A mulher que tentou matá-lo era sua verdadeira companheira...
Depois de quase ser assassinado pela companheira que lhe foi destinada, o homem-lobo Damián Marcel Draicon a persegue até Nova Orleans e descobre que ela foi infectada por um feitiço mortal: seu corpo está lentamente se transformando em granito.
Se não encontrar rapidamente a cura Jamie será aprisionada para sempre dentro da pedra, com seu espírito vivo, mas preso por toda a eternidade.
Jamie Walsh odeia e teme Damián, pois acredita que ele assassinou seu irmão, mas deve trabalhar em conjunto com o líder dos lobisomens para encontrar um livro perdido de magia que contém a cura que vai salvá-la. Quando iniciam a busca pelo livro sabem que estão lutando contra o tempo e contra os terríveis Morphs, que usarão a magia negra que contem o livro para eliminar os Draicon para sempre...
«Antes fui presa e agora sou caçador», pensava Damián Marcel enquanto procurava por toda Nova Orleans à mulher que tinha tentado matá-lo. A companheira que lhe estava destinada. Jamie Walsh. Sua draicara.
O aroma do rio próximo o golpeou como uma bofetada. Damián elevou o nariz ao vento e aspirou o ar do Mississippi. Ao fim tinha voltado para casa.
Mas a sensação era agridoce: já não tinha lar algum. Aquele lugar já não o era. Era uma maldita tumba que ameaçava tragá-lo.
Tentou concentrar-se na paisagem, resistindo em transformar-se em lobo. Nova Orleans era conhecida por sua predileção para o sobrenatural, mas um lobisomem rondando o bairro francês poderia assustar os turistas. Esboçou um triste sorriso ao imaginar.
De repente o assaltou o aroma. Um aroma de madressilva e mulher. Dilatando as aletas do nariz, esforçou-se por apanhar aquela esquiva fragrância. Estendeu as mãos e tocou o ar como se estivesse acariciando a macia pele de uma mulher.
—Jamie. —Murmurou— Jamie, chéri. Pode fugir, mas não se esconder. Te encontrarei.
Amaldiçoou em francês quando perdeu o aroma. Em algum lugar daquele matagal de becos, cheios de lojas e locais noturnos, tinha conseguido esconder-se dele.
Afundou as mãos nos bolsos da calça, indiferente aos turistas.
Do outro lado da Praça Jackson, sentado em uma cadeira dobrável à sombra de uma frondosa árvore, um pequeno pintor enchia de cores uma tela. Em um banco na varanda um músico arrancava lastimosas notas de um banjo, acompanhado por um saxofonista. A música refletia bem o sombrio humor de Damián.
Nova Orleans ainda seguia lutando por recuperar-se dos efeitos do furacão Katrina, mas o Bairro fervia de música, álcool, sabor e magia. A magia que Damián levava no sangue. Magia branca, dos draicon.
E magia escura, dos morpb. Esboçou uma careta. Os morpb, antigos draicon que se voltaram malignos, podiam adotar a aparência de qualquer animal. Matavam sem piedade e logo absorviam a energia de suas vítimas. Jamie tinha se unido aos morpb para aprender sua magia, mas Damián a despojou de seu poder com um feitiço. Tinha-a deixado escapar no Novo México, consciente de que precisava estar sozinha e que depois poderia encontrá-la facilmente. O risco não era grande, uma vez que há uma semana atrás tinha matado Kane, o líder dos morph. Damián recordava bem a voz angustiada de Jamie:
—Me libertarei do seu feitiço, Damián. Nunca me terá.
Uma pontada de arrependimento lhe atravessou o peito, seguida de outra de desejo. A pequena Jamie, com seu delicioso rosto em forma de coração, sua pele delicada, quase translúcida, e seus enormes e expressivos olhos cinzas. Seus suaves e quentes lábios sob os seus...
Acelerou o passo, varrendo a multidão com o olhar. O sol arrancava reflexos do velho sax do músico. Ao passar a seu lado, o pintor lhe lançou um triste olhar. As palavras que pronunciou o fizeram deter-se em seco.
—Ouviu o uivo do lobo?
Sobressaltado, voltou-se para olhar o pintor. Estudou suas têmporas encanecidas e sua roupa velha, quase uns farrapos, manchada de tinta; suas fundas bochechas e seu nariz largo e afiado. O tipo estava pálido e magro como um fantasma.
—Há dito «lobo», senhor?
O homem o olhava com os olhos protegidos por seus grandes óculos de sol.
—O loup garou nunca fais dodo no bayou, mon frére. Joga uma olhada ao quadro. Interessante, non?
«O homem lobo nunca dorme no bayou, meu irmão» era o que lhe havia dito. Instantaneamente alerta, Damián contemplou a pintura: um lobo uivando à lua cheia, perto de uma cabana de madeira. Assaltou-o uma sensação de familiaridade. Olhou ao homem, mas não conseguiu identificá-lo. Por um instante, sentiu bater as asas da esperança; seria possivelmente um membro de sua antiga manada? Teria sobrevivido ao menos um?
—Mon frére? Quem trabalha duro não dorme nunca. Por favor, joga uma olhada a isto... — pediu-lhe o homem.
Mas a esperança morreu em seguida. Fazia muito tempo que todos seus irmãos estavam mortos. Não podia permitir-se distrair-se com suas lembranças. A vida de Jamie era sua prioridade. Aquele homem simplesmente tinha reconhecido seu acento e tinha tentado simpatizar com ele com a única intenção de lhe vender um quadro. O tipo não era mais que o que parecia: um artista meio morto de fome tentando sobreviver.
De repente captou sua atenção um aroma familiar, que lhe recordou imediatamente sua infância.
—Desculpe. — murmurou.
Varreu a zona com o olhar até posar em um velho de aspecto decrépito que estava carregando um grande cubo vermelho até uma pequena mesa de madeira.
—Caranguejos! —gritou o vendedor— Caranguejos do rio!
Damián se dirigiu diretamente para ele. Os caranguejos de cor cinza se agitavam no fundo do cubo. Vendo-os, lhe fez água na boca.
As lembranças o invadiram: lembranças de quando se internava no cristalino arroio, recolhendo caranguejos para a comida. Seu estômago se queixou: necessitava a energia da carne crua. Tirou dinheiro de sua carteira e pagou ao homem, que lhe guardou os caranguejos em uma bolsa de plástico.
—Crus são melhores. —lhe disse— Todo o sabor está na carapaça.
—Eu sei.
Damián se dirigiu ao Moon Walk, o passeio à beira do Mississippi. Ali, oculto dos olhares dos curiosos, abriu a bolsa e foi devorando os caranguejos. Quando foi tirar o último, algo maior que os outros, viu que não se mexia, mas sim estava estranhamente quieto. Possivelmente estivesse morto...
Dispunha-se a comer-lhe quando se deteve em seco. O caranguejo abriu a boca e vaiou:
—Draicon.
Alarmado, soltou-o. Era um morph. O caranguejo começou a agitar-se e a trocar de forma antes inclusive de cair ao chão. Damián fechou os punhos, esperando.
O caranguejo arrebentou multiplicando-se em um exército deles. Alguns se afastaram. Damián se concentrou em esmagá-los com o pé, rápido como o raio. Mas... onde estava o anfitrião?
Ao ouvir uma espécie de risada a suas costas, voltou-se rapidamente... mas não antes de sentir uma lacerante dor em um flanco. O morph, em sua forma humana, tinha-lhe cravado algo. Damián necessitou de toda sua energia para manter-se em pé.
Imediatamente elevou os braços e duas largas adagas apareceram em suas mãos. O morpb se equilibrou para ele, com a faca procurando seu peito.
Damián se colocou de lado e continuou esquivando-se enquanto o estudava. A criatura era rápida, mas ele era mais. De repente o morpb começou a trocar. Suas mãos se transformaram em garras e umas largas presas substituíram seus amarelados dentes.
—É muito tarde, draicon. Sua draicara está morrendo. Seu feitiço não funcionou.
Aquilo conseguiu distraí-lo. O morpb se aproveitou e lhe aplicou um golpe. Damián se recuperou justo quando a criatura começava a mudar de novo. Sabia que, com outra forma animal, seria mais difícil matá-lo, assim não perdeu tempo. Lançou-lhe um chute que o fez cair de joelhos, e a seguir soltou as adagas e saltou em cima dele. Imediatamente lhe golpeou a mão contra o chão, obrigando-o a soltar a faca.
Apertou-lhe a terceira vértebra cervical, o suficiente para lhe provocar uma insuportável dor sem matá-lo. A dor lhes roubava a energia e suspendia seus processos de metamorfose.
—Me diga, maldito covarde. Por que não funcionou meu feitiço?
O morpb chiava, negando-se a falar. Damián aplicou uma maior pressão.
—Pára, pára. — gemeu, com a espuma lhe correndo pela boca.
—Fala.
—Conseguiu atrasar o efeito da magia escura, mas nada mais. Seu sangue... está se espessando. — o morpb se revolveu, tentando liberar-se.
Com um grunhido, Damián lhe afundou o polegar no pescoço. A criatura não cessava de gemer.
—Oh, por favor, pára essa dor... —suplicou— A magia negra está dentro dela, convertendo-a... em pedra.
Consternado por aquela revelação, Damián o soltou. Ao ver que o morpb tentava escapar, retorceu-lhe um braço detrás das costas.
—Quero detalhes. Agora. Ou te romperei até o último osso do corpo.
—O feitiço de Porfirio... usa-se muito pouco. Não p-podemos absorver a energia da vítima. Demos a ela magia escura, e quanto mais magia escura tenha em seu interior, mais rapidamente funcionará. Em questão de s-semanas, converterá-se em pedra. Em pedra viva...
A mente de Damián estava trabalhando a toda velocidade.
—E não podem desfazer o feitiço, certo? — retorceu-lhe ainda mais o braço.
—N-não — soluçou o morpb— Nada pode detê-lo. Só o Livro Oculto de Magia.
Damián o soltou de repente e recolheu suas adagas. Já era tempo de terminar com aquilo.
O morpb se levantou e voltou a lançar-se contra ele, com seus traços convertidos em uma careta de raiva. Damián lhe cravou então as duas adagas no peito.
Depois de contemplar impassível sua agonia, empurrou o corpo para o rio. Antes inclusive de tocar a água, desintegrou-se em cinzas.
Olhou sua ferida; se curaria sem problemas graças a sua magia. Com um gesto de sua mão, trocou imediatamente de aparência. Sua rasgada camisa de seda, sua calça de linho e seus sapatos de pele se viram substituídos por uma camiseta negra, uns desbotados jeans e umas botas de motorista.
Encolheu seu estômago ao recordar as palavras do morph. Tinha ouvido antigas lendas sobre o feitiço de Porfirio. As vítimas apresentavam ao princípio sintomas de letargia. Comiam qualquer coisa que pudesse lhes dar energia, especialmente açúcar. Mas não assimilavam a comida. Choravam lágrimas doces, e o sangue se espessava nas veias, voltavam-se cinza, seus órgãos internos começavam a petrificar-se... Era uma morte horrível.
—Merde — resmungou.
Voltou correndo à praça onde tinha comprado os caranguejos, em busca do vendedor. O tipo tinha desaparecido. Tinham-no enganado. O vendedor também devia ser um morph.
Jamie, morrendo... e os morph se transformando pela cidade? Que diabos estava acontecendo? Estariam por toda parte, disfarçados de humanos? Nem sequer sua potente magia draicon podia reconhecê-los naquela forma.
Ele ergueu o nariz e cheirou, tentando traçar o rastro do vendedor ... quando de repente ele virou-se para o cheiro: o aroma de madressilva e da mulher flutuando no ar. Jamie.
Tinha que encontrá-la. Em questão de semanas, estaria morta. Ou, pior ainda, convertida em pedra. Em estátua viva. Virou-se, enchendo os pulmões daquele aroma Agora era mais forte... abriu passo entre um grupo de turistas que desfrutava da música do tocador de banjo.
O remédio estava no Livro de Magia. Aquele oculto texto de magia branca e negra, de dez mil anos de antiguidade estava carregado de segredos. O pai de Damián o tinha oculto para que não caísse em poder dos morpb. Cada setenta anos era necessário um feitiço para mantê-lo ativo.
Se Damián não encontrasse logo o livro, Jamie morreria em meio de uma atroz agonia. «Prometo-te que te salvarei, minha adorada draicara, embora seja quão último faça na vida», pronunciou para si. Com seu instinto de lobo alerta, seguiu o rastro do aroma de Jamie.
Quanto podia chegar a perder uma pessoa na vida? Perguntou-se Jamie Walsh. Muito. Seres queridos, por exemplo. Ela tinha perdido seus pais. E seu irmão. E agora estava perdendo também sua própria força, sua própria magia.
Sentia-se aturdida, morta por dentro, como se tivesse apagado sua chama interior. Apoiou-se em um poste para recuperar o fôlego. Um frio cortante lhe atravessava a camiseta. A caminhada até a loja de alimentação nunca a tinha fatigado tanto. Baixou ao chão a bolsa de plástico e esfregou as mãos nas pernas das calças dos jeans. Era como se levasse pesos de chumbo nos pés. E não tinha ninguém a quem recorrer, ninguém que pudesse ajudá-la.
Não: a solidão estava bem. Sozinha, suas possibilidades de sobreviver eram maiores. Não necessitava de ninguém.
Um aroma familiar a assaltou de repente. Um aroma de água fresca e a especiarias. Fortes. Sensual. O inimigo: Damián. A adrenalina começou a bombear por suas veias. Olhou a seu redor, mas só viu turistas desfrutando da ensolarada tarde. Fazendo um esforço, continuou andando para sua casa.
A casa de seu irmão Mark, perto da praça Jackson, não despertava nenhuma suspeita. Abriu a grade e fechou o ferrolho. Suspirando de alívio, chegou ao jardim interior, deixou as compras sobre uma das mesas de ferro forjado e se sentou.
Rodeada de muros centenários, sentia-se a salvo naquele refúgio. Ninguém a encontraria ali... exceto possivelmente Damián. Um calafrio lhe percorreu as costas. O que faria se chegava a encontrá-la? De que maneira a castigaria?
«Tentou matá-lo», recordou-se. O que quereria o draicon dela? A resposta era clara: sexo. A excitação sexual e o medo se confundiam quando pensava em Damián, no seu corpo duro e musculoso. Tinha lhe roubado a virgindade, e agora quereria convertê-la em sua companheira. Daria-lhe caça e não retrocederia até encontrá-la: até arrastá-la para sua cama para afundar-se entre suas coxas e possuí-la de novo.
Excitava-se só de pensar... esforçou-se por colocar aqueles pensamentos a um lado para concentrar-se em sua sobrevivência. Naquele momento era como uma fortaleza sem defesas, exposta a Damián. Ele, que desejava seu corpo, apoderaria-se também de seu espírito e a levaria consigo, em qualidade de companheira, com sua manada de ferozes homens-lobo. Não ficavam mais armas além de sua vontade, sua guelra.
Depois de subir as escadas e guardar as compras na cozinha, passou ao salão e se aproximou de um velho escritório coberto de computadores, móveis e outros aparelhos. Tirou um laptop e um aircard e os guardou em sua mochila. Sem perder tempo voltou a sair para dirigir-se a Petite Maison, artigos de vodu.
Mama Renee conhecia o secreto mundo dos seres sobrenaturais, como os morpb e os draicon. O tinido de uma campainha de bronze anunciou sua entrada. De um lado se elevava o altar a Marie Laveau, com dezenas de velas acesas em memória da antiga sacerdotisa vodu. Jamie se dirigiu a um quarto e bateu na porta fechada. Foi Mama Renee quem abriu.
—Chére! —exclamou, abraçando-a.
—Trouxe um presente. Eu comprei uma placa wireless e conectei ao telefone para que você possa se comunicar com sua neta. Já é hora que entre na era da informática. Leva duas décadas de atraso...
Aquela antiga brincadeira arrancou um sorriso de Mama Renee enquanto aceitava o presente. Mas em seguida os soltou para fazê-la entrar na cozinha, onde a convidou a um chá de ervas. Um grande gato negro se enredou entre suas pernas. Jamie se agachou para acariciá-lo.
—Arquimedes está ficando gordo e são. — Comentou. Recordava bem o aspecto que tinha quando Mark e ela o encontraram, todo ossos e pele, no alpendre de uma casa destroçada pelo furacão Katrina.
—Seu irmão e você trabalharam muito duro para resgatar a esses pobres animais e lhes buscar um lar. Se não tivesse sido por vocês, teriam morrido. Mark era uma pessoa maravilhosa, carinhosa e com um grande coração, como você. O mundo perdeu muito com sua morte.
De repente se sentiu afligida por uma insuportável sensação de solidão. Mark a resgatou de uma infância traumática. Ele era quão único tinha. «E você o matou, Damián. Você assassinou meu irmão». Sentiu um nó na garganta. Ela tampouco era muito melhor. Ao fim e ao cabo, tinha tentado matar seu antigo amante...
—Algo aconteceu. — comentou Mama Renee, escrutinando seu rosto — Vejo escuridão em seus preciosos olhos. Mas também vejo a luz, esforçando-se para sair.
Consternada, Jamie explicou tudo.
—Tem algo, uma poção, qualquer coisa que possa combater o feitiço de Damián? —pediu-lhe desesperada.
Renee tomou brandamente uma mão e estudou sua palma. Sacudiu a cabeça.
—Carinho, não há magia que possa rebater isso. Necessita a fonte. É uma magia muito poderosa.
—Tenho que recuperar a minha.
Aproximou-se do açúcar. Só depois de comer várias colheradas, bebeu um gole de chá.
—Jamie, quantas vezes tenho que lhe dizer que isso é perigoso, e não só para ti, chére? Olhe o que te fez a magia escura.
—Mas era a única magia que tinha... e agora desapareceu —deixou a xícara sobre a mesa e se abraçou, estremecendo.— Me sinto tão... tão perdida e tão sozinha. Quando consegui aquele poder, por fim pude me sentir minimamente cômoda em minha própria pele... embora odiasse a maneira em que o consegui. Cada vez que me sentia culpada, procurava usar os poderes para me recordar o benefício que supunha. Não necessitava de ninguém. Tinha a magia. Mas agora... — acrescentou, triste— Agora já não sei quem sou. É como se não encaixasse com ninguém, como se me tivesse perdido...
—Mas os morpb lhe acolheram. —repôs a mulher, irônica— Te fizeram se sentir um deles, não? Era isso o que queria?
Jamie estremeceu, recordando a sensação do mal infiltrando-se em sua alma.
—Sei que me utilizaram e odiei o que me fizeram. Mas o poder... Oh, Renee, não pode imaginar isso! Pela primeira vez, senti-me normal. Tinha que me vingar e o mal era o único caminho. Mas agora estou perdida de novo.
—A vingança só traz escuridão. —suspirou a mulher— Por que quis se vingar de Damián? Por que tentou matá-lo?
Jamie mordeu o lábio. Mama Renee era a única pessoa em que podia confiar.
—Quero que me jure por sua vida que não dirá a ninguém.
A mulher pareceu surpreender-se, mas ao final assentiu.
—Vi como matava a meu irmão.
—Non, chére, os jornais disseram que o mataram uns assaltantes. A polícia só o identificou porque...
—Encontraram sua carteira perto, com sua identificação. O corpo de Mark... estava abrasado, reduzido a cinzas —suspirou— Faz seis meses, estava em um bar do Bourbon esperando Mark quando conheci Damián. Pareceu-me... irresistível. Disse-me que era um draicon, um homem-lobo. Mark chegou então e ficou furioso por me ver com ele. Estava claro que não se davam bem. Mark me ordenou que voltasse para casa, mas Damián colocou uma nota na minha bolsa com o número de seu quarto no hotel.
Um ardiloso sorriso apareceu nos lábios de Renee.
—Me deixe adivinhar. Foi buscá-lo.
Jamie assentiu, ruborizada. Evocou seu próprio acanhamento, a poderosa sensualidade de Damián. A sensação de pura loucura, de absoluta inibição... e a convicção de que tinha sido muito mais que sexo,
—Damián prometeu que me ensinaria a magia. Voltei para o hotel no dia seguinte para lhe recordar sua promessa, mas ele já havia partido. Senti-me manipulada. De retorno em casa, Mark estava furioso. Adivinhou o que tinha acontecido e me ordenou que ficasse ali, sem sair. Disse-me que os draicon eram uns miseráveis e que faria Damián pagar.
Nunca tinha visto seu irmão tão furioso como aquele dia... nem tão preocupado por ela. E Damián o matou.
—Como sabia Mark que Damián era um draicon? — Perguntou Renee.
—Mark sabia coisas do universo sobrenatural — deu de ombros— Aquela noite Mark necessitava que o ajudasse a tirar um cão de rua de um edifício que acabava de comprar. Ficamos de nos encontrar ali. Disse-me que pusesse uma roupa nova, orvalhada com um produto que ocultava meu aroma para que Damián não pudesse me localizar. Eu estava no edifício procurando o cão quando ouvi um ruído de motos no beco. Apareci fora e vi... vi o Mark. Estava enfrentando Damián e aqueles cinco motoqueiros, todos altos e vestidos de couro negro...
Renee a escutava com atenção, compadecida.
—Ouvi Damián dizer: «Esse é Mark Walsh. Matem» Os motoqueiros se converteram em lobos. Vi Damián transformar-se também em um enorme lobo e... Mark gritou... —fechou os olhos com força, recordando os grunhidos dos lobos e os gritos de seu irmão em plena agonia — Eu desmaiei. Quando despertei, saí ao beco. Não havia nada mais que um montão de cinzas. Informei o desaparecimento e a polícia me disse que uma testemunha tinha visto Mark morrer nas mãos de uns assaltantes. Então, como não sabia o que fazer, fugi...
—Oh, Jamie... —Mama Renee abriu os braços, convidativa.
Que vontade tinha de abraçá-la, de deixar-se reconfortar! Mas desde a morte de seu irmão, não se atrevia a baixar a barreira detrás da que se refugiou para defender-se daquele mundo hostil. Sacudiu a cabeça.
—Vivi em hotéis, temerosa de voltar para casa, por medo de que Damián me encontrasse. Poucos dias depois, encontrei-me com um amigo dele. Supunha-se que Nicolás devia me proteger até que Damián aparecesse. Eu lhe disse que só me reuniria com ele se me ensinava a magia. — sorriu triste— E o fez. Assim usei a magia para encontrar aos morph, conseguir mais magia e tentar matar Damián. Eles usaram meu sangue para elaborar um filtro letal e eu o infectei com um beijo.
Mama Renee a olhava angustiada.
— Sofreu tanto... mas por que Damián teria que querer matar a seu irmão? Possivelmente não saiba a história completa...
—Provavelmente sabia que Mark pretendia buscá-lo por me haver seduzido. Eu vi com meus próprios olhos como o despedaçavam. Os draicon são uns assassinos desumanos.
Os gritos ainda ressonavam em sua cabeça. Os terríveis chiados de dor e o ruído da carne rasgada... Renee voltou a tomar a mão para lhe examinar a palma.
—Jamie, sofreu muito sendo tão jovem. É muito especial, diferente, e pagou por isso. É hora que se liberte, de que aprenda que nem todo mundo é seu inimigo. Às vezes aqueles de quem mais desconfia são precisamente os que mais merecem sua confiança. Eles são sua verdadeira família.
Removendo-se em sua cadeira, Jamie pensou nas cicatrizes que marcavam a parte baixa de suas costas, voltou a ouvir os risos irônicos de seus primos, a sentir a ardência na pele... Sentiu uma pontada de vergonha. E essa tinha sido sua família?
—Você é minha verdadeira família. —replicou. «Não tenho a ninguém mais», acrescentou para si. — Assim... não há nada que possa me dar para que possa recuperar ao menos uma mínima parte de meus antigos poderes?
—Nada. Impede-lhe isso um antigo feitiço draicon. Mas se Damián lhe fez isso, seguro que foi para te proteger.
—Necessito outro feitiço draicon para me liberar. O Livro de Magia.
—Esses textos são secretos. —Renee a olhou preocupada — São muito perigosos, inclusive nas mãos das feiticeiras mais sábias e experientes.
Jamie não era nem sábia nem experiente. Mas estava desesperada.
—Me prometa que se encontrar esse livro, entregará-o aos draicon —suplicou a anciã— Já se converteu em uma vítima de terríveis força. Esse livro poderia te destruir...
—Não fui uma vítima e sim uma participante voluntária.
Renee lhe acariciou meigamente a mão.
—Uma vítima, carinho. Os morpb sabiam que estava vulnerável. Por muito que agora tente negá-lo, aproveitaram-se disso.
Jamie se indignou de novo.
—Não. E nunca voltarei a ser débil. Obrigada, Mama Renee. Arrumarei isso sozinha.
Uma enigmática expressão se desenhou nos rasgos da feiticeira.
—Jamie, recorda. Inclusive o bem pode proceder da escuridão. O chefe dos draicon te busca e eles necessitam de seu poder de cura.
Aquelas palavras não tinham nenhum sentido para Jamie. Ela não curava, mas sim destruía. Era como se tudo a sua volta tivesse se tornado absurdo de repente.
—E nem todos os draicon são maus — acrescentou a mulher, sorrindo triste.
Jamie sentia uma dolorosa opressão no peito enquanto se deixava acompanhar até a saída. A campainha da porta tilintou a suas costas.
Sentindo-se perdida e desorientada, dirigiu-se ao Pedestrian Malí. Seria outro dia de rotina no Bairro Francês... Mas se equivocava. O coração começou a lhe pulsar com o dobro de velocidade quando viu uma estranha figura dirigindo-se diretamente para ela. Não era o rosto de Damián, que conhecia tão bem, a não ser outro de traços disformes, olhos negros, sem alma...
O morph seguia caminhando para ela: sua figura encolhida dava pavor, parecia um pesadelo vivo... Acaso ela era quão única o via? Quis gritar as pessoas para avisá-las: «Corram, loucos!».
Piscou várias vezes. De repente, no lugar do morph, viu um homem de meia idade vestido com uma camisa de flores e bermuda. «Estou perdendo o juízo», pensou. Respirando fundo, obrigou-se a relaxar-se. Os morph não passeavam pelas ruas de Nova Orleans: só os humanos. E um solitário homem-lobo chamado... Damián.
De repente ficou paralisada de medo. Ali estava. O vento lhe despenteava os cabelos escuros. Sua elegância natural o fazia destacar-se entre a multidão. Caminhava com graça para ela, com seu corpo musculoso movendo-se como uma máquina bem lubrificada. Alheio à multidão, aos turistas, aos pintores, a tudo.
A tudo que não fosse ela. Seus olhos verdes percorriam sua figura como um laser. Voltou a acelerar-se o pulso. O instinto a impulsionava a fugir. Virando-se, começou a abrir-se passo entre a multidão. Caminhava cada vez mais rápido, sentindo seu fôlego na nuca...
Uma mão se fechou sobre seu braço, obrigando-a a deter-se. Jamie perdeu o fôlego, aterrada. Arrastou-a longe da multidão, para um edifício de tijolo.
—Jamie... por fim te encontrei —murmurou com sua voz suave, acariciadora, uma vez que a meteu em um velho portal.
—Me solte, draicon. Me solte agora mesmo.
Lutou em vão. Um soluço histérico lhe subiu pela garganta. Iria castigá-la por ter tentado matá-lo. Tinha-a encurralada contra a parede. Estava apanhada.
Quando abriu a boca para pedir ajuda, Damián a atraiu para seu duro corpo... e a beijou afogando seu grito.
Seu beijo a deixou paralisada de assombro. Foi um beijo terno, apenas um delicado toque. Damián elevou a cabeça, suavizando sua expressão e lhe embalou o rosto entre as mãos.
—Não grite, chére. Prometo que não te farei mal, ma petite.
Com uma simples carícia, tinha conseguido tranquilizá-la. Jamie amaldiçoou para si. O que era aquilo? Magia draicon?
—Não quero te fazer dano, Jamie. Eu só quero te ajudar. — um brilho de desejo apareceu em seus olhos — Mas primeiro... maldita seja...
Voltou a beijá-la, como se não pudesse resistir. Jogando a cabeça para trás, Jamie sentiu que lhe fraquejavam os joelhos. Elevou uma mão para lhe acariciar o pescoço, duro como uma rocha sob a pele ardente. Reconheceu seu sabor quando sua língua invadiu sua boca. Sentia-se tão desinibida e tão incontrolável como a primeira vez que a possuiu...
Aquilo não era real. Nem justo. Mas o suculento sabor de sua língua a reclamava com cada carícia. Agarrou-o pelas lapelas da camisa, aproximando-o para si. Só que justo nesse instante Damián interrompeu o beijo. Um rouco grunhido surgiu de sua garganta enquanto se afastava, sem soltá-la.
Alarmada e consternada, Jamie umedeceu os lábios. «Acabo de beijar ao assassino de meu irmão. O draicon que tentei matar».
—Sshh —Damián lhe embalou uma bochecha com a mão — Não te farei nenhum dano.
—Então me libere desse teu feitiço —ficou olhando. Tinha um rosto perfeito, de uma beleza clássica. E, entretanto, sabia que um lobo espreitava atrás.
Tinha tentado matá-lo no Novo México, mas Nicolás, seu beta, tinha-o curado. E logo Damián lhe tinha arrojado um feitiço lhe impedindo de fazer magia. O escuro poder que lhe tinha outorgado Kane, o chefe morpb, tinha desaparecido. Conforme lhe tinha contado Damián, tinha-o feito porque sabia que, sem seus poderes, deixaria de interessar aos morpb. Mas lhe tinha mentido. Sabia.
Depois ela tinha escapado, mas agora acabava de encontrá-la. Não importava. Voltaria a fugir.
—Não posso. A magia que há em ti é escura. Até que lhe possa apagar isso, o feitiço persistirá.
—Encontrarei uma maneira de combatê-lo. Posso te vencer, draicon.
Uma sombra obscureceu de repente a expressão de Damián.
—Tenho que te dizer algo, Jamie. Está em perigo. Necessita minha ajuda.
—Sua ajuda? Antes preferiria beijar a um morpb. Ao menos eles me deram poder.
Ficou olhando pensativo.
—Como te transmitiu Kane sua magia?
—Deitei-me com ele.
Damián apertou os lábios até convertê-los em uma fina linha. Aproximando-se, acariciou-lhe o pescoço com o nariz; estava-a farejando como um lobo a um coelho. Quando se afastou, um brilho de masculina satisfação relampejava em seus olhos.
—Não é verdade. Não o cheiro em você. Não esteve com nenhum outro homem depois de mim.
—Mas poderia me deitar com qualquer um. —elevou o queixo— E vender meu corpo por alguma maneira de combater seu feitiço.
Damián sorriu, mas seu olhar era o suficientemente eloquente. Falava de raiva e de posse masculina.
—Não se subestime, Jamie. Seu corpo vale muito mais. E se encontrar a algum voluntário, farei que se arrependa de ter posado seu olhar em você. — acariciou seu pescoço com deliciosa ternura, em contraste com o brilho assassino de seus olhos — O despedaçarei. Pouco a pouco.
—E comigo? O que faria comigo?
Sua expressão trocou de repente. A intensidade de seu olhar a derreteu.
— O que faria contigo? Arrancaria sua roupa, beijaria todo seu corpo e te faria desfrutar até que suplicasse a gritos que parasse... Nunca voltaria a estar com outro homem, porque cada vez que te aproximasse de um, eu estaria ali, meu aroma em seu nariz, meu sabor em sua boca e a sensação do meu sexo no teu... —soltou-lhe o pescoço—Entendido?
Jamie umedeceu os lábios enquanto sentia crescer em seu interior um profundo e primitivo impulso ante aquele faminto olhar... Suas pupilas se dilataram por momentos, obscurecendo sua íris de cor verde jade. Damián exercia um estranho poder sexual sobre ela, certamente; mas ela também sobre ele.
—Entendo. Despojou-me de meu poder para me castigar. Bem, ganhou. Se me liberar desse feitiço, compensarei você como você já sabe. Se não, encontrarei alguma outra maneira. Como certo livro secreto de magia, draicon.
Damián lhe acariciou uma bochecha com a ponta dos dedos.
—Meu nome é Damián, não draicon — sua voz se suavizou de repente. Jamie acreditou inclusive distinguir uma nota de arrependimento — Não há necessidade de que me compense de nenhuma forma, Jamie. Esse feitiço que te lancei foi por seu bem, para seu próprio amparo. Confia em mim, é o melhor...
—Eu sei o que é o melhor para mim. Não te necessito nem a ninguém.
Uma expressão de horrível sofrimento se desenhou nos olhos de Damián, antes que chegasse a fechá-los. Perplexa, Jamie ficou olhando a sombra de suas largas pestanas. Quando voltou a abri-los, a dor tinha desaparecido.
—Passeia comigo. Precisamos falar. É urgente.
Não queria, mas a cálida mão com que a guiava no cotovelo lhe impedia de negar-se. Começou a levá-la para o rio.
—Me solte. Não confio em você.
Deteve-se, olhando-a muito sério.
—É certo que eu tampouco te dei uma boa razão para que confie em mim. Mas temos que falar. Iremos ao Café du Monde. É um lugar público, assim se sentir-se ameaçada, sempre poderá gritar pedindo ajuda. Parece-te bem?
O café estava cheio e Damián a guiou para uma das mesas do terraço. Galante, puxou-lhe uma cadeira. Indecisa entre sair fugindo ou ficar, Jamie se sentou ao fim.
Damián franziu o cenho ao ver sua desanimada expressão. Estirando uma mão, tomou delicadamente o queixo.
—Ei, tranquila. Tudo se arrumará. Não é o fim do mundo.
«O do meu sim», quis lhe dizer. Mas em lugar disso deu de ombros, em um valente esforço por dissimular seus sentimentos. Damián ficou olhando pensativo antes de chamar uma garçonete.
Logo após ter partido com sua ordem Jamie tirou um guardanapo de papel e estendeu sobre a toalha. Ato seguido tomou o pote de açúcar, verteu todo seu conteúdo no guardanapo... e começou a comer a colheradas.
—Vá... —murmurou Damián, impressionado.
Ignorando-o, Jamie continuou comendo... cada vez mais rápido. O açúcar lhe dava a energia que necessitava. Quando terminou, soltou a colher.
—Uf! Necessitava de glicose... —disse como desculpando-se — É que ultimamente me encontro tão cansada...
—Jamie, por que pediu aos morpb precisamente o poder de voar quando teriam podido te conceder qualquer outro?
—Não o fiz. Kane me infectou com magia escura e me disse que podia me metamorfosear em qualquer animal que quisesse.
Damián desviou o olhar para uma mosca que estava revoando pela mesa, perto dos restos de açúcar. Esmagou-a com assombrosa rapidez. Jamie o olhou surpreendida.
—Não era mais que uma mosca... Embora nunca se sabe. —explicou, em velada referência aos morpb.
A garçonete se aproximou então com o pedido, duas xícaras de café e dois beignets. Ao ver o pote de açúcar completamente vazio, pôs os olhos como pratos.
—Estão loucos? Acabei de enchê-lo...
—Então traz outro. —lhe ordenou Damián com tom áspero.
Jamie se afundou em seu assento, envergonhada, enquanto bebia um gole de café.
—Queria falar, pois falemos de uma vez.
—Quanto tempo leva comendo açúcar de uma maneira tão compulsiva, Jamie?
—Hoje é o primeiro dia, acredito. —ela era a primeira a estar surpreendida com seu comportamento.
—É a primeira vez que te passa?
Assentiu, baixando o olhar a seu café. Seu café puro, negro. Negro como tinha sido sua alma, quando teria sido capaz de fazer qualquer coisa de ruim contra Damián. Agora o desejo de vingança se evaporou, lhe deixando um horrível vazio.
—Por que veio, draicon? —sussurrou— Se vingar pelo que te fiz?
Acariciou-lhe uma mão com a ponta dos dedos, como se não pudesse suportar não tocá-la.
—Vim te salvar.
Duvidava-o. Ele queria muito mais. Podia senti-lo.
—Mas, dado que levantou o tema... por que tentou me matar? A maioria das mulheres não tentam matar seus amantes.
—Eu não sou como a maioria das mulheres.
—Há algo mais, verdade? O que é?
«Não confie em ninguém», recordou-se Jamie. Tinha que se esquivar da verdade.
—Mentiu-me, draicon. Ao menos, com os morph eu sabia o que esperar. Escuros, poderosos...
—Malvados.
—Mas não hipócritas. Segui-lhes o jogo. Pensei que você, depois do que fizemos aquela noite... Voltei o dia seguinte ao hotel e vi que tinha ido. Rompeu sua promessa de me ensinar a magia.
Damián tomou então as mãos entre as suas. Aquele simples contato resultava tão tranqüilizador... Jamie ficou olhando aqueles compridos e finos dedos. Mãos que, entretanto, tinham matado, esmigalhado...
—Deixei-te um recado, te dizendo que nos veríamos depois.
—Eu não vi nenhum recado. —se soltou.
—Você... seu irmão provavelmente o viu primeiro. Eu tinha que ir. Precisava me ocupar de um enorme problema que te ameaçava... Enviei Nicolás, meu melhor guerreiro, para que te localizasse e protegesse. Eu queria te ensinar a magia, mas esse outro assunto era mais urgente. E agora, responde minha pergunta: por que tentou me matar, Jamie?
—Por que me enganou? —replicou ela—Por que me contou toda essa história absurda a respeito de que eu estava destinada a ser sua companheira?
—Não é nenhuma história absurda. Você é minha draicara, a que me está destinada... Quão único isso tem de absurdo é que você é humana e eu um Alpha draicon. E não nos relacionamos com humanas. —acrescentou, sombrio.
—Eu sou humana, assim... por que teria que ser seu casal? Está bem, terminemos de uma vez. Lamento ter tentado te matar. Que passe bem.
Dispôs-se a levantar-se da mesa, mas ele impediu retendo sua cadeira com um pé e aproximando-a de novo. Jamie pôde ver seus potentes músculos delineando-se sob o tecido dos jeans. Estremeceu ao recordar aquelas musculosas pernas enredadas nas suas enquanto se afundava nela...
Quando voltou a elevar o olhar, viu que sorria levemente. De repente franziu o cenho enquanto lhe agarrava de novo a mão.
—Me diga, como te infectou Kane? Disse-te algo?
—Mordeu-me. Foi como uma dentada de homem lobo. E me disse algo em uma língua estranha.
Aquilo lhe doeu, muito. Estremeceu ao recordá-lo.
—Recitou um conjuro. Só a magia de um Alpha puro sangre pode lhe ajudar. —a olhou fixamente— Minha magia, Jamie.
—Assim se você me morder, isso rebaterá a infecção? Não, obrigado. Com uma dentada já estou satisfeita.
—Há outras maneiras. —murmurou— Muito mais agradáveis. Posso fazer que chegue a desfrutar muito.
O significado de suas palavras ficava mais que claro em seu olhar.
—Não, nunca mais. Não penso ter sexo contigo. Por certo, o que tivemos não foi mais que isso: sexo. Pura biologia. — tinha medo de olhá-lo, não queria ver em seus olhos um reflexo de seu próprio desejo.
—Não é certo. Entre nós sempre haverá muito mais que sexo, chére. Você sabe e eu também. É algo que nenhum dos dois pode ignorar. Mas te prometo que nunca mais voltarei a lhe deixar. — lhe acariciou o dorso da mão com o polegar— Como foi, Jamie? Em que momento a escuridão se abateu sobre você?
Em um impulso, Jamie entrelaçou os dedos com os seus. Damián pareceu surpreender-se: seu sorriso apagou de repente suas olheiras. Mas, com a mesma rapidez com que tinha aparecido, desapareceu. Quando Jamie voltou a elevar o olhar, só viu curiosidade e preocupação em seu olhar.
—Foi como cair em um poço negro, senti como o mal impregnava até o último poro de meu corpo. Não via nenhuma luz, nenhuma esperança. Só o eco de meus próprios gritos...
Damián lhe apertou os dedos, a mandíbula tensa.
—Querem algo mais?
A mal-humorada garçonete havia retornado. Parecia irritada, nervosa. Provavelmente estava a ponto de terminar seu turno.
—Olá? Perguntei se necessitarem algo mais.
Damián a fulminou com o olhar.
—Me traga a conta e nos deixe em paz.
A mulher deixou um papel sobre a mesa. Enquanto olhava suas mãos entrelaçadas, sua boca desenhou uma desaprovadora careta. Seus lábios se abriram, descobrindo... uns dentes afiados e amarelos, como os de um crocodilo.
Jamie piscou várias vezes, sobressaltada. Não, só eram uns dentes sujos de nicotina. A garçonete lhes lançou outro olhar de censura antes de retirar-se. O que lhe passava? Tremendo, retirou a mão, em um intento por dissimular sua reação. Afundou-a em um bolso e tirou um par de notas.
—Eu convido. Está ficando tarde. Tenho que voltar para casa. — mas tinha as pernas intumescidas, como de cortiça. —Por que me sinto assim? —exclamou em voz baixa, enquanto as esfregava.
—Eu sei por que. —olhou a seu redor e tomou uma mão—Jamie, quando Kane te mordeu, te transmitindo sua magia... envenenou-te ao mesmo tempo.
Olhou-o incrédula. Mas a expressão de Damián não podia ser mais séria. Seus lábios se converteram em uma fina linha.
—Ao te morder, infectou-te com um conjuro do Porfirio. Quanta mais magia usava, maior era a rapidez de seus efeitos. E o motivo de seu cansaço é... —suspirou— porque seu corpo está se convertendo em pedra. A ânsia de açúcar é o primeiro sintoma. Busca se carregar rapidamente de energia, mas os efeitos não duram.
Fez-se um denso silêncio. Até que Jamie soltou uma gargalhada.
—Mark me disse que era um mentiroso, mas nunca comentou que os draicon fossem tão amantes da fantasia.
Um brilho de fúria apareceu nos olhos de Damián.
—Seu irmão era o mentiroso. Sei que sofreu muito quando o perdeu... e que essa foi a razão pela que fugiu.
«Você o matou», quis gritar Jamie. Em troca, mordeu o lábio enquanto riscava um gancho de ferro com um dedo no açúcar que tinha ficado sobre a mesa.
—Se inteirou de como morreu?
—Sei como morreu. Ele não era quem você acreditava que era, Jamie. Quando chegar o momento, direi tudo o que queira saber. Sei que dói perder a um membro da família.
—Não tem nem idéia — sussurrou.
Uma sombra cruzou de repente pelo rosto de Damián.
—Sei mais do que você crê. — voltou a olhar a seu redor, esticando a mandíbula—Temos que ir. Agora. Posso senti-lo. Aqui não está a salvo. Precisa ir para casa e descansar.
Descansar: a idéia a atraía. Levantou-se da mesa.
—Acompanho você — Ele se ofereceu sorridente— Considere-me seu convidado.
Era um sorriso malicioso, carregada de promessas. Jamie imaginou seus corpos enredados sob os lençóis, arrebatados de paixão... «Para!», ordenou-se. Acelerou o passo, mas ele a alcançou.
—Não sabe o que é um hotel? Se não puder te permitir um, há um albergue para animais vagabundos...
—Você é minha companheira, Jamie. Pertence a minha manada. E os componentes de uma manada nunca se separam. Assim é como sobrevivemos. Eu jamais te abandonaria, assim vá se acostumando à idéia de me ter perto, por seu próprio bem.
Pegou-a pelo braço em um gesto galante, mas carregado de decisão. Estava apanhada; era sua prisioneira. Muito fatigada para resistir, seguiu-o. Dirigiam-se à praça Jackson, perto da catedral, quando se deteve em seco. Um cruel e desumano sorriso apareceu em seus lábios.
—Ah, acabo de ver um velho amigo. Me espere aqui —lhe ordenou enquanto a levava a um banco do parque.
Agradecida pela pausa, sentou-se. Viu que o draicon entrava em um portal, muito perto do outro onde a tinha beijado. A porta estava aberta. Era estranho, porque o edifício estava vazio e...
«Ao diabo», exclamou para si mesma. Ela não recebia ordens de ninguém. Levantou-se e entrou no portal. A parte debaixo estava vazia, abandonada, cheia de pó e de escombros. Em pé em um canto, Damián parecia ter encurralado a um homem mais velho, vestido com uma camisa de manga curta e bermuda caqui. Reconheceu-o em seguida. Era o vendedor que às vezes montava seu posto perto do Café du Pode: vendia fruto do mar fresco e se evaporava sempre que aparecia a polícia.
O pobre homem ganhava dessa forma a vida desde que perdeu seu barco de pesca durante o furacão Katrina. De repente Jamie ficou sem fôlego.
Damián o estava agarrando pelo pescoço e o sacudia como se fosse um boneco de trapo. O homem soltou um gemido. Mas a surpresa de Jamie foi ainda maior quando Damián tirou uma adaga da manga e a cravou no seu peito.
Ato seguido lançou-o ao outro extremo da habitação. O homem golpeou a cabeça contra a parede com um ruído seco, estremeceu... e caiu, morto.
Jamie não chegou a gritar. Mal soltou um gemido estrangulado antes que Damián se voltasse, descobrisse-a e corresse a seu lado. Embalou-lhe o rosto entre as mãos, escrutinando seu rosto.
—Ah, Jamie... teria dado qualquer coisa para que não tivesse visto isto.
—T-você... mataste-o —sussurrou.
—Olhe.
Ante seus olhos, o cadáver do vendedor se converteu em um montão de cinzas. Cinzas escuras.
—Não era humano. Era um morph, disfarçado.
—Mas eu o conhecia! Faz um ano pelo menos, estava acostumada a comprar fruto do mar, vive em... —interrompeu-se, estremecida.
—Os morpb o mataram, e um deles adotou sua forma humana. Este é o segundo que matei hoje. Acredito que a cidade está cheia deles, Jamie. Inclusive conhecidos teus podem ser morpb disfarçados.
Tomando-a pelo braço, guiou-a fora do edifício. De caminho a sua casa, Jamie sentia os pés tão pesados que tinha a sensação de estar andando por um espesso lodaçal.
Chegaram por fim. Abriu a grade e ele entrou atrás; em seguida lhe tirou a chave e se encarregou de fechar. Exausta, Jamie se dirigiu ao jardim e se deixou cair em uma das velhas cadeiras de balanço.
Damián a seguiu até ali. Olhando a seu redor, apoiou uma mão na parede de tijolo.
—É uma boa casa — comentou com expressão aprovadora —Uma casa segura.
Jamie levantou da cadeira.
—Busca você mesmo um lugar onde dormir. É um draicon, assim que se arrumará sem problemas no chão. Ah, e não uive à lua. Despertará aos vizinhos.
—Que os lobos uivam para a lua é um conto da carochinha. Apenas uivo quando quero sexo. Portanto, não se assuste se você ouvir-me no meio da noite ...
Sobressaltada, voltou-se para olhá-lo. Damián sorria com expressão sedutora.
—Uiva tudo o que queira, draicon. Terá que me forçar se quer voltar a se deitar comigo.
—Não te forçarei, fique tranquila. Você mesma virá para mim. E muito em breve.
«Sim, e os lobos voam», pensou Jamie, irônica. Damián a seguiu escada acima, mas ela o ignorou. Meteu-se no dormitório e fechou com chave antes de derrubar-se na cama de dossel. Abraçada a um travesseiro, ficou olhando o teto amarelado. Pelas portas abertas do balcão entrava uma brisa fresca. Ao contrário de Mark, ela sempre tinha odiado aquela habitação por seu fantasmal silencio.
Sentia seu corpo como se fosse de chumbo. Estaria se convertendo realmente em pedra? «É um truque que utilizou para ganhar sua confiança. Para poder deitar-se contigo», disse-se. Não podia chorar. Não o permitia a si mesma. Já nem se lembrava da última vez que o tinha feito.
Não era verdade: tinha chorado desconsoladamente o dia em que morreram seus pais. Após não havia tornado a chorar, apesar de tudo o que tinha passado. Duvidava que fosse capaz de fazê-lo alguma vez.
Leves sons apenas audíveis para os humanos alertaram Damián. Deteve-se frente à porta de Jamie. Esperou, imóvel, lutando contra o instinto que o impulsionava a entrar e abraçá-la... Sabia que lhe arrancaria a cabeça se lhe ocorria fazê-lo.
Estava gemendo em sonhos.
Forçou a fechadura e entrou. Acendeu o pequeno abajur Tiffany que havia a um lado. A suave luz amarela descobriu uma habitação de cor salmão, cheia de móveis antigos, austeros. Muito severo para Jamie.
Aproximando-se da grande cama de dossel, olhou-a atentamente. Estava dormindo, encolhida, toda despenteada. Não havia rastro de lágrimas em seu rosto. Respirava pesadamente, como se algo lhe oprimisse o peito.
Admirou uma vez mais seus delicados traços, o gracioso queixo, as pestanas impossivelmente compridas, a cútis quase translúcida, como de alabastro, as altas maçãs do rosto, a boca de lábios cheios. Parecia tão jovem... Tinha visto brilhar a tristeza naqueles expressivos olhos cinzas. Por muito que tentasse dissimular seus sentimentos, os olhos sempre acabavam traindo-a.
Viu a si mesmo no espelho do armário, o arrogante e poderoso draicon que tinha tido tanto que lhe oferecer, mas que em lugar disso tinha lhe tirado tudo. Muito mais que sua inocência, ou sua virgindade. Tinha-lhe roubado seus sonhos de magia e de poder. E, ao fazê-lo, tinha-a entregue às forças do escuro.
Sentiu uma pontada de arrependimento. Emendaria seus enganos, mas antes teria que ganhar sua confiança. Por fortuna não tinha perdido nem seu espírito nem sua coragem, duas qualidades que ia necessitar.
Aquela casa era a mais segura para Jamie. Damián havia sentido seu antigo e sólido poder. Algum tempo atrás, alguém a tinha protegido contra a magia escura. Qualquer um que desejasse atacar Jamie teria que tirá-la antes daquele edifício.
A cama se afundou sob seu peso. Só queria abraçá-la, tocá-la embora não fosse mais que um momento. O instinto o empurrava a possuí-la. Como Alpha puro sangue que era, Damián somente podia aparear-se e procriar com Jamie. Necessitava-a para sua manada do Novo México, a seu lado.
Mas se sobrepôs ao desejo enquanto retirava meigamente um cacho de seu pálido rosto. Tinha a pele gelada. Acariciou-lhe a testa. A salvaria a qualquer preço. Era sua.
Estendendo-se a seu lado, agasalhou-a com seu corpo. Passou-lhe um braço pela cintura. Sem despertar, Jamie se apertou contra ele.
Embebeu-se da sensação de seu delicado corpo contra o seu. Sua incipiente ereção lhe recordava o incessante desejo que o torturava, mas se conteve. Era tão pequena e delicada... e no entanto vez dura e resistente. Apesar de estar infectada pela magia escura, ainda conservava toda sua inocência.
Voltou a ouvi-la gemer. Uma solitária lágrima escorregou por sua bochecha. Emocionado, Damián a enxugou com um beijo. Esperou um sabor salgado, mas não foi assim. A lágrima era doce como o açúcar. Incorporou-se, apavorado.
—Já está acontecendo —murmurou— Que diabos vou fazer?
«Não te deixarei morrer. Não permitirei que morra, como morreu minha família. Farei o que seja para te salvar».
Levantou-se da cama e abandonou sigilosamente o quarto. Pela primeira vez pensou que possivelmente já fosse muito tarde. Se não pudesse encontrar o livro, aperderia para sempre.
Damián necessitava respostas. Seu amigo de infância e irmão adotivo, Raphael Robichaux, poderia ajudá-lo. Pegou o celular.
Estava para marcar seu número quando se deteve no último momento. Ia chamar pedindo ajuda... Uma ajuda que sua família jamais chegou a receber dele. «Oh, merde, outra vez não». Mas as lembranças voltaram, em uma maré esmagadora. Soltou o telefone, que caiu sobre o sofá.
Tinha doze anos e se empenhou em caçar no igarapé. Seu pai lhe tinha ordenado que ficasse em casa. Sair não era seguro. Os morph estavam à espreita.
Mas Damián não tinha medo. Annie lhe tinha suplicado que ficasse:
—Tenho medo, Damián. Por favor, não me deixe!
Tranqüilizou sua irmã pequena enquanto a agasalhava carinhoso, ao lado de seu bichinho de pelúcia favorito. Mas logo escapou ao igarapé. Sentia-se poderoso. Draicon. Caçador. E invencível.
Pouco depois ouviu os gritos. Os morph tinham irrompido na mansão. Cheio de medo e dor, correu de novo à casa. Chamou as portas de seus vizinhos, mas todos ignoraram seus gritos de ajuda. Tinha o aroma da morte pego ao nariz antes inclusive de entrar. A porta estava aberta. Seu pai jazia no chão, envolvendo com gesto protetor o corpo de sua esposa grávida. Seus irmãos, também mortos. Annie. Onde estava Annie?
Encontrou-a escondida atrás da cama. Abraçada ainda a seu cachorro de pelúcia, todo salpicado de sangue. O horror e a dor nublavam seu olhar vidrado. Tinha só quatro anos. Sustentou seu corpinho contra seu peito, embalando-a e lhe cantando sua canção de ninar favorita... até que encontrou a força necessária para enterrar os cadáveres, na metade da noite.
Fechando com força os punhos, obrigou-se a voltar para a realidade. Nunca mais voltaria a violar uma regra ou a abandonar a aqueles que estavam sob seu amparo.
O passado era o passado. Agora tinha uma família adotiva ali, na Luisiana, e no Novo México o esperava a manada que comandava. E muito em breve também teria consigo a sua companheira.
Justo naquele momento soou a campainha da porta. Voltou a guardar o celular e baixou as escadas. Através do olho mágico, viu uma mulher pequena e magra, pele amarelada.
—Sou Mama Renee, a amiga de Jamie que tem a loja de vodu desta rua —se apresentou— E você é Damián.
Surpreso, apertou os olhos.
—É vidente?
—Pois claro. Posso entrar? Tenho algo para Jamie.
A mulher parecia inofensiva. Mesmo assim, recordando seu encontro com o vendedor de fruto do mar, ficou olhando receoso.
—Não me reconhece, verdade? É normal, só tinha uns cinco anos — Eu sim que me lembro. Seu pai, André, estava muito orgulhoso de você. Chamava-te loup petit.
Aquilo lhe surpreendeu. Inalou, aspirando seu aroma. Não advertiu nada estranho, além de uma leve fragrância a perfume.
—Minha família não se relacionava com muita gente.
—Sim, só confiavam em uns poucos. Vai deixar-me entrar? Preciso ver Jamie.
Damián se colocou de lado. Mas voltou a suspeitar enquanto fechava a porta com chave e se apoiava nela.
—O que é que quer?
—Trouxe-lhe algo para que se sinta melhor.
Tirou um pequeno saquinho de tecido de um bolso do vestido. Damián reconheceu o aroma a ervas e especiarias. Um talismã. Os morph detestavam os talismãs da sorte. Mesmo assim...
—Para você todo mundo é inimigo. Não confia em mim, o qual está bem. Mostra-se muito protetor com ela. Está em graves problemas, mais oui?
Damián não disse nada. Retirando-se à cozinha, marcou o número de Raphael. Seu irmão adotivo respondeu à primeira chamada. Em francês, Damián lhe contou sucintamente o que tinha ocorrido desde sua chegada.
—Conhece uma vidente chamada Mama Renee? —perguntou-lhe.
—Tem uma loja vodu na cidade. É boa gente. Por que?
—Está aqui. Agora não posso deixar Jamie sozinha, mas preciso falar contigo. Em privado, para que ela não possa nos ouvir — sussurrou enquanto voltava para a sala.
—Se precisa partir, eu posso ficar com ela — se ofereceu Renee.
Com seu singelo vestido de flores e seu bonachão sorriso, a mulher parecia perfeitamente inofensiva. Era uma humana, certamente. Mas até os humanos podiam ser perigosos.
—Quer que vá ai? —perguntou-lhe Raphael.
—Espera um momento — pediu Damián.
A mulher lhe sustentava o olhar, teimosa.
—Eu te vi nascer.
—Não acredito — replicou secamente.
—Digo-te que sim —insistiu. De repente desviou o olhar... e ante os assombrados olhos de Damián, metamorfoseou-se em lobo.
—Mon Dieu... —murmurou, vendo como voltava a converter-se em humana— É minha família, non?
—E ainda há mais que não conhece —explicou. Uma expressão de tristeza cruzou por seu rosto— Meu marido e meu filho... ambos abraçaram a escuridão. Seus pais me acolheram. Sempre lhes estarei agradecida por isso. E lamentei muitíssimo o que lhes ocorreu. Por favor, me permita que te ajude.
Damián a escutava atento, evaporadas todas suas suspeitas. A mulher lhe pôs uma mão no braço.
—Pode ficar tranqüilo. Eu cuidarei dela.
—Obrigado — lhe disse, antes de continuar falando por telefone com Raphael— Preciso te ver. Onde?
Raphael nomeou um lugar. Segundos depois Damián desligava e voltava a guardar o telefone.
—Não deixe entrar ninguém. Quando Jamie despertar, que não abandone a casa.
—Vá com seu amigo. Tome cuidado. Uma onda de escuridão se abateu sobre a cidade.
Embora confiava em muito pouca gente além de sua manada e sua família adotiva, Damián se despediu da mulher com um abraço.
Seu irmão estava sentado em uma das primeiras mesas do café da rua Charles, justo ao lado da entrada. Sua Harley esperava na rua, toda reluzente.
—Damián, como está? Eu mal te reconheci sem o seu terno Versace.
—Eu tento passar despercebido.
—Você passa despercebido como um lobo em um galinheiro.
Raphael acenou para uma garçonete se aproximar. Pediu caranguejo e água com limão.
—Eu só água - disse Damián, pensando com desgosto no caranguejo-metamorfo. — Me alegro em te ver, Raphael.
O olhou de cima abaixo. Seu irmão adotivo tinha uma longa cabeleira castanho-escura com uma mecha branca que caía sobre a testa. Ele estava vestindo camisa preta, calça jeans desbotada e jaqueta de couro preta. A sombra de uma barba escura no queixo. Na orelha esquerda usava um pingente com a figura de uma pequena espada de ouro.
—Tão grave é a situação? —perguntou Damián sério—Quantos são?
—Muito grave. Há morpb em toda a parte. É difícil estimar o número. Talvez cinqüenta ou mais de cem.
— Dit moula vérité! Você está falando sério? A que vieram?
—Acreditamos que pelo Oculto Livro de Magia. Esteve oculto durante setenta anos, verdade? Se não se lançar um novo feitiço nas duas próximas semanas, todos os feitiços se desvanecerão. Incluso os maléficos que querem os morpb, para aumentar seu poder.
E o feitiço que poderia curar Jamie se desvaneceria também. Damián estremeceu só de pensar.
—Se apoderarem-se antes do livro...
—Usarão toda sua magia para aniquilar aos draicon. Sua missão nesta cidade não é outra que matar. E já sabe o que fazem com as pessoas que matam... estão se cevando com os indigentes, com as pessoas sem lar. Eu treinei meus meninos para que os localizem e destruam seus corpos antes que apareça a polícia. Não podemos nos arriscar que os policiais coloquem os narizes em nosso mundo. É nossa guerra.
—Canalhas...
—Não se inquiete, t'frére, eu já me encarreguei de uns quantos. Alguém se atreveu a me chamar «cão». Tive que lhe mostrar a folha da minha adaga —esboçou um cruel sorriso.
Raphael era o kallan, o único draicon que podia matar a um congênere, inclusive a um familiar, sem sofrer conseqüência alguma. Já tinha morrido e passado ao Outro Mundo, no qual tinha recebido o dom da imortalidade. Poucas coisas lhe assustavam.
Seu caranguejo chegou nesse momento. Atacou-o com vontade.
—Meu pai não me disse onde o escondeu — disse Damián— Só que tinha confiado o segredo a um bom amigo dele, até que eu fosse mais velho.
—O que aconteceu com esse amigo de seu pai?
—Os morph mataram Jordán quando acabaram com toda a família de papai. — ficou olhando uma gota de água que escorregava lentamente pela borda de seu copo, como uma lágrima— E a cura de Jamie está no livro.
—Isso, falemos dela. Estivemos investigando-a. Seus pais e amigos morreram em um acidente de avião, quando ela tinha cinco anos. Foram seus tios que a educaram. Diabos, inclusive rastreamos a esse canalha de morph que usurpou o corpo de seu irmão. Como ela é?
—Tentou me matar.
Raphael ficou olhando assombrado. Damián procedeu a explicar-se.
—Como diabos pode confiar em uma mulher assim? —Exclamou, dando um tapa na mesa que fez tremer pratos e copos— Merece um castigo —levou uma mão a sua adaga, que levava sempre ao cinto— Recorda nosso voto? Você é meu irmão de sangue.
—E ela é minha companheira — replicou com tom suave.
—Então, t'frére, tem um bom problema. Se não te emparelhar com ela, converterar-se em uma fera. Mas como pode te emparelhar com alguém que deseja sua morte?
Damián se recostou em sua cadeira, inquieto. Aquela draicara alvoroçava sua testosterona, punha constantemente a prova sua força de vontade. Nos Alpha como ele, o emparelhamento era obrigatório; caso contrário, os machos se voltavam feras perigosas inclusive para sua própria manada.
Desejou-a uma vez mais: seu aroma, o sabor de sua pele, o tato de seu corpo nu e suave sob o seu. Não podia livrar-se de seu próprio desejo.
—Tranqüilo, Rafe. Eu me encarregarei dela.
—Pois então faz rápido. Parece que lhe está acabando o tempo. O sexo pode atrasar os efeitos de cunja no Porfirio. Isso se confiar em que não te cravará uma faca nas costas enquanto se emparelha com ela... —apertou a mandíbula.
Sim, o sexo podia ser uma solução. As células de um draicon, como a do sangue e o sêmen, continham magia. Como Alpha puro sangue que era, sua magia era mais potente que a de outros machos.
—Poderia curar Jamie lhe inoculando minha magia enquanto fazemos amor?
—Não. Seu sangue ou seu sêmen só conseguiriam atrasar o resultado final.
—Tenho que encontrar o livro — Damián passou uma mão pela cara— Mas não posso deixá-la sozinha. É muito arriscado.
—Então me deixe te ajudar. Enviarei Adam e Ricky. Eles se encarregarão de vigiá-la.
—Não consentirei que nenhum outro macho se aproxime dela — grunhiu Damián, cravando as unhas, que se tinham convertido em garras, em seu guardanapo. O instinto o impulsionava a atacar, a despedaçar a qualquer congênere que se atrevesse sequer a olhá-la...
—Damián, se tranqüilize...
Acabou de destroçar o guardanapo. Enquanto se esforçava por tranqüilizar-se, suas unhas voltaram a adquirir seu aspecto normal.
A cautelosa expressão de Raphael disse tudo. Seguiu comendo, em silêncio.
—Me diga... realmente está morrendo?
Damián explicou, e essa vez seu irmão adotivo já não pôde conter-se.
—Escuta, irmão, meus homens estão a sua disposição. Leve Adam e Ricky, são dois de meus melhores guerreiros. Ou a qualquer de meus homens, tenho vinte, asseguro-te que são bons lutadores. Faria qualquer coisa para te ajudar, t'frére.
Raphael tinha tomado a seu encargo jovens draicon não aparentados entre si, tinha-lhes inculcado um férreo sentido de disciplina e com eles tinha formado uma manada para lutar contra os morph.
—Merci, mas não posso me arriscar: uma manada deixa muitas pistas. Você faz seu trabalho. Matem todos os morph que possam.
—Como queira, Damián. Mas essa tal Jamie... Espero para seu bem que não volte a te atacar. É da família, t'frére.
—Isso é meu assunto, Rafe.
—O que posso fazer então por você?
—Estar disponível. Pode ser que necessite ajuda. Para recolher minhas coisas no hotel, por exemplo — um sorriso se desenhou em seus lábios— Quero me instalar em sua casa.
—Bem. Vemo-nos então.
Despediram-se. Damián partiu. Suas prioridades estavam claras: ganhar a confiança de Jamie e encontrar o livro.
Pensou que possivelmente teria fome. Fruta fresca: a frutose natural a ajudaria. Deteve-se em uma loja e comprou pêssegos. Voltou para sua casa e subiu as escadas com a bolsa. Jamie estava sentada no sofá, teclando em um notbook.
Quase deixou cair a bolsa ao chão quando viu as cômicas orelhas de elfo que levava postas, largas e de cor vermelha. Jamie só levantou a vista quando viu os pêssegos que acabava de deixar sobre a mesa.
Olhando-a com expressão inquisitiva, Damián se sentou a seu lado e puxou brandamente uma das orelhas de elfo, brincalhão.
—Sou uma guerreira elfa —explicou, bocejando— Estou muito cansada para pôr o resto do disfarce. Me disfarçar de algo sempre me levantou a moral. E Celyndra, a elfa, é meu personagem favorito. É uma grande lutadora.
—Ah, seu alter ego... —murmurou— Que imaginação. De onde tirou a idéia?
—Ouviu falar do WoW?
—Não,
—World of Warcraft. É um jogo muito conhecido. Meu personagem é a guerreira elfa da noite. Estava acostumada a jogar com meus amigos —sorriu— E também nos disfarçávamos. Alguma vez jogou isso?
—Não.
—Que estranho. Não parece tão velho. Que idade tem?
—Oitenta.
—Oitenta anos! Parece que tem vinte e poucos... Não é de estranhar que não conheça o WoW. É um jogo online. Escolhe um personagem e luta com ele. Bom, é algo mais complicado, mas...
—Batalhas? —Damián apertou os olhos— Você sabia como lutar e organizar um exército... Essa habilidade que ensinou aos morpb... aprendeu-a em um jogo?
—Algumas coisas, sim. Mas isso não é nada comparado com o que sabem algumas pessoas que conheço. Ex-fuzileiros navais, pessoas do exército. Minhas amizades.
A manada de Raphael tinha investigado todas suas amizades de Nova Orleans. Jamie tinha poucos amigos. De repente se encheu de uma terrível suspeita.
—Onde conheceu esses tipos?
—Na rede. No MyPlace.
Olhou-a alarmado. Jamie estava envolta em um mundo cheio de perigos dos que ele nada sabia.
—Tem uma página no MyPlace?
Baixou o olhar a seu notbook. O tirou rapidamente das mãos e começou a navegar. Encontrou sua página. Jamie Walsh, em letras azul lavanda, com um fundo de preciosas ilustrações de fadas. Leu os detalhes pessoais: era aficionada às novelas de fantasia, a música alternativa, desenhava páginas Web e se descrevia como uma «friqui» da informática. Gostava de conhecer «gente com magia, porque necessito magia em minha vida». Por último, revisou a lista de amigos. Os primeiros eram antigos militares. Mas... jogou uma olhada às últimas amizades que tinha feito. Nomeie como Wolfeater, Draiconheater... Todos morph.
—Com isto está se convertendo em um alvo fácil.
—O que diz? É minha página. São meus amigos.
—Amigos? Irão em sua ajuda se os necessitar? Estes canalhas não, certamente. Eles lhe utilizaram, Jamie. Você não necessita amigos. É minha companheira e tem uma manada, minha manada. E uma família também, que sempre estará a seu lado. Apague— ordenou, assinalando a página.
—Não. E eu não necessito da sua manada. Vá ao diabo — lhe espetou, desafiante.
Damián partiu então o notbook em dois com um só movimento. Jamie ficou olhando assombrada, estupefata.
—Não voltará a fazê-lo. Seus inimigos, e meus, estavam nessa página. Quem crê que te infectou com esse feitiço? Está se convertendo em pedra, Jamie.
—Kane não pôde ter sido quem... Não tinha nenhuma razão para fazê-lo — protestou com voz tremente.
—Você é minha draicara, minha companheira. Essa já é razão suficiente. Kane te manipulou para que tentasse me matar. E ao mesmo tempo te enfeitiçou para te eliminar lentamente.
—O único que queria era aprender magia... —defendeu-se, abatida— É algo que quis sempre, durante toda minha vida. Isso é tão errado?
Damián tomou delicadamente seu queixo.
—Então olhe, pequena. Olhe e aprende. Eu te ensinarei magia. Magia boa. Branca.
Soltando-a, com um gesto de sua mão fez aparecer uma bola de luz esbranquiçada. A luz dançou no ar enquanto Damián lhe dava forma com os dedos. Jamie a contemplava admirada, sem fôlego. Um lento sorriso se desenhou em seus lábios.
Damián teria dado qualquer coisa para vê-la assim sempre: feliz, despreocupada.
Jamie se inclinou para diante para examinar de perto a bola de luz. Sobressaltada e maravilhada, atreveu-se a tocá-la com um dedo. De repente a luz se agitou, tornou-se cinza, e logo negra. Ante seu assombrado olhar, foi encolhendo até desaparecer.
—Oh! Oh... matei-a.
Tremiam-lhe os lábios. Aproximando-se dela, Damián tomou uma mão. Tinha-a fria como o gelo.
—Não é você. É o que há dentro de você — murmurou com tom suave— Quando desaparecer a magia escura, a luz já não se apagará quando a tocar.
—Oxalá pudesse te acreditar... —um trêmulo sorriso apareceu em seus lábios.
«Isso, oxalá», pensou Damián enquanto lhe oferecia um pêssego.
—Come. Necessita de força. — olhou ao redor, franzindo o cenho— Quando partiu Renee? Disse-lhe que ficasse com você.
—Disse-me que tinha que voltar para a loja — aceitou a fruta— Obrigada. Tenho tanta fome...
Sua expressão se animou. Damián teve que lutar contra a tentação de beijá-la de novo.
—Sabe por que tinha que voltar para a loja?
Jamie se dirigiu à cozinha.
—E você me pergunta isso? —replicou— Me disse que você a tinha chamado para lhe pedir que me trouxesse outro amuleto.
Damián ficou absolutamente imóvel, o pêlo da nuca arrepiado.
—Já volto. Não se mova daqui.
Preso em uma horrível suspeita, abandonou correndo a casa.
A porta da loja vodu estava entreaberta. Entrou sigilosamente. O aroma o golpeou com a força de um furacão. A sangue. A morte. Misturado com um leve aroma de madressilva.
Um gato negro saiu a recebê-lo, miando lastimosamente. Damián atravessou a habitação, dirigiu-se ao quarto e se deteve. A angústia o corroia como um ácido.
—Oh, maldição... sinto muito, sinto muito...
Mama Renee estava caída em um canto, com os olhos abertos em uma expressão de terror. O vestido e as paredes estavam salpicadas de sangue. Alguém lhe tinha arrancado o coração. Morpb.
Fechou os olhos, doente de raiva e dor. Renee tinha sido seu último vínculo com seus pais. Quanta gente mais devia morrer? Seus pais, seus irmãos, sua irmã. Membros de sua manada, lá no Novo México.
Se recompôs. Já haveria tempo para a dor. O aroma de sangue lhe dava arcadas. Murmurou uma antiga oração draicon pela alma de Renee. Logo se aproximou do altar de Marie Laveau, a sacerdotisa vodu. A escuridão tinha apagado as velas.
A polícia não demoraria para aparecer, começaria a investigar. Damián não podia arriscar-se que descobrissem seu mundo. Necessitava um motivo que explicasse o assassinato. Um crime hediondo, um roubo. Tirou todo o dinheiro da caixa registradora e o guardou nos bolsos, com a idéia de queimá-lo depois. Deixou a gaveta aberta, logo procurou uma caneta e escreveu na parede mais próxima: “Adoradores do diabo.”
O gato começou a miar mais alto. Parecia um animal normal, não um morpb. Levantando-o, estudou-o atentamente.
—Já usou uma de suas sete vidas. Vamos te pôr a salvo.
Com o gato nos braços, olhou a seu redor. Bastou um simples gesto de sua mão para que todos os seus rastros fossem apagados. O problema era que mesmo assim possivelmente a polícia interrogasse Jamie e...
Jamie. Tinha-a deixado sozinha. Apavorado, pôs-se a correr rua abaixo. Abriu a grade, soltou o gato e subiu os degraus de dois em dois.
Estava sentada no sofá. Damián quase desmaiou de alivio ao vê-la. Mas logo a examinou de perto. Com um gesto de horror, estava olhando sua mão. Ao vê-lo, mostrou-lhe a palma. Tremia violentamente.
—Olhe, Damián. O que me passa? Não posso sangrar. Não posso sangrar!
Sobre a mesa havia uma faca e rodelas de fruta. Devia ter se cortado acidentalmente. Cheirava a pêssego no ar, mas não a sangue.
Tomou sua mão e examinou a ferida. Dela, em vez de sangue, emanava lentamente um pó cinza.
Estava se transformando em pedra ante seus olhos horrorizados.
«Estou morrendo», pensou Jamie. Tudo isso não podia estar ocorrendo. Não era real. Não podia sê-lo.
—Não me deixe morrer...
Era seu castigo. Ao tentar matar Damián, condenou a si mesma. Não sentia dor: só aquela lenta e progressiva letargia, como se seus membros estivessem convertendo-se em pedra. Queria sentir algo, o que fosse, e não aquela horrível consumição, como se já estivesse morta.
Damián sentou a seu lado no sofá e enfaixou a ferida. Logo a estreitou contra seu peito. Murmurando algo que não chegou a entender, afastou-lhe os cabelos do pescoço.
Jamie apenas teve tempo de ver suas largas presas aproximando-se de sua pele. Mordeu-a.
Sentiu uma pontada de dor. Seu grito foi seguido por um som estranho: aquele que fez a sua língua quando ele lambeu lentamente, eroticamente a ferida. Exausta, ela caiu no sofá como uma boneca de pano.
«Maldito seja, draicon. Já estava morrendo», pensou antes que tudo se voltasse escuro.
Não devia morrer. Não suportaria vê-la morrer, perdê-la como tinha perdido a sua família. Tinha atuado por instinto, mas sabendo que com sua dentada lhe transmitiria sua magia, a magia branca. Sabendo que isso poderia salvá-la.
Sustentou-a delicadamente em seus braços. Sua palidez já não era tão acentuada. Tocou-lhe a testa: estava fria, mas não gelada. Esperou durante uns segundos, terrivelmente preocupado, antes de lhe revisar a ferida. Havia tornado a emanar sangue.
Quase desmaiou de puro alívio. Lambeu-lhe as marcas das presas com sua saliva curativa. Logo foi procurar uma manta e a agasalhou com cuidado. Continuando, tirou seu celular e chamou seu irmão para explicar-lhe tudo.
Raphael chegou carregado com um saco com os pertences de Damián, que tinha tirado de seu hotel, e uma bolsa de papel marrom. O primeiro que fez foi examinar Jamie, tomando um pulso.
—O feitiço começa a trabalhar de dentro e se distribui pelas extremidades. Por último, afeta os órgãos vitais, obstruindo a passagem do sangue. Cabelo e unhas tendem a ficar cinza antes dessa hora chegar. Mon Dieu, eu nunca tinha visto um processo tão rápido. Quando a morderam?
—Kane a infectou faz um mês e meio. Por que está se estendendo tão rápido? É humana e não deveria lhe afetar tanto.
Raphael franziu o cenho enquanto lhe soltava a mão.
—Humana. Ela é sua draicara. Nenhum Alpha draicon teve uma companheira humana. Possivelmente não seja.
Consternado, Damián se deixou cair no sofá.
—Por agora, teremos que supor que o é. Que mais posso fazer por ela?
Raphael deixou a bolsa de papel sobre a mesa da cozinha.
—Chamei o Paw Paw e lhe pedi a receita de uma poção. Isso a ajudará por um tempo.
—Isso espero. Agora necessito que se encarregue de um corpo. Mama Renee, da loja vodu. Os morpb a mataram.
—Renee? — exclamou, pálido.
Baixou correndo as escadas. Quando voltou, tinha uma expressão triste, abatida.
—Muito tarde. Há gente diante da loja. Encontraram-na.
Damián experimentou uma pontada de preocupação, mas se sobrepôs para concentrar-se em Jamie. Ela estava em primeiro lugar.
Alguém lhe aproximou uma taça aos lábios.
—Bebe —lhe ordenou uma voz grave e profunda— Isto te ajudará Jamie.
Aturdida, abriu a boca e obedeceu. O líquido tinha sabor de cobre e a sal. Abriu os olhos: era de cor vermelha.
—Outra vez—insistiu a voz.
Jamie negou com a cabeça, mas de repente sentiu que recuperava a energia.
—O que é isto?
—Uma poção mágica de ervas e especiarias que te fará bem.
Sua mente processou a informação. Uma poção que a ajudava. Um feroz desejo de viver surgiu à superfície.
Damián voltou a lhe aproximar a xícara. Jamie tomou com suas mãos e bebeu, resistindo as arcadas. Logo se sentou lentamente e olhou o corte da mão. Já estava curado.
Lendo sua pergunta nos olhos, Damián assentiu com a cabeça.
—Volta a sangrar, Jamie. Mordi-te para te transmitir minha magia, mas o efeito não é permanente.
—Quanto durará? —inquiriu, estremecida.
—Sem mais magia, uma semana possivelmente, talvez algo mais. Não estou seguro. Não tenho experiência com essas coisas — lhe acariciou a mão ferida— Como se sente?
Mais forte. Muito melhor. Mas perplexa também.
—Por que o fez?
—Chére, não entende? —apertou-lhe a mão— Quero te salvar.
—Por que? Eu tentei te matar. Eu não sou o tipo de companheira que você quer.
—O que eu queira ou deixe de querer nada tem que ver nisto. Chama-o biologia. Ou lei da manada. Eu te necessito e você me necessita —lhe acariciou brandamente a palma.
Jamie amaldiçoou para si mesma. Aquilo era tão desconcertante... Sua terminante declaração contrastava com a terna carícia de seus dedos em sua pele fria. Não queria morrer.
«Tenho que sobreviver», pensava. «E se ele for o meio, então me resignarei».
—Preciso ver mama Renee. Ela sabe muito de poções. Estou certa que terá respostas que me dar.
Damián cruzou um olhar com a outra pessoa que se achava na habitação, em pé na soleira. Era um homem de juba escura com uma mecha completamente branca que lhe caía sobre a testa. Um pouco mais alto que Damián, era muito bonito e vestia um traje de motoqueiro. Jamie acreditou reconhecê-lo vagamente. Tinha-o visto antes.
—Quem é você?
Damián o apresentou como seu irmão. E as lembranças devoraram Jamie como uma praga de formigas furiosas. Era um dos draicon que se uniram a Damián para matar Mark. Que tinham despedaçado seu irmão enquanto ele gritava e gritava...
—Outro draicon? Quantos cães há nesta cidade?
Raphael apertou os dentes.
—Damián, estou indo. Se necessitar, me chame —e partiu dando uma portada.
Jamie deixou a xícara sobre a mesa e se levantou do sofá, contente de que as pernas lhe funcionassem bem.
—Aonde vai? —perguntou-lhe Damián.
—Com Mama Renee, aqui ao lado. Possivelmente ela possa...
Damián se levantou então e a puxou pelos ombros.
—Fique aqui, Jamie. Há algo que deve saber...
Através do tecido da camiseta, sentiu o calor de suas mãos. Jamie resistiu ao impulso de apoiar-se nele e absorver sua força. Tinha transcorrido tanto tempo da última vez que se apoiou em alguém...
De repente soou a campainha da porta. Liberando-se, Jamie desceu as escadas. Damián a seguiu de perto. O visitante era um homem de expressão cansada, vestido com um enrugado traje escuro.
—Sou o inspetor Robert Ryan. Conhece você à mulher que vive a poucas portas mais abaixo, a senhora Renee St. Clair?
—Sim, é uma boa amiga minha.
—Sinto ter que lhe dizer isto, mas... acredito que a senhora St. Clair foi assassinada.
Encolheu-se sobre si, com o coração pulsando a toda velocidade.
—Possivelmente se trate de um engano...
—Sabe se tinha algum parente na cidade?
—Não. Sua filha vive na Califórnia. Seu filho faleceu em um acidente de carro, faz tempo.
—Poderia nos acompanhar para reconhecer o corpo, senhorita Walsh?
Jamie assentiu. Damián tomou então seu braço e lançou um áspero olhar ao inspetor de polícia.
—Faça o favor de esperá-la fora. Só será um momento — disse, e fechou a porta para que o policial não pudesse ouvi-los— Renee não esteve aqui contigo, entendido? Do contrário, converterá-te em uma suspeita.
Voltou a assentir, com o coração encolhido. Abandonaram a casa, seguindo o inspetor. Vários carros de polícia se alinhavam na estreita rua. O perímetro da calçada estava bloqueado com a faixa amarela. O clássico cenário de crime que tinha visto centenas de vezes no cinema ou na televisão.
Só que essa vez era real. A primeira vista, o interior da familiar loja de vodu lhe pareceu perfeitamente normal, apesar do intenso aroma acre, como de cobre. Aroma de sangue e a violência. Havia policiais por toda parte, recolhendo rastros e tirando fotos.
—Está no fundo —a informou o inspetor enquanto se dirigia ao quarto. No chão havia um lençol de plástico amarelo— Pronta?
Jamie assentiu com a cabeça, suspirando. Mal sentia o contato das fortes mãos de Damián em seus ombros. O policial retirou o lençol.
Reconhecia e não reconhecia aquele rosto. A boca tinha ficado aberta em um silencioso grito, com um olhar de horror em seus olhos frágeis. Um gemido estrangulado lhe subiu pela garganta.
—É ela, mas... como...? —tinha que saber como tinha acontecido.
Agarrou com dedos trementes a ponta do lençol e o retirou de repente, descobrindo o corpo. Tinha o pescoço esmigalhado, o vestido de flores cheio de sangre e... um buraco no peito. Seu coração. Seu grande e generoso coração. O tinham arrancado.
Levou-se uma mão à boca. Sua amiga... tinha morrido vítima de horríveis dores. Algo lhe oprimia terrivelmente o peito, lhe impedindo de respirar. Seus pais, Mark... Não terminaria nunca aquele fluxo de mortes? Procurou recompor-se, dizer algo. Tinha a garganta seca. Damián lhe pôs uma mão no ombro e o apertou com gesto consolador. Logo tomou delicadamente sua nuca.
—Q...quem pôde fazer algo assim?
—Alguém dotado de uma grande força —respondeu o policial.
Mas quem podia possuir tanta força? Os draicon...
—Quando a viu pela última vez, senhorita Walsh?
Damián lhe lançou um olhar que teria sido capaz de congelar o inferno.
—Não está em condições de responder perguntas.
—Não, não passa nada —disse Jamie a Damián antes de voltar-se ao inspetor—Esta manhã tomamos chá juntas, e logo recebeu a uns clientes.
Respondeu a cada pergunta com tanta calma como firmeza, enquanto seu cérebro trabalhava a toda velocidade. Quem poderia desejar a morte de Renee? Aquela mulher não tinha inimigos, nem nada de valor que pudessem querer lhe roubar... O notbook. Desviou o olhar para a mesa onde a mulher o tinha deixado pela última vez. Não estava.
—Posso dar uma olhada no local, inspetor? Renee era uma boa amiga e eu poderia lhe dizer se falta algo.
—Claro. Acompanho-a.
Na cozinha estava o notbook fechado, com seu cartão sem fio. A brilhante superfície azul estava cheia de rastros.
—Bonito notbook —comentou o inspetor Ryan— É estranho que o intruso não o levasse; a caixa registradora esvaziou. Hoje mesmo o utilizou para enviar um e-mail a sua neta.
Jamie sentiu um calafrio. Elevou a vista para encontrar-se com o impassível olhar de Damián.
—Talvez o assassino não quis arriscar-se a deixar alguma pista —murmurou antes de olhar a seu redor— Onde está o gato de Renee?
Ryan franziu o cenho.
—Não encontramos nenhum gato.
Supôs que Arquimedes teria escapado. Como bom gato de rua, era um sobrevivente.
—Inspetor, o pendente de diamante de Renee... desapareceu? Adorava-o. Deveria estar em seu porta jóia, no piso de acima. Se não lhe incomodar, esperarei-o aqui enquanto o comprova. Não me sinto nada bem.
Sentando-se ao lado do notebook, enterrou o rosto entre as mãos. Não era uma mentira: tinha vontade de vomitar. Esperou até que o policial abandonou a cozinha antes de voltar a elevar a cabeça.
Damián se inclinou sobre a mesa.
—Tenho que te tirar daqui.
—Não, espera. Preciso comprovar uma coisa — olhou a seu redor— Você vigia, de acordo?
Ligou o notebook e revisou os arquivos. Estava o e-mail que Renee tinha enviado esse mesmo dia a sua neta, tal e como lhe havia dito o policial. Revisou logo o histórico. Apagado, é obvio.
Foi ao DOS e se meteu em outro programa. Na tela apareceu uma larga lista de direções. De repente ficou consternada.
—O que acontece?
—O notebook. Renee não chegou a tocá-lo. Está cheio de rastros, mas não foi ela quem o utilizou. Ela não sabia navegar pela Internet. E todos estes lugares pertencem a lojas de antiguidades do Bairro Francês.
—Lojas de antiguidades?
Jamie detectou seu tom de alarme. Podia sentir seu quente fôlego na bochecha enquanto se inclinava para ler a tela. Murmurou algo em francês.
Jamie desligou então o notebook e viu que fazia um gesto com a mão.
—Acabo de apagar seus rastros. Vamos. Direi à polícia que está doente.
Damián a levou diretamente a sua casa e fechou a grade com chave. Jamie acabava de sentar-se em uma cadeira do jardim quando viu sair um gato negro entre os arbustos.
—Arquimedes! —exclamou com tom alegre, levantando-o do chão.
O gato lhe deu as costas e se sentou ao pé de um vaso de palmeira. Jamie franziu o cenho. Pelo comum não era tão anti-social...
—Trouxe-o para você... —explicou-lhe Damián, suspirando.
—O que aconteceu? Conte-me tudo.
—Claro, por isso a mataram — refletiu Damián em voz alta— Sabiam da loja de antiguidades.
—Que loja?
—A primeira pista do esconderijo do Livro de Magia. A antiga mansão de meu avô, que agora é uma loja de antiguidades — ficou a passear de um lado a outro, com os punhos cerrados— Renee sabia que essa casa era a primeira pista. Meu pai adorava os jogos. Ele escondeu o livro e revelou-me que tinha semeado todo o Vieux Carre com pistas e que a primeira estava na casa do meu avô. Os morpb devem ter descoberto isso. Não a direção exata, só que se tratava de uma loja de antiguidades.
—Mas Renee não podia saber onde estava oculto o livro... Ela nem sequer te conhecia.
Damián se voltou para olhá-la:
—Conhecia-me, Jamie. Renee conhecia muito bem a minha família. Ela era uma draicon. Por isso a mataram: para absorver sua energia e adquirir um maior poder. O medo da morte de um draicon é muito mais capitalista que o temor dos humanos à morte.
Jamie tinha ficado aniquilada. Impossível. Os draicon eram seres malvados. Desumanos e brutais homens-lobo...
—Tempo atrás, os draicon se viram superados em número pelos morph. Renee estava conosco. Eu não a reconheci porque não cheguei a cheirar seu aroma. Renee usava um composto químico que escondia seu aroma dos morph, e parece que também funcionou comigo. Muito inteligente. Quem quer que a tenha matado devia conhecer sua identidade e sua relação com minha família.
Ou possivelmente a torturaram para lhe tirar a verdade. Tudo aquilo era muito fantástico para Jamie.
—Mas sua neta é humana. Ela mesma me mostrou as fotos!
—Também é draicon. Seus pais procedem de uma manada da Califórnia.
Inclusive sua melhor amiga tinha sido sua inimiga... Tentou recuperar-se e pensar. Como tinha feito com a morte de seus pais e depois do Mark, devia sobrepor-se à dor. A sobrevivência estava em primeiro.
—Tenho que encontrar o Livro —afirmou Damián— Contém um feitiço que pode combater a magia escura e rebater o mal que te infecta. Os morph sabem agora por onde começar a procurar e não se deterão até encontrá-lo —apoiou-se na parede de tijolo, cruzando seus poderosos braços sobre seu peito— Detesto te deixar aqui para sair a procura do livro, mas não fica outro remédio: chamarei os homens de Raphael para que venham te proteger.
Mas Jamie não pensava afastar-se daquele jogo. Damián encontraria o livro e o utilizaria contra ela. Dominaria-a de uma vez por todas com sua magia, com o que se veria apanhada para sempre. Seria dele.
Aferrou-se aos braços da cadeira. Damián era a chave para encontrar o que tão desesperadamente necessitava. Confiar nele era impossível, mas, no momento, teriam que unir suas forças.
—Não penso ficar aqui. Vou contigo.
—Nem pensar.
—Minha vida depende desse livro. Crê que vou ficar aqui sentada, esperando?
—Me escute. Tomou decisões antes, decisões equivocadas, e tem feito o que quis. Isso acabou. Fará o que eu te diga, Jamie. Ponto.
—Não — o fulminou com o olhar.
—Eu sei o que é melhor para você e sei como te manter a salvo. Isso me basta.
De repente o ânimo de Jamie fraquejou quando pensou no estranho pó cinza que tinha visto emanar de sua ferida.
—Pergunto-me se haverá algo que possa me manter a salvo. Essa coisa que levo dentro de mim...
Uma fugaz expressão cruzou o rosto de Damián. Seria o reflexo do sol da tarde em seus olhos? Por um instante, tinha-lhe parecido um olhar de intensa, desesperada preocupação. Ridículo. Damián jamais sentiria medo por ela, a mulher que tinha tentado matá-lo...
Sim, mas também a mulher a que reclamava como companheira. Porque tinha um plano para ela. Queria convertê-la em um dos seus, obrigá-la a mudar. Durante toda sua vida, as pessoas tinham querido moldá-la, conformá-la segundo suas expectativas. Seu tio, por exemplo. Ou inclusive Mark.
«É hora de trocar de tática», decidiu.
—Está bem — deu de ombros com falsa naturalidade— Ficarei aqui com esses tipos que mencionou. Possivelmente inclusive me passe muito bem. Seguro que saberão jogar o World of Warcraft. Espero que sejam o suficientemente jovens para que gostem dos jogos on line.
Fascinada, contemplou como se alargavam suas unhas até converter-se em garras.
—Não. Mudei de opinião: virá comigo. Mas fará exatamente o que eu te diga.
Isso era diferente. Agora se sentia muito mais animada.
—Quando quiser.
Em vez de olhar seu relógio, Damián elevou o olhar ao sol, que já começava a cair.
—A loja está fechada. Começaremos amanhã pela manhã, quando abrirem. Então encontraremos a primeira pista.
Entraram na casa, com Arquimedes lhes pisando os talões.
Jamie tinha fome. Na geladeira, encontrou sua comida de costume. Nada lhe pareceu muito apetitoso, nem sequer os restos de tofu ou a cunha de queijo suíço. Estranhamente... o que queria era carne fresca.
—Morro de fome — confessou, fechando a geladeira— Sabe? Gostam de caranguejos de rio. O mais frescos possível. Comeria isso até vivos...
Damián empalideceu imediatamente, recordando o episódio do morpb.
—Que tal um saboroso filet?
Chamou alguém por telefone e disse algo rápido, em francês. Minutos depois entrou Raphael e deixou uma bolsa de plástico sobre a mesa da cozinha. A Jamie fez água na boca quando bisbilhotou seu conteúdo.
—Oba! Tacos de carne crua!
Viu que Raphael olhava Damián de uma forma que não soube como interpretar. Rasgou o pacote. Sem preocupar-se de procurar faca e garfo, sem sentar-se sequer à mesa, começou a comer. Quase nem se detinha em mastigar a carne, tão faminta estava.
Só quando se deu conta da forma em que a estavam olhando, baixou a vista à mesa: estava cheia de sangue. O estômago lhe deu um tombo e levou uma mão à boca.
Damián se apressou em tranqüilizá-la:
—Não. Só está experimentando uma reação natural. Seu corpo precisava comer.
—Mas eu sou vegetariana... —abraçou-se, consternada— Oh, meu Deus, acabo de comer como um animal... Que diabos me tem feito, draicon?
—Salvei-te.
—Agora leva seu sangue em suas veias — lhe disse Raphael— Sua potente magia está trocando a química de seu corpo para rebater o feitiço. Deveria lhe estar agradecida.
—Sangue? Que sangue... ?
O olhar carrancudo que Damián lançou a Raphael a fez suspeitar. Claro, a poção...
—Pôs seu próprio sangue naquela poção? —inquiriu. Davam-lhe arcadas só de pensá-lo.
—O sangue de um draicon Alpha contém uma magia muito capitalista —explicou Damián— Era a única maneira de atrasar os efeitos do feitiço.
Estava se convertendo em uma mulher lobo... Graças a Damián, seu corpo já tinha começado a mudar.
—Tranqüila — lhe disse ele, tomando delicadamente seu queixo— Aceita-o, Jamie. Isto não te fará nenhum dano.
—Não me importa que me faça mal ou não... Não posso suportar o pensamento de fazer mal a algum animal... E agora vou comer isso? —ficou olhando fixamente— Me converterei em um lobo? Em um predador?
—Non. Mas se sentirá melhor.
«Pensa em seu interesse imediato», ordenou-se. Tragou saliva, lutando contra a náusea.
—Está bem — disse resignada— Se isto serve para me ajudar... .
Damián esboçou um sorriso de imenso alívio.
—É uma zirondelle.
—Me diga que isso não é um insulto... —arqueou as sobrancelhas.
—É a palavra em francês cajún para «libélula». As libélulas são admiradas entre minha gente porque podem mover-se rapidamente de um lado a outro, navegar pela vida, vê-lo tudo desde muitos ângulos diferentes e adaptar-se segundo suas necessidades. Uma zirondelle recolhe a luz do sol que se reflete nas águas do igarapé, é apaixonada, emocional, e cavalga em lombos do vento com a mesma paixão com que adora a vida.
Ninguém lhe tinha feito nunca um elogio tão formoso. A comparação comoveu Jamie. Sempre tinha desejado ser uma criatura assim, capaz de navegar pela vida planejando sobre a dor e o sofrimento. Um ser maravilhoso e iridescente que brilhasse como o sol à força de refletir sua luz. Mas no fundo sabia que aquilo não era mais que um sonho ilusório...
—Eu não sou uma zirondelle. As libélulas são criaturas fabulosas e encantadoras. Eu não sou assim.
Damián a beijou meigamente em uma bochecha. E de repente Jamie ansiou seu calor, a cercania de seu corpo contra o seu.
—Donnezmoi un petit baiser, chére —murmurou— Vamos, um pequeno...
Jamie elevou o rosto. Não passaria nada se lhe desse um pequeno beijo. Não haveria mais. Entreabriu os lábios ao tempo que deslizava os braços por sua cintura...
Mas Damián se apoderou rapidamente de sua boca. Com um grunhido, atraiu-a para si enquanto prolongava o beijo. A mente de Jamie batalhava contra seu corpo. Seu cérebro lhe gritava que era um engano beijar a um draicon, ordenava-lhe que pusesse fim ao delicioso calor que aquele ser estava destilando em seu corpo...
E seu corpo dizia a sua mente que se calasse de uma vez e a deixasse em paz.
Aferrou-se a seus fortes ombros. Damián deslizou a língua no doce interior de sua boca, explorando-a em uma erótica e prolongada carícia, apoderando-se dela como se fosse uma propriedade dele. Jamie estremeceu de desejo enquanto imaginava despindo-a, abatendo-se sobre ela, lhe separando as coxas com suas fortes mãos... Montando-a com seu grande e poderoso corpo enquanto se afundava profundamente nela, enchendo-a daquele maravilhoso calor... para que nunca mais voltasse a sentir frio.
—Excusez moi. Vale lembrar que se precisarem o quarto está aqui ao lado.
Raphael assinalou o dormitório com o polegar. Jamie se apartou rapidamente. Já não sentia aquele frio por dentro... Uma onda de calor lhe subia pelo pescoço. Para dissimular sua confusão, olhou carrancuda para Damián.
—Terminou lobo?
—Ainda não —murmurou— Te reservarei para... a sobremesa.
O penetrante olhar que lhe lançou foi toda uma advertência. Umedeceu os lábios, como se a estivesse saboreando... E Jamie voltou a excitar-se imediatamente.
Tinha que pôr fim a tudo aquilo. Manter a distância. Não podia confiar em um draicon. Pelo que sabia dos draicon, não estavam acostumados a matar-se entre si, mas... e se tinha sido ele quem tivesse matado Renee?
—Se ficar com você... como posso estar segura de que não acabarei como Renee? São homens-lobo.
Raphael murmurou uma maldição.
—Jamie, somos draicon e caçamos para comer quando é necessário, mas jamais arrebatamos a vida a seres inocentes —explicou Damián— Nós não somos seus inimigos. Sei que recebeu um forte choque. Mas precisa reunir toda sua coragem e lutar para sobreviver.
A antiga Jamie ressurgiu quando ouviu aquilo. Sua elfa da noite não teria se intimidado naquela situação. Ela tampouco.
—Não tem idéia da quantidade de vezes que tive que lutar para sobreviver.
Lhe tinha escapado: não tinha tido intenção de dizer isso. Damián ficou olhando fixamente. O gato escolheu aquele momento para explorar a cozinha. «Pobrecito», pensou Jamie. Imaginou a horrível cena de violência que teria sido testemunha. «Agora temos algo em comum, Arquimedes».
Levantou o gato e enterrou o nariz em sua suave pelagem. Antigamente, aquele gato tinha sido seu único amigo... Mas o animal se revolveu e teve que soltá-lo. Correu até uma esquina e ali ficou, observando-a receoso.
Damián franziu o cenho.
—Teve um dia duro —disse ela, como desculpando o comportamento do felino.
—Parece que está muito bem alimentado.
—É um grande caçador de ratos. Depois do Katrina, saímos a resgatar animais perdidos. Quando Mark e eu o encontramos, estava sobrevivendo a base de ratos e... —interrompendo-se, elevou o olhar. Damián a estava olhando fixamente, como se quisesse lhe ler o pensamento.
—Seu irmão. Ele não era o que você acreditava que era.
—Meu irmão era tudo para mim —lhe espetou à defensiva— Era um biólogo muito importante, um grande especialista sobre a fauna selvagem, milhões de pessoas viam seu programa de televisão. Wild & Wonderful era um êxito de audiência.
—Era um bom programa — reconheceu Raphael, sorrindo levemente.
—Mark tinha um dom com os animais — prosseguiu ela— Os apaziguava. Inclusive com os insetos. Uma vez pisou em um ninho de vespas. Passaram por cima dele sem picá-lo. Foi incrível.
—Vespas! —Damián esboçou uma careta.
—T´frére, sua alergia... —sorriu Raphael— Se lembra da vez que colocou a mão em um vespeiro, por acidente? A cara te inchou como se fosse um balão.
—Se é tão poderoso... como pôde sofrer alergias? —quis saber Jamie.
Sua pergunta foi acolhida com um áspero silêncio.
—Os draicon jovens são como os meninos humanos. Até que alcançam a puberdade, estão indefesos. Os Alpha puro sangue como eu temos sistemas imunológicos vulneráveis só até os cinco anos de idade. Alguém colocou um vespeiro no meu quarto quando tinha dois anos — a expressão de Damián se escureceu.
—Deve ter doído muito...
—O suficiente para que o recorde ainda hoje. Maman, minha mãe, ouviu-me gritar. Me salvou, mas ficou a seqüela da alergia. As picadas, em um número elevado, não podem me matar certamente... mas sim me debilitar bastante.
—Oh, Damián... —exclamou, compadecida— Por que lhe fizeram isso? Pretendiam acaso... ?
—Queriam que sofresse antes de morrer. Havia suficiente vespas para provocar a minha morte.
Jamie estremeceu.
—Quem o fez? Apanharam-no?
—Meu pai... fez cargo dele. Era parente de uma amiga nossa. A pessoa que se encarregava de me cuidar quando meus pais se ausentavam de casa.
—Estava afeiçoado a ele?
A resposta se fez evidente em sua expressão. Sim, Damián também tinha provado o sabor da dor e a traição. Mas ele tinha tido pais que o tinham cuidado e protegido, ao contrário dela. Ou não? Aquele homem estava carregado de segredos.
—Basta de falar de mim. Me fale do Mark, da vida que levavam —lhe pediu Damián.
Jamie ficou olhando em silêncio o papel da parede, de um apagado tom azul. Compartilhar informação sobre Mark com ele seria como um sacrilégio.
—Há algo de seu irmão que me tem preocupado. Depois daquele último episódio, que seguiu ao furacão Katrina, o programa acabou. Ouvi rumores que Mark tinha matado a um animal e que muitos telespectadores se indignaram.
—Meu irmão jamais matou a nenhum animal! — replicou, indignada. Mas o penetrante olhar de Damián fez seu efeito. Mordeu o lábio— Está bem, só uma vez... mas não foi culpa dele. Acredito que foi por isso que se interrompeu o programa, pelo muito que aquilo lhe afetou. Estava percorrendo o bayou, mostrando os danos que tinha produzido o furacão. Eu o acompanhei para ajudá-lo a resgatar animais perdidos. Ouviu um cão uivando em uma cabana abandonada e se meteu dentro. Zane, seu produtor, insistiu que levasse um rifle no caso de... Um animal doente ou ferido podia resultar perigoso — sua voz tremeu— Ouvimos esses horríveis sons, os uivos do cão e os gritos de Mark... e logo o disparo. Mark saiu feito uma fúria; demorou um bom momento para tranqüilizar-se. Parecia diferente. Disse que o cão tinha raiva e que tinha tido que matá-lo.
Damián e Raphael se olharam. Jamie odiava aqueles olhares de cumplicidade. Como tinha odiado a aqueles que, depois daquele evento, tinham acusado seu irmão de atos muito mais horríveis...
—Ele nunca teria feito algo semelhante se não tivesse sido para defender-se. Mark amava aos animais. E aqueles que disseram todas aquelas tolices sobre ele... não o conheciam realmente. Não como eu.
—Estou seguro de que tem razão —murmurou Damián— Parecia um homem incapaz de fazer mal a alguém.
Se Damián chegasse a descobrir que ela sabia que ele tinha matado a seu irmão... como reagiria? Tinha que dissimular. Os draicon eram imprevisíveis. E naquele momento ela estava muito fraca e vulnerável. Preocupada, agachou-se para acariciar Arquimedes.
O gato vaiou, furioso. Por um instante, suas pequenas presas lhe pareceram letais, mais compridas que o normal. Apartou-se, encolhida de medo.
—Hey, dá-me igual que seja o mascote favorito de Renee ou não — estalou Damián— Terá que aprender boas maneiras — o agarrou com uma mão e se dirigiu para a porta com a intenção de jogá-lo.
Raphael se voltou então para ela:
—Jamie, escuta o Damián e faça tudo o que lhe diga. Ele é seu dracairon e cuidará bem de você.
—Eu sei me cuidar sozinha.
—Damián está disposto a dar sua vida por você... —apertou os dentes— mesmo que tenha tentado matá-lo.
—Não te caio bem, verdade?
—Não precisa cair-me bem. Basta-me que goste de Damián. Eu sou seu irmão e você é sua companheira — deu um passo para ela, olhando-a com expressão ameaçadora— Mas volta a lhe fazer dano e descobrirá quão forte é o vínculo fraternal.
Seus caninos se alargaram enquanto esboçava um sorriso de lobo. Ato seguido partiu.
Jamie não se deixou intimidar por sua advertência. Tinha problemas mais importantes. Um problema de um e oitenta e tantos de estatura, largos ombros e pernas largas e musculosas. Ficou observando Damián quando retornou à cozinha. Aquele draicon era seu único meio de acessar ao Oculto Livro de Magia que podia curá-la...
Tirou outro notbook, pô-lo na mesa da cozinha e o ligou. Imediatamente se conectou a Internet.
—Precisamos elaborar uma lista com todas as pistas que tenha: a loja de antiguidades, o que te contou seu pai sobre o livro...
Damián olhou o notbook com expressão de desagrado.
—Acreditava que lhe tinha quebrado isso.
—Tinha outro.
—Esse aparelho não é seguro.
—Quanto sabe de computadores?
—O suficiente, acredito. O último que tive era um Commodore. Ainda os vendem? Jamie soltou uma gargalhada.
—Possivelmente no EBay... Não tem nem idéia do muito que evoluiu a tecnologia. Este aparelho está protegido por uma contra-senha. Ninguém pode entrar nele. Tenho uma dezena de maneiras diferentes de bloquear os ataques dos hackers, incluindo um vírus que pode apagar os discos rígidos. Poderia apagar o teu —acrescentou, sorrindo.
—Pode ser que não saiba grande coisa de computadores, mas conheço meu inimigo e sei que podem neutralizar qualquer precaução que você possa tomar.
O terno e considerado Damián tinha deixado passo ao duro guerreiro que jamais se permitia baixar a guarda. Viu que de repente estirava uma mão e capturava algo. Jamie se removeu em sua cadeira. Na palma de sua mão tinha uma mosca apanhada.
—Os morph podem converter-se em pequenos insetos. São os perfeitos espiões.
Jamie conteve o fôlego à espera que esmagasse a mosca. Em lugar de fazê-lo, abriu a janela e a soltou.
—Nos esqueçamos da Internet. Falemos do livro. Não consentirei que me deixe à margem disto, draicon. Quero toda a informação que tenha sobre esse livro.
—Já lhe disse isso. Meu nome é Damián. E se está pensando em encontrar o livro por sua própria conta... não poderá fazê-lo. As pistas estão todas em francês — um duro sorriso apareceu em seus lábios— Meu pai tomou suas precauções.
De repente soou o telefone. Desprendeu-o imediatamente. Segundos depois, quando voltou a pendurá-lo, tremia-lhe a mão.
—Era Armand, o genro de Renee. Está na cidade. A polícia lhe entregará amanhã o corpo e o funeral se celebrará ao outro dia.
********
À manhã seguinte saíram a procurar da primeira pista. Umas poucas nuvens cobriam o radiante céu azul. Damián a acompanhava como um guardião custodiando a um prisioneiro. O olhou de esguelha. Sua expressão não podia ser mais decidida. Escapar dele ia ser certamente difícil.
Tinha insistido em dormir em sua casa. Jamie o tinha mandado ao quarto de convidados, o qual, por certo não tinha servido de nada. Porque tinha passado a noite tendo sensuais e eróticos sonhos com ele. Lembranças de quando Damián a desvirginou.
Suas mãos acariciando seu corpo musculoso. Imaginando-lhe como um lobo que encabeçava altivo sua manada... O ardente prazer que lhe tinha provocado com suas ternas carícias, e logo a pontada de dor quando entrou nela... Mas o que mais lhe tinha impactado não tinha sido isso, a não ser a sensação de Damián lhe enchendo cada poro, cada célula, invadindo-a tanto com seu sexo como com sua mente. Ou perdendo-se a si mesma enquanto Damián a avassalava com sua potência masculina, dominando-a...
Despertou com o pijama úmido de suor... e pelo aroma do bacon procedente da cozinha. Jamie tinha levantado para tomar o café da manhã a base de carne que lhe tinha preparado. Era absurdo resistir. Se a magia draicon era o que a mantinha viva, o menos que podia fazer era satisfazer suas necessidades. Mais tarde, quando se livrasse do feitiço, voltaria para sua dieta vegetariana.
Seguiam percorrendo as lojas do Bairro Francês. Na segunda loja, soou seu Blackberry e jogou uma olhada enquanto Damián se achava distraído. Era uma mensagem de texto de Paul, seu amigo on Une, para se encontrarem em algum lugar público.
Respondeu-lhe em seguida:
“Não posso.”
Resposta:
“Tenho um novo leitor de ebook. O último e o melhor.”
Jamie abriu muito os olhos. Quase ficou a salivar. Escreveu uma mensagem aceitando e guardou o Blackberry.
Por volta do meio-dia se aproximaram de um edifício de tijolo, de dois andares, com balcões de ferro forjado; em um deles se via uma bicicleta atada com um cadeado. Prateleiras cheias de antiguidades resultavam visíveis ao outro lado das janelas.
Damián a fez entrar primeiro. O interior cheirava fortemente a umidade, com estreitos corredores que mal cabia uma pessoa. Jamie examinou as antigas armas de fogo e os quadros com nus que enchiam as paredes; as vitrines cheias de dólares de prata, com soldados de chumbo e bijuteria antiga.
Damián a seguia como um lobo à espreita. Havia-lhe dito que se fixasse na parede do fundo: antigamente tinha estado ali a poltrona favorita de seu pai. Logo se tinha detido a bisbilhotar os livros das estantes. Soava uma música dos anos trinta, em que o cantor entoava sem cessar a mesma frase: Ain't she sweet...
A expressão de comovedora melancolia que atravessou o rosto de Damián surpreendeu Jamie. Mas não durou mais que um instante.
—Deixa de perder tempo e te ponha a procurar — lhe espetou.
Damián revisou as prateleiras repletas de antigas bonecas de porcelana, trens de brinquedo e bolsas de lantejoulas. Foi nesse momento quando apareceu o proprietário, sacudindo as mãos de pó. Perguntou-lhes no que podia ajudá-los.
—Estou procurando as obras do André Marcel. Conhece-as?
O homem ficou olhando com evidente curiosidade.
—É você admirador de André Marcel?
—Sim, mas não sempre. Só quando me converti em adulto e descobri sua sabedoria.
Aquele estranho diálogo despertou suspeitas em Jamie. O homem sorriu aprovador. Subiu em uma banqueta, alcançou um livro da estante mais alta. Com um gesto de reverência, o entregou a Damián.
—Pode ser que lhe interesse isto —uma expressão de tristeza cruzou fugazmente seu rosto— O senhor Marcel era uma pessoa extraordinária. Considere-o um presente de um admirador dele.
Damián assentiu enquanto abria o velho tomo encadernado em pele. O proprietário recolheu a banqueta e se retirou a parte de trás.
Jamie estirou o pescoço para ler o título por cima do ombro de Damián.
—O estranho caso do Doutor Jekyll e Mister Hyde?
—Sim —sorriu, irônico— Meu pai estava acostumado a me dizer que a verdade se ocultava na ficção. E que as pessoas têm duas caras. Sempre estava me ensinando algo.
Na página da frente do livro havia um desenho estranho, a tinta: o da cabeça de um lobo. Ao lado havia umas palavras rabiscadas em francês.
—O cavalheiro se imbui do espírito do corsário — murmurou Damián.
Fechou o livro e o guardou debaixo de sua camiseta. Logo tomou Jamie pela mão.
—O que acontece?
—Allons. Retornemos já.
Uma vez fora, deslumbrou-a o resplendor do sol. As pessoas alagavam as ruas. Uma comovedora expressão de tristeza apareceu nos olhos de Damián quando se voltou para contemplar a loja pela última vez.
Por um instante, aquele ser capitalista pareceu um desconsolado menino perdido. Virando-se de novo, surpreendeu-a olhando-o.
Jamie sabia muito de mortes, de lembranças e de arrependimentos.
E de repente foi como se a tristeza que emanava Damián a tragasse, amplificando a sua própria.
Pouco depois Damián se dedicava a alimentar o fogo da chaminé do dormitório de Jamie. As chamas lambiam o livro encadernado em pele. Tinha-lhe explicado a importância de queimá-lo para que os morph não pudessem encontrar a pista.
—O que dizia a pista?
—O cavalheiro corsário. Meu pai sempre estava me contando histórias. Referia-se a Jean Laffite. O bar que leva seu nome se encontra no Bourbon. Ali é onde está a seguinte pista.
—Quando sairemos?
—Amanhã, depois do funeral. Quero distrair aos morph para que nos deixem um pouco em paz.
—De que maneira? — inquiriu, curiosa.
Damián lhe deu um golpezinho no nariz com gesto brincalhão.
—Já verá — se levantou, espreguiçando-se.
Jamie ficou contemplando fascinada o desenho de seus largos ombros baixo a ajustada camiseta.
—Tenho coisas a fazer, assim não fica mais remédio que mandar chamar os dois homens de Rafe, para que montem guarda na casa. Pertencem a sua manada e me juraram fidelidade enquanto esteja nesta cidade — lhe lançou um olhar de advertência— Têm ordens de não interagir contigo. Encontrará-os terrivelmente aborrecidos, mas por nenhum motivo abandonará a casa.
«Eu, prisioneira em minha própria casa? Nem pensar», disse-se Jamie. Desceu as escadas e recolheu sua mochila, mas Damián a seguiu. Antes que pudesse sair pela porta, ele a sujeitou brandamente pelo pulso.
—Te disse que não saia de casa.
—E eu te digo que não pode me reter aqui. Vou ver alguém.
—A quem?
—Não te importa —se liberou bruscamente, fulminando-o com o olhar— Além disso, é alguém do meu mundo. Um fanático da informática, como eu.
Damián se esticou visivelmente. Suas unhas começaram a crescer, a converter-se em garras. Passou uma mão pela porta de madeira, deixando umas profundas marcas em sua superfície. Soltou um grunhido animal, de fera, como se quisesse devorar o homem que ela acabava de mencionar.
Jamie retrocedeu assustada. Damián soltou um suspiro. Suas unhas recuperaram seu aspecto habitual. Quando falou, fez com tom tranqüilo, pausado.
—Seu mundo, chére... deixou-o atrás. Não pode voltar para ele. Agora está no meu e leva meu sangue em suas veias. Sei que tudo isto deve te resultar aterrador e desconcertante. Com todo seu mundo de cabeça para baixo, busca o familiar e o cômodo. Mas tem que olhar para o futuro, porque às vezes o familiar é precisamente o mais perigoso.
Começou a lhe tremer o lábio inferior. Damián acabava de resumir perfeitamente todas as emoções que a tinham embargado desde que morreu Mark. Estava a ponto de derrubar-se.
—Não, o familiar não é perigoso. Paul e eu nos conhecemos no ciber espaço. Fiz uma investigação a fundo sobre ele. Faz um ano já que nos conhecemos e sempre nos encontramos em lugares públicos, perfeitamente seguros. Preciso vê-lo.
Damián elevou uma mão e lhe acariciou uma bochecha com a ponta dos dedos. Um brilho possessivo ardia em seus olhos verdes.
—Você não necessita outro macho. Nem o quer.
Emanava energia sexual por todos seus poros. E o corpo de Jamie reagia de uma maneira automática para seu pesar. Como podia desejar ao ser que lhe tinha roubado o que mais tinha querido no mundo?
—Equivoca-se.
—Jamie, disse-lhe isso. Você é minha companheira. A química de nossos corpos está indissoluvelmente ligada. Não podemos resistir ao desejo que sentimos um pelo outro. E nenhum outro homem te satisfará tanto como eu.
—Possivelmente deveria tentá-lo.
—Não o faça — Damián tomou brandamente seus ombros enquanto escrutinava seu rosto— Jamie, me escute. Esse homem poderia ser um morph. Eu não poderia suportar que lhe fizessem mal...
A expressão repentinamente vulnerável dele confundiu Jamie. Por que se mostrava tão protetor com ela? Ninguém nunca tinha se preocupado tanto por seu bem-estar. Nem sequer Mark, que sempre tinha estado muito absorvido por seu programa de televisão...
Em um impulso, puxou-o pelos ombros, sentindo como se esticavam seus músculos... e o beijou. Foi apenas um roçar, o beijo que teria dado a um bom amigo.
Mas Damián a atraiu então para si, grunhindo, e aprofundou o beijo com a língua apaixonadamente. Foi incrível. Sua boca era cálida, úmida e tinha um leve gosto de especiarias... Jamie se permitiu mordiscar brandamente o lábio inferior.
Damián fechou os olhos. Sob seus dedos, Jamie o sentia tremer como um animal selvagem lutando por liberar-se. Estreitou-a com maior força entre seus braços, afundando a língua ainda mais profundamente no doce interior de sua boca, como se quisesse lhe devorar as vísceras...
O homem-lobo. O assassino. De repente aquelas palavras relampejaram em sua mente. «Perigo, cuidado. Freia já. Agora». E ficou paralisada. Suando de medo.
Para sua surpresa, Damián não insistiu. Ofegava como se acabasse de correr uma maratona. Apoiou a testa contra a sua.
—Por que se deteve? —perguntou-lhe ela.
—Porque tem medo. Posso cheirar seu medo.
Mais surpresas. Tinha pensado que os draicon eram seres implacáveis, essencialmente egoístas.
—Preciso ir. — murmurou, na dúvida entre ficar e partir.
—Não. É perigoso sair — tomou uma mão e lhe beijou a palma.
Parecia tão decidido a protegê-la... Isso a confundia.
—Por que se importa tanto com o que possa me acontecer?
—Você forma parte agora da minha manada, Jamie. É minha. E eu sempre protejo aos meus — acariciou uma bochecha com o polegar— A próxima vez iremos a seu ritmo. Não te pressionarei.
Vacilou. Enquanto contemplava seu largo e poderoso pescoço, não pôde evitar perguntar-se o que se sentiria ao mordê-lo, acariciá-lo... Sua pele seria salgada ou doce? As rígidas barreiras que tinha levantado apenas uns segundos antes pareceram tremer. A ninguém importava o que pudesse lhe ocorrer. Se um meteorito lhe tivesse caído na cabeça, seus primos se teriam posto a dançar de alegria. Sabia de algumas pessoas que poderiam entristecer-se se algo mau lhe ocorria, mas nada mais.
Acariciou-lhe os braços, apalpando seus duros músculos, seu poder. De repente o olhar daquele lobo grande e mau a excitou de maneira insuportável. Em um impulso, tirou-lhe a camisa de debaixo da calça e deslizou ambas as mãos por seu abdômen plano e musculoso, sentindo-o tremer sob seu contato...
—Me pressione tudo o que queira — murmurou.
O olhar de Damián se obscureceu enquanto se apoderava de sua boca em outro embriagador beijo. Jamie deslizou então as mãos por suas costas, fechou os dedos sobre suas duras nádegas e se esfregou contra ele, desesperada por aliviar o ardor que sentia entre suas pernas.
—Tenho que te saborear... —resmungou Damián contra seus lábios, lutando com sua calça de moletom. A desceu pelos quadris e depois pelas coxas.
Jamie ruborizou, envergonhada ao ver que ficava olhando suas singelas calcinhas brancas. Mas em seguida as abaixou. Estava claro que não lhe importava como fossem. Seu propósito era tirar-lhe o quanto antes.
Como se estivesse olhando do corpo de outra pessoa, Jamie viu sua roupa, a calça e a calcinha, enredada em seus tornozelos. Excitou-se imediatamente ao dar-se conta do que pretendia.
—Minha — pronunciou Damián com voz áspera, incorporando-se de novo— Nenhum outro macho te tocará, nem você o desejará. É minha.
Enquanto esfregava o nariz contra seu pescoço, começou a lamber-lhe lentamente. Jamie sentiu uma breve pontada de dor na ferida que lhe tinham feito suas presas, mas ele se apressou a acariciar-lhe com a língua.
—Meu aroma em você, chére. Seu aroma em mim. — murmurou rouco.
Caindo de joelhos ante ela, separou-lhe as coxas e aproximou sua boca a seu sexo.
Um inefável prazer percorreu todo seu corpo. Jogou a cabeça para trás, estirou as mãos para protestar... mas ao final enterrou os dedos em seus cabelos, cambaleando-se. Sua língua a acariciava intimamente, penetrando entre suas finas e delicadas dobras...
Quando localizou o lugar que tanto suspirava por seu contato, o acariciou com rápidas e fortes lambidas, fazendo-a gemer e estremecer. Jamie se aferrava a seus cabelos, cada vez mais excitada, temerosa em desmaiar.
Alcançou o orgasmo com um grito esmigalhado. Começou a convulsionar-se, gritando seu nome. Damián se deteve então e se incorporou.
Jamie se apoiou em seu peito, ainda tremendo.
—Se lembre Jamie. Eu sou o único — murmurou enquanto lhe acariciava com um dedo a boca dolorida por seus beijos— O único que deseja.
Voltou a vesti-la. Aturdida, seguia incapaz de falar.
—É minha Jamie. Pertence-me. Nunca poderá escapar. Posso seguir o rastro de seu aroma a quilômetros. Se outro macho se atrever a aproximar-se de você... romperei-lhe os ossos.
Sua expressão lhe dizia o que não diziam suas palavras. «Muito em breve voltarei a estar dentro de ti. E mais profundamente que nunca».
Excitou-se de novo, como reação. Levou uma mão a seus lábios trementes enquanto procurava uma cadeira onde sentar-se. O sexo com Damián era perigoso. O melhor que podia fazer era guardar distância.
Iria ao encontro de Paul na praça Jackson. Não necessitava de Damián. Não necessitava de ninguém.
—Irei logo que cheguem Adam e Ricky — lhe advertiu ele— Mas voltarei logo. Se te atrever a escapar, encontrarei-te. Sempre te encontrarei Jamie.
«Isso você crê», replicou ela em silêncio.
Com as mãos afundadas nos bolsos, Damián percorria a cidade de bar em bar, tomando uma e outra cerveja. Os vampiros lhe subministraram dados pouco tranqüilizadores. Inclusive eles estavam preocupados. Os morpb se camuflavam eficazmente entre o resto da população.
Seus pensamentos voltavam uma e outra vez para Jamie. Tinha insistido que não necessitava de ninguém. Como poderia convencê-la que se emparelhasse com ele e liderasse sua manada quando ela preferia estar sozinha? Tinha-lhe pedido que confiasse nele, mas diabos... como podia ele confiar nela?
Se chegasse a encontrar o livro, estava seguro que voltaria a escapar. Sua única solução consistia em assegurar-se de que não tivesse a menor oportunidade de fazê-lo.
Caminhava por um beco deserto quando de repente se deteve. O instinto lhe advertia que alguém o estava seguindo. Alguém sem aroma, exceto uma leve fragrância de perfume. Virou rapidamente.
Saíram de entre as sombras. Contou oito; não, dez. Homens jovens e alguma mulher.
—Draicon. —sussurraram.
Amaldiçoou em silêncio. Como tinha podido ser tão estúpido para deixar-se surpreender assim? E como tinham podido eles rastreá-lo com tanta facilidade? Pondo em tensão seus músculos, preparou-se para a luta.
Com um olho no jogo, Jamie vigiava discretamente os dois homens-lobo que a custodiavam. Ricky, de cabelos compridos e loiros, instalou-se em uma cadeira enquanto trabalhava com seu notebook. Adam tinha se acomodado no sofá, absorto na leitura de um livro.
Enquanto manipulava a Celyndra em sua luta contra uma horda de orcos, não parava de vigiá-los. Nenhum lhe prestava a menor atenção. Abandonando o jogo, abriu seu Blackberry e enviou uma mensagem de texto para Paul, marcando o encontro para às quatro no Jackson Square. Fechou o notebook e olhou seu relógio.
—Cansei de matar orcos. Vou descer.
—Acompanho você. —Ricky fechou também seu notebook.
—Não precisa. Está ocupado e o sinal é pior lá embaixo. Estarei no jardim.
Uma vez no jardim, aproximou a espreguiçadeira à palmeira, sentou-se e abriu de novo seu notebook. Como era de esperar, Adam apareceu no terraço do primeiro piso. Jamie o saudou com a mão e fingiu concentrar-se na tela.
Ao cabo de uns minutos, voltou a elevar o olhar. Tinha ido.
Rapidamente se dirigiu à porta e tirou uma chave de debaixo do tapete. A casa estava dividida em apartamentos, que Mark estava acostumado a alugar durante o Mardi Gras. Jamie fazia bom uso deles depois de sua morte, acumulando todo tipo de coisas que poderia chegar a necessitar algum dia. Como nesse momento.
Minutos depois saiu com um manequim de tamanho natural. Tirou suas sapatilhas e meias e os pôs no manequim. Ato seguido instalou-o na espreguiçadeira com o notebook no colo, colocando-o de costas à varanda.
—Se divirta Annie — disse ao boneco e partiu.
Eram dez contra um. Os morpb decidiram adotar sua forma natural. Corcundas, com longos cabelos de cor cinza, diminutos olhos negros, presas amarelas e afiadas garras.
Ao cabo de dez minutos de briga, estava absolutamente desconcertado. Aqueles morpb eram uns covardes. Tinha matado a um deles, mas as feridas de outros eram superficiais. Cada vez que atacavam, em lugar de lançar-se a seu coração, tentavam feri-lo com suas garras. Quando conseguiam lhe fazer um pouco de sangue, uivavam de triunfo e voltavam a retirar-se.
Estava farto. Concentrando-se no macho de maior tamanho, lançou-se por ele com uma adaga em cada mão. Mas outro morpb se metamorfoseou rapidamente em vespa e voou para sua cara. Damián cambaleou, surpreso.
Tinha-o picado no rosto. Matou à vespa com um tapa, mas não pôde evitar que o rosto começasse a inflamar. Maldita alergia... Procurou concentrar sua energia curativa na picada. Desaparecido o inchaço, voltou-se contra seus inimigos.
Mas essa vez, em lugar de lhe fazer frente, os morpb fugiram. Saíram correndo como se perseguidos pelo diabo.
Limpou o sangue que lhe corria pelo queixo. Era estranho: os morpb nunca fugiam. Desfrutavam matando, e se alimentavam do terror de suas vítimas. Se conseguiam aterrorizar um draicon, seu poder se triplicava.
Tinham lutado como uma matilha de cães, atacando-o por toda parte em busca de um ponto débil, como se... Para prová-lo. Para averiguar até onde chegava seu poder.
—Querem que primeiro eu encontre o livro —refletiu em voz alta— Logo me matarão. A próxima vez não serão só dez.
Dirigiu-se à mansão de Rafe em Esplanade. Seu irmão não estava em casa. Recolheu as chaves de sua Harley, que estavam penduradas na parede da garagem. Tremeu-lhe a mão quando tocou a parede de cimento. As lembranças daquele lugar o assaltaram feito ondas. Sangue, gritos, terror. Procurou recompor-se.
Escolheu um capacete negro, arrancou com a moto e saiu para seguir inspecionando a cidade. Foi para a praça Jackson e se deteve perto do Café du Monde... e reconheceu um familiar e embriagador aroma.
Era Jamie, caminhando ao lado de um homem alto e jovem, de aspecto universitário. Sentiu uma pontada de fúria ao reconhecer seu acre e denso aroma...
O macho apoiou uma mão sobre o ombro de Jamie enquanto se detinham para cruzar a rua Dumaine. Damián sentiu gelar seu sangue nas veias quando viu que lhe cresciam as garras... Um morph.
Jamie era perfeitamente inconsciente que se dirigia para a morte. Cruzaram a rua e subiram as escadas que levavam para o Moon Walk. Damián a seguiu na moto, mas justo nesse momento se fechou a passagem e passou o metro de superfície.
Um calafrio lhe percorreu as costas quando pensou no que aquele morph poderia fazer com ela. De repente voltou a ver um cachorrinho de pelúcia ensangüentado, debaixo da cama. Sua irmã não tinha tido nenhuma possibilidade. Tinha que salvar Jamie.
Quando o último vagão terminou de passar, acelerou a moto antes que fosse muito tarde.
Um saxofonista tocava uma doce melodia de jazz. A fresca brisa do rio agitava as folhas das árvores do caminho. Jamie caminhava pelo Moon Walk com Paul, seguindo o atalho de tijolo que levava ao Bairro Francês e aos pilares que tinham ficado destroçados com a passagem do furacão Katrina.
Paul era alto e magro, de olhos azuis e cabelos de cor castanha, encaracolados. Vestia calças largas e uma camiseta larga cor verde oliva. Tinha um nível 60 no World of Warcraft e era aficionado em comer salgadinhos enquanto desenhava páginas Web para empresas. Mas na vida real se comportava de uma maneira absolutamente diferente que no ciberespaço. Parecia distante. Quase frio.
Jamie levava um bom momento tentando cercar conversação sobre qualquer tema, mas ele se limitava a responder com monossílabos. Possivelmente aquele encontro não tinha sido uma boa idéia, depois de tudo.
Olhou a seu redor enquanto seguia caminhando. Um calafrio lhe percorreu as costas quando descobriu que estavam sozinhos: não havia ninguém à vista. Detendo-se em seco, voltou-se para seu acompanhante.
—Acredito que será melhor que me vá.
Paul afundou as mãos nos bolsos, olhando-a com expressão doída.
—Não quer ver meu leitor de e-book?
O rugido de uma moto chamou sua atenção. Jamie viu o motorista desligar o motor, tirar o capacete e avançar decidido para eles.
—Quem é esse? —perguntou Paul, receoso.
—Um amigo — suspirou— Será melhor que...
Ficou olhando a mão que Paul acabava de elevar para ela. Não era uma mão, a não ser uma garra.
—Não sabia Jamie? Nunca deve confiar em desconhecidos...
A criatura lhe sorriu, deixando escapar uma gota de saliva entre suas afiadas presas. Jamie não chegou a gritar. Não podia. Virou-se e pôs-se a correr, mas o morpb a agarrou pela camisa. Puxando-a para si, agarrou-a com seus compridos e fortes abraços.
—Vai morrer de toda forma... —aproximou uma garra do seu rosto— mas não antes que destroce sua bonita face...
Jamie conseguiu se libertar dando-lhe um chute. Pôs-se a correr justo quando se aproximava Damián. Tinha um brilho feroz nos olhos e sua concentração era absoluta.
Lançou-se para a criatura com uma adaga na mão... que acabou lhe afundando no peito. O morpb caiu no chão e pouco depois se convertia em um montão de cinzas.
Jamie tremia violentamente. Respirou fundo, tentando tranqüilizar-se. Não era propensa aos ataques de histeria, mas mesmo assim...
—Vamos — murmurou Damián, passando-lhe um braço pelos ombros.
Entregou-lhe um capacete enquanto subia na moto. Minutos depois entravam no jardim. Adam baixou em seguida as escadas. Primeiro ficou olhando Jamie, assombrado, e logo a Damián, que estava furioso. Ricky apareceu atrás.
—Oh, diabos... —murmurou Adam.
Suas palavras se converteram em um gemido estrangulado quando Damián o agarrou pela garganta e o empurrou contra a grade.
—Faltaram a seu dever...
—Não foi sua culpa — intercedeu Jamie, estremecendo— Eu coloquei o manequim
na espreguiçadeira e...
—Este é um problema interno da manada. Há regras. A disciplina é necessária. Quando dou uma ordem, espero uma obediência absoluta — olhou Adam, carrancudo—Todo mundo na manada conhece as conseqüências. As regras têm uma razão de ser: a sobrevivência do coletivo.
Soltou por fim Adam, que se derrubou no chão, meio asfixiado. Logo indicou a Ricky que se aproximasse. O jovem obedeceu, cabisbaixo. Jamie ficou sem fôlego ao ver o terrível murro que deu-lhe Damián. Ricky se retirou dolorido, mas não disse nada.
—Sinto muito. Sinto-o de verdade — se desculpou Adam, elevando as mãos— De cima vi seus pés calçados com as sapatilhas, por isso não suspeitei de nada...
—Me passou o mesmo —disse Ricky.
—Saiam —ordenou Damián, assinalando a porta de grade.
Os dois draicon obedeceram e a porta se fechou a suas costas. Depois de assegurá-la com chave, Damián se voltou para Jamie.
Olhou-o receosa. Ia castigar a ela também?
—Está pálida. Encontra-se bem?
—Sim, estou bem, mas...
—Mas o que? Diga-me Jamie — tomou-a delicadamente pela nuca.
Seu contato era reconfortante. Fazendo provisão de toda sua coragem, olhou-o aos olhos. Damián não precisava lhe recriminar em nada: tinha sido uma estúpida. Não tinha confiado nele, a não ser somente nela mesma. E como resultado tinha estado a ponto de morrer.
—Mudei de opinião sobre o leitor de e-book. Acredito que me conformarei com meu Blackberry, depois de tudo...
Um brilho de emoção apareceu nos olhos de Damián.
—É muito dura — lhe disse, apoiando a testa contra a sua— Nenhuma mulher de minha manada teria sofrido um ataque de um morph... para logo comportar-se como se não tivesse passado nada.
—Pois me assustei muito — se separou dele— Vou à cama. Foram muitas emoções por um dia.
Sem esperar sua resposta, retirou-se. Uma vez em seu dormitório, fechou a porta, sentou-se na cama e enterrou o rosto entre as mãos.
«Reconhece-o», disse-se. «Damián é muito mais sensato que você. Ele sabia que os morph podiam disfarçar-se de humanos. E se Mark... aquela noite... ?».
Não podia ser. Seu irmão não tinha sido um morph. Mas a dúvida continuava acossando-a.
Pela manhã, assistiram ao funeral convocado pela família de Renee.
Damián estacionou o carro que tinha alugado à porta do cemitério de St. Louis. A tensão se acumulava em seus músculos. Seus pais, seus irmãos e Annie estavam enterrados ali. A manada a que tinham pertencido seus pais se negou a ajudá-lo, assim teve que levar sozinho seus cadáveres ao cemitério. Na metade da noite, serviu-se de sua magia para abrir a cripta de mármore e enterrá-los. Logo, da mesma maneira, tinha gravado seus nomes na pedra e os tinha registrado nos livros do cemitério, para que ninguém pudesse fazer perguntas. Nunca havia retornado, até esse dia.
A família de Renee tinha formado um semicírculo frente à cripta aberta. Um nó de emoção lhe subiu pela garganta quando escutou a fórmula draicon de despedida que pronunciou o genro dela. Quando terminou, o jovem se voltou para ele, espectador. Segundo o rito, Damián, o Alpha, deveria pronunciar umas poucas palavras de consolo.
Mas as palavras lhe entupiram como se tivesse tragando algodão. Era culpa dele que Renee tivesse morrido. Nunca deveria lhe encarregar que vigiasse Jamie.
Jamie o olhou e, fazendo-se carrego da situação, começou a falar com comovedora eloqüência sobre Renee. Quando terminou, dirigiu-se a sua neta, a pequena Marie:
— Marie, sua avó foi uma grande mulher. Queria-te muitíssimo e sempre estava falando de você.
—Foi-se —murmurou a menina— E nunca voltarei a vê-la. Deixou-me sozinha.
Damián se emocionou ainda mais.
—Ela sempre viverá em seu coração —Jamie abraçou à pequena— Por isso nunca estará sozinha —ato seguido se incorporou, olhando ao resto da família— Por favor, venham a minha casa. Ali poderão repor forças depois da viagem.
Enquanto ela lhes dava a direção, Damián permaneceu com o olhar cravado na cripta. Jamie tinha dirigido muito bem a situação.
—Vá com eles —lhe disse— Eu vou depois.
O labiríntico cemitério se estendia interminável. Quando ao fim encontrou a imponente estrutura, apenas a reconheceu. Subiu os degraus e acariciou com uma mão o quente mármore. “Annie Marcel, quatro anos. Recordada para sempre em pedra.” O coração lhe encolheu enquanto lia as palavras gravadas.
Ficou olhando o branco mausoléu, por dentro tão escuro, tão frio... «Annie, sinto tanto te haver abandonado... », pronunciou para si. Se tivesse ficado com ela em vez de escapar para caçar coelhos, como um loup fou... Delineou as letras de seu nome com dedos trementes. Tinha sido um estúpido e um insensato ao abandonar a sua família.
E qual era sua desculpa agora? Também tinha abandonado Jamie. Deveria havê-la encadeado a seu lado depois de desvirginá-la. Tinha tentado ser doce e terno, mas seu aroma havia o tornado tão louco... Tudo tinha sido muito novo, intenso e inquietante para ela, um homem enorme como ele invadindo seu corpo vulnerável, imaculado... Jamie teria necessitado um dia inteiro de carícias, ternura e romantismo. Mas em lugar de prestar atenção a suas necessidades, tinha jogado o papel de macho lobo. Tinha ido à chamada de seus irmãos para caçar ao morpb que tinha tomado a figura de Mark. O grande super herói disposto a matar o dragão e salvar à princesa.
Enquanto isso, a princesa se lançou nos braços do primo do dragão e se deixou engolir pela escuridão. Tudo porque se sentiu ferida e traída. E ele tinha sido tão preparado que se conformou lhe deixando uma simples nota de explicação, que o morpb que se fazia passar por seu irmão tinha destruído com toda facilidade.
Tinha falhado com sua família. Tinha falhado com Jamie.
De repente percebeu seu familiar aroma, muito perto.
—Sua família está aqui — disse Jamie.
Leu em voz alta os nomes. Damián a fulminou com o olhar.
—Disse-te que fosse para casa.
—Já deveria saber a estas alturas que estou acostumada a te fazer muito pouco caso—leu a inscrição de Annie— Meu Deus, só quatro anos? Quem era? Como morreu?
—Não é teu assunto.
—Eu também sei o que é perder a um ser querido. Perdoe, não queria te incomodar.
Sua voz estava cheia de compaixão. Mas ele era um draicon, um líder, e não podia permitir piedade. A piedade era para os fracos. Em silêncio, dirigiu-se para o carro.
Esteve tenso durante todo o caminho. De repente se recordou que Jamie era sua companheira. Estava destinada a sê-lo. Só por isso deveria saber o que lhe tinha ocorrido.
—Annie era minha irmã. Ela, meus irmãos e meus pais morreram assassinados quando eu tinha doze anos.
Sentiu a intensidade de seu olhar.
—Eu acreditava que Raphael era seu irmão...
—Depois daquilo, os pais de Rafe, Remy e Celine me acolheram em sua manada. Adotaram-me. Ao cabo dos anos, já adulto, fui ao oeste; ali encontrei a um parente longínquo de meu pai e formei minha própria manada. Sou um Alpha puro sangue e sabia que não podia ficar com eles. Teria tido que lutar com Remy para liderar sua manada.
Não quis lhe contar o resto. Nenhum detalhe. A vergonha de ser um pária com o coração esmigalhado pela dor. Concentrou-se em conduzir.
Silêncio. Tinha esperado as habituais palavras de consolo, mas não o que Jamie disse a seguir:
—Ela nunca teve uma oportunidade, verdade?
—O que?
—Annie, sua irmãzinha. —suspirou— Não teve oportunidade de aprender a andar de bicicleta, de aprender a ler, ir a seu primeiro baile, de receber seu primeiro beijo.
—Não. Nunca — apertou com força o volante— E tampouco teve nenhuma oportunidade frente a seus assassinos.
—A morte é odiosa. Mas quando se trata de uma criança, é o mais cruel que pode haver no mundo.
Damián comentou após um momento:
—Vi-te com a neta de Renee. Nota-se que lhe vão muito bem as crianças.
—Sei o que é sentir-se confusa e abandonada quando morre um ser querido —sorriu triste— Simplesmente lhe disse o que eu teria gostado que me dissessem quando perdi meus pais.
Damián estacionou a curta distância da casa e apagou o motor.
—Ao menos tinha a seus tios e a seus primos a seu lado. Tinha uma família. E uma família é tudo.
Uma fria expressão apareceu em seus olhos cinzas.
—Oxalá me tivessem abandonado na rua. Isso teria sido melhor que viver em tristes becos me alimentando do que encontrava no lixo.
—O que aconteceu?
Damián pôde sentir como ela se retraía mental e fisicamente.
—Isso pertence ao passado e prefiro não falar disso.
Caminharam em silencio até sua casa. Que diabos teria acontecido a Jamie?
Arquimedes saiu a recebê-los à grade, miando.
—Como conseguiu sair?
O gato ronronou nos braços de Jamie enquanto entravam. A família de Renee estava no jardim, comendo sanduíches e bebendo limonada. O antigamente arisco gato parecia ter trocado de humor e se aproximava de cada convidado. Inclusive a pequena Marie começou a lhe dar pequenos pedacinhos de pão.
Armand, o genro de Renee, aproximou-se de Damián.
—Jamie é tua, verdade? Mas não consigo sentir seu cheiro.
—Jamie é minha sim. Mas não é uma draicon.
O homem abriu muito os olhos.
—Fascinante — ficou olhando— É boa e carinhosa. Uma grande mulher.
Para consternação de Damián, Armand se dirigiu nesse momento aos presentes, elevando sua taça.
—Pelo chefe de manada Marcel e sua companheira. Que tenham muitos filhos!
O brinde foi acolhido com entusiasmo. Jamie, em troca, torceu o gesto.
—Sinto muito, mas isso não ocorrerá. Ao menos comigo.
—Mas você tem que ter filhos com o Damián — gritou Marie— É a única.
Jamie lançou a Damián um olhar divertido antes de voltar-se para a menina.
—Que única?
—Sua draicara. Damián é um Alpha puro sangue e só pode ter filhos contigo porque você é sua companheira. Você é a única. É que você não gosta dos bebês?
—Não estou feita para ser mãe — replicou Jamie.
Sandra, a mãe de Marie, olhou-a assombrada.
—Não entendo... Sem você, sua estirpe se acaba. É uma privilegiada de poder engendrar a seu herdeiro.
—Sempre fica a adoção, não? E lobas não faltam — se levantou, furiosa— Vou pegar mais refrescos.
O pequeno grupo ficou calado enquanto Jamie partia dando uma portada, Armand lançou a Damián um olhar de pura perplexidade.
—Para uma fêmea constitui a máxima honra engendrar crias com um capitalista Alpha...
Damián suspeitava que Jamie lhe cortaria suas partes privadas antes de participar da dita honra.
—É complicado...
—Desejo-te sorte — lhe disse Armand, respeitoso— Suspeito que o emparelhamento será difícil, mas pode ser que se trate de um sinal. Possivelmente sua companheira possua poderes que os draicon faz tempo que perderam, e por isso esteja destinado a se fundir com ela. Nosso Alpha nos contou que ultimamente estiveram acontecendo coisas muito estranhas.
—Minha gente lutará até o final, até o último fôlego. Não deixarei que nenhum morph acabe com outro membro de minha manada.
—Não está sozinho nessa luta. Devemos aprender a lutar como uma só manada, e acabar com o mal que caminha entre nós.
Armand contemplou como Arquimedes se esfregava contra os tornozelos de sua filha, miando alto para chamar sua atenção. Damián lhe disse que tinha sido o mascote de Renee.
—Marie sempre quis ter um gato. Se a sua companheira não se importar, poderíamos levar este. Você já tem outro.
Damián franziu o cenho.
—Dois? Eu não tenho dois gatos aqui.
—E isso o que é? —Armand assinalou um segundo gato negro que os olhava do outro lado do jardim. Do mesmo tamanho que Arquimedes.
Damián experimentou uma pontada de temor. A casa estava protegida contra os morph. Mas os escudos mágicos como aquele se debilitavam em proporção direta à magia que utilizava um draicon. E ele tinha utilizado magia mais que suficiente desde que chegou.
De repente os olhos do felino que estava escondido entre os arbustos se transformaram. De verdes trocaram a negros, quase sem brilho. O outro gato que se achava aos pés de Marie saiu correndo, assustado.
Damián compreendeu tudo. O verdadeiro Arquimedes tinha estado todo o tempo refugiado no jardim. O gato que ele tinha recolhido na loja de Renee, pensando que era Arquimedes... era um morph.
—Leve a sua família daqui. Agora mesmo — ordenou a Armand.
O draicon não necessitou que dissesse duas vezes. Levantou sua filhinha e partiu com os seus. Damián se concentrou então no gato. O animal começou a contorcer-se e recuperar sua forma original. A de um morph.
A figura corcunda, de compridas presas e juba gordurenta, não podia ser mais horrível. Mas logo voltou a transformar-se. Nessa ocasião em um humano. Uma mulher de olhos enormes e olhar necessitado.
—Por favor, não me faça mal... —choramingou.
Elevou o olhar para a casa, onde sabia que estava Jamie e sorriu. Mas Damián fez um gesto com a mão e se converteu em lobo. Lançou-se por ela.
Enquanto despedaçava ao morph com suas poderosas mandíbulas, rezou para que Jamie não estivesse contemplando a cena.
Que maneira mais exaustiva de fazer vinte e um anos. Primeiro a emoção do funeral de Renee. E logo descobrir que estava destinada a ter filhos com Damián.
—Feliz aniversário — murmurou, irônica— Querem te converter em mãe de uma estirpe de lobos.
De repente assaltou sua mente a imagem de Damián todo excitado, fazendo coisas maravilhosas... seu corpo reagiu imediatamente. Era algo biológico. Queria ter sexo com Damián, simplesmente sexo: nada mais. Queria aquele grande e poderoso macho em cima dela, dentro dela, lhe provocando incontáveis orgasmos...
De repente um grito de mulher a distraiu de seus pensamentos. Aproximou-se correndo à janela: justo naquele instante viu Damián converter-se em um lobo.
Ele carregou contra ela como uma locomotiva. Abriu suas grandes mandíbulas e as fechou sobre uma perna da mulher; o sangue salpicou as paredes de tijolo. A vítima abriu a boca em um silencioso grito.
O draicon não teve piedade. Ato seguido a atacou na garganta.
Jamie baixou as escadas e abriu a porta, gritando que se detivesse. Justo quando saía ao jardim, o lobo começava a lhe devorar o coração. Deteve-se em seco, aterrada.
O instinto lhe ordenava fugir, mas por alguma razão não o fez. Justo nesse momento, a mulher se converteu em um montão de cinzas escuras. Não era humano. Damián tinha acabado com um morph.
O lobo avançou para ela. Era enorme, cinza, musculoso, com duas raias negras que lhe atravessavam o focinho: as marcas do Alpha. Jamie se encolheu de medo. Era Damián, o lobo que tinha despedaçado seu irmão...
Rapidamente, voltou a adotar a forma humana. Uma expressão cruel endurecia seu rosto. Nu como estava, aproximou-se dela sem deixar de olhá-la aos olhos. Ao baixar o olhar, Jamie descobriu sua férrea ereção.
A doce voz de Marie ressonou em seu cérebro: «Só pode ter filhos contigo». Estava ligada à sobrevivência de Damián e de sua estirpe. E ele se asseguraria de perpetuar-se, tanto se ela se mostrava disposta a colaborar como se não.
Damián estava cheio de agressividade. Depois de ter vencido ao inimigo que tinha ameaçado a sua companheira, quão único queria era rasgar a roupa de Jamie, tombá-la de costas e lhe abrir as pernas. Afundar-se profundamente em seu sexo suave, enchê-la com sua semente. Reclamar a sua draicara. «Minha. Toda minha».
—Por favor — sussurrou Jamie— Não...
Uma só palavra bastou para que se detivesse. Damián estremeceu pelo esforço que teve que fazer para controlar-se. O terror se desenhava nos olhos cinzas de Jamie. «Oh, meu Deus», exclamou em silêncio. Tinha-o visto. Tinha-o visto despedaçar ao morph.
Em seus olhos podia ver seu próprio reflexo. O de um ser cruel, marcado pela violência.
—Oxalá não tivesse visto isso.
—Esse ser que acaba de matar... era um morph? —lhe quebrou a voz.
—Jamie, chére, eu jamais te faria mal algum. Deixa de me olhar como se fosse lhe fazer isso —lhe pediu com tom suave.
—O que lhe fez a... essa coisa...
—Fiz para te proteger. É minha natureza.
—Sua natureza. Refere-se ao lobo. Os lobos se regem pelo instinto — baixou o olhar a sua ereção— Poderia me obrigar, me forçar a fazer o que te desse vontade. Isso é o que faz sua gente, não? Consegue o que quer e ao diabo com todo o resto. Se o que quer é me possuir... o que lhe impede isso?
—Não tenha medo de mim... eu jamais forçaria nada...
—Mas é um lobo. E eu sua companheira, a que quer fecundar.
—Para que fique grávida, antes temos que nos emparelhar. Nos converter em iguais, absorver cada um o poder e a magia do outro. É o prazer mútuo e não a força o que tem que nos unir Jamie.
Tinha que convencê-la que não significava para ela uma ameaça. A todo custo. Nunca antes havia se humilhando diante de ninguém. Era um Alpha: poderoso, dominante. Mas precisava dar segurança a Jamie. Assim se ajoelhou no chão de tijolo, na posição menos ameaçadora que conhecia.
—Me olhe, Jamie. Eu não te farei nenhum dano, nem te forçarei jamais. O desejo me devora as vísceras, mas não o farei. Este impulso do emparelhamento... não posso evitar o desejo, a necessidade. Mas posso me dominar. Sou um draicon, sim, mas todo meu ser grita neste momento que te proteja, não que te viole. É o que fazem os machos de minha raça. Honramos e veneramos a nossas mulheres. Não as degradamos nem as humilhamos.
Fez-se um tenso silêncio.
—Honram às mulheres? Não as humilham?
—Até o último fôlego — levou uma mão ao coração— Te libertarei de todo mal. Morreria por você antes de permitir que alguém te fizesse mal ou te humilhasse.
Jamie deu um passo adiante. O medo de sua expressão tinha dado passo a um maravilhado assombro.
—Oxalá os homens fossem como vocês. Os draicon poderiam lhes dar uma grande lição de comportamento.
Durante um bom momento permaneceram olhando-se fixamente, compartilhando um estranho sentimento de comunhão. Damián pôde ver como suas barreiras se derrubavam. Era como se Jamie lhe estivesse despindo a alma. Por fim podia ter acesso a seus pensamentos.
Mas o que viu ali lhe gelou o sangue nas veias. Gritos, soluços, súplicas... «Por favor, não, por favor, não o faça... ». Imagens de um homem grande e forte, com uma faca na mão, a ponto de cravar-lhe...
Ele sentou-se, espantado e horrorizado de uma vez. O que aconteceu com Jamie? O momento mágico da comunhão foi repentinamente quebrado. Ele viu que ela piscou várias vezes saindo do seu devaneio. E logo recuperou a sua habitual máscara de indiferença.
—De acordo, então. O que fazemos agora? Ainda não é Mardi Gras. Vista-se. Esta noite precisamos ir ao bar Laffite, onde estou segura que todas as mulheres me olharão com inveja...
Damián forçou um sorriso. Mas Jamie não tinha conseguido enganá-lo; não lhe tinha passado despercebido o ligeiro tremor de sua voz. Com um gesto de sua mão, vestiu-se. A valente e voluntariosa Jamie de sempre... Seria capaz de enfrentar-se a uma horda de morph e lhes pedir por favor para se afastarem, porque lhe estavam bloqueando o caminho.
O sorriso se apagou de seu rosto quando descobriu a verdade. Atrás da atitude desenvolta e de suas bravuras, escondia-se o medo. Mas não dele, mas sim de outra coisa: seu próprio passado.
Jamie rebuscava em suas gavetas. Encontrou suas odiosas calcinhas, de cintura alta e tecido de algodão, e as guardou a contra gosto na mala. Arquimedes, o verdadeiro Arquimedes, foi-se com seus novos donos, a família de Renee. Damián não tinha querido arriscar-se com mais animais que podiam ser morph disfarçados.
O notebook já tinha guardado na mochila. Pasta de dente, escova, creme para o rosto... Cosméticos? Não levava nenhum. Surpreendeu-se ao descobrir duas tangas de renda no fundo da gaveta. Como odiava ter que levar aquela roupa íntima tão antiquada como de avó... Acariciou a fina seda enquanto admirava as cores, verde e azul elétrico. Não, aquilo não era para ela. Não com sua deformidade.
No último momento, entretanto, jogou-as na mala.
—Rafe mandou o carro. Está preparada?
Damián colocou a cabeça pela porta do dormitório. Jamie se apressou a fechar a mala, com um nó no estômago,
—Sinto-me como quando tivemos que evacuar a cidade por culpa do Katrina. Como se nunca fosse voltar.
—Voltará. Esta situação só durará até que meus irmãos possam desinfetar a casa com sua magia e limpar as cinzas — Damián lhe lançou um sorriso reconfortante.
—Usando sua magia — suspirou— Magia é o que me falta. Porque em meu interior não há nada mais que escuridão. Por isso me lançou esse enfeitiço no Novo México...
—Não — aproximando-se, embalou-lhe o rosto entre as mãos— Te lancei esse feitiço precisamente para te proteger. Em teoria, se não podia usar sua magia, os morph não tinham por que te reter. O que não sabia era que Kane já te tinha arrojado outro feitiço para te arrebatar lentamente a vida.
—Sinto-me como se ainda estivesse vinculada a eles —murmurou em voz baixa—Mas é estranho, porque também sinto que há algo mais, também...
—Como o que? — inquiriu, espectador.
—Como se algo estivesse lutando contra essa escuridão, querendo sair. Sinto-me... como se estivesse cheia de magia boa, branca, esperando ser utilizada.
Damián ficou olhando fixamente. De repente, afastando uns passos, elevou as mãos e começou a cantar algo em uma estranha língua.
Para surpresa de Jamie, a seu redor surgiram umas faíscas cintilantes. Sentiu-se mais ligeira, como se estivesse flutuando... mas a sensação desapareceu em seguida. Damián baixou as mãos.
—É livre. Acabo de desfazer o feitiço que te impedia de utilizar sua magia.
Sentia-se reverberar por dentro. A magia que Damián lhe tinha infiltrado por meio de seu sangue crepitava em suas veias como uma corrente elétrica. Emocionou-lhe aquele gesto de confiança por sua parte.
—Não tem medo de que a use contra você?
—Não pode me fazer dano. Minha magia é muito capitalista.
—Poderia tentá-lo — ficou olhando fixamente— Já o fiz antes. Estive a ponto de te matar.
—Com um beijo. Recorda? Quer prová-lo de novo? O de me beijar, quero dizer —um ardiloso sorriso apareceu em seus lábios. Estava ao mando da situação, e sabia. De repente a olhou com expressão séria, pensativa— Por que tentou me matar, Jamie? —estendeu uma mão para tomar uma mecha de cabelo entre seus dedos, como se não pudesse suportar não tocar — Sei que sofreu muito. Vi sua dor, sua angústia. E sei também que me esconde algo, algo importante que ainda não posso ler em você.
Deixou cair a mão. Jamie olhou expectante.
—Se houver boa magia em você, — continuou Damián— chegou o momento de que a utilize. Mas cuidado. Quanto mais exercite seu poder, mais rápidos serão os efeitos do feitiço mortal de Kane — uma expressão de dor apareceu em seus olhos— De toda forma, é melhor assim. Se eu desaparecer, você terá meios para se defender. Não suportaria voltar a perder a alguém como...
—Como quem? —inquiriu Jamie. O coração lhe tinha dado um tombo no peito.
—Nada, deixemo-lo. Este lugar é muito perigoso. Vamos já.
Minutos depois, Damián estacionava o carro frente à mansão de Rafe, na Esplanade. Ao menos estariam em um lugar seguro, até que chegasse o momento de voltar para sua casa.
Jamie se perguntou se estaria alguma vez a salvo. Se um gato podia converter-se de repente em morph e atacá-la, que mais podia lhe ocorrer? Se não tivesse sido pelo Damián, teria podido acabar como Renee.
Damián lhe tinha assegurado que a mansão de Rafe era segura. Um fragrante aroma a rosas e a madressilva parecia envolver a propriedade. Pintado de cor marfim, o edifício de dois andares apresentava um pórtico imponente, sustentado por colunas dóricas.
Uma alta grade de ferro forjado protegia a mansão dos olhares dos curiosos. Damián se dispunha a abrir o ferrolho da porta quando de repente se deteve. Com expressão triste, quase nostálgica, ficou contemplando a casa durante uns segundos.
—O que acontece? —Jamie olhou a porta— Está quebrado?
—Mon coeur —sussurrou ele— Toujours.
Conhecia o significado daquelas palavras. «Meu coração. Sempre». Lhe fez um nó na garganta. Tocou-lhe o braço e Damián baixou o olhar até sua mão. Ato seguido correu o ferrolho e entraram por fim.
Suas sapatilhas logo que fizeram ruído no elegante chão de madeira encerada enquanto admirava o vestíbulo de entrada, com seu antigo rack de madeira de carvalho, seu enorme espelho e seus finos vasos de porcelana. E pensar que ela se apresentava ali com uma camiseta e uns velhos jeans... Mais que em uma mansão, acabava de entrar em uma espécie de santuário. A palavra assaltou sua mente por surpresa, sem que pudesse evitá-lo: «fantasmas».
Damián a observava. Jamie se voltou para ele, consciente que estava esperando uma reação por sua parte.
—É muito formosa.
—Pois eu a odeio.
—Então por que me trouxe aqui? Teríamos podido ir a um hotel.
—Porque é mais segura para você. Rafe tem suficientes homens.
Jamie elevou uma mão para acariciar o papel de seda das paredes. Um calafrio lhe percorreu as costas. Sacudiu a cabeça.
—Não acredito que deva ficar. Algo aconteceu aqui. Algo mau. Muito mau. Percebo-o.
A expressão de Damián se endureceu.
—Aqui não há nada que possa te fazer dano. A energia que percebe é do passado.
Jamie esperou. Damián baixou lentamente sua mala ao chão.
—Esta era a casa de meus pais. Quando morreram, eu a herdei. Remy, meu pai adotivo, insistiu que a reconstruíssem para honrar a minha estirpe.
Assim era a casa de Damián. Não de Rafe...
—Como é que Raphael vive aqui?
—Eu a dei de presente. Considera-se uma espécie de zelador — a expressão doída, atormentada, que Jamie tinha visto antes, apareceu de novo em seus olhos— Eu não queria nem vê-la.
—O que aconteceu ao edifício original?
—Queimei-o depois que morreu minha família.
—Destruiu sua própria casa?
Damián se fechou, como uma máquina que tivessem desligado de repente. Jamie o entendia. Algumas coisas eram muito dolorosas de recordar. Mas se queria poder conciliar o sono aquela noite, tinha que sabê-lo.
—Vamos. Mostrarei o resto.
Do salão, impressionou-lhe o imenso tapete Aubusson color Burdeos, os velhos quadros que decoravam as paredes bege, o sofá de mogno e as cadeiras Luis XV. O percurso pelo térreo foi curto. Logo Damián recolheu sua mala e subiu as escadas. Ao final de um comprido corredor, abriu uma porta com maçaneta de vidro.
Jamie ficou sem fôlego. Os tapetes de tons verdes e rosados contrastavam com o chão de madeira escura. O grande espelho de marco dourado estava flanqueado por duas pinturas de Sargent. Dois abajures de cristal esculpido iluminavam a suntuosa cama de dossel. Completavam o mobiliário um armário de mogno e uma escrivaninha estilo Rainha Ana. Tudo maravilhosamente elegante.
Damián deixou sua mala no chão e lhe mostrou uma porta lateral.
—Por ali está meu quarto, ligado através do banheiro. Os dois temos os dormitórios maiores da casa. Meus irmãos residem aqui. A casa dispõe de cinco quartos e uma grande sala de jogo no sótão. Logo está o antigo apartamento dos criados, na parte traseira, reformado. Ali é onde se aloja Rafe.
Apesar da beleza da habitação, Jamie voltou a perceber algo estranho, horrível. Como um grito esmigalhado que subisse da terra, reverberando nos chãos e nas paredes daquela casa.
—Alguém sofreu muito aqui.
Damián ficou absolutamente imóvel.
—Como sabe?
—Tenho uma sensibilidade especial. Sempre a tive — se abraçou, olhando a seu redor— Não se trata de que habite aqui o mal, já não. Mas me sinto triste. Muito triste, como se o coração caísse em pedaços.
Damián apertou a mandíbula enquanto se aproximava da janela e elevava a fina cortina de renda.
—Damián, como morreu sua família? Foi de morte violenta, verdade?
Por um momento, ele não disse nada. Quando falou, fez com voz rouca, áspera.
—Os morph os mataram. Foi... brutal.
Jamie se reuniu com ele frente à janela. Consternada, acariciou o batente com gesto distraído.
—Mataram-nos aqui, e por isso percebo esta tristeza —murmurou— Sua irmã... sua irmãzinha só tinha quatro anos...
—Encontrei-a — confessou ele, com um suspiro— Estava debaixo da cama, como se tivesse tentado esconder-se.
Jamie estremeceu ao imaginar o terror da menina e a dor de Damián quando descobriu seu corpo.
—E você sobreviveu.
—Sobrevivi só porque aprendi a lutar. E a ganhar. Para minha gente, a vida não é vida, a não ser sobrevivência. Quando deixamos de lutar, deixamos de existir.
Mas havia algo mais sob a superfície. Jamie sabia agora que Damián tinha sofrido a perda de seus seres queridos, igual a ela. E isso cortava a distância entre os dois. Recordou de repente as palavras de Renee: «Às vezes aqueles de quem mais desconfia são precisamente os que mais merecem sua confiança».
—Vamos, se instale se quiser — lhe disse Damián— Eu estarei abaixo.
Quando a porta se fechou a suas costas, Jamie se sentou na grande cama. Uma densa quebra de onda de melancolia flutuava no ar. Não só pelo ocorrido no passado, mas também pelos sentimentos de Damián.
Decidiu tomar banho. Quando saiu do banho, a sensação de tristeza se intensificou. Colocou jeans e uma camiseta negra. Quase podia perceber a dor de Damián pulsando em suas veias...
Pensou em sair e explorar o jardim. Precisava respirar ar fresco. Baixou correndo as escadas, descalça. Quando chegou ao vestíbulo, a quebra de onda de tristeza esteve a ponto de afogá-la. Deteve-se frente a um escritório-biblioteca de aspecto sóbrio, com sua chaminé de mármore. Reconheceu o aroma de Damián.
Necessitava espaço e ar fresco, mas ao mesmo tempo detestava a idéia de deixá-lo só ali, sofrendo. Colocou a cabeça pela porta e o viu sentado em uma das quatro poltronas de pele dispostas em círculo. Ao lado, sobre uma mesa baixa, havia uma garrafa meio vazia. Uma taça de cristal dançava entre seus compridos dedos.
—Ei, gostaria de companhia?
Limitou-se a dar de ombros. Jamie entrou, tirou uma taça do móvel das bebidas, serviu-se da garrafa e tomou assento frente a ele. Damián continuava olhando a chaminé como se encerrasse todos os segredos do mundo.
—Bom vinho — disse de repente ela— Levemente defumado, com um sabor levemente áspero. Eu diria que é da região do Medoc.
Aquilo surpreendeu Damián.
—Sabe de vinhos?
—Aprendi com Mark. Era um grande aficionado.
—Meu pai também. Quando minha mãe e ele tiveram que abandonar a França como resultado da Revolução e vieram pra cá, trouxe consigo esse hábito.
—A Revolução. Trata-se de algum novo jogo on line? — tentou brincar.
—A Revolução Francesa não foi nada comparado com a guerra que estamos lidando agora.
Quando finalmente o viu elevar o olhar, Jamie voltou a ficar sem fôlego. Não havia vida em seus olhos. Só um denso e impenetrável negrume. Jamie conhecia aquela sensação de desolação. Ver aquele homem forte e poderoso consumido naquele estado lhe rasgou o coração
Baixou sua taça, impulsionada pela necessidade de consolá-lo de algum jeito.
—Conta-me Damián.
Damián bebeu um gole do Cabernet Franc. Um vinho excelente, mas que naquele momento lhe tinha sabor de barro.
Ela queria saber de sua guerra. Tinha-lhe feito uma pergunta.
—Minha vida foi sempre uma luta contínua. Quando minha família morreu, passei a viver com a do Rafe. Remy e Celine me adotaram, ensinaram-me a caçar e a sobreviver. Os fedoighlas, como se conhecem em minha língua aos morph, eram antigamente draicon como nós. Até o século passado, eram poucos e fáceis de eliminar. Mas agora nos superam em número. A única maneira de acabar com eles é lhes cravando uma adaga diretamente no coração.
—Por que os draicon se converteram em morph?
—Faz milhares de anos, nossa raça vivia na dimensão do Outro Mundo. Podíamos voar, criávamos matéria a partir de nossa energia, manipulávamos objetos e lhes dávamos forma a vontade... Mas quisemos aprender da Terra, deste mundo, e para fazê-lo tivemos que nos dividir em dois. Os draicon tomam forma de lobos, para estar mais perto do ambiente terrestre. Nossa outra metade, ou seus descendentes, seguem habitando a Terra. Por isso cada um busca constantemente seu casal, para que quando nossos corpos se juntem, e com eles nossos corações e nossos sentimentos... convertamo-nos em um outra vez. No emparelhamento, durante o ato sexual, intercambiamos pensamentos, sentimentos e magia: cada um absorve os poderes do outro. Mas alguns de nós se mostraram muito impaciente e ansiosos. Desejavam mais poder. E descobriram que matando o que é mais sagrado, a seus próprios parentes, podiam converter-se em qualquer outro animal ou adquirir forma humana. O mal lhes deu esse poder, mas para mantê-lo devem alimentar-se do medo de suas vítimas.
Jamie se abraçou, estremecida, e disse:
—Eles queriam que lhes ensinasse manobras de batalha. E eu lhes ensinei as que sabia dos jogos on line que praticava. Às vezes tive medo de me converter em um deles, não fisicamente, a não ser moralmente: por sua afeição à dor e à morte.
Damián baixou sua taça e a olhou preocupado.
—Jamie, você sobreviveu. É muito forte para lhes deixar que lhe destruam.
—E você é muito forte para deixar que a energia de tristeza que destila esta casa, com todas suas lembranças, faça o mesmo contigo.
Damián se ruborizou. Tinha acertado. Maravilhava-lhe a inteligência de sua draicara, que tinha manipulado a preocupação que lhe tinha demonstrado para utilizá-la em seu contrário. Apurou sua taça.
—Supõe muito. É um assunto pessoal, assim não te coloque.
—Isso não é possível, porque sinto que esta casa está gritando de pena e de dor. E que você é o que está gritando mais, em silêncio.
Damián se sobressaltou ao ver que Jamie se levantava para sentar-se no braço da poltrona onde estava sentado. Podia aspirar seu fresco aroma a juventude e energia. Amaldiçoou para si mesmo; necessitava-a, mais do que estava disposto a admitir. Mas não deixaria que se aproximasse muito, já que isso o debilitaria. A piedade e a compaixão eram para os fracos.
Jamie apoiou as mãos em seus ombros e começou a massagear-lhe brandamente,
—Está muito tenso. Me deixe te ajudar — murmurou.
Muito a seu pesar, não resistiu. A massagem conseguiu, entretanto, o efeito contrário. Damián jogou a cabeça para trás enquanto seu corpo sofria um verdadeiro ataque de prazer animal. Tremeu levemente quando Jamie lhe estava massageando os músculos do pescoço.
—O que acontece? —deteve-se— Te tenho feito mal?
—Ao contrário.
Jamie baixou o olhar para sua virilha. Com absoluta doçura, beijou-o nos lábios ao tempo que deslizava uma mão entre suas coxas... e começava a acariciá-lo.
Damián se excitou insuportavelmente. Deixou que o beijasse, que sua língua procurasse a sua, que lhe mordiscasse jacosamente o lábio inferior. A carícia de sua mão o estava incendiando por dentro. Começou a lhe doer o membro, aprisionado nos ajustados jeans, desejoso de sair, de entrar nela...
Com um grunhido, retirou-lhe a mão e interrompeu o beijo. Imediatamente se levantou da poltrona, sentou-a ali e lhe baixou a calça. Grunhiu de novo ao ver sua roupa intíma branca. As garras tinham começado a lhe crescer, e com elas enganchou um lado da calcinha, tomando cuidado de não tocar a pele, com a intenção de rompê-la. O som de tecido rasgado ressonou na habitação.
Ato seguido se agachou e lhe retirou os farrapos da calcinha com os dentes. Com as narinas bem abertas, aspirou seu aroma. Estava excitada, desejosa.
Uma vez conseguido seu objetivo, retraiu de novo as garras; suas unhas voltaram a adquirir seu aspecto normal. Deslizou as mãos pela parte interior de suas coxas, separando-as antes de baixar o zíper da braguilha. O instinto de possuí-la era muito capitalista, entristecedor... até que se deu conta de que ela estava tremendo.
Deteve-se, com as mãos sobre suas esbeltas e brancas coxas. Havia se esquecido. Jamie não tinha experiência, não estava acostumada à paixão de nenhum macho. Estava-o olhando com os olhos abertos, assustada.
—Tranqüila —sussurrou— Perdoa. Será bonito e lento desta vez.
Viu que ela sorria levemente, possivelmente de alívio. Começou a lhe beijar a parte interior de cada coxa. Sua pele tinha sabor de morangos amadurecidos...
Jamie se moveu na poltrona, ruborizada.
—O que é que quer, chére? Quer-me... aqui dentro? —aproximou uma mão do seu sexo.
—Sim — murmurou com voz rouca— Por favor — elevou os quadris ao mesmo tempo, a maneira de silenciosa súplica.
Damián sorriu. Logo colocou a cabeça entre suas coxas e, muito delicadamente, começou a acariciá-la com a ponta dos dedos, maravilhado de descobrir aquela úmida pérola rosada, sua secreta beleza.
—Ah, que perfeita é... —sussurrou, aproximando-se ainda mais para aspirar seu aroma.
Começou a lambê-la lentamente, desfrutando de seu sabor. Jamie foi escorregando pouco a pouco da poltrona, gemendo, afundando as mãos em seus cabelos.
Damián acelerou o ritmo de suas carícias, cada vez mais... até que lhe provocou o orgasmo. Beijou-a meigamente. Logo terminou de baixar o zíper. Aprisionado pela calça, doía-lhe o membro, os testículo. Tremiam-lhe as mãos.
Olhou-a. Estava ofegando de prazer, mas um brilho de medo relampejava em seus olhos. Medo dele.
Amaldiçoou em francês e procurou sua calcinha. Pareceu surpreender-se quando a descobriu feita farrapos, no tapete. Olhou o objeto com gesto entristecido e a guardou em um bolso, para jogá-la depois discretamente.
—Ei, não vai...?
Inclinando-se para ela, pôs um dedo em seus lábios.
—Ssssh... isto era para você —lhe sorriu— E também para mim. Desfrutei-o, e muito.
Jamie afastou os cabelos da face e se levantou. Dispunha-se a recolher sua roupa quando se deteve em seco.
—Fecha os olhos — lhe pediu— Não quero que me veja por trás.
Damián arqueou as sobrancelhas. Já a havia visto nua, tombada de barriga para cima enquanto a desvirginava em seu primeiro encontro. Estava tensa; notava-se na maneira que tinha de apertar os punhos. Deu-se a volta enquanto ela colocava os jeans. Quando ouviu o som do zíper, virou-se de novo.
Tinha baixado o olhar, como se tivesse vergonha. O que lhe teria acontecido?
O bar Laffite estava abarrotado de gente. Damián guiou Jamie para uma mesa vazia que dominava todo o local. Seu contato lhe provocou um estremecimento, lhe recordando o que tinha acontecido pouco antes.
Voltou a umedecer-se. Ao parecer, ainda queria mais. Seus hormônios se queixavam.
Damián a olhou, com um sorriso nos lábios. Tirou-lhe uma cadeira.
—O que quer? —perguntou-lhe.
«A você, em cima de mim», quis lhe responder. Ruborizou-se imediatamente.
—Er... uma cerveja.
Damián voltou com dois copos. Logo se sentou, olhando a seu redor. Sempre alerta.
Jamie conhecia aquele bar. Recordava ter querido celebrar ali seu aniversário, mas Mark tinha estado muito ocupado. O último ano até se esqueceu da data. Ela o tinha perdoado: ao fim e ao cabo, seu irmão tinha sido um homem muito importante, com muitas coisas na cabeça. E as festas de aniversário eram para crianças.
E o que importava se nenhuma vez lhe tinham feito um bolo, com velas, e muita gente lhe cantando feliz aniversário? Importava por acaso? Esses estúpidos sonhos eram para outros, não para ela. Lhe fez um nó na garganta.
—Fique aqui — lhe disse Damián de repente— Já volto.
Viu-o percorrer todo o perímetro do bar, examinando a centenária parede de tijolo. Parecia um turista fascinado pela arquitetura de tão antigo local. E entretanto estava procurando a segunda pista, escondida entre aquelas paredes.
Uma forte gargalhada chamou sua atenção. Um homem de figura rechonchuda, vestido com uma pólo vermelha, falava com uma bonita jovem morena. O tipo estava fazendo odiosos comentários sobre animais que não demoraram para pô-la nervosa. Sua indignação crescia rapidamente.
Jamie olhou a cerveja do homem, imaginando-se a si mesmo lançando-lhe à cara.
Logo tinha pensado aquilo quando o copo começou a deslocar-se lentamente sobre a mesa. Jamie ficou assombrada, mas continuou olhando-o fixamente. Quando o homem foi recolher sem olhar, já não estava em seu lugar. A morena pôs-se a rir.
Jamie continuava olhando o copo, rezando em silêncio para que se inclinasse... e vertesse seu conteúdo sobre as calças do tipo. E isso foi finalmente o que ocorreu, seguido do ruído do copo ao estelar se contra o chão.
O homem se levantou rapidamente, jogando faíscas.
—Que diabos... ?
Jamie sentia um leve batimento do coração nas têmporas. Tragou saliva, nervosa. Sim, tinha sido ela.
De repente lhe aproximou um jovem com aspecto de estudante universitário, de cabelo curto, jeans de marca, pólo branco e tênis. Sentou-se na cadeira vazia de Damián. Cheirava levemente a vodca.
—Hey, está sozinha? Está tomando algo? —assinalou seu copo.
—Estava desfrutando de um pouco de paz e tranqüilidade até que você chegou. Não me incomode, por favor.
Mas o jovem nem se alterou. Inclusive se aproximou dela, lhe tocando um joelho com o seu.
—É muito bonita, sabia?
Ante o assombrado olhar de Jamie, Damián apareceu por detrás, agarrou-o pelo pescoço e o atirou da cadeira como se fosse um boneco. O jovem se levantou para partir em seguida, acovardado.
Damián deu a volta à cadeira e se sentou escarranchado.
—A próxima vez me avise, d'accord?
Mas Jamie estava muito intrigada pelo que acabava de ocorrer com aquele copo de cerveja para lhe prestar atenção.
Damián ficou olhando pensativo.
«Parece que tem sua própria magia».
Sua voz grave e profunda, ressonando em sua cabeça, tinha-a deixado sem fala. Comunicação telepática? Um sorriso de satisfação apareceu em seus lábios.
Damián tomou então uma mão, entrelaçando os dedos com os seus.
«Você é minha draicara. É normal que nós falemos assim. Esperei tanto este momento, Jamie... Significa que enfim está se abrindo para mim e que a magia escura que havia em você está desaparecendo, por agora... ».
Damián invadindo sua mente. Enchendo-a de energia. Jamie se sentia como se acabasse de beber cem xícaras de café, só que sem a pontada de culpa que estava acostumado a acompanhar à magia escura. Aquilo era diferente. Natural. E entretanto sua intuição lhe dizia que a magia de Damián não era a causa, a não ser o catalisador.
Impossível. Ela não tinha poderes naturais.
Fazendo a um lado aqueles pensamentos, perguntou-lhe, em voz baixa, se tinha encontrado a segunda pista. Damián lhe respondeu mentalmente. Sua voz ressonou em sua cabeça tão claramente como se as palavras tivessem brotado de seus lábios.
«Encontrei as palavras gravadas no tijolo: Roda de pás de Natcbez que significa marca no busto do fracasso francês. Tem que ser a segunda pista».
«O que quer dizer?»
«Pensa nisso. O Natchez é um navio de roda de pás, e desloca a água com... ».
«Não tem sentido. O Natchez se construiu muito depois da morte de seu pai».
«Cada pá da roda», terminou ele. «Assim que o número de pás da roda é o mesmo que a marca de um fracasso francês... ». Franziu o cenho. Quem ou o que podia ser um fracasso francês? «Napoleão. Meu pai estava acostumado a me dizer que seu enorme ego tinha sido seu maior fracasso, a causa de sua perdição», replicou Damián com o pensamento. De repente abriu muito os olhos. Outra pessoa tinha posto ali aquela pista.
Outra pessoa conhecia o esconderijo do Livro. Mas... por que teria deixado ali aquela pista? E por que não levou o livro?
—Saiamos daqui — disse Damián em voz alta.
Enquanto se dirigiam para a saída, passaram por várias mesas cheias de clientes que conversavam e riam. Vários saudaram Damián, lhe lançando olhadas respeitosas.
—Seus amigos? Draicon? —perguntou-lhe ela, uma vez fora.
—Vampiros. Gostam da vida noturna — lhe deu uma piscada.
—Por que está me acontecendo tudo isto? Por que agora? Possivelmente adquiri este poder porque acabo de fazer vinte e um anos?
Damián se voltou para olhá-la.
—Como que tem vinte e um anos? Tem vinte e cinco. E faz aniversário dentro de dois meses. Rafe revisou sua carteira de motorista e...
—Oh, isso. É falso. Mark alterou uns quantos dados depois que fui viver com ele. Sabia a maneira de introduzir-se no sistema informático e realizar alterações. Disse-me que assim alcançaria antes a idade adulta legal e adquiriria a herança de nossos pais, de maneira que nosso tio não pudesse me tocar.
—Seu aniversário é hoje?
Jamie respondeu com um encolhimento de ombros. Damián a olhou enternecido.
—Felicidades.
Tomaram a rua St. Philip e continuaram para o colégio McDonough. De repente Jamie sentiu que lhe arrepiava o pêlo da nuca.
«Alguém nos está seguindo».
Ruborizando-se de novo, deu-se conta de que acabava de usar sua capacidade telepática. Damián se limitou a assentir com a cabeça.
«Caminha diante de mim», disse-lhe, e ficou atrás.
De repente Damián se deteve e se virou rapidamente. Jamie soltou um suspiro exasperado quando reconheceu ao jovem que se aproximou dela no bar.
—Hey, bonita. Como é que vai com este estúpido? —fulminou Damián com o olhar.
—Nos deixe em paz — lhe ordenou Damián.
—Não te tenho medo — o tipo elevou o queixo, desafiante. Suas mãos se converteram em garras.
—É um draicon, mas sem manada — informou Damián a Jamie enquanto se colocava adiante, para protegê-la.
—Me entregue à fêmea. Necessito-a para fecundá-la. Tem um aura de poder que me fará ainda mais forte. Desafio você.
Jamie contemplou assombrada como começavam a lhe crescer as presas. Damián esboçou um lento sorriso.
—Como queira. Cometeu um engano. Mas aqui, na rua, não. Há muitos olhos.
Saltou a grade que separava o colégio da calçada e se internou no jardim, ao amparo das sombras. O outro draicon o seguiu, e com um gesto se desembaraçou da roupa. Uma vez nu, rapidamente se transformou em um grande lobo negro.
Damián fez outro gesto com as mãos e sua roupa se desvaneceu. Ato seguido se transformou em um lobo Alpha ainda maior e poderoso.
Jamie ficou sem fôlego vendo como os dois animais se encetavam em uma briga, furiosos. Quando pôde recuperar-se, saltou também a grade e, com o pensamento, fazendo um esforço supremo que lhe provocou uma violenta pontada de dor no cérebro, lançou o lobo negro para trás, contra a parede mais próxima. O lobo grunhiu, aturdido pelo golpe, sangrando por uma ferida no focinho. Logo, em uma carga suicida, lançou-se contra Damián, que o esperava paciente.
Jamie se deu conta que Damián teria sido capaz de matá-lo sozinho. Lutava pelo direito a emparelhar-se com ela e fecundá-la. De repente era como se conhecesse perfeitamente as leis daquele mundo animal. No entanto, não podia consentir que acabasse com a vida daquele imprudente e descuidado draicon.
Ignorando a dor que lhe ferroava as têmporas, Jamie se esforçou por concentrar-se. Justo no momento em que Damián se dispunha a cravar as presas no pescoço do outro macho, Jamie os lançou para cima. Com um esforço supremo de vontade, durante uns segundos conseguiu mantê-los no ar, separados.
Damián recuperou de repente sua forma humana e se vestiu. Jamie o baixou lentamente ao chão. Aproximando-se dela, embalou-lhe o rosto entre as mãos.
—Jamie, baixa-o. Posso sentir sua dor.
Baixou lentamente ao lobo negro. Logo se sentou no chão, gemendo.
—Minha cabeça... dói. Me dê uns minutos, por favor.
Damián lhe massageou brandamente as têmporas. O contato de seus dedos era terno, reconfortante. Parte da dor se evaporou. Levantou-se por fim, aliviada. O outro lobo tinha recuperado também sua forma humana.
—Poderia lhe haver feito mal —lhe recriminou Damián— Estava tão obcecado por tê-la que infringiu a primeira regra: a de proteger a seu casal, ou a quem quer que seja.
—Sinto — replicou baixando a cabeça, submisso.
—Precisa se incorporar a uma manada. A solidão entre humanos não te ensinou nada. Precisa ir com os teus — lhe deu um endereço— Amanhã vá a essa casa, pergunta pelo Raphael e conte o que passou. Diga-lhe que eu te enviei. Se mostrar suficiente humildade, te aceitará.
Envergonhado, o macho lhe deu agradeceu antes de retirar-se.
Jamie se apoiou em Damián, com um gemido. Usar a magia sempre tinha um preço. E o que acabava de pagar tinha sido muito alto.
Sentia na carne a própria dor de Jamie. Estava fria como o gelo. Apavorado, revisou-lhe o pulso. Muito lento.
Olhou-lhe as unhas: eram cinzas, como a pedra. A magia havia tornado a ativar o feitiço mortal. Levantou-a em seus braços como se fosse uma pluma. A rua estava deserta.
De repente escutou uns passos. Lentos, mas decididos. Ameaçadores. Um grupo de dez pessoas se dirigia para ela. O instinto o impulsionava a lutar, mas não podia arriscar-se com Jamie ali. Com ela nos braços, internou-se no escuro jardim da escola. Baixou-a ao chão e tirou seu celular para chamar Raphael.
—Jamie está ferida e tenho companhia.
Não precisou dizer nada mais. O grupo de morph se dirigia para ele. Rapidamente, converteram-se em um enxame de furiosas vespas.
Não ficou outro remédio. Com seu corpo protegeu o de Jamie. As vespas revoaram em torno dele, picando-o sem cessar. Atravessavam-lhe a camisa de seda, arrastavam-se por seu pescoço e suas mãos, procurando a pele nua. Só podia esperar que sua magia lhe permitisse recuperar-se antes que a alergia o atacasse. Sobrepondo-se à dor, manteve-se firme. Várias vespas o picaram nas bochechas, nos ouvidos, avançaram até seus olhos. Fechou-os com força. Foi inútil. Picaram-lhe nas pálpebras. Apertou os dentes.
Minutos depois, ouviu o rugido de várias motos. Com os olhos fechados, esperou.
—T'frére. Oh, merde —Raphael o ajudou a levantar-se. O solo estava coberto de vespas mortas, fulminadas por sua poderosa magia.
—Leve Jamie para casa. Está muito mal — murmurou com os lábios inchados pelas picadas.
Elevou nos braços Jamie e a montou na moto de seu irmão. Ardiam-lhe os braços e as pernas. Comunicou-se com ela com o pensamento:
«Vá com Rafe. Logo me reunirei contigo».
—Eu cuidarei dela — lhe prometeu Raphael, fazendo rugir o motor— E você?
—Irei a pé — passou uma mão pela cara inflamada.
—Não está bem. Deixa que te leve.
Negou com a cabeça: tinha que arrumar-se sozinho. Quando os motoristas partiram, internou-se nas sombras. Tinha a sensação de que pesava o dobro. A pele lhe ardia.
Deixou-se cair ao chão e permaneceu imóvel durante uns segundos, feito um novelo. Controle, disciplina: isso era o que necessitava. Quando Jamie o infectou com uma enfermidade que esteve a ponto de matá-lo, essa foi sua receita para combater a dor. Ninguém de sua manada suspeitou até que ponto tinha sofrido. Continuou dando ordens até na cama. Permaneceu sempre ao mando, preocupado por sua gente.
«Pode fazê-lo. Não é nada». Se levantou e pôs-se a andar. Quinze minutos depois se deteve, já mais recuperado. Seu corpo estava começando a curar-se, a inflamação minguava.
Seguiu andando. Se apareciam mais morph, poderia lutar. Não o queriam morto: sua intenção era feri-lo, debilitá-lo. Os chamarizes que tinha plantado Rafe para essa noite tinham fracassado. Estavam seguindo todos seus movimentos.
Quanto a Jamie, seus poderes recém descobertos apresentavam tantas possibilidades como preocupações. Dentro sempre tinha se escondido uma grande fonte de poder à espera de ser explorada. E já tinha começado a fazê-lo, certamente: sua energia era como um geiser. Porque a magia de Damián não só deveria ter servido para atrasar os efeitos do feitiço mortal, mas também para outorgar poder a ela. Mais poder do que ele mesmo possuía.
Mas precisava aprender a controlar-se. Ele poderia lhe ensinar, mas muitas perguntas continuavam sem resposta. O que era Jamie? Uma humana com tremendos poderes psíquicos, capaz de matar só com a mente? O vínculo entre eles já existia; só podia esperar que seguisse crescendo. Além disso, o feitiço mortal permanecia ativo. Procurou afugentar esse pensamento enquanto se concentrava em curar-se.
Quando chegou à rua Bourbon, já tinha se curado de tudo. Seu celular soou nesse momento.
—Já não está tão fria — o informou seu irmão— Suponho que se inteirou que nosso plano falhou.
—T'me dispas — repôs, irônico— O que passou?
Damián tinha espalhado que levaria Jamie ao City Park. Dois dos amigos de Raphael tinham assumido as figuras de Damián e Jamie: para isso tinha sido necessária uma enorme quantidade de magia, com o concurso de várias poções. Desgraçadamente, e ao contrário dos morph, os draicon não podiam manter esse aspecto durante muito tempo.
—Foram ao parque, mas ninguém os seguiu. Esses malditos adivinharam que só eram chamarizes. Alguém te está espreitando, t'frére. E não consigo entender por que.
—Já descobrirei — cortou a chamada.
Pouco depois chegava à casa de Raphael. Seu irmão adotivo estava sentado no sofá do salão, com um notebook sobre os joelhos. Olhou Damián.
—Joga uma olhada nisso — mostrou o complicado mapa que aparecia na tela— Está protegido com contra-senha. Cada vez que se produz um ataque dos morph, registro-o no computador.
—É perigoso, se alguém o encontrar. Ou se penetrarem em nosso sistema informático.
O mundo dos computadores inquietava Damián, como se encerrasse uma latente ameaça.
—Que o tentem. É seguro. Tenho verdadeiros gênios a meu serviço.
Damián já se dispunha a abandonar o salão quando se deteve.
—Ainda não te agradeci pelo que tem feito. Por mim e por todos os de nossa raça, Rafe. Assim... obrigado.
Entrou sigilosamente no dormitório de Jamie. Na grande cama de dossel, parecia dormir profundamente, com sua expressão alheia a todo sofrimento. Incapaz de resistir, deu-lhe um beijo na testa.
De repente teve a sensação de que algo ia mau. O terror martelava no peito. Inclinou-se para ela, contemplando-a fixamente.
Seu precioso cabelo escuro estava com mechas de cinza. Outro sinal que o feitiço mortal seguia avançando.
O pesadelo chegou pontual. Annie estava gritando e ele não podia chegar junto a ela. Agudas garras se arrastavam pelo chão de ladrilho da mansão, aproximando-se por momentos. Encolhida na cama, aferrava-se a seu cachorro de pelúcia. As garras estavam já a seu lado, Annie gritou ainda mais. De repente os gritos se fizeram menos agudos e o rosto de sua irmãzinha trocou... para converter-se no de uma mulher adorável, de preciosos olhos cinzas.
Os morph queriam matar Jamie. Damián despertou sentindo um leve peso sobre seu peito. Era Jamie que se aconchegou contra ele placidamente adormecida. Pestanejou várias vezes, assombrado.
Essa noite, ela tinha sonhado com ele. E tinha entrado no pior de seus pesadelos para consolá-lo com sua presença. Cuidadoso de não despertá-la, acariciou-lhe o cabelo já cinza. Por que tinha ido a ele em sonhos, dessa maneira? Que classe de vínculo estavam forjando entre eles? E... quanto poder ficaria ainda por revelar?
A música mesclada com as fortes vozes masculinas a tiraram de seu sonho. Cruzou um braço sobre o rosto, esforçando-se por despertar. Soltou um gemido quando viu a hora no relógio da mesinha: onze. Tinha dormido toda a noite de um puxão. Tinha tido horríveis pesadelos nos que Damián tinha estado perdido, sozinho, triste... e lhe tinha devotado um pouco de consolo.
E logo estava o outro pesadelo, em que centenas de vespas o tinham atacado... Não, não tinha sido um sonho. Recordou tudo de repente enquanto passava uma mão pela face. Não estava ferida. Damián a tinha protegido com seu corpo.
Usou o banheiro e logo recolheu a escova para desembaraçar os cabelos. No espelho viu seu pálido rosto e seu cabelo... «Oh, meu Deus», exclamou para si. Cinza. Todo ele. Como se tivesse envelhecido anos em umas poucas horas. A escova escorregou entre seus dedos. Olhou as mãos.
Também tinha as unhas cinzas.
Fechou com força os olhos, tentando sobrepor-se à sensação de pânico. Não tinha conseguido nada. Nada. Tinha desenvolvido novos poderes, e esse era o resultado. Só Damián podia atrasar os efeitos do feitiço mortal.
Só contava com ele para que a ajudasse. Já não podia seguir sozinha por mais tempo. Necessitava-o. E entretanto... até que ponto poderia confiar em um lobo assassino?
Colocou um penhoar, o mais grosso que pôde encontrar, e abandonou o quarto. Em pé nas escadas, deteve-se para escutar. As vozes que tinha ouvido antes procediam do salão. E a música era de rock.
Colocou a cabeça pela porta. Repartidos entre o sofá e as poltronas, havia cinco draicon. Estavam Damián e Raphael, mas os outros três eram desconhecidos para ela. E entretanto, ao mesmo tempo, resultavam-lhe estranhamente familiares...
Damián se achava convexo no sofá, descalço: tinha olheiras e uma sombra de barba. Com sua camiseta e seu jeans negros, estava tão sexy como sempre.
Raphael estava sentado em uma poltrona, calçado com suas botas de motorista. Parecia bastante zangado.
—O que te passa, t'frére? —perguntou-lhe Damián. Uma expressão ameaçadora se desenhou nos olhos de Raphael, negros como a obsidiana.
—Meus homens me deram um relatório completo sobre o que passou ontem à noite. No bar algumas pessoas comentaram que tinham visto a pequena Jamie te lançando e a esse outro draicon ao alto, com só a força de sua mente... e lhes mantendo no ar. Gabe teve que lhes lavar o cérebro. Dizer-lhes que se tratava da nova publicidade do circo que tinha chegado à cidade.
Um homem alto e musculoso, vestido com uma jaqueta de couro negro e jeans ajustados, fez um gesto com a mão como lhe tirando importância. Levava um chapéu de cowboy.
—Tranqüilo, Rafe...
—Damián, quem diabos é essa mulher? Não é humana. E que mais faz?
—Não sei. Tem poderes de telequinesia e Deus sabe que mais. Ontem fez vinte e um anos, assim que sua informação estava equivocada. Acaba de descobrir seu poder. Precisamos saber mais sobre seus pais.
—De seu irmão sabemos tudo. Já nos ocupamos desse problema — replicou Raphael com tom duro.
A Jamie lhe encolheu o coração. Estirou o pescoço para ver melhor... até que de repente compreendeu tudo. Aqueles eram os draicon que estiveram com Damián a noite que assassinou Mark. Os que o ajudaram a acabar com a vida de seu irmão.
As mãos começaram a lhe tremer violentamente. Retrocedeu um passo. Damián virou a cabeça para ela, abrindo as aletas do nariz como se cheirasse algo.
—Entra — lhe disse— Sei que está escutando, Jamie.
Reunindo toda a coragem que foi capaz, avançou. Como Raphael e o draicon do chapéu de cowboy, os outros três ocupavam também as poltronas. Um levava jeans e uma camiseta pólo. Tinha os cabelos castanhos, primorosamente cortados, e os olhos azuis bondosos. O outro era mais magro, com os cabelos compridos até os ombros, grisalhos; vestia jaquetão verde oliva e calças de camuflagem. Seus olhos, de um azul mais claro que os de seu companheiro, tinham uma expressão hostil.
—Entra de uma vez, Jamie. Não passa nada.
Aquela voz tranqüila e acariciadora conseguiu limpar seus medos. Damián se adiantou para ela. Então voltou a recordar tudo. As vespas. Tinha-a protegido com seu corpo.
—As vespas... atacaram-lhe.
—Estou bem, Jamie — lhe assegurou com tom suave.
—Lançou-se em cima de mim, evitou que me picassem.
—Eu sempre te protegerei, chére. Até o último fôlego.
Apresentou-a aos outros. Etienne era o dos olhos bondosos, Alexandre o do jaquetão verde oliva e Gabriel o do chapéu de cowboy. Lhe disse que eram seus irmãos mais velhos.
—Ficarão aqui por um tempo. Mais amparo. Além disso, eles sabem mais sobre os Velhos Poderes, os que nossa gente tinha antes — lhe explicou Damián.
—Seus irmãos mais velhos? Quanto mais velhos?
—Etienne é o mais velho. Tem trezentos e sete anos.
Um homem-lobo mais antigo que a Declaração de Independência de 1776. Mesmo nervosa como estava, lançou-lhes um olhar gelado:
—Já poderão deixar de me olhar assim. Não sou um prato de carne crua.
Damián lhe deu um beijo em uma têmpora, sorrindo. Etienne também sorriu. Gabriel soltou uma gargalhada. Enquanto isso tanto Alexandre como Raphael reagiram surpreendidos.
—Prazer em conhecê-la, Jamie — lhe disse Gabriel, levando um dedo ao chapéu—Está claro que é a companheira de Damián. A não ser que lhe tenha jogado um feitiço...
—Sim, Jamie é minha companheira — o interrompeu Damián— E o feitiço jogaram nela, não em mim.
—Claro, t'frére. Mas... que classe de poder tem? —perguntou Etienne a Jamie.
Alexandre se voltou para ela.
—Isso, diga-nos isso pequena Jamie. Que poderes são os teus?
—Só uma pergunta antes que comece o interrogatório... por que mataram meu irmão Mark?
Os cinco draicon se olharam em silêncio. Jamie esperou, procurando não mostrar nenhuma emoção. Mas o que não podia dissimular era seu medo.
—Ah, Jamie — disse de repente Damián— Como foi que... ?
—Vi-lhes aquela noite. Eu estava no edifício vazio que estava ao lado do beco. Apareci na janela e vi a todos... Damián, você se transformou em lobo e...
—Merde — resmungou Alexandre.
—Maldição — murmurou Gabriel, tornando o chapéu para trás.
—Conta-me Damián.
Jamie se esticou quando ele tomou as mãos entre as suas. Seu contato deveria lhe haver resultado quente e acariciador, mas só sentiu frio, uma amarga fúria.
—Seu irmão não morreu como disse o informe policial. Morreu muito antes. O que você acreditava que era Mark... era um morph. Eu, com meus irmãos, o caçamos e o matamos.
—Mentiroso. Está me dizendo que nem sequer conhecia meu próprio irmão?
—Mark morreu na cabana do rio, quando tentou resgatar aquele cão. O cão era um morph, que matou Mark e adotou logo sua figura. Eu soube que seu irmão era um morph a mesma noite em que te conheci.
—Era Mark. Eu te vi e vi Mark. Ouvi seus gritos enquanto todos vocês o faziam em pedaços. Você o matou...
Uma expressão de arrependimento se desenhou nos olhos de Damián.
—Jamie agora entendo por que tentou me matar; queria se vingar. Tudo encaixa. Mas eu nunca teria feito o menor dano a um inocente, e menos ainda a um ser querido seu.
—Demonstra-o.
—Rafe, me traga os documentos. — Jamie se sentou. Segundos depois vários papéis aterrissaram em seu colo. —É autêntico.
Tratava-se de um contrato. Leu-o com atenção.
—Não, Mark nunca teria alugado uma cabana de caça. No Novo México? —entre as páginas havia uma fotografia. Nela aparecia seu irmão com uma cabeça de cervo a modo de troféu. Sentiu uma náusea— Mark teria sido incapaz de fazer mal a um animal.
—Era um morph. Usou a identidade de Mark para alugar uma cabana perto da minha manada no Novo México... e nos dar caça —se ajoelhou frente a ela— Jamie, sei que você nos viu matar ao morph. Se tivesse detectado seu cheiro não teria deixado que visse isso. Oxalá tivesse conhecido seu irmão. Tenho entendido que era uma grande pessoa.
Confusa, perplexa, ficou a revisar de novo os papéis. Desde a morte de Mark, tinha tido um objetivo claro na vida, uma meta motivada pela dor e pelo ódio. Agora esse mundo se derrubava em pedaços.
Como podia ter vivido durante tantos meses com um impostor? Esforçou-se por agradá-lo. E entretanto, depois daquele dia no rio, seu irmão tinha começado a mudar. Suas saídas em plena noite, quando antes não tinha tido esse costume. O temor que ela mesma tinha começado a sentir que seu irmão tivesse se convertido em outra pessoa...
O simples feito de ter confundido um morph com seu irmão bastava para destruir seu autoconfiança. Damián não cessava de insistir em quão importante era a família. Que a família era tudo. Para ela, entretanto, a família era algo muito diferente.
—Dá igual —murmurou— Mark já não está. Não tem sentido que sigamos falando dele.
—O que estava fazendo naquele edifício tão tarde, Jamie? —perguntou-lhe Damián— Te disse Mark que fosse ali? — ao ver que ela assentia com a cabeça, amaldiçoou em voz baixa— O morph tinha que te tirar de sua casa porque seu escudo lhe impedia de fazer ali magia escura. Levou-te ali por uma razão, chére. Provavelmente porque queria te matar.
Tragou saliva, aterrada, reconhecendo a pura lógica daquelas palavras. A linha que separava o branco do negro se esfumava. Damián o assassino e Mark a vítima. Seu irmão tinha sido um morph, e Damián lhe tinha salvado a vida. Tinha vivido com o mal durante meses, sem ser consciente disso. E logo tinha complicado ainda mais as coisas.
De repente via com claridade as conseqüências de suas próprias ações. Se não tivesse atuado tão impulsivamente, determinada a fugir depois da morte de Mark, em vez de deter-se e pensar, não estaria nesse momento naquele apuro. Mas tinha procurado vingança, lançou-se nos braços do mal para consegui-la, e agora estava sofrendo um feitiço que a estava convertendo em pedra, em estátua viva.
Levantou-se, cega pela dor, pela raiva e o desprezo para si mesma. Abandonou o salão e saiu da casa pela porta traseira. Uma vez no jardim, deixou-se cair em uma cadeira.
Mas as lágrimas não chegavam. Cabisbaixa, abraçou-se e começou a balançar-se para diante e para trás. Pouco depois ouviu aproximar-se Damián.
—Se afaste de mim. Vá. Não há nada bom em mim que você possa querer. Por favor, me deixe em paz...
—Eu nunca te deixarei. Você é agora minha vida — aproximou uma cadeira e se sentou frente a ela— Atuou movida pela dor e a lealdade, como eu mesmo teria feito. Oxalá te tivesse encontrado antes, para te contar tudo isto. Possivelmente se tivesse me esforçado mais...
Toda a culpa era dela, e entretanto ele culpava a si mesmo... Consternada, entristecida, olhou as unhas cinzas.
—Vou morrer, verdade?
—Não se podemos evitá-lo —replicou, decidido— Encontraremos uma maneira. Encontraremos esse livro. Mas seus poderes... temos que falar disto, Jamie. Você tem umas capacidades extraordinárias, o qual explica que esteja destinada a ser meu casal. Mas, usando esses poderes, acelera ao mesmo tempo os efeitos do feitiço.
—Ok. Então falemos disso. Possivelmente seus irmãos saibam o que está passando... — levantou-se da cadeira.
De volta no salão, os irmãos de Damián se comportaram como se não tivesse acontecido nada estranho. Jamie se sentou no sofá e Damián se instalou a seu lado. Sua presença lhe dava segurança: era como uma rocha firme em um turbulento mar de emoções.
—De acordo — começou ela— vocês têm um conhecimento que eu não tenho. Podem me explicar como é que possuo todas estas habilidades ou poderes? E como é que me vieram agora, de repente? Eu sou humana.
—Possivelmente não — disse Alexandre, olhando-a com expressão pensativa— Poderia ser a última descendente de nossa raça original, antes que tivéssemos que nos dividir em dois para reduzir nossos poderes.
—Me digam uma coisa... como é que esses morph nos seguiram o rastro ontem à noite? Parecia que controlavam até o último movimento de Damián.
—Eu estive pensando o mesmo — Raphael franziu o cenho— Meus homens identificaram cada movimento dos morph no computdor: não deixaram de lhes seguir nem um só momento. Sempre que aparecia Damián, ali estavam eles. É quase como se lhe tivessem implantado um chip com um GPS, t'frére.
—Ou um chip morph — acrescentou Alexandre, e todas os olhares se voltaram para Jamie.
Suspeitavam dela, o qual era perfeitamente normal. Tinha tentado matar seu irmão. E tinha vivido rodeada de morph.
—Eu antes percebia a presença dos morph —reconheceu Jamie— Podia fazê-lo antes que Damián me transmitisse sua magia. Agora já não.
Damián lhes explicou brevemente a capacidade que Jamie tinha tido de detectar aos morph.
—Possivelmente disponham de um sofisticado sistema informático —sugeriu ela—Você tem um —disse a Raphael— Por que não teriam que usar tecnologia informática? Ou inclusive piratear seu sistema?
—Nosso sistema é impossível de piratear — repôs Raphael, tenso.
—Nada é impossível de piratear. Mas deixemos isso para depois. Antes quero lhes ensinar algo.
Jamie subiu em seu quarto a pegou seu notebook. Minutos depois voltava a sentar-se no sofá, ao lado de Damián. Ligou-o.
—Quando abri o notebook de Renee, fixei-me na lista de webs que havia em seu histórico. Este é um enlace que me chamou a atenção, além dos das lojas de antiguidades. Uma página do MyPlace.
Abriu o enlace. Sobre fundo negro se viam múltiplas fotos de cantores e grupos famosos, com uma janela de vídeo em que aparecia uma popular estrela de rap. A página pertencia a alguém chamado Rocker21 NOW.
—Esta Web funciona como um meio de comunicação com outras que compartilham o mesmo código cifrado. Um conhecido seu está rastreando nossos movimentos. Alguém está recebendo ordens diretas sob a mesa. Alguém familiarizado com a informática.
—Como sabe? —perguntou-lhe Damián.
—Cada página Web está cifrada com um código tipo HTML ou Java. Alguém familiarizado com a informática pode ler esse código. Eu o revisei, mas há um texto criptado como uma mensagem secreta: símbolos que não consigo decifrar. Acredito que assim se comunica o infiltrado com seu chefe, lhe transmitindo todas as pistas e direções.
Raphael amaldiçoou em voz baixa,
—Assim temos um espião — resmungou Alexandre, desencapando sua faca e olhando Jamie— Quando pusermos a mão em cima, ele ou ela... quem quer que seja, pagará caro.
Jamie empalideceu, aterrada. Damián tomou então delicadamente seu queixo. Seu quente e reconfortante contato a fez esquecer-se de todo o resto.
—Jamie, não faça conta. Não deixarei que ninguém te faça mal — e lançou a Alexandre um olhar de advertência.
O outro draicon embainhou a faca. Os irmãos se despediram e partiram. Jamie fechou o notebook.
—Se vista — lhe pediu Damián, tranqüilo e seguro como sempre— Temos que encontrar a seguinte pista. Tomaremos o café da manhã pelo caminho.
Averiguaram o número de pás da roda do Natchez e voltaram para casa essa mesma tarde. Quando Damián lhe ofereceu outro misterioso coquetel, Jamie adivinhou que se tratava de seu sangue, mas o bebeu de toda forma. As unhas recuperaram sua cor normal, mas não o cabelo.
Damián insistiu que descansasse. Tinha que fazer um recado com seu irmão Etienne, mas a mulher de seu irmão, Cindy, e seus filhos, ficariam na casa. Assegurou-lhe que estaria perfeitamente a salvo.
Logo a informou que o jantar familiar se serviria às sete. Jamie estremeceu. Jantar familiar? Não pensava em descer, mas não o disse.
Dormiu imediatamente. Várias horas depois, algo lhe fez cócegas no nariz. Despertou lentamente, sentindo-se muito mais forte.
Enfocou com o olhar um rosto pequeno e delicado. Estava-lhe soprando o rosto.
—Ana, deixa-a. vai despertar e é a hora da sesta — pronunciou uma voz infantil, de menino, com tom sério.
—Mas é que parece divertida e eu quero brincar.
Jamie se sentou na cama, esfregando os olhos.
—Vê? A despertou.
Estava rodeada por quatro crianças. Incluindo duas graciosas gêmeas com tranças.
—Olá. Olhe um comitê de boas-vindas... Ou é o serviço de quarto?
As crianças puseram-se a rir.
—Eu sou Ana — disse a pequena que a tinha despertado— E você é a tia Jamie, a companheira do tio Damián. Tenho cinco anos. Acabo de celebrar meu aniversário com um bolo rosa e um montão de presentes.
—Sério? Eu cumpri anos ontem mesmo —sorriu Jamie— E eu adoro os bolos de cor rosa.
—Bom, pode comer do meu. Ainda sobrou algo.
—Eu sou Michael — disse o menino da voz séria. Tinha os cabelos de cor castanha e uns olhos azuis de olhar sereno, plácido— Tenho oito anos e sou o mais velho. Disse a Ana que não te incomodasse.
—Não passa nada — lhe assegurou Jamie— E vocês quem são? —dirigiu-se às gêmeas.
As meninas se apresentaram: Sophie e Sandy, de sete anos. Começaram a tagarelar sobre a casa, os quartos em que estavam...
Ana. A irmãzinha de Damián se chamava Annie. O coração lhe acelerou. Aquela menina loira, de rosto angelical, nunca teria nada que temer. Seu tio Damián se lançaria sobre qualquer um que ousasse lhe fazer dano.
Aquela menina era o que se supunha devia ser a infância: risadas, carinho, uns braços que a acolhessem nos maus momentos. Justamente o contrário do que tinha sido sua própria infância.
Damián entrou correndo na casa alarmado pelos gritos e ruídos que se ouviam desde lá fora. Elevou o olhar. Fixado à parede do primeiro piso, ao outro lado do corrimão, havia um aro artesanal de basquete feito com papel de alumínio.
Jamie apareceu correndo no patamar superior. Ia atrás da Ana, que corria fazendo pulsar a bola com as duas mãos. De repente a agarrou e saltou com a menina nos braços por cima do corrimão...
Damián sentiu que o sangue lhe gelava nas veias.
—Ana! —gritou naquele momento Etienne, soltando as sacolas de compra.
Jamie se agarrou à aranha de cristal. A cinco metros de altura, sujeitava à pequena com um braço enquanto se agarrava ao abajur com a outra mão.
—Joga — a animou.
Damián contemplava a cena suando de medo. Ana se dispôs a lançar a bola. Mas justo nesse momento Jamie soltou a aranha. Tanto Etienne como Damián correram para colocar-se debaixo, com a intenção de agarrá-las em sua queda.
Mas não caíram. Jamie flutuou para o aro de basquete, levantando Ana, que lançou por fim a bola.
—Cesta — gritou a menina enquanto a bola caía aos pés de Damián.
Ana soltou uma gargalhada de pura felicidade. E Jamie parecia divertir-se tanto como ela. Etienne, pálido, abriu os braços.
—Ana... vêem com papai.
Com o coração na garganta, Damián contemplou como Jamie descendia lentamente com a menina nos braços.
—Outra vez! Outra vez, Jamie! —chiava a pequena.
—Depois. Seu papai se assustou um pouco.
Etienne levantou sua filha nos braços. O frio olhar que lançou a Jamie enquanto partia teria sido capaz de congelar o inferno.
—Em que diabos estava pensando? — espetou-lhe Damián.
—Não estava pensando. Estava jogando. As crianças queriam divertir-se, assim... por que não?
—E se tivesse caído? Não te ocorreu pensar nisso? Ana é minha sobrinha e não quero que lhe aconteça nada mau, entendido? Muito recentemente descobriu sua magia e além disso... Como pode ser tão irresponsável? —estava furioso— Não voltará a fazer magia, Jamie. Já sabe que cada vez que o faz, acelera os efeitos do feitiço. E minha magia não pode mantê-lo bloqueado para sempre.
—Não sabia que tinha estes poderes... E se for morrer, quero ao menos experimentá-los enquanto posso.
—Não vai morrer. Não deixarei que isso aconteça.
—E eu jamais faria o menor dano a uma crianças —acrescentou Jamie cruzando os braços sobre o peito, como se estivesse ofendida.
—Ana é muito pequena. Podia lhe haver acontecido algo.
—Damián... —passou uma mão por seu cabelo cinza— a vida é um risco. Não pode encerrar uma criança em uma jaula para protegê-la. É assim como tratam as crianças de sua manada?
— As crianças de nossa manada raramente saem de casa. Não é seguro. Nosso território é atacado constantemente pelos morph.
—Alguma vez deixam que se divirtam? Que corram por aí, como fazem as crianças humanas?
—Não.
Com o ataque constante dos morph, a diversão se converteu em um conceito desconhecido para os draicon. Damián tentou recordar a última vez que se divertiu. Viu-se dançando música cajún na velha cabana do igarapé, jogando futebol com seus amigos, cultivando o jardim, pescando no arroio próximo...
Como uma terna carícia, sentiu Jamie entrar em sua mente, para compartilhar aquelas cenas. Sim, antigamente tinha desfrutado da vida. Mas agora as risadas se apagaram. E qualquer animal do campo podia esconder um morph.
A família e a manada eram tudo. Irritado, entrecerrou os olhos.
—Tenho uma manada que liderar. Eles são minha responsabilidade, e você também o é. Minha vida se resume a não perder a mais ninguém.
Jamie se apoiou na parede, cansada. Tinha esbanjado muita energia. Mas sua voz estava carregada de paixão.
—O que foi que te passou, Damián? O que te passou para que se esquecesse de viver?
“Annie morreu. Tive seu corpinho morto em meus braços. E tudo por culpa das malditas conseqüências de meus atos. De minha própria negligência.”
—Vivi ataques contra minha gente. Vi a membros de minha manada tornarem-se seres malvados, sedentos de sangue. Vi tudo isto durante oitenta anos, que são os que tenho, assim não me dê lições sobre como devo ou não devo viver.
A viu se aproximar. Jamie tomou uma de suas mãos e começou a lhe acariciar os dedos.
—Oh, Damián... —murmurou— Isso é vida, claro. Mas não é viver.
Fechou os olhos, estremecido. Ansiava estreitá-la em seus braços, beijá-la até lhe fazer perder o sentido, lhe fazer amor uma e outra vez... Possuí-la ao final.
—Mas é minha vida, e vai bem assim.
—Claro. É muito velho para mudar.
—Não sou tão velho.
—Demonstre-me isso então — o desafiou— Sai comigo esta noite. Divertiremo-nos juntos.
Damián lhe cobriu a mão com a sua.
—Você não vai sair.
—Está me dizendo que o grande lobo que se sacrifica por sua gente não é capaz de me proteger dos perigos da rua Bourbon?
Jamie levou sua mão aos lábios... para lhe lamber lenta, meticulosamente os nódulos. Damián reprimiu um gemido, cada vez mais excitado.
—Vamos, Damián... Saiamos a desfrutar um pouco da vida.
—Depois do jantar. Esta noite jantaremos todos juntos. Como uma família.
Não lhe passou despercebido o olhar receoso de Jamie.
—Mas logo sairemos você e eu sozinhos?
—Deseja-o realmente?
Jamie assentiu com a cabeça.
Damián cantarolava uma canção cajún enquanto terminava de barbear-se. O banheiro estava cheio de vapor. Com uma toalha à cintura, olhou-se pensativo no espelho. A lua cheia estava a ponto de sair.
Percebendo sua presença, voltou-se para descobrir Jamie na soleira. Percorreu-o com o olhar, de cima abaixo. Com um sorriso nos lábios, aproximou-se para ficar a brincar com o nó de sua toalha.
—Vista-se, Jamie.
—Já estou vestida. Não preciso mais para ir à rua Bourbon.
—Muito bem. Pois eu irei assim.
E tirou a toalha. Jamie soltou uma exclamação e se afastou rindo.
Vinte minutos depois, reuniu-se com ela no vestíbulo. Levava um vestido vermelho, comprido até os joelhos, com um decote em v e umas luvas de cetim negro. Damián ficou sem fôlego.
—Está preciosa.
—Você tampouco está mau.
Damián sorriu, embelezado com seu elegante traje Armani. Ofereceu-lhe seu braço, galante.
—Vamos?
Enquanto caminhavam pela calçada, tentou relaxar. Se tudo aquilo servia para fazer feliz Jamie e ajudá-la a que confiasse nele, faria-o encantado.
Quando chegaram ao Ursuline y Royal, Jamie se deteve. Um grupo de visitantes formava redemoinhos frente à entrada do convento de monjas ursulinas. A luz de uma lanterna revelada suas expressões fascinadas.
—Uma excursão ao mundo dos vampiros — disse ela— Eu adoro estas coisas. As pessoas reagem de uma forma divertida ao ouvir essas histórias. Alguns até acreditam em fantasmas.
—Que estúpidos... — comentou, irônico.
Incorporaram-se ao grupo, de umas quinze pessoas. O guia lhes estava explicando uma lenda local.
—Quando o convento era uma escola, as garotas da França vinham com grandes baús de aspecto misterioso. Diz-se que nesses baús transportavam aos vampiros.
—Vampiros franceses viajando em baús baratos — murmurou Damián, cético— Todo mundo sabe que os vampiros são uns presumidos. Por nada do mundo se arriscariam a manchar o traje.
—Ssshh, estou tentando ouvir algo.
—Hey, eu só queria fazer uma brincadeira...
Um adorável sorriso apareceu em seus lábios. Damián não desejava outra coisa que beijá-la. O guia lhes assinalou as janelas do primeiro piso, pertencentes aos dormitórios.
—E as garotas, conforme se diz, convertiam-se em vampiros uma vez que os baús ficavam armazenados no sótão. As monjas o fechavam, e já não permitiam subir a ninguém, temerosas que escapasse o mal que habitava ali...
Damián soltou então um rouco grunhido. Uma mulher se aferrou ao braço de seu par, aterrada.
—Ouviu isso? Lobos!
Damián sorriu, dando em silêncio razão a Jamie. Aquilo era realmente divertido.
Em Jamie deu tal ataque de risada que não ficou mais remédio que abandonar o grupo.
—É a primeira vez que te ouço rir com vontade — lhe disse ele.
—O mesmo digo de você.
Olharam-se sorridentes, como dois meninos que acabaram de descobrir um jogo novo.
—Vamos. Façamos algo ousado. — disse ela
—Não tem medo de correr riscos?
—Se deixo que isso me impeça de desfrutar do que há lá fora... —fez um gesto com a mão, abrangendo tudo o que a rodeava— nunca viverei de verdade — uma expressão de tristeza escureceu de repente seu rosto— E saber que posso morrer converte isso em algo ainda mais importante —elevou os olhos para as estrelas— É como minha paixão pela magia. Você nasceu com ela, assim provavelmente não a valorize tanto como eu. Pode estalar os dedos e criar essa maravilhosa bola de luz. Eu quis fazer isso durante toda minha vida.
—Por que, Jamie? Por que isso significa tanto para você?
—Suponho que... —tremiam-lhe os lábios— depois de ter perdido tantas coisas... pensei que se adquiria a magia, poderia me sentir especial só uma vez. Não tão... indefesa. Sabe o que é ver como toda sua vida se derruba sem que possa fazer nada para evitá-lo?
—Sim eu sei — a puxou pela mão e continuaram caminhando.
Falaram de sua família, da infância passada no igarapé. Damián lhe perguntou por sua paixão pela informática.
Jantaram na Acmé Oyster House. Pouco depois, quando voltavam para casa, Damián varreu a rua com o olhar, como se percebesse algum perigo. Jamie soltou um suspiro e se deteve de repente:
—Damián, nem todo mundo é seu inimigo.
Voltando-se, tomou delicadamente seu queixo.
—Sim. Nem todo mundo o é. E eu tampouco sou o seu, ma petite. Quando se decidirá a confiar em mim?
Não disse nada. A sensualidade de seus lábios teria podido tentar até a um monge.
—Possivelmente o faça. Quando você se relaxar.
—Com você não posso me relaxar —a atraiu para si.
Damián não pôde resistir. Beijou-a. Sua boca tinha gosto de delicioso mel: queria mais. Um leve gemido escapou da garganta de Jamie enquanto aprofundava o beijo, agarrando-o pelas lapelas.
E, entretanto, Damián detectava nela uma leve resistência, que parecia lutar com a generosidade de seu corpo. Apartou-se, lhe acariciando a bochecha com ternura. Tinha tido sexo com mais mulheres das que podia recordar. Sexo rápido para satisfazer as necessidades de seu corpo; sexo para recuperar a energia fazendo magia. Mas aquilo era muito mais profundo.
—Aonde vamos agora?
Viu que se umedecia os lábios com a língua, um pouco aturdida, como se beijar um homem na rua Bourbon tivesse sido uma experiência completamente nova para ela. Ele, certamente, tinha outras muitas experiências que compartilhar...
Dirigiram-se a um bar de jazz próximo. Damián fez um gesto ao garçom e olhou Jamie, esperando.
—Martini de chocolate.
Interessante. Ele pediu uma cerveja. Ficaram em pé em um canto, escutando à banda. A música era magnífica.
Aos poucos Damián descobriu que seus ombros se relaxavam, que a tensão abandonava seu corpo. Para sua surpresa, deu-se conta que estava desfrutando.
Jamie tinha razão. Precisava relaxar. Relaxar-se e desfrutar. Não havia nada mau nisso. Olhou Jamie, aspirando seu delicioso aroma. Uma luz indireta recortava os traços de seu delicado perfil. Estava lambendo a capa de chocolate da borda do copo, com a ponta da língua.
Mon Dieu. Precisava abraçá-la. Começou outra canção. Voltando-se para ela, tirou-lhe o copo da mão.
—Dança comigo.
A ordem foi pronunciada com um rouco murmúrio. Jamie sentiu a cálida palma de sua mão, seus dedos entrelaçando-se com os seus, com as pontas calosas. Deslizou entre seus braços e apoiou a bochecha em seu largo peito. O corpo de Damián irradiava calor através da seda de sua camisa.
Seu aroma invadia seus sentidos. Se renderia por fim Damián a seu desejo e acabaria possuindo-a? O que lhe impediria de fazê-lo? Ela não, certamente.
De repente se deteve, olhando-a.
—Ei, recorda o que te disse? Jamais te forçarei. Não tem nada que temer.
—Exceto que está pisando em mim. — replicou com tom ligeiro.
Ele pôs-se a rir ao mesmo tempo que voltava a aproximá-la de si, enternecido.
Jamie pensou que Damián era como uma ostra que escondia em seu interior, oculta no mais profundo, uma pérola maravilhosa. E ela o estava descobrindo pouco a pouco. O qual lhe assustava, porque quanto mais descobria dele, mais preciosa lhe parecia aquela pérola.
O problema era que ela não queria nada disso. Necessitava de Damián para encontrar o Livro e uma vez que se curasse do feitiço... partiria. Sem compromissos nem lamentações por isso.
Terminou a canção. Com um fundo de música enlatada, reataram-se as risadas e as conversações. Damián se inclinou para lhe dizer ao ouvido:
—Bom, chére. Você me pediu que relaxasse. Agora é com você. — seu rouco murmúrio provocou um delicioso estremecimento nela.
A promessa de sexo brilhava em seu olhar. Seu corpo reagiu instintivamente a sua demanda.
—Vamos.
Saíram do bar. Sim, quanto mais descobria sobre Damián, mais exposta e vulnerável se sentia. Como se estivesse aproximando-se de algo duradouro, permanente... como a famosa palavra de quatro letras. «Amor».
Mas o amor dava medo. As pessoas se apaixonavam e logo faziam coisas escuras e sinistras. Ela só tinha querido uma coisa na vida: uma família que a aceitasse e a quisesse por ser ela mesma, mas essa família tinha tentado moldá-la de acordo com sua imagem da perfeita Jamie. Seus pais a tinham moldado para ser a boa filha. Seu tio lhe tinha batido para que fosse uma sobrinha submissa. E para Mark nunca tinha sido mais que uma irmã mais nova desejosa por sua aprovação.
—O que acontece? —perguntou-lhe Damián.
—Só estava pensando — sorriu.
Detendo-se a aproximou de si.
—Conta-me.
—Não posso — sussurrou. Apoiou-se nele. Por uma vez, desejou que alguém tomasse conta dela, entregar-se nas mãos de alguém que a cuidasse e protegesse de todos os medos que a espreitavam.
Damián lhe acariciou a nuca. Mas o gesto, em lugar de relaxá-la, excitou-a ainda mais. Estava excitada, desejosa. De repente ele se apartou, olhando a seu redor.
—Vamos para casa. Muitos olhos.
Dobraram uma esquina. Ao internar-se em um estreito e escuro beco, Jamie estremeceu de medo. Tinha percebido algo.
—Maldito seja — murmurou Damián, detendo-se de repente— Não deveríamos ter saído de casa. É muito perigoso.
Olhou-a, desesperado. Logo desviou a vista para a porta fechada de um local. Dirigiu-se para ali, abriu a porta com o pensamento e a fez entrar. Entregou-lhe seu celular.
—Fique aqui. Há vários morph no beco. Se vê aproximar-se algum, aperta o número um do celular. É o do Rafe. Responderá imediatamente.
—Damián, me deixe te ajudar. Agora tenho poderes.
—Fique aqui — grunhiu. Fechou a porta de vidro e partiu.
Com outro gesto de sua mão, sua roupa se evaporou. Imediatamente se converteu em um grande lobo cinza, que pôs-se a correr beco abaixo.
«Ao diabo», pensou Jamie. Ela não era nenhuma mulherzinha indefesa que necessitava que a resgatassem. Abriu a porta. Depois de aparecer cautelosamente, abandonou o refúgio.
A luz da lua banhava o beco. Havia sangue nos muros. Reconheceu Adam, o draicon que Damián tinha golpeado por falhar ao vigiá-la. Havia quatro estranhas criaturas com ele, de cabelos eriçados e compridas presas amarelas. Morph. Estavam-no atacando de uma vez, com suas afiadas garras.
De repente, do fundo do beco, uma solitária figura foi contra eles, armado com uma adaga.
—Ricky — gritou Adam— Cubra-me as costas!
Ricky se somou à briga. Em poucos minutos Damián acabou com a maioria dos morph. Um deles conseguiu escapar.
Pouco depois Ricky se aproximava dela, esgotado. Ofegando pelo esforço, lhe caiu a adaga ao chão. Jamie estirou uma mão para recolhê-la com seu poder mental. O morph que tinha conseguido escapar saltou então sobre ela, mas Damián lhe cravou as presas nos quartos traseiros.
Jamie enviou a adaga diretamente contra o coração do morph, que em questão de segundos ficou convertido em um montão de cinzas. Consternada, olhou-se as mãos. A cor cinza lhe subia agora pelos braços, por cima das luvas negras.
Damián recuperou sua forma humana e se vestiu.
Adam fez o mesmo e se reuniu com eles. Tinha sangue em um flanco.
—Feriu-te? —perguntou Damián a Jamie.
Não podia falar. Agarrou-a pelos ombros.
—Jamie, diga-me...
—Estou bem.
Damián abriu seu celular e ladrou uma ordem. Minutos depois, Raphael e Gabriel apareceram em suas motocicletas. Raphael cedeu a sua a Damián, que montou com Jamie.
Quando chegaram à casa, levou-a escada acima. Uma vez no dormitório, fechou a porta com chave. Despojou-se da jaqueta e a lançou a um lado, furioso. Tenso tirou de Jamie as luvas. As unhas, as mãos e a parte baixa dos braços tinham uma cor cinza chumbo.
Jamie elevou o queixo, desafiante.
—Disse-te que ficasse dentro. Podiam te haver matado.
—Sei cuidar de mim mesma. Tudo saiu bem — suspirou— Não é para tanto.
—Não é para tanto? Eram morph dispostos a te despedaçar, Jamie. Parece que esqueceu isso. Não retrocederão até consegui-lo. Alimentarão-se de seu terror. Esses monstros matam mulheres, crianças... Mon Dieu, Annie nunca teve a menor oportunidade — se interrompeu com expressão atormentada— Nunca deveria ter me deixado convencer por você. Não deveríamos ter saído esta noite: era muito arriscado. Juro-te que jamais, até agora, tinha cometido uma imprudência semelhante.
—Mas o ataque poderia ter acontecido em qualquer parte —replicou Jamie, esforçando-se por tragar sua amargura— E você se divertiu...
—Me divertir? — Fechou os punhos— De que diabos serve isso quando poderia ter morrido? Fala de divertimento quando o perigo nos espreita em cada esquina e sua vida está pendente por um fio. Baixei a guarda e como resultado esteve a ponto de morrer. Não vale a pena.
—E eu? Eu não valho a pena? —gritou.
—Claro que sim, Jamie. É meu dever te manter a salvo. Por isso mesmo, não voltarei a cometer esse engano.
Era um aspecto que não conhecia dele. Estava dirigindo a culpa contra si mesmo, não contra ela. O que lhe teria acontecido para que fosse tão incapaz de perdoar-se?
—Se tão decidido estava a me proteger, por que ajudou Ricky e Adam? Era sua luta. Por que não os deixou lutar sozinhos?
—Porque pertencem a minha manada. Rafe os pôs a meu cargo e eu sempre cuido dos meus. Assim é como funciona a família, Jamie. Está quando lhe necessitam: é um trabalho de equipe. Não entende o valor de uma família unida? —sua voz se suavizou—Estou certo que seu irmão teve que fazer o mesmo por você, em algum momento...
Nunca. Mark sempre esteve mais interessado em sua própria carreira que nas necessidades de sua irmã. Manada, família... ela sempre tinha sido uma solitária. Ninguém a tinha ajudado nunca.
—Para você isso é importante apenas porque você se vê encarregado de tudo e de todos. Você não pode relaxar. Você está obcecados por controle. De si mesmo e dos outros.
—Chére — a olhou furioso—, por seu bem espero que não me veja perder o controle...
Todos os seus músculos estavam tensos, seus olhos verdes a fulminavam como se fossem laser. Mas o corpo de Jamie reagiu a aquela avassaladora masculinidade. Sentiu o batimento do coração de seu sexo. Algo em seu interior pareceu desatar-se: a frustração sexual fervendo como um vulcão.
—Adiante — o desafiou— Estou certa que poderei suportá-lo. Mas duvido que você possa.
Não teve tempo de retirar suas palavras. Damián a puxou pela nuca e se apoderou de seus lábios. Não foi um beijo terno, nem delicado: foi de pura posse. Deslizou a língua no doce interior de sua boca, explorando-a meticulosamente. Jamie soltou um gemido e se aferrou a sua camisa. Fraquejavam-lhe os joelhos.
Um delicioso calafrio lhe percorreu as costas. Damián lhe mordiscou o lábio inferior antes de lamber-lhe sensualmente. Em um impulso, Jamie baixou uma mão para apoderar-se de seu sexo.
—Agora mesmo... —murmurou ele sobre seus lábios— Te possuirei agora mesmo. Não posso esperar mais.
Estava desesperado por entrar nela. Deslizou as mãos ao longo de seus quadris até as fechar sobre suas pequenas e deliciosas nádegas... O aroma de seu sexo o golpeou como uma marreta. Doíam-lhe os testículo, seu pênis era puro aço. Apartando-se, descalçou-se e tirou a camisa. Ofegante e temerosa de uma vez, Jamie o contemplou enquanto terminava de despir-se.
Quando acabou, levantou-lhe o vestido e a tombou sobre a cama. O instinto lhe ordenava penetrar, invadir, conquistar. O lobo que levava dentro reclamava seu direito de emparelhar-se. Colocou-se em cima dela, lhe deixando sentir sua imensa força, seu poder. Enquanto lhe sujeitava as mãos contra o colchão, voltou a encher seus pulmões com o aroma de seu sexo.
Mas se encontrou com seus enormes olhos cinzas. Que diabos estava fazendo? Estava se convertendo em uma fera. Recuperando todo seu autocontrole, soltou-a. «Não a assuste», ordenou-se. «Vá devagar». E a beijou docemente.
Explorou com as mãos seus esbeltos quadris, sua fina cintura. Parecia tão frágil e ao mesmo tempo escondia uma força tão imensa... Era uma sobrevivente, como ele. Era dele. Asseguraria-se que nenhum outro macho voltasse a tocá-la jamais.
Pouco depois Jamie se sentava na cama, surpreendida por sua atitude.
—Se deite de novo — lhe pediu Damián e separou delicadamente suas coxas.
Ficou olhando seu sexo, úmido e brilhante. Seu pênis estava a ponto de estalar.
—É tão formosa... —murmurou, embebendo-se de seu aroma. Tinha que saboreá-la.
Não podia deixar que Damián levasse a iniciativa. Que voltasse a agradá-la. Era um jogo de poder e se ele tomava o mando, ela se veria irremediavelmente perdida.
Ceder significaria algo mais que render-se sexualmente a Damián. Significaria forjar um vínculo ainda mais profundo entre os dois, de maneira que acabaria apanhando-a em seu mundo.
Toda resistência parecia inútil, mas Jamie recorreu a sua força de vontade. Esticou-se, relutante em reagir a suas carícias. Mas justo nesse momento Damián baixou a cabeça e aproximou a boca do seu sexo.
Começou a lambê-la delicadamente, com deliciosa habilidade. Jamie sentiu que ficava sem ar, que a pele lhe incendiava. Continuou lambendo-a, embebendo-se dela, lhe roçando deliciosamente ao mesmo tempo a parte interior das coxas com a incipiente barba de suas bochechas. A tensão aumentou, envolvendo-a em um crescente espiral até que soltou um soluço e alcançou o clímax. Quase desmaiou pela intensidade do orgasmo.
Quando voltou a elevar a cabeça, um brilho selvagem ardia nos olhos verdes de Damián. Sabia que o lobo espreitava atrás. Mas não se manifestou: tinha-o controlado por ela. A maneira de tácita rendição, Jamie tirou o vestido e o sutiã. Deitando-se de novo na cama, estendeu-lhe os braços. Embora lhe assustava entrar em sua manada, em sua família, sabia instintivamente que jamais lhe faria o menor dano.
Damian sentou sobre os calcanhares. Seu pênis parecia a ponto de explodir. Enquanto voltava a colocar-se em cima dela, beijou-a de novo e se dedicou a lhe mordiscar o pescoço. Seus seios eram como deliciosas maçãs de forma perfeita, com seus mamilos duros e rosados.
Beijou um brandamente e acariciou logo o outro com a língua. Jamie começou a gemer, elevando os quadris a modo de silencioso convite.
—Tranqüila — capturou o mamilo com os lábios e se concentrou em chupar-lhe. Jamie se aferrou a seus ombros, retorcendo-se de prazer.
—Vamos, ma petite — lhe sussurrou— Me deixe entrar. Já é hora. Pertence-me.
Apoiou-se sobre os cotovelos, temeroso de esmagá-la com seu peso. Era tão frágil e delicada... Mas aquele exterior tão doce escondia uma vontade de ferro. O coração de um guerreiro.
—Me olhe. Jamie, me olhe.
Entrou lentamente nela. Viu arder um brilho de confiança em seus olhos cinzas, enquanto seu sexo a penetrava como um punho ardente. Tinha que ir devagar. Aquela mulher merecia ternura, carinho, amor. Tenso pelo esforço retirou-se e voltou a entrar com a mesma lentidão.
Acariciou-lhe o pescoço com o nariz. Pôde ver como ela se estremecia delicadamente, com seus mamilos duros e rosados como cerejas. Com delicioso cuidado, afundou-se de novo nela e empurrou. Procurou suas mãos, entrelaçou os dedos com os seus e voltou a empurrar.
Jamie se removeu um pouco, acomodando-se melhor enquanto Damián a penetrava até o fundo. Ficou sem fôlego, mas imediatamente se relaxou, abrindo-se a ele, recebendo-o. Seus corpos se fundiram por inteiro. Damián voltou a retirar-se e começou a acariciá-la por dentro, esfregando o pênis contra os lugares mais sensíveis...
Com o poder de sua ternura, acabou com a pouca escuridão que pudesse ficar nela. Jamie se arqueou para seguir seu ritmo. Uma expressão maravilhada se desenhou em seu rosto enquanto o olhava. Seus lábios se abriram, começaram a tremer. Sentia-se como se, ao fazer amor com ele, Damián tivesse se apoderado de sua alma. Jamais tinha experimentado uma sintonia semelhante.
Os embates de Damián se fizeram cada vez mais rápidos, mais urgentes. Jamie elevou os quadris ao tempo que lhe rodeava a cintura com as pernas. A tensão aumentava por segundos até que se sentiu a ponto de explodir.
Gritando seu nome, alcançou um novo orgasmo. Damián grunhiu satisfeito enquanto empurrava uma última vez e jogava a cabeça para trás. A ardente semente a encheu com seu calor. Em seguida se derrubou sobre ela, ofegante.
Para não esmagá-la com seu peso, rodou a um lado e a atraiu para si. Jamie apoiou a cabeça contra seu peito, sentindo uma felicidade enorme... e algo mais. Magia. Magia branca, forte, pura, correndo por seu corpo, afastando aquela escuridão que lhe tinham contagiado os morph. Luz branca que discorria por suas veias, vibrante de poder.
Assustada, tentou afastar-se. Mas Damián lhe embalou o rosto entre as mãos.
—Deixa que aconteça, ma petite. É minha magia a que tem agora dentro, desafiando à escuridão. Relaxe.
Tremente, obrigou-se a permanecer quieta, sentindo como o poder se estendia por todo seu corpo. Damián lhe acariciava os cabelos, murmurando palavras de ternura. Assim esteve até que cessou o efeito, deixando-a cansada e aturdida.
—Não fuja de mim como fez no Novo México, Jamie. Prometa que não me deixará. Quaisquer que sejam seus problemas enfrentaremos juntos.
Com a bochecha apoiada sobre seu poderoso peito, Jamie escutava o batimento do seu coração. Fazer aquela promessa significaria um passo enorme. Significaria atar-se a ele, fortalecer o vínculo que já tinha forjado com seu corpo... e seu coração. Removeu-se, inquieta e atraída pela idéia.
—Prometo que tentarei — era tudo o que podia lhe oferecer.
Fez-se um denso silêncio.
—Tenta-o com toda sua vontade — disse ele com tom suave— E eu te prometo que se voltar a escapar outra vez... apanharei-te — um brilho aterrador apareceu em seus olhos: o olhar do lobo convencido que tinha capturado a sua presa— Porque não penso te deixar partir. Nunca.
À tarde seguinte rastrearam a terceira pista nas lojas de antiguidades, procurando um busto de Napoleão com a marca 111: o número de pás da roda do Natchez.
Um aroma a cera de limão enchia a imensa loja. Jamie elevou o olhar aos lustres de cristal que penduravam do teto. Tapetes orientais cobriam o antigo chão de parqué. Em algum lugar tinha que haver um busto de Napoleão. Era a última loja que ficava por explorar.
Olhou-se as mãos. O sexo com Damián havia devolvido sua cor natural, mas as unhas seguiam cinzas. Maior razão para esforçar-se em encontrar a seguinte pista.
Um pequeno busto branco chamou sua atenção. Estava desgastado. Recolheu-o, entusiasmada. Ao lhe dar a volta, descobriu um número gravado: 111.
Baixou o busto. Se o escondia nesse momento e voltava depois por ele, poderia encontrar a última pista e o livro. Ocuparia-se de si mesma, deixando Damián atrás. Já não o necessitava.
Tremeram-lhe as mãos. Que não o necessitava? A quem queria enganar? Damián a tinha protegido, tinha-lhe dado sua magia para atrasar os efeitos do feitiço, tinha-lhe jurado que os dois estavam no mesmo navio... Possivelmente tinha chegado a hora de dar um passo adiante e confiar em Damián. Dirigiu-se para ele.
—Não há grande coisa por aqui. Vamos — era a frase que tinham combinado para indicar que tinham encontrado a estátua.
Entusiasmada, puxou-o pela mão e abandonaram a loja. Mais tarde voltariam e... Damián assinalou um homem que estava apoiado em um poste, com aspecto de esperar a alguém. Era Alexandre.
Intercambiaram um discreto gesto e Alexandre se dirigiu diretamente à loja. Jamie se sentiu terrivelmente decepcionada. Tinha outorgado ao Damián sua confiança e ele...
—Comprará o busto e nos trará isso — lhe explicou Damián, adivinhando seus pensamentos.
—Por que quer colocar a sua família nisto? Supunha-se que era uma coisa de nós dois.
—Alex é perito em antiguidades. Que ele compre despertará menos suspeita que se o comprar eu. Minha família quer te ajudar a se curar Jamie.
—Sempre está falando da família, da família... Eu, em troca, não necessito de ninguém. Sozinha estou melhor. Nem sequer com o verdadeiro Mark, eu...
Mordeu-se o lábio, consciente que tinha falado muito. Sobre tudo quando viu sua expressão de súbita compreensão.
—Assim era isso... Mark nunca foi o irmão mais velho carinhoso e protetor que deveria ter sido. Nunca se importou realmente, por muito que se esforçasse em agradá-lo. O único que lhe importava era sua própria carreira.
—Era meu único irmão — repôs, doída— Sempre se preocupou por mim, tinha teto, comida...
—Tudo menos alguém que te quisesse. Vivia com um companheiro de casa, não com um irmão.
—Eu não necessito que me queiram, e tampouco uma família. E tampouco te necessito — lhe espetou.
—Necessita-me mais do que acredita. É meu casal e agora forma parte de minha família. Esta noite jantaremos todos juntos. Não pode seguir evitando-o.
Lhe fez um nó no estômago, mas não disse nada. Continuou andando, em silêncio. Tinha acreditado em Damián uma vez... e ele a tinha traído. Família? Quem as necessitava? Ela não, certamente
Quando voltaram para casa, dirigiu-se diretamente a seu quarto. Tirou a roupa que teria que pôr. Um jantar familiar? Fechou os olhos tentando imaginar uma enternecedora cena. Em lugar disso só viu sorrisos de escárnio, gestos desdenhosos.
Ligou o notebook, decidida a romper o código da página do MyPlace. Depois de trabalhar nisso durante umas duas horas, sem êxito, passou ao World of Warcraft. Esteve jogando durante um bom momento.
Mas a sensação de solidão não fez mais que acentuar-se, e ao final apagou o notebook. Pouco depois ouviu que batiam na porta. Era Damián. Estava muito bonito com seu suéter de pescoço alto, cor borgonha e suas calças negras de lã. Apoiou-se na parede.
—O jantar está servido. As crianças já jantaram e estão deitados.
—Não tenho fome.
Aproximando a puxou pelos ombros.
—Jamie, são meus irmãos, minha cunhada. Sua família, também. Querem te conhecer melhor, chére.
—Não quero jantar.
—Então nos acompanhe na sobremesa.
Sua resolução fraquejou. Damián parecia decidido a conseguir que se mesclasse com eles. Vivendo em sua casa, ela não poderia seguir evitando-os por mais tempo.
—Está bem.
Na luxuosa sala de jantar, sob o grande lustre de cristal, a imensa mesa já estava servida, com sua toalha de renda, seus guardanapos de linho e seu faqueiro de prata. Os quatro irmãos se levantaram quando entrou. O nervosismo de Jamie aumentou. Todos estavam muito bem vestidos: inclusive Raphael tinha trocado seu traje de motoqueiro por um elegante traje negro. Cindy vestia um vestido de seda, também negro, que realçava sua longa juba loira. O sorriso de ânimo que lhe lançou não conseguiu tranqüilizar Jamie.
Aturdida, sentou-se na cadeira que Damián acabava de lhe puxar. Olhou a mesa: pratos da mais deliciosa porcelana, taças de cristal esculpido... Em uma grande bandeja oval havia filetes de carne crua. Ao lado, uma fonte com uma montanha de arroz e outra com quiabo. Uma bandeja menor continha carnes fritas e assadas.
—Não estava certa do que você gostava, assim assei um pouco de carne — lhe explicou Cindy.
—Obrigada — forçou um sorriso.
Ao princípio esteve muito incômoda, mas a conversação começou a fluir.
—Tenho entendido que é uma apaixonada pelos computadores. E pelos jogos online — comentou Gabriel.
Todos os olhares se voltaram para ela. Jamie disse o primeiro que lhe veio à cabeça.
—Bom, eu prefiro a palavra «gênio». No feminino.
Elevou-se uma gargalhada geral. Estavam burlando dela, como a tinham burlado sua própria família. Humilhada, baixou o olhar a seu prato.
Por que não lhe davam chutes sob a mesa, jogavam-lhe sal no leite ou cuspiam em sua comida, como tinham feito seus sobrinhos? Ao final sempre conseguiam fazê-la levantar da mesa e ir ao alpendre traseiro para comer as sobras da comida. E a ninguém tinha importado.
Envergonhada, tinha vontade de lançar seu guardanapo e sair correndo. Mas já não era uma menina, a não ser uma mulher adulta. Tinha que dissimular.
O silêncio se prolongava detestável. Até que voltou a falar Gabriel:
—Bem. Rafe é um desastre total jogando Doom. Possivelmente inclusive possa ensinar algo a Damián.
Damián tomou uma mão, carinhoso.
—Seguro que o fará. E, como diversão, os jogos online me parecem excelentes. Eu gostaria de aprender.
Não estavam burlando dela. Jamie relaxou enquanto se reatava a conversação. Gabriel lhe fez perguntas sobre sua habilidade com os computadores.
—A comida está riquíssima — comentou em um determinado momento— Embora possivelmente necessite um pouco de verde.
—Verduras? —inquiriu Damián, estremecendo-se.
—Poderiam cultivar tomates no jardim. E cenouras. Logo, se aparecesse um coelho converteriam-se em lobos e o caçariam. Seria como uma granja sustentável. Os ecologistas lhes felicitariam.
Mordeu-se o lábio, esperando não ter metido a pata. Desde aí sua surpresa quando Alexandre soltou uma gargalhada. Seus irmãos ficaram olhando antes de imitá-lo.
—É incrível — comentou Damián, em voz baixa— Não tinha ouvido Alex rir assim em anos. Obrigado.
O olhar de adoração que lhe lançou terminou de relaxar Jamie. Mas de repente a conversação derivou para todo tipo de comidas repulsivas. Ao fim e ao cabo, estava jantando com uma família draicon.
—A única comida que eu me nego a provar é o gato negro na noite de Halloween. Dá má sorte — disse Alexandre, sorrindo enquanto cravava outro filet.
A Jamie apagou o sorriso da face. Lhe engasgou a comida. Tentou sobrepor-se, mas de repente teve um flashback. O estômago lhe deu um tombo. Necessitava ar, ar fresco. Ia...
Levantando-se de repente da mesa, levou uma mão à boca. Correu pelo corredor, atravessou a cozinha e saiu ao jardim pela porta traseira.
Ajoelhada na grama, devolveu toda a comida. Ouviu abrir a porta. Não elevou o olhar; só enxugou as lágrimas. Era Damián. Em silêncio, ofereceu-lhe uma toalha.
Limpou a boca, desejosa que a terra a tragasse. E se deixou abraçar, já mais tranqüila, enquanto se sentava em uma cadeira do jardim. Mas as imagens seguiam ali, as lembranças... Muito tarde tentou bloquear sua mente. Damián lhe tinha lido o pensamento.
—Por favor, conta-me. Não há nada que não possa compartilhar comigo — tirou outra cadeira e se sentou frente a ela— Por isso saiu correndo?
Assentiu, tragando saliva. Damián já tinha visto aquelas horríveis cenas. Não se atrevia a olhá-lo.
—Quando morreram meus pais, acolheram-me minha tia Miranda e meu tio Clement. Eram os únicos parentes que ficavam além de Mark, que estava fora, em expedição na África, e que não tinha querido fazer-se responsável por mim. Assim foi, ao menos até que se deu conta que me necessitava para assegurar a herança. O tio Clement era o irmão de minha mãe. Nunca lhe caí bem. Chamava-me a «filha do diabo».
Resultava-lhe tão difícil lhe contar aquilo... Nunca o tinha confessado a ninguém, nem sequer a Mark, que tinha estado informado de quão cruéis tinham sido com ela.
—Tinha cinco anos e era diferente de meus primos. Negava-me a fazer o que gostavam, desagradavam-me seus jogos. Assim não gostavam de mim. Faziam-me diabruras na mesa, jogavam-me sal na comida... até que meu tio se cansou e a partir daquele momento me mandou comer no alpendre, como um cão. Meus primos diziam que isso era porque eu era uma solitária. Uma... bruxa. Como minha mãe.
Damián a escutava com atenção enquanto lhe acariciava os cabelos, enternecido.
—Minha melhor amiga era uma gatinha negra —continuou ela— Eu adorava a Mercedes. Ela me fazia companhia quando ninguém mais queria brincar comigo. Eu tinha medo que meus primos a descobrissem e por isso a escondi no celeiro. Mas a encontraram. Disseram-me que só as bruxas tinham gatos negros. Que aquela gata era do diabo. Meu tio, ele... —abraçou-se, estremecendo— matou Mercedes. Cortou-lhe a cabeça diante de mim. Aquela noite pela primeira vez em muito tempo deixaram-me jantar na mesa. Ofereceram-me um prato especial... e eu pensei que estavam sendo amáveis comigo pelo menos uma vez...
Uma expressão de horror se desenhou no rosto de Damián.
—Comi o prato... e logo começaram a rir de mim. Meu primo Ronnie me explicou o que estava comendo... Nunca voltei a provar carne. Até o outro dia, quando comi a carne crua.
Sentia um sabor ácido na garganta. Nada de lágrimas. Não podia chorar: não o tinha feito em anos. Nem sequer então. E entretanto agora queria fazê-lo.
—Jamie...
Reunindo toda sua coragem, elevou o olhar. E, para sua surpresa, distinguiu algo úmido e brilhante no rosto de Damián. Uma lágrima em sua bochecha. Uma solitária lágrima.
Maravilhada a enxugou com um dedo. Levou-o à boca, para saboreá-lo. Era salgada. Assim era o gosto da dor.
Acariciou-lhe o rosto como se fosse uma cega, delineando o contorno de suas bochechas, de seus lábios, os olhos de olhar atormentado. E se deixou abraçar.
—Vingarei-te — prometeu Damián.
—Muito tarde. Meu tio morreu faz anos. De uma enfermidade hepática.
O verde dos olhos de Damián se obscureceu, como o mar agitado por uma violenta tormenta. Embalou-lhe o rosto entre as mãos.
—Nunca permitirei que alguém volte a te fazer dano. Entendido?
A ferocidade com que disse assustou um pouco Jamie, até que se deu conta que sua fúria estava dirigida contra seu passado. Sorriu.
—Maravilha-me, ma belle petite. É formosa e está sempre mudando.
Quando ouviram a porta, elevaram o olhar para ver Raphael baixar os degraus. Jamie se levantou da cadeira. O draicon ficou olhando pensativo.
—Se a carne não te fez bem, temos frango. Mas tem que comer. Me diga o que quer e lhe prepararei isso.
Aquela solicitude por parte de Raphael surpreendeu Jamie.
—Estou bem, obrigada.
—Tem que conservar as forças ou o feitiço se ativará de novo — lhe disse Damián, atrás dela— Rafe, como a vê?
Aproximando-se, o draicon esticou uma mão para seu rosto. Jamie se encolheu.
—Não passa nada, Jamie. Deixa que Rafe te olhe. É nosso kallan, um imortal, o único que pode acabar com a vida de outro draicon sem conseqüências. Pode ver dentro dos olhos de uma pessoa e discernir seu futuro. Deixa que te examine para que vejamos se o feitiço está se acelerando ou não...
Com um pequeno sobressalto, Jamie se deu conta que confiava em Damián. Assentiu com a cabeça. Raphael tomou o rosto com uma mão e lhe abriu delicadamente o olho direito com a outra.
Jamie distinguiu em sua pupila o reflexo da sua. E quando se desfez a névoa... encontrou-se frente a sua própria morte. Afogando um grito, apartou-se. Raphael afundou as mãos nos bolsos de sua jaqueta.
—Sua magia está bloqueando o feitiço, Damián, mas logo começará a ativar-se de novo. Não faça uso de nenhum de seus poderes, Jamie, ou o acelerará — lhe disse com tom autoritário— Necessita proteínas. Prepararei algo.
O feitiço. O veneno que a estava convertendo em pedra. Em uma estátua vivente.
—Necessito uns minutos. Baixarei à mesa às dez.
Jamie correu para seu quarto, tomou uma rápida ducha e escovou os dentes. Ainda seguia tremendo.
Quando baixou novamente à mesa, a conversação continuava como se não tivesse saído. Damián lhe sorriu enquanto a via comer o prato de frango que lhe tinham preparado. Seus irmãos e Cindy conversaram com ela, com toda naturalidade. Pensou que, por tratar-se de uma família, aquilo não estava tão mal...
Depois saiu com eles ao jardim. Etienne tirou uma bandeja com uma garrafa de vinho e taças enquanto se instalavam ao redor da mesa de ferro forjado.
Jamie se afastou com Damián para o abrigo do outro extremo do pátio, onde crescia um jasmim recém florescido. Inclinando-se para ela, deu-lhe um terno beijo nos lábios.
O coração lhe acelerou de espera. Depois Damián deslizou os braços por sua estreita cintura, sentindo o poder, a energia de seu corpo. Com deliciosa lentidão, beijou-a de novo. Pequenos e delicados beijos que a excitaram pouco a pouco até lhe arrancar gemidos de prazer.
—Damián?
—Mmmm?
—Desejo-te. Agora.
—Isso é bom — inclinou a cabeça, olhando-a com paixão— Muito, muito bom...
Levou-a para o abrigo e a fez entrar. O denso aroma de terra fresca se mesclava com seu rico aroma. Fora, ouviam-se as risadas dos outros, mas Jamie se concentrou em Damián. Beijou-a, e suas línguas se enlaçaram, frenéticas.
Segundos depois estavam nus. Jamie sentou à mesa de pedra e abriu as pernas, úmida e pronta para ele. Damián sorriu malicioso antes de deslizar-se entre suas coxas, apoiando as mãos a cada lado.
Entrou em um único e profundo embate. Jamie estremeceu ante seu poder enquanto ele se aferrava a seus quadris. A delicada sensação de seu duro pênis esfregando seu clitóris lhe acelerou o pulso. Começou a gemer.
—Está me deixando louco, mulher — se retirou para afundar-se com maior força.
Aumentou o ritmo, fazendo tremer a mesa. Só se ouviam seus ofegos. Jamie mordeu o lábio para não soltar um grito. A tensão crescia rapidamente. Damián lhe beijou a boca, deslizou os lábios ao longo de seu pescoço e, por último, o mordeu. Jamie sentiu uma aguda e erótica pontada de dor, que ele se apressou a aliviar com a língua.
Enquanto alcançava o clímax, Jamie o mordeu em um ombro. Damián apertou os dentes, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Seu pênis se agitou violentamente com o orgasmo.
Pouco depois se incorporou para vestir-se. Ajudou-a a arrumar a roupa e esboçou um sorriso enquanto lhe tocava a pequena marca que lhe tinha deixado no pescoço. Jamie leu seu pensamento.
«Minha marca. Minha companheira».
Damián olhava enternecido para Jamie enquanto a ajudava a descer da mesa. Imaginou-a com seis anos, abraçada a sua gatinha, com seus enormes olhos cinzas e inocentes, aterrada que seu tio pudesse lhe arrebatar a sua única amiga. Um surdo grunhido reverberou em seu peito.
Abandonaram o abrigo discretamente, mas Gabriel elevou o olhar nesse momento. Sorriu, dando uma cotovelada em Etienne.
—Interessante lugar, esse abrigo. Ali se plantou algo mais que flores, com certeza — comentou Etienne olhando Cindy, sua mulher, que se ruborizou.
Damián murmurou uma desculpa antes de retirar-se com sua companheira. Uma vez dentro da casa, Jamie se voltou para ele.
—Não é somente sexo, verdade? E se é... por que sou eu a única com a que se pode aparear? Sinto que há muito mais atrás disto, e a verdade é que me assusta um pouco.
Tinha chegado a hora da conversa séria, quando o único que queria Damián era subi-la ao quarto e voltar a lhe fazer amor. Acariciou-lhe uma bochecha. Tinha que convencê-la: tinham forjado um sólido vínculo carnal, e estavam conectados telepaticamente. Sua família a tinha acolhido bem e ela podia aceitar e entender seu papel como companheira dele.
E entretanto, preferiu lhe ocultar seus mais íntimos pensamentos. Porque «amor» era uma palavra de duplo fio que podia voltar-se contra ele. Não podia arriscar-se a amar. Estava comprometido com sua manada, com sua gente... Não, não queria amá-la. O amor debilitava aos machos fortes como ele.
—Não é só sexo, ma petite. É algo mais profundo, real e duradouro. Sim, eu necessito um herdeiro, mas isso pode esperar e o importante para mim é que você possa voltar a sorrir. Oxalá pudesse apagar seu desgraçado passado. Quão único posso fazer é te ajudar em todo o possível e te oferecer uma nova família que te trate como merece. Você agora pertence a minha gente.
Mas a esperança que tinha visto brilhar em seus olhos se apagou. Damián reconheceu seu gesto de desafio ao elevar o queixo. Tentou ler seu pensamento e se topou com uma barreira.
—Não é só o sexo, a não ser todo o pacote, verdade? Não só você, mas também uma horda inteira de homens-lobo. Disse a você que eu não queria formar parte de nenhuma família, e menos ainda, quando se trata de draicon.
—Nós somos sua nova família. Meus irmãos, meus pais e minha manada no Novo México não têm nada que ver com a família que você conheceu. Eles serão para você tudo o que sua família não foi Jamie.
—Oh, claro, quererão-me e farão que me sinta um deles. Mas não sou e nunca o serei. Serei como uma ovelha negra em uma manada de lobos, e ambos sabemos o que os lobos fazem às ovelhas.
—Jamie, acaso meus irmãos não têm feito que se sinta a salvo? Você é uma de nós.
—Não. Nunca serei — sussurrou, levando uma mão à bochecha— Sempre está tentando me fazer que me sinta o que não sou... Não pode me reter a seu lado. Nem tampouco bloquear esse feitiço que me consome.
—Posso e o farei — replicou furioso. Ela parecia ter perdido sua fé nele e supunha inclusive que lhe tinha falhado. Mas se esqueceu de sua ira quando baixou o olhar a suas mãos. Sujeitando sua mão, inspecionou-lhe as unhas— Já não estão cinzas. Quando foi?
—Oh — franziu o cenho— Não sei. Não tem importância. Necessito o livro, Damián. E será menor que o encontre logo.
Ficou olhando enquanto subia as escadas até seu dormitório. Suas unhas tinham recuperado sua cor normal. Isso lhe inquietava e não sabia por que...
No interior da loja de vodu, Jamie esperava que Damián pagasse a caixa. Tinham encontrado a pista final. O busto de Napoleão a tinha dado: estava em uma pintura que representava um lobo no igarapé. Alexandre tinha visto essa pintura na loja enquanto procurava por todo o Bairro Francês.
Com o quadro sob o braço, guiou-a fora da loja. Negras nuvens de chuva obscureciam o céu. Jamie tinha uma expressão aflita.
—Isto deve ter pintado algum artista da praça Jackson. Mas não pode ser a pintura da pista, porque é muito moderna, e nós estamos procurando uma antiga. Alex me confirmou — refletiu isso em voz alta.
Jamie não disse nada. Não havia voltado a lhe dirigir a palavra desde a discussão do dia anterior. Não queria sua ternura, nem o carinho de sua gente. Estava segura que se unia-se a eles, terminaria sofrendo uma vez mais porque a rechaçariam como a tinham rechaçado seu tio e seu irmão, por não estar à altura de suas expectativas. Ficar só e não conhecer o amor e o carinho de uma família sempre seria melhor que perder algo que tinha desejado durante toda sua vida.
Aproximaram-se do beco do Pirata. Envolto em sombras, tinha um aspecto ameaçador. Jamie resistiu a entrar. Algo não estava bem. Detectava um leve aroma nauseabundo no ar...
—O que te passa? —Damián a olhou.
Mas era ridículo. Só era um beco.
—Nada. Vamos.
Quando tinham percorrida a metade, uma menina surgiu de entre as sombras. Levava uma pelúcia nos braços. Damián se deteve de repente, com uma expressão de horror nos olhos.
—Damián?
A voz da menina não podia ser mais doce. Mas no fundo pulsava um eco desagradável, como um chiar de dentes. Jamie se perguntou se o teria ouvido.
Damián soltou o quadro, que caiu ao chão. Era pura angustia o que se desenhava naquele momento em seus olhos.
—Damián? Você me deixou sozinha e eles vieram, mataram a mamãe, o papai, Ritchie e Pierre. Encontraram-me. Eu tentei me esconder e te chamei, chamei... por que não me ouviu? Damián, você me prometeu que me protegeria... prometeu-me isso! Eles me descobriram e me fizeram mal... e eu gritava e gritava, mas você nunca veio!
Consternada, Jamie viu que Damián dava um passo adiante.
—Annie, por favor... Sinto-o tanto. Corri, corri com todas as minhas forças, mas não deu tempo e...
—Eu morri por sua culpa!
Jamie pestanejou, assombrada. Havia tornado a detectar um tom estranho na voz da menina. Concentrando-se, esforçou-se por convocar a escuridão que ainda ficava em seu interior... e perdeu o fôlego. Em lugar de uma menina, o que viu foi uma encurvada figura de presas amarelas, garras aguçadas e jubas cinzas. Um morph.
Jamie puxou Damián por um braço:
—Damián, é um morph que te está enganando!
Mas ele se liberou de um puxão.
—Damián, se de verdade me quiser, me ajude. Vêem aqui. Preciso de você —suplicava a menina.
Damián avançou outro passo. O morph que estava vendo Jamie esboçou um aterrador sorriso. Elevou uma mão e uma larga adaga apareceu em sua palma.
Usando seus poderes telepáticos, Jamie entrou na mente de Damián. Mas a dor que viu ali era tão intensa que lhe assustou. Procurou consolá-lo... mas perdeu o contato. Tinha que fazer algo e rápido se não, Damián se dirigiria diretamente ao encontro de sua morte. Em um impulso, interpôs-se entre os dois.
—Me olhe, Damián, por favor — lhe disse, de costas ao morph— A mim, não a ela. Acaso não tem confiança em mim?
Ao ouvir essa palavra, olhou-a. A tortura que se desenhava em seus olhos pareceu atenuar-se.
—Annie está morta, Damián. E ela te queria. Annie jamais te haveria dito estas coisas.
A confusão e a dúvida nublaram seu olhar. Vacilou. O morph retorcia a pelúcia com suas garras.
—Damián, por favor, necessito-te... Faz tão frio aqui e é tudo tão escuro... Sinto-me tão sozinha... Por favor, Damián, se me quiser de verdade, vêem comigo e te perdoarei.
Aquelas últimas palavras ressonaram como um trovão. Damián avançou outro passo; em vão Jamie tentou detê-lo. Mas essa vez sim que conseguiu meter-se em sua mente: a dor que tinha padecido, o muito que tinha sofrido, o horror... . As imagens começaram a girar em sua cabeça até que tudo se tornou impreciso e o nó que lhe formou na garganta lhe impediu de respirar.
Algo úmido lhe corria pelas bochechas. Agarrou-se à jaqueta de Damián como se estivesse se afogando...
Até que, milagrosamente, Damián se voltou para ela e a olhou.
—Oh, Damián, o que é que lhe fizeram? Não foi sua culpa. Annie está morta. Por favor, me escute... Está diante de um assassino. Um morph. Necessito que confie em mim.
—Jamie — murmurou com voz rouca enquanto lhe enxugava a lágrima que tremia em seu queixo — Oh, Jamie. Está chorando.
—Por você — sussurrou.
Ato seguido Damián se voltou para a figura e esticou os braços: duas largas adagas apareceram em suas mãos.
—Só vejo Annie, mas confio em Jamie. Você não é minha irmã. Quer brincar? Pois brinquemos.
O morph soltou um rugido antes de lançar-se para ele. Um uivo ressonou no ar enquanto Damián lhe atravessava o coração com sua adaga. O espantoso ser se cambaleou. Segundos depois se convertia em um montão de cinza.
Voltou em seguida para Jamie. Embalou seu rosto entre as mãos, enxugou-lhe as lágrimas com beijos. Tinha começado a chover. Grossas gotas caíam sobre seus rostos.
—Está morta e enterrada, e nunca voltará. Jamais — murmurou Damián com voz entrecortada. Abraçaram-se durante um bom momento. Finalmente, Damián elevou a cabeça, com seu habitual olhar alerta.
—Vamos a sua casa. Está mais perto.
Empapados e tremendo de frio, chegaram a casa de Jamie. Damián deixou a pintura na cozinha e logo se reuniu com ela no dormitório para trocar de roupa.
—Jamie preciso te dizer algo — confessou ele pouco depois.
Tinha a garganta seca. Jamie merecia a verdade, mas as lembranças lhe rasgavam o coração. Devia fazê-lo. Fez provisão de toda sua força para pronunciar as palavras:
—Quando eu tinha doze anos e experimentei minha primeira metamorfose em lobo, os morph atacaram a mansão de meu pai. Eu estava caçando no igarapé, contra os desejos de meu pai, em lugar de ficar em casa para ajudar a proteger a minha família. Annie morreu por minha culpa.
Jamie murmurou um protesto. Mas ele a ignorou.
—Minha manada, a gente de meu pai, rechaçou-me depois daquilo. Tinham perdido o seu Alpha e estavam aterrorizados.
—Todos eles lhe abandonaram? Depois do que te tinha passado? —inquiriu, indignada.
—Tranqüila. Sente-se — assinalou a cama e ele ficou a passear pela habitação—Minha manada era francesa, sentia-se orgulhosa da pureza de seu sangue. Desprezavam à família do Rafe porque eram cajún. Quando vinham ao bairro antigo fazer compras, os tratavam com desdém. Punham-lhes nomes insultantes, os chamavam... «cães». Todos faziam isso, exceto meu pai. E eu também, até que meu pai se inteirou. Soltou-me um bom sermão, insistindo que o sangue dos cajún era tão nobre como a nosso.
—Seguro que teria gostado de seu pai.
—Ele também teria gostado de você. Foi um macho valente e honorável, admirado e respeitado por todos. Como eu, era o primeiro broto dos Alpha puro sangue, com poderes superiores à maioria dos draicon.
—Mas então por que não te quis sua manada, Damián?
—Era muito jovem, muito rebelde... e um objetivo para os morph.
Ficou calado, mudo de vergonha.
—Por favor, conta-me Damián...
—Disseram que eu havia me coberto de vergonha porque tinha fracassado em defender a minha família. Eu lhes supliquei que me deixassem ficar, mas me jogaram a patadas e logo me perseguiram, deram-me caça como a um cão... Voltei para o igarapé. Estava tão faminto e tão débil... Quando Rafe e seus irmãos me encontraram, estava em umas condições lamentáveis. Mas o pior era a vergonha. Ali estava eu, o Alpha draicon de sangue azul que tanto se burlou dos cajún, me deixando ajudar por eles... Quase preferi morrer.
Não se atrevia a olhá-la. Fez-se um denso silêncio.
—Mas lhe acolheram.
—Levaram-me a sua casa, curaram-me, deram-me de comer. E me ensinaram a sobreviver. Eram gente honorável, como me havia dito meu pai. E mais valentes que os de minha manada — voltou a ficar calado.
—O que aconteceu com os morph que mataram sua família?
—Rafe e sua gente mataram à maioria. Só escapou um.
Jamie lhe apertou uma mão: aquele consolador gesto lhe reconfortou mais que qualquer palavra. Às vezes as palavras não eram necessárias. Sobravam. Por uns instantes, fechou os olhos e se concentrou em desfrutar do consolo que lhe oferecia. A intimidade era algo que nunca tinha procurado, nem desejado. Mas agora que a tinha descoberto, queria saboreá-la com Jamie.
Jamie o atraiu para si e se deitaram na cama. Fizeram amor lentamente, com deliciosa ternura. Pouco depois, enquanto lhe acariciava os cabelos, embebido de sua beleza...
—Mon Dieu, seu cabelo — enredou um cacho entre seus dedos— Voltou a ser negro.
Jamie se levantou de um salto da cama para olhar-se no espelho.
—Será sua magia, quando fazemos amor?
—Não sei — admitiu Damián.
—Mas ainda tenho escuridão em meu interior... Foi por isso que pude descobrir o morph que se disfarçou de sua irmã —voltou a sentar-se na cama— Como é que nos localizou no beco? Parece que seguem controlando todos nossos movimentos.
—Estão formando um plano de batalha, para calibrar minha força e meus pontos débeis. Sabiam que Annie era um ponto débil — apertou os dentes.
A Jamie lhe rasgou o coração ao ver sua expressão angustiada. Sabia o muito que custava aquele orgulhoso draicon admitir o que tinha acontecido. Damián acreditava em seu próprio papel como líder para proteger a sua gente, mas tinha perdido a muitos seres queridos. Ambos tinham mais coisas em comum do que tinha pensado em princípio. Ambos estavam sozinhos, separados dos seus. Mas unindo suas forças, poderiam derrotar ao inimigo. Concentrou-se em lhe comunicar telepaticamente esse pensamento.
—Sim que podemos, Jamie — disse de repente, tão convencido como ela— Você tem uns conhecimentos informáticos dos que eu careço. Eu conheço bem ao inimigo, mas sei que estão usando um recurso que me escapa... O que te parece?
Estimulada por sua confiança, Jamie começou a refletir em voz alta.
—É como um jogo, como o World of Warcraft. Eles encontraram uma maneira de penetrar suas barreiras, assim quando vão por ti, sabem exatamente onde atacar. E sabem em todo momento onde está... mas como? É como se tivessem um sistema de seguimento, um GPS...
—Rafe tem um sistema de seguimento — comentou Damián.
Jamie correu a abrir seu notebook.
— Oh, Meu Deus! Lembra-se dessa página do MyPlace que encontrei, a que tinha um texto criptografado com uma mensagem secreta? Estive tentando romper o código. Seu irmão Rafe, ele é o único draicon imortal. Ele tem que ter a chave para romper o código! Tenho um programa novo que poderá servir — teclou a palavra «imortal».
Damián a olhava com expectativa. Os dedos de Jamie voaram sobre o teclado enquanto acessava à página do MyPlace.
—Já o tenho! O texto é uma ordem para acessar a uma Web de acesso restringido, bloqueada por uma contra-senha. Olhe.
Jamie teclou outra ordem e acessou a uma página Web. Na tela apareceu uma réplica do plano que tinha elaborado Raphael. Só que nesse plano estava registrado cada movimento que tinha feito Damián, cada lugar que tinha estado... desde que lhe mordeu, lhe transmitindo sua magia.
Jamie ficou olhando a tela com expressão horrorizada.
—Tudo é minha culpa. Quando você me mordeu para me dar sua magia, o sangue morph que levava em minhas veias se mesclou com o teu: por isso puderam te rastrear com a mesma facilidade com que faziam comigo. É como se levasse um maldito GPS em seu corpo.
Damián lhe embalou o rosto entre as mãos, tranqüilizando-a.
—Poderemos com eles — a beijou nos lábios— Estou tão orgulhoso de você... é extraordinária. E quero que conheça toda minha família adotiva.
O sorriso se apagou dos lábios de Jamie.
—Não são muitos... só uns cinqüenta —acrescentou ele.
Os velhos temores voltaram a assaltá-la. A família de Damián... seriam os cruéis assassinos que tanto tinha temido no passado?
Montada com Damián na Harley, o vento fazia ondear seus cabelos. Os campos de cultivo deram passo a densos bosques de carvalhos e ciprestes. Um arroio corria ao lado da estrada: o aroma da água fresca excitava seus sentidos. Enterrou o rosto nas largas costas de Damián.
Perito como era em antiguidades, Alexandre seguia analisando a fundo a pintura, mas ainda não tinha encontrado a seguinte pista. A frustração de Damián era evidente, mas esse dia tinha decidido deixá-la de lado para ir a uma reunião familiar.
Continuaram por uma pista de terra até que chegaram a seu destino: um claro mais ou menos extenso no bosque, rodeado de árvores. A um lado se estendia o igarapé. E no meio se levantava uma encantadora casa de dois andares, cinza com venezianas brancas e um amplo alpendre.
Damián se deteve ante a casa. Já havia vários carros e motocicletas estacionados. Jamie desceu e tirou o capacete. Sua cautela habitual em relação à família se avivou. Tinha tentado matar Damián com um vírus letal. Em contrapartida, a família adotiva de Damián a tinha recebido desde o início. Só que a família tinha garras e dentes e era perigosa ...
—Hey... —Damián lhe adivinhou o pensamento— não tem nada que preocupar-se.
Mas Jamie estava aterrada. Damián subiu as escadas do alpendre e anunciou:
—Já estamos aqui!
O rumor de conversação que tinham ouvido do alpendre cessou de repente. Entraram em uma grande sala de jantar. Ao redor de uma imensa mesa de carvalho havia dezenas de pessoas. Jamie tragou a saliva.
O bolo era enorme. Com letras de risco infantil estava escrito a frase: “Feliz aniversário, Jamie.” E todos começaram a cantar a conhecida canção.
Uma festa surpresa para ela. Um grande bolo com muita gente lhe cantando Feliz Aniversário. Fez um nó em sua garganta.
Sentiu que algo lhe puxava a calça. Inclinou-se para ver a angelical Ana, com sua juba loira recolhida em duas simpáticas tranças.
—Eu ajudei a fazê-la. Disse que você gostava de bolos rosa, assim lhe fizemos um.
Havia vinte e uma velas. Sua vista se nublou. Aquilo era o que tanto tinha ansiado, a família que tinha desejado sempre. Enxugou as lágrimas e sorriu. Levantou Ana nos braços.
—Necessito que alguém me ajude a apagar tantas velas. Ou um extintor de incêndios.
—Como com o Paw Paw. Outro dia lhe fizemos um bolo com quase duas mil velas.
Todo mundo se pôs a rir. Jamie e Ana assopraram as velas. Ato seguido, Damián se dedicou a apresentá-la: eram muitos rostos e nomes. Seus pais adotivos, Remy e Celine, deram-lhe um carinhoso abraço.
—Logo apresentarei você a Paw Paw. Disse-me que tinha os ossos muito casados e que precisava repousar... Mas primeiro quero que conheça Índigo. Não é da família, mas o consideramos nosso irmão. É meio vampiro e meio draicon...
Jamie contemplou admirada ao gigante de cabelos negros. Largo como um armário, tinha uma barba negra, fechada. Sua tez era de um tom café pálido, uma mescla de nativo americano com polinésio.
Estreitou-lhe a mão, ao mesmo tempo em que a felicitava. Logo se afastou, balançando o chão sob seus pés.
Havia dezenas de presentes, de todo tipo: desde acessórios de informática até um xale de seda dos pais adotivos de Damián. E um notebook presente do próprio Damián, último modelo.
—Era o mínimo que podia fazer, depois de haver quebrado o seu.
Cortaram o bolo e começaram a reparti-lo.
—Obrigada — sussurrou Jamie a Damián, aproximando-se.
Um brilho de ternura ardeu em seu olhar enquanto lhe acariciava uma bochecha.
—Já era hora de que alguém o fizesse — e a beijou.
Depois de comer o bolo, saíram ao jardim. Fazia um sol radiante. Sentado em uma das cadeiras de balanço do alpendre havia um ancião vestido com um simples macacão de brim e uma camisa branca. Seu rosto sulcado de rugas e seus vivazes olhos azuis destilavam sabedoria. Damián o apresentou com tom sério, quase reverencial. O senhor se levantou para saudá-la e lhe disse algo muito rápido, em cajún.
—Isso não me soou muito bem — disse Jamie a Damián, algo temerosa.
Paw Paw lhe estreitou com força a mão.
—É uma maibaigb: alguém que traz força e cura a nossa gente. Sua raça é extremamente rara, possuidora da magia que antigamente tinham todos os draicon.
Força e cura? Quando tinha tentado matar Damián? Jamie sacudiu a cabeça.
—Na manada de Damián, é Maggie a que cura. Eu só... destruo.
—Sua força nos ajudará a nos unir e seus poderes nos permitirão recuperar o que perdemos. O poder está dentro de você. Mas antes tem que perdoar a si mesma.
Mais lágrimas lhe nublaram a vista. As enxugou enquanto o escutava enumerar seus poderes. Telepatia. Viajar pelo espaço e reaparecer em outro lugar. Levitação. A magia que tinha ansiado possuir durante toda sua vida. Suas possibilidades lhe assustavam.
—E se não puder controlá-lo? Não quero fazer mal a ninguém.
—Damián te ensinará. Por isso é seu dracairon. Durante toda sua vida aprendeu a controlar sua magia. Você esteve sempre à deriva e agora encontrou seu rumo.
A esperança bateu asas em seu peito. Tinha encontrado seu rumo graças a Damián, que a tinha apoiado apesar de todos os seus defeitos. Mas... amaria-a? E poderia ela arriscar-se a amá-lo, a deixar-se absorver por seu mundo e tudo o que significava?
Damián a atraiu brandamente para si.
—Paw Paw tem razão. Eu serei seu rumo. Agora e sempre.
Sempre. Jamie apoiou a cabeça em seu ombro. Não. Não pensaria nisso, não nesse dia. Esse dia se conformaria celebrando seu aniversário.
Vários membros da manada formaram uma improvisada orquestra com uma rabeca, um violão e um acordeão. Depois de fazer-se um pouco de difícil, Gabriel começou a cantar em cajún. Começou a festa. Inclusive Damián tirou Jamie para dançar.
Um par de horas depois, organizaram-se uns eficientes turnos de recolhimento e limpeza. Já estavam terminando quando os irmãos de Damián, com Índigo, começaram a jogar futebol.
Jamie guardou o prato que acabava de secar enquanto contemplava a cena pela janela. Damián se mantinha afastado do jogo, olhando a outros com expressão triste, melancólica.
—Já te disse quão contentes estamos todos que Damián te tenha encontrado? —disse-lhe Celine, lhe pondo uma mão no ombro— Conseguiu que volte a sentir-se jovem. Porque meu filho é jovem em idade, mas ancião em espírito.
—Mas eu não sou draicon. Como podem me aceitar sem me conhecer realmente?
Celine esboçou um sorriso pormenorizado.
—Não importa quem seja, Jamie. Aceitamos você por tudo o que é e não é, porque é a companheira de Damián. É assim a família. Posso ver a forma que te olha Damián, com essa luz que tornaram a ter seus olhos. Necessita-te e com isso é suficiente. Anda, vá com ele, Jamie. Faz o que te dite seu coração. Leva caminhando muito tempo na escuridão. Seja sua luz.
Sua luz. Sua esperança. Depois de ter visto a escuridão que lhe atormentava pela morte de sua família, compreendia-o bem.
Jamie assinalou seu suéter.
—Tem alguma roupa velha para me emprestar? Algo para jogar futebol?
Minutos depois, saiu ao alpendre vestida com um moletom duas vezes maior que ela e uma calça de agasalho. Damián estava apoiado contra um tronco de carvalho: sempre alerta, sempre receoso. Os jogadores tinham interrompido a partida. Enquanto se dirigia para ele, Jamie recolheu a bola.
—Tome — entregou a ele — Vamos ver quão rápido é. Lança-me.
Damián ficou olhando a bola como se fosse uma serpente. Jamie retrocedeu, elevando as mãos. Finalmente, ele decidiu lançar, sem nenhuma força..
Jamie, em troca, a devolveu com todas suas forças, e a bola o golpeou no peito. Ficou olhando surpreendido.
—Vamos. Mais forte.
Sorrindo levemente, voltou a lançar. Jamie não chegou a agarrá-la; quando se afastou para recolhê-la, viu que todos os irmãos estavam olhando. Assinalou Damián com a cabeça e lhes disse algo marcando as palavras com os lábios, para que ele não pudesse ouvi-la. Logo lhe devolveu a bola.
De repente ressonou um grito e Raphael se lançou para Damián como um tornado... Bam! Derrubou-o e lhe tirou a bola. Esse foi o sinal para que se reatasse a partida.
Minutos depois seu companheiro... sim seu companheiro, a palavra lhe soava bem... tirou a camisa e a jogou a um lado. Fascinada, ficou olhando o desenho dos músculos de seu torso.
A partida terminou. Jamie se emocionou ao ver o sorriso de alegria de Damián. Elevou a face ao sol. Aquele era um grande dia, possivelmente o melhor de toda sua vida.
Damián voltou a colocar a camisa e a puxou pela mão.
—Jamie, vêem aqui. Meus irmãos querem te ensinar algo.
Levou-a onde estavam sentados. Damián lhe pediu que desse a volta.
—Já pode se virar.
Ao virar-se de novo, Jamie descobriu três lobos cinzas estendidos na grama. Um tinha raias negras no focinho. Era Etienne, com as marcas do Alpha. Outro tinha uma característica banda branca: Gabriel. Índigo ultrapassava os outros em tamanho e corpulência. O terror lhe fechou a garganta ao recordar aquela noite...
— Sente-se — disse Damián— Não lhe farão o menor dano.
Obedeceu, fazendo provisão de toda sua coragem. Os lobos se levantaram para aproximar-se dela. Submissamente, baixaram as cabeças e se estenderam de novo a seus pés.
—Adiante. Toca-os.
Estirou uma mão, maravilhada, e arranhou as orelhas do que tinha mais perto.
—É Gabriel. Gosta muito que lhe façam isso... —murmurou Damián.
Jamie fechou os olhos, desaparecendo todos os seus temores. Quando voltou a abri-los, os irmãos de Damián tinham recuperado sua figura humana.
—Obrigada... Obrigada a todos pelo que fizeram... ao acabar com essa coisa que matou meu irmão.
Etienne sorriu. Os outros a olharam muito sérios, com expressão quase solene. Alexandre esclareceu a garganta: a expressão de seu rosto, de traços tão duros, suavizou-se. Inclusive Índigo tinha perdido sua ferocidade.
Não eram bestas cruéis, a não ser machos nobres, orgulhosos, sensíveis. Irmãos. Irmãos de verdade, não como Mark. Esse pensamento surpreendeu Jamie. Até que conheceu Damián, nunca tinha sabido o que era uma verdadeira família. Mas... poderia integrar-se em seu mundo depois de ter vagado sozinha durante tanto tempo? E se trocavam de idéia e a desprezavam, como tinha feito seu tio?
Para romper a tensão do ambiente, tentou fazer uma brincadeira.
—Acredito que seria melhor que voltassem a se transformarem em lobos. Assim correriam mais jogando futebol. Porque... sabem uma coisa? Correm como virgenzinhas.
—Hey, eu só tenho cento e noventa anos — protestou Gabriel, divertido.
—Aposto que ganho em uma corrida. São muito mais velhos que eu — e, sem esperar sua resposta, Jamie saiu correndo.
Rindo, saíram atrás dela. Jamie sorriu e correu mais rápido. De repente sentiu uma mão aproximando-se de suas costas, roçando-a... Experimentou uma pontada de pânico. Suas costas...
Retrocedeu de repente no tempo. Voltava a ter sete anos e corria fugindo de seus primos, que a perseguiam furiosos. A adrenalina circulava como uma corrente por suas veias. Ofegava sem fôlego, até que um ramo lhe enganchou na calça...
Perdeu o equilíbrio e caiu; a calça tinha escorregado por sua cintura. E sua calcinha. Muito tarde se lembrou que pôs a tanga de seda para parecer mais sexy, e não sua roupa íntima habitual...
—Oh, meu Deus, que diabos é isso? —murmurou alguém.
Envergonhada, virou a cabeça para descobrir Damián ajoelhado a seu lado. Sentiu a carícia de sua mão naquela parte que jamais tinha mostrado a ninguém, nem sequer quando tinha feito amor com ele.
Com a ponta dos dedos, delineou as letras gravadas com fogo.
—Jamie, minha preciosa Jamie... O que lhe fizeram?
Fechou os olhos, imaginando o que estava vendo. As horríveis cicatrizes azuladas, as letras que seus primos lhe tinham gravado na pele, que agora eram cicatrizes: Bruxa
Logo que Damián se deteve ante a casa da Esplanade, Jamie entrou correndo, desesperada por refugiar-se em seu quarto. Já era bastante mau que ele tivesse visto as vergonhosas marcas, mas... seus irmãos? Sentia-se como se fosse uma das famosas bruxas de Salem.
Depois de levantar do chão, seus olhares de compaixão a tinham enchido de vergonha. Damián sabia como lhe tinham feito aquelas marcas. Tinha-lhe lido o pensamento, tinha visto seu passado como em um filme.
Foi à cômoda e procurou sua habitual roupa íntima com mãos trementes. Mas debaixo encontrou o tanga azul turquesa. Era preciosa, muito fina. Ficou olhando pensativa. Quanto lhe teria gostado...!
Damián acabava de entrar no quarto.
—Que tonta sou. Queria pôr isso para estar bonita para você. Como uma surpresa — pôs-se a rir enquanto fechava a gaveta— Que surpresa...
Damián lhe embalou o rosto entre as mãos.
—Jamie, me olhe — lhe pediu com tom suave— É uma mulher preciosa e nada, nenhuma marca ou cicatriz, afetará à percepção que tenho de você. Entendido?
Algo se relaxou dentro de seu peito.
—Odeio essa marca. Oxalá pudesse apagar isso. Faz que me sinta tão suja...
—E se faz uma tatuagem? Índigo tem uma loja. Dedicará-te todo o tempo que seja necessário.
Uma tatuagem. Possivelmente fosse uma boa idéia.
—Você decide. Mas tenho que lhe advertir que doerá.
—Nada poderá me doer tanto... como o que me fizeram.
Beijou-a nos lábios.
—Vou chamá-lo. Sairemos agora mesmo.
—Já está, ma petite.
Jamie abriu os olhos. Sentou-se, esboçando uma careta, e se olhou no espelho que Damián lhe tinha aproximado.
—Oh, é precioso... Tão majestoso... Obrigada!
Índigo sorriu, tímido. Imediatamente abandonou a habitação para lhes deixar um pouco de intimidade. Damián ainda não tinha visto bem a tatuagem... por isso teve uma surpresa. Ficou olhando-a com a boca aberta.
Era uma representação exata do lobo de Damián, com seus olhos verdes e vivazes, o olhar perdido no horizonte. Como um rei contemplando seus domínios.
—Jamie, por que eu?
—Necessitava algo formoso e nobre para cobrir a fealdade — lhe acariciou a bochecha com um dedo— Agora já posso suportar levar a marca, e todo mundo saberá que sou um membro de sua família, de sua manada. Sou tua. Para sempre.
A emoção relampejou nos olhos de Damián.
—E eu sou teu. Toujours.
De repente soou seu celular.
—Estaremos ali às dez — Damián voltou a fechá-lo, olhando-a sorridente.
—Alexandre encontrou a última pista. Está na casa de Rafe, nos esperando.
Alexandre, Raphael, Gabriel e Etienne os esperavam no salão. Bastava ver suas expressões. Jamie se aferrou à mão de Damián. Más notícias.
A pintura do lobo no igarapé estava sobre a mesa.
—Por que demorou tanto? —perguntou Damián a Alexandre.
—Na realidade encontrei a pista ontem — olhou seus irmãos com expressão sombria— Nos reunimos os quatro e decidimos... que era melhor esperar para lhes dar a notícia para não danificar a festa de Jamie.
Jamie experimentou uma pontada de terror. Não podia deixar de tremer.
—Quando separamos o tecido do marco, isto foi o que encontramos.
Alexandre estendeu a Damián uma pequena peça de madeira, com um diminuto coração gravado no centro. Damián tomou e a aproximou do nariz.
—Cipreste. Reconheço o aroma. Meu pai escondeu o livro no velho igarapé. Estava acostumado a dizer que o cipreste representava o coração dos draicon por sua figura alta e orgulhosa, que destaca sempre nos bosques sobre outras árvores.
Apoiando ambas as mãos na mesa, baixou a cabeça. Jamie não entendia a causa daquela reação. A notícia não podia ser tão má. Certamente o igarapé era muito grande, mas os draicon, com seu excelente sentido de olfato, não teriam muitos problemas em encontrar o livro...
—O que acontece? Estamos mais perto de encontrá-lo, não? Era no igarapé onde seu pai estava acostumado a caçar... Vamos, é quase de noite. Se levarmos lanternas...
Damián elevou a cabeça. A expressão de absoluta desolação de seus olhos deixou Jamie aturdida, enjoada.
—O antigo igarapé já não existe. Drenaram-no para levantar edifícios. O livro está agora enterrado sob o cimento.
O fio de esperança se rompeu em seu peito. Jamie procurou a cadeira mais próxima e se sentou, enterrando o rosto entre as mãos. Ia morrer.
Aproximava-se a noite. Damián passeava de um lado a outro da mansão, desesperado. Jamie estava no dormitório do primeiro andar, descansando.
Havia tornado a falhar. Não podia salvar a seu ser mais querido. O livro, perdido para sempre. Todos seus poderes, as batalhas que tinha liderado, suas habilidades como guerreiro... tudo tinha sido inútil.
Mas se negava a resignar-se. Quem seria o desconhecido que tinha oculto aquela pista sobre o Natchez? Ele teria o livro, ou estava também morto e enterrado? Subiu ao dormitório de Jamie. Chamou brandamente. Ao não receber resposta, abriu a porta.
—Jamie? — entrou. A cama estava feita, o armário...
Vazio. Uma nota dobrada sobre a mesinha chamou imediatamente sua atenção. Leu-a:
“Sinto muito, mas tenho que ir. Tenho que encontrar outra maneira. Minha vida está em jogo.”
Sentiu-se terrivelmente doído, traído. Jamie não tinha fé nele. Mas a faria voltar, embora tivesse que enviar em sua busca ao último draicon sobre a terra. Chamou Rafe. E começou a caça.
Jamie desceu do bonde e se dirigiu ao City Park, carregada com uma mochila e uma mala. Quando chegou ao pé de um carvalho, sentou-se no chão, deprimida. Que diabos estava fazendo?
Não tinha nenhum lugar aonde escapar, ou onde esconder-se. A morte se dirigia para ela como um furacão. Enterrou o rosto entre as mãos. Na tormenta em que se converteu sua vida, só uma imagem permanecia calma, serena: Damián. Ele sempre tinha velado por ela, tinha-a protegido. Tinha aberto seu coração e compartilhado sua dor. Tinha acreditado nela, apesar que não lhe tinha dado nenhuma razão para fazê-lo.
E, como pagamento, ela tinha fugido. Que estúpida. Tinha seguido a pauta de toda sua vida: fugir em vez de fazer frente a seus problemas. Se realmente ficava tão pouco tempo de vida... com quem quereria passá-lo?
—Com você, Damián —sussurrou— Até o último segundo.
Levantou-se e ajustou a mochila. O último bonde da parada da rua Ursuline já tinha saído. Teria que caminhar.
Acabava de recolher a mala para sair do parque quando ouviu um rugido de motocicletas. O coração lhe subiu à garganta. Vinte motoqueiros, todos embainhados em trajes de couro negro, dirigiam-se diretamente para ela. Raphael comandava o grupo. Tinham-na encontrado.
Damián a esperava no salão da mansão. Tinha um brilho selvagem nos olhos. Seus largos ombros estavam rígidos como uma rocha.
—Nos deixem — ordenou.
Raphael e os outros os deixaram sozinhos. Jamie nunca o tinha visto tão fora de si: com os punhos fechados, apertava os dentes em um esforço supremo por manter o controle.
—Você... nunca volte a me fazer isso.
—Precisamente me dispunha a voltar quando me encontraram, Damián. Quando me detive a pensar no que tinha feito, dava-me conta de que não tinha nenhum lugar aonde ir. Que você foi a única pessoa que nunca tinha me abandonado...
Damián continuava olhando-a fixamente, imóvel.
—E que jamais me abandonará, estou segura. E te dei boas razões para isso. Mas estou assustada. Não fica muito tempo, Damián. Estou farta de estar sozinha. Quero-te e quero aproveitar contigo o pouco tempo que fica...
Os olhos de Damián arderam como laser. Agarrando-a pelos ombros, apoderou-se de sua boca.
—Tenho que entrar em ti — murmurou contra seus lábios— Agora.
Sem deixar de beijá-la, levantou-a nos braços. Subiu as escadas de dois em dois. Uma vez em seu dormitório, baixou-a ao chão.
Despojou-se rapidamente da roupa. Nu, rasgou-lhe a blusa, fazendo saltar os botões. Um rouco grunhido brotou de sua garganta enquanto suas unhas se convertiam em garras, com as que lhe cortou o sutiã. Logo lhe baixou a calça e a calcinha.
Tombaram-se na cama. Damián se apoderou de um mamilo e começou a chupar-lhe. As pequenas e rápidas lambidas a excitaram imediatamente. Logo lhe separou as coxas, afundou a cabeça e se concentrou em acariciá-la ali com a língua. Embebeu-se de seu sexo, aspirando seu aroma. Jamie se retorcia de êxtase, gemendo.
Colocou-se em cima. Sua expressão era firme, decidida.
Finalmente, afundou-se nela. A primeira impressão de Jamie foi de surpresa: sentia-o maior, mais duro que nunca. Abriu-se todo o possível, entregando-se por completo.
—É minha, minha — murmurou ele, incorporando-se sobre os cotovelos. Empurrou de novo, retirou-se e empurrou novamente, afundando-a no colchão. — Minha. Entendido, chére?
—Damián...
—Me responda — voltou a retirar-se. Deteve a ponta de seu membro justo ao bordo, ameaçando-a em deixá-la vazia, doída, ofegante.
Jamie soltou um soluço e lhe cravou as unhas nos ombros.
—Sim, sou tua, só tua... —gritou.
Damián esboçou um sorriso satisfeito. E a recompensou voltando a afundar-se profundamente nela e apoderando-se de seus lábios.
Jamie elevou a cabeça e lhe mordeu o pescoço. Grunhindo, Damián começou a mover os quadris como pistões, fazendo tremer a cama, cada vez mais rápido. Jamie se estreitou contra ele. Olhou-o aos olhos: tinha-os obscurecidos pelo desejo, sua expressão era dura, decidida. O calor do orgasmo se aproximava sem que pudesse alcançá-lo de tudo, e ficou a soluçar, desejosa, desesperada...
—Sim, isso, se deixe levar, neném, sim... —disse-lhe ele. As palavras e a ternura de sua rouca voz dispararam a mola. Jamie se arqueou, elevando-se do colchão, quando alcançou o clímax. Cravou-lhe as unhas na pele. Damián jogou a cabeça para trás, com todos seus músculos em tensão, e rugiu seu nome.
Derrubou-se sobre ela com um suspiro, apoiando a cabeça no travesseiro. Jamie enredou as pernas em sua cintura ao tempo que lhe acariciava as suarentas costas.
—Abandonou-me outra vez — recriminou ele enquanto se colocava de lado e a atraía para si.
—Sinto muito. Não te teria culpado se você tivesse me abandonado — apoiou a cabeça em seu ombro, envergonhada.
Damián lhe elevou o queixo com um dedo.
—Antes teria sido capaz de me arrancar um braço a dentadas. Você não morrerá, Jamie — enterrou a face em seu cabelo— Não permitirei.
Ficaram um momento adormecidos, até que Jamie deslizou uma mão entre suas coxas. Damián, que descansava a seu lado, começava a endurecer-se. Ele soltou um gemido quando ela começou a acariciá-lo e se incorporou para tombá-la de barriga para baixo.
Naquela posição se sentia vulnerável, mas confiava nele. Com gesto reverente, Damián lhe beijou a tatuagem. Ato seguido a penetrou rápida e profundamente, e começou a mover-se a um ritmo constante, que desatou Jamie em um espiral de prazer. Inclinava-se sobre ela, lhe acariciando as costas com o pêlo de seu peito, lhe murmurando ternas palavras em francês. Em um momento determinado deslizou uma mão entre suas pernas para acariciá-la.
Jamie voltou a alcançar o clímax, gritando, apertando-se contra ele. E Damián se reuniu com ela, estremecendo.
Quando Jamie despertou horas mais tarde, o quarto estava às escuras. Seus sentidos a alertaram do perigo antes que Damián a tirasse bruscamente da cama. Foi então quando cheirou. Fumaça.
Damián amaldiçoou enquanto colocava os jeans a toda pressa. Jamie tirou uma camiseta da gaveta, colocou a calça de moletom e correu à janela. Abaixo havia pelo menos trinta pessoas. Não humanos, a não ser morpb. O medo lhe acelerou o pulso.
—Nunca poderiam vencer aos homens de Rafe, assim só querem que saiamos. Não se separe de mim.
Empurrou-a em direção ao corredor. A porta do sótão abriu de repente e Cindy apressou em tirar Michael, Sophie e Sandy. Etienne os seguiu, com Ana nos braços. O último foi Gabriel, com o torso nu, enquanto colocava os jeans.
—O fogo está na parte de baixo. Lançaram um coquetel molotov por uma janela e as cortinas se prenderam. Teremos que saltar pelas janelas — Gabriel guiou à família de Etienne pelo corredor, para sua habitação.
—Como conseguiram penetrar na propriedade? — quis saber Etienne.
—Alguém usou suficiente magia para debilitar o escudo protetor.
Vários pares de olhos se voltaram para Jamie.
Os jogos com os meninos fazendo-os voar, suas desmaterizações... tudo isso tinha debilitado o escudo que protegia a mansão.
—Onde está Rafe? — gritou Gabriel.
—Aqui — respondeu uma voz com tom tranqüilo. Vestido de couro da cabeça aos pés, não parecia absolutamente nervoso— Estão fora. Esperando que saiamos.
—Vi-os — disse Damián com gesto sombrio— Gabriel, leve as crianças e Cindy à propriedade dos Cassidy. Rafe e eu cobriremos o jardim se por acaso se aproximam. Logo volte. Precisaremos de você.
Jamie estava se sufocando com a fumaça. As crianças saíram primeiro; Gabriel já tinha aberto as portas de sua habitação que davam no terraço. Em vez de descer de um salto, Etienne se dispôs a descender pouco a pouco, com Ana nos braços.
Damián sim que saltou e o esperou abaixo, com os braços estendidos, se por acaso caía algum menino. Existia essa possibilidade, já que estavam muito nervosos.
Jamie correu então para Etienne e lhe pediu que entregasse Ana.
—Confia em mim... —pediu-lhe com tom suave, e se ajoelhou frente aos meninos—Meninos, lembram-se de quando jogávamos basquete voando? Pois agora vamos jogar a outro jogo de voar. Eu lhes sustentarei no ar durante todo o tempo, de acordo?
Sophie assentiu ao tempo que tomava Ana pela mão.
—Isso, lhe dê a mão. Está assustada e você é sua irmã mais velha. Não a solte.
Aspirando profundamente, concentrou-se. A dor lhe ferroou as têmporas. Os meninos começaram a flutuar e descenderam lentamente para os braços de Damián.
Cindy desceu pela parede. Minutos depois os meninos estavam a salvo na propriedade vizinha. Jamie tocou as têmporas, que ameaçavam explodir. Não poderia fazê-lo duas vezes. A dor era muito grande.
De repente, um grito chamou sua atenção. Cindy estava assinalando uma lateral da casa: um grupo de lobos se dirigia para eles. Morph. A última barreira de magia tinha caído; acabavam de penetrar no jardim.
Damián não duvidou. Agarrou Cindy pela cintura e virtualmente a lançou ao outro lado da cerca, à propriedade vizinha. Logo se voltou, disposto para a luta.
Mas os lobos o ignoraram para situar-se justo debaixo da terraço, concentrados em Michael e Sandra. Esperavam aos meninos com as mandíbulas bem abertas, com dentes agudos como navalhas de barbear.
Raphael e Gabriel olharam para baixo.
—Poderemos com eles — gritou Rafe— Entre os quatro nos administraremos.
—Mas não podemos deixar aos meninos sós — protestou Etienne— E se algum morph consegue subir até aqui? Necessito que protejam aos meninos.
Ignorando a dor que seguia lhe ferroando as têmporas, Jamie se ofereceu novamente a ajudar:
—Por favor, confiem em mim. Eu os abaixarei.
Etienne aproximou Michael e Sandy ao corrimão.
—De acordo. Faz.
Jamie se concentrou em fazê-los descender e transladá-los logo à propriedade vizinha. Enquanto isso, Gabriel, Raphael e Etienne desceram de um salto para reunir-se com Damián. Os quatro irmãos se metamorfosearam simultaneamente em lobos.
Fechando os olhos, Jamie se desmaterializou para reaparecer no jardim do imóvel vizinho. Fraquejavam-lhe as pernas. Nesse momento sim que podia sentir o veneno circulando por suas veias, o feitiço fazendo seu efeito, impondo-se à magia de Damián...
Cindy se apressava em colocar aos meninos na casa. Cambaleando-se, Jamie conseguiu apoiar-se em um tronco de árvore enquanto os quatro irmãos se engalfinhavam com os morph. Em poucos minutos acabaram com eles.
Fazendo um esforço supremo, caminhou até a porta, em busca de Damián, que a sujeitou quando caía.
—Sinto muito... é minha culpa... eu debilitei o escudo que protegia a casa.
—Shhh — lhe acariciou o cabelo— Não aconteceu nada. Todos estamos a salvo.
—Onde está Alex? —inquiriu de repente Gabriel.
—Foi à rua Bourbon — respondeu Etienne, reunindo-se com Cindy e os meninos.
—Não. Faz meia hora que voltou — disse Rafe.
Todas os olhares se voltaram para a casa. Jamie levou uma mão à boca. Damián gritou:
—Alex, salta!
Seu irmão não fez gesto algum de abrir a janela. Damián quis correr para ele, mas Rafael o deteve.
—Muito perigoso, t'frére. Não poderá subir as escadas.
—Alex...
A angústia se desenhava nos traços de Damián enquanto contemplava a casa. Seu irmão, morrendo... ouviam-se já as sirenes dos caminhões de bombeiros. Para quando chegassem, seria muito tarde.
Quando se voltou para olhar Jamie e lhe leu o pensamento, ficou branco.
—Jamie, não, não...
—Sim. Tenho que redimir meus pecados — lhe deu um rápido beijo. E desapareceu.
Ardiam-lhe os olhos pela fumaça quando voltou a materializar-se ao pé da janela onde se encontrava Alexandre. A dor ameaçava lhe fazer estalar a cabeça.
—Não — gritou Alexandre— Volta com Damián.
—Virá comigo.
—Não posso. Eu morrerei... e serei livre ao fim —sussurrou— Minha companheira e minha filha estão me esperando no Outro Mundo. Não posso seguir vivendo assim. Tenho que voltar com elas.
Jamie tomou-lhe uma mão e sentiu a enorme violência de sua dor.
—É um egoísta — lhe recriminou— Só pode pensar nos que perdeu, e não nos que perderão a você? Eu teria dado meu braço direito por ter uma família como a tua, que me quisesse tanto... O que me diz de Damián? Sua morte lhe destroçará. E eu não quero que isso aconteça.
Ficou olhando-a estupefato.
—Alex, ainda não chegou seu momento — abriu a janela de par em par. Os pulmões lhe ardiam pela fumaça. Com a mente, tentou levantá-lo. Mas os pés de Alex apenas se separavam do chão.
«Pensa em Damián. Pensa em tudo o que perdeu... e no muito que sofrerá se chegar a perder também a Alexandre», disse-se. Concentrou-se em Damián, em seu amor, em sua coragem, em sua lealdade. Fechou os olhos e imaginou Alexandre flutuando no ar, saindo pela janela para reunir-se com seus irmãos... A família era o único importante.
Quando voltou a abri-los, viu realmente Alexandre aterrissando são e salvo no jardim do imóvel vizinho. Ela mesma se desmaterializou para aparecer segundos depois a seu lado. Mas começou a cair e uns fortes braços a sustentaram antes que a escuridão a tragasse.
—Não deveria ter feito isso.
A voz grave e profunda tinha um tom acusador. Em vão se esforçou por abrir os olhos. Sentia seu corpo como um peso morto. Tentou elevar a cabeça, mas lhe custou muito.
Estava deitada em uma cama. Vagamente recordava haver despertado, com Damián levando-a à ducha para lavá-la com deliciosa ternura. E recordava também havê-lo visto convexo a seu lado quando voltou a desmaiar.
—Sinto muito. Eu... —repôs outra voz masculina— Não pode imaginar quanto sinto.
Com um tremendo esforço, conseguiu abrir os olhos. Damián estava ao pé da cama, frente a Alexandre. Os dois irmãos se abraçaram. Quando se afastou, Alexandre parecia lutar contra as lágrimas.
—Damián, tem que haver uma saída, uma solução... Seu pai não pode ter deixado o livro ali, a risco de que ficasse enterrado sob o cimento... Ainda podemos salvar Jamie. Acredito firmemente nisso.
—Tranqüilo. Conseguiremos. E agora vá descansar — Damián ficou olhando seu irmão enquanto se retirava. Logo se voltou para Jamie— Ah, já está acordada... —sentando-se na cama, acariciou-lhe a testa— Está melhor agora? Não terá mais desmaios?
—Não voltarei a desmaiar —sorriu— Prometo.
—Esta é minha garota — se inclinou para depositar um terno beijo em seus lábios. —O que aconteceu?
—Estamos em sua casa. Todo mundo se instalou aqui salvo Etienne, Cindy e as crianças, que foram para a casa de Paw Paw.
Beijou-a de novo. Mas Jamie se deu conta da dor que o embargava. Estava sofrendo terrivelmente.
—Nada de arrependimentos, mon amour —lhe disse ela— Tinha que fazer o que fiz. Quero acabar minha vida sem me arrepender de nada.
Algo escuro e feroz brilhou nos olhos verdes de Damián.
—Você não vai morrer. Encontraremos uma maneira de te salvar.
—Poderia pedir a Raphael que viesse para ver-me? —tentou sorrir— Preciso falar com ele.
—Claro — lhe acariciou uma mão. Mas quando baixou o olhar, ficou apavorado. Consternado.
Jamie também o fez e soltou um grito.
—Oh, meu Deus, minhas mãos!
Tinha os dedos rígidos, incapazes de qualquer movimento, duros como pedra.
—Está se estendendo rápido — Damián a atraiu para si— Temos que encontrar uma maneira. Não nos renderemos.
—Não — sussurrou ela a sua vez.
Mas suspeitava que já fosse muito tarde.
Jamie adormeceu ligeiramente. Damián permanecia a seu lado.
Pouco depois Raphael entrou no quarto.
—Só queria ver como está Jamie... Deixa-nos um momento a sós?
Damián saiu entristecido. Jamie despertou.
—Está sofrendo muito — disse ela— Posso sentir sua dor.
—Sei.
A voz do kallan era quase terna. Sentou-se na cama.
—O que quer irmãzinha?
Tinha-a chamado «irmã». Já era da família. Aquilo lhe deu forças.
—Quero te pedir um favor. — o olhou fixamente— Que acabe comigo agora. —Nenhuma emoção brilhou nos olhos escuros de Raphael. — Logo, antes que já não possa falar. Antes que termine me convertendo em pedra.
—Por quê?
—Não posso suportar vê-lo assim, ver a maneira que me olha enquanto estou me convertendo em uma morta viva. O processo o matará. Será pior que a morte. Eu sofrerei, mas para ele será uma agonia.
Jamie esperou. Olhou a adaga de Raphael, perguntando-se se ele decidiria acabar de uma vez com seu sofrimento, para economizar também o sofrimento de seu próprio irmão.
—Quanto o ama, irmãzinha?
A resposta chegou sem duvidar.
—Mais que a minha própria vida.
—Então não se renda. Nunca se sabe.
—O que quer dizer?
—Que às vezes se produzem milagres.
Levantou-se e partiu. Damián entrou pouco depois.
—Quanto tempo resta? — perguntou Jamie a Damián.
—Não sei — lhe acariciou uma bochecha— Uns poucos dias, possivelmente, se não usar mais magia. Quanto à minha... —parecia perdido, desorientado— já não serve de nada.
—Me leve abaixo, Damián. Quero sentir o sol na face, antes que já não possa senti-lo.
Levantando-a delicadamente nos braços, levou-a ao jardim e a instalou em uma cômoda espreguiçadeira. A mão de Damián tremeu quando voltou a lhe acariciar uma bochecha. Mas logo pareceu recuperar as forças.
—Tem que haver uma maneira. Meu pai não pode ter deixado o livro em um lugar que poderia ficar enterrado, perdido para sempre.
—Não sem dizer antes a alguém... —Jamie se animou de repente. Incorporou-se, excitada. De repente tudo encaixava— Damián, a pista do Natchez, que alguém preparou depois da morte de seu pai... Tem que haver outra pintura do lobo. Por que alguém teria se incomodado em preparar uma nova pista se o livro estava enterrado sob o cimento? Possivelmente essa mesma pessoa o resgatou.
—E a pintura que encontramos foi uma pista falsa. Uma distração — acrescentou Damián, tão excitado como ela— Uma pintura distinta... Acredito que já o tenho. Dieu, espero que sim... Já volto.
A praça Jackson formigava de turistas. Damián corria entre a multidão, com o coração acelerado. O pintor, por certo, tinha que seguir ali...
—O loup garou nunca fais dodo no bayou, mon frére.
Virou-se rapidamente. Era o artista que lhe tinha solto aquela mesma frase o primeiro dia, quando chegou à cidade. O pulso lhe acelerou ainda mais. Examinou a pintura.
O lobo, ao lado da cabana no igarapé. Um orgulhoso lobo cinza com umas marcas Alpha como as suas, olhos de um verde jade... seu pai. Aspirou profundamente enquanto se obrigava a recordar a infância que tanto se esforçou por esquecer. Os bons tempos, as risadas, os amigos... A família, os amigos. O pai de seu amigo, que pintava uns quadros tão formosos...
O artista se voltou lentamente para ele e tirou os óculos de sol. Damián se aproximou. Tinha o olhar perdido. Estava cego.
—Mon Dieu... Jordán? —Tomou-lhe brandamente os ombros
— C'est vrai, não morreu... É você Damián. Damián Marcel. O primogênito de André.
E o abraçou, emocionado. Damián beijou as bochechas do homem que tanto tinha querido seu pai.
—O que se passou com seus olhos?
—Os morph me cegaram — explicou Jordán — Eu fui o único que sobreviveu ao ataque. Tive que sobreviver, para guardar o livro para você... Os outros membros da manada me disseram que tinha morrido. Eu me neguei a acreditá-lo. Busquei-te por toda parte e não te encontrei. Mas jamais perdi a esperança...
—A manada me repudiou.
—Sinto — lhe acariciou uma bochecha— Seu pai recomendou que eu me encarregasse do Livro de Magia se lhe ocorresse algo e que o guardasse para lhe poder entregar algum dia.
—Primeiro Renee e agora você vivo... Mon Dieu.
—Renee está viva?
—Estava — Damián apertou os dentes— Dissimulou seu aroma e permaneceu escondida durante todos estes anos. Mas os morph a assassinaram faz uns dias porque conhecia a primeira pista para encontrar o livro, a da loja de antiguidades.
—Oh — o draicon se mostrou visivelmente afetado— Foi tanta a tristeza depois do ataque dos morph... mas eu nunca perdi a esperança que seguisse vivo. Você, de toda nossa manada, tinha que sobreviver. É forte, digno filho de seu pai. Esperei e esperei, sem confiar em ninguém. Os morph aprenderam a dissimular seu aroma, por isso não te abordei diretamente. Limitava-me a perguntar aos forasteiros cujo aroma me resultava familiar. Segui esperando que voltasse, reconhecesse a pintura... e recordasse as palavras que estava acostumado a te dizer seu pai.
—O lobo nunca dorme no igarapé, irmão —repetiu Damián, sorrindo— E o que trabalha duro nunca dorme. Meu pai sempre me dizia isso — a emoção lhe subia pela garganta. Olhou a pintura — É o igarapé, non?
—Não exatamente. Precisamos falar em um lugar seguro. Vamos, leve-me.
Jamie experimentou uma pontada de esperança quando Damián lhe apresentou ao amigo de seu pai e deixou a pintura sobre a mesa do jardim.
—Toca-a, mon frére —lhe pediu Jordán — Toca a pintura e pronuncia as palavras.
Damián fechou os olhos. Colocou uma mão sobre a pintura e pronunciou as antigas palavras em língua draicon que lhe tinha ensinado seu pai. Faíscas iridescente se elevaram no ar enquanto a superfície da pintura se convertia em... um grosso volume encadernado em pele de cor vermelha. O Oculto Livro de Magia.
Jamie ficou maravilhada. Damián começou a lê-lo e a passar as páginas com uma expressão de absoluta veneração. De repente franziu o cenho.
—Aqui está a entrada do feitiço, o cabeçalho. Mas não há nenhum texto abaixo.
Jamie teve uma horrível suspeita.
—É um feitiço maligno e requer escuridão, ou carência de sentimentos, para decifrar as palavras. Dê-me isso. Eu poderei lê-lo.
Damián depositou brandamente o livro em seu colo. Jamie procurou concentrar-se. A maligna magia morph que ainda levava em seu interior a capacitava para ver o que Damián era incapaz de distinguir. O sangue lhe congelou nas veias.
—O que acontece? Me diga o que é para que possa te curar... —pediu-lhe Damián.
Sua expressão era absolutamente desesperada. Jamie o olhou, emocionada. O amor prevaleceu sobre o medo. Amava-o. Mas já era muito tarde.
—Necessitamos do Raphael e de sua adaga.
—A adaga sagrada?
«Para o ritual de despedida», respondeu em silencio Jamie enquanto assentia com a cabeça.
—Me beije —lhe pediu em um sussurro.
Damián voltou a colocar o livro sobre a mesa e a beijou. Jordán esperava a um lado, pensativo. Justo naquele momento bateram na porta de entrada.
—Hey, amigo. Rafe nos enviou para ver se necessita de ajuda. Jamie se encontra bem?
Adam e Ricky entraram no jardim. Jordán virou rapidamente a cabeça para eles, esboçando uma careta. A cegueira tinha desenvolvido ainda mais seu olfato de draicon, de maneira que pôde cheirá-lo antes que Damián.
Jamie também detectou o aroma: a lixo. A podridão. O coração lhe acelerou de pânico.
—Não... —sussurrou.
A escuridão que ainda aninhava em seu interior lhe permitiu ver o monstro em sua autêntica figura... justo quando Adam apunhalava Jordán.
Damián se moveu com incrível rapidez, colocando-se diante dela. Jamie se esforçou por levantar-se da espreguiçadeira. Não pôde; sentia os braços como pesos mortos. As pernas eram como colunas de granito.
Viu que Damián levava uma mão ao bolso traseiro de seu jeans, tirava o celular e pulsava um botão. Logo voltou a guardar-lhe Acabava de pedir ajuda.
Adam sorriu, com sua adaga na mão. Empurrou com um chute o corpo de Jordán.
—Ricky... —disse Damián em voz baixa— Já sabe o que tem que fazer.
—Oh, não te escutará. Só obedece a mim — disse Adam— Vá por ele, Ricky.
O outro draicon começou a aproximar-se, obediente.
—Muda — ordenou Adam.
Ante o horrorizado olhar de Jamie, o rosto de Ricky começou a agitar-se e a contorcer-se, até converter-se... em uma cópia exata de Adam.
O coração lhe acelerou de pânico. O primeiro Adam balançou sua adaga e disse:
—Sabia que matar a um parente dá poder, mas matar a sua própria mãe te converte praticamente em um ser invencível? Pode criar clones sem gastar energia. Clones humanos, não só animais. Clones humanos com seu aspecto que podem matar por você e transmitir a energia a seu anfitrião... —pôs-se a rir—Poderia estar em dezoito lugares de uma vez.
Sua risada tinha um eco metálico. Esticando um braço, tocou o Livro de Magia com a ponta de sua adaga.
—Obrigado por me trazer isso. Sabia que acabaria encontrando-o. Estive seguindo todos seus movimentos pelo computador. Minha mãe tentou me impedir assim tive que matá-la. Pobre Renee.
O filho de Renee. Jamie estava aterrada.
—Mas Maurice morreu em um acidente de carro...
—Isso é o que disse a todo mundo. Troquei o nome e Renee guardou o segredo. Necessitava que ninguém conhecesse minha existência, claro. Pobre maman. Perdeu seu marido e logo seu filho, quando Claude tentou te matar sendo ainda um bebê, Damián. Ele sabia bem, como eu, quão perigoso chegaria a ser. Assim quando se converteu em lobo pela primeira vez... tive que atuar e matar você e a sua família — sorriu, perverso— Eu gostei do medo de todos. Encheu-me de energia. Sobre tudo o de Annie...
Damián estava absolutamente imóvel. Jamie podia sentir sua imensa raiva, mas parecia controlado, dono de si.
—Renee não podia suportar estar sem mim. Era um bom acerto. Eu caçava pelas noites e voltava para sua casa pelo dia, para me esconder. Até que você veio à loja, vaca... —dirigiu-se a Jamie— Então ela disse que não podia seguir vivendo assim. Que em você tinha visto a bondade triunfando sobre as trevas, e que em mim não via nada mais que escuridão. Ameaçou me denunciar. Por isso a matei e fiz que um de meus clones adquirisse o aspecto de Arquimedes, seu gato. Joguei o verdadeiro Arquimedes à rua e esperei para ver quem se apresentava na loja. Foi você, Damián. Eu sabia que você gostava muito de animais, e precisava colocar um espião na casa de Jamie. Com o que não contei foi com que o verdadeiro Arquimedes se metesse também na casa e que você logo mataria meu clone ao descobrir que era um morph — voltou a balançar a faca— Mas agora que já tenho o livro, ninguém poderá me deter. Sou o mais capitalista de todos.
—Isso você crê, canalha... —resmungou Damián antes de converter-se em lobo.
Adam bramou uma ordem e Ricky se converteu em um lobo negro. Jamie ficou aniquilada quando o lobo se dividiu em dois: uma, duas vezes. Até que foram cinco os lobos negros que atacaram Damián.
Dois se lançaram a seu pescoço, enquanto os outros três o atacavam por trás. Damián resistiu, mas não tinha nenhuma oportunidade.
Jamie convocou então as forças que ficavam, todo seu amor por Damián. Elevou no ar dois lobos e os lançou contra o muro de tijolos como se fossem bonecos.
Liberado daquela imediata ameaça, Damián lutou com os que o atacavam por trás.
Justo nesse momento se ouviu um potente uivo e três grandes lobos cinza entraram no jardim. Jamie esteve a ponto de desmaiar de puro alívio: os irmãos de Damián se somavam à briga. Pouco depois Adam e seus clones jaziam mortos no chão.
Damián e seus irmãos recuperaram sua forma humana. Raphael se aproximou de Jordán e tomou o pulso.
—Está vivo. Ficará bem. Me ajudem a levá-lo ao piso de cima.
O velho draicon estava pálido, com a camisa cheia de sangue. Enquanto Gabriel e Alexandre se encarregavam dele, Damián se apressou a abraçar Jamie.
—Já acabou tudo — lhe sussurrou— Tudo terminará arrumando-se, chére — se afastou para olhá-la melhor— Está tão fria... O feitiço está se acelerando... Diga-me de uma vez, por favor... Como podemos rebatê-lo? Você leu no livro...
Jamie tinha a sensação que os pulmões estavam se enchendo de cimento... Custava-lhe respirar. O veneno estava atuando em seus órgãos internos. Muito em breve ficaria absolutamente paralisada.
Raphael, Gabriel e Alexandre voltaram em seguida e se congregaram em torno do livro.
—Damián, me deixe no chão. Assim... resultará muito mais fácil fazer o que terá que fazer... Não há cura. Só teria sido possível nos primeiros estágios da enfermidade. É muito tarde.
Damián ficou olhando Jamie, estendida no chão. Sua palidez tinha uma cor cinzenta. Inclusive o branco de seus olhos tinha adquirido um tom de ardósia. Seus lábios estavam se convertendo em granito.
—Te amo — murmurou Damián, preso em uma insuportável dor— Não posso deixar que se vá...
—Não há outro remédio — Jamie pronunciava as palavras com dificuldade— Tem que fazê-lo. É a única maneira que tem meu espírito de libertar-se... do feitiço. O ritual de despedida.
—Não o faça, Jamie, por favor... Agüenta. Por favor, não me deixe ainda. Eu... preferiria morrer.
Damián leu seu pensamento. Jamie não queria que tivesse que velá-la para sempre, uma estátua de pedra cuja morte lamentaria até o fim dos tempos. Sabia que desperdiçaria sua vida, abandonaria a sua manada, estaria preso para sempre, desejando o que jamais poderia ter: acessar a sua alma, encerrada atrás da dura pedra.
Não, Jamie o amava muito. E queria que fosse livre. Como seria sua alma se consentia em fazer o que lhe estava pedindo.
Um brilho de dor apareceu em seus olhos cinza. Olhou Raphael, desesperado. Seu irmão desviou a vista: não havia nada que fazer.
Resignada, a expressão de Jamie lhe rasgava o coração.
—Eu... amo você —murmurou ela— Por favor... deixe-me ir Damián. Por favor. — estava se sufocando.
—Faz algo, por favor, qualquer coisa... —suplicou Damián a seu irmão. Nunca antes tinha suplicado a ninguém. Tinha sido muito orgulhoso. Muito teimoso.
—Laissez-faire. Deixa que se vá, t'frére — lhe aconselhou Raphael, baixando a voz— É o momento. Faz. Terá que deixar que se vá se quiser que volte para você.
O ritual de entregar a um ser querido à eternidade. Tinha que fazê-lo. Tinha que assegurar-se que sua alma abandonava seu corpo convertido em estatua para encontrar por fim o descanso que merecia. Seu amor seria como um farol que o guiaria de volta a Jamie quando sua vida também se apagasse. Com voz entrecortada, recitou as palavras sagradas:
—Que sua viagem ao Outro Mundo seja rápida, eterna sua alegria, livre seu espírito. Que descanse para sempre em paz. Meu amor por você é eterno e te levarei em meu coração até o final de meus dias. Até que voltemos a nos encontrar em outro tempo e em outro lugar.
Damián rasgou sua camisa camisa. Seu irmão tirou do seu cinto a sagrada adaga e a entregou.
Ele apenas sentiu o corte que fez em sua palma. O corte que se fez no peito foi mais profundo, uma dor que acolheu de bom grato. Ele cobriu o ferimento com a mão.
—Meu coração guardará sua lembrança, que viverá para sempre dentro de mim — sussurrou na antiga língua.
Com a garganta fechada pela dor, inclinou-se para beijá-la na boca, dura como a pedra.
—Quero-te —murmurou— Te quererei sempre. Me espere do outro lado. Algum dia voltaremos a nos reunir. Eu tenho que ficar aqui e seguir adiante. Deixo-te, Jamie. É livre para partir, meu amor.
Jamie começou a gemer.
—Eu... eu te amo, Damián. S-sinto não lhe haver dito isso... antes. Você é... —seus lábios deixaram de repente de mover-se, transformados em pedra.
—Adeus, irmãzinha — murmurou Raphael enquanto se inclinava sobre ela.
Damián a beijou. Tinha a vista nublada pelas lágrimas e algo relampejou em seus olhos, como uma tremenda explosão de energia. Logo ficou sentado sobre os pés, com o olhar perdido.
Com um muito leve suspiro, Jamie morreu. Apagou-se como uma vela. O brilho de seus olhos. Seu corpo.
—Não... —sussurrou Damián.
—Seu espírito está a salvo. Já não segue encerrado neste corpo de pedra — lhe disse Rafe.
Os lábios entreabertos de Jamie destilaram uma pequena nuvem negra que se dissolveu no ar: era o último resto de magia morph que abandonava seu corpo.
—Jamie...
Acabou. Jamie tinha morrido. Damián imaginou perfeitamente sua própria vida desde aquele mesmo instante. Um fantasma vivo, à espera de reunir-se novamente com ela na eternidade.
Sentiu as lágrimas lhe escorrendo pelas bochechas. Salgadas, eram salgadas. E as de Jamie tinham sido doces. Jogou a cabeça para trás e lançou um grito horrível, dilacerador. Soluçou, molhando com suas lágrimas aquela muda estátua de granito.
Tinha que beijá-la uma vez mais, uma última vez. Aproximou a boca de seus lábios gelados. Raphael e os outros se retiraram.
Mas algo não ia bem. Damián ficou olhando o rosto de sua amada. Parecia recuperar a cor... um efeito da morte? Outra lágrima rodou por sua bochecha, até cair na de Jamie. A lágrima deixou um rastro de pele rosada... desfazendo a pedra.
De repente compreendeu tudo.
—O feitiço, mon Dieu. Lágrimas. O sal combate à pedra. E eu que acreditava que era minha magia o que rebatia o feitiço... eram as lágrimas. Maldita seja, tragam cubos de sal! Rápido!
Minutos depois, repartiram uma cuba cheia de sal em vários de água e começaram a salpicar Jamie com água salgada. A cor cinza abandonava sua pele como as capas de uma aquarela apagada pela chuva. Sim, isso tinha que funcionar...
Quando terminaram de esvaziar o último cubo sobre seu corpo, tinha a pele tão rosada como a primeira vez que Damián a viu. Ao ir beijar seus lábios, o que sentiu não foi pedra, a não ser carne. Mas seguia morta.
Raphael então lhe rasgou a blusa e lhe fez um pequeno corte à altura do coração. Logo se cortou no pulso e derramou quatro gotas de sangue sobre a ferida. Lambeu o pulso e inclinou-se sobre ela para lhe insuflar seu poderoso fôlego.
—Meu Deus... olhe Damián —assinalou Gabriel.
O peito de Jamie se elevou e voltou a abaixar. A ferida de seu peito cicatrizou em questão de segundos. Raphael se afastou por fim dela. Estava pálido, cansado. Consumido.
Damián estava estupefato. Não se atrevia a esperar e entretanto... Seus olhos, seus preciosos olhos cinza... abriram-se. Pestanejaram várias vezes até que posou o olhar nele.
—Damián. Oh, Damián, está aqui...
Era a voz mais doce do mundo, Damián tomou sua mão, emocionado. O coração ameaçava sair do peito.
—Por favor, me diga que não é um sonho...
—Não a curve. Deixa-a descansar — lhe aconselhou Rafe— Necessita.
Damián a estreitou contra seu peito, sentindo o firme batimento de seu coração e enterrou a face em seu cabelo. Logo olhou a seu irmão.
—Deu-lhe seu sangue. Sua magia.
—Não pode, Rafe... —Gabriel ficou olhando com a boca aberta— Está proibido de fazê-lo com qualquer um que não seja... Vai contra...
—Contra nossas leis, já sei. Deixa. Me preocuparei com isso depois.
Damián lhe agradeceu em silêncio. Gabriel se aproximou então do Livro de Magia e começou a passar as páginas.
—Não se lê muito bem, mas parece que diz que o feitiço só pode ser combatido em sua fase inicial... com água salgada. Se fizer isso muito tarde, o corpo revive, mas o espírito se perde para sempre a não ser que o ritual de despedida tenha sido executado por um ser querido, entregando a alma ao Outro Mundo.
—As lágrimas derretem o coração da pedra. E o amor salva a alma perdida — pronunciou Rafe.
—O ritual de despedida... Eu tinha que liberá-la e demonstrar assim meu amor por ela — refletiu Damián.
—Igual Jamie te demonstrou seu amor não querendo ver você sofrer. Esse beijo que Jamie te deu antes aumentou seu vínculo.
Voltou a beijá-la. Essa vez seus lábios eram quentes, suaves. Salvou-se.
—Mas sua draicara, Rafe, sua única oportunidade para salvá-la... e se... ?
—Oh, duvido que encontre a minha alma gemea alguma vez. E não podia ver você sofrer dessa maneira...
Abrir os olhos à vida e ver Damián tinha sido um verdadeiro milagre. Tinha sacrificado tanto por ela... mas, sobretudo, tinha sacrificado seu coração. E, ao fazê-lo, tinha-lhe salvado algo mais que a vida. Havia-lhe devolvido seu espírito e sua esperança.
Esperaram dois dias para que terminasse de recuperar as forças. Naquele momento, enquanto baixava as escadas, Jamie viu todo mundo esperando-a abaixo. Toda sua família. Os irmãos de Damián, incluindo Etienne, Cindy e os meninos. Também estava Paw Paw, que insistiu em fazer a viagem. O coração lhe inflamou de gozo.
Mas sua atenção se concentrou em Damián, vestido em traje negro e camisa branca, com um brilho de puro amor em seus olhos verdes. Abriu os braços, sorridente.
—Seus desejos são ordens. Queria te emparelhar comigo? Sou todo teu.
Foi uma simples mas comovedora cerimônia. Como draicon de maior fila, Raphael oficializou a cerimônia na antiga língua. Logo tirou sua adaga sagrada. Damián subiu a manga. Jamie contemplou assustada a fulgurante folha.
—Tranqüila. Dê a Rafe sua mão direita. Com a palma para cima.
Estendeu a mão. Raphael lhe fez um corte rápido na parte baixa da palma. Logo repetiu a operação com Damián. Gabriel lhes ofereceu uma fita de seda branca e uma gaze, dentro de uma pequena caixa de veludo.
Raphael limpou a folha de sua adaga e voltou a guardar. Tomou suas mãos e as apertou para que seus respectivos sangues se mesclassem. Por último, atou-lhes os pulsos com a fita branca.
—O que antigamente foram duas metades voltam a ser uma. Um só coração, um só sangue. Vão para selar com seus corpos esta união.
Todo mundo explodiu em gritos e aplausos. Damián a subiu pelas escadas. Para assombro de Jamie, passou por seu quarto.
—É uma surpresa — murmurou ele— Pedi a todos que a redecorassem.
A porta do apartamento do segundo andar estava aberta. Era o dormitório principal da casa. Longos tecidos cor azul celeste penduravam de paredes e janelas. Na imensa cama de carvalho luzia uma colcha da mesma cor. Em um canto, uma mesa simples, mas elegante.
O sol da tarde se filtrava pelas frestas das venezianas brancas. Um aroma de madressilva impregnava o ar.
Ali estava Jamie, viva, livre. Dele, para sempre. Desatou a fita de seus pulsos. O desejo ardia em seu olhar. A fita de seda foi parar no chão.
Amava-a com loucura.
Uma vez nus, não deixaram de beijar-se enquanto se aproximavam da cama. Jamie ardia de desejo por ele, por fundir-se com seu corpo... Damián lhe acariciou o pescoço com sua boca ardente e se apoderou de um mamilo. Suave e delicadamente, começou a chupar-lhe.
Jamie se aferrou a seus ombros, cada vez mais excitada. Deitou-se primeiro na cama, abrindo os braços. Damián se instalou entre suas coxas.
Podia sentir seu duro membro pressionando seu úmido sexo. O pulso lhe acelerou de espera, de desejo.
—Te amo tanto... —murmurou ele— Nunca voltarei a te perder, mon amour. Você é minha vida, o ar que respiro, a chama da minha alma que nunca morrerá.
—Me faça tua, Damián. Para que nada nem ninguém volte a nos separar nunca.
Ele entrou nela, profundamente. Jamie jogou a cabeça para trás e gemeu de prazer. Enredou as pernas em torno de sua cintura, aproximou-o ainda mais.
Damián começou a mover os quadris. Jamie alcançou o orgasmo e gritou seu nome, retorcendo-se de gozo. Jamie viu que ele jogava a cabeça para trás, com os músculos e tendões a ponto de estalar, estremecendo seu poderoso corpo. O calor de sua semente se estendeu por seu interior.
Acabava de soltar um suspiro de prazer quando o sentiu: uma explosão interna de puro amor. Quando abriu os olhos, viu uma chuva de faíscas iridescente caindo a seu redor, envolvendo-os por completo.
—O que está acontecendo?
Aferrou-se a seus ombros, sentindo que sua ereção se alargava e aumentava até limites impossíveis... sentiu a si mesma dentro da cabeça de Damián.
Damián se incorporou sobre os cotovelos e a olhou muito sério:
—É a magia do emparelhamento. Tranqüila, mon amour.
E a envolveu em seus braços. Jamie apoiou a cabeça em seu peito, confiando completamente nele. Estava chorando. Sentia Damián em sua cabeça e em seu coração: todo ele, seu passado, seu presente e suas esperanças. Sentia sua magia enchendo seu corpo, pulsando em suas veias; a maravilha de converter-se em lobo, a excitação da caça, seu orgulhoso sentido de responsabilidade como líder da manada.
Damián lhe acariciava os cabelos, lhe sussurrando palavras carinhosas. Minutos depois, as faíscas se apagaram.
—Não se preocupe. Estou bem — se afastou para olhá-lo. Tinha respondido a uma pergunta que lhe tinha feito telepaticamente— É muito estranho. Sinto-me como se formasse parte de você. Como se você estivesse no fundo da minha mente, mas não se intrometendo em meus pensamentos, a não ser me apoiando como se estivesse me acariciando por dentro. É maravilhoso.
—Pois eu só sinto um absurdo desejo de jogar World of Warcraft. E pensar que em minha vida nunca joguei isso...
E puseram-se a rir. De pura felicidade.
Minutos depois materializaram-se na propriedade que ocupava a manada de Damián no Novo México. Jamie sorriu ao ver sua expressão de surpresa.
—Curiosa a sensação do movimento de suas moléculas enquanto viaja, não é?
—Agora sei por que nunca gostei de Star Trek — ele puxou sua mão enquanto começavam a andar.
Jamie estava um pouco nervosa. A última vez que tinha visto sua manada, deixou surpreso a todo mundo ao tentar matar seu líder. Tanto Maggie, que tinha sido quem tinha curado Damián graças a seus poderes, como seu companheiro Nicolás tinham sido muito amáveis com ela. Duvidava que a recebessem com os braços abertos...
Levou a surpresa de sua vida quando viu uma multidão descendo pela colina. Reconheceu Maggie e Nicolás, que sustentavam sorridentes uma bandeira com a ajuda de duas crianças pequenas escrito: Bem-vinda a sua casa, Jamie.
Lágrimas de felicidade começaram a rolar por suas bochechas. Damián lhe apertou a mão.
A manada se deteve, surpresa. A menina loira que sustentava uma ponta da bandeira ficou olhando com expressão triste:
—Está chorando... E nós que acreditávamos que ficaria contente ao ver a bandeira...
—Está tudo bem — Jamie sorriu— Chorar é algo muito saudável.
Foi uma das melhores lições que tinha aprendido.
Bonnie Vanak
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