois partiam. Além da madeira, aqui não havia nada que atraísse às pessoas e as fizesse instalar-se. E quando a madeira se acabou, também se acabaram os acampamentos. — Deu-lhe a volta para que o olhasse de frente; um arrogante sorriso iluminava seus olhos. — Já pode me dar obrigado como Deus manda, esposa, por te ajudar a encontrar este acampamento.

     Sadie era uma pessoa que sabia reconhecer as coisas, de modo que ficou nas pontas dos pés e o beijou como desejara fazer desde pela manhã. A língua dele entrou rápida em sua boca e seu corpo se endureceu contra o dela. Então Sadie voltou a sentir aquele trêmulo formigamento no peito enquanto se derretia, grudada a ele.

     Sim, certamente contar com um marido tinha suas vantagens.

     Tremia como uma folha de álamo quando por fim se afastou, mas sem romper o abraço. O coração ameaçava sair voando do peito, e se alegrou muito ao ver que Morgan estava igualmente comovido.

     Então, enquanto ficava a brincar com um botão de sua camisa, disse:

     — Obrigado por me trazer. — Elevou a vista. — E obrigado por se desfazer de minha mãe de forma tão diplomática. Está grávida, e não tem por que ver-se em meio a isto. Foi uma idéia estupenda de dizer a ela e Callum que se encarregassem do alce por você.

     — Ah, de modo que acredita que está em perigo.

     — Acredito que, além de nós e dos Doam, é possível que alguém mais esteja procurando o ouro.

     — De modo que, se tivesse que te pedir que ficasse aqui com Faol e explorasse sozinho este acampamento… Obedeceria-me?

     Nesse momento,o Sadie pensou que já ia sendo hora de ajustar o vocabulário de Morgan.

     — “Obedecer” é uma dessas palavras que às mulheres não faz muita graça, Morgan… — e apressou-se a propor uma alternativa: — Mas talvez esteja disposta a aceitar sua sugestão.

     Ele voltou a aproximá-la contra seu corpo, apoiou o queixo em sua cabeça e a balançou brandamente. Depois riu, e sua risada produziu um formigamento no peito de Sadie, que fechou os olhos e se apoiou na força que seu flamejante marido transmitia. Sim, a verdade era que gostava de estar casada.

     Ele beijou sua cabeça e lhe deu um forte empurrão.

     — Ai, Mercedes, começo a ter esperanças para nós — sussurrou Morgan. — Passe o resto de sua vida me convertendo em um marido moderno, se esse for seu desejo.

     Levantou-lhe o queixo.

     — Enquanto isso, eu trabalharei igualmente duro para te converter em uma esposa como Deus manda.

     Seus olhos se obscureceram, e isso fez que o coração dela acelerasse de novo, desta vez de desejo. Agora que sabia o que era fazer o amor, queria voltar a experimentá-lo. Aquela mesma noite, assim que o sol se fosse, ia atacar esse homem como uma possessa.

     — Desfrutou ontem à noite, esposa?

     Sadie teve que afastar a vista de seu intenso olhar, de modo que desviou a atenção ao nó de madeira de cerejeira que pendurava de seu pescoço e começou a toá-lo.

     — Isso depende. — Sussurrou com a boca grudada a seu peito. — E você?

     A única resposta que obteve foi o silêncio.

     Ela sentiu que o calor lhe subia à face. Maldição, melhor que ele acertasse com as palavras. Puxou o cordão que levava no pescoço e repetiu:

     — E você?

     — Quase — Respondeu ele em voz baixa.

     Sadie subiu a cabeça de repente.

     — Quase? O que significa isso?

     Ele deu um toque na ponta do nariz, deixou cair as mãos aos flancos e se afastou. Antes de voltar-se e afastar-se dando passos longos pelo bosque, disse:

     — Dentro de seis dias te direi o que significa.

     Sadie ficou olhando fixamente as costas até que ele desapareceu depois da esquina da cozinha de campanha. Quase? Como pode alguém quase desfrutar de algo? Ou desfruta, ou não desfruta…

     Estava quase a ponto de gritar.

    

     Sadie se assombrava de quão rápido se acostumou a dormir com Morgan. E enquanto levantava o novo acampamento, voltou a pensar na decisão de fingir ser sua esposa durante aquela semana. Conseguiria ele lhe manipular o coração de forma que fosse impossível partir ao final de seis dias?

     Pela primeira vez desde o incêndio, tinha a esperança de um futuro que incluía um marido, filhos e uma acolhedora casa própria. Embora tivesse que partir no final da semana, ao menos Morgan havia tornado a despertar nela esse desejo; fizera com que ela se desse conta de que o fogo talvez tivesse arrebatado a meia família, mas não tinha arrebatado o futuro.

     Ainda sabia esperar.

     Ainda sabia sonhar.

     Ainda sabia amar…

   Mas sabia ser amada?

     Terminou de estender o saco de dormir, tombou-se em cima e cravou o olhar nas copas das árvores. Apesar de seu estranho vocabulário, Morgan não tinha pronunciado nenhuma só vez a palavra “amor”. Sadie descartou o fato de que ela tampouco o tinha feito. Mas ele era o único que falava de matrimônio, assim devia ser o primeiro em dizê-la.

     O caso é que agia de forma possessiva, como um marido afetuoso.

     Preocupava-se com sua segurança.

     E quase desfrutava mantendo relações sexuais com ela.

     Flexionou os dedos da mão direita e sentiu o toque do couro contra o couro. Se ela não tivesse aquelas cicatrizes, ele desfrutaria por completo quando faziam o amor? Como seria sentir Morgan absolutamente nua, formosa e sem defeitos?

     O que diria ele então?

     Amo-te.

     Fechou os olhos, deixou que sua respiração se convertesse em um sorriso e que aquelas duas palavrinhas ressoassem em sua mente como uma promessa… E então decidiu que não ia separar se de Morgan MacKeage ao cabo de cinco dias.

        

     Sadie despertou sobressaltada e demorou vários segundos em orientar-se. Quando as copas das árvores que havia sobre sua cabeça ficaram bem enfocadas, deu-se conta de que adormecera. Sentindo-se um pouco mal por ter jogado uma sesta em pleno dia, levantou-se e olhou a seu redor, procurando Morgan.

     Não havia nem rastro dele, e então decidiu que aquela era sua oportunidade de banhar-se: aproveitaria que ainda tinha um pouco de intimidade. Recolheu seus artigos de higiene e roupa limpa, e olhou em torno do acampamento madeireiro. Devia haver água perto, um manancial ou um regato, porque antes, ao explorar o acampamento, não tinha visto nenhum sinal de nenhum poço.

     Entrou no bosque e caminhou para o norte pela ladeira ocidental da montanha Fraser, calculando que, se afastava o suficiente, ao final encontraria um arroio.

     Em vez disso, topou-se com Morgan.

     Saiu de trás de uma saliência rochosa e usou o imponente corpo para cortar seu caminho. O coração de Sadie começou a acelerar-se ao vê-lo. Era muito bonito. Tão grande e tão forte… E tão condenadamente sexy. Além disso, visto assim, em metade dos bosques, parecia um deus selvagem.

     Então lhe sorriu.

     Ele não devolveu o sorriso.

     — Estou fedendo. — Disse ela. Seu sorriso subiu um ponto ante o incrível olhar que ele deu. — E não penso te beijar até que me lave o cabelo e me ponha uma roupa que não fique sozinha em pé.

     — Vai se resfriar.

     — Dá no mesmo para mim. Pegarei pulgas se não me banhar.

     A verdade é que ele se afastou um passo ao ouvir semelhante possibilidade. Então Sadie se aproximou, deu-lhe um toque no nariz e prosseguiu seu caminho com um insolente balanço de quadris. Morgan ajustou o passo ao dela, e, enquanto caminhavam em amigável silêncio, Sadie pensou na história daquela zona.

     O jornal do Jean Lavoie contava que Jedediah Plum tinha passado vários dias no acampamento número três e que tinha o costume de afastar-se de noite, embora sempre estava de volta em seu beliche pelas manhãs. Isso indicava que o Caçador de ouro não partia longe.

     Jean o seguiu uma vez, mas perdeu seu rastro quando os rastros de Jedediah se misturaram com o rastro que naquele dia haviam feito os cavalos ao arrastar as madeiras. Também contava que ele não foi o único que seguiu Jedediah aquela noite.

     Mas na quarta manhã o Caçador não voltou. Descobriram seu corpo aparecendo por um vertente, mais ou menos a um quilômetro e meio ao norte do acampamento.

     Nesse instante, Sadie parou Morgan de um puxão tão brusco que o fez cambalear-se para trás.

     — Já sei! — Disse ela.

     — Já sabe o que? — Perguntou ele.

     Ela afastou o cabelo da face e trocou a confusão de roupa ao braço direito.

     — Estava pensando na mina de ouro de Jedediah e em quando morreu… — Olhou a seu redor, ao bosque no que estavam. — Segundo a cópia que tenho do jornal do cozinheiro, foi perto daqui, em algum lugar justo ao norte do acampamento madeireiro.

     Morgan também olhou em seu torno com o cenho franzido.

     — Ao norte? A que distância?

     Sadie meneou a cabeça.

     — O jornal dizia que ao redor de um quilômetro e meio, não concretizava mais. Mas da investigação de meu pai, recordo que o corpo de Jedediah foi encontrado perto da base de um escarpado que tinha pelo menos trinta metros de altura. Mas nunca encontramos esse escarpado porque não sabíamos onde estava o acampamento madeireiro.

     Lançou a Morgan um radiante sorriso.

     — Até agora. Graças a você e a Faol, descobrirei exatamente onde foi encontrado o corpo de Jedediah. E aposto meu caiaque que o velho Caçador morreu perto de sua mina de ouro!

     — Um alto escarpado? — Sussurrou Morgan olhando para o norte. — Mais ou menos a um quilômetro e meio do acampamento?

     Sadie soltou a confusão de roupa e rodeou os ombros dele com os braços.

     — Esquece o banho. — Riu emocionada, ao tempo que o abraçava forte. — Vamos para o norte procurar esse escarpado!

     Devagar, Morgan se desenredou seus braços do pescoço e a afastou. Depois se agachou, recolheu sua roupa e, com suavidade, voltou a colocá-las em seus braços. Por fim lhe sorriu, mas sua face estava pálida e sua expressão tensa.

     — Temos o resto da semana para procurar esse escarpado. — Disse sem alterar a voz. — Depois de tomarmos um banho.

     Desconcertada por sua reação, Sadie ficou encarando-o fixamente. Por que aquilo não o alegrava?

     Morgan a puxou pela mão outra vez e pôs-se a andar montanha abaixo para o oeste, com o que se afastavam do lugar onde em realidade queria ir Sadie. Esta o seguiu com docilidade, desconcertada pela súbita mudança de humor de seu marido provisório.

    

         Sem soltar a mão de Mercedes, Morgan se dirigiu para o lugar onde seu arroio mágico desembocava no rio Prospect. Sentia que o suor brotava entre as omoplatas e se deslizava por suas costas. Sem querer, tinha fechado a mão direita em um punho, e seus pés pareciam pedras à medida que cada passo o aproximava mais ao arroio mágico que queria ocultar de Mercedes.

     De todas as centenas de quilômetros quadrados que tinha o vale, por que tinha que estar a maldita mina de Plum situada em seu cânion? E por que agora, depois de procurá-la tantos anos com seu pai, tinha que ser Mercedes quem a encontrasse?

     A sua memória acudiu a visão do druida, e a força de seus pensamentos o fez tremer. Então a soltou para que não notasse seu tremor, adiantou-se em silêncio e foi afastando os ramos à medida que o caminho se tornava mais difícil.

     Ao fim saíram dos bosques e chegaram a uma franja de areia que entrava no arroio mágico. Rio acima, sobre um cascalho que o tempo tinha alisado, a água se frisava com a suave corrente, mas o leito do arroio torcia em torno do banco de areia e se empoçava em uma profunda poça de água tranqüila. Perfeita para nadar, decidiu Morgan… E para fazer amor com sua esposa.

     Mercedes não desperdiçou tempo. Deixou cair o fardo de roupa na areia e rapidamente se sentou para desatar as botas.

     — Vá — Disse a Morgan sem rodeios, ao mesmo tempo em que tirava as botas e depois as meias três-quartos. Suas mãos foram ao fechamento das calças. — Busque uma poça para você mais longe, rio abaixo.

     Ele tirou a espada das costas e a deixou no chão. Depois desabotoou a camisa, tirou e a deixou cair junto à espada. Mercedes voltou a cabeça e, ao descobrir que não tinha obedecido sua ordem, olhou-o com o cenho franzido.

     Ele sorriu.

     — Eu também estou fedendo, esposa minha. — Disse enrugando o nariz. — E eu gosto desta poça.

     Enquanto pronunciava as últimas palavras desabotoou o cinturão e desceu as calças até os tornozelos.

   De repente, sua atônita esposa deu um grito e deu a volta para olhar o arroio.

     — Estamos em pleno dia, Morgan. Não pode… Não podemos…

     Ele ignorou de seu nervoso balbucio, despiu-se de tudo e deixou o resto de sua roupa bem colocada junto à camisa. Depois de vacilar um segundo, tirou do pescoço o nó de cerejeira e o colocou em cima do monte.

     Hoje não precisava levá-lo para que a água espumasse: ele e Mercedes fariam que acontecesse sem sua ajuda.

     Morgan desentorpeceu os músculos ao fresco ar outonal e pôs-se a andar para o arroio, deixando atrás a sua estupefata esposa. Mergulhou na água e nadou até o centro do charco antes de dar a volta e voltar para a superfície. Então deixou que seus pés se afundassem no fundo e ficou de pé olhando a Mercedes; a água só lhe chegava ao peito. Afastou o cabelo da face e sorriu a sua ainda boquiaberta esposa.

     — Se esconda depois das árvores para tirar a roupa — disse a ela. — E deixe posta só a camisa, se te parecer que deve guardar o decoro.

     Tentou lhe salpicar com a água.

     — Não está fria, Mercedes. Ande depressa e vêem comigo! — Fez um gesto com as sobrancelhas e moveu os dedos no ar. — Eu lavarei esse precioso cabelo, se quiser.

     Ela lançou um nervoso olhar a um lado e a outro do arroio. Depois, de repente, levantou-se de um salto e pôs-se a correr em direção ao bosque. Morgan ficou flutuando na água, sorrindo e olhando ao céu, de um azul intenso. Apesar de todo seu acanhamento, Mercedes parecia ser uma esposa disposta, alegre, ativa e entusiasta.

     E parecia estar muito a vontade ali, naqueles bosques.

     Bom, quem dera se conseguisse que se sentisse cômoda com ele.

     Pela extremidade do olho, viu como tentava entrar na água sem fazer ruído. A pequena gràineag tinha saído do bosque a uns cinqüenta passos de onde entrou e agora avançava nas pontas dos pés para ele, tentando não agitar a água.

     Morgan fechou os olhos, sorriu e esperou.

     Umas fortes mãos femininas (agradou-o sentir que as duas estavam nuas) caíram sobre seus ombros com surpreendente energia e o empurraram para o fundo da água. Então Morgan se retorceu, procurou as abas da camisa da Mercedes e puxou-a para baixo com ele.

     Com a boca, apanhou seu grito sob a água enquanto lhe rodeava o pescoço com os braços e puxava-o para unir seus corpos, enroscando as pernas em torno de sua cintura e apanhando-o forte. Ainda sob a água, Morgan gritou no instante em que suas genitálias entraram em contato com as nuas dobras, delicadas e cobertas de pêlo de Sadie.

     Assaltou sua boca enquanto lhe roubava o fôlego do corpo. As mãos de Sadie puxaram seu cabelo e fincaram nos ombros; depois moveu os quadris, excitando-o mais, inflamando-o, enquanto ele se endurecia como uma pedra.

     Necessitavam de ar.

     E não é que Morgan se importasse naquele momento… Mas lhe ocorreu que o entusiasmo da Mercedes talvez acabasse afogando a ambos.

     Plantou-se no fundo e ficou de pé, com sua apaixonadíssima esposa bem agarrada a ele. Assim que saíram à superfície, os dois jogaram para trás as cabeças e tomaram grandes baforadas de ar, mas antes que ele pudesse recuperar a respiração, a boca da pequena gràineag já tampava a sua. Morgan caiu para frente, afundou com ela até o fundo e colocou a Mercedes entre o cascalho e sua virilidade, já dura como uma pedra.

     E foi justo então quando, de repente, recordou-se do pacote prateado que seguia dentro de suas calças. Na praia. Longíssimo nesse preciso instante. De momento, ao Morgan não importou; aquela mulher era dele, e ele era dela.

     Esperneou o suficiente para chegar até a borda do charco e, uma vez ali, levantou a cabeça de Mercedes por cima da água e a apoiou na borda. Sem deixar de cobri-la, e ainda travado no abraço de suas pernas, deslizou-se para baixo, justo para tocar seu centro feminino com a ponta de sua virilidade.

     Ela abriu os olhos, afastou com uma piscada a água que caía em cascata pela face, e sorriu antecipando a paixão que lhe oferecia. Suas mãos o marcaram, fincando-se nos ombros, quando usou os calcanhares para elevar os quadris contra ele, ao tempo que se abria para recebê-lo em seu interior.

     Mas ele titubeou e se retirou.

     — Não temos proteção, esposa. — Fechou os olhos para conter o desejo de lançar-se para frente. — Tenho que ir procurar nas calças.

     — Não importa — Sussurrou ela.

     Elevou os quadris outra vez e tentou voltar a puxar sua boca para a dela.

     Morgan se manteve firme.

     — Bom, pois a mim não, gràineag. Não quero que dentro de dois meses diga que não joguei limpo. Dirá “sim” diante de um padre antes que eu te deixe grávida.

     Ao ouvi-lo, lhe deu um forte tranco e, antes que ele pudesse endireitar-se, já estava de pé e correndo para onde ele tinha deixado a roupa. Por um momento, Morgan não soube se ia procurar suas calças ou sua espada.

     Mercedes se ajoelhou e desordenou o pulcro montão de roupa quando ficou a rebuscar pelos bolsos.

     — Por que não o levou para água? — Grunhiu ela.

     Ele ficou de pé e recuou até onde o charco era mais profundo enquanto valorava a visão daquele formoso traseiro. Sadie não demorou para ter o pacote prateado na mão e então correu de volta ao arroio, com a molhada camisa de flanela pregada a cada deliciosa curva de seu corpo e suas longas pernas dando boa conta da distância que os separava.

     Morgan ouviu o disparo do rifle no preciso instante em que Mercedes se lançava a seus braços… Quando caiu sobre seu peito, era um peso morto. Então se mergulhou na água com ela, agarrando-a com desespero. Cobriu-lhe as costas com a mão e se afundou até o fundo do charco, sentindo na palma o calor de seu sangue enquanto ela, flácida e imóvel, apoiava-se nele.

     Depois subiu à superfície e, com frenesi, dirigiu-se para a franja de areia ao tempo que se voltava para proteger Mercedes do franco-atirador. Cruzou o banco de areia em menos de três passo longos e se meteu no bosque, justo quando o estalo de outro disparo cruzava o ar e dava na terra, a seus pés.

     Seguiu correndo rio abaixo, internando-se cada vez mais no bosque, em direção para onde estava o franco-atirador, com a esperança de surpreender a esse canalha. Depois, ao cabo de umas centenas de metros, parou e, com cuidado, pôs a Mercedes no chão.

     Estava coberta de sangue. Quase toda a camisa de flanela estava empapada de vermelho, tanto por frente como por trás. A bala tinha atravessado limpamente o corpo.

     Com mãos trêmulas, Morgan lhe abriu a camisa fazendo saltar todos os botões e deixou ao descoberto uma pequena ferida, justo sob o seio direito. Inconsciente, Mercedes respirava com dificuldade. Tinha a face tão pálida como uma lua invernal, e seus olhos já estavam afundados sob umas pálpebras que azulavam, antecipando a morte.

     Morgan se obrigou a manter o pulso firme enquanto lhe baixava a camisa pelos ombros e a mantinha em posição sentada. Depois lhe rodeou as costas com a flanela empapada em sangue, a passou por cima dos seios e pela ferida, e depois, com as mangas, atou-a o mais forte que se atreveu.

     Depois de levar a testa uma tremula e ensangüentada mão e limpar com gesto brusco, elevou a vista e inclinou a cabeça, atento se por acaso ouvia o franco-atirador que se aproximava de procurar sua presa.

     Inspirou fundo, tentando tranqüilizar seu acelerado coração. Estavam em um lugar perdido, e Mercedes morreria sangrando antes que conseguisse levá-la à civilização. Tinha que pegar o nó de madeira mágico de Daar e chegar ao arroio para curá-la antes que fosse muito tarde.

     Então ouviu um som do outro lado do vale: o inconfundível grito de um homem a quem tinham surpreendido. Depois, o grunhido de um lobo, seguido de um novo disparo, embora desta vez o canhão da arma apontasse em outra direção.

     Seguro de que agora o franco-atirador estava ocupado em outro lugar, Morgan pegou Mercedes com suavidade e voltou a atravessar correndo o bosque, de novo rio acima. Sem sair dos bosques, deixou para trás o banco de areia e seguiu correndo até que uma curva do arroio oculto do outro lado do vale. Então deixou a sua esposa com cuidado sobre o cascalho e correu de volta à franja de areia.

     Lançou um olhar ao outro lado do vale e foi para a areia para recolher sua roupa e sua espada. Depois se apressou a colocar o nó de cerejeira no pescoço enquanto voltava a correr em direção a Mercedes.

     Ao chegar junto a ela atirou tudo ao chão, a seu lado, tomou-a nos braços e entrou no arroio até que pôde sentar-se dentro. Assim que o nó se molhou, começou a zumbir contra seu peito. A água começou a agitar-se e a espumar em torno deles como se ganhasse vida, faiscando com milhares de borbulhas que subiam à superfície como se uma luz verde tivesse feito explosão.

     Desatou-lhe a camisa e a puxou da cintura. Mercedes gemeu e arqueou as costas de dor. Estreitando-a contra seu peito, Morgan se tornou para trás e se afundou no arroio. Teve a sensação de que o corpo ardia, enquanto uma cegadora luz verde resplandecia a seu redor. Esticou os braços em torno do corpo sem forças de sua esposa, e durante uns minutos manteve a cabeça justo por cima da superfície, apertando os dentes para suportar o calor que sentia.

     Por fim levantou e olhou a ferida; continuava sangrando. Uma espuma de borbulhas vermelhas saía dela… E Mercedes estava mais pálida, mais inerte.

     Morgan soltou um rugido; a magia não estava funcionando.

     — Maldição! Ordeno que funcione! — Gritou, ao tempo que agarrava o nó e o arrancava.

     Sustentou a sua esposa com os joelhos e atou o cordão de couro no pescoço dela; depois endireitou as pernas para afundá-la mais na água.

     De repente, as borbulhas verdes se tornaram amarelas e explodiram com pequenos estalos furiosos que encheram o ar de vapor. Levantou a Mercedes o suficiente para ver a ferida; não palpitava como havia feito o corte de sua coxa, mas a hemorragia parecia ter diminuído.

     Seguia sem ser suficiente.

     Estava morrendo.

     Nesse momento, Faol saiu ofegando dos bosques e deteve na beira da água. Morgan elevou o olhar e o viu pular, frenético, de uma pata à outra, como se estivesse nervoso. O lobo choramingou e latiu, e depois trotou vários passos rio acima.

     Morgan voltou a centrar-se em sua esposa moribunda, mas Faol voltou a latir, desta vez mais forte. Meteu-se na água e depois recuou, trotando rio acima outra vez, enquanto seu latido se transformava em um uivo que ressoou como um lamento fúnebre.

     Rio acima.

     A catarata.

     Mais perto da magia do druida.

     Morgan se levantou e apoiou com suavidade Mercedes contra seu peito. Então saiu da água e seguiu o lobo, que agora trotava rapidamente subindo pela borda do arroio.

     O desesperado trajeto até a cascata pareceu durar uma eternidade, mas uma vez ali, Morgan se limitou a continuar caminhando para inundar-se até os ombros na água, cheia de agitada espuma.

     Desta vez, a luz que explodiu em torno deles não era verde nem amarela, mas sim de um branco tão puro e brilhante que o obrigou a fechar os olhos para não ficar cego. O calor brotava de Mercedes em ondas tão intensas que Morgan acreditou que abrasariam os braços e as pernas.

     A bruma que se elevava a seu redor esquentava o ar com um calor do verão, e a testa e o couro cabeludo cobriram de suor, mas ele se manteve firme, recitando orações que quase tinha esquecido, e que tinha aprendido sendo um menino no colo de sua mãe.

     E, ao rezar, desejou que a magia do druida salvasse a vida de Mercedes, que curasse suas feridas e a devolvesse sã e feita uma fúria. Ficou ali, de pé, até que os músculos tremeram de cansaço; só desejava que sua esposa vivesse.

        

     — Tive um sonho maravilhoso.

     Morgan abriu os olhos de repente e cravou o olhar na mulher que tinha nos braços. Sorria com expressão sonolenta e o olhava com um rubor rosa na face, que emoldurava uns olhos azuis de pálpebras carregadas.

     — E o que era isso com que sonhou? — Sussurrou. A voz lhe tremia tanto como as pernas.

     — Visitei meu pai e Caroline. Lanchamos no alto de uma montanha que dava a um vale precioso.

     O suor voltou a lhe cobrir a testa ao dar-se conta de que, na realidade, Mercedes tinha estado morta durante um momento. Estivera com seu pai e com sua irmã, e poderia ter acabado ficando com eles.

     Ela atraiu sua atenção de novo.

     — Caroline não me culpa. — Sussurrou ela. — Disse que o incêndio não foi minha culpa.

     — Me alegro muito de que tenha visto sua família. — Sussurrou ele a sua vez.

     Sacudiu-a um pouco ao ver que fechava os olhos.

     — Não volte a dormir, Mercedes — Ordenou em voz baixa.

     — Estou muito cansada. Parece que tenho os músculos de gelatina. — Disse ela entre dentes.

     Depois voltou a face contra seu peito, sorriu de novo e se aconchegou contra ele.

     Sem deixar de abraçá-la forte, Morgan foi à borda e caiu de joelhos na areia. Sentia-se incapaz de deixá-la no chão. Ficou vários minutos ajoelhado ali, enquanto silenciosas lágrimas rodavam por sua face; uma e outra vez deu graças a Deus por manter a sua esposa com vida.

     De repente apareceu Faol. Em silencio se aproximou deles, bateu na cabeça de Mercedes com suavidade e depois lambeu sua face. Morgan permitiu que o fizesse, para que visse por si mesmo que Mercedes estava bem.

     Entretanto, não a deixou no chão.

     Nesse momento, Faol começou de novo a choramingar e a mover-se intranqüilo, ficou a dar voltas em círculo e trotou até o lugar onde o charco desaguava. Latiu forte e depois se sentou, choramingando, enquanto golpeava com a cauda a bordo do arroio.

     — Não me importo. — Disse Morgan em voz baixa. — Mais tarde procurarei nosso franco-atirador e me encarregarei dele. Agora tenho que atender Mercedes.

     Faol voltou a choramingar, ficou de pé e olhou com atitude nervosa corrente abaixo.

     — Vá você então. — Disse Morgan ao lobo. — Monte guarda.

     Não teve que dizer duas vezes. Faol deu a volta e saiu da gruta como uma bala, tão rápido que sua cauda se perdeu de vista em um momento.

     Morgan baixou o olhar para sua mulher.

     Continuava dormindo. Seus olhos já não estavam afundados no crânio, e suas bochechas tinham uma quente e saudável cor rosada. Deu uma olhada ao redor procurando um lugar suave onde deixá-la. De joelhos, avançou muito devagar, só um pouco, e colocou-a brandamente sobre um macio tapete de musgo verde.

     Depois se endireitou e afastou seu cabelo da face, sentindo o calor da vida em sua pele. Com um dedo, desenhou a forma da maçã do rosto e depois, pouco a pouco, desceu por seu queixo até chegar à garganta.

     Então se deteve e olhou o cordão de couro que se pendurava, frouxo, no pescoço.

     O nó de madeira de cerejeira tinha desaparecido.

    Morgan se voltou para olhar o charco. No extremo contrário, a catarata caía do escarpado, levantando no ar uma nuvem de bruma que coroava toda a gruta. A água estremecia levemente com um flutuante pó de estrelas, que brilhava e cintilava sob uma luz sobrenatural que dispersava seu arco íris através da neblina.

     A magia se gastou; o nó de madeira se consumou.

     E com isso, salvou a vida de Mercedes.

     Morgan se voltou de novo para sua esposa e, com mão ainda trêmula, prosseguiu seu exame. Precisava assegurar-se de que realmente estava bem. Imediatamente seu olhar foi para onde antes estava a ferida aberta, mas não viu mais que pele, suave e branca como a neve, que só tinha um muito ligeiro rubor procedente de seu próprio calor interior. Rodeou-lhe a cintura com as mãos e fechou os olhos com alívio.

     Estava perfeita. Impecável. Completamente curada.

     Então inspirou forte e se inclinou para trás, cravando a vista no corpo de Mercedes. Esticou a mão, levantou-lhe a mão direita e voltou a palma para ele.

     Nem rastro de cicatrizes; só pele rosada e saudável. Voltou a olhar o braço esquerdo e depois lhe deu a volta, o suficiente para ver suas costas. Não havia pele franzida, sua pele estava completamente lisa e impecável. Mercedes estava curada.

     Morgan se sentou no chão e esfregou a face, ao mesmo tempo em que meneava a cabeça e esfregava os olhos com as palmas das mãos.

   Nossa, como diabos ia explicar lhe aquilo?

     Quando despertasse, sua esposa se encontraria tombada naquele cânion mágico, nua de tudo e sem rastros de cicatrizes. Já seria bastante difícil lhe explicar por que a ferida de bala não a tinha matado… Mas como lhe explicaria o desaparecimento de suas velhas cicatrizes?

     De repente, Morgan se voltou para ver a cicatriz que ele mesmo tinha no ombro, lembrança de uma batalha cercada fazia mais de oito séculos… E depois se voltou mais para tocar a longa cadeia de carne de sua cintura, onde uma espada quase o tinha partido pela metade.

     Tampouco estavam: tinham desaparecido.

     Olhou por cima da água, ainda reluzente, e voltou a menear a cabeça. Estava sonhando? Por que o outro dia, no arroio, a magia do druida não havia feito desaparecer suas velhas cicatrizes ao lhe curar a coxa?

     Claro que então a luz era verde, não daquele branco puro e cegador. No lugar onde se encontravam, a magia era mais potente, especial… A energia do grosso e velho bastão de Daar desembocava naquela gruta, e a bruma a absorvia para alimentar aquelas muito altas árvores.

     Do mesmo modo, tinha nutrido a ele e a Mercedes e lhes havia devolvido uns corpos perfeitos, sem rastros das feridas do passado.

     Agora tinha uma tarefa pela frente: explicar a aquela mulher do século XXI o que era o que lhe tinha ocorrido… E para isso teria que explicar o caráter mágico de sua própria presença naquele lugar.

 

     Estava morta.

     Sadie recordava o impacto de bala golpeando suas costas. Recordava cair sobre Morgan. Recordava a incredulidade, a dor e a tristeza de não poder passar uma vida longa e feliz com ele…

     Porque, em vez disso, tinha morrido.

     Embora não soubesse se tinha aterrissado no céu ou no inferno.

     Ou talvez aquele fosse o purgatório do que lhe tinham falado.

     Fazia calor. Tinha calor, mas estava no lugar mais formoso que tinha visto jamais. Imponentes escarpados de granito pintalgado de cinza formavam um semicírculo em torno dela; por cima, como uma nuvem imóvel, flutuava uma bruma que a envolvia em um abafadiço calor veraneio. Nas altas paredes de granito ressonava o estrondo de água que caía de grande altura e a banhava uma luz branca que a neblina ajudava a propagar.

     Continuava conservando os cinco sentidos: ouvia, via, sentia o comichão do musgo sob seu corpo, cheirava o quente aroma das píceas empapadas em bruma, misturado com o aroma de pinheiro… E inclusive notava o persistente sabor do Morgan em sua boca.

     Devagar, rodou para ficar de cara ao som da água que caía, e então abriu muito os olhos, e seu olhar subiu mais e mais, seguindo o jorro de água cristalina que saía disparado do lateral do escarpado, como se alguém tivesse deixado aberto de tudo um grifo gigantesco.

     Ajoelhou com dificuldade e se levantou. Já de pé, deu uma volta completa com a cabeça tombada para trás, olhando o espaço que a rodeava e que lhe recordou uma catedral. Píceas, pinheiros, carvalhos e cedros se elevavam por cima de sua cabeça, tão alto que as copas desapareciam na bruma. As longas espigas emplumadas das samambaias cresciam tão viçosas que pareciam novelo pré-históricas. O musgo sobre o que tinha estado tombada era tão denso como a lã de ovelha e tão verde que quase parecia fluorescente.

     Em teoria, o rico dossel de vegetação deveria obscurecer aquele lugar, mas por toda parte havia uma reluzente luz cuja origem estava na água, e não no céu.

     Sadie levantou a mão direita para afastar o cabelo da testa e de repente ficou quieta, com a mão flutuando diante da face e a vista cravada na palma… Naquela carne perfeita que devia ter estado coberta de feias cicatrizes.

     Então baixou o olhar para seu corpo e voltou a conter um grito ao dar-se conta de que estava nua. Instintivamente, cruzou as mãos sobre os seios para tampar-se.

     E nesse momento foi quando reparou em seu braço.

     As cicatrizes da parte interior do braço esquerdo tinham desaparecido.

     Voltou-se para ver as costas. O grande mosaico irregular de enxertos de pele também tinha desaparecido. Voltou a cabeça e deu uma olhada no ombro direito. Não viu nenhuma cicatriz, só uma pele rosada e perfeita que lhe cobria as costas do ombro até a cintura.

     Sentou-se e tampou a face com as mãos.

     Sim, estava morta.

     Jamais voltaria a ver Morgan. Ele estava lá em seu vale… Sozinho, guardando luto por ela, amaldiçoando sua incapacidade para protegê-la…

     Destampou a face o suficiente para olhar a mão. Que sentido tinha ter um corpo sem cicatrizes se Morgan não estava ali para desfrutá-lo com ela?

     Então se deitou de barriga para baixo na areia e rompeu a chorar. Já não lhe parecia importante ter cicatrizes; era melhor ter defeitos mais ter Morgan que ser perfeita sem ele.

     Chorou com desconsolo; um pranto dilacerador com o que lamentou quanto tinha perdido. Tinha chegado a aquele lugar incrível e se tornou formosa para passar-se só toda a eternidade…

     E nesse momento chegou à conclusão de que devia estar no inferno.

     De repente ouviu o golpe seco de algo que dava no chão e elevou a cabeça. Ao olhar para cima viu Morgan, completamente vestido, junto ao lugar onde o charco se derramava entre as muito altas árvores; a seus pés tinha um fardo feito com a roupa dela e suas botas, sua mochila e a espada.

     Sadie se levantou de um salto e correu para ele, mas se deteve vários passos de distância ao dar-se conta da expressão de sua face.

     Estava pálido como a neve, com a pele pega às bochechas e sulcada de linhas de tensão. Seus olhos eram da cor da pícea invernal, e tinha os punhos apertados aos lados.

     Sem pensar mais, Sadie se jogou sobre ele. Beijou-lhe a face, o cabelo e a boca, e choramingou sua aprovação ao notar que a estreitava mais forte.

     — Acredito que estamos mortos! — Sussurrou-lhe ao ouvido. — Lamento que tenhamos morrido, Morgan, mas contente estou de que esteja aqui comigo! Eu te amo muitíssimo!

     Voltou a beijá-lo, embora demorou para dar-se conta de que não lhe devolvia o beijo… E de que se pôs ainda mais rígido assim que ela tinha começado a falar.

     Ele ainda não sabia que os dois tinham morrido… Não compreendia o que lhes tinha ocorrido.

     Sadie soltou as pernas de sua cintura e ficou de pé. Depois se afastou dançando e fazendo piruetas em círculo com as mãos estendidas.

     — Olhe, Morgan, estou bem! Estou nua como o dia em que nasci, e igualmente perfeita. — Deu a volta para lhe mostrar as costas, alardeando de sua impecável pele, e soltou uma risada por cima do ombro. — As cicatrizes desapareceram. Sou eu outra vez!

     Ele não se moveu. Não falou. Nem sequer piscou.

     Sadie voltou correndo junto a ele e desabotoou seu cinturão.

     — Deixa que lhe demonstre — Disse, ao tempo que lhe desabotoava as calças e os baixava até os joelhos. — Você também está bem. Tampouco tem cicatrizes.

     Tomou sua mão esquerda, fechada em um punho, e a pôs na coxa, justo onde ele suturou a ferida do alce. Depois elevou a vista para sua face.

     — Olhe, vê? Não está!

     Mas ele não olhava a coxa, tinha os olhos cravados nela. Sadie lhe dedicou um enorme sorriso, endireitou-se, voltou a rodear seu pescoço com os braços e lhe deu um apaixonado beijo na boca.

     — De verdade que sinto que tenhamos morrido, Morgan, mas estamos juntos, meu amor — Sussurrou, lhe enchendo a cara de beijos enquanto falava. — Tinha tanto medo de ter te perdido para sempre…!

     Sentiu que ele baixava as mãos e subia as calças antes de rodeá-la de novo com os braços. Depois a levantou e voltou a levá-la ao lugar onde estava antes, junto à poça. Pousou-a no chão, sentou-se a seu lado e depois desabotoou a camisa, a tirou rapidamente e a deu.

     — Ponha isto, lass. — Disse em voz baixa. Com o olhar lhe deu um rápido repasse a seu nu corpo antes de voltar a cabeça para olhar o charco.

     — Preferiria que você tirasse a roupa também — Resmungou ela.

     Contrariada, fez o que lhe pedia. Colocou a camisa e a abotoou até o pescoço, mas se deteve o sentir algo pendurando sobre a clavícula.

     Levantou o cordão de couro e soltou um grito afogado; imediatamente olhou ao peito de Morgan.

     — Este é seu cordão… — Baixou a cabeça, puxou o cordão para vê-lo melhor e ficou a procurar a madeira que deveria estar ali — Ai, não! Perdi o nó de cerejeira que tinha!

     Voltou-se e o buscou pelo chão com frenesi, mas Morgan a agarrou pelos ombros e a tombou no chão até ficar estendido sobre ela. Depois afastou o cabelo da face. Sua boca estava só a uns centímetros de seus lábios, e seus olhos escuros e impenetráveis se cravavam nos dela.

     — Não estamos mortos, Mercedes — disse ele. — Os dois estamos vivos.

   Sadie o olhou piscando e apertou a cabeça no chão para ver a face com mais claridade.

     — Não… Não pode ser, Morgan. Não tenho cicatrizes, e você tampouco.

     — Está viva.

     — Mas se me lembro da bala, da dor… Recordo que caí sobre você.… Atiraram em mim… Eu… Eu morri.

     Devagar, ele assentiu com a cabeça sem apartar a vista.

     — Sim, lass, morreu — Sussurrou. Subiu uma mão para tocar o cordão de couro que tinha ao pescoço. — Mas a magia do ancião sacerdote tornou a te trazer para mim.

    — A ma… magia?

     Ele assentiu de novo.

     — Sim. — Soltou o cordão e com um gesto assinalou o ar que os rodeava. — Este lugar, a bruma, a água que sai do escarpado… é especial. Procede de uma lacuna aonde jogamos o bastão do druida há dois anos.

    — Do dru… druida?

     Lutando por levantar-se, Sadie o empurrou no peito. Ele se afastou rodando, e se levantou enquanto ela ficava de pé com dificuldade e se voltava para olhá-lo fixamente.

     — O que está dizendo? — Sussurrou, enfrentando ao medo que ia surgindo de seu interior. — Está… Está dizendo que é um… Em bruxo ou algo parecido? Um feiticeiro?

     Ele meneou a cabeça e depois se apressou a levantar-se. Ela deu outro passo atrás.

     — Só sou um homem, Mercedes — Respondeu ele, mantendo a distância que havia entre eles. — Não sei nada de magia.

     — Então, como…? — Sadie tocou o cordão de couro e se esforçou por tragar o nó que tinha na garganta. Sua voz se transformou em um grito de incredulidade: — Então, como me curou?

     Com um movimento de cabeça, ele assinalou seu pescoço.

     — O presente do sacerdote. O nó de madeira de cerejeira e esta água — com um gesto da mão assinalou o charco que ela tinha atrás — A curaram.

     Sadie se voltou o justo para olhar a água sem perder de vista o Morgan, e lhe lançou um cauteloso olhar.

     — De… Onde está o nó agora?

     Ele voltou a fazer um gesto com a mão.

     — Desapareceu, se dissolveu. A magia se gastou para salvar sua vida.

     Ela deixou cair o queixo e brincou com o botão da camisa que levava posta. O que Morgan lhe contava era incrível… Mas havia algo mais importante, por que o contava?

     É que não aceitava que tivessem morrido?

     Então se aproximou um passado e lhe estendeu a mão direita com a palma para cima.

     — Morgan — Disse olhando-o. — Vê isto? As cicatrizes não estão, e isso não é possível. Não existe nada parecido a essa magia de que fala. A uma pessoa não a matam de um tiro e depois… e depois se cura sem mais. E umas cicatrizes de oito anos não desaparecem como se não tivessem existido nunca.

     — Então me explique o que aconteceu. — Exigiu ele com doçura. Seus olhos eram duas penetrantes pontas de lisa pederneira verde.

     — Porque morremos… Os dois, do contrário não estaria aqui comigo, nem te teria desaparecido o corte da perna. É a única explicação lógica, Morgan, estamos mortos… — De repente sorriu. — E aterrissamos no céu.

     Ele deu um passo para ela.

     — Mercedes…

     Mas ela se adiantou e correu a saltar em seus braços, olhando-o e rindo.

     — E agora vamos fazer amor, marido… Antes que Deus se dê conta de seu engano e nos jogue daqui de um chute!

     Dito isto, beijou-lhe na boca e o fez cair ao chão até que esteve sentada escarranchado sobre sua cintura.

     Morgan soltou um suspiro que quase encheu os pulmões a ela, e depois colocou as mãos sob a cabeça. Olhou-a sorrindo, mas de repente ficou mais sério e, com suavidade, passou um tremulo dedo pela bochecha.

     — Deu-me muitíssimo medo te perder, esposa — Sussurrou.

     Sadie pôs uma mão sobre a dele.

     — A mim também. Te amo muitíssimo, Morgan. Não poderia viver sem você. — Lançou-lhe um sorriso. — E tampouco poderia morrer sem você.

     Inclinou-se e beijou a ruga da testa dele. Depois se estirou sobre ele e foi subindo até pôr o nariz à altura de seu peito, esplendidamente nu. Sorriu de novo quando o ouviu gemer.

     Com a ponta do dedo, desenhou círculos pelo entupido arbusto de pêlo que lhe cobria o peito. Tinha bastante terreno pela frente e deixou que o pêlo lhe fizesse cócegas na palma enquanto abria um preguiçoso caminho sobre seus músculos. Depois se deteve para explorar um mamilo, ouviu-o gemer de novo e passou a língua pelo círculo, suave como a seda. O pêlo fez cócegas nos lábios quando chupou com suavidade, e nesse instante Morgan se incorporou de repente e a afastou.

     Sadie sorriu diante a fera expressão de seu cenho franzido e passou a mão pelo lugar que acabava de beijar.

     — Prometo-te deixar que me faça o mesmo dentro de um instante — disse. — Mas primeiro quero te seduzir.

     — Não vou estar à altura. — Disse ele com os dentes apertados.

     Ela o jogou para trás e se inclinou outra vez; seu nariz ficou a uns centímetros da do Morgan.

     — Temos toda a eternidade para praticar, marido. — Disse, enquanto ficava direita e desabotoava a camisa.

     Observou que o olhar de Morgan ia de sua face aos seios, e que seu cenho se relaxava. Em seguida voltou a colocar as mãos atrás da cabeça; por sua vez, ela tirou a camisa dos ombros e deixou que lhe caísse pelas costas.

     Depois tomou os seios com as mãos e os juntou, ao tempo que se inclinava e os pousava sobre o torso de Morgan. Devagar, moveu-os acariciando-o com eles, e então descobriu que era ela quem ia acumulando uma tensão que nascia na boca do estômago e se estendia em ondas concêntricas até alcançar o centro de sua feminilidade.

     A testa cobriu de suor. Sentia-se acalorada e úmida entre as coxas, e parecia não poder deixar de estremecer de desejo por sentir ao Morgan dentro dela.

     As mãos dele foram aos seus seios e substituíram as suas, que agora se afundavam nos ombros do Morgan. Este a acariciou com suavidade e a inflamou por completo. Sadie talvez gritou, não estava segura; o que sim sabia era que não podia evitar que seus quadris se movessem para buscá-lo.

     As mãos de Morgan deixaram seus seios, mas em seguida as substituiu pela boca. Então Sadie gritou por cima do fragor da catarata. Morgan a levantou e tirou as calças, e de repente não houve nada entre ela e a ereção, dura como uma pedra, de seu marido.

     Um calor ardente empurrava contra as dobras de sua feminilidade e então as fortes mãos de Morgan lhe agarraram os quadris, elevaram-na e a acomodaram mais intimamente sobre ele.

     Sadie sentiu que se alargava, aceitava e tomava Morgan em seu interior, e desta vez gemeu com profundidade e intensidade quando sentiu sua boca lhe cobrindo um de seus seios. Com as mãos em seus quadris, ele impôs aos dois um ritmo sem deixar de lhe chupar o mamilo, até que Sadie acreditou que ia explodir.

     E explodiu, magnificamente, enquanto gritava seu prazer às paredes de granito daquele maravilhoso céu onde estavam os dois, ofegando quando cada espasmo ascendente a fazia subir mais e mais em espiral. E então Morgan também lançou um grito de prazer, agarrando com mais força os quadris para ajudá-la a capear o temporal de luz que tinham criado juntos.

     Sadie caiu em cima dele e colocou a cabeça sob o oco de seu pescoço, sentindo ainda seu próprio pulso de prazer que seguia pulsando nele.

     E assim ficaram jogados, juntos, respirando com dificuldade, até que seus acelerados corações deixaram de tentar vencer-se mutuamente a golpe de batimentos.

     — É como se aproximasse com sigilo… não é? — Murmurou Sadie no peito dele.

     — O que?

     Ela jogou a cabeça para trás e abriu um olho para ver a sonolenta risada que ouvia em sua voz.

     — A paixão. Acreditei que ia passar uma hora te deixando louco… E fui eu a que não durou nem cinco minutos.

   Ele deu um carinhoso tapinha no traseiro.

     — Imagino que nos acalmaremos dentro de uns trinta anos. — Disse com uma risada. Deu a volta para que ela ficasse debaixo e depois a beijou na testa. — Praticaremos até que nos saia bem.

     Com carícias repetidas e suaves afastou o cabelo da face, e depois a olhou fixamente com os olhos brilhantes.

     — Eu te amo, Mercedes. — Sussurrou. — Deus é testemunha de que te amo mais que à própria vida, lass. Quer se casar comigo? Assim que encontrar a esse velho e maluco sacerdote, Dará a honra de legalizar nossas promessas?

     Sadie estirou os braços por cima da cabeça como um gato preguiçoso; expôs-se deixá-lo esperar sua resposta um pouco… Mas estava muito satisfeita, muito feliz e muito apaixonada pelo Morgan para fazê-lo sofrer nem um segundo.

     — Deve haver um sacerdote por aqui. — Disse ela. — Assim que o encontrar, casarei-me contigo. Acredita que poderemos ter filhos no céu?

     Ele rodou até afastar-se e se levantou. Depois se inclinou e a pegou nos braços. Meteu-se na reluzente poça até que a água lhe chegou à cintura e então a soltou sem avisar. Sadie se afundou até o fundo e tomou represálias acariciando-o intimamente e beijando sua ereção.

     Ouviu-o gritar inclusive debaixo da água.

     Depois praticaram a ver se saíam bem outras três vezes; foram da morna e reluzente água até a arenosa borda e depois até o lado oposto do charco, sob a densa orvalhada da catarata.

     Exausta, Sadie tombou em cima de Morgan sobre as rochas. Não tinha forças nem para suspirar. Contudo, ele ainda contava com suficientes energias para lhe acariciar brandamente o traseiro com gesto preguiçoso.

     De repente lhe elevou o queixo para que o olhasse.

     — É tremenda, mulher, quando perde o acanhamento.

     Ela enrugou o nariz e, com gesto cansado, passou-lhe a mão pelo peito.

     — Ainda não viu nada, marido.

     Sadie não sabia de onde tirava as forças aquele homem, mas o caso é que a levantou dele e, com suavidade, pô-la na rocha que tinha ao lado. Ela olhou a catarata. Sem saber como, tinham acabado debaixo, e a água, extraordinariamente quente, derramava-se em uma cortina que brilhava como o vidro ao sol antes de explodir contra o charco que tinham aos pés.

     Nesse momento lhe soou o estômago, e se pôs a rir.

     — Acredito que se pode ter fome no céu. — Disse acariciando o ventre. — Mas a verdade é que estou muito cansada para comer.

     — E eu estou muito cansado agora mesmo para voltar a pé até o acampamento madeireiro a pegar nossas coisas. — Morgan se levantou e estendeu a mão. — O que te parece primeiro uma sesta e depois vou atrás delas?

     Ela tomou a mão que lhe oferecia e ficou de pé. Depois jogou uma olhada ao aposento de paredes de água onde se encontravam e, de repente, deu um grito afogado.

     — Ai, Meu deus!

     Meneando a cabeça, caminhou em pequenos círculos sem deixar de olhar ao chão.

     Estava andando sobre pequenas pedras de ouro.

     — Aqui está, Morgan! — Gritou, ao tempo que se voltava rápido para olhá-lo. — A mina de Jedediah, encontramos!

     Com a ponta do pé descalço, Morgan varreu o chão e se agachou para pegar uma pedra, que elevou para contemplá-la à luz da catarata. Em voz tão baixa que apenas se ouviu com o ruído da cascata, disse:

     — Parece que sim.

     Sadie retornou junto a ele, observou com atenção a pepita que tinha na mão e soltou um cansado suspiro.

     — Para o que vai me servir agora! — Queixou-se. — O parque não se abrirá jamais.

     Morgan a olhou com os olhos obscurecidos e sorriu com tristeza.

     — O que aconteceria não estivéssemos mortos, Mercedes? E se estivesse viva e tivesse todo este ouro a sua disposição? O que faria?

     — Abriria esse parque.

     — E depois, que acredita que aconteceria a este mágico lugar? — Morgan deixou cair o ouro e lhe deu a volta para que o olhasse — Se estivermos vivos e este lugar existe de verdade, o que lhe ocorrerá quando todos os turistas devam visitar seu parque?

     Ela o olhou com o cenho franzido.

     — É absurdo discutir isso, estamos mortos.

     Ele a sacudiu um pouco.

     — Mas se não estivéssemos. — Insistiu ele. — O que aconteceria a este cânion?

     Ela teve que pensar, e o que pensava não gostou.

     — Seria destruído. — Respondeu ela. — Quando o tirasse a luz, e com certeza o tiraria, as pessoas pisoteariam cada centímetro quadrado deste chão tentando encontrar o ouro.

     Morgan assentiu e lhe soltou os ombros.

     — Exato, fariam isso. Seu parque, o legado de seu pai… Tudo ficaria esquecido, superado pelo mistério deste lugar especial.

     — Mas estamos mortos, Morgan! — Insistiu ela — Me apóio simplesmente no fato de que no mundo real não existe nada parecido a isto. Não é possível.

     Ele não disse nada mais. Agarrou-lhe a mão e, rodeando a borda da catarata e pela borda da poça, levou-a até que estiveram de novo na franja de areia. Então agarrou a camisa que ela tinha descartado e a pôs sobre os ombros, envolveu-a nela e a fechou em cima dos seios. Depois lhe deu um beijo no nariz.

     — Vamos deixá-lo por agora. — Suplicou em voz baixa. — Já haverá tempo de preocupar-se por isso. Nós dois precisamos dormir um pouco primeiro. Depois procurarei algo de comer, e assim resolveremos nossos problemas com a tripa cheia.

     Enquanto falava, fez que Sadie se deitasse, e assim que estiveram no chão, ela se aconchegou encantada em seu abraço, fechou os olhos, rodeou-o forte com os braços e não demorou para ficar adormecida.

 

     Ao despertar, Sadie notou um forte aroma de cão molhado. Abriu os olhos e esticou a mão para afastar a língua de Faol, mas sua mão se deteve metade de caminho e trocou de direção para bater no ombro de Morgan.

     — Temos companhia — Sussurrou, ao tempo que se apressava a afundar-se mais atrás dele. Depois o cravou mais forte com a mão e subiu o volume de sua voz até transformá-la em um grito. — O Padre Daar está aqui!

     Meu Deus! Estavam tão nus como o dia que nasceram, e além lhe tinha caído a camisa e estava presa trás dela…! Se não estivessem já mortos, é provável que os tivesse matado o cenho com que os olhava o ancião sacerdote, que os estava assinalando com um dedo torcido pela idade.

     — Têm dois minutos para se levantar e se vestir — Espetou ele. — Ou pronunciarão nus seus votos matrimoniais!

     Morgan se levantou e protegeu Sadie com seu corpo do escandalizado olhar de Padre Daar. Ela aproveitou suas largas costas para procurar rapidamente a camisa, colocar e abotoá-la até o pescoço.

     — Dê a volta, ancião — grunhiu Morgan.

     Esperou até que o sacerdote concordou a fazê-lo, e depois jogou uma olhada para assegurar-se de que Mercedes estivesse bem tampada. Dedicou-lhe um amplo sorriso ao ver seu ruborizado rosto.

     — Está pronta para dizer “sim”, lass? — Perguntou, enquanto que com um dedo lhe roçava apenas a acesa bochecha.

     Absolutamente morta de vergonha, Sadie assentiu.

     Então Morgan ficou de pé, passou sem pressas por diante do sacerdote, que seguia esperando, e reuniu a roupa que tinha deixado cair junto ao extremo da poça. Sadie se levantou como pôde, assegurou-se de estar bem tampada até os joelhos e deu obrigado a que a camisa de Morgan tivesse as abas largas.

     Seu iminente marido não se mostrava nada tímido por sua nudez, e tampouco parecia preocupar que o sacerdote os tivesse pegado dormindo juntos e nus. Retornou para lhe levar sua roupa e, ao passar ao lado de Padre Daar, olhou-o com o cenho franzido.

     Ela se vestiu depressa, embora várias vezes tivesse que afastar Faol para atar as botas.

     De repente soltou um grito afogado; acabava de dar-se conta do que supunha a presença ali do lobo.

     — Mataram Faol também! — Gritou. Voltou a soltar outro grito afogado. — E também o Padre Daar… Você está morto!

     O sacerdote se voltou e se jogou uma olhada a si mesmo.

     — Ah, estou? — Comentou, com cara de apuro.

     Morgan, que tinha sentado ao lado de Sadie para calçá-las botas, deteve-se e a olhou.

     — Não está morto, ancião. — Disse em tom impaciente. Depois fez um gesto no ar com sua enorme mão ao mesmo tempo em que acrescentava: — É que, graças a sua magia, Mercedes acredita que morreu… E que está no céu.

     Com expressão mais surpreendida que aliviada, o sacerdote centrou sua atenção na jovem.

     — O que te faz pensar que estamos todos mortos, moça? — Perguntou.

     Sadie levantou a mão direita com a palma para ele.

     — Estou curada, padre. Todas minhas cicatrizes desapareceram. E além disso, atiraram em mim, e senti que a bala me atravessava o corpo, mas não me dói, e nem estou sangrando, nem tenho nenhuma ferida, assim estou morta.

     O sacerdote lançou uma rápida olhada ao ainda reluzente charco. Depois voltou seu penetrante olhar para Morgan enquanto elevava uma povoada e grisalha sobrancelha.

     — Tornou a usar o nó de madeira, não? — Disse em voz baixa, assinalando a água. — Revelou seu segredo para salvar a vida de sua mulher.

     Sadie olhou a Morgan e viu que assentia.

     — E como é uma mulher do século XXI, não acredita. — Prosseguiu Daar, voltando a atrair a atenção de Sadie.

     Em seguida olhou a Morgan, que assentiu de novo.

     Então Sadie ficou de pé. Tinha decidido que sabia falar por si mesma. Aproximou-se do sacerdote, tirou das calças as abas da camisa e a levantou o suficiente para descobrir o estômago.

     — A bala me entrou por metade das costas e saiu pelo lado. — Disse. Deu a volta e se destacou as costas. — E, além disso, isto teria que estar cheio das cicatrizes do incêndio que matou a minha irmã.

     Deixou cair a aba da camisa e cruzou os braços sob os seios.

     — Estou absolutamente curada, padre.

     Justo ao seu lado, voltou a ouvir suspirar o Morgan e o olhou. Estava esfregando a face com uma mão.

     — Não podemos pronunciar nossas promessas de matrimônio até que o entenda. — Disse Morgan ao sacerdote. — Tem que dar-se conta de a quem toma por marido.

     — Então explique. E ande depressa. — Disse o Padre Daar, ao tempo que assinalava a cintura de Sadie. — À velocidade que vão, antes que estejam casados como Deus manda, seu primogênito estará saindo os dentes.

     Ela recuou, tampando o ventre com a mão.

     — Que primogênito? De que fala?

     — Vai me dizer que era uma inocente sesta o que estavam jogando agora mesmo? — Perguntou o ancião.

     Sadie sentiu que a face lhe ardia.

     — Pronunciaremos nossas promessas assim que ela o entenda — Repetiu Morgan.

     — Pronunciarão agora mesmo, diante de mim e de Deus, ou me volto para casa e me desentendo de vocês! Neste lugar se mora uma tormenta espantosa e têm que se ocupar dela, mas não até que estejam casados como Deus manda.

     Incapaz ainda de elevar os envergonhadíssimos olhos por cima do cinturão de Morgan, Sadie esperou a que ele decidisse se de verdade queria casar-se com ela ou não. Se todos estavam mortos, o que importava?

     Mas e se de verdade estavam vivos?

     — Se… Se não quiser se casar, não nos casaremos. — Disse olhando seu peito e sem levantar mais a vista, por medo ao que possivelmente visse em seus olhos. — Esquecemos o resto da semana e, simplesmente, vamos cada um por nosso lado.

     De repente se sentiu levantada até encontrar-se pega ao lado de Morgan e dada a volta para que olhasse de frente ao sacerdote, enquanto lhe apertava tão forte as costelas que era um milagre que não as quebrasse.

     — Comece! — Espetou Morgan ao Padre Daar.

     Como declaração de amor, a Sadie aquela única palavra pareceu algo mágico. Sim, começariam sua vida juntos naquele preciso instante… E teriam o matrimônio mais feliz que o céu tinha visto jamais.

     Desta vez seus votos núpcias seriam de verdade, pronunciados naquele maravilhoso lugar; um lugar mais formoso que qualquer igreja das que Sadie tivesse visto. A sua seria uma união de conto, que duraria toda a eternidade.

     Depois de tirar um livrinho do bolso, o Padre Daar começou a ler as promessas, enquanto Sadie alisava o peitilho da camisa de flanela. Mas então pensou que devia prestar atenção. O mal foi que, assim que começou a escutar, deu-se conta de que não compreendia nenhuma palavra do que o sacerdote dizia.

     Entreabriu os olhos e se inclinou para frente para olhar o livro, mas ao não reconhecer as palavras tampou a página com a mão. O ancião levantou a vista para ela com o cenho franzido.

     — Que idioma é esse? — Perguntou Sadie.

     — Gaélico. — Respondeu Daar, ao tempo que tirava o livro de debaixo de sua mão e voltava a elevá-lo à altura de seus olhos.

     Ela o interrompeu de novo, com o que o cenho do ancião se acentuou.

     — Mas é que não sei o que você diz — Disse ela. — Não pode traduzi-lo ao inglês? E, além disso, por que usa o gaélico?

     O Padre Daar pigarreou, converteu seu cenho em um olhar assassino e a lançou primeiro ao Morgan e depois outra vez a ela.

     — Porque é nosso idioma! — Disse com impaciência. — E posto que superamos em número por dois a um, toca-nos escolher.

     Sadie assinalou o livro.

     — Então diga os votos, mas acrescentaremos os nosso… Em inglês para que eu saiba o que estou prometendo.

     O Padre Daar subiu as sobrancelhas para ouvir semelhante rabugice, mas em seguida voltou a elevar o livro e começou a ler de novo. A Sadie suas palavras soavam, mais como palavrões que como promessas, cheias de ásperas consonantes e de vocais guturais que pareciam mais cuspidas que pronunciadas.

     Faol também tinha ido a ver a cerimônia. Estava sentado junto a Sadie, apoiado em sua perna, com a língua pendurando e os olhos, de um verde suculento e irisado, cravados nela. Ao outro lado, Morgan, em um preocupado silencio, apertava-lhe a mão direita tão forte que a Sadie ocorreu que talvez temia que trocasse de opinião antes que acabasse o ofício.

     De repente o sacerdote deixou de falar e voltou uns espectadores olhos azuis para ela. Sadie supôs que devia dizer “sim, quero”.

     Então tomou as mãos de Morgan entre as suas, endireitou os ombros e se dispôs a pronunciar seus votos.

     — Eu te amo, Morgan MacKeage. E prometo ser sua esposa por toda a eternidade. Te querer, honrar seu espírito e proteger com minha alma este amor que encontramos… — Lhe estreitou as mãos. — E além disso, teremos muitos filhos e os criaremos em uma casa transbordante de amor. Ensinaremos as maravilhas da natureza e lhes ensinaremos…

     Não pôde continuar. Tinha o coração a ponto de explodir, estava ficando muito sensível, e notava um nó tremendo na garganta. Então meneou a cabeça, engoliu seco e se obrigou a seguir.

     — E prometo te amar sempre. — Terminou com um afogado sussurro.

     Dito aquilo, conteve o fôlego e esperou a que ele dissesse seus votos.

     — É minha. — Grunhiu Morgan.

     Ao mesmo tempo a estreitou contra seu peito com tanta força que lhe tirou o ar dos pulmões com um ofego.

     É minha?

     Isso era tudo?

     Naquele momento Morgan a beijou com a mesma atitude possessiva que lhe tinha visto no olhar. À força de beijos fez desaparecer a indignação antes que esta fizesse presa nela… E depois a seguiu beijando até que a tosse impaciente de um escandalizado sacerdote fez que os dois pusessem-se a rir.

     — Então já parece! — Concluiu o Padre Daar de modo terminante e em voz bastante alta — Bom, vamos comer. Vamos celebrar um banquete de bodas com boas e saborosas trutas. Deixa de sovar a sua esposa, Morgan, e vá nos buscar algo de jantar!

     Como o marido de Sadie não prestava atenção ao sacerdote, lhe deu um beliscão no flanco para que respirasse.

     Quando por fim Morgan a soltou, o Padre Daar disse:

     — Vá pescar umas trutas em um dos charcos mais frescos de baixo — Puxou o braço de Sadie. — Nós prepararemos um fogo e cozinharemos. Depois você e eu pensaremos em como convencer a sua esposa de que a todos ficam muitos anos ainda até que vejamos o céu por fim.

     Enquanto falava, pôs-se a andar para a franja de areia que havia junto ao charco.

     De repente, olhou para trás por cima do ombro e explodiu em uma crepitante gargalhada.

     — Embora não é que você tenha muitas possibilidades de entrar no céu, guerreiro. Aos pagãos como você quase nunca permitem transpassar suas portas.

     Sadie não soube o que a surpreendeu mais: se que o sacerdote chamasse “pagão” a seu marido ou que o chamasse “guerreiro”.

     Seguidamente, Morgan agarrou a espada e a acomodou à costas, enquanto lançava ao Padre Daar um feroz olhar assassino.

     — Comece a explicação sem mim, ancião. — Disse ele. Depois indicou ao lobo o caminho para a saída do charco. — Faol, tàr ás. Falbh.

     A seguir partiu e sua figura se perdeu entre as muito altas árvores.

     Sadie ficou com a vista cravada no lugar por onde tinha desaparecido.

     — O que acaba de dizer? — Perguntou ao sacerdote.

     — Tàr ás significa “se ponha em marcha” ou “vá”, falbh, “vigia”.

     Começou a caminhar pela majestosa gruta e ficou a recolher lenha miúda.

     — Pôs ao lobo a vigiar a entrada. — Disse, enquanto prosseguia sua tarefa e amontoava os ramos. Endireitou-se e a olhou. — Te disse que fazer-se amiga de Faol seria útil algum dia.

     Sadie cruzou os braços e o olhou de frente.

     — Assim, está me dizendo que este lobo do Maine entende o gaélico? — Perguntou. — Uma língua morta há séculos?

     Daar se sentou no musgo, perto da pilha de ramos que tinha feito, e elevou a vista para ela.

     — Não está morta, jovenzinha. Em algumas partes da Escócia ainda falam gaélico. — De repente mostrou um amplo sorriso. — Agora olhe.

     Tocou os ramos com sua fina bengala enquanto murmurava umas palavras entre dentes.

     Imediatamente brotaram chamas da lenha, e Sadie recuou, embora em seguida se apressou a aproximar-se mais e a jogar um olhar feroz ao fogo que já chispava.

     — Isso não é magia; ao menos no céu não. — Com um gesto assinalou as altas paredes de granito. — Aqui tudo é possível.

     O Padre Daar lançou um suspiro tão forte que o ouviu por cima do ruído da catarata e esfregou a face com as mãos. Depois elevou o olhar para Sadie e deu uns tapinhas no lugar que tinha a seu lado.

     — Venha, sente-se a meu lado, Mercedes, para que possa te explicar o que te ocorreu.

     Com outro suspiro, Sadie se sentou junto ao louco e ancião sacerdote e cravou a vista no fogo que crepitava baixinho.

     — Recorda minha visita da semana passada? — Perguntou Daar, enquanto com a bengala acrescentava mais lenha ao fogo — E os pés? Não tinham curado os cortes na manhã seguinte, quando despertou?

     Sadie franziu o cenho.

     — Sim. Tinham desaparecido — Reconheceu.

     — E não estava viva quando ocorreu esse pequeno milagre?

     Ela o olhou.

     — Não foi um milagre — Replicou. — Os milagres são grandes coisas que ocorrem a quem o merecem.

     — E você não merece isso?

     — Essa não é a questão. Deus não ia tomar se a moléstia de pensar nos cortezinhos de meus pés; tem coisas muito mais importantes das que preocupar-se.

     Daar grunhiu, voltou a esfregar a face com as mãos e meneou a cabeça. Por fim a olhou com expressão desconcertada.

     — O mundo inteiro continua aí, Mercedes, justo atrás dessas árvores. — Assinalou o lugar por onde Faol e Morgan tinham desaparecido. — Seu vale, sua mãe e Callum, seus dois ingênuos amigos e o homem que te disparou; todos continuam aí, e todos continuam te esperando.

     Ela olhou para as árvores; nem sequer se tinha exposto tentar partir.

     — Então, se de verdade não estiver morta — sussurrou — Voltarão minhas cicatrizes se sair daqui? Serei feia outra vez?

     Soltando um cansado suspiro, Daar espetou:

     — Não pode ser o que não foi nunca. Mas não, as cicatrizes se foram para sempre. — Franziu o cenho. — Imagino que não será fácil explicar a sua mãe. Como também é uma mulher moderna, não o compreenderá mais que você.

     — O que quer dizer com isso de que somos mulheres modernas? Diz-o como se você e Morgan não fossem homens deste século. E, além disso, Morgan não está no exército, de modo que por que o chamou “guerreiro”?

     Daar massageou a nuca e acabou acariciando a barba.

     — Porque isso é o que é; ou, melhor dizendo, o que era. — Respondeu. — Faz seis anos tive um pequeno acidente fazendo magia e adiantei Morgan oito séculos no tempo.

     — Que fez o que?

     Ele franziu o cenho ao ver sua incredulidade e elevou o grisalho queixo.

     — Que cometi um engano. Só pretendia adiantar Greylen, o irmão de Morgan, mas outros nove homens vieram com ele, incluídos Callum, Ian e Morgan, e MacBain.

     — Callum? — Gritou Sadie. — Diz que o homem com quem vai casar-se minha mãe é como… Como Morgan? Que é um homem de outro século… E também um guerreiro?

     Levantou-se como pôde e fechou as mãos até as converter em punhos.

     — Mas o que está você dizendo? — Gritou.

     O Padre Daar elevou a bengala no ar e começou a murmurar palavras em voz baixa para si outra vez. De repente Sadie abriu muito os olhos ao ver que a bengala crescia até quase dobrar seu tamanho e começava a zumbir com suaves vibrações.

     — Pega a bengala, Mercedes. — Disse o ancião ao tempo que a estendia. — Se quer compreender, pegue-a e lhe mostrarei isso.

     Ela recuou.

     — Não.

     — Venha, vamos, garota — A enrolou. — Onde está seu espírito aventureiro? Não deseja saber quem é seu marido de verdade?

     Sadie não entendia nada. O que o ancião dizia era impossível… Mas o certo era que suas cicatrizes tinham desaparecido, encontrava-se em uma autêntica selva tropical que não deveria existir nem por apareço ao Maine, e a bengala do velho sacerdote resplandecia já como um relâmpago.

     Vacilante, mas com mais curiosidade que temor, estendeu o braço e pegou a bengala, que, para sua surpresa, não estava quente.

     Nesse instante, a luz se introduziu em sua cabeça em forma de brilhos de fulgor que deveriam tê-la cegado, mas pouco a pouco viu que algo surgia em sua imaginação: uma cena que parecia tirada de um livro ilustrado. Uns homens a cavalo que levavam espadas e vestiam de modo estranho, embora em realidade alguns iam nus, combatiam em uma tremenda batalha.

     Cheirou o pó que levantavam os fortes cascos dos cavalos e ouviu o choque das espadas ao golpear. Em seguida reconheceu o Morgan e também Callum. Viu que este tentava derrubar a um homem que levava a cara grafite. Então um raio brilhou por cima de suas cabeças, e um trovão retumbou. O ar que os rodeava se carregou com a energia de uma tempestade que se abatia rapidamente sobre eles.

     De repente uma chuva torrencial envolveu o caos e obscureceu sua visão. Ato seguido, produziu-se um enorme explosão de luz e se ouviu uma detonação que surpreendeu Sadie e a fez estremecer-se. Agarrou com mais força a bengala do sacerdote e, de repente, só se viu uma silenciosa luz branca, tão pura como o centro do sol, bordeada por um arco íris.

    Os homens voltaram a aparecer, mas já não lutavam. Agora estavam atirados, aturdidos, esparramados e em desordem, por uma terra que era a mesma, mas diferente. Era mais viçosa, mais verde. Havia edifícios, e junto a ela passavam zumbindo carros e caminhões.

     Procurou o Morgan, que se agarrava a cabeça e tampava os olhos com as mãos, e que, de repente, apalpou o corpo como se duvidasse de que existisse. Sadie gritou ao ver o medo em seu rosto, a confusão e o terror diante o que lhe tinha acontecido.

   Os cavalos jaziam entre os homens; aturdidos de pânico, gritavam e tratavam de ficar de pé. Sadie viu que Morgan corria por volta de um deles e reconheceu o que montava o primeiro dia que o viu.

     Em voz baixa, perguntou ao sacerdote que também olhava junto a ela, em sua imaginação:

     — Como se chama esse cavalo?

     — Gràdhag — Respondeu Daar. — Significa “Mascote”.

     Sadie soltou a bengala e recuou. Nesse momento a visão desapareceu tão misteriosamente como apresentou diante dela. Então voltou a cara para olhar a poça que formava a catarata e que seguia reluzindo.

     — Por isso Morgan tem medo das tempestades. — Disse ela. — Se viu apanhado em uma, arrancado de sua terra e jogado… Trazido aqui.

     Justo a seu lado, e olhando também a catarata, o Padre Daar disse:

     — Sim. Não gostou da viagem… E tampouco gostou de muito a nova vida que esteve levando. — Pegou-a pelo ombro e, com suavidade, deu-lhe a volta para que o olhasse. — Até agora, filha. Porque agora te encontrou, e não vai deixar que nada se interponha entre vocês: nem minha magia, nem o negrume que sofre este vale, nem sequer sua própria incapacidade para acreditar. Pronunciou suas promessas matrimoniais diante Deus e diante o homem, e te reclamou como dele. Agora se pertencem mutuamente, assim aceita o que te mostrei como o presente que é.

     — Morgan o chamou a você druida. O que significa isso? Quem é você?

     — Sou o que seu idioma moderno chamaria um mago, e tenho quase mil e quinhentos anos de idade.

     — Um mago? — Repetiu ela, ao tempo que dava um passo atrás.

     Ele a olhou franzindo o cenho.

     — E sacerdote — Disse em atitude defensiva. — Nestes momentos, um sacerdote faminto, além disso.

     Depois de olhar para onde o charco vertia no vale, recuou até o fogo, sentou-se outra vez e o avivou.

     Sadie cravou o olhar na bengala que utilizava como atiçador. O que o ancião dizia, o que ela mesma acabava de ver, eram… Eram a essência dos sonhos e das antigas lendas, que seguiam sobrevivendo apesar das explicações da ciência moderna.

     Embora a ciência não pudesse explicar o desaparecimento de suas cicatrizes nem, sobre tudo, o fato de que estivesse viva agora mesmo… E ela tampouco. Sua teoria da morte tinha mais lógica, embora esperasse de todo coração estar viva. Logo ia ter uma irmãzinha e queria estar ali quando nascesse. Queria ver casar-se a sua mãe. Queria ter filhos próprios…

     De modo que sim, queria acreditar na magia.

     Justo nesse momento Morgan apareceu por entre as imponentes árvores e se deteve olhá-la fixamente. Levava várias trutas pendurando do cinturão e a espada seguia em suas costas… Se fixasse, Sadie via o mesmo guerreiro da visão que o sacerdote lhe tinha concedido.

     E então soube que lhe dava igual por que meios se reuniram: amava a Morgan.

     Sem duvidar, lançou-se a seus braços ao tempo que explodia em uma risada cheia de alegria, segura de que ele a pegaria e a manteria a salvo… Para sempre.

     — Estamos vivos, Morgan! — Disse rindo enquanto olhava seu surpreso rosto, que não deixava de beijá-lo uma e outra vez. — Maravilhosamente vivos, graças à magia de um mago!

     Ele a abraçou tão forte que ao final ela acabou chiando as últimas palavras. Depois enterrou a face em seu pescoço, enquanto que todo o corpo tremia a causa do alívio que sentia.

     — Juro que passam mais tempo abraçados que ocupando dos assuntos práticos. — Gritou o Padre Daar da fogueira. — Tem toda uma vida para essas tolices, Morgan. Quero meu jantar!

     Sem deixar de espremê-la com todas suas forças, Morgan levou Sadie nos braços até o fogo e a deixou junto ao sacerdote. Depois arrancou as trutas do cinturão e as jogou aos pés de Daar.

     — Então coma, ancião — resmungou. Lançou um olhar a Sadie e depois outra vez ao sacerdote. — Tenho que encontrar nosso franco-atirador antes que ele nos encontre outra vez.

     Antes de acabar de soltar um grito afogado, Sadie já estava de pé.

     — Não o fará! Esse homem tem uma arma de fogo, e você não tem mais que essa… Essa espada! — Disse com energia, enquanto assinalava a arma tão pouco apropriada que aparecia por trás da cabeça. — Você fica aqui!

     Morgan a agarrou pelos ombros e a segurou com o olhar.

     — Por formoso e quente que seja este lugar, não podemos nos esconder aqui para sempre, gràineag. Afinal teremos que ir, e não iremos até que eu esteja seguro de que estamos a salvo. — Com suavidade puxou-a para si e tomou a cabeça para apoiá-la em seu ombro. — Tomarei cuidado, esposa: ele não me verá chegar.

     — Não são… Não são Dwayne e Harry. — Murmurou ela, enquanto tentava voltar-se para olhá-lo. Ele não afrouxou a mão. — Não lhes faça mal. É outra pessoa.

     — Eu sei, Mercedes, não farei mal a eles. — Afastou-se um pouco para olhá-la, mas não deixou de segurá-la pelo cabelo. — Em troca, deve me prometer que ficará aqui com Daar; com ele estará a salvo.

     Tinha-a agarrado tão forte que Sadie nem sequer pôde assentir. Todo seu corpo estava cheio de tensão.

     — Protegerei ao Padre Daar. — Respondeu ela.

     O ancião soltou um bufido ao ouvi-la.

     Morgan esboçou um meio sorriso de regozijo e lhe deu um beijo nos lábios. Depois recuou.

     — Espere! — Sadie desatou o cordão de couro que seguia levando a pescoço, voltando-se para o sacerdote e passando-o para ele. — Padre Daar, dê outro nó de cerejeira a Morgan para que o leve com ele.

     O sacerdote estreitou a bengala contra seu peito em gesto protetor enquanto tocava o cordão de couro que agora tinha na mão. Em seguida lançou um rápido olhar de Sadie ao Morgan e deu de ombros.

     — Não posso; só sobrou um nó de tamanho decente e com bastante poder para que sirva de algo. — Explicou-lhes. — E se o cortar da minha bengala, não servirá para nada.

     Sadie esticou a mão.

     — Então lhe dê a bengala — insistiu.

     Daar se apressou a colocá-la nas costas.

     — Não! — Gritou. — Facilmente colocaria fogo no vale inteiro. A magia é muito poderosa para os simples mortais.

     — Bom, pois necessita de alguma coisa.

     — Tenho você, esposa. — Morgan lhe deu a volta para que o olhasse. — Nada impedirá que volte para seu lado, Mercedes.

     — Contará com a ajuda de seu clã. — Interveio Daar. — Ontem Callum e Charlotte se detiveram em minha cabana de caminho a Gu Bràth, e ele me disse que voltaria com Greylen e Ian.

     Com um gesto da mão assinalou ao vale.

     — Provavelmente, já estejam por aí, procurando quem destruiu a cabana de Mercedes.

     Morgan tranqüilizou Sadie com um sorriso.

     — Vê? Não tem do que preocupar-se.

     — Seu irmão, Callum ou esse cara chamado Ian têm armas de fogo?

     — Sim, todos temos armas de fogo.

     — Então, onde está a sua?

     — Em casa, no armário onde a guardo. Estarei bem, gràineag. Vamos, prepare ao nosso sacerdote algo de jantar… — Deu um rápido beijo naquela boca que seguia protestando. — E tente não matar este homem com seus pratos.

     Com a última frase como expediente, Morgan deu a volta, dando passo longos e meteu-se na escuridão que cobria o extremo do charco e desapareceu antes que ela pudesse lhe dizer que, ao menos, levasse Faol.

     Sadie se voltou outra vez para o Padre Daar, que seguia observando-a com receio e ainda protegia a bengala a suas costas.

     — Você sabia que a truta queimada é um prazer ao que se afeiçoa com o tempo? — Perguntou.

     Em vez de responder a sua pergunta, o ancião sacerdote saiu pela tangente.

     — Agora sim que sei qual é a palavra; essa pela que me perguntou o outro dia. — Disse. De repente em seus claros olhos azuis brilhou um brilho travesso.

     Sadie se aproximou dele.

     — Grei-aj? — Sussurrou. — O que significa?

     O ancião esfregou a barba com o punho da bengala e lançou um agradado sorriso.

     — Bom, em gaélico gràineag é “ouriço”.

 

     Deixando para trás o luminoso resplendor da gruta, Morgan cruzou por entre as muito altas árvores que protegiam a poça e entrou na fria noite, ao tempo que seus olhos iam acomodando-se à escuridão do bosque. Ao chegar junto a Faol, este gemeu e ficou de pé, meneando a cauda. Em seus verdes olhos brilhava uma luz interior. O lobo lambeu o focinho; estava terminando de comer a truta que Morgan lhe tinha dado antes.

     — Se prepare, meu amigo. — Disse ao animal em gaélico. — Não dou mais de uma hora a Mercedes para que saia às escondidas por aqui. Vigia-a e não deixe que vá além da ladeira desta montanha, ou acabarão matando-a.

     Agachou-se e lhe alvoroçou a pelagem.

     — Pelo visto, lobo, apanhamos uma gràineag que às vezes tem mais coração que bom-senso. Só isso explica como nos aceitou.

     Sorriu na escuridão da noite ao pensar na tarde que acabava de passar com Mercedes. Era tão alegre e apaixonada quando faziam amor… E tão direta com seu já perfeito corpo… Agora que se sentia formosa, tinha desaparecido seu acanhamento. E ele daria o braço com o que segurava a espada para sempre tivesse sido assim, inclusive antes que desaparecessem suas cicatrizes; mas agora, graças à magia, já não desfrutaria de semelhante oportunidade. Não poderia demonstrar a Mercedes que o amor não impõe condições.

     Levantou-se e examinou o silencioso bosque.

     — Vou procurar Greylen e os outros. — Disse a Faol. Procurou no bolso e tirou um punhado de pedras de ouro que tinha pegado do charco. — Não irei atrás do franco-atirador de Mercedes; isso já o farão Grei, Callum e Ian. Eu disporei o anzol e esperarei que eles empurrem à presa até minha armadilha.

     Deu ao lobo um último tapinha e uma advertência.

     — Mantenha-se alerta — Disse. — E não deixe que nossa mulher se aproxime do rio.

     A seguir se internou na noite e se dirigiu para a escura força que rondava o vale.

        

     Sadie o ignorava, mas seu marido se equivocou por umas duas horas.

     Caminhou até a borda da poça e cravou a vista na água resplandecente que seguia brilhando com mágica intensidade. Dentro do recinto que delimitavam os escarpados de granito parecia que era de dia, mas quando olhou ao céu viu que a bruma se perdia no negrume. Era plena noite fora de seu pequeno paraíso, e ela não deixava de pensar no atirador que tinha disparado e no perigo no que estava metendo-se Morgan.

     Desejou ter comprado uma pistola; embora se o tivesse feito, o mais provável é que tinha ficado no antigo acampamento madeireiro, com o resto de suas coisas.

     E essa era outra questão que a preocupava: o acampamento madeireiro e sua mochila. O jornal de Jean Lavoie também estava lá, com a parte que se referia àquele escarpado e sua localização aproximada, marcada em tinta vermelha com um círculo. Se quem lhe disparou topasse com ele, saberia onde procurar o ouro.

     E encontraria aquele magnífico cânion.

     Sadie rodeou a borda do charco, passou por debaixo da catarata e recolheu um punhado de ouro. Depois se voltou e olhou de novo seu pedacinho de paraíso.

     Se aquele lugar fosse descoberto, ficaria arrasado sem remédio.

     Para manter sua magia em segredo, teria que construir o parque natural descendo mais pelo vale, e teria que procurar outro caminho de acesso até ele em vez de atravessar a terra dos MacKeage.

     Mas desse problema se ocuparia mais tarde. Naquele momento se concentrou em outro problema maior: tinha que ir ao acampamento madeireiro e recuperar o jornal antes que o encontrasse quem lhe tinha disparado.

     Sadie meteu o punhado de ouro no bolso, aproximou-se do ancião sacerdote, que tinha adormecido, e observou a bengala que tinha na mão. Necessitava de algum tipo de arma que a protegesse, se por acaso tropeçasse com alguma dificuldade. Ir ao acampamento madeireiro e voltar só era três quilômetros. Com sorte, estaria fora menos de uma hora. Antes que despertasse o Padre Daar, colocaria outra vez a bengala ao lado sem novidade, e muito antes que Morgan retornasse, ela estaria sentada ali, como uma obediente esposa.

     Com o máximo cuidado, Sadie pegou devagar a bengala da mão do sacerdote adormecido. Depois se endireitou rapidamente, apertou a morna madeira contra o peito, deu a volta e partiu a passo rápido por entre as árvores que se elevavam a enorme altura graças à magia.

     Quando entrou na escuridão do bosque, esteve a ponto de pisar em Faol. O lobo se levantou de um salto, gemeu e começou a menear a cauda, e Sadie lhe deu um tapinha na cabeça.

     — Tranqüilo, vai despertar ao Padre Daar! — Disse. Piscou olhando a escuridão. — Quer dar um passeio, rapaz?

     Demorou uns minutos em localizar a estrela polar e em orientar-se, e um pouco mais em que acostumasse a vista à escuridão do bosque. Então se dirigiu para o sul, bordeando a montanha Fraser, em direção ao acampamento madeireiro número três. Faol trotava na frente dela, e sua entupida cauda se movia como uma bandeira que mostrasse o caminho.

     Em menos de meia hora chegaram ao acampamento, e Sadie correu para a barraca de campanha.

     Ouviu o grunhido de advertência de Faol no preciso instante em que um disparo retumbava no ar. O estampido da boca da arma relampejou de uma árvore que estava junto à barraca.

     O ganido de dor de Faol ficou afogado por seu próprio grito de surpresa. Um após o outro, vários disparos aconteceram, e Sadie só viu uma correria de sombras que se moviam por onde estava o lobo. Outro gemido, e depois o grunhido de um animal encolerizado, seguido de outro estampido de arma de fogo.

     Sadie gritou e se equilibrou para a barraca. Abriu o zíper e se precipitou dentro para procurar sua mochila e a faca que levava ali; mas embora rebuscou por entre seu saco de dormir e as bolsas impermeáveis, não encontrou a mochila.

     — É isto que busca?

     Ao ouvir aquela voz conhecida Sadie deu a volta, e o feixe de luz de uma lanterna lhe banhou a cara. Então levantou a mão para ver além da luz que a deslumbrava e soltou um grito afogado.

     — Eric!

     Ele deixou cair sua mochila, agarrou-a pelo cabelo e a tirou de um puxão da barraca. Sadie deu um grito e se ajoelhou com dificuldade até ficar de pé. Depois observou como Eric se apressava a examinar o bosque com a lanterna procurando Faol.

     — Onde está o dono do cão? — Perguntou-lhe, voltando a dirigir a lanterna para ela.

     — E… Está morto.

     — Não, eu o vi te tirar nos braços da água. A quem dava por morta foi você.

     Lançou o raio de luz sobre seu corpo.

     Sadie soltou um grito afogado ao tempo que tentava recuar, mas o puxão do cabelo a freou em seco.

     — Foi você o que disparou? Mas por quê? — Gritou, lutando para soltar-se.

     Ele a segurou mais forte.

     — Apontava ao MacKeage. Queria tirá-lo do meio.

     — Tirá-lo do meio para que? — Sussurrou ela, que agora se mantinha muito quieta.

     — Distraía-te de sua busca do ouro. Acertei você por engano. — Disse ele, lhe dando um brutal puxão do cabelo.

     — Só me roçou; por isso levo a bengala. — Assinalou o cajado que estava no chão, junto à barraca de campanha — Mas a bala pegou Morgan, que gastou as forças que ficavam de me pôr a salvo.

     — Se MacKeage tivesse morrido, não estaria aqui, estaria no povoado. — Voltou a puxar o cabelo dela. — Onde ele está?

     — Vai… Tá, não está morto… Mas está ferido. Deixei-o bem escondido junto ao arroio e vim procurar o telefone para chamar pedindo ajuda.

     — O telefone não está em sua mochila, Quill; comprovei-o.

     — Tem que estar. — Sadie se soltou de seu puxão, agachou-se junto à mochila e fingiu procurar o telefone. — Sei que está aqui.

     De novo Eric a colocou direita de um puxão.

     — Não, não está aí. E sua faca tampouco; agora a tenho eu. E também tenho o jornal, com a página que assinalou. — Soltou-a e tirou o revólver do cinturão. — Encontrou o ouro, não é? Ali é onde está MacKeage agora.

     — Não, não; não encontramos nada. De verdade, ele está ferido.

     Ele deu um empurrão para o lugar por onde ela tinha chegado.

     — O jornal indica que o ouro está ao norte daqui, assim vamos vê-lo.

     Sadie se inclinou, agarrou a bengala de Daar e fingiu usá-la para poder caminhar. Depois de jogar uma última olhada por cima do ombro para onde tinha desaparecido Faol e rezar para que o lobo não estivesse ferido gravemente, começou a coxear de volta para o arroio.

     Embora pondo rumo um pouco ao noroeste de onde estava o Padre Daar.

     — Por que faz isto? — Perguntou a seu chefe. — Eu quero que abra este parque tanto como você. Teria te dado o ouro de Jedediah assim que tivesse encontrado.

     Eric riu.

     — O parque não me importa, Quill. De acordo, tirarei uma considerável quantidade de dinheiro de minha terra quando fique em marcha, mas prefiro muito mais encontrar o ouro. Por que diabos acredita que convenci ao consórcio para que te contratasse?

     Sadie se deteve e deu a volta para olhá-lo.

     — Disparou em Morgan por causa de um ouro que talvez nem sequer exista? Está maluco?

     Ele enfocou o feixe de luz de sua lanterna para o caminho que ficava atrás e depois lhe deu um empurrão com ela para fazer que se movesse outra vez.

     — Meu bisavô não estava maluco. — Disse, sem deixar de caminhar atrás e de examinar o bosque com a luz. — Só com o ouro que Plum levava ao morrer, o velho Levi Hellman abriu a loja que levo agora.

     — Seu bisavô? Foi ele… Quem assassinou Jedediah?

     Eric deu de ombros.

     — Quem diabos sabe? E a quem isso importa agora? Só sei que os Hellman herdaram uma quantidade considerável de dinheiro há oitenta anos, e que em nossa família circulam histórias que especulam sobre sua procedência. E, além disso, acredito que seu pai tinha ouvido esses rumores também; por isso nunca falava comigo de sua busca do ouro. E isso que sei que estava perto de consegui-lo quando o fogo destruiu toda sua investigação.

     — Como sabe?

     — Sei que tinha o jornal de Jean Lavoie; vi a fotocópia.

     — Quando?

     — Na noite do incêndio. — Em sua voz baixa havia um tom de aborrecimento. — E se sua irmã não tivesse me pegado o teria roubado.

     Sadie se voltou outra vez e cambaleou para trás quando ele se chocou com ela.

     — O que está dizendo?

     Mal distinguia a careta de desprezo de Eric ao resplendor da lanterna.

     — Estou dizendo que sua irmã não morreu queimada no incêndio, Quill; já estava morta.

     Dando um alarido de cólera, Sadie arremeteu contra ele com uma mão crispada como uma garra e, na outra, a bengala elevado para golpeá-lo. Caíram rodando ao chão, e enquanto lutavam, ela tentou alargar a mão para agarrar o revólver, mas ele lhe deu um golpe com a lanterna a um lado da cabeça e, por um momento, deixou-a aturdida.

    Com o revólver de novo na mão, Eric rodou até ficar de pé e deu um chute em Sadie. Depois, como se nada tivesse ocorrido, prosseguiu:

     — Depois do incêndio passei cinco anos tentando convencer Frank de que reatasse a investigação, mas tinha perdido sua paixão pela busca; nem sequer quis me contar onde tinha encontrado o jornal quando fiz alusão a ele. Não o comentei abertamente porque, em teoria, eu não devia saber que ele o tinha.

     Sadie se levantou apoiando-se nas mãos e os joelhos, com a bengala agarrado no punho.

     — Então, como descobriu? — Perguntou.

     — Só sabia que Frank tinha encontrado algo importante. Seu pai estava impaciente para que voltasse da universidade e não cabia em si de contente.

     Mais à frente do feixe de luz da lanterna, Sadie deu uma olhada assassino.

     — Então invadiu nossa casa e tentou roubar o que tinha encontrado!

     Eric assentiu.

     — Mas então Caroline entrou no estúdio. Sim, você deixou uma vela acesa, Quill. — Acrescentou em tom zombador. — E sua irmã ia cobrir suas costas. Mas lutamos, e assim foi como se iniciou o incêndio. Derrubamos a vela, e o jornal do Lavoie se queimou antes que eu pudesse agarrá-lo.

     Sadie ficou de pé e Eric deu um precavido passo para trás ao tempo que elevava o revólver.

     — É um assassino. — Disse ela em voz baixa. — Matou a minha irmã e ontem tentou me matar!

     Entreviu apenas que ele meneava a cabeça enquanto, em tom incrédulo, perguntava:

     — Não, a quem apontava era Morgan MacKeage. Por que diabos ia querer te matar? Você é a única conhece este vale.

     — E agora, além disso, sei que é um assassino.

     Ele assentiu.

     — Isso já não importa. Onde está o ouro?

     Nesse momento, Sadie compreendeu que Eric tinha intenção de matá-la e, também, que precisava ganhar tempo até que chegasse Morgan. Sem dúvida, teria ouvido os disparos.

     — Então, onde encontrou realmente esse jornal que me deu?

     Em tom um pouco desenquadrado, ele voltou a rir.

     — Durante oito anos revirei todos os museus do estado, mas esses idiotas dos Doam as arrumaram para encontrá-lo primeiro. No inverno passado entraram na loja gabando-se de que tinham o mais parecido a um mapa… E então foi quando comecei a fazer planos para te trazer aqui outra vez.

     — Por que não se limitou a fazer um trato com Dwayne e Harry?

     Eric se mofou, ao tempo que balançava o revólver no ar.

     — Com esses? Entre os dois não reúnem nem um cérebro completo!

     — Pois encontraram o jornal.

     — E eu encontrei a forma de tirá-lo deles. Bom, Quill, onde está o ouro?

     — Não existe! — Respondeu ela. — Já olhei toda esta ladeira da montanha e encontrei o escarpado do que se fala no jornal, mas ali não há nada.

     — Está mentindo.

     Deu um ameaçador passo para Sadie; à luz da lanterna, sua cara estava crispada em uma careta de ira.

     Ela recuou um pouco e se apressou a corrigir:

     — Mas que encontrei areias de ouro em um arroio, perto daqui.

     Ele se deteve e ficou calado uns segundos; tentava decidir se acreditá-la ou não. Sadie elevou a bengala em um gesto de súplica e com a outra mão procurou algo no bolso. Devagar tirou uma pepita e a mostrou para que a visse.

     Depois, com um tom que ocultava a cólera que sentia, disse:

     — Isto é o que encontrei. — Passou-lhe a pedra. — É grande, Eric, então deve estar perto do lugar de origem. Provavelmente seria rico se lavasse com bandeja as areias desse arroio. Não acredito que haja uma mina de verdade, Eric; acredito que Jedediah só encontrou esse arroio com areias de ouro.

     Depois de meter a pedra no bolso da camisa, ele agarrou a lanterna e assinalou com ela o caminho.

     — Então vamos, Quill. Me leve.

     Sadie deu a volta e voltou a caminhar em direção ao arroio, ao tempo que pensava freneticamente no que devia fazer a seguir. Onde diabos estava seu marido?

     E aonde podia levar o Eric? Para o rio Prospect, ou para o arroio? Ganharia um par de horas para ver Morgan se aparecia se o levasse ao arroio, passasse o charco, e depois fingiria procurar o lugar exato onde tinha encontrado a pepita.

     Estreitou a bengala de Daar contra seu peito procurando proteção, mas então recordou que, em teoria, era sua muleta; em seguida começou a usá-la como bengala e tentou pensar em como fazer funcionar a magia, sem provocar uma explosão que os mandasse a todos ao outro mundo.

     O que murmurou o ancião sacerdote a bengala quando acendeu o fogo? Para utilizá-lo teria que saber falar com esse cajado… E o único sabia dizer em gaélico era “ouriço”.

    

     Morgan ouviu disparos ressoando montanha abaixo e levantou a cabeça. Não procediam de onde Mercedes devia estar esperando-o a salvo, mas sim do antigo acampamento madeireiro; o lugar ao que provavelmente tinha ido.

     Sabia que não ficaria quieta.

     Dirigiu o olhar montanha abaixo, ao lugar por onde Grei e Callum tentavam levar a tudo o que rondasse pelo bosque para que se dirigisse para ele. O mais provável era que se encontrassem a uns três quilômetros ainda. Quanto ao Ian, apostou-se no rio para proteger a retaguarda de todos eles.

     Com a testa coberta de um repentino suor, Morgan abandonou seu posto e começou a correr rio acima, para o acampamento madeireiro, com a esperança de deter o que tinha realizado os disparos.

        

     Quando por fim chegaram ao arroio, Sadie começou a falar de novo com Eric, desta vez em voz bastante alta. Confiou em que sua voz advertisse Morgan de sua presença e de que não estava sozinha.

     Esperava que seu marido tivesse ouvido os disparos. Uma hora era tempo suficiente para que corresse a seu resgate, não?

     E ainda estava preocupada com Faol. Teria recebido o lobo uma ferida mortal? Teria morrido…? Ou estaria seguindo-os em silêncio?

     — Como demônios encontrou o acampamento madeireiro? — Perguntou, sem deixar de caminhar com sua fingida claudicação, em uma tentativa de ganhar tempo.

     — Com aquela mochila que recolheu no domingo. — Respondeu Eric. — Costurei um transmissor no fundo.

     Sadie se deteve e olhou para trás.

     — Um transmissor?

     — Vendo-os para os cães de caça. — Deu-lhe um empurrãozinho no ombro para que não se detivesse. — Têm mais de três quilômetros de cobertura.

     — Mas por que, Eric? Por que me deixou sozinha durante dez semanas e logo depois, de repente, começa a se intrometer?

     — Porque chegaram os Doam. Além disso, inteirei-me de seu encontro com MacKeage e eu não gostei da distração que ele faria a você, assim decidi que era hora de intervir.

     — E por que saquear minha cabana? Foi você, não é?

     — Porque como sempre leva um jornal, esperava que tivesse tomado notas do jornal de Lavoie. Aquele dia que te levei as fotos, ia buscá-lo.

     Por fim chegaram ao arroio. A ira que Sadie experimentava por ver-se forçada a caminhar e falar tranqüilamente com o homem que tinha assassinado a sua irmã ameaçava transbordar. Mas se deteve junto à água, deu a volta e se obrigou a manter-se calma.

     Sem alterar o tom de voz, usou a bengala de Daar para assinalar o riacho.

     — Já chegamos — Disse. — Aqui foi onde encontrei a pepita.

     Eric examinou a leve ondulação da água com a luz da lanterna.

     — Onde? — Perguntou.

     Sadie ouviu que a água se agitava ao passar pela brusca queda de um afloramento rochoso e assinalou para aquele lugar.

     — Bem ali acima — apontou. — Há uma diminuta cova que forma um redemoinho bem debaixo dessa saliência, e o fundo está coberto de pedras de ouro.

     Enquanto o conduzia para o pequeno redemoinho, em um dado momento se voltou para que ele não a visse meter a mão no bolso e agarrou um punhado de pepitas; com elas na mão, dirigiu-se a borda do pequeno charco que ficava por cima da cascata.

     Por cima do ruído da água que caía, gritou:

     — Ali! — Nesse mesmo momento jogou as pepitas na água revolta. — Enfoca a luz ali, no redemoinho!

     Como esperava, Eric jogou um último olhar cauteloso a seu redor e meteu o revólver no cinturão. Depois subiu com dificuldade pelas rochas arredondadas que se sobressaíam da água até chegar a borda do redemoinho e iluminou a poça com a lanterna.

     Umas imprecisas partes de ouro lhe devolveram a cintilação.

     Sadie se afastou um pouco para internar-se no negrume do bosque, mas se deteve quando Eric voltou a lanterna para ela.

     — Desça aqui! — Disse. — Segure a luz!

   Ela deu uma olhada a seu redor, suspirou e foi junto de Eric. Onde diabos estava seu marido? Talvez ela tivesse se colocado naquela confusão bobamente, mas em teoria era Morgan quem devia tirá-la.

     Ficou de cócoras junto ao Eric, mas mal tentou lhe passar a lanterna, Sadie agarrou a bengala de Daar e bateu com ela nas costas dele, pondo no golpe toda a força de sua ira. Imediatamente o ouviu chapinhar no charco enquanto tentava voltar a levantar-se, e então pôs-se a correr. Ele gritou que parasse, mas Sadie continuou correndo até que soaram os disparos e a casca de uma árvore explodiu a seu lado. Nesse instante se deteve e, devagar, deu a volta. Eric estava de pé no charco, jorrando água pelo cabelo e a roupa; a luz da lanterna cintilou no cano do revólver. Então engatinhou a arma para disparar de novo e a apontou ao peito.

     Sadie assinalou as pepitas havia na água.

     — Espera, menti. Isto não é nada. — Disse. — Rio acima há muito mais ouro… Mas está escondido. Mostrarei onde.

     Eric ficou calado vários segundos; depois, de repente, balançou o revólver.

     — Então, vamos. Mas se voltar a correr, Quill — acrescentou com um grunhido enquanto saía do charco. — Não falharei.

 

     Na frente de Eric, Sadie avançava para o charco mágico. Esperava que, uma vez ali, o Padre Daar e suas palavras em gaélico obteriam que a bengala fizesse algo mágico para salvá-los.

   Onde estava Morgan, Callum e outros? Por que não estava a montanha repleta de guerreiros, maldição?

     De repente, Sadie viu o resplendor da gruta diante ela e soltou um suspiro de alívio.

     — O que é essa luz? — Perguntou Eric de trás.

     — Deve ser que se aproxima o amanhecer.

     — Estamos na ladeira oeste da montanha. — Replicou ele. Ficou ao seu lado e olhou por entre as altas árvores. — O sol demorará horas em chegar aqui.

     — É uma catarata muito alta; ouve-a, Eric? Levanta uma bruma que devem roçar os raios do sol e que filtra a luz para baixo.

     Conduziu-o através das árvores até que chegaram a borda da poça, grande e reluzente. Com dissimulação, procurou o sacerdote com o olhar; não havia nem rastro dele.

     De repente o viu do outro lado do charco, justo à esquerda da catarata: estava puxando com frenesi um ramo de uma cerejeira. Imediatamente Sadie conduziu o Eric ao lado direito do charco e começou a falar em voz alta para advertir ao ancião de sua presença.

     — Já verá, Eric, todo o chão da cova está coberto de pepitas de ouro!

     Nesse momento, viu que o Padre Daar se endireitava como um raio e dava a volta para olhá-los. Ato seguido, o ancião sacerdote se agachou atrás da árvore e, sem fazer ruído, ficou a puxar de um ramo traseiro.

     Eric se deteve e elevou a vista para os muito altos escarpados que os rodeavam.

     — Onde está, Quill? — Perguntou. — Onde está o ouro?

     — Está ali, escondido atrás da catarata. — Com a bengala assinalou o lado contrário do charco. — Passa atrás dela.

     Ele deu um empurrãozinho para frente com o revólver.

     — Vai você primeiro.

     Sadie se apoiou pesadamente na bengala.

     — Não posso mais. — Disse. — Me deixe descansar aqui um momento.

     Começou a sentar-se, mas Eric a agarrou por braço e a arrastou atrás de si. De repente, soou um forte estalo procedente do lugar onde estava Daar, e Sadie observou com horror como o ramo de que estava puxando o ancião se soltava e lhe caía em cima.

     Com gesto rápido, Eric dirigiu o revólver para o sacerdote enquanto, em tom indignado, perguntava:

     — Quem diabos é esse?

     Sadie lhe golpeou a mão com a bengala, mas ele não soltou o revólver, deu a volta rapidamente e fez que ela perdesse o equilíbrio. Ao mesmo tempo, um rugido irado brotou do lado mais baixo do charco… E Sadie viu Morgan, de pé com a espada na mão, na entrada da gruta.

     Diante dele estava Faol, com os cabelos do lombo arrepiados e mostrando os dentes. Do peito, onde a bala de Eric o tinha roçado, gotejava-lhe sangue, mas a ferida não impedia que o lobo fosse capaz de atacar.

     Eric rodeou o pescoço de Sadie com o braço e começou a recuar puxando-a, colocando-a mais fundo no charco. Depois lhe aproximou o cano do revólver à cabeça.

     — Matarei-a, MacKeage! — Gritou. —Aproxime-se devagar pela sua direita para a parede do escarpado!

     Com o joelho, Morgan empurrou Faol para a direita enquanto gritava uma ordem:

     — Tàs ás.

     Ao uníssono, ele e o lobo se moveram para o escarpado.

     Nesse momento também se ouviu a voz do Padre Daar.

     — Recorda a magia, garota!

     Eric, que tinha esquecido do sacerdote, voltou-se, fazendo Sadie dar a volta com ele.

     Daar a assinalou com o dedo.

     — Usa-a!

     Ao tempo que a fazia girar bruscamente de novo, Sadie ouviu um grunhido e um disparo que soou junto a sua cabeça. Deu um grito ao ver que Morgan, que corria para ela espada em alto, dobrava-se pela metade e caía ao chão. Então Faol , que deu um salto da bordo do charco. Eric recuou e voltou a disparar.

     Sadie lhe golpeou várias vezes nas costelas com a bengala, lutando para soltar-se e chegar até Morgan.

     — Não! — Gritou.

     A investida de Faol fez que os dois perdessem o equilíbrio, o que bastou a Sadie para poder afastar Eric de um empurrão e dirigir-se com esforço até a borda da poça. Justo ao chegar junto a seu marido soou outro disparo, e uma bala ricocheteou na terra ao lado a eles. Nesse instante Morgan rodou pelo chão rapidamente enquanto puxava Sadie e tirava a bengala de sua mão.

     Ao deter-se, ajoelhou-se, mantendo Sadie a suas costas. Com uma mão agarrou a bengala e com a outra, coberta de sangue, apertou um lado. Então elevou o cajado por cima da cabeça, assinalou o Eric com ele e gritou algo em gaélico.

     De repente, o brilho cegador de um raio sulcou o ar e tingiu a bruma com um arco íris de cores. A terra começou a tremer sob seus pés, os escarpados começaram a ranger e a retumbar, e grandes pedaços de granito se arrancaram das muito altas paredes e caíram na água com estrondo, levantando enorme quantidade de água.

     O revólver de Eric disparou várias vezes mais. Nesse momento a luz cruzou, girando a gruta, e Sadie deixou de ver seu chefe quando de entre a bruma saíram umas espirais negras que o rodearam e ficaram a rodeá-lo.

     Sadie gritou, sem entender o que ocorria.

     Enquanto isso Morgan continuava falando com gritos, e a bengala que tinha na mão continuava jogando faíscas de cegadora energia. A montanha rangeu mais forte e tremeu com violência, como se tentasse livrar-se daquele caos. Os enormes blocos de granito caíam ao redor deles, e as árvores arrancadas desabavam com enorme estrépito, fazendo vibrar a terra com estremecimentos de agonia.

     De repente frios dedos negros, manchados com o fedor da morte, passaram junto a Sadie e formaram redemoinhos diante dela; o clamor de sua fúria fez que lhe doessem os ouvidos. Durante um cegador instante viu com claridade Eric: corria para onde havia dito que estava o ouro, enquanto aqueles dedos, crispados, que ameaçava arrastá-lo, o perseguia. Então o ouviu gritar…

     E também ouviu seus próprios gritos. Depois ouviu a reverberação da montanha enquanto caía com estrépito em torno deles.

     Morgan se voltou, empurrou-a e lhe disse que corresse. Mas Sadie não podia mover-se.

     Então ele se lançou sobre ela, e seu impulso fez que ambos fossem parar contra uma grande parte caída da parede de granito; cobriu-a com seu corpo enquanto por toda parte prosseguia a chuva de pedaços de rocha e terra, com uma força tão implacável que ela já não ouviu seus próprios gritos. De repente o ar explodiu com o trovejar de um estampido sônico, e em um segundo a bengala que Morgan tinha na mão soltou um lúgubre suspiro e, sem mais, desfez-se em cinzas.

     De repente, o caos parou.

     Em seu lugar apareceu o silêncio. O ar estava calmo, a terra já não retumbava, e o som da catarata tinha cessado.

     A tênue luz do amanhecer apontava sobre o topo da montanha Fraser. Sadie piscou e olhou mais à frente do ombro de Morgan. Por todos lados se viam destroços, como se tivesse produzido uma erupção vulcânica. Uma fossa funda e enorme, de várias centenas de metros, abriu-se na montanha, e os abruptos escarpados que antes formavam a gruta agora jaziam caídos, formando um amontoado. A catarata tinha ficado enclausurada; o ouro e quase toda a poça estavam profundamente enterrados sob as rochas. As árvores gigantescas, a maioria arrancadas, alguns ainda em pé, mas com as copas truncadas, cobriam o chão como se fossem palitos de dentes que alguém tivesse descartado.

     A destruição era absoluta.

     Sadie agarrou Morgan pelos ombros e, depois de conseguir escapar de seu corpo ficou a seu lado e o sacudiu.

     — Morgan! — Gritou — Morgan! Responda-me!

     Ele tinha um corte na cabeça, mas em seu flanco fervia o vermelho borbulhar do sangue que saía do único e diminuto buraco que havia feito a bala de Eric. No chão, debaixo dele, havia mais sangue, que se estendia até lhe empapar toda a camisa e descia pelas calças.

     Tinha os olhos fechados e a respiração superficial. Sua cara tinha a palidez da morte.

     Sadie alargou as mãos para empurrar as rochas que seguravam as pernas de Morgan, e gemeu de frustração quando não conseguiu que se movessem.

   Nesse momento o Padre Daar se aproximou dando tombos e se ajoelhou junto a eles.

     — Faça algo! — Gritou-lhe Sadie. — Use sua magia!

     — Não posso! — Espetou Daar como resposta, ao tempo que a ajudava a empurrar. — Toda a magia se esgotou neste desastre.

     Sadie se deu conta de que a espada do Morgan estava ao seu lado, assim que a agarrou e a usou para fazer alavanca nas rochas.

     De repente, com uma sacudida que lançou Sadie e o sacerdote para trás dando tropicões, a espada se partiu. Sadie levantou o punho que ainda sustentava na mão e cravou os horrorizados olhos no que tinha feito.

     — Ai, Meu Deus! Quebrei sua espada!

     Voltou a endireitar-se como pôde e se ajoelhou para tomar a face de Morgan entre as mãos.

     — Resiste, meu amor. — Sussurrou, ao tempo que aproximava os lábios à orelha. Ao ver que não respondia, sua voz se transformou em uma ordem. — Resiste!

     De repente, viu-se agarrada pelos ombros e afastada com tanta força que nem sequer pôde dar um grito. Um gigante, alto, de cabelo escuro e com os olhos exatamente da mesma cor que os de Morgan, ocupou seu lugar; o desconhecido ficou junto à cabeça de seu marido e lhe passou uma grande mão pela face.

     — Tiraremos ele daqui a um momento — Disse.

     Mal acabadas de pronunciar essas palavras, o gigante aproximou o ombro da maior das duas rochas arredondadas que aprisionavam Morgan.

     Imediatamente apareceu Callum, que se apressou a empurrar também. Os dois grunhiram, esforçaram-se e amaldiçoaram. Enquanto isso, sentada no chão, Sadie pôs os pés debaixo das mãos dos homens para acrescentar sua força, e até o Padre Daar colaborou pondo pedras menores para segurar a rocha quando esta se movia.

     O desconhecido se deteve recuperar o fôlego e estudou com cuidado a situação. Depois rodeou a rocha e começou a trabalhar na parte de atrás, tirando do meio as pedras menores. Callum procurou um ramo sólido e resistente e com ele fez alavanca contra a rocha; de repente se deteve e tirou a ponta quebrada da espada de Morgan.

     — Espero que saiba correr rápido. — Disse a Sadie. — Porque assim que Morgan esteja bem o bastante para levantar-se, irá atrás de você.

     — Ai, por favor, ande depressa! Está sangrando! — Sussurrou ela, e voltando-se para o sacerdote, perguntou. — Não há nada que você possa fazer?

     Tanto Callum como o desconhecido (Sadie se deu conta de que era o irmão de Morgan, Greylen MacKeage) olharam também ao ancião. Devagar, o Padre Daar meneou a cabeça.

     — Meu bastão ficou destruído, e também a catarata. Não sobrou nada.

     Nesse momento apareceu Faol. Coxeando, aproximou-se para lamber a face de Morgan, ao tempo que gemia e batia com a pata à rocha.

     Grei fez gesto de dar um chute no lobo, enquanto em tom áspero dizia:

     — Afaste esse animal dele!

     — Não — Disse Daar. — Só está preocupado por seu filho.

     — Seu filho? — Sussurrou Greylen. Sua face estava como o papel quando voltou os olhos como um raio para o sacerdote.

     Daar se ruborizou.

     — É uma hipótese, MacKeage, mas me parece que Duncan esteve nos visitando este verão. — Disse assinalando ao lobo.

     Os quatro se voltaram para cravar a vista no Faol, que agora os olhava com seus serenos olhos verdes. Em seguida voltou a choramingar e empurrou a rocha com o focinho.

     Greylen e Callum ficaram outra vez a empurrar, e de repente outro grande par de mãos de aspecto forte uniu a eles. Ao levantar a vista, Sadie viu um homem mais velho, de cabelo vermelho e barba grisalha, que empurrava a rocha com todas suas forças, ao tempo que Greylen lhe dizia:

     — Ian, se prepare para puxá-lo assim que haja espaço. — Voltou-se para Sadie e sua voz se fez muito mais áspera. — Mulher, ajude-o!

     Ela se apressou a limpar de pedras e terra o caminho de Ian com o fim de fazer lugar para que tirassem Morgan. Com muito grunhir e muitos palavrões mais, Callum e Greylen voltaram para a tarefa de empurrar. A rocha arredondada se moveu só uns centímetros, mas de repente Ian tirou de um brusco puxão Morgan de sua prisão e continuou arrastando-o até que os pés ficaram livres.

     Sadie se apressou a engatinhar junto a ele e lhe rasgou a camisa para abri-la, as mãos se manchando de sangue.

     De novo, Greylen a agarrou pelos ombros e a afastou com violência.

     — Já lhe fez bastante dano. Tire-a daqui, Daar!

     O irmão mais velho de Morgan emanava tanta cólera que Sadie recuou. Depois de limpar o sangue de seu marido nas calças, voltou-se para Padre Daar.

     — Tem que haver algo que possamos fazer. E a água mágica? O atoleiro que ficou segue reluzindo.

     Devagar, o sacerdote se dirigiu ao atoleiro, agachou-se e colocou o dedo na água; imediatamente elevou a vista para o lugar onde tinha estado quando ela e Eric chegaram, e Sadie seguiu seu olhar. A cerejeira que tinha tentado romper estava estilhaçado em mil pedaços. Então ele voltou a olhá-la.

     — Você chegará ali melhor que eu, moça. — Sussurrou ele. — Vá procurar um nó de madeira de cerejeira naquele desastre. Essa árvore leva mais de dois anos crescendo em água Santa, possivelmente algo da magia tenha ficado oculto nele.

     Sem vacilar, Sadie engatinhou pelas rochas até o lado oposto do que não fazia muito tinha sido uma poça.

     — Busca um nó grande! — Gritou o sacerdote. — Da raiz, se puder!

     Precisou empregar toda sua força, mas ao final foi capaz de soltar um nó das raízes da cerejeira. Então voltou depressa junto ao sacerdote e lhe passou a pequena parte de madeira.

     — Isto é tudo o que encontrei. — Sussurrou ao mesmo tempo em que jogava um inquieto olhar a seu marido.

     Greylen tinha tirado a camisa e a tinha prendido em torno da ferida de Morgan. Agora estava lhe examinando as pernas para ver se tinha ossos quebrados. Sadie voltou a olhar ao sacerdote.

     Este tinha o cenho franzido.

     — Não acredito que seja suficiente. — Meneou a cabeça com tristeza. — Falta a energia da água e de meu antigo bastão. Já sinto que o nó vai perdendo vitalidade.

     — Por favor, temos que fazer algo! Não nos dará tempo de levar Morgan ao povoado!

     Sadie colocou a mão em seu braço, e no instante em que o tocou, Daar abriu muito os olhos com gesto de surpresa. Então lhe tampou a mão com a sua e de repente esboçou um sorriso.

     — Está dentro de você, garota! — Exclamou com voz cheia de assombro.

     Voltou-se para olhá-la de frente e a tocou com as duas mãos, ao mesmo tempo em que lhe apoiava o nó de cerejeira contra a pele.

     — Sim tem magia, e está aqui, em você, — Disse virando a palma da sua mão direita para cima.

     — O que quer dizer?

     — Quando se curou — disse o ancião, enquanto lhe esfregava com o dedo na palma sem cicatrizes — O nó de madeira se desfez porque sua energia entrou em você.

     — E… E posso enviá-la para fora?

     O ancião a olhou nos olhos.

     — Sim — Disse. — Sim, pode.

     — E posso curar ao Morgan?

     — Sim, acredito que seria possível.

     Sadie não precisava saber nada mais. Levantou-se de um salto, correu junto a seu marido e, para abrir caminho, deu um empurrão no irmão do Morgan. Mas Grei se levantou, agarrou-a pelos ombros e a sacudiu.

     — Já fez bastante! — Espetou-lhe.

     — Pois posso fazer mais! — Gritou enquanto lhe dirigia um olhar direto e feroz. — Tenho a magia de Daar dentro de mim!

     Ele a soltou como se queimasse, afastou-se e olhou ao sacerdote, que tinha aproximado e estava já junto a eles.

     O ancião assentiu.

     — É certo, MacKeage — Confirmou. — Seu irmão a curou com minha própria magia, e ela leva a energia de meu bastão em seu corpo.

     Greylen parecia debater-se entre a vontade de acreditar que aquilo fosse possível e a vontade de não deixar que ela se aproximasse de seu irmão.

     — Por favor, leva-o a água! — Suplicou-lhe Sadie.

     Depois de tirar o pequeno nó de cerejeira de Padre Daar, começou a aproximar-se ao atoleiro.

     — Pelo menos me deixe tentá-lo. — Acrescentou, enquanto lhe estendia a mão. — É… É meu marido!

     O Padre Daar voltou a assentir.

     — Sim, MacKeage, eu mesmo os casei ontem.

     Greylen deu uma olhada aos destroços que havia em torno deles e depois baixou o olhar até seu irmão moribundo. Então se agachou para pegá-lo nos braços e o levou até o pequeno atoleiro de água. Em silêncio, Callum e Ian foram atrás. Faol trotou até adiantar a Sadie, rodeou o atoleiro e se deitou dando um gemido, com o focinho tocando a água.

     Sadie se meteu no atoleiro e se sentou. Depois abriu os braços para receber Morgan. Com suavidade, Greylen o acomodou em seu colo.

     O Padre Daar se aproximou e ficou em cócoras junto a ela.

     — Só há um problema, Mercedes. — Sussurrou.

     Greylen, Callum e Ian se inclinaram para ouvir o que dizia o sacerdote.

     — Qual? — Perguntou ela, não se importando que os outros o ouvissem.

     — A magia… Bom… Não sei o que acontecerá a você quando a entregar ao seu marido.

     Sem hesitar, Sadie o olhou nos olhos.

     — Voltarei para momento em que me dispararam?

     O Padre Daar assentiu com gesto vacilante.

     — Sim, é possível… Embora a verdade seja que não sei. — Deu de ombros. — Não posso prognosticar o que fará a energia ao passar através de um mortal.

     Sadie se deu conta de que os três homens que estavam de pé continham a respiração, esperando sua decisão. Ignoravam que, simplesmente, não havia nenhuma decisão que tomar. Dava-lhe igual morrer sangrando ali mesmo, naquele atoleiro: não ia deixar que Morgan morresse.

     Agarrou o nó de cerejeira e o sustentou contra o peito de seu marido, enquanto com a outra mão lhe afastava o cabelo da face.

     — Não, jovenzinha, sustento o nó de madeira com a mão direita. — Ordenou então o Padre Daar. — Assim terá uma energia mais potente.

     Sadie obedeceu, mas vacilou e o manteve um pouco separado de Morgan.

     — O que acontecerá? — Sussurrou. — Como sei que não o matarei? Olhe o que ocorreu a este formoso lugar quando Morgan pegou sua bengala. E se só consigo criar mais destroços?

    Antes que acabasse de formular sua pergunta, o Padre Daar já meneava a cabeça.

     — A madeira só é condutora de energia, Mercedes. Quando pegou a bengala, Morgan estava desesperado e zangado, e o que a magia fez cair sobre nós foi sua ira. Mas você deseja algo bom, de modo que não o matará.

     Sadie pôs o nó de madeira de cerejeira sobre a ferida de seu marido, fechou os olhos e desejou com todo seu coração que se curasse.

     De repente, a palma de sua mão direita começou a esquentar-se. Um arco de luz a rodeou e lhe encheu a cabeça de cores. Sadie começou a tremer enquanto todo seu corpo se esticava com um formigamento de calor. Ouviu correr o sangue por suas veias, sentiu-o descer pulsando por seu braço e chegar até sua mão, cheirou o aura de ozônio que de repente flutuava a seu redor.

     Então lhe revolveu o estômago. Teve a impressão de que as costas ardiam, e aquele intenso calor lhe atravessou a cintura como um raio. Uma aguda pontada de dor percorreu seu braço esquerdo, e pareceu que os pulmões e as costelas tinham sido esmagados.

     Sentia que lhe queimava a carne; quase a cheirava.

     Nesse momento uma mão tocou seu ombro, e escutou uma voz que sussurrava ao ouvido. Era o sacerdote, que de muito longe lhe ordenava:

     — Envia a ele, Mercedes! Agora! Envia a energia a Morgan!

     Sadie se concentrou em mover o calor. Com força, sustentou a palma da mão contra o lado de Morgan e colocou o nó de madeira na ferida. O fogo lhe atravessou o corpo como um raio, e seus músculos tremeram. Esforçou-se por não perder o sentido e por manter a energia fluindo para seu marido.

     E então devagar, muito devagar, os batimentos do coração de Morgan se fizeram mais fortes.

     Aquilo a fortaleceu.

     Sadie concentrou seus pensamentos. Em sua mente imaginou-o são, viu-o rindo e radiante com o fogo da paixão quando fazia amor. Viu-o nadando nu no lago; sentiu sua paciência, inclusive quando estava zangado com ela… E o ouviu chamá-la gràineag em um tom carinhoso…

     E então, Sadie lhe enviou seu amor.

     De repente, aquela luz verde que se desapareceu sob a devastadora tempestade brilhou e vibrou em torno dela, lançando faíscas que se voltaram de um branco resplandecente antes de voltar a adotar o tom suave da cor da pícea invernal.

     E de repente ouviu o sussurro da voz de Morgan.

     — Tive um sonho…

     Sadie puxou a manga de sua camisa até tampar a mão direita. Depois lhe afastou o cabelo da face enquanto o olhava sorrindo.

     — Viu a sua mãe e a seu pai? — Perguntou-lhe em voz baixa.

     — A minha mãe. — Respondeu ele. — Meu pai não estava ali.

     “Porque está aqui”, pensou Sadie ao tempo que olhava às escondidas o lobo, que agora tinha o focinho apertado contra o braço de Morgan.

     — Tenho muitíssimo sono, esposa. — Murmurou Morgan, fechando os olhos.

     Ela acariciou o peito riscando reconfortantes círculos com a mão.

     — Então dorme, marido. — Sussurrou. — E que saiba que te amo.

 

     De uma rocha, em meio da gruta destruída e deserta, Daar deu uma olhada feroz aos entulhos; eram conseqüência da tentativa desesperada de Morgan por salvar a vida a sua esposa.

     Embora, pelo visto, nem toda a magia tinha desaparecido: seguia sentindo algo que vibrava brandamente e carregava de energia o ar. O mago deu um chute às lascas de cerejeira que havia a seus pés. Talvez um raminho de alguma das árvores que cresciam ali tivesse escapado à destruição, mas não localizava a ditosa fonte daquele zumbido.

     Cansado, sentou-se em uma das rochas menores e cravou o olhar nas marcas que tinha deixado Morgan. Quando despertou de seu sono e lhe disseram que Mercedes tinha fugido, o guerreiro não foi às nuvens como todos esperavam. Limitou-se a ficar de pé, olhou fixamente os destroços que tinha provocado e perguntou o que tinha acontecido a Eric Hellman.

     Em silêncio, Greylen lhe assinalou os restos do que tinha sido o escarpado, empilhados ao fundo do que recentemente tinha sido o charco. Então Morgan se aproximou, tirou do meio umas quantas rochas e ficou a cavar até reunir uma pequena pilha de pepitas de ouro. Depois atou as pipitas com sua camisa, escalou o monte de entulhos e, usando sua notável força, rematou a destruição. Por último, depois de desencadear uma definitiva avalanche de rochas sobre a tumba de Hellman, sacudiu as mãos e partiu.

     Daar seguiu procurando o pequeno indício de magia que parecia ter sobrevivido. Necessitava de um bastão novo, e queria encontrar um ramo naquele lugar. A madeira de cerejeira que crescia ali tinha absorvido a energia mágica das águas procedentes da lacuna de alta montanha: era madeira bendita. Uma bengala procedente dali seria muito mais fácil de adestrar.

     Naquele momento, queria uma bengala mais que nunca. Não gostava de encontrar-se sem poderes se tinha que se dirigir aos MacKeage; para simples mortais, demonstravam ser bastante poderosos.

     De repente, apareceu Faol. Aproximou-se a trote a um dos pequenos atoleiros que ficavam e, sem pressas, durante vários minutos bebeu água a lambeduras antes de elevar a cabeça e olhar fixamente a Daar.

     — Duncan, velho briguento. — Disse o sacerdote sem dureza. — Seus filhos procuraram boas vidas aqui; já não tem por que ficar.

     Um grunhido retumbou no peito de Faol, que se voltou e começou a subir pelos entulhos. Por um instante se perdeu de vista, mas não demorou para voltar a aparecer mais longe, justo à direita do Daar; no focinho levava uma vara de meio metro aproximadamente.

     O ancião deu um grito de surpresa, levantou-se de um salto e se apressou a subir com trabalho pelos entulhos para alcançar ao lobo.

     — É meu velho bastão! — Gritou. — A metade que Grei atirou faz dois anos! Dê-me isso.

     O lobo se dirigiu trotando para o vale, e Daar o seguiu com movimentos torpes.

     — Ouça! Volta aqui, condenado animal! — Gritou. — Esse é meu bastão!

     Meneando a cauda como uma bandeira vitoriosa, Faol apressou o passo e seguiu pelo tortuoso e agora seco leito do arroio, ao tempo que levava no focinho o bastão de Daar como se fosse um troféu de guerra.

     O ancião mago correu até ficar sem fôlego, mas ao ver que não podia seguir, inclinou-se, ofegando de cansaço, com as mãos apoiadas nos joelhos. Alegrava-se muitíssimo de que seu velho bastão tivesse sido capaz de saltar pela catarata e escapar antes que esta se fechasse… Mas também estava frustrado porque continuava estando fora de seu alcance.

     Nesse momento, ouviu um uivo que subia para ele ressoando pela parede do vale em exasperantes ecos triunfais.

     Então se sentou em um tronco próximo, puxou o branco colarinho da batina e desabotoou três botões. Pelos pregos de Cristo, estava acabando sua paciência; seguia sem recuperar sua magia.

     Consternado, meneou a cansada cabeça. Fazia mais de mil e quatrocentos anos que tinha aquele velho bastão; seu mentor o dera quando ele não era mais que um jovem de setenta e nove anos… E em dois anos, os MacKeage conseguiram não só para acabar com ele, mas também com o novo bastão que estava adestrando para Winter, a filha ainda não nascida de Greylen e Grace.

     E, além disso, agora um lobo mal intencionado levava o único ficava de sua magia. O que ia dizer exatamente a Winter, a sétima filha de Grei, quando fosse a ele, já de adulta, pronta para se transformar-se em maga?

     Depois de recuperar quase todas suas forças, Daar se levantou por fim. Necessitava aquela parte de meio metro de seu velho bastão. Além disso, Faol não poderia levá-la consigo quando retornasse ao lugar de que procedia; os espíritos cruzavam a soleira, mas as coisas materiais não.

     O ancião mago lançou um desalentado suspiro cheio de autocompaixão, deixou de perseguir o lobo e começou a caminhar para a casa de Michael MacBain. Enquanto procurava o velho bastão, talvez fosse hora de conhecer melhor MacBain e a seu filho pequeno. Estava decidido a encontrar sua antiga bengala, mas, até então, não se aproximaria nem em brincadeira aos MacKeage.

    

     Sadie demorou duas horas em chegar ao acampamento madeireiro. A cada passo sentia falta da bengala do ancião sacerdote, não por sua magia, mas sim porque a ajudava a caminhar.

     Tinha fugido dos MacKeage e de Padre Daar como um ladrão. Não queria voltar a enfrentar-se à cólera de Greylen… E, certamente, sentia-se muito covarde para enfrentar Morgan quando este despertasse.

     Graças a ela, aquele formoso cânion que ele se esforçava tanto em proteger estava absolutamente destruído. Morgan lhe revelou sua situação e sua magia para salvar sua vida, e depois o tinha destruído para lhe salvar a vida pela segunda vez.

     E, em troca, ela não tinha nada que lhe oferecer; nem sequer sua beleza, da que tanto tinha desfrutado ele na tarde anterior, quando faziam amor.

     Até o ouro estava já fora de seu alcance.

     Embora daquilo se alegrasse.

     Morgan tinha razão: o ouro fazia com que as pessoas fizessem coisas terríveis; convertia-os em assassinos.

     Sadie abriu o zíper da barraca de campanha, tirou seu saco de dormir e o atou à mochila que Eric tinha deixado jogada no chão. A mochila, o saco de dormir e a comida lhe permitiriam sobreviver durante uns quantos dias, até que decidisse o que fazer.

    

     Durante todo o dia seguinte, Morgan seguiu sua esposa de forma discreta e esperou com paciência que superasse seu ataque de autocompaixão. Estava ansioso por levá-la a casa para começar por fim sua vida juntos, mas, por ela, mantinha as distâncias no momento; ao que parecia, necessitava tempo para pensar a respeito de todo o ocorrido nos dois últimos dias.

     Assim, de noite se sentou entre as sombras para vê-la dormir.

     Aquela manhã a viu banhar-se, e sua preocupação diminuiu. Temia que a magia que tinha dado para salvar sua vida a despojasse da dela, mas embora visse que as cicatrizes do incêndio voltavam a cobrir seu corpo, em silêncio deu graças a Deus porque o corpo de Mercedes tivesse conservado algo da magia. Ficava o suficiente para que a cura fosse só questão de tempo; em realidade, já tinha recuperado quase todas suas forças.

     Em troca, as cicatrizes que recordavam a morte da metade de sua família permaneceriam em seu corpo para sempre. Ao Morgan não importava, sempre que ela estivesse bem.

     Embora temesse que a Mercedes, sim, importava; tinha sido tão franca com ele naquele dia no charco, depois de que a magia curasse seu corpo… Suspirou e se perguntou se voltaria a sentir-se tão desinibida alguma vez.

     Exigiria que esquecesse seu acanhamento…

     Melhor dizendo, o rogaria.

     Amava-a mais que à vida, e já estava cansando-se daquela peregrinação sem rumo que sua resolvida esposa insistia em realizar. Mas quanto tempo fazia falta para que se desse conta de que seu coração pertencia a ele?

     Acomodou-se melhor contra a árvore, amassou-se mais em sua manta escocesa, seu plaid, e fechou os olhos lançando outro suspiro. Se Mercedes não se repunha logo, teria que lhe dar um empurrãozinho para ver o que conseguia. Havia duas possibilidades: ou sua gràineag escaparia dele a tudo correr… Ou se aproximaria bufando, tratando de lhe bater e soltando sapos e cobras pela boca.

     Esperava com todo seu coração que fosse o último.    

    

     Sadie saiu rodando do saco de dormir, apressou-se a aproximar-se do fogo e o avivou, acrescentando primeiro lenha miúda e depois ramos grandes para que voltasse a flamejar. Depois pôs a amolgada panela cheia de água sobre a churrasqueira e lhe ordenou que se desse pressa em ferver enquanto se esfregava as mãos e as sustentava sobre o escasso fogo.

     Já era hora de deixar de estar zangada. Aquele dia iria ver Morgan e explicaria que não importava o ocorrido: estavam feitos o um para o outro.

     Mas antes devia encontrar os irmãos Doam. Ainda tinha um pouco de ouro no bolso; daria-lhes aquelas pepitas e os comunicaria que não sobrava nada mais.

     Bebeu o café, levantou o acampamento e se dirigiu para o sul pela borda do Prospect. O propósito de esclarecer a Morgan como iam ser as coisas entre eles acrescentava impulso a seus passos.

     Ao cabo de dez minutos se deu conta de que a seguiam. E quando passados outros três minutos reconheceu a quem a espreitava, enrolou-o com uma risada impaciente e o chamou dando palmadas.

     — Vem aqui, rapaz!

     Faol saiu ao caminho a menos de cinco passos na frente, com uma expressão embevecida em seus grandes olhos verdes, a língua pendurando da boca, as orelhas rígidas para frente e movendo a cauda a mil por hora.

     Então Sadie se adiantou e lhe deu uns tapinhas na larga cabeça.

     — Me alegro muito de que esteja bem — Disse.

     Depois continuou pela borda do Prospect com seu silencioso companheiro de viagem, até que por fim chegou a um lugar onde uma grande canoa verde estava cheia de coisas. Quando se deteve para fazer gestos ao Faol que não se aproximasse, deu-se conta de que o lobo tinha desaparecido. Então se separou do rio e caminhou uns cem metros terra adentro.

     — Oi do acampamento! — Gritou. — Não disparem, sou eu!

     — Sadie Quill! Ai, quero dizer, senhora MacKeage. — Nervoso, Dwayne ficou de pé como um raio e correu a recebê-la sem deixar de saudá-la como um louco com a mão. — O que te traz por aqui hoje? Acreditei que estaria em casa preparando a comida para seu marido.

     Assinalou-a meneando o dedo.

     — Dar de comer ao Morgan vai ser um trabalho duro.

     Sadie o olhou com os olhos entrecerrados.

     — Agora é “Morgan”? O que aconteceu “esse tipo MacKeage”?

     Ele se ruborizou um pouco.

     — Ele disse que o chamemos Morgan, Sadie. — De repente deixou ver um amplo sorriso — Eu gosto de seu novo marido: comeu meu guisado e arrotou tão forte que despertaria aos ursos.

     Então foi ela quem se ruborizou de repente, e não de vergonha.

     — Morgan esteve aqui? Quando?

     — Ontem. — Dwayne franziu o cenho. — Não te disse que ia vir nos ver? Nem o que ia fazer?

     Ela se apressou a responder com uma evasiva.

     — Ah, sim; sim, comentou.

     De repente o homem fechou a boca de repente; seu cenho franzido se converteu em um olhar feroz enquanto voltava a assinalá-la meneando um dedo, esta vez para brigá-la.

     — Pois esquece, jovenzinha. Eu não sei nada.

     Por cima do ombro de Dwayne, Sadie olhou o acampamento que ficava atrás.

     — Onde está Harry? — Perguntou.

     Dwayne deu um passo à esquerda para lhe tampar a vista.

     — Está no povoado, comprando mantimentos.

     Ela suspirou e se esfregou a testa.

   — Está bem, Dwayne. O motivo pelo qual não estou em casa cozinhando para meu marido é que quis comprovar se de verdade Morgan veio visitá-los e fez o que dizia que ia fazer.

     Suas arrevesadas palavras conseguiram desconcertá-lo, e Dwayne franziu o cenho de novo. Depois de pensar durante um minuto, meneou a cabeça e de repente lhe sorriu.

     — Acredito que posso entender isso como em realidade o presente também é seu… — Sussurrou, como se temesse que as árvores fossem escutar o que estava dizendo.

   Lançou um desconfiado olhar em torno do acampamento e, com um animado gesto da mão, indicou a Sadie umas caixas que estavam empilhadas junto a um arbusto de madressilva. Depois levou o dedo aos lábios para que guardasse silêncio e voltou a olhar a seu redor justo antes de ir lá e ficar em cócoras.

     Sadie também deu uma olhada em torno dela e depois se inclinou para ver o que fazia. Depois de afastar várias caixas, Dwayne tinha posto a cavar na terra.

     — Escondemos bem, não é? — Sussurrou, sem deixar de afastar a areia com as mãos como se fosse uma marmota.

     Sadie tirou a mochila das costas e se ajoelhou junto a ele.

     — Parece que sim — apressou-se a assentir.

     De repente, deu um grito afogado ao vê-lo tirar do chão um frasco de conservas de quase um litro de capacidade e lhe limpar a areia.

     E depois piscou ao ver que o frasco estava cheio de pepitas de ouro.

     — Escondeu mais que bem! — Sussurrou assombrada.

     Com mão um pouco tremula, Dwayne seguiu acariciando o frasco e limpando-o com reverencia até a última bolinha de areia.

     — Morgan nos disse que este era todo o ouro .— Disse, com voz ainda baixa e reverente. Depois, enquanto estreitava o frasco contra o peito e sorria como um menino no circo, olhou-a. — Disse que você e ele encontraram o ouro de Jedediah, Sadie, e que querem que o nós tenhamos. Que você não o necessita, já que agora tem um marido rico.

     Incapaz de falar, Sadie assentiu, ao tempo que notava que lhe esquentava a cara outra vez. De repente, Dwayne a segurou pelo pescoço e lhe deu um beijo, ruidoso e muito úmido, na surpreendida boca.

     Imediatamente recuou como pôde, com o ouro ainda agarrado contra o peito e a face tão vermelha como um crepúsculo, enquanto com os horrorizados olhos muito abertos lançava um olhar pelo acampamento.

     — Eu… Eu não queria fazê-lo! — Gritou; o pescoço e a face ardiam. — Quer dizer, eu… Mas…

     Voltou a olhar em torno do acampamento.

     — Não quero que seu marido pense que eu estava… Que eu estava…

     Sadie lhe deu uns tapinhas no braço e se levantou. Quando por fim pôs um pouco em ordem suas idéias, sorriu ao ainda inquieto Dwayne.

     — Não se preocupe. Morgan entende que você e Harry são meus amigos, e não se ofendeu por que me beijasse nem que tivesse estado aqui. Mas não está. — Assegurou.

     Meteu a mão no bolso e fechou os dedos sobre suas duas pepitas de ouro. Tinha pensado dar-las a Harry e Dwayne, mas agora aquele gesto parecia uma tolice… Tendo em conta que, pelo visto, seu marido já lhes tinha dado uma fortuna.

     Por que teria trazido Morgan aquele ouro?

     E, exatamente, de onde o tinha tirado? Tudo tinha ficado arrasado, e o ouro estava enterrado baixo milhares de toneladas de granito.

     Assinalou o frasco que Dwayne seguia agarrando e lhe perguntou:

     — Disse-lhes Morgan por que os dava… Ou seja, por que lhes dávamos o ouro?

     — Porque não o precisam — Repetiu ele.

     Enquanto falava foi caminhando de joelhos até o arbusto de madressilva. Uma vez ali, voltou a enterrar o frasco, tampando-o bem com a areia e depois pôs as caixas em cima.

     — Disse-lhes onde tínhamos encontrado o ouro? — Perguntou Sadie.

     Dwayne a olhou e franziu o cenho.

     — Não. Perguntamos, mas ele não nos disse nada. Só disse que este era todo o ouro que havia. — Ficou de pé e se sacudiu as mãos. De repente entreabriu os olhos, receoso. — Dizia a verdade, Sadie? Não há mais ouro?

     Ela assentiu.

     — Assim é, Dwayne. Não havia uma mina. Jedediah só encontrou um grande depósito de areias de ouro, mas não a origem.

     Ele inclinou a cabeça e entortou os olhos.

     — Onde? — Perguntou. — Estava perto de um acampamento madeireiro, digamos a um quilômetro e meio, ou assim para o norte?

     Sadie meneou a cabeça; tinha decidido que seria melhor encaminhar aos Doam a outro lugar.

     — Não. Nem sequer está neste vale, Dwayne. — Mentiu sorrindo. Depois assinalou para as montanhas. — Está no seguinte vale de mais à frente, quase no Canadá.

     — No seguinte vale! — Gritou ele. Em seguida se apressou a olhar a seu redor, aproximou-se dela e baixou a voz. — Quer dizer que todos estes anos tanto nós como seu pai e você estivemos revistado o vale que não era?

     Voltou a entreabrir os olhos.

     — Seu pai acreditava que estava perto do Prospect. E Harry e eu inclusive encontramos escamas de ouro nas areias por aqui.

     Sadie deu de ombros.

     — Todos pensavam que estava aqui, Dwayne. Mas se olhar o vale que há ao oeste, provavelmente encontrará vários velhos acampamentos madeireiros.

     — Onde? — Sussurrou ele. Aproximou um pouco mais e em seu rosto se pintou uma expressão de súplica que recordava a cara de um cachorrinho. — Pode me dar ao menos uma idéia, Sadie?

     — Para que? Já não fica nada, Dwayne.

     — Mas talvez haja mais.

     — Para que necessitam mais? — Sadie assinalou para o arbusto de madressilva. — Aí há bastante para ir a Rússia e trazer de volta uma dúzia de esposas.

     Aquela idéia o fez sobressaltar-se.

     — Não queremos uma dúzia. — De novo mostrava uma expressão escandalizada. — Só necessitamos duas.

     De repente, deixou ver seu amplo sorriso.

     — Morgan nos ajudou às escolher.

     — Fez o que?

     Dando passos longos, Dwayne se aproximou de sua barraca de campanha, pegou uma revista e retornou correndo junto a ela enquanto folheava as páginas.

     Por fim deu um golpe em uma página com seu dedo sujo e calejado.

     — Olhe. Morgan me disse que eu devia escolher esta.

     Sadie se afastou para ver bem a página que lhe tinha posto diante da cara; nela uma mulher de uns quarenta anos sorria com aspecto tímido e assustadíssimo.

     De repente Dwayne retirou a revista, procurou outra página e a ensinou de novo.

     — E disse que Harry devia escolher a esta senhora — Disse, assinalando a outra mulher.

     Aquela parecia um pouco mais velha, tinha um aspecto um pouco cansado e também sorria com algo que parecia ser… Esperança.

     Sadie sorriu a seu velho amigo.

     — São bonitas — Disse. — Dá a impressão de que serão umas estupendas esposas para você e Harry.

     Dwayne ficou ao seu lado, levantou a revista e a folheou outra vez. Então ensinou a foto de uma mulher de vinte e poucos anos.

     — Eu gostava desta — Disse. — Acredito que é preciosa.

     — E é.

     Dwayne olhou a Sadie meneando a cabeça. Em sua boca havia um meio sorriso, e um brilho de sensatez em seus olhos cor cinza avelã.

     — Pois Morgan disse que não era preciosa. — Disse em tom de segurança. Com um movimento de cabeça sublinhou que concordava com seu marido. — Disse que a beleza não está aqui.

     Assinalou a cara da jovem e depois se apressou a passar a página até dar com a mulher que Morgan lhe tinha escolhido.

     — Que está aqui.

     Levou o dedo para os olhos da mulher mais velha e depois o baixou devagar até deter-se justo por debaixo da foto, onde teria estado o coração.

     — Disse que eu e Harry temos que olhar muito por debaixo da superfície para encontrar a beleza em uma mulher. Que se quisermos boas esposas, não devemos nos deixar enganar por uma cara bonita.

     Dwayne a olhou entortando os olhos um olho, e deixou cair a revista a seu flanco.

     — Como você, Sadie — Disse.

     — Como eu? Morgan disse como eu?

     — Não. — Dwayne voltou a menear a cabeça e com um gesto lhe assinalou a enluvada mão direita. — Olhe sua mão. Sei que tem mais cicatrizes… Mas isso não impediu que Morgan te escolhesse.

     Sorriu e lhe tocou o cabelo.

     — Porque procurou um marido sábio, Sadie. Ele olhou muito fundo e viu sua beleza.

     Um nó do tamanho de um penhasco se encaixou na garganta de Sadie.

     Dwayne deixou escorregar o dedo por seu cabelo até que lhe puxou as pontas. Então a olhou com um sorriso cálido e, com voz cheia de ternura, disse-lhe em um sussurro:

     — É uma mulher preciosa, Sadie. Só espero que minha nova esposa seja a metade de bonita que você.

     Ela se jogou em seus braços e se esforçou por conter as lágrimas, nascidas do medo e a incerteza dos três últimos dias. Seu velho amigo a abraçou, estreitou-a forte e depois se desculpou com frenesi.

     — Minha mãe, Sadie! — Resmungou. — Não pretendia te fazer chorar!

     — Você não me fez chorar. — Disse ela. — Foi Morgan.

     Rapidamente, Dwayne a afastou e ficou a examinar os arbustos que rodeavam o acampamento.

     — Eu… Eu não disse que é bonita porque queira te roubar! — Gritou, recuando enquanto falava. — Só tentava me explicar!

     Sadie não pôde evitar sorrir.

     — Ai, Dwayne, não quis dizer que Morgan estivesse aqui. — Disse. — O que me disse, me fez pensar nele e isso me fez chorar.

     O homem se tranqüilizou um pouco e a olhou elevando as sobrancelhas.

     — Só pensar em seu marido te faz chorar? — Perguntou em tom de incredulidade; aproximou-se um passo. — Pois o que acontecesse quando o vê em pessoa?

     — Sorrio.

     Sua resposta o desconcertou. Coçou o sujo cabelo e a olhou com um olho entrecerrado.

     — Morgan diz que é preciosa? — Perguntou de repente.

     — Todos os dias. — Disse ela em tom sincero. — Sem palavras.

     — Como o faz? — Quis saber ele, ao mesmo tempo em que se aproximava mais.

     — Com seus atos. — Explicou Sadie. — Cuida de mim, e se preocupa comigo. Me dá bronca, joga-me sermões e me dá ordens. Tira-me do sério, às vezes tanto que me dá vontade de estrangulá-lo. E também tira o sarro sempre que pode. Quando caminhamos pelo bosque, leva todos os mantimentos pesados em sua mochila para me aliviar a carga; também se assegura de que não tenha frio de noite, e de que esteja segura. E fazendo todo isso, Dwayne, a cada minuto do dia Morgan está me dizendo que sou preciosa.

     — Minha mãe, Sadie! Vou ter que fazer todas essas coisas para minha esposa?

     Ela enxugou outra lágrima que ameaçava aparecendo e assentiu.

     — Sim. E você adorará fazê-lo, porque graças a isso sua esposa entenderá o quanto que significa para você. Cada pequena coisa que faça lhe dirá que acredita que é preciosa, que a quer e que está encantado de que tenha concordado compartilhar sua vida.

     De repente, Dwayne olhou ao chão franzindo o cenho.

     — Provavelmente terei que acostumá-la com gestos em vez de dizer-lhe como faz Morgan. — Elevou a vista; parecia desconcertado de novo. — Porque eu não sei russo, Sadie. Eu e Harry compramos umas fitas para escutar, mas é que não entendemos o idioma. E, além disso, segundo o livro que vinha com as fitas, nesse seu alfabeto faltam umas quantas letras e tem outras quantas com uma pinta muito rara.

     — O idioma do amor é universal, Dwayne.

     Sadie foi a sua mochila e a jogou sobre os ombros. Depois retornou junto a seu amigo e lhe tocou o braço.

     — E descobri que também é atemporal. Não se preocupe, você e Harry o farão muito bem. — Sua voz se transformou em um sussurro quando se inclinou para lhe beijar a ruborizada bochecha. — Porque você sim que é formoso, meu bom amigo; dentro de você, onde importa.

     Então partiu do acampamento de Dwayne. Tinha decidido que já era hora de procurar seu marido.

 

     Sadie sabia que quando se procura alguém, a primeira regra é que o procurado deve ficar quieto para que o Caçador o encontre. Se os dois perambulavam pelas mesmas centenas de quilômetros quadrados de bosque, provavelmente passariam a uns metros um do outro sem sabê-lo sequer.

     Mas essa teoria só funcionava se de verdade o procurado desejava que o encontrassem; e, além disso, dependia do decidido e tenaz que fosse o Caçador.

     Sadie era muito decidida.

     Embora depois de ter desperdiçado quase toda a tarde procurando Morgan, gastando-as botas e pegando uma dor de garganta de gritar seu nome uma e outra vez, ao final se deu por vencida. Ajoelhou-se diante de Faol, que tinha aparecido de repente quando partia do acampamento de Dwayne, pegou sua grande cabeça entre as mãos e rogou ao animal que a ajudasse.

     — Tem que encontrar o Morgan, rapaz. — Suplicou, pondo o nariz a uns centímetros de seu focinho. — Antes que ele me encontre primeiro. É importante que eu vá a ele com o coração na mão e lhe recorde outra vez que me ama.

     Faol soltou um gemido e depois, como uma flecha, tirou a língua e lhe lambeu o queixo, enquanto os meneios de sua cauda faziam tremer todo o corpo. Sadie lhe agarrou os topetes de cabelo que tinha aos lados da cabeça e o afastou.

     — Fará isso? Procurará Morgan por mim?

     O lobo tentou lhe lavar a cara outra vez e, como ela não o deixou, deu um latido. Então Sadie o soltou e ficou de pé; com um gesto assinalou o bosque e lhe deu um empurrãozinho com o joelho.

     — Pois vá, vá procurar ao Morgan — Disse.

     Faol voltou a latir, deu a volta depressa e pôs-se a correr pelo atalho. Imediatamente Sadie ajustou a correia da mochila que atava à cintura e começou a andar atrás dele; a emoção da caça levantou seu ânimo, e não demorou para rir a gargalhadas.

     Embora perdesse de vista Faol, ouvia-o latir a sua esquerda de vez em quando. Então saiu do caminho e se agachou sob os ramos, ao tempo que reduzia a marcha para evitar que as mais baixas lhe golpeassem a face. Já não via o lobo, mas o animal fazia suficiente ruído para despertar os mortos.

     Sadie se meteu em um estreito caminho que, aparentemente, usavam mais os alces que os cervos. Então voltou a ficar direita e recuperou o ritmo; ao cabo de vinte minutos se deu conta exatamente do lugar para o que Faol a conduzia.

     E nesse momento pôs-se a rir outra vez, diante a ironia do que estava acontecendo. Porque, não fazia tanto tempo, tinha deslocado por aquele mesmo atalho… Só que afastando-se de um louco em vez de indo para ele.

     Faol tinha parado na borda do lago. Estava sentado, limpando o chão com os meneios de sua cauda, e olhando-a por cima do ombro. Depois de lançar um olhar ao lago, olhou-a outra vez, gemendo, depois se levantou e se aproximou sem fazer ruído para lhe tocar os dedos. Com cuidado, agarrou-lhe com os dentes as pontas dos dedos da luva e puxou com suavidade.

     Sadie captou a indireta. Tirou a luva, ajoelhou-se e voltou a lhe segurar a face.

     — Já sei, rapaz — Sussurrou. — Talvez seja teimosa às vezes, mas ao final entendo as coisas. Eu… Eu cuidarei bem de seu filho, senhor MacKeage. Procurarei que seja feliz e que esteja muito contente de ter vindo viver nesta época. Daremos a você alguns netos e lhes contaremos tudo sobre a visita que nos fez.

     Faol gemeu e lhe lambeu o queixo. Depois soltou a cabeça e olhou ao lago de novo. Então elevou o focinho ao ar e lançou um uivo que ressoou pelo vale e chegou até as montanhas em trêmulas ondas.

     E, por último, internou-se trotando no bosque, sem olhar atrás.

     Sadie se aproximou até onde tinha estado o lobo e olhou fixamente Morgan, que estava sentado na rocha arredondada no meio da baía, de cara a ela. Tinha as grandes mãos apoiadas no fio da rocha e com os pés removia devagar a água.

     Estava nu, é obvio, apesar de que na borda do lago havia gelo e o ar estava abaixo zero. De seus ombros molhados se desprendia vapor; ao respirar, o fôlego lhe rodeava a cabeça, e a seu lado, sobre a rocha, a água que gotejava de seu comprido cabelo loiro ia formando pedaços de gelo.

     — Sou bonita, Morgan.

     — Sim, Mercedes, é.

     — E sou sua esposa.

     — Recordo nossas promessas.

     — Sou… Sou uma mulher moderna.

     — Ninguém nos prometeu um mundo perfeito, lass.

     — Seguirei sendo ousada… Às vezes.

     — Sim, mas só às vezes, gràineag.

     — Já sei o que significa isso, e não é uma palavra carinhosa.

     — Mas fica muito bem em você, esposa… Às vezes.

     Sadie franziu o cenho; aquilo não estava saindo bem. Não é que tivesse um plano quando saiu a procurar Morgan, mas pensava que ele seria mais… Bom, pelo menos que teria mais gana de vê-la. Inspirou forte e prosseguiu.

     — Quebrei sua espada.

     — Já me dei conta.

     — E sua catarata ficou destruída.

     — Disso também me dei conta.

     — Toda a magia desapareceu, Morgan.

     — Não, lass, agora é mais poderosa que nunca.

     — Maldição, Morgan, quero que me perdoe!

     — Já o fiz há dois dias, Mercedes.

     — Então, por que não veio a me buscar?

     — Porque antes tinha que perdoar a si mesma.

     Com mãos tremulas e um gesto brusco, Sadie afastou as lágrimas que tinham escapado e corriam pelas bochechas. Estava sendo inclusive mais difícil do que acreditava. Morgan estava sentado ali, sem mais, como uma tartaruga sobre uma pedra, esperando que o sol o esquentasse, enquanto suas tranqüilas e serenas respostas, de uma paciência exasperante, faziam-na estremecer-se por dentro… Talvez ele fosse uma tartaruga e ela fosse o sol que estava esperando.

     — Sou Bonita.

     — Sim, Mercedes, é.

     — E você me ama.

     — Tenho que te amar.

     — Maldição, Morgan! Isto é difícil.

     — Só porque é importante.

     — Eu te amo.

     — Me alegro. Mas não é a mim a quem deve convencer, lass.

     — Sou bonita.

     — Sim, esposa; é muito bonita.

     Então, com mãos mais tremulas que eficazes, Sadie soltou a correia da cintura e deixou que a mochila escorregasse pelos ombros. Depois, sem afastar a vista de seu marido, agarrou a mochila e a pôs com suavidade no chão.

     Com gesto preguiçoso, Morgan observou como se sentava, desabotoava as botas e as tirava. Sadie colocou as meias três-quartos dentro das botas e Depois ficou de pé. Suas trêmulas mãos acudiram então aos botões de sua camisa. Demorou muito tempo em abrir-los e mais ainda em reunir coragem para tirar-la dos ombros. Depois de deixá-la cair ao chão, levou as mãos à costas e desabotoou o sutiã; depois puxou-o junto com a regata e também os deixou cair.

     E continuou olhando a seu marido.

     E ele continuou sentado ali; sem dizer uma palavra, sem mover-se, sem afastar a vista dela.

     Sadie desabotoou o cinturão e as calças, os desceu até os joelhos e os tirou.

     Não deixava de tremer e sabia que não era pelo frio, porque sentia calor em cada terminação nervosa, cada tenso músculo, cada centímetro de sua pele.

     Por fim endireitou os ombros e se obrigou a pôr as mãos aos lados. Estava frente a seu marido, tão nua como ele.

     — Vê esse crepúsculo atrás de mim, lass?

     Sadie só pôde assentir com a cabeça.

     — Estava aqui sentado, esperando que viesse para mim, e pensava que o céu é da mesma cor que seus olhos. É de um muito precioso tom azul, não te parece?

     Ela voltou a assentir.

     Morgan se levantou e estendeu a mão.

     — Então venha pra mim, Mercedes. Traz sua formosura a minha vida.

     Ela deu um passo para frente, e depois outro… Cada passo era um pouco mais fácil que o anterior, e não demorou para pôr-se a correr para Morgan.

     Até que se encontrou até o joelho na água fria como o gelo. Soltou um grito ao sentir que lhe gelavam as pernas e começou a recuar com esforço.

     — Maldição, MacKeage! Este lago está congelado! — Gritou.

     Morgan mergulhou na água e nadou até dar pé. Então se levantou, e enquanto a água caía em cascata por seu alto e masculino corpo, caminhou para ela.

     Sadie recuou um passo. Embora já o tivesse visto assim, Morgan nunca lhe tinha parecido tanto um guerreiro como nesse momento. Sem saber por que, estava diferente.

     Ou talvez fosse ela a que estava diferente…

     Ou possivelmente tivesse algo que ver com o malévolo brilho que brilhava em seus olhos: era o olhar de um guerreiro a ponto de apropriar do troféu ganho depois de uma árdua batalha.

     Sadie recuou outro passo.

     Certamente Morgan tinha brigado bem, embora não com muita sutileza… E de repente, enquanto se dirigia para ele em vez de fugir, pensou que, por outra parte, aquele guerreiro ia receber um troféu que merecia a pena.

     Então correu a lançar-se a seus braços. Agarrou-lhe o molhado cabelo e beijou o rosto enquanto ria, alegre, sabendo que estava a ponto de começar uma vida de sonho com aquele homem. Ele a rodeou com seus fortes braços e, enquanto baixava com suavidade até o chão, foi grunhindo na orelha e cobrindo o cabelo de beijos.

     Com vibrantes palavras e promessas sussurradas, Morgan disse e demonstrou o que pensava exatamente de seu corpo. Com as mãos percorreu a pele e a encheu de carícias leves como plumas, e depois seus lábios seguiram o rastro dos dedos.

     Sadie imitou seus atos e suas palavras e, além disso, acrescentou umas quantas vibrantes promessas de sua colheita. Quando seus lábios lhe roçaram os mamilos, arqueou as costas e adiantou os seios para sua boca; ansiava que lhe acariciasse todo o corpo.

     Nada estava proibido já; nada se interpunha entre eles, nada estorvava o prazer de amar-se mutuamente. A paixão se impôs ao acanhamento, e Sadie foi capaz de entregar-se com liberdade ao milagre do amor.

     Brincaram e se amaram igual a haviam feito aquela tarde no formoso e místico charco cheia da magia do druida. Morgan não mentia ao dizer, um momento antes, que a magia era mais poderosa que nunca.

     Sim a magia era mais forte, e o amor de Morgan e Sadie era um arco íris radiante que envolvia a pura luz branca de sua paixão.

 

[1] A pronúncia do nome Mercedes em inglês é Merseidis, o que justifica o diminutivo, Sadie, pronunciado Seidi em inglês.

 

                                                                                Janet Chapman 

 

                      

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