Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
CAPÍTULO 75
UMA SEMANA MAIS TARDE...
Nesse meio-tempo, a vida retomou seu curso, Qhuinn pensou ao subir as calças de couro pelas coxas, passar a camiseta pela cabeça e apanhar as armas e a jaqueta.
Deus, ele custava a acreditar que apenas sete noites antes fora iniciado pela Irmandade.
Parecia uma eternidade.
Saindo do quarto, ele passou diante das estátuas de mármore, pelo escritório de Wrath e bateu à porta de Layla.
– Entre.
– Olá – disse ele ao entrar. – Como está?
– Estou ótima – Layla se ergueu um pouco na pilha de travesseiros e esfregou o ventre. – Ou melhor, estamos ótimos. A doutora Jane acabou de passar aqui. Os índices estão perfeitos, e eu continuo firme e forte no refrigerante e nas bolachas de água e sal, portanto, estou bem.
– Mas você não deveria comer um pouco de proteína? – merda, ele não queria que aquilo tivesse parecido uma exigência. – Não que eu esteja lhe dizendo o que fazer.
– Ah, não, está tudo bem. Para falar a verdade, Fritz grelhou peito de frango para mim e eu consegui comer, por isso vou tentar fazer isso todos os dias. Contanto que a comida não tenha muito sabor de nada, consigo mantê-la no estômago.
– Precisa de alguma coisa?
Os olhos de Layla se estreitaram.
– Para ser franca, preciso, sim.
– Diga e será seu.
– Fale comigo.
As sobrancelhas de Qhuinn se ergueram.
– Sobre o quê?
– Você – ela emitiu uma imprecação exasperada e jogou de lado a revista que vinha lendo. – O que está acontecendo? Você anda se arrastando por aí, não fala com ninguém, e todos estão preocupados.
Todos. Fantástico. Por que diabos ele não morava sozinho?
– Estou bem...
– Você está bem. Sim, claro.
Qhuinn levantou as mãos num ato de quase submissão.
– Ei, ‘pera lá. O que quer que eu diga? Eu me levanto, trabalho, volto para casa... Você está bem e o bebê também. Luchas está se recuperando. Faço parte da Irmandade. A vida é ótima.
– Então por que parece que está de luto, Qhuinn?
Ele teve que desviar o olhar.
– Não estou. Escute, preciso arranjar alguma coisa para comer antes de...
– Vocêaindaquerobebê?
As palavras de Layla saíram tão rápidas que o cérebro dele precisou de um tempo para decifrar o que ela tinha dito. Depois...
– O quê?
Quando as mãos dela começaram a se retorcer como sempre fazia quando estava nervosa, ele se aproximou da cama e se sentou. Abaixando a jaqueta e as armas, ele tranquilizou os dedos nervosos dela com os seus.
– Estou empolgado com o nosso bebê – a bem da verdade, o bebê dentro dela era a única coisa que o fazia seguir em frente no momento. – Eu já o amo.
Sim. O bebê era o único lugar seguro para depositar o seu coração, no que lhe dizia respeito.
– Você precisa acreditar nisso – ele disse com veemência. – Tem que acreditar.
– Está bem, ok, eu acredito – Layla esticou a mão e acariciou a lateral do rosto dele, sobressaltando-o. – Mas, então, o que foi que o quebrou assim, meu bom amigo? O que aconteceu?
– Apenas a vida – ele sorriu de leve para ela. – Nada demais. Mas não importa o meu estado de humor, você tem que saber que estou com você nisto.
Os olhos dela se fecharam em sinal de alívio.
– Sou muito agradecida por isso. E pelo que Payne fez.
– Assim como Blaylock – ele murmurou. – Não se esqueça dele.
Quanta ironia. O cara o apunhalara no coração, mas também lhe dera um novo.
– Como é? – ela perguntou.
– Blaylock procurou Payne. Foi ideia dele.
– Verdade? – Layla sussurrou. – Ele fez isso?
– É. Tremendo cara. Um verdadeiro cavalheiro.
– Por que você o está chamando assim?
– É o nome dele, não é? – ele lhe deu um tapinha no braço e se levantou, pegando seus pertences. – Vou sair. Como sempre, estou com o meu celular, por isso, ligue se precisar de mim.
A Escolhida pareceu confusa.
– Mas Beth disse que você não estava escalado para o turno de hoje.
Maravilha. Então ele era mesmo um assunto a ser discutido.
– Eu vou sair – e quando ela pareceu prestes a discutir, ele se abaixou para depositar um beijo casto em sua testa, na esperança de apaziguá-la. – Não se preocupe comigo, ok?
Ele saiu antes que ela pudesse lançar novo ataque contra as suas defesas. No corredor, ele fechou a porta e...
Parou de pronto.
– Tohr. Hum... o que foi?
O Irmão estava recostado na porta de Wrath como se o aguardasse.
– Pensei que você e eu tivéssemos discutido a escala ontem à noite.
– Sim, discutimos.
– Então o que há com todas essas armas?
Qhuinn revirou os olhos.
– Veja bem, não vou ficar aqui preso nesta casa por 24 horas. Isso não vai acontecer.
– Ninguém disse que você tem que ficar aqui. O que estou lhe dizendo, de irmão para irmão, é que você não vai a campo hoje.
– Ah, para com isso...
– Vá ver um maldito filme se quiser. Vá para uma CVS, mas lembre-se de levar as chaves do carro com você desta vez. Vá para um shopping que fique aberto até mais tarde e entregue a sua lista ao Papai Noel, não faz diferença para mim. Mas você não vai lutar... E antes que continue a discutir, isso é uma regra para todos nós. Você não é especial. Você não é o único que não vai sair para lutar. Entendido?
Qhuinn resmungou baixinho, mas quando o Irmão levantou a palma, ele a segurou e assentiu.
Enquanto Tohr se afastava rapidamente descendo a escadaria principal, Qhuinn quis disparar a xingar. Uma noite só para si. Eba...
Nada como ter um encontro com sua depressão.
Inferno, talvez ele devesse ir ao cinema, colocar alguns adesivos de reposição hormonal e se alegrar assistindo A noviça rebelde pintando as unhas.
Talvez Flores de aço... Como água para coco...
Ou seria Chocolate?
Pensando bem, talvez fosse melhor simplesmente se dar um tiro na cabeça.
Qualquer uma dessas coisas.
A casa segura da família de Blay ficava no interior, cercada por campos cobertos de neve que ondulavam gentilmente até o limite da floresta. Feita de pedra rolada cor de creme, a casa não era grandiosa, mas muito aconchegante, e a cozinha de última geração era a única coisa moderna na propriedade.
Era lá que sua mãe definitivamente cozinhava o néctar dos deuses.
Enquanto ele e o pai saíam do escritório, a mão relanceou do fogão de oito bocas. Seus olhos estavam arregalados e preocupados enquanto ela mexia a panela de cobre em que derretia queijo.
Sem querer fazer muito estardalhaço sobre o assunto monumental que fora discutido no cômodo perfilado por livros, Blay levantou o polegar na direção dela e se acomodou à mesa de carvalho rústica em um dos cantos.
A mãe levou a mão à boca e fechou os olhos, ainda mexendo na panela enquanto as emoções se avolumavam.
– Ei, ei... – o pai disse ao se aproximar de sua shellan. – Psssiuu.
Virando-a para ele, envolveu-a nos braços e a segurou com força. E mesmo assim ela continuou a mexer na panela.
– Está tudo bem – ele a beijou na cabeça. – Ei, está tudo bem...
O olhar do pai o alcançou e Blay teve que piscar rápido. Depois teve que amparar os olhos rasos de lágrimas.
– Gente! Pelo amor da Virgem Escriba! – o homem também fungou. – Meu filho lindo, inteligente, saudável e precioso é gay; não há nada a lamentar!
Alguém começou a rir. Blay acompanhou.
– Não é como se alguém tivesse morrido – o pai ergueu o queixo da mãe e lhe sorriu. – Certo?
– Só estou muito feliz que tudo foi esclarecido e que estamos juntos – disse ela.
O macho se retraiu como se qualquer outro resultado lhe fosse inimaginável.
– A nossa família é forte... não vê isso, meu amor? Mais do que tudo, isto não é um desafio. Não é nenhuma tragédia.
Deus, seus pais eram os melhores.
– Venha cá – o pai o chamou. – Blay, venha aqui.
Blay se levantou e se aproximou. Enquanto os pais o abraçavam, ele respirou fundo e se tornou a criança que um dia fora: a colônia pós-barba do pai ainda tinha o mesmo cheiro, o xampu da mãe o lembrava de uma noite de verão, e o cheiro da lasanha do forno aguçava o seu apetite.
Como sempre.
O tempo era, de fato, algo relativo. Mesmo ele sendo mais alto e mais forte, e depois de tantas coisas terem acontecido, aquela unidade – aquelas duas pessoas – era a sua fundação, sua pedra fundamental, seu nunca perfeito, porém jamais decepcionante, padrão. E, parado ali na proteção de sua família, dos braços amorosos, ele conseguiu se livrar de toda tensão que sentia.
Fora muito difícil contar ao pai, encontrar as palavras, romper a “segurança” que acompanhava o não correr o risco de ter que reformular sua opinião sobre o macho que o criara e o amara como a nenhum outro. Se o cara não o apoiasse, se tivesse escolhido o sistema de valores da glymera a respeito do seu autêntico eu? Blay seria forçado a enxergar alguém a quem amava sob uma perspectiva completamente diferente.
Mas isso não acontecera. E agora? Ele se sentia como se tivesse pulado de um prédio... e aterrissado sobre um colchão fofo, seguro e salvo: o maior teste de sua estrutura familiar não só fora passado, mas completamente vencido.
Quando se afastaram, o pai pousou a mão no rosto de Blay.
– Sempre meu filho. E eu sempre terei orgulho de chamá-lo de filho.
Quando ele abaixou os braços, o anel de sinete reluziu na luz do teto, o dourado brilhando. O padrão que fora gravado no metal precioso era precisamente o mesmo no anel de Blay – e enquanto ele tracejava os contornos conhecidos, reconheceu que a glymera entendera tudo errado. Todos aqueles timbres deveriam ser o símbolo daquele espaço, das uniões que fortaleciam e melhoravam as vidas entrelaçadas, dos compromissos que ligavam mãe a pai, pai a filho, mãe a filho.
Mas, no que muitas vezes se referia à aristocracia, os valores eram mal colocados, baseados no ouro e nas gravações, não nas pessoas. A glymera se importava com a aparência das coisas, em detrimento da essência delas. Conquanto as coisas parecessem belas no seu exterior, você poderia muito bem estar quase morto ou completamente desprovido debaixo da superfície que eles estariam em paz com isso.
E no que se referia a Blay? A comunhão era o que importava.
– Acho que a lasanha está pronta – disse a mãe ao beijar os dois. – Por que não arrumam a mesa?
Agradável e normal. Graças a Deus.
Enquanto Blay e o pai se movimentavam pela cozinha, pegando talheres, pratos e guardanapos em tons de verde e vermelho, Blay se sentia meio tonto. Na verdade, havia uma espécie de êxtase em revelar tudo e descobrir, por sua vez, que tudo o que ele mais desejara era o que, de fato, ele tinha.
E, mesmo assim, quando se acomodou um pouco depois, sentiu o vazio que o aguardava em seu regresso, claro como se ele tivesse apenas pisado brevemente numa casa aquecida, mas teria de sair e voltar para o frio.
– Blay?
Ele se sacudiu e pegou o prato cheio de comida caseira que a mãe lhe entregava.
– Hum, parece uma delícia.
– A melhor lasanha do planeta – disse o pai, ao desdobrar o guardanapo no colo e empurrar os óculos para o alto do nariz. – Parte de fora para mim, por favor.
– Como se eu não soubesse que você gosta da parte mais crocante... – Blay sorriu para os pais enquanto a mãe usava a espátula para pegar um dos cantos. – Dois?
– Sim, por favor – os olhos do pai estavam fixos na travessa. – Hum, perfeito.
Por um tempo, não houve outro som que não o deles comendo educadamente.
– Então nos conte, como estão as coisas na mansão? – a mãe perguntou, depois de um gole de água. – Alguma novidade?
Blay exalou fundo.
– Qhuinn foi iniciado na Irmandade.
Queixos caindo.
– Que honra – comentou o pai.
– Ele merece, não? – a mãe de Blay balançou a cabeça, os cabelos ruivos refletindo a luz do teto. – Você sempre disse que ele era um ótimo lutador. E sei como as coisas foram difíceis para ele; como lhe disse na outra noite, aquele garoto partiu meu coração no instante em que o conheci.
Então somos dois, pensou Blay.
– Ele também vai ter um filho.
Ok, nessa hora o pai largou o garfo num acesso de tosse.
A mãe se apressou em bater nas suas costas.
– Com quem?
– Com uma Escolhida.
Silêncio absoluto. Até a mãe sussurrar:
– Bem, isso é demais.
E pensar que ele mantivera o maior dos dramas para si.
Deus, a briga que tiveram no centro de treinamento. Ele a repassou vezes sem conta na cabeça, lembrando cada palavra despejada, cada acusação, cada negação. Ele odiou algumas das coisas que dissera, mas mantinha firme o ponto de vista que estava tentando provar.
Caramba, a forma de ter dito poderia ter sido um pouquinho melhor, porém. Essa parte ele de fato lamentava.
Contudo, não havia como se desculpar. Qhuinn praticamente desaparecera. O lutador nunca mais esteve presente no horário das refeições, e se estava se exercitando, não era durante o horário diurno no centro de treinamento. Talvez ele estivesse se consolando no quarto de Layla. Quem haveria de saber?
Enquanto Blay repetia o prato, pensou em quanto aquele tempo junto à família e a aceitação deles significavam. E se sentiu um cretino de novo.
Deus, perdera a cabeça de tal forma, a ruptura chegando finalmente depois de anos de drama de lá pra cá.
E não havia volta, ele pensou.
Ainda que, na verdade, jamais tivesse havido.
CAPÍTULO 76
– Olá?
Enquanto Sola esperava pela resposta da avó do andar de cima, ela apoiou um pé no degrau de baixo e se inclinou sobre o corrimão.
– Está acordada? Já cheguei.
Olhou para o relógio. Dez da noite.
Que semana... Ela aceitara um trabalho como detetive particular para uma das grandes empresas de advocacia especializada em divórcio de Manhattan, cujo advogado suspeitava que a própria esposa o traía. No fim, a mulher o estava traindo mesmo, com duas pessoas para falar a verdade.
O trabalho levara noites e mais noites, e quando, por fim, ela conseguira entender os detalhes das idas e vindas, pronto, fazia seis dias que estivera afastada.
Porém, esse tempo longe fora bom. E a avó, com quem falara todos os dias, não lhe contara sobre nenhuma outra visita inesperada.
– Está dormindo? – chamou, mesmo sabendo que era estupidez. A mulher já teria respondido se estivesse acordada.
Ao recuar e voltar para a cozinha, seus olhos partiram direto para a janela sobre a mesa. Assail esteve em sua mente sem cessar – e ela sabia que, de certa forma, aquele projeto na Grande Maçã tivera muito mais a ver com colocar uma distância entre eles do que qualquer necessidade premente de ganhar dinheiro ou alavancar a sua carreira como detetive.
Depois de tantos anos cuidando de si e da avó, o modo descontrolado como se sentia ao redor dele não era bem-vindo. Ela não tinha nada a não ser ela mesma naquele mundo. Nunca fora para a faculdade; não tinha pais; e a menos que trabalhasse, ela não teria dinheiro. E também era responsável pela senhora de oitenta anos com contas médicas e mobilidade em declínio.
Quando se é jovem e se vem de uma família normal, é permitido perder a cabeça com um romance fadado ao fracasso porque existe uma rede de proteção.
Naquele caso, Sola era a rede de proteção.
E ela rezava para que após uma semana sem nenhum contato...
A pancada veio pelas costas, bem direto na parte de trás da cabeça, o impacto fazendo-a cair de joelhos. Ao bater no piso, ela deu uma bela olhada nos calçados do seu agressor: mocassins, mas não luxuosos.
– Pegue-a – disse um homem em tom baixo.
– Primeiro, preciso revistá-la.
Sola fechou os olhos e ficou parada enquanto mãos ásperas a viravam e a apalpavam, a parca sendo manipulada, a cintura da calça sendo repuxada em seus quadris. A pistola foi confiscada com seu iPhone e a faca...
– Sola?
Os homens ficaram imóveis, e ela lutou contra o instinto para tirar vantagem da distração para tentar assumir o controle da situação. O problema era a avó. O melhor seria fazer aqueles homens saírem da casa antes de machucar a anciã. Sola lidaria com eles para onde quer que a levassem. Mas se a avó estivesse envolvida...
Alguém com quem ela se importava poderia morrer.
– Vamos tirá-la daqui – o da esquerda sussurrou.
Enquanto a suspendiam, ela permaneceu largada, mas entreabriu um olho. Ambos usavam máscaras de esqui com buracos para os olhos e para a boca.
– Sola! O que está fazendo?
Vamos, idiotas, ela pensou enquanto eles brigavam com os braços e as pernas dela. Mexam-se...
Bateram-na contra uma parede. Quase derrubaram um abajur. Praguejaram alto o bastante para permitir que os ouvissem enquanto carregavam o peso morto dela pela sala de estar.
Bem quando ela estava prestes a voltar à vida só para ajudá-los a sair dali, eles chegaram à porta de entrada.
– Sola? Eu vou descer...
Orações se formaram em sua mente, desenrolando-se em conhecidas e velhas palavras de toda uma vida. A diferença nessa recitação era que elas não eram em vão – ela precisava desesperadamente que a avó, pelo menos uma vez, fosse devagar. Para que não chegasse embaixo antes de eles estarem fora da casa.
Por favor, Deus...
O ar frio que a atingiu foi uma boa notícia. Assim como a velocidade súbita com que os homens ganharam ao carregá-la até o carro. Bem como o fato de eles a colocarem no porta-malas sem amarrarem-na nos pés e nas mãos. Simplesmente a jogaram ali e saíram em disparada, os pneus girando em falso sobre o gelo até que a tração fosse conquistada e o movimento para a frente obtido.
Ela não enxergava coisa alguma, mas sentiu as viradas que faziam. Esquerda. Direita. Enquanto ela rolava de um lado para o outro, usou as mãos em busca de algo que pudesse usar como arma.
Sem sorte.
E estava frio. O que limitaria suas reações e força se aquela fosse uma viagem longa. Ainda bem que não tirara a parca.
Cerrando os dentes, ela se lembrou de que já estivera em situação pior.
De verdade.
Merda.
– Prometo não bater.
Enquanto estava na cozinha esperando que Fritz argumentasse, Layla terminava de abotoar o casaco de lã que Qhuinn lhe dera no começo do mês.
– E não vou demorar muito.
– Então eu posso levá-la, senhora – a voz do velho doggen se animou, as sobrancelhas brancas e volumosas se erguendo em sinal de otimismo. – Posso levá-la para onde quiser...
– Obrigada, Fritz, mas só vou dar uma volta. Sem destino.
Na verdade, estava ficando louca por ter que ficar em casa, e depois das boas notícias do mais recente exame de sangue da doutora Jane, ela resolvera que precisava sair um pouco. Desmaterializar-se não era uma opção, mas Qhuinn a ensinara a dirigir – e a ideia de se sentar num carro quentinho, sem nenhum lugar para ir... livre e sozinha... parecia o paraíso absoluto.
– Talvez eu deva ligar...
Ela o interrompeu.
– As chaves. Obrigada.
Ao esticar a mão, ela cravou o olhar no mordomo e o sustentou, fazendo a exigência do modo mais gentil, porém firme, que conseguia. Engraçado, houve um tempo, antes da gravidez, em que ela teria cedido e desistido ante o desconforto do doggen. Não mais. Estava começando a se acostumar a se defender, a defender o filho e o pai dele, muito obrigada...
Passar pelo inferno de quase perder aquilo que ela tanto queria a redefinira de modos que ela ainda estava tentando compreender.
– As chaves – repetiu.
– Sim, claro, é pra já – Fritz se apressou para a mesinha no fundo da cozinha. – Aqui estão.
Quando ele voltou e lhe apresentou um sorriso tenso, ela pousou uma mão em seu ombro, ainda que isso o embaraçasse ainda mais.
– Não se preocupe. Não vou longe.
– Está com o telefone?
– Sim, estou – ela o pegou do bolso do casaco. – Viu?
Depois de acenar em despedida, ela saiu para a sala de jantar e acenou para a equipe que já preparava o cômodo para a Última Refeição. Cruzando o átrio, ela se viu caminhando mais rápido ao se aproximar da entrada.
Em seguida, ela estava completamente fora da casa.
Do lado externo, parada no alto das escadas, inspirou fundo o ar gélido que era uma bênção, e olhou para a noite estrelada, sentindo uma onda de energia.
Por mais que quisesse sair correndo escada abaixo, no entanto, tomou cuidado ao descer, e também ao cruzar o pátio. Ao dar a volta pela fonte, apertou o botão do controle, e as luzes do gigantesco carro preto piscaram para ela.
Santa Virgem Escriba, permita que a coisa não fique destruída.
Colocando-se atrás do volante, ela empurrou o banco para trás porque, evidentemente, o mordomo fora o último a dirigir. Depois, ao colocar o controle no console e apertar o botão da ignição, fez uma pausa.
Ainda mais quando o motor pegou e começou a roncar.
Estaria mesmo fazendo aquilo? E se...
Detendo aquele espiral, moveu a alavanca próxima à mão direita para cima e olhou para a tela no painel para se certificar de que não havia nada atrás dela.
– Vai ficar tudo bem – disse para si mesma.
Tirou o pé do freio e o carro se moveu lentamente para trás, o que era bom. Infelizmente, ele foi na direção oposta à desejada e ela teve que mover o volante.
– Caramba.
Em seguida, um pouco de ré e primeira marcha, ela pilotando uma série de acelerações e paradas até que a frente circular e ornamentada do carro estivesse apontando para a estrada que descia a montanha.
Uma última olhada para a mansão e ela, a passo de caramujo, descia a colina, mantendo-se à direita conforme ensinado. Ao seu redor, o cenário estava borrado, graças ao mhis, e ela estava pronta para se ver livre dele. Visibilidade era algo que almejava desesperadamente.
Quando chegou à estrada principal, ela seguiu para a esquerda, coordenando a virada do volante com a aceleração a fim de demonstrar um pouco de ordem aparente. Em seguida, mas que surpresa, tudo correu muito bem: a Mercedes, ela achava que era assim que o veículo se chamava, era tão firme e confiável que ela quase se sentia à vontade para se recostar e assistir ao filme do cenário que passava ao seu lado.
Claro que a sua velocidade não passava de dez quilômetros por hora.
E o ponteiro do mostrador ia até duzentos e cinquenta!
Humanos tolos e sua velocidade. Pensando bem, se aquele era o único modo como podiam se deslocar, ela entendia o valor da pressa.
A cada quilômetro transposto, ela ganhava confiança. Usando o mapa do painel para se orientar, manteve-se bem distante do centro da cidade e da autoestrada. As terras cultivadas eram uma boa ideia – muito espaço para parar e não muitas pessoas passando, ainda que, vez ou outra, um carro aparecesse no meio da noite, os faróis aumentando e ultrapassando-a.
Demorou um pouco para ela perceber para onde estava indo. E quando percebeu, ordenou-se a dar meia-volta.
Não fez isso.
Na verdade, surpreendeu-se em ver que sabia muito bem para onde estava indo, no final das contas: suas lembranças deveriam ter esmaecido desde o outono, com a passagem dos dias, e esses eventos pareciam obscurecer ainda mais a localização que ela procurava. Nada disso aconteceu. Mesmo a estranheza de estar em um carro e ter que se restringir a estradas não diminuiu o que ela via em sua mente... ou aonde as suas lembranças a estavam levando.
Ela encontrou a campina que vinha buscando vários quilômetros além do complexo.
Estacionando na base, fitou a subida gradual. A grande árvore de bordo estava precisamente onde esteve antes, o seu tronco amplo e os galhos arteriais menores sem nenhuma folha que antes formava um dossel colorido.
Entre um piscar de olhos e o seguinte, ela visualizou o soldado abatido que antes esteve deitado no chão próximo às raízes, lembrando-se de tudo a respeito dele, desde os braços pesados até os olhos azuis-escuros e o modo como ele a recusara.
Inclinando-se para a frente, ela apoiou a cabeça no volante. Bateu uma vez. Repetiu o gesto uma segunda vez.
Não só era insensato encontrar qualquer tipo de galanteria naquela negação, como também muito perigoso.
Além disso, sentir empatia pelo inimigo era uma violação de todo o padrão de comportamento que ela sempre teve para si.
Todavia... sozinha no carro, com nada além dos seus pensamentos com quem discutir, ela descobriu que seu coração ainda estava com o macho que, por todo direito e moral, ela deveria odiar fervorosamente.
Aquela era uma situação muito triste, sim, verdadeiramente triste.
CAPÍTULO 77
Trez ganhou na loteria lá pelas dez e meia da noite.
Ele e iAm receberam quartos um de frente para o outro no terceiro andar da mansão, do lado oposto à suíte restrita que abrigava a Primeira Família. Seus aposentos eram maravilhosos, com banheiros anexos e imensas camas macias, e antiguidades e objetos da realeza em quantidade suficiente para causar inveja a qualquer museu.
Mas o que tornava as acomodações verdadeiramente incríveis era o teto sob o qual estavam.
E não porque as telhas eram uma fortuna que mantinham as forças da natureza do lado de fora.
Inclinando-se para perto do espelho sobre a pia, Trez deu uma ajeitada na camisa de seda preta. Alisou o rosto para ver se o seu barbear fora meticuloso o bastante. Arrumou a cintura das calças pretas.
Relativamente satisfeito, ele concluiu o seu ritual de se vestir. Em seguida, o coldre. Preto, para não aparecer. E o par de .40 que ele portava debaixo dos braços estava bem escondido.
Normalmente ele fazia o tipo jaqueta de couro, mas na última semana vinha usando o casaco de lã de peito duplo que iAm lhe dera há diversos anos. Passando-o pelos braços, ele puxou as mangas, e mexeu os ombros para frente e para trás, até que a costura estivesse bem ajeitada.
Recuando um passo, olhou-se no espelho. Nenhuma evidência de armas. E naquela roupa alinhada, não havia como saber que o seu negócio era lidar com álcool e prostitutas.
Fitando os olhos no espelho, desejou estar num ramo melhor. Algo de mais classe, como... analista político ou professor universitário... ou físico nuclear.
Claro, tudo aquilo era um monte de asneira humana para o qual ele não dava a mínima. Mas, por certo, ganhava do que ele de fato fazia para viver.
Consultando seu relógio Piaget – que não era o que ele usava de costume –, soube que não poderia esperar mais. Foi para o quarto vermelho, com suas cortinas de veludo pesadas e paredes adamascadas de seda, as passadas sem produzir som algum sobre o Bukhara que recobria o piso.
Sim, dada a sua mais recente... predileção... ele gostou de como se sentia naquela decoração, naquelas roupas, com seu modo de pensar.
Claro, a ilusão seria rompida no segundo em que pisasse na boate, mas era ali que a sua aparência contava.
Ou... poderia contar.
Pelo amor de Deus, ele esperava que, por fim, contasse.
A sua Escolhida, aquela que ele conhecera nos Grandes Campos de Rehv, e que vira na noite em que ali chegara, não esteve por perto. Portanto, de certo modo, ele pensou, ao sair do quarto, que toda aquela arrumação não valera de muita coisa.
No entanto, era otimista. Em meio a uma série de conversas orquestradas com diversos membros da casa, ele descobrira que a Escolhida Layla que viera servindo às necessidades de sangue dos caras, não poderia mais fazê-lo por estar grávida.
Evento abençoado esse.
Portanto, a Escolhida Selena...
Selena. Que lindo nome ela tinha...
De qualquer forma, a Escolhida Selena estivera vindo até ali para cuidar desse assunto, e isso significava que, cedo ou tarde, ela teria de voltar. Vishous, Rhage, Blay, Qhuinn e Saxton todos tinham de se alimentar com regularidade, e a julgar pelo modo como os caras vinham lutando nas últimas noites, eles precisariam de uma veia.
O que significava que ela teria que aparecer.
Só que... maldição. Ele não poderia dizer que gostava do motivo. A ideia de alguém tomar a veia dela meio que o fazia querer dar uma de Ginsu ou algo semelhante.
Levando-se tudo em consideração, a sua obsessão era um tanto triste, particularmente em sua manifestação: todas as noites durante a última semana, ele se demorou durante a Primeira Refeição, aguardando, parecendo casual, conversando com o maldito Lassiter – que, na verdade, não era um cara tão ruim depois que você o conhecia melhor. A verdade era que aquele anjo era uma fonte de informações sobre a casa e tão ligado na TV que nem parecia se dar conta de quantas perguntas lhe eram feitas a respeito das fêmeas. Do Primale. Se havia algum tipo de relacionamento acontecendo, com alguém além dos casais vinculados.
Parando ao lado do computador, ele desligou o The Howard Stern Show, pondo um fim a um novo round de blá-blá-blá; depois saiu do quarto, passando ao lado da parede em arco que se retraía toda vez que Wrath ou Beth queria entrar ou sair dos aposentos privados. Chegando às escadas acarpetadas, apareceu na ponta do corredor das estátuas.
Ou corredor dos caras de bunda de fora, como ele pensava sobre o lugar.
Indo para a direita, passou diante do escritório do Rei, que estava fechado, e desceu a escadaria principal até aquele vestíbulo incrível. No meio do caminho, ele olhou para o relógio, desejando não ter que sair. No entanto, negócios eram negócios e...
Ele estava a meio caminho até o piso de mosaico abaixo quando a fêmea que ele tanto desejava encontrar saiu da sala de bilhar e seguia na direção da biblioteca.
– Selena – ele a chamou, indo até a balaustrada e se recostando em todo aquele ouro.
Enquanto ele olhava por sobre o corrimão, ela levantou a cabeça e seus olhos se encontraram.
Tum. Tum. Tum.
Seu coração era como um canto de guerra dentro do peito, e as mãos automaticamente foram para o casaco, para garantir que a frente continuasse fechada. Afinal, ela era uma fêmea de valor – e ele não queria assustá-la com as suas armas.
Ah, caramba, como ela era linda.
Com o cabelo escuro torcido na altura da nuca e seu manto diáfano cobrindo o corpo, ela era preciosa e gentil demais para estar perto de qualquer coisa violenta.
Ou algo como ele.
– Olá – ela o cumprimentou com um sorriso delicado.
Aquela voz. Jesus do céu, aquela voz...
Trez desceu correndo.
– Como está? – perguntou quase derrapando ao parar diante dela.
Ela fez uma pequena mesura.
– Muito bem.
– Isso é bom. Muito bom. Então... – merda. – Você vem sempre por aqui?
Ele queria se acertar na cabeça. Aquilo por acaso era um bar? Droga...
– Quando sou chamada, sim – a cabeça dela se inclinou para o lado, os olhos se estreitaram. – Você é diferente, não é?
Ao olhar para a pele escura das mãos, ele sabia que ela não estava se referindo à sua cor.
– Não tão diferente.
Ele tinha presas, por exemplo, que queriam morder. E... outras coisas. Que por acaso poderiam ficar enrijecidas só por estarem na presença dela.
– O que você é? – o olhar dela era firme e determinado, como se o estivesse analisando em algum nível além da audição e da visão. – Não consigo... determinar.
Ela não é para você.
Quando a voz do irmão surgiu, ele a deixou de lado.
– Sou um amigo da Irmandade.
– E do Rei, ou não estaria aqui.
– Isso mesmo.
– Você luta com eles?
– Se eles me chamam.
Agora os olhos dela reluziam com respeito.
– Isso é muito digno – ela se curvou novamente. – O seu trabalho é muito louvável.
O silêncio recaiu sobre eles, e enquanto ele quebrava a cabeça para arranjar alguma coisa, qualquer coisa, ele se lembrou do motivo de toda aquela merda que vinha fazendo. Bem, aquilo ele sabia fazer muito bem sem nenhum tipo de aviso. Agora, conversa educada? Era um tipo de idioma completamente desconhecido.
Deus, ele odiava pensar naquilo perto dela.
– Você está bem? – perguntou-lhe a Escolhida.
E foi nesse instante em que ela o tocou. Esticando a mão, ela a pousou em seu antebraço – mesmo sem ter contato pele a pele, seu corpo sentiu uma ligação se espalhar, os braços e as pernas ficando imóveis, a mente pairando num estado latente, como se estivesse em transe.
– Você é... incrivelmente linda – ele se ouviu dizer.
As sobrancelhas da Escolhida se ergueram.
– Só estou sendo honesto – ele murmurou. – E tenho que lhe dizer... eu venho esperando para vê-la a semana inteira.
A mão dela, aquela que o tocava, retraiu-se e foi para o colarinho do manto, fechando as lapelas.
– Eu...
Ela não é para você.
Enquanto o embaraço dela acabava com ele, Trez baixou as pálpebras, e uma sensação do tipo “que diabos você estava pensando” o atingiu em cheio. Pelo que ele sabia sobre as Escolhidas da Virgem Escriba, elas eram do tipo mais puro e virtuoso de fêmea que havia no planeta. O polo oposto das suas “acompanhantes” mais recentes.
O que ele achava que aconteceria se começasse a passar cantadas nela? Que ela pularia nele, enlaçando-o com as pernas?
– Desculpe – disse ela.
– Não, escute, sou eu quem tem que se desculpar – ele recuou um passo, porque, ainda que ela fosse alta, devia ter um quarto do seu tamanho, e a última coisa que ele queria era que ela se sentisse acossada. – Eu só queria que soubesse.
– Eu...
Maravilha. Toda vez que uma fêmea precisa de tempo para encontrar as palavras certas, você sabe que pisou na bola.
– Desculpe – ela repetiu.
– Não, está tudo bem. Sério – ele levantou uma mão. – Não se preocupe com isso.
– É só que eu...
Amo outra pessoa. Sou comprometida. Não estou nem um pouco interessada em você.
– Não – ele a interrompeu, não querendo ouvir os detalhes. Eles eram apenas vocabulário para o inevitável. – Está tudo bem. Eu entendo...
– Selena – uma voz à esquerda chamou.
Era de Rhage. Merda.
Enquanto a cabeça dela se voltava para aquela direção, a luz atingiu a face e os lábios num ângulo diferente, e ela ficou ainda mais linda, claro. Ele poderia encará-la para sempre...
Hollywood se inclinou para fora do arco da entrada da biblioteca.
– Estamos prontos para você... Ei, oi cara.
– Oi – Trez o cumprimentou. – Tudo bem?
– Ótimo. Só precisamos cuidar de uma coisinha.
Maldito. Bastardo. Cret...
Trez esfregou o rosto. Certo. Ok. Não havia espaço naquela casa imensa para aquele tipo de agressão, ainda mais no que se referia a uma fêmea que ele encontrara apenas duas vezes na vida. Que não queria conhecê-lo. Enquanto ela realizava o seu trabalho.
– Estou de saída – informou ao Irmão. – Volto antes do amanhecer.
– Entendido, cara.
Trez acenou para Selena quando ela começou a se afastar, dirigindo-se para o vestíbulo e desmaterializando até o centro da cidade – que era onde pertencia.
Ele não conseguia acreditar que esperara uma semana por aquilo; e ele devia ter imaginado que terminaria assim.
Sentindo-se um tolo, ele retomou a forma atrás do Iron Mask, nas sombras do estacionamento. Mesmo lá atrás, ele já ouvia a batida grave da música, e ao se aproximar da porta dos fundos, com a tinta descascada e a maçaneta muito usada, ele sabia que seu mau humor era uma complicação com a qual teria de lidar com cautela pelas próximas seis ou oito horas.
Humanos + álcool × desejo de matar = contagem de corpos.
Nada em que ele e seus associados tivessem interesse.
Do lado de dentro, ele foi direto para o escritório e arrancou sua fantasia de Halloween de legitimidade, tirando o casaco chique, bem como a camisa de seda, ficando só de camiseta preta e as belas calças sociais.
Xhex não estava no escritório, então ele apenas acenou para as garotas que estavam se preparando para trabalhar no vestiário e saiu para a terra da grande imundície.
A boate já estava bem cheia, e todos vestiam roupas pretas e justas, cultivando uma expressão de aborrecimento – ambas acabariam se perdendo enquanto o tempo atuava em seus fígados digerindo a mistura de bebidas que ingeriam e as drogas que tomavam.
– Oi, paizinho – uma delas lhe disse.
Olhando para baixo, ele percebeu uma coisinha curvilínea encarando-o. Com os olhos com maquilagem tão preta que ela mais parecia estar de óculos escuros, e um bustiê agarrado, ela mais parecia um animê vivo.
Tédio.
– Eu sou blá-blá-blá. Você vem sempre aqui? – ela deu uma chupada no canudo vermelho do drinque dela. – Blá-blá-blá estudante universitária blá-blá-blá psicologia. Blá-blá-blá?
Pelo canto do olho, ele viu parte da multidão se mover, como se estivessem se afastando de um leão de chácara ou, quem sabe, de uma bola de demolição.
Era Qhuinn.
Parecendo tão mal-humorado quanto Trez se sentia.
Trez acenou para o cara, e o lutador retribuiu o aceno enquanto seguia para o bar.
– Uau, você o conhece? – perguntou a estudante universitária. – Quem é ele? Blá-blá-blá ménage à trois, quem sabe, blá-blá-blá?
Enquanto ela falava como se fosse uma garotinha bem safada, Trez a avaliou de cima a baixo.
Por muitos motivos, o prato de hors d’oeuvres sendo oferecido era totalmente impalatável.
– Blá-blá-blábláblá – risadinhas. Quadril gingando. – Blá?
De modo meio embaçado, Trez estava ciente de sua cabeça se mexendo, e eles estavam se movendo para uma parte escura. A cada passo que dava, outra parte sua se fechava, desligava-se, saía em hibernação. Mas ele não conseguia se deter. Ele era um viciado esperando que a próxima dose fosse tão boa quanto a primeira – e que lhe trouxesse o maldito alívio de que tanto precisava.
Mesmo ele sabendo que isso não aconteceria.
Não naquela noite. Não com ela.
Em nenhuma parte de sua vida.
Provavelmente nunca, jamais.
Mas, às vezes, você simplesmente tinha de fazer alguma coisa, ou acabaria enlouquecendo.
– Diz que me ama? – a garota lhe pediu ao se pressionar contra o corpo dele. – Por favoooor...
– Claro – respondeu ele, meio entorpecido. – Isso mesmo. O que você quiser.
Tanto faz.
CAPÍTULO 78
Xcor cruzou as mãos e as apoiou sobre o tampo lustroso da mesa. Ao seu lado, Throe falava baixo; ele próprio permanecera calado desde que tiraram o peso dos pés naquelas cadeiras combinando.
– Isto parece muito persuasivo – seu soldado virava outra página de uma pilha de documentos que lhe fora oferecida. – Muito persuasivo mesmo.
Xcor olhou para o anfitrião deles, do lado oposto da mesa. O advogado da glymera tinha a constituição de um panfleto, tão magro que alguém haveria de imaginar se deitado ele apresentava algum tipo de verticalidade. Ele também se expressava com uma perfeição exaustiva, seus parágrafos verbais em fontes pequenas e repletos de palavras complicadas.
– Diga-me, qual a abrangência deste resumo? – perguntou Throe.
Os olhos de Xcor se fixaram nas estantes. Elas estavam lotadas de volumes de couro, e ele acreditava que o cavalheiro tivesse lido cada um deles. Talvez duas vezes.
O advogado se lançou em mais um cruzeiro bem pensado e articulado na língua inglesa:
– Eu não o teria entregado a vocês dois sem ter me certificado de que todos os esforços tivessem sido...
Em outras palavras, sim, Xcor completou mentalmente.
– O que não vejo aqui – Throe virou mais páginas – é qualquer anotação de uma opinião contrária.
– Isso porque não fui capaz de encontrar nenhuma. O termo “sangue puro” foi usado em apenas dois contextos: no que se refere à linhagem, do filho de um macho ou de uma fêmea de sangue puro, e no da identidade racial. No transcorrer do tempo, houve alguma dissolução da carga genética num âmbito amplo, alguma contaminação por parte dos humanos e, mesmo assim, indivíduos com distante sangue de Homo sapiens ainda foram considerados sangue puro pela lei desde que passassem pela transição. Agora, claro, esse não é o caso com o filho de um humano com um vampiro. Isso caracteriza um verdadeiro mestiço. E esses indivíduos, mesmo que sobrevivam à transição, historicamente receberam um tratamento diferenciado pela lei, com menos direitos e privilégios do que os outros civis. A preocupação, portanto, é de que como a shellan do Rei é mestiça, existe uma chance de que um filho macho deles possa não sobreviver à transição.
Throe franziu a testa como se estivesse considerando as implicações.
– Mas dentro de 25 anos, saberemos se isso é ou não verdade, e o casal real pode tentar ter mais de um filho.
Xcor interveio acidamente:
– Você está pressupondo que estaremos neste planeta em duas décadas e meia. Neste compasso, já estaremos quase extintos.
– Precisamente – o advogado inclinou a cabeça na direção de Xcor. – Sob uma perspectiva prática, ser um quarto humano pode ser suficiente para impedir que a transição ocorra; houve incidentes documentados disso e estou certo de que Havers poderia nos fornecer mais exemplos. Além disso, existe muito receio entre as pessoas da minha geração de que um filho com um vínculo tão próximo aos humanos de fato possa preferir se casar com uma de sua espécie... Isto é, sair à procura de alguém que não seja da nossa espécie. Nesse caso, nós poderíamos ter uma rainha humana e isso é – o macho meneou a cabeça em sinal de desgosto – absolutamente inadmissível.
– Portanto, existem duas questões aqui – Xcor se recostou e a cadeira rangeu sob o seu peso. – O precedente legal e as implicações sociais.
– De fato – o advogado mais uma vez balançou a cabeça. – E eu creio que os temores sociais podem muito bem ser aproveitados para preencher as áreas cinzentas ao redor da porção relevante da lei no que se refere ao filho do Rei.
– Concordo – Throe disse ao fechar os papéis. – A questão é: como procedemos?
Quando Xcor abriu a boca para falar, uma estranha vibração o perpassou, interferindo em seu processo de pensamento, o corpo se tornando um diapasão em alguma mão invisível.
– Gostaria de rever a documentação? – o advogado lhe perguntou.
Como se ele pudesse, Xcor pensou amargamente. Na verdade, haveria de se imaginar o que o macho letrado pensaria se soubesse que o cabeça era absolutamente analfabeto.
– Já estou convencido – ele se levantou, pensando que talvez uma esticada poderia curar aquilo que o afligia. – E penso que essa informação deva ser partilhada com os membros do Conselho.
– Tenho contatos suficientes para convocar os princeps.
Xcor se aproximou de uma janela e olhou para fora, deixando seus instintos soltos. Seria a Irmandade?
– Faça isso – disse ele distraído enquanto o entoar em seu íntimo aumentava, criando uma necessidade impossível de se ignorar...
Sua Escolhida...
A sua Escolhida saíra do complexo e estava perto...
– Preciso ir – disse apressado ao seguir para a porta. – Throe, conclua a reunião.
Houve certa comoção atrás dele, a conversa entre os dois que ficaram para trás, sobre a qual ele pouco se importava. Passando pela porta da frente, ele observou as terras cultivadas ao seu redor...
E localizou o sinal.
Entre um batimento cardíaco e o seguinte, ele desapareceu, o corpo atraído pela fêmea assim como um ladrão moribundo se atraía pela redenção.
No Iron Mask, no centro da cidade, Qhuinn foi até o bar e estacionou numa das banquetas de couro. À sua volta, a música reverberava, e suor e sexo já estavam misturados ao ar quente, fazendo-o se sentir claustrofóbico.
Ou talvez aquilo só estivesse em sua cabeça.
– Faz tempo que não o vejo – a barwoman, uma fêmea de boa aparência e de peitos grandes colocou um guardanapo diante dele. – O de sempre?
– Duplo.
– É pra já.
Enquanto esperava que a sua Herradura Selección Suprema chegasse, ele sentia os olhos humanos no clube pairando sobre si.
Sair do armário? Por que, acha que sou gay?
Você transa com homens! O que acha que isso significa, porra?
Balançando a cabeça, ele bem que merecia uma folga: aquela conversa animada vinha martelando em sua cabeça, logo abaixo da superfície do seu consciente, desde que a merda acontecera uma semana antes. De modo geral, ele realizou um excelente trabalho de sublimação. Infelizmente, aquela maré de sorte parecia ter chegado ao fim. Quando sua tequila chegou e ele esvaziou um copo, e depois o outro, ele sabia que não haveria outras distrações em que se apegar, não haveria mais como postergar a introspecção.
Estranhamente – ou talvez nem tanto assim –, ele pensou no irmão. Ainda não contara sobre o bebê a Luchas. Tudo parecia muito tênue. Embora a gravidez estivesse firme e forte, aquilo lhe parecia apenas mais uma camada de drama que o cara não precisaria àquela altura.
Por certo ele não mencionara sua vida sexual e Blay. Primeiro porque seu irmão ainda era virgem – ou era isso o que Qhuinn achava: a glymera era muito mais restritiva quanto ao que as fêmeas podiam fazer antes de se vincularem e, mesmo que Luchas tivesse transado com alguma fêmea de modo casual, isso até seria tolerado caso ele não se envolvesse a longo prazo. Porém, todas as alimentações de Luchas depois de sua transição foram testemunhadas, portanto, ali não houve nenhuma oportunidade, e as noites do cara foram sempre muito ocupadas com estudos e aprendizagem e eventos sociais monitorados. Nenhuma chance ali também.
De algum modo, falar sobre tudo o que Qhuinn fizera não lhe parecia apropriado. E também, segundo Blay, nem fora tão interessante assim.
Qhuinn esfregou o rosto.
– Mais duas – pediu.
Enquanto a barwoman o atendia prontamente, ele pensou que tinha achado sexo com Blay muito interessante. E, na hora, Blay não lhe parecera muito entediado...
Que seja. Voltando a Luchas. Em todas aquelas conversas à beira do leito hospitalar que vinha tendo com o irmão, as fêmeas não foram abordadas – e machos, certamente, não constavam do menu. Antes dos ataques, Luchas fora hetero como o pai, o que significava que a transa era um simples “papai-mamãe” com a fêmea com que se tinha um compromisso para gerar um filho e talvez uma vez ao ano depois de um festival.
Machos, fêmeas, homens, mulheres, em diversas combinações, às vezes em público, raramente na cama? Não era algo sobre o qual Luchas tivesse qualquer tipo de referência.
Quando as Herraduras três e quatro foram colocadas à sua frente, ele acenou um agradecimento.
Buscando bem fundo, mesmo que detestasse tanto essa expressão quanto o seu significado, ele tentou ver se havia mais alguma coisa entre as suas reticências para conversar sobre a sua vida com o membro restante de sua família. Alguma vergonha. Embaraço. Inferno, qualquer tipo de rebelde oculto que ele não desejava infligir ao irmão aleijado...
Qhuinn se retorceu dentro de suas roupas.
Ora, ora. Quer saber? Sendo brutalmente honesto? Sim, ele estava um pouco sensível. Mas por não querer ser visto de maneira estranha por mais um motivo... como seu irmão conservador, provavelmente virgem, sem dúvida pensaria se ele lhe contasse sobre todos os machos e homens.
Era isso.
Sim. Só isso.
Não sei como explicar. Eu só me vejo com uma fêmea a longo prazo.
Ele dissera isso a Blay há um tempo, e falara sério...
Algum tipo de emoção se enroscou em seu íntimo, revirando as coisas lá dentro, rearranjando seu fígado e intestino.
Tentou se convencer de que fosse o álcool.
O medo repentino que sentiu sugeria outra coisa.
Qhuinn engoliu a terceira dose na esperança de se livrar da sensação. E a quarta. Nesse meio-tempo, os rostos, os seios e os sexos de muitas fêmeas e mulheres com que trepara lhe vieram à mente...
– Não – disse em voz alta. – Não, não.
Ah, Deus...
– Não.
Quando o cara sentado ao seu lado lhe lançou um olhar estranho, ele se calou.
Esfregando o rosto, ele se sentiu tentado a pedir mais um drinque, mas se conteve. Algo sísmico estava desesperadamente tentando romper à superfície; ele o sentia tremendo na fundação de sua psique.
Você não sabe quem você é, e esse sempre foi o seu problema.
Cacete. Se ele tomasse mais tequila, se continuasse engolindo, se continuasse naquele curso de fuga, o que Blay dissera a seu respeito seria verdade. O problema era que ele não queria saber. Ele simplesmente... não queria... saber...
Não ali. Não agora. Não... nunca.
Praguejando, ele sentiu um gêiser de percepção começar a ferver, algo alto e claro em seu peito ameaçando irromper – e ele sabia que uma vez libertado, não mais voltaria para baixo da superfície.
Maldição. A única pessoa com quem ele queria falar a respeito não estava falando com ele.
Ele deduziu que deveria criar coragem e lidar com aquilo sozinho.
Em certo nível, a ideia de que ele fosse... bem, você sabe, usando as palavras que a sua mãe teria dito... não deveria afetá-lo. Ele era mais forte que a condescendência da glymera e, merda, vivia num ambiente em que ser gay ou hétero pouco importava: contanto que você conseguisse segurar as pontas no campo de batalha e não fosse um completo idiota, a Irmandade estaria sempre ao seu lado. E o histórico sexual de V., por exemplo? Velas pretas usadas para algo além de fonte de luz no escuro? Inferno, ser ligado em machos era bolinho comparado com esse tipo de coisa.
Além disso, ele não vivia mais na casa dos pais. Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Aquela não era a sua vida.
Contudo, enquanto repetia isso para si uma vez atrás da outra, o passado que não mais existia estava logo atrás dele, observando-o por sobre o ombro... julgando-o e considerando-o não só deficiente, não só inferior, mas completa e absolutamente indigno.
Era como a dor do membro amputado: a gangrena se fora, a infecção fora cortada, a amputação completada... mas as sensações horríveis permaneciam. Ainda doíam demais. Ainda o aleijavam.
Todas aquelas mulheres... aquelas fêmeas... o que era a verdadeira natureza da sexualidade, ele se perguntou repentinamente. O que contava como atração? Porque ele quisera transar com elas, e o fizera. Ele as pegara em boates e bares, até mesmo naquela loja no shopping quando foram comprar roupas de verdade para John Matthew depois que ele passara pela transição.
Escolhera as mulheres, em meio a multidões, utilizara algum tipo de filtro que excluía umas e destacava outras. Recebera sexo oral, fizera sexo oral. Pegara-as por trás, de lado e pela frente. Agarrara seus seios.
Fizera tudo isso por escolha própria.
Fora diferente com os caras? E mesmo se tivesse sido, ele tinha de se rotular por causa disso?
E se não se definisse, isso significaria que ele não seria algo que os pais, que estavam mortos e que sempre o odiaram de todo modo, não teriam aprovado?
Enquanto todas essas perguntas surgiram em sua cabeça, bombardeando-o com o exato tipo de autoanálise que sempre excluiu dos seus pensamentos, ele chegou a uma conclusão ainda mais chocante.
Por mais importante que toda aquela merda fosse, por mais que ele estivesse se transformando num Cristóvão Colombo, nada disso se aproximava da questão mais crítica.
Nem de perto.
O problema real que descobrira fez toda aquela merda parecer um passeio no parque.
CAPÍTULO 79
Assail não perdoava xingamentos. Em sua opinião, eles eram vulgares e desnecessários. Dito isso, a semana fora uma merda.
No porão da casa, no cofre, ele e os primos tinham acabado de organizar a bolada dos últimos dias: notas estavam agrupadas em bolos que foram contados, amarrados e separados de acordo com a classe, e o montante era excepcional, mesmo para os seus padrões.
Tudo somado, eles tinham cerca de duzentos mil dólares.
O Redutor Principal e seu alegre bando de assassinos vinham fazendo um excelente trabalho.
Ele deveria estar feliz.
Não estava.
Na verdade, ele se sentia um filho da mãe infeliz e o motivo para o seu mau humor o deixava ainda mais irritado.
– Vão até Benloise – disse aos gêmeos. – Peguem a próxima leva de cocaína e voltem aqui para separá-la.
Os gêmeos eram mestres em separar a droga colocando aditivos antes de embalá-la em saquinhos, o que era uma coisa boa. Os assassinos estavam distribuindo três vezes mais drogas do que antes.
– Depois façam a entrega – Assail consultou o relógio. – Está marcada para as três da manhã, portanto, vocês devem ter tempo de sobra.
Levantando-se da mesa, esticou os braços acima da cabeça e arqueou as costas. Seu corpo andava enrijecido nos últimos tempos, e ele bem sabia por quê: estar num estado constante de excitação latente endurecera suas coxas e costas, dentre outras coisas... que se mostraram deveras resistentes à autorregulação.
Depois de anos sem se preocupar muito em cuidar ele mesmo das suas ereções, caíra na rotina de se dar prazer.
E tudo o que isso resultava era em sublinhar aquilo que ele não vinha conseguindo.
Na última semana, ele esperou que Marisol lhe ligasse, ansiou para que o telefone tocasse, e não porque algum desconhecido tivesse aparecido à sua porta. A mulher o desejara tanto quanto ele a desejara, e, por certo, isso levaria a um encontro. Não fora o caso. E o fato de ela ter demonstrado esse tipo de controle com o qual ele vinha se debatendo o fez questionar não só o seu autocontrole, mas também a sua sanidade.
De fato, ele começava a temer que acabasse cedendo antes do que ela.
Saindo do porão, subiu as escadas até a cozinha. A primeira coisa que fez foi pegar o telefone, para o caso de ela ter telefonado ou aquele Audi dela ter finalmente se movido após sete noites sem ir a parte alguma. O maldito veículo permanecera estacionado diante daquela casa desde que ele lhe fizera uma visita, como se, talvez, ela soubesse que ele havia colocado um rastreador nele.
Verificando a tela, viu que alguém lhe telefonara, mas era um número inexistente em sua lista de contatos.
E também havia uma mensagem de voz.
Enquanto a acessava, dirigia-se para à sala em que guardava os charutos. Vinha fumando muito ultimamente, e, talvez, utilizando coca demais. O que era dolorosamente insensato; se alguém já estava irritado e frustrado, acrescentar estimulantes a essa química interna era o mesmo que colocar gasolina no fogo...
– Hola. Sou avó de Sola. Estou tentando falar com... Assail... por favor? – Assail ficou imóvel no meio da sala. – Pode ligar de volta? Obrigada...
Com um sentimento de horror, ele interrompeu a mensagem e apertou a tecla para retornar a ligação.
Um toque. Dois toques...
– ¿Hola?
Na verdade, ele não sabia o nome dela.
– Aqui quem fala é Assail, senhora. A senhora está bem?
– Não, não. Não estou. Encontrei seu número na mesinha de cabeceira dela por isso liguei. Alguma coisa está errada.
Ele segurou o iPhone com mais força.
– Conte-me.
– Ela sumiu. Voltou para casa, mas saiu pela porta logo depois que chegou. Eu a ouvi sair... Só que tudo dela, a bolsa, o carro, está tudo aqui. Eu dormia e ouvi de lá de cima alguém se mexer. Chamei por ela e ninguém respondeu... Depois ouvi um barulho forte, muito forte, e desci. A porta da frente está aberta, e acho que ela foi levada... Não sei o que fazer. Ela sempre me diz que a gente não pode chamar a polícia. Eu não sei...
– Psssiu. Está tudo bem. A senhora fez o que era certo. Vou já para aí.
Assail correu para a porta da frente sem se importar em avisar aos gêmeos; não havia mais nada na sua mente a não ser chegar àquela casinha o mais rápido que podia.
Um segundo foi tudo o que levou para ele se desmaterializar, e enquanto retomava sua forma no jardim da frente, ele pensou que de todos os possíveis cenários em relação ao seu retorno ali, aquele não era um deles.
Como a avó relatara, o Audi estava estacionado na rua no fim da calçada. Bem onde estivera antes. Mas o que se observava? Uma bagunça de pegadas na neve, a trilha cruzando o jardim até a rua num padrão diagonal.
Ela fora sequestrada, Assail deduziu.
Maldição.
Subindo às presas os degraus até a frente, ele apertou a campainha e bateu os pés. A ideia de que alguém levara a sua fêmea...
A porta se abriu e a mulher do outro lado estava visivelmente abalada. E pareceu ainda mais assustada ao erguer os olhos para vê-lo totalmente.
– Você é... Assail?
– Sim. Por favor, deixe-me entrar, e eu a ajudarei.
– Você não é o homem que veio aqui.
– Não o que a senhora viu. Por favor, deixe-me entrar.
Enquanto a avó de Marisol dava um passo para o lado, ela se lamentava:
– Ah, não sei onde ela está. Mãe de Deus, ela sumiu, sumiu...
Ele perscrutou a sala de estar arrumada, e depois foi até a cozinha para olhar pela porta dos fundos. Intacta. Abrindo-a, ele se inclinou para fora. Nenhuma pegada além daquelas deixadas na semana anterior. Fechando e trancando a porta, ele voltou para junto da avó.
– A senhora estava no andar de cima?
– Sí. Na cama. Como disse, eu dormia. Eu a ouvi entrar, mas estava meio dormindo, meio acordada. Depois ouvi... o barulho... de alguma coisa caindo. Eu disse que ia descer, e a porta da frente abriu.
– Viu algum carro se afastar?
– Sí. Mas de muito longe, não vi a... a placa, nem nada.
– Há quanto tempo?
– Liguei para o senhor uns quinze, vinte minutos depois. Fui para o quarto dela e olhei ao redor... foi aí que eu encontrei o guardanapo com o seu número.
– Alguém ligou?
– Ninguém.
Ele consultou o relógio, e ficou preocupado com a palidez da anciã.
– Aqui, senhora, sente-se.
Enquanto ele a acomodava no sofá florido da sala de estar, ela pegou um lenço delicado e o pressionou aos olhos.
– Ela é a minha vida.
Assail tentou se lembrar como os humanos se dirigiam aos seus superiores.
– Senhora... Hum... senhora...?
– Carvalho. O meu marido era brasileiro. Sou Yesenia Carvalho.
– Senhora Carvalho, preciso lhe fazer algumas perguntas.
– Pode me ajudar? A minha neta...
– Olhe nos meus olhos – quando a mulher o fez, ele disse num tom baixo: – Não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Entende o que estou dizendo?
Enquanto ele enviava a sua intenção no ar entre eles, os olhos da senhora Carvalho se estreitaram. Depois de um momento, ela se acalmou e balançou a cabeça uma vez, como se aprovasse os métodos dele, ainda que existisse uma boa probabilidade de eles serem violentos.
– O que precisa saber?
– Existe alguém que a senhora acredite que possa machucá-la?
– Ela é uma boa menina. Trabalha num escritório à noite. Ela é reservada.
Portanto, Marisol não contara à avó nada do que de fato fazia. Isso era bom.
– Ela tem bens?
– Dinheiro?
– Sim.
– Somos pessoas simples – ela notou as roupas costuradas e feitas à mão dele. – Não temos nada fora esta casa.
De algum modo, ele duvidava disso, mesmo sabendo muito pouco sobre a vida da sua mulher: achava difícil acreditar que ela não tivesse juntado dinheiro fazendo o que fazia, e ela nem tinha de pagar impostos sobre a renda que ganhava com tipos como Benloise.
No entanto, ele imaginava que um telefonema pedindo resgate não seria feito.
– Não sei o que fazer.
– Senhora Carvalho, não quero que se preocupe – ele se levantou. – Cuidarei disso imediatamente.
Os olhos dela se estreitaram novamente, transmitindo uma inteligência que o fez pensar na neta dela.
– O senhor sabe quem fez isso, não?
Assail se curvou num sinal de respeito.
– Eu a trarei de volta.
A pergunta era quantas pessoas ele teria que matar para conseguir isso – e se Marisol estaria viva até aquilo acabar.
Só de pensar que alguém poderia ferir aquela mulher o fez rugir, as presas desceram e a sua porção civilizada se rompeu tal qual a pele de uma cobra.
Enquanto saía da modesta casa, Assail teve a sensação de saber do que aquilo se tratava. E se estivesse certo? Mesmo apenas vinte minutos após o sequestro poderia ser tempo demais.
E, nesse caso, um determinado sócio seu teria de aprender novas lições no que se referia à dor.
E Assail seria o professor desse homem.
CAPÍTULO 80
Layla ficou dentro da Mercedes. Estava quente ali, o banco era confortável e ela se sentia segura dentro do confinamento da gaiola de aço que a envolvia. E ela tinha uma espécie de cenário diante do qual refletir: os faróis iluminavam à frente do carro, os fachos de luz avançando bem em meio à noite.
Depois de um tempo, flocos de neve começaram a flutuar na iluminação, suas rotas preguiçosas e circulares sugerindo que eles não queriam que a descida das nuvens de lá de cima terminasse.
Sentada em silêncio, ligando e desligando o motor de tempos em tempos conforme Qhuinn lhe ensinara a fazer no tempo frio, a sua mente ficou em branco. Não, sua mente não estava nem um pouco vazia. Embora olhasse fixamente adiante e percebesse a queda da neve, e a estrada à frente e o cenário tranquilo que a rodeava... o que ela enxergava era aquele lutador. Aquele traidor.
Aquele macho que estava sempre com ela, especialmente quando ela estava sozinha.
Mesmo sentada a sós no carro no meio do nada, a presença dele era tangível, as suas lembranças tão fortes que ela seria capaz de jurar que ele estava ao seu alcance. E o desejo... Santa Virgem Escriba, o desejo que ela sentia não era nada que ela pudesse partilhar com aqueles a quem amava.
Era um destino tão cruel reagir daquela forma a alguém que era...
Layla se retraiu no assento, um grito escapando de seus lábios e ecoando no interior do carro.
A princípio, ela não estava muito certa se o que se materializara nos fachos de luz era, de fato, real: Xcor apareceu de pé, com as botas plantadas na estrada adiante, o corpo imenso e coberto por couro parecendo absorver os fachos gêmeos como um buraco negro o faria.
– Não! – ela exclamou. – Não!
Ela não sabia a quem estava se dirigindo, ou o que negava. Mas uma coisa era certa: enquanto ele avançava um passo e depois outro, ela soube que o soldado não era invenção da sua cabeça ou dos seus desejos horrorosos, mas algo muito real.
Ligue o carro, ordenou-se. Ligue e acelere.
Até um vampiro, mesmo um terrivelmente feroz como ele, não era páreo para um impacto daqueles.
– Não – ela sibilou quando ele se aproximou.
O rosto dele era exatamente como ela se lembrava: perfeitamente simétrico, com maçãs altas, olhos estreitos, e um franzir permanente entre as sobrancelhas. O lábio superior era retorcido para cima como se ele estivesse rosnando, e o corpo... o corpo se movia tal qual o de um animal, os ombros se movimentando com poder mal contido, as coxas pesadas carregando-o para frente com a promessa de uma força brutal.
Ainda assim... ela não sentia medo.
– Não – ela gemeu.
Ele parou quando estava a apenas meio metro do para-choque, o casaco de couro rodopiando ao seu lado, as armas reluzindo. Os braços estavam ao lado do carro, mas não continuaram assim. Ele os esticou, movendo-os lentamente...
Para retirar algo das costas.
Uma arma de algum tipo. Que ele depositou sobre o veículo.
E depois as mãos, cobertas em luvas de couro preto, foram para a frente do casaco... e tiraram duas pistolas de dentro do casaco. E adagas de um coldre que cruzara os peitorais. E uma corrente comprida. E algo que brilhou, mas que ela não reconheceu.
E tudo isso ele colocou sobre o carro.
Então, ele recuou. Abriu os braços. E girou num círculo lento.
Layla inspirou fundo.
Ela não tinha uma natureza guerreira. Nunca tivera. Mas ela sabia, instintivamente, que dentro do código dos guerreiros, desarmar-se ante outras pessoas era um tipo de vulnerabilidade que não era realizada com facilidade. Claro que ele permanecia letal – um macho com aquela constituição física era capaz de matar somente com as mãos.
No entanto, ele estava se oferecendo para ela.
Provando do modo mais aparente possível que ele não queria lhe fazer mal.
A mão de Layla seguiu para uma fileira de botões no painel lateral e lá parou. No entanto, ela não estava parada – respirava com dificuldade, como se estivesse fugindo, seu coração estava acelerado, o suor brotava sobre o lábio superior...
Ela destravou as portas.
Que a Virgem Escriba a ajudasse... mas ela destrancou as portas.
Quando o som reverberou no interior, os olhos de Xcor se fecharam rapidamente, a expressão se suavizando, como se ele tivesse recebido um presente inesperado. Logo ele se aproximou...
Quando abriu a porta do passageiro, ar frio entrou, e depois o corpanzil se dobrou no assento ao lado do dela. A porta se fechou num baque, e os dois se viraram de frente.
Com as luzes internas ligadas, ela conseguiu olhá-lo melhor. Ele também arfava, o peito amplo se expandindo e contraindo, a boca ligeiramente aberta. Ele parecia rude, a fina camada de civilidade arrancada de suas feições – ou, melhor dizendo, como se ela nunca tivesse estado ali. E por mais que outros pudessem chamá-lo de feio devido à sua deformidade, para ela... ele era belo.
E isso era um pecado.
– Você é real – ela disse para si mesma.
– Sim – a voz dele era grave e ressonante, uma carícia para os seus ouvidos. Mas ela se partiu, como se ele estivesse sofrendo. – E você está grávida.
– Estou.
Ele fechou os olhos novamente, mas agora como se tivesse levado um golpe.
– Eu a vi.
– Quando?
– Na clínica. Já há algumas noites. Pensei que eles a tivessem surrado.
– A Irmandade? Mas por que...
– Por minha causa – ele abriu os olhos, e havia tanta angústia neles que ela quis confortá-lo de alguma maneira. – Eu jamais teria escolhido que você estivesse nessa posição. Você não é da guerra, e meu tenente jamais deveria tê-la arrastado para isto – a voz ficou ainda mais grave. – Você é uma inocente. Mesmo eu, que não tenho honra, reconheço isso imediatamente.
Se ele não tinha honra, porque acabara de se desarmar, ela pensou.
– Você está comprometida? – ele perguntou asperamente.
– Não.
De pronto, o lábio superior dele se retraiu revelando as presas tremendas.
– Se você foi estuprada...
– Não. Não. Eu... escolhi isto para mim. E para o macho – a mão dela desceu para o ventre. – Eu queria um filho. Meu cio chegou e tudo o que eu pensava era o quanto eu queria ser uma mahmen de algo que fosse meu de verdade.
Aqueles olhos estreitos se fecharam novamente, e ele levantou a mão calejada para o rosto. Escondendo a boca irregular, ele disse:
– Eu queria poder...
– O quê?
– ... ser merecedor de lhe dar aquilo que desejava.
Layla, mais uma vez, sentiu uma necessidade pecaminosa de esticar a mão e tocá-lo, para confortá-lo de algum modo. A reação dele era tão pura e honesta, e o sofrimento dele se parecia com o seu toda vez que pensava nele.
– Diga-me que a estão tratando bem apesar de ter me ajudado.
– Sim – ela sussurrou. – Muito bem, de fato.
Ele baixou a mão e deixou a cabeça pender para trás em alívio.
– Isso é bom. Isso é... muito bom. E você tem que me perdoar por eu ter vindo até aqui. Eu a pressenti e me descobri incapaz de me negar isto.
Como se ele estivesse atraído por ela. Como se ele... a desejasse.
Ah, Santa Virgem Escriba, ela pensou, enquanto o corpo se aquecia por dentro.
Seus olhos pareceram se pregar na árvore da campina logo à frente.
– Você pensa naquela noite? – ele perguntou numa voz suave.
Layla abaixou os olhos para a mão.
– Sim.
– E isso a faz sofrer, não faz?
– Sim.
– Eu também. Você está sempre na minha mente, mas por um motivo diferente, eu me arrisco em dizer.
Layla respirou fundo quando o coração bombeou em seus ouvidos.
– Não estou certa... de que seja um motivo diferente do seu.
Ela ouviu a cabeça dele virar abruptamente.
– O que disse? – ele perguntou num sussurro.
– Acredito... que tenha me ouvido muito bem.
Instantaneamente, uma tensão vital se fez entre eles, diminuindo o espaço que os separava, aproximando-os mesmo sem que eles se mexessem.
– Você tinha que ser o inimigo deles... – ela pensou em voz alta.
Houve um longo silêncio.
– É tarde demais agora. Ações foram tomadas que não podem ser desfeitas nem com palavras nem com promessas.
– Eu queria que não fosse assim.
– Nesta noite, neste instante... eu desejo isso também.
Agora foi a vez da cabeça dela se virar.
– Talvez haja um modo...
Ele esticou a mão e a silenciou com a ponta do dedo, depositando-o sobre a boca com gentileza.
Enquanto os olhos se concentravam nos lábios dela, um grunhido quase imperceptível vibrou dentro dele... mas ele não permitiu que continuasse por muito tempo, abafando o som como se não quisesse sobrecarregá-la, ou talvez assustá-la.
– Você está nos meus sonhos – murmurou. – Todos os dias, você me atormenta. O seu cheiro, a sua voz, os seus olhos... esta boca.
Ele mudou a posição da mão e afagou o lábio inferior com o polegar calejado.
Abaixando as pálpebras, Layla se inclinou em direção ao toque, sabendo que aquilo era tudo o que ela teria dele. Estavam em lados opostos na guerra e, por mais que ela não soubesse nenhum detalhe específico, ouvira o bastante na mansão para saber que ele tinha razão.
Ele não tinha como desfazer o que já fora feito.
E isso significava que eles o matariam.
– Não consigo acreditar que tenha me deixado tocá-la – a voz dele ficou rouca. – Eu me lembrarei disso todas as minhas noites.
Lágrimas surgiram nos olhos dela. Santa Virgem Escriba, em toda a sua vida, ela esperara por um momento como aquele...
– Não chore – o polegar dele seguiu para o rosto. – Bela fêmea de valor, não chore.
Se lhe dissessem que alguém tão rude quanto ele fosse capaz de tal compaixão, ela não teria acreditado. Mas ele era. Com ela, ele era.
– Preciso ir embora – disse ele abruptamente.
Os instintos pediam que ela implorasse que ele tomasse cuidado... mas isso significaria que ela desejava o bem para aquele que queria destronar Wrath.
– Adorável Escolhida, saiba de uma coisa. Se um dia precisar de mim, eu virei.
Ele pegou algo do bolso, um celular. Direcionando-o para ela, ele ligou a tela com um toque.
– Consegue ler este número?
Layla piscou com força para seus olhos enxergarem.
– Sim, consigo.
– Esse sou eu. Sabe como me encontrar. E se a sua consciência exigir dar esta informação à Irmandade, eu entenderei.
Ela percebeu que ele não conseguia ler os números, e não por falta de acuidade visual.
E ela se perguntou que tipo de vida triste ele tivera.
– Fique bem, minha bela Escolhida – disse ele, ao fitá-la não apenas com os olhos de um amante, mas de um hellren.
E logo ele se foi sem nem mais uma palavra, saindo do carro, apanhando as armas e voltando a se munir delas...
... antes de se desmaterializar noite adentro.
Layla imediatamente cobriu o rosto com as mãos, os ombros começando a sacudir, a cabeça pendendo, as emoções fluindo.
Presa entre a mente e a alma, ela se viu despedaçar, mesmo permanecendo inteira.
CAPÍTULO 81
– Entre.
Ao falar, Blay ergueu os olhos do Uma confraria de tolos e se surpreendeu ao ver Beth entrando em seu quarto.
Bastou um olhar na direção da rainha, e ele se sentou na chaise-longue, deixando o livro de lado.
– Ei, o que aconteceu?
– Você viu Layla?
– Não, mas acabei de chegar da casa dos meus pais – ele olhou de relance para o relógio. Pouco depois da meia-noite. – Ela não está no quarto?
Beth meneou a cabeça, o cabelo escuro brilhando ao escorregar ao redor dos ombros.
– Ela e eu íamos passar o tempo juntas, mas não consigo encontrá-la. Ela não está na clínica, nem na cozinha e eu também procurei por Qhuinn na academia quando desci para lá. Ele também desapareceu.
Talvez os dois estivessem tendo um jantar romântico, por exemplo, dividindo um prato de espaguete, com suas bocas se encontrando no meio do caminho graças a um fio do maldito macarrão.
– Tentou telefonar? – perguntou.
– O celular de Qhuinn está no quarto. E Layla não está atendendo o dela, se é que está com o aparelho.
Ao se levantar e começar a ficar agitado, ele pensou que deveria se acalmar, afinal, aquela não era uma emergência nacional. Na verdade, aquela era uma casa grande com muitos cômodos, e, mais importante, eles eram dois adultos. Duas pessoas deveriam poder sair juntas sem que isso se transformasse em uma crise.
Ainda mais se estavam tendo um filho juntas...
O som do aspirador de pó ao longe chamou a sua atenção.
– Venha comigo – ele disse à rainha. – Se existe uma pessoa que pode saber o que está acontecendo, essa pessoa está com o aspirador ligado.
Como era de se esperar, Fritz estava trabalhando na sala de estar do segundo andar, e quando Blay entrou, ele se viu açoitado pelas lembranças dele e de Qhuinn indo às vias de fato no tapete diante do sofá.
Perfeito. Simplesmente fabuloso.
– Fritz? – a rainha o chamou.
O doggen parou o movimento de vai e vem e desligou o equipamento.
– Ora, olá, Vossa Majestade. Senhor.
Muitas mesuras.
– Escute, Fritz – disse Blay –, você viu Layla?
Instantaneamente, o semblante do mordomo se fechou.
– Ah, sim. Eu a vi. De fato.
Quando ele não informou mais nada, Blay o instigou:
– E?
– Ela pegou o carro. A Mercedes. Há mais ou menos duas horas.
Mas que coisa, pensou Blay. A menos que...
– Então Qhuinn estava com ela.
– Não, ela estava sozinha – enquanto um pressentimento ruim se apossava do estômago de Blay, o mordomo meneou a cabeça. – Eu insisti em levá-la, mas ela não permitiu.
– Para onde ela foi? – Beth perguntou.
– Ela disse não ter um destino específico. Eu sabia que o mestre Qhuinn a ensinara a dirigir, e quando ela me ordenou que lhe entregasse as chaves, eu não sabia o que fazer.
A rainha disse:
– Você não fez nada de errado, Fritz. Nada mesmo. Só estamos preocupados com ela.
Blay pegou o celular.
– E o carro está equipado com GPS, por isso vai ficar tudo bem. Só preciso pedir a V. que o localize para nós.
Depois de enviar a mensagem, a rainha apaziguou o mordomo um pouco mais, e Blay ficou por ali, à espera de uma resposta.
Dez minutos depois? Nada. O que significava que o Irmão com habilidades de informática estava entretido em algum assunto no centro da cidade.
Quinze minutos.
Vinte.
Ele até ligou, mas não teve resposta. Portanto, ele só pôde deduzir que alguém estava sangrando ou que o telefone de V. se espatifara durante alguma luta.
– Qhuinn não está na academia? – ele perguntou, ainda que essa pergunta já tivesse sido respondida.
Beth deu de ombros.
– Não quando fui olhar.
Blay deu mais um telefonema, para Ehlena, e um minuto depois foi informado que a sala de ginástica estava vazia, que Luchas estava dormindo e que não havia ninguém nem na piscina, nem na quadra de basquete.
O cara não estava na mansão. E nem no campo de batalha, pois não era seu turno. Isso fazia com que houvesse apenas outro lugar possível.
– Sei onde ele está – Blay disse bruscamente. – Vou buscá-lo enquanto esperamos a resposta de V.
Afinal, a fêmea estava carregando o filho dele e se ela tinha saído sem avisar, ele tinha o direito de se envolver na localização dela. E quem sabe Qhuinn soubesse onde ela estava? Mas Blay tinha a sensação de que ele não sabia. Era difícil de acreditar que ele tivesse saído deixando o telefone no quarto se soubesse que ela estava dirigindo por aí. Ele haveria de querer ter um modo de se comunicar com ela.
Pensando bem, por que ele deixara o celular no quarto? Não era do seu feitio.
A menos que ele pensasse que Layla estava bem e... não desejasse ser interrompido.
Maravilha.
Voltando para o quarto, Blay pegou uma arma – porque nunca se sabe quando vai se precisar de uma – e um casaco que era só para encobrir seu equipamento. Correu pelas escadas e foi até o vestíbulo... e se desmaterializou na noite.
Reassumiu sua forma no estacionamento do Iron Mask quando chegou à porta dos fundos da boate, apertou a campainha e mostrou o rosto para a câmera de segurança. Xhex abriu a porta.
– Oi – ela disse, abraçando-o rapidamente. – Tudo bem? Faz tempo que não o vejo aqui.
– Eu estou procurando...
– Já sei, ele está lá no bar.
Claro que estava.
– Obrigado.
Blay acenou para os leões de chácara, Big Rob e Silent Tom, e atravessou a parte dos funcionários para chegar ao clube de fato. Ao emergir do outro lado, o som grave do baixo da música o atingiu bem no esterno – ou talvez fosse apenas o seu coração.
E lá estava ele: mesmo tendo umas cem pessoas lotando o arredor do bar, Qhuinn era como um sinal de neon para ele, destacando-se de todo o resto. O lutador estava sentado na ponta, de costas para Blay, os cotovelos apoiados no balcão de madeira preta lustrada, a cabeça pensa.
Blay emitiu uma imprecação ao pensar que lá estavam eles, de volta ao começo. E, claro, antes que ele conseguisse se aproximar, uma mulher o abordou, o corpo resvalando no de Qhuinn, a mão pousando no braço dele, a cabeça dele se virando para poder dar uma boa olhada nela.
Blay sabia o que viria em seguida. Uma rápida passada dos olhos descombinados, algumas palavras arrastadas e o casal seguiria para o banheiro...
Qhuinn balançou a cabeça e levantou a palma num sinal de pare. E por mais que ela parecesse disposta a um segundo apelo, isso só fez com que ela voltasse a conversar com a palma da mão dele de novo.
Antes que Blay conseguisse andar novamente, um cara com o cabelo até o traseiro e um par de calças de veludo grafitadas apareceu. O sorriso dele era muito branco, e o corpo delgado parecia ser feito para acrobacias.
Uma náusea repentina tomou conta do estômago de Blay, mesmo ele tentando se lembrar de que, após a última discussão, Qhuinn nunca mais o procuraria para ter sexo, portanto, ele não deveria se importar com quem o lutador transasse. E Deus sabia muito bem que aquele macho tinha tremendos impulsos sexuais...
O senhor Calças de Veludo com apliques no cabelo recebeu o mesmo tipo de dispensa.
Depois da qual Qhuinn simplesmente voltou a se concentrar no que havia diante dele.
Uma vibração abrupta disparou no bolso de Blay, era o seu celular avisando o recebimento de uma mensagem. Pegando o aparelho, ele viu que era de Beth: Tudo certo; Layla está em casa. Só saiu para passear um pouco, e agora vai assistir TV comigo.
Blay respondeu agradecendo e recolocou o celular no bolso. Não havia motivo para ficar e incomodar o lutador com algo que nem chegara a acontecer... embora houvesse a possibilidade de controlar os danos da bomba H que ele soltara na semana anterior.
Blay avançou, desviando-se dos corpos no meio do caminho. Quando se aproximou o bastante, pigarreou e falou por sobre a balbúrdia:
– Ei...
Aquela mão disparou por cima do ombro de Qhuinn.
– Pelo amor de Deus, não estou a fim, ok?
Naquele instante, a pessoa à esquerda decidiu liberar a banqueta com o drinque que tinha pedido.
Blay tomou o lugar do humano.
– Já disse pra... – Qhuinn parou no meio da dispensa. – O que... você está fazendo aqui?
Ok. Por onde começar?
– Alguma coisa errada? – Qhuinn perguntou.
– Não, não. Verdade, nada... errado, sabe – Blay ficou intrigado ao ver que não havia nenhum copo diante do cara. – Acabou de chegar?
– Não, cheguei já faz... acho que umas duas horas.
– Não está bebendo?
– Bebi assim que cheguei. Mas desde então, não... não bebi.
Blay estudou o rosto que conhecia tão bem. Ele estava sério, com covas debaixo das maçãs do rosto e um franzido que sugeria que o cara também não dormia há sete dias.
– Escute, Qhuinn...
– Veio se desculpar?
Blay pigarreou novamente.
– É. Eu vim. Eu...
– Tudo bem.
– Como é?
Qhuinn levantou as mãos e esfregou os olhos, depois deixou as palmas cobrindo-o da testa ao queixo. Ele disse algo incompreensível e foi então que Blay percebeu que algo significativo acontecera.
Pensando bem, o pobre coitado provavelmente percebera que Blay, de fato, não era nenhum santo.
Blay se inclinou para perto.
– Fale comigo. O que quer que seja, você pode me contar.
O que é justo é justo, afinal de contas. Ele, com certeza, descarregara tudo o que lhe passara pela cabeça na última vez em que se viram.
– Você está certo – Qhuinn disse. – Eu não sabia... que eu era...
Quando nada mais foi dito, as costelas de Blay se contraíram ao mesmo tempo em que as sobrancelhas subiam ao teto quando ele entendia o significado daquilo. Ah...meu Deus.
Um choque o atravessou por inteiro, e ele percebeu que jamais esperara que o cara assumisse. Mesmo tendo despejado tudo, aquilo fora mais o resultado de, por fim, ter surtado em vez de algum tipo de expectativa de que as palavras fizessem sentido para o outro.
Qhuinn balançou a cabeça, as mãos firmes no mesmo lugar.
– Eu só... Todos aqueles anos, toda aquela merda com eles... eu não tinha como aguentar outro golpe contra mim.
Blay estava mais do que ciente sobre quem eram “eles”.
– Fiz muitas coisas para fazer aquilo sumir, para encobrir toda aquela merda porque, mesmo depois que eles me expulsaram, eles continuaram na minha cabeça. Mesmo depois de terem morrido... ainda lá, sabe. Sempre ali... – uma mão se fechou num punho e começou a bater na cabeça. – Sempre aqui...
Blay segurou o punho e guiou o braço do macho para baixo.
– Está tudo bem...
Qhuinn não olhou para ele.
– Eu nem sabia que estava distorcendo tudo. Eu não estava... sei lá, ciente dessa merda na minha cabeça... – a voz grave ficou entrecortada. – Eu só não queria lhes dar mais um motivo para me odiar, mesmo que isso pouco importasse. Que merda é essa, hein? No que eu estava pensando?
A dor que emanava do corpo de Qhuinn era tão grande que mudava a temperatura do ar ao redor dele, abaixando-a a ponto de os pelos dos braços de Blay se eriçarem.
E, naquele instante, defronte à tristeza abjeta, Blay desejou poder retirar tudo o que dissera – não porque não fosse verdade, mas porque não cabia a ele arrancar aquele Band-Aid. Mary, a shellan de Rhage, poderia tê-lo feito como parte de uma sessão de terapia ou algo assim. Ou talvez Qhuinn gradualmente pudesse perceber isso.
Mas não daquele modo...
A devastação que estava escrita em todas as linhas do corpo de Qhuinn, na rouquidão da voz, no grito mal contido que parecia estar apenas abaixo da superfície, eram aterradores.
– Eu nunca soube o quanto eles me afetaram, especificamente o meu pai. Aquele macho... ele contaminou tudo em mim, e eu nem vi isso acontecer. E isso arruinou... tudo.
Blay franziu o cenho, sem conseguir entender essa parte. Mas o que estava claro era a justaposição entre os seus pais e os de Qhuinn – não que ele precisasse de mais um lembrete. Tudo o que ele conseguia pensar era naquele abraço junto ao fogão, sua mãe e seu pai abraçando-o, a aceitação deles franca, honesta, sem reservas.
E aqui estava Qhuinn passando por aquilo sozinho. Numa boate. Sem ninguém para ampará-lo enquanto ele lutava contra o legado de discriminação a que fora condenado... e a identidade que ele não poderia mudar e, ao que tudo levava a crer, não poderia mais ignorar.
– Arruinou tudo.
Blay pôs a mão sobre os bíceps tensionados.
– Não, nada foi arruinado. Não diga isso. Você está onde está e isso é bom...
A cabeça de Qhuinn virou, soltando-se de sua gaiola da mão que restara, os olhos azul e verde avermelhados e rasos de lágrimas.
– Eu te amo há anos. Estive apaixonado por anos e anos e anos... durante a escola e o treinamento... antes da transição e depois... quando você me abordou e sim, mesmo agora que você está com Saxton e que me odeia. E essa... merda... na porra da minha cabeça me travou, me impediu... e isso me custou você.
Enquanto o som de pneus freando ecoava entre os ouvidos de Blay, e o mundo começou a girar, Qhuinn simplesmente continuou:
– Então, você vai ter que me desculpar se eu discordo de você. Não está tudo bem... e nunca estará bem... e por mais que eu esteja disposto a viver com o fato de que fui uma mentira ambulante por décadas, a ideia de que isso sacrificou o que poderia ter acontecido entre nós... com certeza, definitivamente, não está bem para mim.
Blay engoliu em seco quando Qhuinn voltou a encarar a parede de garrafas de bebida atrás do bar.
Abrindo a boca, Blay teve a intenção de dizer alguma coisa, mas, em vez disso, apenas repassou o monólogo de novo em sua cabeça, do começo ao fim. Jesus Cristo...
Então, caiu-lhe a ficha.
Se eu sou gay, por que você é o único macho com quem estive?
De repente, todo o sangue se esvaiu da sua cabeça enquanto ele decifrava as palavras que interpretara tão erroneamente. Isso significava que... naquela noite em que ele...
– Oh, Deus – disse num tom baixo.
– Então é neste ponto que estou agora – disse o lutador de modo brusco. – Quer uma bebida...?
As palavras saltaram da sua boca:
– Não estou mais com Saxton.
CAPÍTULO 82
Qhuinn virou a cabeça mais uma vez. Decerto ele não poderia ter ouvido que...
– O quê...?
– Rompi com ele umas duas semanas atrás, mais ou menos.
Qhuinn sentiu as pálpebras piscarem um determinado número de vezes.
– Por quê...? Espere... eu não estou entendendo.
– Não estava dando certo. Já fazia um tempo que não estava dando certo. Quando ele voltou para casa naquela noite depois de ter estado com outro? Já não estávamos juntos, portanto, ele não me traiu.
Por algum motivo, tudo o que Qhuinn conseguia pensar era em Mike Myers dizendo: O quê, baby?
– Mas eu pensei... espere, vocês dois pareciam bem felizes. Eu ficava acabado toda noite em pensar que... bem...
Blay fez uma careta.
– Sinto muito por ter mentido.
– Caraaalho. Eu quase o matei.
– Bem, discutivelmente você estava sendo galante. Ele entendeu.
Qhuinn franziu a testa e balançou a cabeça.
– Eu não fazia ideia de que vocês... bem, eu já disse isso.
– Qhuinn, eu tenho que te perguntar uma coisa.
– Manda – desde que ele conseguisse se concentrar.
– Quando você e eu estivemos juntos... naquela noite... e depois você disse que nunca... você sabe...
Qhuinn esperou que o cara continuasse. Quando não o fez, ele não tinha noção sobre a que se referia...
Ah, aquilo.
Qhuinn não conseguia acreditar, mas sentiu o rosto ficar vermelho e quente.
– É, aquela noite.
– Bem, você nunca...
Levando-se em consideração tudo o que ele acabara de dizer, aquela coisinha parecia um mero detalhe. Além disso, fato é fato.
– Você foi o primeiro e único macho com quem estive daquele jeito.
Silêncio por parte do outro. E depois:
– Oh, meu Deus, eu sinto muito, eu...
Qhuinn se precipitou, interrompendo as desculpas desnecessárias.
– Eu não lamento. Não há ninguém mais com quem eu gostaria de ter perdido a minha virgindade. Do primeiro a gente sempre se lembra.
Parabéns, Saxton, seu maldito filho da puta sortudo.
Outro longo silêncio. E bem quando Qhuinn estava prestes a consultar o relógio e sugerir que eles dessem um tempo de todo aquele constrangimento, Blay falou:
– Não vai me perguntar por que Saxton e eu nunca iríamos dar certo?
Qhuinn revirou os olhos.
– Sei que não foi nenhum problema na cama. Você foi o melhor amante com quem já estive, e custo a acreditar que o meu primo tenha uma opinião diferente.
Maldito Saxton.
Ao perceber que o outro cara não ia dizer nada, Qhuinn olhou de relance para ele. Os olhos azuis de Blay tinham uma luz estranha neles.
– O que foi? – ah, pelo amor de Deus. – Está bem. Por que não teria dado certo?
– Por que eu estive, e continuo, completa, absoluta e inteiramente... apaixonado por você.
A boca de Qhuinn ficou escancarada. Enquanto os ouvidos começavam a zumbir, ele se perguntou se ouvira direito. Aproximou-se.
– Como é, o que você...
– Oi, benzinho – uma voz feminina interrompeu.
Ao seu lado direito, uma mulher com abundância suficiente para encher duas tigelas de salada pressionou o corpo dele.
– Gostaria de companhia para...
– Para trás – rugiu Blay. – Ele está comigo.
Abruptamente, a coluna de Qhuinn se endireitou. Estava bem claro pelo fogo azul frio que era lançado pelos olhos de Blay que o cara estava preparado para arrancar a garganta da mulher se ela não desaparecesse rapidinho.
E isso era...
Incrível.
– Ok, ok – ela ergueu as mãos em submissão. – Eu não sabia que vocês estavam juntos.
– Estamos – Blay sibilou.
Enquanto a mulher com a antiga ideia brilhante saía derrotada, Qhuinn se virou para Blay, ciente de que a sua surpresa era evidente.
– Estamos? – perguntou arfante para o seu ex-melhor amigo.
Com a música da boate martelando e um estádio repleto de desconhecidos ao redor deles, com a barwoman servindo drinques e as moças do clube trabalhando, com milhares de outras vidas seguindo adiante... o tempo parou para eles.
Blay esticou os braços e segurou o rosto de Qhuinn entre as mãos, o olhar azul aquecendo-o enquanto o fitava.
– Sim. Sim, nós estamos juntos.
Qhuinn praticamente pulou em cima do cara, acabando com a distância entre as bocas e beijando o amor da sua vida uma vez, duas... três vezes – mesmo sem saber o que estava acontecendo, ou se aquilo era mesmo real ou se o rádio-relógio tocaria em seguida.
Depois de tanto sofrimento, ele estava sedento por um pouco de alívio, mesmo que fosse temporário.
Quando ele se afastou, Blay pareceu confuso.
– Você está tremendo.
Seria possível que ele não estivesse imaginando aquilo?
– Estou?
– Sim.
– Não importa. Eu te amo. Eu te amo tanto e sinto muito por não ter tido a coragem de admitir...
Blay o silenciou com um beijo.
– Você está demonstrando muita coragem agora... O resto faz parte do passado.
– Eu só... Deus, eu estou tremendo mesmo, hein?
– É. Mas tudo bem, eu cuido de você.
Qhuinn virou o rosto na direção da palma do macho.
– Você sempre fez isso. Você sempre teve a mim... e ao meu coração. Minha alma. Tudo. Só queria que não tivesse demorado tanto tempo para eu criar coragem. Aquela minha família... ela quase me destruiu. E não só por causa da Guarda de Honra.
Os olhos de Blay se desviaram. Em seguida, ele abaixou as mãos.
– O que foi? – Qhuinn perguntou assustado. – Eu disse alguma coisa errada?
Ah, Deus, ele sabia que aquilo era bom demais para ser verdade...
Houve um longo momento enquanto Blay simplesmente o fitava. Mas logo o macho estendeu a mão.
– Dê-me a sua mão.
Qhuinn obedeceu prontamente, como se o comando de Blay governasse seu corpo mais do que a sua própria mente.
Quando algo foi colocado em seu dedo, ele se assustou e olhou para baixo.
Era o anel de sinete.
O anel de sinete de Blay. Aquele que o pai do macho lhe dera logo depois da sua transição.
– Você é perfeito do jeito que você é – a voz de Blay era forte. – Não há nada errado com quem ou o que você sempre foi. Sinto orgulho de você. E eu te amo. Agora... e sempre.
A visão de Qhuinn ficou embaçada. Cacete.
– Sinto orgulho de você. E te amo – Blay repetiu. – Sempre. Esqueça a sua antiga família, você tem a mim agora. Eu sou a sua família.
Tudo o que ele conseguia fazer era fitar o anel, ver o timbre, sentir o peso em seu dedo, observar como a luz refletia seu metal precioso.
Parecia que por toda a sua vida ele quisera um daqueles para si.
E agora... como de costume, como sempre, era Blay quem o atendia.
Quando um soluço escapou de sua garganta, ele se sentiu sendo arrastado para junto do peito largo e maciço, braços fortes amparando-o e segurando-o. E lá, do nada, um cheiro forte surgiu, a essência – a da vinculação com Blay –, a coisa mais maravilhosa que seu nariz já sentira.
– Sinto orgulho de você e amo você – Blay disse mais uma vez, aquela voz tão familiar rompendo todos os anos de rejeição e julgamento, dando-lhe não só uma corda de aceitação na qual se segurar, mas uma mão de carne e osso que o levaria para longe da escuridão do passado...
E para um futuro que não necessitava de mentiras ou desculpas, porque o que ele era, e o que eles eram, era tanto extraordinário quanto nada excepcional.
O amor, afinal, era universal.
Qhuinn fechou a mão num punho e soube que nunca, jamais tiraria o anel.
– Para sempre – Blay murmurou. – Por que família é uma coisa eterna.
Bom Deus, Qhuinn soluçava tal qual uma menininha. Mas Blay não parecia se importar nem um pouco – nem julgar.
E era isso o que contava, não?
– Para sempre – Qhuinn ecoou rouco. – Para sempre...
EPÍLOGO
DUAS SEMANAS DEPOIS...
Nesse meio-tempo a vida foi simplesmente maravilhosa.
– Então, gostou de ontem à noite?
Enquanto Qhuinn falava ao ouvido de Blay, Blay revirou os olhos na penumbra.
– O que acha?
Com os corpos nus debaixo das cobertas pesadas e quentes, Qhuinn estava pressionado atrás dele, os braços entrelaçados, as pernas enroscadas.
No fim, Qhuinn descobriu que gostava de ficar juntinho. Quem haveria de imaginar? Era divino.
– Acho que gostou – Qhuinn lambeu a lateral do pescoço de Blay. – Diga que gostou.
À guisa de resposta, Blay flexionou a coluna e cravou o traseiro contra a ereção do outro macho. O gemido resultante deixou Blay radiante.
– Parece que você é que gostou – murmurou ele.
– Ah, sim, pode contar com isso.
Na noite anterior os dois estiveram de folga, e depois de malharem na academia e de jogar uma partida de bilhar com Lassiter e Beth – que perderam –, Blay sugeriu que eles fossem ao Iron Mask por um motivo bem específico.
Enquanto Blay se lembrava do que tinha acontecido depois que lá chegaram, o pau de Qhuinn entrava num lugar em que era muito bem-vindo... e Blay, mais uma vez, rendeu-se à deliciosa penetração e ao ritmo lento que o seu macho estabelecia.
As coisas de que ele se recordava da boate só tornavam tudo muito mais erótico: os dois sentando-se ao bar para tomar uns drinques, Herradura para Qhuinn, uns dois G&Ts para Blay. Em seguida, Qhuinn ficou com aquele olhar...
E Blay se pôs ao trabalho.
Levou o macho na direção dos banheiros, e assim que entraram, foi como se a sua fantasia tivesse tomado vida, os beijos, as mãos nas calças, despirem-se apressadamente da cintura para baixo...
Um gemido escapou da garganta de Blay pelo que estava acontecendo, e pelo que acontecera, as duas coisas misturadas, o coquetel erótico levando-o à beira do orgasmo – e, graças à masturbação que Qhuinn lhe proporcionava, bem no auge seu pau gozou violentamente na mão do amante, o corpo se libertando e fazendo com que Qhuinn também atingisse o clímax...
Depois de um período de recuperação, e de uma segunda rodada muito satisfatória, Qhuinn disse de modo arrastado:
– Alguma chance de você estar pensando naquele banheiro?
– Talvez.
– Podemos repetir uma noite dessas, se você quiser.
Blay riu.
– Bem, acho que estamos livres de novo hoje à noite, então...
A Irmandade ordenara que ficassem, e como não havia nenhuma explicação na mensagem de Tohr, Blay imaginou que devia haver alguma reunião com o Rei. O Bando de Bastardos e a glymera estiveram muito quietinhos nas duas últimas semanas – nenhuma mensagem de e-mail, nenhum movimento de tropas no centro da cidade, nenhum telefonema. Não era um bom sinal.
Provavelmente haveria uma atualização ou uma sessão de estratégia quanto à morte daquele Conselheiro e as suas implicações. Ainda que Blay não conseguisse encontrar nenhum ponto negativo em Assail ter acabado com aquele filho da puta idiota.
Tchauzinho, Elan. P.S., da próxima vez em que comprometer alguém falsamente, tente escolher um pacifista.
A perspectiva de uma reunião o fez pensar na integração de Qhuinn à Irmandade, que se mostrara perfeita. O comportamento do lutador não ficou diferente, a sua postura era exatamente a mesma. E esse era apenas mais um motivo para amar o cara. Mesmo com o status elevado que lhe fora concebido, ele não permitiu que isso lhe subisse à cabeça.
E a tatuagem de lágrima que fora mudada para um tom de roxo? Totalmente sensual. Assim como a nova cicatriz em forma de estrela no peitoral.
– Definitivamente vamos repetir isso – Qhuinn disse ao se retrair lentamente e rolar de lado. Levando os braços atrás da cabeça, ele sorriu e se espreguiçou, a luz tênue vindo do banheiro apenas o suficiente para que Blay enxergasse a elevação daqueles lábios incríveis. – Aquilo foi demais. Você foi demais.
– O que posso dizer, era uma fantasia minha de longa data – quando Qhuinn se tornou sério, Blay tocou a testa do macho. – Ei. Pode parar. Começar do zero, lembra?
Depois da noite da grande revelação no Iron Mask, eles tiveram longas conversas e decidiram que conduziriam aquele relacionamento passo a passo, sem nenhuma pretensão. Foram amigos, depois, uma espécie de inimigos, para em seguida serem amantes de certa forma... antes de finalmente resolverem suas pendências. E mesmo que se conhecessem há anos, e de tantas maneiras, namorar era algo completamente diferente.
– É. Do zero – enquanto Qhuinn se inclinava para um beijo, o telefone de Blay tocou, avisando da chegada de uma mensagem de texto.
Naturalmente, Qhuinn não estava interessado em nenhum comunicado do mundo exterior e continuou a abrir caminho com a língua pela boca de Blay, mesmo quando este se esticou para pegar o aparelho.
Blay o segurou acima dos ombros pesados de Qhuinn enquanto o macho manobrava para ficar por cima, esfregando seu pau ainda rijo no de Blay...
– Mas que diabos? – Blay perguntou, interrompendo o contato labial.
– Fomos interrompidos?
– Parece que sim... Butch disse que precisa de mim no Buraco para uma consulta de vestuário?
– Bem, o seu estilo é perfeito.
Por algum motivo, o comentário o fez pensar em Saxton. Assim que ele e Qhuinn resolveram assumir o relacionamento, Blay contara ao advogado o que estava acontecendo – e o cavalheiro foi muito mais do que benevolente... e não se mostrou nem um pouco surpreso. Até dissera que era um alívio de certa forma, um sinal de que tudo estava bem no mundo, mesmo que para ele não estivesse nada bem.
Ele dissera que pelo menos Blay conquistara o seu verdadeiro amor.
Se pelo menos Saxton encontrasse o dele.
– É melhor eu ir para lá – murmurou. – Talvez ele tenha um encontro.
Enquanto ele tentava sair da cama, Qhuinn o segurou pelos quadris novamente, puxando-o para mais um beijo demorado.
Quando Qhuinn se recostou, os olhos estavam semicerrados.
– Um encontro é uma excelente ideia. Quer sair para dançar comigo uma noite dessas?
– Dançar? – Blay riu. – Você dançaria? Comigo?
Era tudo o que Qhuinn mais detestava: sentimentalismo demais, muitos olhos pousados sobre eles e, deduzindo que o fizessem em público, eles teriam de estar totalmente vestidos.
– Se você quisesse, eu faria isso num piscar de olhos.
Blay pousou a mão no rosto do macho. Qhuinn vinha se esforçando muito, e Blay estava mais do que disposto em esperar pelo dia em que o cara estivesse pronto para demonstrar seu afeto em público. A Irmandade e os demais na casa sabiam que eles estavam juntos – ficou meio óbvio depois que Qhuinn mudou seus pertences para o seu quarto. Mas não se passava uma vida inteira em negação para automaticamente se sentir confortável namorando seu namorado na frente de Deus e do mundo.
Mas ele estava tentando. E estava falando – muito – sobre a família e o irmão, que, lenta e dolorosamente, estava se recuperando na clínica.
No entanto, atrás das portas fechadas? Era pura magia, sem nenhum tipo de barreira.
Exatamente o que Blay sempre quis.
– Vai descer para a Primeira Refeição? – Blay perguntou quando as persianas começaram a subir nas janelas.
– Talvez eu apenas fique aqui esperando para comer você quando você voltar.
Ah, sim, aquele grunhido safado estava de volta na voz de Qhuinn, e isso não fez Blay querer voltar para os lençóis?
– Você é... – quando um gemido ecoou, Blay parou no meio do caminho para o banheiro. – Onde está a sua mão?
– Onde você acha que está? – Qhuinn arqueou o corpo, uma presa mordendo o lábio inferior.
Blay pensou na mensagem que não pretendia ignorar.
– Você é terrível.
– Sou mesmo, não sou? – Qhuinn lambeu os lábios. – E você adora.
Blay praguejou e marchou para o banheiro. Naquele compasso, ele jamais sairia do quarto...
Como era de se esperar, mesmo após um banho quente e uma rápida barbeada, Qhuinn ainda estava na cama, deitado como um leão, o cabelo escuro bagunçado pelas mãos de Blay, os olhos descombinados semicerrados prometendo todo tipo de ação para quando Blay voltasse.
Gostoso maldito.
– Só vai ficar aí deitado? – Blay o repreendeu a caminho da saída.
– Ah... não sei. Talvez eu me exercite um pouco enquanto você estiver fora – um sibilo seguiu outro daqueles gemidos... e, veja só, o movimento do braço para cima e para baixo sob os lençóis fez Blay pensar em todo tipo de coisa bagunçada, suada e maravilhosa. – Sabe como é importante se exercitar.
Blay cerrou os molares e escancarou a porta.
– Volto logo.
– Leve o tempo que for preciso. Sabe como a antecipação só me deixa mais duro.
– Ah, ‘tá, como se você precisasse de ajuda com isso.
Fechando a porta, ele se rearranjou nas calças folgadas de esporte e praguejou novamente. Era melhor Butch ter um bom motivo para aquilo.
E um problema que pudesse ser facilmente resolvido.
No segundo em que Blay saiu, Qhuinn afastou as cobertas e saiu da cama num pulo. Pegando seu celular na mesinha de cabeceira, ele apertou o botão de enviar na mensagem que já deixara escrita e seguiu para o chuveiro. Felizmente, a água ainda estava quente.
Ensaboada rápida. Xampu num segundo. Barbear-se...
– Ai! – exclamou ao se cortar no queixo.
Fechando os olhos, ele se forçou para diminuir o ritmo antes que acabasse cortando fora o nariz: barbeador na face, movendo-se devagar, contornando o maxilar, descendo pelo pescoço. Repetindo. Repetindo.
Por que diabos ele insistia em fazer aquilo no chuveiro? Numa noite como aquela, ele deveria estar diante do espelho...
– Ei, rainha do baile, está pronto? – a voz de Rhage entrou no banheiro. – Ou quer depilar as sobrancelhas?
Qhuinn passou a mão pelo queixo para ver se estava tudo em ordem. Perfeito.
– Dá um tempo, Hollywood – exclamou por cima do barulho do chuveiro.
Fechando a torneira, ele saiu e se secou a caminho do quarto.
Parado ao lado de um sorridente Tohr, Rhage estava com os braços escondidos atrás do corpo.
– Que jeito de falar com o seu estilista...
Qhuinn encarou os Irmãos.
– Se estiver segurando uma camisa havaiana, eu te mato.
Rhage olhou para Tohr e sorriu. Quando o outro Irmão assentiu, Hollywood apresentou aquilo que escondia atrás do corpanzil.
Qhuinn parou no ato.
– Espere... isso é um...
– Smoking, acho que é esse o nome – Rhage o interrompeu. – S-M-O-K-I-N-G.
– É do seu tamanho – comentou Tohr. – E Butch disse que é do melhor estilista.
– Que tem o nome de um carro – resmungou Rhage. – Você haveria de achar que uma pomposa...
– Ei, você também anda assistindo Honey Boo Boo? – Lassiter perguntou assim que entrou. – Uau, smoking maneiro...
– Só porque você insiste em deixar aquele maldito programa ligado na sala de bilhar – Hollywood olhou de relance quando V. chegou logo atrás do anjo. – Ele nem sabia o que isto aqui era, Vishous.
– O smoking? – V. acendeu um cigarro enrolado à mão. – Claro que não sabia. Ele é um macho de verdade.
– Isso, então, faz com que Butch seja uma garota – Rhage observou. – Porque foi ele quem comprou.
– Ei, a festa já começou – Trez exclamou assim que ele e iAm chegaram. – Belo smoking. Não é um Tom Ford?
– Ou Dick Chrysler – opinou Rhage. – Harry GM; espere, isso soou meio safado...
– Melhor se vestir, Rapunzel – V. consultou o relógio. – Não temos muito tempo.
– Que smoking lindo – Phury anunciou quando ele e Z. abriram a porta. – Tenho um igualzinho a esse.
– Fritz acendeu as velas – Rehv disse atrás dos gêmeos. – Ora, ora, belo smoking. Tenho um igual a esse.
– Eu também – comentou Phury. – O caimento é fantástico, não é?
– Nos ombros, não? Tom Ford é o melhor...
Pandemônio. Total.
Enquanto Qhuinn analisava tudo aquilo, os machos falando uns por cima dos outros, cumprimentando-se com tapas na mão, nos traseiros, ele ficou um segundo sem ar. Depois olhou para o anel que Blay lhe dera.
Ter uma família era... simplesmente incrível e maravilhoso.
– Obrigado – disse suavemente.
Todos pararam na hora, os rostos se virando e parando nele, os corpos imóveis, o barulho silenciando.
Foi Z. quem falou, com seus olhos amarelos brilhando:
– Vista logo esse troço. Nós nos encontramos lá embaixo, garotão.
Muitos apertos no ombro enquanto cada um dos lutadores se despedia antes de sair pela porta. E logo ele se viu sozinho com o smoking.
– Vamos fazer isso – disse ele para a coisa.
A camisa vestiu bem, mas os botões eram diferentes. Pareciam do tipo abotoaduras e ele levou um tempão para abotoá-los. Depois ele enfrentou as calças... e encarar a real e vestir sem cueca. Por fim, um par de sapatos de couro brilhantes que foram largados na cama por um deles – bem como um par de meias pretas de seda que estavam muito próximas de serem consideradas meias finas femininas.
Mas ele faria as coisas do modo correto.
Quando vestiu o paletó, preparou-se para se sentir apertado, mas Phury e Rehv tinham razão – o material se ajustava ao corpo como num sonho. Seguindo para o banheiro, pegou uma faixa de seda preta de cima do cabide e se enfrentou no espelho.
Caramba... ele até que estava bem sensual.
Subindo o colarinho engomado, ele passou a gravata borboleta ao redor do pescoço e puxou para a esquerda e para a direita até estar no lugar certo. E depois repetiu o que viu o pai e o irmão fazerem quando não percebiam que ele estava observando: um nó perfeito na frente do pescoço.
Provavelmente teria sido mais fácil se tivesse tirado o paletó.
E se as suas mãos não estivessem tremendo tanto.
Mas, que seja, o trabalho tinha sido feito.
Recuando um passo, ele se olhou no espelho, da esquerda para a direita. Na parte de trás.
É, ele estava um arraso. A questão era que ele não se parecia em nada com ele mesmo. De jeito nenhum.
E isso era um problema para ele. Autenticidade se tornara algo extremamente importante para ele.
Graças à falta de atenção, seu cabelo ficara achatado e, num impulso, ele pegou um produto que ele e Blay dividiam, espalmando as mãos pelos cabelos, arrepiando-os um pouco.
Melhor. Assim ficava menos idiota.
Mas alguma coisa ainda não estava boa...
Enquanto tentava adivinhar o que havia de errado, ele pensou em como as coisas vinham se desenrolando. Depois que ele e Blay tiveram aquela conversa no Iron Mask, ele se surpreendeu sobre como se sentia leve, o fardo que nem sabia que carregava saindo de cima dos seus ombros. Era tão estranho... mas, de repente, ele se surpreendia exalando fundo de tempos em tempos, o peito se elevando e abaixando de volta ao seu lugar com facilidade.
De certa forma, ele ainda esperava acordar e descobrir que aquilo não passara de um sonho. Mas toda noite ele se via abraçando Blay, o cheiro da vinculação do macho em seu nariz, o calor do corpo bem ao lado do seu.
Eu te amo. Você é perfeito do jeito que é.
Sempre.
Enquanto a voz de Blay ecoava em sua cabeça, ele fechou os olhos e balançou...
Abruptamente, abriu os olhos e fitou as gavetas debaixo da pia.
Sim, era isso. Era disso que ele precisava.
Alguns minutos mais tarde, ele saiu do quarto sentindo-se exatamente como devia, mesmo de smoking.
Quando chegou ao alto da imponente escadaria, as velas votivas acesas nos dois lados até embaixo brilhavam e reluziam. E havia mais embaixo: sobre as cornijas das lareiras, no chão, colocadas por sobre os arcos que levavam aos outros cômodos.
– Você está ótimo, filho.
Qhuinn se virou e olhou por cima do ombro.
– Olá, senhor.
Wrath saiu do escritório com a sua rainha em um braço e o cachorro do outro lado.
– Não preciso dos meus olhos para saber que você faz justiça à fantasia de pinguim.
– Obrigado por me deixar fazer isto.
Wrath sorriu, expondo as imensas presas brancas. Puxando a fêmea para um beijo rápido, ele riu.
– No fundo, sou um tremendo romântico, sabe?
Beth riu e se esticou para apertar o braço de Qhuinn.
– Boa sorte. Não que você precise.
Ele não estava muito certo disso. Na verdade, enquanto deixava que a Primeira Família descesse antes, ele se esforçou para se controlar. Esfregando o rosto, perguntou-se por que motivos ele acreditara que aquela seria uma boa ideia...
Não seja covarde, ele se admoestou.
Começando a descer, ele juntou as duas metades do paletó e as abotoou. Como um cavalheiro faria.
Estava a meio caminho quando a porta interna no vestíbulo se abriu e a rajada de vento fez as velas tremularem.
Qhuinn parou quando Fritz acompanhou duas figuras para dentro, os dois batendo os pés para se aquecerem. Na mesma hora, os dois olharam para ele.
Os pais de Blay estavam vestidos formalmente, o pai num smoking, a mãe num vestido de noite de veludo azul. O mais lindo que Qhuinn já vira.
– Qhuinn! – ela o chamou, levantando a saia para se apressar pelo piso de mosaico. – Olhe só para você!
Sentindo o rosto queimar, ele abaixou a cabeça para cumprimentá-la. Mesmo ela sendo uns trinta centímetros mais baixa, de salto, ele sentiu como se tivesse doze anos quando ela segurou suas mãos e as afastou para os lados.
– Você é o macho mais lindo que eu já vi!
– Obrigado – ele pigarreou. – Eu... queria ficar apresentável.
– E está! Ele não está lindo, meu hellren?
O pai de Blay se aproximou e estendeu a mão.
– Muito bem, filho.
– É um Ford. Acho – Deus, ele estava agindo como um idiota. – Algo assim.
Enquanto ele e o pai de Blay apertavam as mãos e depois se abraçavam, o macho lhe disse:
– Eu não poderia estar mais feliz por vocês.
A mãe de Blay começou a fungar e apanhou um lenço.
– Isto é tão maravilhoso. Tenho outro filho... Dois filhos! Venha cá, tenho que abraçá-lo. Dois filhos!
Qhuinn cedeu de imediato, pois era categoricamente incapaz de negar qualquer coisa àquela fêmea – ainda mais um dos seus abraços. Eles eram ainda melhores do que a sua lasanha.
Deus, como ele amava os pais de Blay. Ele e Blay foram visitá-los algumas noites depois de decidirem dar uma chance ao relacionamento deles, o casal fora mais do que afável, à vontade... normal.
Mas Blay não sabia da visita que Qhuinn fizera na noite anterior, logo depois da meia-noite, antes de eles irem para a boate...
Enquanto Qhuinn recuava, ele percebeu Layla parada do lado de fora da sala de jantar. Gesticulando para ela, passou-lhe o braço pelos ombros, porque sabia que ela estava se sentindo pouco à vontade.
– Esta é a Escolhida Layla.
– Apenas Layla – ela murmurou ao estender a mão.
Em resposta, o pai de Blay se curvou e a mãe fez uma mesura.
– Por favor, isso não é necessário – disse a Escolhida, relaxando apenas quando o casal deixou a formalidade de lado.
– Minha querida, Qhuinn nos contou sobre a notícia maravilhosa – a mahmen de Blay estava radiante. – Como está se sentindo?
Segundo ponto para os pais de Blay. Qhuinn custava a acreditar como eles reagiram bem ante a novidade da gravidez – e estavam tão afáveis como sempre, deixando Layla à vontade.
Caramba, eles sempre foram assim, desde quando Qhuinn conseguia se lembrar, livres das cretinices da glymera, despreocupados com o juízo da aristocracia, prontos a fazer a coisa certa num piscar de olhos.
Não era de se admirar que Blay tivesse se saído tão bem...
– Ele está vindo para cá – V. exclamou da sala de bilhar às escuras. – Temos que nos esconder, pessoal, agora.
– Venha conosco – disse a mahmen de Blay ao pousar o braço de Layla sobre o seu. – Você tem que nos ajudar para não esbarrarmos na mobília.
Enquanto se afastavam, Layla olhou por cima do ombro e sorriu.
– Estou tão contente por você!
Qhuinn retribuiu o sorriso.
– Obrigado.
Tempo para um frio na barriga, pensou ao se virar de frente para a entrada da mansão.
Com a casa silenciosa e as velas acesas, ele aguardou, sentindo-se entorpecido.
Hora do espetáculo.
Ok, aquilo não fazia sentido algum, Blay pensou ao atravessar o pátio.
– Você está ótimo! – Butch exclamou da porta do Buraco.
Ele ainda não entendia como fora parar dentro de um smoking. Butch viera com algum tipo de história de que precisava que Blay desfilasse com a maldita coisa na esperança de que Vishous comprasse um igual. Mas aquilo era loucura. Butch só precisava colocar um dos quatro que tinha e desfilar ele mesmo.
Além disso, ninguém convencia V. a fazer coisa alguma. O Irmão era tão firme quanto uma rocha.
Tanto faz... Ele só queria acabar logo com aquilo para poder voltar para cima... E quem sabe ainda encontrar Qhuinn na cama.
Enquanto seguia para a escada frontal da mansão, os sapatos finos quebravam o sal no chão estalando como fogo, e assim que entrou no vestíbulo, ele bateu os pés para que o couro brilhante não se estragasse. Mostrando o rosto para a câmera de segurança, ele...
A porta se abriu e, a princípio, ele não sabia para o que estava olhando. Tudo estava tão escuro – não, isso não era verdade. Havia luz de velas brilhando em cada canto, refletindo o dourado da balaustrada, os candelabros e os espelhos...
Qhuinn estava parado bem no meio do espaço vazio. Sozinho.
Blay atravessou a soleira nos pés que já não sentia.
Seu amante e melhor amigo estava vestido no mais belo smoking que Blay jamais vira – pensando bem, talvez isso tivesse menos a ver com a roupa do que com o macho que a vestia: o cabelo muito escuro espetado, a camisa branca que deixava a pele bronzeada ainda mais luminosa, e o corte... eram apenas um lembrete do corpo perfeito do guerreiro.
Mas não foi isso o que afetou.
Foram aqueles olhos descombinados, um verde e outro azul, que brilhavam tão belamente que deixavam as velas votivas no chinelo. Qhuinn parecia nervoso, porém, as mãos se remexendo, o peso passando de um lado para o outro sobre sapatos muito bem lustrados.
Blay avançou, parando quando ficou de frente para o lutador. E mesmo quando sua mente partiu para a agitação com o que tudo aquilo significava, e ele começava a chegar a conclusões muito loucas, teve que sorrir como um maníaco.
– Você voltou a colocar os piercings.
– É. Eu só... eu só queria que você soubesse que este aqui sou eu mesmo, sabe?
Enquanto Blay mexia na fileira de anéis de metal que estavam na orelha, Blay se inclinou e o beijou na boca – e na argola que mais uma vez estava no lábio inferior.
– Ah, eu sei que é você. Sempre foi. Mas estou feliz que eles estejam de volta. Eu os adoro.
– Então eles nunca mais sairão daqui.
No átimo de silêncio que se seguiu, Blay pensou: Ah, será que é isso... entendi errado?
Qhuinn se abaixou em um joelho. Bem sobre a imagem da macieira florida.
– Não tenho um anel. Não tenho nada elaborado na minha mente ou na ponta da minha língua – Qhuinn engoliu em seco. – Sei que é cedo demais, e que é muito repentino, mas eu te amo e quero que a gente...
Pela primeira vez na vida, Blay teve que concordar com o cara – nada mais precisava ser dito.
Mudando a posição do corpo decididamente, ele se inclinou e acabou com toda aquela conversa com um beijo. Depois se endireitou e assentiu.
– Sim. Sim. Absolutamente sim...
Com uma imprecação explosiva, Qhuinn se levantou e eles se abraçaram.
– Graças a Deus. Ah, caramba, faz dias que estou à beira de um ataque cardíaco...
De uma vez só, o som de palmas explodiu, preenchendo os três andares, ecoando ao redor.
As pessoas surgiram da escuridão, todo tipo de rostos familiares, e felizes...
– Mãe? Pai? – Blay riu. – O que estão... Ei, como vocês estão?
Enquanto abraçava os dois, seu pai lhe disse:
– Ele fez do jeito certo. Veio me pedir antes.
A cabeça de Blay se virou para seu par.
– Verdade? Pediu minha mão ao meu pai?
Qhuinn assentiu, depois começou a rir como um filho da mãe.
– É a minha única oportunidade. Portanto, quis seguir o protocolo. Podemos ter música?
No mesmo instante, todos recuaram, formando um círculo, e enquanto se acomodavam, toques de algo muito conhecido começaram a soar.
“Don’t Stop Believing”, do Journey.
Qhuinn esticou a mão.
– Dança comigo? Diante de todos... seja meu e dance comigo.
Blay começou a piscar rápido. De alguma forma, esse gesto pareceu maior ainda do que o pedido de casamento: diante de Deus e de todos. Os dois. Ligados, coração com coração.
– E acha que eu vou recusar? – sussurrou rouco.
Só que quando os corpos se encontraram, ele hesitou.
– Espere... quem vai conduzir?
Qhuinn sorriu.
– Ah, isso é fácil. Nós dois.
Dito isso, os dois se abraçaram e começaram a se mover em perfeita harmonia...
... e viveram felizes para sempre.
J. R. Ward
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