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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE LIBERTADA
AMANTE LIBERTADA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

CAPÍTULO 45

Vishous chegou em casa em um piscar de olhos e depois de dar uma olhada em Jane na clínica dirigiu-se para a mansão por meio do túnel subterrâneo. Quando saiu no saguão de entrada, tudo o que ouviu foi um nada retumbante e ficou desconfortável com o silêncio.

Era uma tranquilidade estranha.

Claro, normalmente, aquilo acontecia quando se era duas horas da madrugada e os Irmãos estavam todos fora no campo de batalha. Contudo, naquela noite, todos estavam recolhidos, provavelmente fazendo sexo, recuperando-se disso, ou preparando-se para fazer outra vez.

Sinto como se tivesse feito amor com você pela primeira vez.

Quando a voz de Jane voltou em sua mente, não sabia se sorria ou se chorava. Mas não importava, havia um admirável mundo novo para ele, começando a partir daquela noite... Não que tivesse plena certeza do que isso significasse, mas estava disposto a entrar nessa. Muito disposto.

Chegando à grande escadaria, alcançou rapidamente o escritório de Wrath, enquanto tateava todos os bolsos que não tinha. Ainda estava vestido com a maldita bata hospitalar. Com as manchas de sangue. E sem cigarros.

– Filho da mãe.

– Senhor? Precisa de alguma coisa?

Quando parou no topo da escada, olhou para Fritz, que estava limpando o corrimão, e quase beijou o mordomo na boca.

– Estou sem meu tabaco. E também sem meus papéis para enrolar...

O velho doggen abriu um sorriso tão largo que as rugas em seu rosto fizeram com que parecesse um Shar-Pei.

– Tenho mais disso na despensa. Volto já... vai se encontrar com o Rei?

– Sim.

– Posso levar o material para seus cigarros até lá... assim como um roupão, talvez?

A segunda sugestão foi dita delicadamente.

– Caramba, obrigado, Fritz. Você salvou minha vida.

– Não, o senhor salvou – fez uma reverência. – O senhor e a Irmandade nos salvam todas as noites.

Fritz iniciou seu caminho rapidamente, descendo a escadaria com uma alegria primaveril que ia além do esperado. Por outro lado, ele amava estar a serviço, o que era muito legal.

Certo. Hora de trabalhar.

Sentindo-se totalmente deslocado com aquela bata, V. marchou em direção às portas fechadas do escritório de Wrath, cerrou as mãos e bateu.

A voz do Rei chegou até ele através dos pesados painéis de madeira.

– Entre.

V. empurrou a porta.

– Sou eu.

– E aí, Irmão?

Do outro lado da sala de cores delicadas, Wrath estava posicionado atrás da pesada mesa, sentado no trono de seu pai. No chão ao lado dele, deitado em uma cama de cachorro vermelho-real feita sob medida da Orvis, George levantou sua cabeça dourada e endireitou as orelhas em um triângulo perfeito. O golden retriver abanou o rabo em saudação, mas não deixou de ficar ao lado de seu mestre.

O Rei e seu cão-guia nunca se separavam. E não só porque Wrath precisava de ajuda.

– Então, V. – Wrath recostou-se na cadeira esculpida e abaixou a mão para acariciar a cabeça do cão.

– Seu aroma está interessante.

– É? – V. sentou-se na frente do Rei, colocando as mãos sobre as coxas e apertando-as na tentativa de distrair o desejo pela nicotina.

– Deixou a porta aberta.

– Fritz vai me trazer alguns cigarros.

– Não vai acender nada perto do meu cachorro.

Droga.

– Ah... – Tinha se esquecido da nova regra... e pedir para George prender a respiração não ia dar certo... afinal, Wrath poderia ter perdido a visão, mas o maldito ainda era letal e V. tinha passado por atos sadomasoquistas suficientes naquela noite, muito obrigado.

Fritz entrou assim que as sobrancelhas negras do Rei ergueram-se atrás dos óculos escuros.

– Senhor, seu tabaco – o mordomo disse feliz.

– Obrigado, cara. – V. aceitou os papéis e a embalagem... e o isqueiro que o doggen pensou muito bem em providenciar. Assim como o roupão.

A porta se fechou.

V. olhou para o cão. A grande cabeça quadrada de George estava apoiada sobre as patas, seus olhos marrons e gentis pareciam se desculpar pela rotina da proibição do cigarro. Tentou até mesmo balançar o rabo para isso.

Vishous acariciou a embalagem com o delicioso tabaco turco como um perdedor patético.

– Importa-se se eu apenas enrolasse um?

– Um movimento do isqueiro e vou socá-lo em cima desse carpete.

– Entendido. – V. alinhou o material sobre a mesa. – Vim falar sobre Payne.

– Como está sua irmã?

– Ela está... ótima. – Abriu a bolsa, inalou e teve de engolir o seu hummm. – Funcionou... não sei bem como, mas o fato é que ergueu-se e está andando por aí. Em pé, nova em folha.

O Rei inclinou-se para frente.

– Sério? De verdade?

– É isso aí.

– É um milagre.

Evidente que o milagre chamava-se Manuel Manello.

– Pode chamar assim.

– Bem, isso são ótimas notícias. Quer providenciar um quarto para ela aqui? Fritz pode...

– É um pouco mais complicado do que isso.

Quando as sobrancelhas desapareceram atrás dos óculos outra vez, V. pensou: cara, mesmo o Rei sendo totalmente cego, ainda parecia focar as coisas como sempre fez, o que dava a sensação de ter uma arma nas mãos de alguém bem treinado apontada para sua cabeça.

V. começou a tirar pequenos quadrados brancos.

– É aquele cirurgião humano.

– Oh... pelo amor de Deus. – Wrath ergueu os óculos sobre a testa e esfregou os olhos. – Não brinque comigo dizendo que eles se vincularam.

V. permaneceu em silêncio ao pegar a embalagem e ocupar-se com a fase de ajeitar as coisas.

– Estou esperando que diga que estou errado. – Wrath deixou seus óculos caírem de volta ao lugar. – Ainda estou esperando.

– Ela está apaixonada por ele.

– E você está tranquilo quanto a isso?

– Claro que não. Mas ela poderia se vincular a um Irmão que o filho da mãe não seria bom o suficiente para ela. – Pegou um dos papéis já preenchidos com tabaco e começou a enrolar. – Então... se ela o deseja, eu digo viva e deixe viver.

– V.... Sei o que está querendo dizer e não posso permitir isso.

Vishous parou no meio do processo de lamber o cigarro e considerou a ideia de trazer Beth para aquela pequena conversa; mas parecia que o Rei já estava começando a ter dor de cabeça.

– Até parece que não pode permitir isso. Rhage e Mary...

– Rhage foi agredido, lembra-se? Por uma razão. Além disso, os tempos estão mudando, V. A guerra está ficando mais intensa, a Sociedade Redutora está recrutando mais membros do que nunca... e, acima de tudo isso, existe aquele bando de esquartejadores que encontrou ontem no centro da cidade.

Maldição, V. pensou. Aqueles assassinos abatidos...

– Além do mais, acabei de receber isso. – Sem olhar, Wrath tateou à esquerda e pegou uma página em braile.

– É uma cópia da carta enviada por e-mail para o que resta das Famílias Fundadoras. Xcor realocou-se com seus garotos... razão pela qual encontrou aqueles redutores naquelas condições.

– Droga... Que inferno. Sabia que era ele.

– Ele está nos preparando.

V. enrijeceu.

– Para quê?

Wrath enviou um olhar de “cai na real” por trás da mesa.

– As pessoas perderam ramificações inteiras de suas famílias. Fugiram de suas casas, mas querem voltar. Enquanto isso, as coisas estão ficando cada vez mais perigosas, em vez de mais seguras em Caldwell. Não se pode ter certeza de nada nesse momento.

Leia-se: acreditava que seu trono estava sendo ameaçado. Não importava o que fizesse para continuar sentado sobre ele.

– Então, não é que eu não entenda a situação de Payne – Wrath disse. – Mas temos que fechar o cerco e nos prepararmos. Não é hora de passar pelas complicações de se ter um humano aqui.

O local ficou ainda mais silencioso por um momento.

Enquanto V. pensava sobre seus argumentos, pegou outro quadrado, enrolou com firmeza, lambeu a aba e enrolou.

– Ele ajudou minha Jane ontem à noite. Quando os Irmãos e eu voltamos depois do confronto naquele beco, Manello foi muito eficiente e foi além do que precisava fazer. É um cirurgião espetacular... e eu deveria saber. Ele me operou. Está longe de ser inútil. – V. olhou do outro lado da mesa. – Se a guerra se intensificar futuramente, poderíamos usar um par de mãos extras aptas para uma boa cirurgia na clínica.

Wrath praguejou em sua língua. Em seguida, no Antigo Idioma.

– Vishous...

– Jane é incrível, mas é uma só. E Manello tem habilidades técnicas que ela não tem.

Wrath ergueu os óculos escuros outra vez e esfregou os olhos. Com força.

– Está dizendo que o cara vai aceitar viver aqui nesta casa dia e noite pelo resto da vida? É pedir muito.

– Então, eu mesmo pedirei.

– Não gosto disso.

Looongo silêncio. O que significava que V. estava fazendo progressos. Porém, o Rei sabia mais coisas do que demonstrava.

– Pensei que queria matar o bastardo – Wrath reclamou. Como se fosse um objetivo melhor.

De repente, a imagem de Manello de joelhos na frente de Payne clareou na mente de V., ao ponto de desejar pegar uma caneta e arrancar os próprios olhos.

– Ainda quero – disse de modo sombrio. – Mas... é ele a quem Payne deseja. O que posso fazer?

Outro looongo silêncio, durante o qual confeccionou um belo conjunto de cigarros.

Finalmente, Wrath passou uma das mãos pelos seus longos cabelos negros.

– Se ela deseja vê-lo fora daqui, não é problema meu.

Vishous abriu a boca para argumentar, mas calou-se em seguida. Era melhor que um não definitivo e quem sabia o que o destino reservava: se V. conseguiu evoluir a um lugar onde, mesmo após o pesadelo do banho, Manello permanecia em pé e respirando, tudo poderia acontecer.

– Está certo – voltou a fechar a embalagem. – O que vamos fazer com relação a Xcor?

– Esperar até que o Conselho convoque uma reunião para discutir sobre ele... o que acontecerá em algumas noites, sem dúvida. A glymera vai engolir esse lixo e, em seguida, teremos problemas de verdade – o Rei concluiu, com uma voz seca. – Ao contrário de todos esses problemas simples que temos.

– Quer que a Irmandade reúna-se aqui?

– Não. Deixe-os descansar o resto da noite. Isso não vai acontecer agora.

V. levantou-se, puxou o roupão e juntou os cigarros.

– Obrigado. Sabe? Sobre Payne.

– Não é um favor.

– É a melhor mensagem que eu poderia dar a ela.

Vishous estava no meio do caminho quando Wrath disse:

– Ela vai querer lutar.

V. virou-se.

– Como?

– Sua irmã – Wrath colocou os cotovelos sobre a papelada e se inclinou, sua face cruel estava séria. – Precisa se preparar para quando ela pedir para sair e lutar.

Oh, inferno, não.

– Não estou ouvindo isso.

– Mas vai ouvir. Já lutei com ela. É tão letal quanto você e eu e se acha que ela vai ficar contente rondando a casa nos próximo seiscentos anos, está completamente louco. Mais cedo ou mais tarde, é o que ela vai querer.

Vishous abriu a boca. Em seguida, fechou.

Bem, teve ótimos momentos aproveitando a vida por... mais ou menos vinte e nove minutos.

– Não me diga que permitiria isso.

– Xhex luta.

– Ela é problema de Rehvenge. Não seu. – As sobrancelhas de Wrath desapareceram uma terceira vez. – São coisas diferentes.

– Primeiro, todos que estão sob meu teto são problemas meus. E, segundo, não é diferente só porque ela é sua irmã.

– É claro – que sim! – que não.

– Uh-hum. Certo.

Vishous limpou a garganta.

– Está mesmo pensando em deixá-la...

– Você viu como eu ficava depois de treinar com ela, certo? Não estava dando nenhuma vantagem, Vishous. Aquela fêmea sabe o que faz.

– Mas ela é... – minha irmã. – Não pode deixá-la sair daqui.

– Nesse momento, preciso do maior número de lutadores possíveis.

Vishous colocou um cigarro entre os lábios.

– Acho melhor eu sair.

– Boa ideia.

No segundo que saiu e fechou a porta, acendeu o isqueiro dourado que Fritz havia lhe dado e inalou como um aspirador de pó.

Quando pensou em seu próximo movimento, achou que poderia voltar ao Commodore e dar as boas novas para sua irmã... Mas estava um pouco mais que preocupado com a forma que conseguiria materializar. Além disso, tinha até o amanhecer para convencer a si mesmo de que Payne no campo de batalha não era uma ideia tão absurda.

Lembrou que também havia alguém que precisava ver.

Descendo as escadas, cruzou o saguão e alcançou a entrada. Lá fora, andou rápido sobre o pátio de pedregulhos e entrou no Buraco através da forte porta da frente.

A familiaridade dos sofás, da tela de plasma e da mesa de pebolim o acalmou.

A visão de uma garrafa de uísque vazia sobre a mesa de centro? Não muito.

– Butch?

Nenhuma resposta. Então, seguiu pelo corredor em direção ao quarto do tira. A porta estava aberta e dentro... não havia nada além do enorme guarda-roupa de Butch e uma cama bagunçada e vazia.

– Estou aqui.

Franzindo a testa, V. virou-se e entrou no próprio quarto. As luzes estavam apagadas, mas as arandelas no corredor deram-lhe iluminação suficiente para se movimentar.

Butch estava sentado do outro lado da cama, de costas para a porta, a cabeça baixa, os pesados ombros encolhidos.

Vishous entrou e fechou-os ali. Nem Jane nem Marissa apareceriam... as duas estavam ocupadas com seus trabalhos. Mas Fritz e sua equipe viriam limpar o local em algum momento... só que o mordomo, abençoado seja, nem mesmo batia nas portas fechadas. Já morava ali há muito tempo.

– Oi – V. disse na escuridão.

– Oi.

V. avançou seguindo o contorno do pé da cama e usou a parede para se localizar. Sentando-se sobre o colchão, posicionou-se ao lado de seu melhor amigo.

– Você e Jane estão bem? – o tira perguntou.

– Sim. Está tudo bem – que eufemismo. – Ela chegou bem na hora que eu acordei.

– Eu liguei para ela.

– Imaginei. – Vishous virou a cabeça e olhou na direção de Butch, mesmo sabendo que aquilo não faria diferença na escuridão. – Obrigado por...

– Desculpe – Butch resmungou. – Oh, Deus, eu sinto muito...

O exalar rouco que saiu foi um soluço mal disfarçado.

Apesar de estar cego naquele local, V. estendeu o braço e envolveu o tira. Ao puxar o macho para mais perto de si, apoiou a cabeça sobre o peito do amigo.

– Está tudo bem – disse com firmeza. – Está tudo certo. Tudo bem... Fez a coisa certa...

De algum modo, acabou movendo o cara até que deitaram juntos e seus braços estavam ao redor do tira.

Por alguma razão, pensou na primeira noite que passaram juntos. Já havia se passado um milhão de anos, foi na mansão de Darius na cidade. Duas camas de solteiro lado a lado no andar de cima. Butch perguntou sobre suas tatuagens. V. lhe disse para cuidar de sua vida.

E lá estavam eles no escuro outra vez. Considerando tudo o que tinha acontecido desde então, era difícil de acreditar que haviam sido aqueles dois machos que selaram a amizade por causa dos Sox.

– Não me peça para fazer isso outra vez tão cedo – o tira disse.

– Combinado.

– Mesmo assim. Se precisar... é só dizer.

Estava na ponta da língua de V. dizer algo como Nunca mais, mas isso era bobagem. Ele e o tira já haviam feito vários passeios no terreno psicológico de V. e embora estivesse virando uma nova página... nunca se sabe.

Então, apenas repetiu o juramento que tinha feito a si mesmo para Jane. De agora em diante, ia deixar aquela porcaria de lado. Mesmo se aquilo o incomodasse ao ponto de gritar, era melhor que a estratégia de conter as emoções. Mais saudável também.

– Espero que não seja mais necessário – murmurou. – Mas, obrigado, cara.

– Mais uma coisa.

– O quê?

– Acho que estamos namorando agora – Quando V. soltou uma risada, o tira deu de ombros. – Vamos lá... eu o vi nu. Você usou um maldito colete. E nem preciso falar do banho de esponja depois de tudo.

– Babaca.

– Com certeza.

Quando o riso deles passou, V. fechou os olhos e desligou momentaneamente o cérebro. Com o grande peitoral de seu melhor amigo contra o seu e sabendo que ele e Jane estavam bem outra vez, seu mundo estava completo.

Agora, se ao menos pudesse manter sua irmã longe das ruas e dos becos... a vida seria perfeita.


CAPÍTULO 46

Quando José estacionou em frente ao Motel Monroe, ficou claro que a única coisa nova no lugar era a fita amarela que tinha acabado de rodear a cena do crime. Tudo mais estava decaído e desgastado, inclusive os automóveis estacionados perto do escritório.

Passando pelos carros de polícia alinhados, percorreu todo o caminho até a última vaga e estacionou seu veículo sem identificação oficial na diagonal com relação aos outros do Departamento de Polícia de Caldwell.

Quando puxou o freio do sedan, olhou para o banco do passageiro.

– Pronto para isso?

Veck já estava agarrando a maçaneta da porta.

– Pode acreditar.

Quando os dois saíram, os outros oficiais aproximaram-se e Veck foi envolvido por vários tapinhas nas costas. No departamento, o pessoal achava que o cara era um herói pelo Incidente com o Paparazzo... e aquela onda de aprovação não diminuiu nem um pouco pelo fato do cara sempre ignorar qualquer bajulação.

Firme e calmo, apenas puxou as calças e tirou um cigarro. Após acendê-lo, falou exalando a fumaça:

– O que temos aqui?

José deixou o garoto avançar e se abaixar para passar por baixo da fita. A porta quebrada que dava para o crime tinha sido fechada vagamente, e empurrou-a com o ombro para abri-la.

– Droga – disse sussurrando.

O ar impactava com o cheiro do sangue fresco... e formol.

Nesse momento, o flash do fotógrafo da polícia surgiu e o corpo da vítima foi iluminado sobre a cama... bem como os pequenos frascos a seu lado. E as facas.

Fechou os olhos brevemente.

– Detetive?

– Temos o registro da caminhonete. Illinois. Pertencente a David Kroner. Não há denúncia de que foi roubado e adivinhe... Kroner é um homem branco, trinta e três anos... solteiro... deficiente fís... que inferno. – A conversa de Veck parou completamente quando aproximou-se da cama. – Deus.

O flash disparou outra vez e houve um chiado eletrônico enquanto a câmera se recuperava do esforço.

José olhou para o médico legista.

– Há quanto tempo ela está morta?

– Não muito. Ainda está quente. Posso lhe dar uma noção mais exata quando terminar.

– Obrigado. – José andou até uma pequena mesa decrépita e usou uma caneta para empurrar um anel fino de ouro, um par de brincos em forma de raio e uma pulseira rosa e preta.

A tatuagem que havia sido recortada da pele da vítima e colocada num tipo de frasco ao lado dela era rosa e preta também. Provavelmente eram suas cores favoritas.

Ou tinham sido.

Continuou a andar pelo quarto, procurando coisas fora do lugar, verificando cestos de papéis, observando o banheiro.

Era evidente que alguém havia perturbado o divertimento do assassino. Alguém havia visto ou ouvido alguma coisa e arrombou a porta, provocando uma fuga rápida pela janela dos fundos que havia sobre o vaso sanitário.

A ligação para a emergência foi feita por um macho que recusou se identificar. Disse apenas que havia um cadáver no quarto no fim do corredor e isso foi tudo. Não era o assassino que procuravam. Desgraçados como ele não paravam até serem forçados a isso e não deixavam para trás os troféus que estavam na pequena mesa de cabeceira.

– Aonde você foi depois disso? – José disse a si mesmo. – Para onde fugiu...

Havia unidades com cães farejadores procurando no bosque que havia nos fundos, mas José tinha um palpite de que não ia dar em nada. A pouco mais de cem metros do motel havia um rio raso suficiente para atravessar... ele e Veck passaram pela ponte que atravessava a maldita coisa no caminho para aquele local.

– Está mudando seu modus operandi – Veck disse. Quando José se virou, o cara plantou as mãos na cintura sobre os quadris e balançou a cabeça. – É a primeira vez que faz isso num lugar público. Seu trabalho deve ser confuso... e potencialmente ruidoso. Teríamos encontrado mais cenas assim depois de ter acabado.

– Concordo.

– David Kroner é a resposta.

José encolheu os ombros.

– Talvez. Ou pode ser mais um corpo que encontraremos.

– Ninguém denunciou seu desaparecimento.

– O que foi que disse... solteiro, certo? Talvez more sozinho. Quem saberia que estava desaparecido?

Só que mesmo com José lançando buracos na teoria, juntou dois mais dois e chegou a uma conclusão semelhante. Era raro uma pessoa desaparecer sem que alguém sentisse falta... família, amigos, colegas de trabalho, senhorio... não era impossível, mas muito improvável.

A questão era, onde o assassino teria ido? Se o bastardo seguisse a lógica convencional, deveria estar numa fase inicial de excesso da própria patologia. No passado, as vítimas apareciam num intervalo de meses, mas agora encontravam duas por semana.

Então, se seguisse essa premissa, sabia que deveria tomar alguns cuidados antes de sair pela janela: não importavam os padrões para despistar o crime, tinham de ser feitos mesmo diante de uma fuga frenética. A boa notícia era que o garoto desleixado tornou as coisas mais fáceis para encontrá-lo. A má notícia era que a situação poderia piorar antes de melhorar. Veck aproximou-se dele.

– Vou entrar naquela caminhonete. Quer vir comigo?

– Sim.

Lá fora, o ar não cheirava a cobre e produtos químicos. José respirou fundo algumas vezes quando Veck estalou as luvas ao colocá-las e começou o trabalho. Naturalmente o veículo estava trancado, mas isso não deteve o cara. Pegou uma barra e abriu a porta do lado do motorista como se fosse um veterano em arrombamento.

– Nossa. – murmurou enquanto recuava. Não levou muito tempo para o fedor atingir José e acabou cobrindo a boca para tossir. Mais formol, um cheiro doce de coisas mortas.

– Não está na cabine – Veck balançou sua lanterna ao redor dos assentos. – Na parte de trás.

Havia um cadeado nas portas duplas e quadradas do tampão. Veck saiu da caminhonete, foi até o carro sem identificação oficial e retornou com uma serra movida a bateria.

Ouviram um ruído estridente... um plim!... e, em seguida, Veck estava lá dentro.

– Oh... droga...

José balançou a cabeça quando virou-se para ver o motivo pelo qual seu parceiro tinha resmungado.

A lanterna de Veck iluminava uma coleção inteira de pequenos frascos com coisas flutuando ou afundadas no líquido claro. Os recipientes estavam bem firmes em um engradado feito sob medida e montado do lado esquerdo. O lado direito era reservado às ferramentas: facas e cordas, fita adesiva, martelos, formões, lâminas de barbear, bisturis e retratores cirúrgicos.

Olá, David Kroner: era muito improvável que o assassino instalasse tudo aquilo na caminhonete de outra pessoa... e quanto estava disposto a apostar que os troféus em todos aqueles frascos já haviam preenchido aqueles buracos na pele das vítimas.

Sua esperança era que as unidades com os cães farejadores o localizassem no bosque.

Caso contrário, perderiam outra mulher. José estava disposto a apostar sua casa nisso.

– Vou entrar em contato com o FBI – disse. – Precisam vir até aqui ver isso.

Veck examinou o interior do veículo.

– Vou dar uma ajuda para a perícia criminal. Gostaria de levar esse veículo para a delegacia o mais rápido possível, assim tudo poderia ser registrado corretamente.

José assentiu, pegou seu celular e acessou a discagem rápida. Quando começou a chamar, sabia que depois que entrasse em contato com os federais, teria de ligar para sua esposa. Não tinha como voltar para casa a tempo de tomarem o café da manhã juntos.

Não mesmo.


CAPÍTULO 47

– O sol! Oh, meu Deus! Rápido, é melhor...

Manny acordou rapidamente: na verdade, pulou da cama e juntou o edredom e os vários travesseiros em seus braços, que caíram todos ao mesmo tempo sobre seus pés.

A luz do sol entrava pelas janelas de vidro, inundando o quarto com um brilho intenso.

Payne estava ali, seu cérebro lhe disse. Estava ali.

Ao olhar em volta freneticamente, correu para o banheiro. Vazio. Correu ao longo do resto do apartamento. Vazio.

Esfregando o cabelo, voltou para a cama... e, então, percebeu que, caramba, ainda tinha todas as memórias. Dela. De Jane. Do cara de cavanhaque. Da cirurgia... daquele banho incrível. E de Glory.

Céus...

Inclinando-se, pegou um travesseiro e o colocou em seu nariz. Sim, definitivamente esteve ali deitada ao lado dele. Mas por que tinha vindo? E se veio, porque não apagou as memórias dele?

Caminhou até o corredor de entrada, pegou o celular e... só que não poderia ligar para ela. Não tinha seu número.

Ficou parado por um momento como uma árvore. E, então, lembrou-se de que havia combinado de se encontrar com Goldberg em menos de uma hora.

Reprimido e curiosamente em pânico por um motivo que não conseguia sequer apontar, colocou suas roupas esportivas e chamou o elevador. Na academia, assentiu para outros três caras que faziam musculação ou abdominais e foi até a esteira que costumava usar.

Esqueceu-se do seu maldito iPod, mas sua mente estava agitada, portanto, o silêncio não era bem o que havia entre seus ouvidos. Quando começou a assumir um ritmo no aparelho, tentou lembrar-se do que havia acontecido depois de ter tomado banho na noite anterior... mas nada lhe veio à mente. Entretanto, não sentia dor de cabeça. O que parecia sugerir que seu buraco negro era algo natural, cortesia do álcool.

Ao longo do exercício, teve de ajustar a máquina alguma vezes... era óbvio que algum idiota tinha usado a maldita coisa e o ritmo estava lento. E quando marcou oito quilômetros, deu-se conta de que estava de ressaca. Por outro lado, havia tanto zumbido em sua cabeça que ficou distraído demais para se preocupar com qualquer tontura ou enjoo.

Quando saiu da esteira mais ou menos quinze minutos depois, precisava de uma toalha e dirigiu-se até uma pilha delas que havia próximo à saída. Um dos levantadores de peso chegou até lá ao mesmo tempo, mas o cara recuou um pouco por respeito.

– Você primeiro, cara – disse, estendendo as mãos como se estivesse fazendo uma oferta.

– Obrigado.

Quando Manny se enxugou e se dirigiu para a porta, fez uma breve pausa ao perceber que ninguém se movia: todos no local pararam o que estavam fazendo e o observavam. Deu uma breve olhada para baixo e percebeu que o que estava errado não era seu guarda-roupa. Que diabos?

No elevador, esticou suas pernas e braços e pensou que poderia percorrer mais uns quinze ou vinte e cinco quilômetros facilmente. E apesar da bebida, parece que teve uma boa noite de sono, pois estava bem acordado e cheio de energia... Mas isso era o que a endorfina fazia por alguém. Mesmo quando se está caindo aos pedaços, uma boa corrida era melhor que cafeína... ou que a sobriedade.

Sem dúvida, aquilo terminaria em algum momento, mas se preocuparia com isso quando a exaustão o abatesse.

Meia hora depois, entrou no Starbucks em Everett onde ele e Goldberg haviam se encontrado há um ano... só que, claro, naquela época o pequeno café ainda não fazia parte de uma rede de franquias. O cara foi aluno na Universidade de Columbia e inscreveu-se para fazer um estágio no São Francisco e Manny estava na equipe de recrutamento que havia sido convocada para cooptar o bastardo... Goldberg era uma estrela, mesmo naquela época, e Manny queria construir o melhor departamento cirúrgico do país.

Quando entrou na fila para pedir sua bebida, olhou em volta. O lugar estava lotado, mas Goldberg já havia conseguido uma mesa ao lado da janela. Não era surpresa. Aquele cirurgião sempre chegava cedo nos encontros... já devia estar ali há uns bons quinze, vinte minutos. Contudo, não procurava por Manny. Encarava sua caneca de papel como se estivesse tentando mexer mentalmente o cappuccino.

Ah... ele tinha uma notícia.

– Manuel? – o cara atrás do balcão chamou.

Manny aceitou o que tinha pedido e começou a andar entre os viciados em cafeína, as vitrines de canecas e CDs e a lousa branca triangular que anunciava as ofertas especiais.

– Oi! – disse ao sentar-se em frente a Goldberg.

O outro cirurgião ergueu os olhos. E sua reação foi um pouco demorada.

– Ah... oi.

Manny tomou um gole de sua caneca e acomodou-se na cadeira, o encosto reclinado incomodou sua coluna.

– Como está?

– Estou... bem. Deus, você está com uma aparência fantástica.

Manny esfregou o queixo mal barbeado. Que grande mentira era aquela a de Goldberg. Nem se preocupou em fazer a barba e estava com um agasalho de moletom e calças jeans. Nada muito atraente.

– Vamos pular os elogios. – Manny tomou outro gole de sua bebida. – O que tem para me dizer?

Os olhos de Goldberg dispararam em diferentes direções. Até que Manny teve pena dele.

– Querem que eu tire uma licença, não é isso?

Goldberg limpou a garganta.

– A direção do hospital acredita que seja o melhor... para todos.

– Pediram-lhe para que assumisse a chefia, não foi?

Limpou a garganta mais uma vez.

– Hã...

Manny apoiou a caneca.

– Está tudo bem. Isso é legal. Fico feliz... Você vai se dar muito bem.

– Sinto muito... – Goldberg balançou a cabeça. – Eu... isso parece tão errado. Mas... você pode voltar, sabe, depois. Além disso, o descanso está lhe fazendo bem. Quero dizer, você está...

– Fantástico – Manny disse secamente. – Uh-hum.

Isso era o que as pessoas diziam às outras pelas quais sentiam pena.

Os dois beberam seus cafés em silêncio e Manny se perguntou se o cara pensava o mesmo que ele: Deus, como as coisas haviam mudado. Quando estiveram ali pela primeira vez, Goldberg estava tão nervoso quanto agora, mas por um motivo diferente. E quem poderia imaginar que Manny receberia um afastamento? Naquela época, teria lutado para ficar no topo e nada poderia detê-lo... ou poderia?

O que fazia sua reação à solicitação da diretoria uma surpresa. Não estava chateado mesmo. Sentia-se... desconectado de alguma forma, como se estivesse acontecendo com alguém que conhecia, mas que há muito tempo não mantinha contato: sim, era importante, mas... não fazia diferença.

– Bem... – o som do celular o interrompeu. E a ideia do que realmente importava ficou claro na maneira como se atrapalhou para pegar o telefone como se o moletom estivesse em chamas.

No entanto, não era Payne. Era o veterinário.

– Tenho que atender – disse a Goldberg. – Dois segundos... Sim, doutor, como ela... – Manny franziu a testa. – Mesmo? Uh-hum. Sim... sim... ótimo... – Um sorriso foi alargando-se lentamente em seu rosto até ficar radiante como um farol. – Sim. É mesmo, não? Foi um tremendo milagre.

Quando desligou o telefone, olhou para o outro lado da mesa. As sobrancelhas de Goldberg tinham escalado toda sua testa.

– Boas notícias. Sobre meu cavalo.

E o par de sobrancelhas ergueu-se ainda mais.

– Não sabia que tinha um.

– O nome dela é Glory. É um puro-sangue.

– Oh. Nossa.

– Estou no mundo das corridas.

– Não sabia disso.

– Sim.

E essa foi toda a conversa pessoal. O que deu a Manny uma noção do quanto falavam sobre trabalho. No hospital, ele e Goldberg passavam horas conversando sobre pacientes, problemas da equipe e administração do departamento. Agora? Não tinham muito o que dizer.

Ainda assim, estava sentado em frente a um homem muito bom... Alguém que provavelmente seria o próximo chefe do departamento cirúrgico do Hospital São Francisco. A diretoria faria uma pesquisa nacional, é claro, mas Goldberg seria o escolhido, pois os outros cirurgiões, que se assustavam com facilidade e prosperavam cheios de estabilidade, confiavam nele. E deveriam: Goldberg era tecnicamente brilhante em uma sala de cirurgia, competente na administração e tinha um temperamento muito melhor do que Manny.

– Vai fazer um ótimo trabalho – Manny disse.

– O quê...? Ah. É apenas temporário até você... sabe, voltar.

O cara parecia acreditar naquilo, o que testemunhava sua natureza.

– Sim.

Manny mudou de posição na cadeira e quando cruzou as pernas outra vez, olhou em volta... e viu três garotas do outro lado. Deviam ter mais ou menos dezoito anos e no instante em que fez contato visual, riram e voltaram as cabeças umas para as outras como se estivessem fingindo que não estavam olhando para ele.

Sentiu-se como se estivesse na academia do prédio outra vez e voltou a verificar suas roupas. Nada. Não estava nu. Mas que inferno...

Quando ergueu os olhos, uma delas tinha se levantado e se aproximado dele.

– Oi. Minha amiga acha que você é um gato.

Hum...

– Ah, obrigado.

– Aqui está o número dela...

– Oh, não... não. – Pegou o pedaço de papel que ela havia colocado na mesa e forçou-o de volta para uma das mãos da moça.

– Estou lisonjeado, mas...

– Ela tem dezoito...

– E eu quarenta e cinco.

Com isso, o queixo da garota caiu.

– Sem chance.

– Pode acreditar. – Passou uma das mãos pelo cabelo, perguntando-se quando começou a atrair o elenco de Gossip Girl ou algo do gênero. – E eu tenho namorada.

– Oh – a garota fácil sorriu. – Isso é legal... mas poderia ter dito. Não precisava mentir sobre ser um velhote.

Com isso, ela saiu e ao se sentar, houve um lamento coletivo. E, então, ele se dispersou daquilo.

Manny olhou para Goldberg.

– Crianças. Quero dizer, francamente.

– Hum. Sim.

Certo, era hora de acabar com aqueles momentos sem graça. Olhando pela janela, Manny começou a planejar a saída...

No vidro, viu o reflexo de seu rosto. Mesmas maçãs do rosto salientes. Mesmo queixo quadrado. Mesma proporção entre nariz e boca. Mesmo cabelo escuro. Mas havia alguma coisa diferente.

Inclinando-se, pensou... seus olhos estavam...

– Ei – disse calmamente. – Vou até o banheiro. Poderia dar uma olhada no meu café enquanto isso?

– Claro – Goldberg sorriu aliviado, como se estivesse feliz por ter uma estratégia de saída e um trabalho. – Leve o tempo que precisar.

Manny levantou-se e seguiu até o banheiro unissex. Depois de bater e não obter resposta, abriu a porta e acendeu a luz. Quando se trancou e o ventilador de teto foi acionado, aproximou-se do espelho com aquele pequeno aviso “Funcionários devem lavar as mãos”.

A luz focava diretamente a pia onde Manny parou em frente. Então, pela lógica, deveria estar horrível por causa da exaustão, com olheiras do tamanho de malas para uma semana e uma cor cinzenta na pele.

Mas não era isso o que o espelho mostrava. Mesmo com a pouca luz fluorescente que brilhava sobre ele, parecia dez anos mais jovem do que se lembrava. Estava reluzente de saúde, como se alguém tivesse copiado uma versão da cabeça dele mais jovem e colado sobre a antiga com Photoshop.

Recuando, esticou os braços para frente do peito e se agachou, dando ao quadril a oportunidade de se levantar e gritar. Ou suas coxas, as quais ele tinha exercitado há menos de uma hora. Ou suas costas.

Nada de dor. Nada de rigidez. Nenhuma tensão.

Seu corpo estava no ponto.

Pensou sobre o que o veterinário-chefe havia lhe dito há pouco no telefone, a voz do homem estava confusa e emocionada ao mesmo tempo: Houve uma regeneração do osso e o casco curou-se espontaneamente. É como se nunca tivesse sofrido uma lesão.

Santo... Deus. E se Payne tivesse exercido sua mágica sobre ele? Enquanto estiveram juntos? Sem que nenhum dos dois percebesse... e se ela tivesse curado o corpo dele em termos de tempo... voltando não apenas meses no relógio, mas uma década ou mais?

Manny agarrou a cruz pendurada em seu pescoço.

Quando alguém bateu na porta, deu descarga e deixou correr um pouco de água na pia para que não parecesse que fez algo nojento. Quando saiu meio atordoado, assentiu para a mulher que precisava entrar e voltou para Goldberg.

Ao sentar-se, teve de limpar as mãos suadas sobre os joelhos em seu jeans.

– Preciso de um favor – disse para seu ex-colega de trabalho. – É algo que não pediria a mais ninguém...

– Diga. Qualquer coisa. Depois de tudo o que fez por mim...

– Quero que faça alguns exames em mim. E tire algumas radiografias.

Goldberg assentiu imediatamente.

– Não ia dizer isso, mas acho que é uma boa ideia. As dores de cabeça... os esquecimentos. Precisa descobrir se existe algo... comprometido – o cara parou aí, como se não quisesse soltar outro argumento ou soar mórbido. – Mas, meu Deus, falando sério... Nunca o vi tão bem.

Manny apanhou o café e o levou até os dentes, seu alarme de emergência interno zumbindo não tinha nada a ver com a cafeína.

– Vamos. Está com tempo agora?

Goldberg foi direto:

– Para você, sempre tenho tempo.


CAPÍTULO 48

De vez em quando, a morte de Qhuinn voltava a atormentá-lo. Acontecia em sonhos. Em raros momentos quando estava calmo e silencioso. Algumas vezes era só para brincar com sua mente.

Sempre tentava evitar a colagem de visões, aromas e sons que vinham como uma praga, mas, apesar de já haver pedido uma medida cautelar restritiva para isso em seu tribunal interno, o advogado que o acusava era implacável e sempre recorria... então, a porcaria continuava a aparecer.

Quando deitou-se na cama, a extensão nebulosa da paisagem mental que não parecia nem sonolenta nem desperta era como uma linha disponível para aquela noite horrível telefonar e, como era de se esperar, ela fez a ligação, as memórias tocaram seus sinos e, de alguma maneira, forçaram Qhuinn a atender.

Seu próprio irmão havia feito parte da guarda de honra determinada a dar uma surra nele e o bando de filhos da mãe vestidos com mantos negros o localizaram na beira da estrada ao sair da mansão de sua família pela última vez. Carregava poucas coisas nas costas e não fazia ideia para onde estava indo. Seu pai havia lhe expulsado e foi extirpado de sua árvore genealógica, então... lá estava. Sem raízes. Sem rumo.

Tudo por conta de seus olhos de cores diferentes.

A guarda de honra deveria apenas espancá-lo por sua ofensa à linhagem. Não deveria matá-lo; mas as coisas saíram do controle e, com um movimento surpreendente, seu irmão tentou parar a coisa.

Qhuinn lembrava-se bem dessa parte, da voz do irmão dizendo que parassem. Contudo, era tarde demais e Qhuinn flutuou não apenas distanciando-se da dor, mas da Terra em si... Apenas para ver-se em meio a uma névoa que se separava e revelava uma porta. Sem que lhe dissessem, sabia que era a entrada para o Fade e também sabia que, uma vez aberta, estaria tudo acabado.

Algo que parecia ser uma ótima ideia na época. Nada a perder...

Ainda assim, recusou-se no último momento. Por algum motivo que não se lembrava.

Foi a coisa mais estranha de todas... De tudo que ficou gravado em seu cérebro naquela noite, essa era a parte que não conseguia se recordar, não importava o quanto tentasse.

Mas se lembrava de quando voltou com toda força para seu corpo: ao recobrar a consciência, Blay estava fazendo o processo de ressuscitação cardiopulmonar nele e não é que valia a pena viver por aqueles lábios?

A batida que soou em sua porta despertou-o completamente e, com isso, Qhuinn lançou longe os travesseiros e acendeu as luzes com a mente para ter certeza de onde estava.

Sim. Em seu quarto. Sozinho.

Mas não por muito tempo.

Quando seus olhos se moveram em direção à porta, ainda tentando recuperar o foco, soube quem estava do outro lado. Poderia identificar o aroma delicado no ar e sabia por que Layla tinha vindo. Inferno, talvez fosse por isso que não tinha conseguido dormir de verdade... esperava ser acordado por ela a qualquer momento.

– Entre – disse ele suavemente.

A Escolhida deslizou em silêncio para dentro do quarto e quando se virou em direção a Qhuinn, estava com uma aparência horrível. Desgastada. Um terreno baldio.

– Senhor...

– Pode me chamar de Qhuinn, sabe disso. Faça isso, de verdade.

– Obrigada – ela curvou-se até a cintura e pareceu se esforçar quando se endireitou. – Gostaria de saber se posso servir-me mais uma vez de sua gentil oferta de... tomar de sua veia. Na verdade, estou... esgotada e sinto-me incapaz de voltar ao Santuário.

Quando encontrou aquele olhar esverdeado, algo infiltrou-se no fundo de sua mente, um tipo de... percepção, que fincou raízes e germinou a ideia de que algo estava para acontecer, mas o que seria?

Olhos verdes. Verdes como as uvas, como a pedra de jade e os brotos primaveris.

– Por que está me olhando assim? – ela disse enquanto aproximava as lapelas de seu manto.

Olhos verdes... em um rosto que era...

A Escolhida olhou para a porta.

– Talvez... eu deva sair...

– Sinto muito – estremecendo, certificou-se de que os cobertores estavam sobre a cintura e acenou para ela. – Acabei de acordar... não ligue para mim.

– Tem certeza?

– Absoluta, venha até aqui. Amigos, lembra? – estendeu a mão e quando ela ficou a seu alcance, tomou sua mão e a induziu para que se sentasse.

– Senhor? Ainda está me olhando.

Qhuinn examinou o rosto dela e, em seguida, o corpo. Olhos verdes.

O que havia nos malditos olhos? Já os havia visto antes...

Olhos verdes...

Engoliu um xingamento. Deus, era como se houvesse uma canção em sua mente; lembrava-se de tudo, exceto da letra.

– Senhor?

– Qhuinn. Diga, por favor.

– Qhuinn.

Ele sorriu um pouco.

– Aqui, pegue o que precisa.

Quando ergueu o pulso, pensou enquanto Layla se inclinava e abria a boca: cara, estava tão magra. As presas eram longas e muito brancas, mas delicadas. Não eram como as dele. E sua mordida foi tão gentil e feminina quanto todo o resto dela.

Algo que o tradicionalista dentro dele pensava ser somente apropriado.

Enquanto ela se alimentava, Qhuinn observou seus cabelos loiros que estavam enrolados em uma trama complexa, seus ombros largos e suas lindas mãos.

Olhos verdes.

– Deus. – Quando fez menção de se retirar, ele colocou a mão sobre a nuca dela e a manteve em seu pulso. – Está tudo bem. Cãibra no pé.

O mais correto era cãibra no cérebro.

Frustrado, ergueu a cabeça e em vez de encarar a parede, esfregou os olhos. Quando voltou a focar o olhar, estava encarando a porta... Layla tinha acabado de sair.

Foi sugado de volta para o sonho imediatamente. Mas não era o sonho da surra e de seu irmão. Viu-se na entrada do Fade... em pé em frente aos grandes portões brancos... estava parado com uma das mãos estendida, prestes a tocar a maçaneta.

A realidade estava distorcida, distante e ficou tão confusa que não sabia se estava acordado ou dormindo... ou morto.

O redemoinho começou a se formar no centro da porta, como se o material que a compunha se liquidificasse a ponto de atingir a consistência do leite. E no centro do tornado uma imagem coalesceu-se e aproximou-se dele, mais como se um som estivesse prestes a assumir forma do que algo visual propriamente dito.

Era o rosto de uma jovem mulher.

Uma jovem fêmea com cabelos loiros e traços refinados... e olhos azuis-claros.

Ela o encarava, sustentando firmemente o olhar dele como se tivesse capturado seu rosto em suas belas e pequenas mãos.

Então, ela piscou. E sua íris mudou de cor. Uma ficou verde e a outra azul. Assim como os olhos dele.

– Senhor!

Em princípio, ficou completamente confuso... perguntando-se por que a fêmea o chamou assim. Como ela sabia quem era?

– Qhuinn! Deixe-me selá-lo!

Ele piscou. E descobriu que tinha se jogado contra a cabeceira e, no processo, havia se desvencilhado das presas de Layla e sangrava por todo o lençol.

– Deixe-me...

Empurrou a Escolhida com veemência e selou a própria ferida. Quando terminou, não conseguia tirar os olhos de Layla.

Era muuuito fácil encontrar características comuns em Layla e naquela jovem fêmea, algo muito mais profundo do que a mera semelhança.

Quando o coração dele começou a bater forte, precisou de um pouco de tempo para lembrar-se de que nunca havia pensado naquilo antes. Ao contrário de V., não conseguia prever o futuro.

Layla moveu-se lentamente ao sair da cama, como se não quisesse assustá-lo.

– Devo buscar Jane? Ou é melhor eu simplesmente ir embora?

Qhuinn abriu a boca... e descobriu que não saía nada.

Nossa. Nunca esteve em um acidente de carro, mas imaginava que a onda de terror que sentia naquele momento era, provavelmente, parecida com o que as pessoas sentiam quando viam alguém ultrapassar um sinal vermelho e aproximar-se para atingir em cheio a lateral do veículo: era possível calcular a direção e a velocidade daquilo que vinha contra seu carro e chegar à conclusão de que o impacto era iminente.

Contudo, não conseguia imaginar um mundo onde engravidava Layla.

– Eu vi o futuro – disse, distante.

As mãos de Layla ergueram-se até a garganta como se estivesse sufocando.

– É ruim?

– Não é... possível. De jeito nenhum.

Quando colocou a cabeça entre as mãos, tudo o que conseguia ver na escuridão era aquele rosto... aquele que era parte Layla e parte ele.

Oh, que Deus... os protegesse. Protegesse... a todos.

– Senhor? Está me assustando.

Bem, eram dois.

Só que aquilo não era possível. Era?

– Vou sair – ela disse asperamente. – Agradeço seu favor.

Ele assentiu e não pôde olhar para ela.

– Não foi nada.

Quando a porta se fechou pouco tempo depois, estremeceu, um medo frio o envolveu, instalando-se em seus ossos... e atingindo em cheio sua alma.

Era mesmo irônico, pensou. Seus pais nunca quiseram que ele reproduzisse e olhe só... a ideia de ter uma filha defeituosa com Layla, ou, ainda pior, de legar o fardo de seus malditos olhos a uma jovem inocente, o fez abraçar o voto de celibato como nada mais conseguiria.

E, na verdade, deveria estar feliz. De todos os destinos que poderia ter enxergado, aquele era cem por cento evitável, não?

Simplesmente, nunca faria sexo com Layla.

Nunca.

Assim, aquilo se tornava algo impossível. Assunto encerrado.


CAPÍTULO 49

Manny voltou a seu apartamento por volta das seis da tarde, depois de ter passado oito horas no hospital sendo espetado e cutucado por várias pessoas a quem conhecia melhor que membros da família.

Os resultados dos exames estavam na caixa de entrada de seu e-mail... pois encaminhava cópias de tudo que recebia no e-mail do hospital para sua conta pessoal. Não que houvesse qualquer motivo para abrir todos os anexos. Sabia as anotações de cor. Os resultados de cor. As imagens das radiografias e tomografias computadorizadas de cor.

Jogou as chaves sobre o balcão da cozinha e foi até a geladeira, desejando que houvesse um suco de laranja fresco ali. Em vez disso... sachês de molho de soja que vinha com a comida chinesa que comprava na mesma rua do Commodore... uma garrafa de ketchup... e uma lata redonda com algumas sobras de um jantar de negócios que teve há duas semanas.

Não importava. Não estava com fome.

Inquieto e aflito, avaliou a iluminação no céu: ainda havia um pouco de luz do dia remanescente do lado oeste; porém, não teria de esperar muito tempo.

Payne voltaria depois do pôr do sol. Poderia sentir em seus ossos. Ainda não tinha certeza do motivo pelo qual havia passado a noite com ele ou por que suas memórias ainda continuavam, mas teve de se perguntar se ela, finalmente, daria um jeito nisso quando voltasse.

No quarto, seu primeiro movimento foi pegar os travesseiros do chão e colocá-los de volta onde pertenciam. Em seguida, esticou o edredom... e, com isso, estava pronto para fazer as malas.

Aproximando-se do gabinete, começou a tirar a roupa e a fazer uma pilha com elas sobre a cama arrumada.

Nada de voltar ao São Francisco. Demitiu-se no meio de todos os testes.

Não havia razão para ficar em Caldwell... de qualquer maneira, sair da cidade parecia ser o melhor a se fazer.

Não fazia ideia de onde iria, mas não precisava de um destino para se chegar a algum lugar.

Meias. Cuecas. Camisas polo. Jeans. Calças cáqui.

Uma vantagem de se ter um guarda-roupa formado basicamente por uniformes cirúrgicos era não ter muita coisa para colocar na mala. E Deus era testemunha de que possuía mochilas esportivas suficientes.

Da gaveta na extremidade inferior da cômoda tirou as duas únicas blusas que possuía...

O porta-retratos embaixo delas estava voltado para baixo, o papelão deitado de costas para cima.

Manny estendeu a mão e pegou a coisa. Não precisou virar para ver quem era. Havia memorizado o rosto do homem há muitos e muitos anos.

Ainda assim, continuava sendo um choque virar a foto em suas mãos e olhar para a imagem de seu pai.

O filho da mãe era bonito. Muito, muito bonito. Cabelos escuros... iguais aos de Manny. Olhos profundos... iguais aos de Manny.

E não estava nada disposto para continuar com a retrospectiva. Como sempre, quando se tratava das porcarias relacionadas ao seu pai, empurrava tudo para um canto da memória e seguia com sua vida.

O que significava que, naquela noite, o porta-retratos seria enfiado na mochila mais próxima e pronto...

A batida no vidro veio cedo demais para ser ela, pensou.

Só que quando olhou para o relógio percebeu que a rotina de fazer as malas já havia levado uma hora.

Olhando por cima do ombro, seu coração triplicou o ritmo ao ver Payne parada do outro lado do vidro. Deus... do céu... ela o nocauteou. Estava com os cabelos trançados, vestia um longo manto branco amarrado na cintura e estava... de tirar o fôlego.

Aproximando-se da porta deslizante, abriu-a e a explosão do frio noturno atingiu seu rosto e tirou-lhe o foco.

Com um largo sorriso, Payne simplesmente entrou dando um salto em seus braços, seu corpo era tão sólido contra o dele, seus braços tão fortes em volta de sua nuca.

Deu a si mesmo uma fração de segundo para abraçá-la... pela última vez. Em seguida, por mais que aquilo o matasse, colocaria Payne no chão e usaria a desculpa de fechar a porta por causa do frio para se afastar dela.

Quando a olhou, a alegria em seu rosto havia desaparecido e ela cruzava os braços.

– Achei que voltaria – disse ele com voz rouca.

– Eu... eu tenho boas notícias. – Payne olhou para a fila de mochilas esportivas na cama. – O que está fazendo?

– Tenho que sair daqui.

Quando os olhos dela se fecharam brevemente, aquilo quase destruiu a determinação de Manny de não ir até lá para confortá-la. Mas já estava sendo difícil o suficiente. Tocá-la outra vez ia parti-lo em dois.

– Fui ao médico hoje – ele disse. – Passei a tarde inteira no hospital.

Ela empalideceu.

– Está doente?

– Não exatamente. – Andou pelo quarto até a cômoda, onde empurrou de volta ao lugar a gaveta de baixo vazia. – Longe disso, na verdade... Parece que meu corpo tem regenerado algumas partes sozinho. – Uma das mãos tocou os quadris. – Há anos tenho uma artrite no quadril por me exercitar demais... sempre soube que em algum momento precisaria substituir isso. Mas, segundo as radiografias que tirei hoje, está em perfeitas condições. Nenhuma artrite foi encontrada, nenhuma inflamação. Está tão bom quanto na época dos meus dezoito anos.

Quando a boca dela se abriu, pensou em como desejava beijá-la com todo seu ser. Puxando a manga da camisa, percorreu uma das mãos sobre o antebraço.

– Tive sardas por danos causados pelo sol durante duas décadas... sumiram. – Inclinou-se e ergueu a perna da calça. – As dores na canela que tenho de vez em quando? Despareceram. E tudo isso sem contar o fato que corri doze quilômetros sem nem pensar nisso... em menos de quarenta e cinco minutos. Meu exame de sangue não constou colesterol, os valores hepáticos e as taxas de ferro e plaquetas estão perfeitos. – Deu uma leve batida sobre as têmporas. – E quase precisei usar óculos de leitura, tinha que esticar o braço para enxergar melhor cardápios e revistas... só que não preciso mais. Sou capaz de ler letras miúdas a dois centímetros do meu nariz. E acredite ou não, tudo isso está apenas começando.

Ele nem citou o desaparecimento dos pés de galinha ao redor dos olhos e o fato de que a cor cinzenta em suas têmporas foi substituída por um marrom escuro e que seus joelhos não estavam doloridos.

– E você acha... – Payne colocou a mão sobre a garganta. – E você acha que sou a causa?

– Sei que é. O que mais poderia ser?

Payne começou a balançar a cabeça.

– Não entendo porque isso não é uma bênção. A juventude eterna é buscada por todas as raças...

– Não é natural. – Com isso, ela estremeceu, mas ele tinha que continuar. – Sou médico, Payne. Sei tudo sobre o envelhecimento dos corpos humanos e como lidar com as lesões que isso causa. Isso... – fez um sinal sobre seu corpo com as mãos – isso não está certo.

– Isso é regeneração...

– Mas onde isso vai parar? Vou virar um Benjamin Button* da vida e rejuvenescer até a infância?

– Isso seria impossível – ela rebateu. – Fui exposta à luz mais do que você e não estou rejuvenescendo assim.

– Certo, tudo bem, então vamos assumir que isso não aconteça... O que me diz de todas as outras pessoas em minha vida? – Não que fosse uma lista longa, mas mesmo assim. – Minha mãe vai me ver dessa maneira e pensar que fiz uma cirurgia plástica... mas e depois de dez anos? Ela tem setenta... confie em mim, quando chegar aos oitenta ou noventa vai se dar conta de que seu filho não está envelhecendo. Ou será que devo deixá-la?

Manny começou a andar outra vez e quando passou as mãos pelo cabelo, poderia jurar que estava mais volumoso.

– Perdi meu trabalho hoje... por causa do que aconteceu depois que apagaram minha memória. Durante a semana que estive longe de você, minha cabeça ficou tão prejudicada que não conseguia distinguir o dia da noite e isso foi tudo o que precisaram saber para me demitirem, pois não posso explicar o que realmente aconteceu. – Virou-se para ela. – Meu problema é: este é o único corpo que tenho, a única mente, o único... tudo. Vocês vampiros fizeram uma bagunça na minha cabeça e eu quase perdi tudo... Quais foram as consequências? Tudo o que sei é a causa... A magnitude do efeito? Não faço ideia e tenho um ótimo motivo para que isso me assuste.

Payne passou a ponta da trança por cima do ombro e a acariciou enquanto baixava o olhar.

– Eu... sinto muito.

– Não é culpa sua, Payne – ele gemeu ao erguer as mãos. – Não quero colocar toda a responsabilidade disso sobre você, mas eu...

– É culpa minha. Eu sou a causa.

– Payne...

Quando começou a se aproximar, Payne ergueu as mãos e se afastou.

– Não, não chegue perto de mim.

– Payne...

– Você está certo. – Ela parou quando atingiu o vidro por onde havia entrado. – Sou perigosa e destrutiva.

Manny esfregou a cruz atrás da camisa. Apesar de tudo o que disse, naquele momento queria voltar tudo e encontrar uma maneira de consertar as coisas entre eles.

– É um dom, Payne. – Afinal, ela e o cavalo demonstraram os benefícios que havia em se expor à luz em curto prazo. – Vai ajudá-la, ajudar sua família e seu povo. Caramba, com essa capacidade, vai afastar Jane dos negócios.

– De fato.

– Payne... olhe para mim. – Quando seus olhos ergueram-se em determinado momento, teve vontade de chorar. – Eu...

Só que a frase ficou à deriva. A verdade era que a amava. Completamente e para sempre, mas acreditava que tudo aquilo era uma maldição para os dois.

Nunca a esqueceria e nunca mais haveria qualquer pessoa para ele.

Levantando os ombros, preparou-se.

– Tenho uma coisa para pedir.

– O que seria? – ela disse asperamente.

– Não apague minhas memórias. Não direi a ninguém sobre você e sua raça... Juro pela vida da minha mãe. Apenas... deixe como está quando partir. Sem minha mente, terei menos que nada.

Payne estava voando alto quando deixou o complexo. Seu irmão havia lhe contado as incríveis notícias assim que voltou pouco antes do amanhecer e ela passou o dia inteiro entre flutuar nas nuvens e a impaciência pela lentidão com que o tempo se movia.

Então, tinha chegado até ali.

Era difícil imaginar que seu coração esteve tão cheio de alegria há apenas dez minutos.

Entretanto, não era difícil entender a posição de Manuel. E ficou surpresa por nenhum deles antecipar as grandes implicações de seu... poder de cura. Ou seja lá o que fosse.

É claro que aquilo o afetaria.

Olhando para Manuel, viu que a tensão nele era insuportável: estava honesta e verdadeiramente ansioso sobre como as coisas ficariam se ela retirasse do alcance consciente suas memórias do tempo que passaram juntos. E como não ficaria? Havia perdido seu amado trabalho por causa dela. Seu corpo e sua mente estavam em perigo por causa dela.

Céus, ela nunca deveria ter se aproximado dele.

E era exatamente por isso que não se aprovava o inter-relacionamento com os humanos.

– Não se preocupe – ela disse suavemente. – Não vou comprometê-lo mentalmente. Já fiz mais do que o suficiente com você.

Quando respirou aliviado, Payne sentiu que as lágrimas obstruíam sua garganta.

Manny olhou um momento para ela.

– Obrigado.

Ela fez uma pequena reverência e quando se endireitou ficou chocada em ver um brilho em seus belos olhos de mogno.

– Quero me lembrar de você, Payne... de tudo sobre você. Tudo.

Aquele olhar ansioso e triste examinou o rosto dela.

– Seu gosto e a sensação de tê-la. O som de seu sorriso... e dos momentos que ficou ofegante. O tempo que tive perto de você... – a voz dele falhou, mas recuperou-se ao limpar a garganta. – Preciso que essas memórias durem o resto de minha vida.

Lágrimas escorriam pela face de Payne enquanto seu coração não conseguia funcionar direito.

– Vou sentir sua falta, bambina. Todos os dias. Sempre.

Quando estendeu os braços, ela se aproximou dele e perdeu completamente a compostura. Soluçando em sua camisa, estava envolvida pelo corpo sólido e forte de Manny e ela o segurou com a mesma firmeza.

Em seguida, os dois interromperam o abraço ao mesmo tempo, como se fossem um só coração. E ela acreditava que eram.

De fato, havia uma parte dela que desejava lutar, argumentar e tentar fazê-lo enxergar por outro lado, de alguma outra maneira. Mas não tinha certeza se havia uma alternativa. Não tinha uma capacidade maior de prever o futuro do que a de Manny e não sabia nada sobre as consequências do que havia mudado dentro dele.

Não havia mais nada a ser dito. Aquele final que havia chegado de maneira inesperada foi um impacto que não poderia ser amenizado pela fala ou pelo toque ou sequer, ela suspeitava, pelo tempo.

– Devo ir agora – ela disse, afastando-se.

– Deixe-me abrir a porta para você...

Quando ela se desmaterializou, percebeu que aquelas foram as últimas palavras que lhe diria.

Foi o adeus.

Manny olhou para o espaço que sua mulher havia acabado de ocupar. Não havia mais nada dela ali; tinha sumido no fino ar com a mesma precisão de uma luz sendo apagada.

Desapareceu.

Seu impulso imediato foi de ir até o armário da entrada, pegar seu bastão de baseball e despedaçar o lugar. Simplesmente quebrar todos os espelhos, vidros, louças e qualquer outra porcaria... Em seguida, continuar com o trabalho jogando a pouca mobília que tinha pelo terraço. Depois disso... talvez pegasse seu Porsche, dirigisse até a estrada, atingisse mais de cem quilômetros por hora seguindo um caminho que terminaria nos alicerces de uma ponte.

Não havia cinto de segurança naquele cenário, óbvio.

No entanto, no final, ele apenas se sentou na cama ao lado das mochilas e colocou a cabeça entre as mãos. Não era um covarde para chorar como se estivesse em um funeral. Até parece. A coisa simplesmente pingava sobre seu tênis de corrida.

Machão. Muito machão mesmo.

Mas sua aparência, assim como seu orgulho, seu ego, seu pênis e sua coragem, não tinham a menor importância naquele apartamento vazio... nada disso tinha valor.

Deus... aquilo não era apenas triste.

A perda o deixou arrasado.

Ele carregaria aquela dor ao longo de todo o resto de sua vida natural.

Que irônico. O nome dela pareceu tão estranho em um primeiro momento. Soava como a palavra “dor” em inglês**. Agora, era muito adequado.

Referência a O curioso caso de Benjamin Button, filme dirigido por David Fincher e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. (N.P.) Payne: “dor”, em inglês, é “pain”. (N.P.)


CAPÍTULO 50

Payne não voltou para a mansão, não tinha interesse em ver ninguém que morava ali. Nem o Rei, que lhe havia concedido a liberdade que acabou não sendo necessária. Nem seu irmão gêmeo, que havia argumentado junto ao Rei em favor dela. E, com certeza, nenhum dos felizes, alegres e abençoados casais que viviam sob o teto real.

Então, em vez de se dirigir para o norte, voltou-se para as margens do canal que corria ao lado dos altos e envidraçados prédios da cidade. A brisa era suave ali no chão e levava o som das águas lambendo os flancos rochosos do rio. Ao fundo, o zumbido dos automóveis que atravessavam a ponte levemente curvada e que, ao final da travessia, desapareciam para a esquerda ou para a direita, fez Payne sentir com mais intensidade a profundidade e a amplitude da paisagem.

Rodeada por seres humanos, ela estava totalmente sozinha.

No entanto, tinha pedido por isso. Essa era a liberdade tão cara que havia procurado com tanta avidez.

No Santuário, nada mudava. Mas nada dava errado também.

Porém, ainda assim, teria escolhido toda aquela dificuldade em vez do isolamento dormente de antes.

Oh, Manuel...

– Oi, querida...

Payne olhou sobre o ombro. Um humano macho aproximava-se dela, ao sair de um dos suportes da ponte. Cambaleava e cheirava a camadas e camadas de suor fermentado e sujeira.

Sem sequer uma saudação, Payne desmaterializou-se mais abaixo do rio. Não havia razão para limpar a memória dele. Era improvável que conseguisse se lembrar de que a viu. E sem dúvida culparia as drogas alucinógenas.

Olhando para a superfície ondulada do rio, não foi atraída pelo fundo escuro. Não ia se machucar por isso. Não era uma prisão... e, além disso, não seguiria um caminho tão covarde. Apoiando os pés sobre a terra, cruzou os braços e permaneceu no local onde estava, o tempo escoava pela peneira da realidade ignorada enquanto as estrelas giravam lá em cima, mudando de posição...

No princípio, o cheiro penetrou em seu nariz sorrateiramente, misturando-se aos aromas de terra fresca, pedra molhada e poluição urbana. Bem no início, não notou o odor de nada distinto; porém, seu tronco cerebral logo despertou com o reconhecimento.

Com um arrepio instintivo, sua cabeça inclinou-se sem que ela pensasse nisso e girou a parte superior da coluna. Seus ombros seguiram o movimento... depois os quadris.

Aquele odor rançoso era do inimigo.

Um redutor.

Quando saiu em uma corrida leve, sentiu um impulso agressivo em seu sangue não apenas pela mágoa e frustração com o que o destino havia feito a ela. Levada pelo cheiro, foi animada por uma profunda herança de violência e proteção; seus braços, a mão da adaga e as presas formigavam.

Transformada por um propósito mortal, não era nem macho nem fêmea, nem Escolhida, nem irmã, nem filha. Quando espreitou e começou a sondar os becos e ruas, era um soldado.

Em um dos becos que virou encontrou um par de assassinos cujo cheiro havia atraído-lhe no rio. Estavam em pé, parados, perto do que ela identificou como sendo um telefone; eram novos recrutas, com cabelos escuros e corpos inquietos.

Não olharam para ela quando parou junto deles. O que lhe deu tempo para pegar um disco de metal prateado com o nome “Ford” inscrito nele. Era uma boa arma... poderia se proteger com ela ou lançá-la contra o inimigo.

Um momento depois, o vento soprou e seu manto esvoaçou, puxando-o para fora de seu corpo. O movimento deve ter chamado a atenção dos inimigos, pois se viraram.

Facas surgiram. E também um par de sorrisos que fez seu sangue ferver.

Garotos idiotas, pensou ela. Acham que por ser uma fêmea, não apresentava ameaça alguma.

O ritmo com o qual se aproximaram dela não a preocupou nem um pouco. Na verdade, iam gostar da surpresa e acabariam mortos.

– O que está fazendo aqui, moça? – o maior dos dois perguntou. – Sozinha.

Vim cortar sua garganta com o que tenho nas costas. Depois disso, vou quebrar suas duas pernas, não porque eu deva fazer isso, mas porque vou gostar do som. E, em seguida, vou procurar algo de aço para perfurar seu peito vazio e mandá-lo de volta para seu criador. Ou talvez eu lhe deixe se contorcendo no chão.

Payne permaneceu em silêncio. Em vez de falar, distribuiu o peso do corpo sobre os pés e firmou as coxas. Nenhum dos redutores pareceu notar a mudança de posição; estavam ocupados demais aproximando-se dela e exibindo-se como dois pavões. Sequer se separaram e a cercaram. Nenhum deles tentou encará-la de frente enquanto o outro viria por trás.

Ficaram bem a sua frente... onde poderia alcançá-los.

Infelizmente, aquilo seria fácil, mas serviria como um bom aquecimento. Porém, se houvesse outros que soubessem algo sobre luta, seriam mais adequados para distraí-la...

Xcor podia sentir a mudança agitando-se em seu bando de bastardos.

Enquanto caminhavam em formação pelas ruas do centro de Caldwell, a energia atrás dele era um rufar de tambores de agressividade. Precisa. Renovada. Mais forte do que havia sido ao longo de toda uma década.

Na verdade, mudar-se foi a melhor decisão que já havia tomado. E não apenas porque ele e seu Throe fizeram um bom sexo e beberam na noite anterior. Seus homens eram como punhais retirados com rapidez da forja, os instintos assassinos estavam renovados e brilhavam sob o luar artificial da cidade. Não era de se admirar não haver mais assassinos no Antigo País. Estavam todos ali, a Sociedade Redutora concentrou todos os seus esforços em...

A cabeça de Xcor virou-se e ele desacelerou.

O aroma no ar fez com que suas presas se alongassem e seu corpo ressoasse com poder.

Sua mudança de direção não anunciava nada. Seus bastardos foram logo atrás dele, rastreando, assim como ele, o cheiro doce que havia sentido sobre as asas das rajadas de vento noturnas.

Quando viraram a esquina e seguiram em linha reta, Xcor rezou para que fossem muitos. Uma dúzia. Uma centena. Duzentos. Queria ser coberto com o sangue do inimigo, banhado com o óleo preto que saía de suas entranhas...

Na entrada de um beco, seus pés não pararam, era mais como se tivessem cimentados no chão.

Entre um piscar de olhos e outro, o passado veio à tona, superando a distância entre meses, anos e séculos para se concretizar no presente.

No centro do beco, uma mulher com um manto branco lutava com um par de redutores. Ela os agredia com chutes e socos, girava e pulava tão rápido que tinha de esperar que voltassem a cair perto dela.

Com suas habilidades superiores de luta, simplesmente brincava com eles. E havia uma nítida impressão de que não reconheciam tudo o que ela poderia fazer com eles.

Letal. Era letal e só estava esperando para atacar.

E Xcor sabia exatamente quem era.

– Ela é... – a garganta de Xcor interrompeu o resto das palavras.

Procurou por séculos e seu alvo sempre lhe foi negado... apenas para encontrá-lo em uma noite qualquer em uma cidade escolhida de maneira aleatória do outro lado de um imenso oceano... era o destino se manifestando.

Tinham de se encontrar outra vez.

Ali. Naquela noite.

– Ela é a assassina do meu pai. – retirou a foice de seu cinto. – É a assassina de meu sangue.

Alguém pegou sua mão e imobilizou seu braço.

– Não aqui.

O fato de não ter sido o coração mole de Throe foi a única coisa que o deteve. Era Zypher.

– Vamos capturá-la e levá-la para casa. – O guerreiro sorriu de maneira sombria, havia um profundo tom erótico em sua voz. – Está aliviado, mas existem outros entre nós que precisam do que você teve na noite passada. Depois disso? Pode ensiná-la sobre as consequências dos atos de vingança.

Zypher era o mais propenso a planejar algo assim. E embora a ideia de abatê-la imediatamente o atraísse, Xcor já havia esperado muito tempo para saborear aquele fim.

Tantos anos.

Anos demais... até que perdeu as esperanças de encontrá-la. Apenas seus sonhos mantinham viva a memória do que o definia e dava um posicionamento em sua vida.

Sim, pensou. Seria adequado fazer à maneira de Bloodletter. Nada de facilitar para a fêmea.

Xcor voltou a guardar sua foice enquanto a assassina cuidava apropriadamente dos redutores. Sem aviso, ela saltou para frente e pegou um deles pela cintura, abaixou-se dentre aqueles braços que se debatiam e o levou direto contra o edifício. Aconteceu tão rápido que o segundo redutor ficou impressionado... e, obviamente, não possuía treino algum... para salvar seu amigo.

Contudo, ainda se o número dois fosse um desafio para ela, não teria chance. Praticamente no mesmo momento em que o atacou, a mulher girou e rasgou o lado direito do pescoço do assassino. O corte profundo o distraiu imediatamente da tentativa de vencê-la. Quando o óleo negro jorrou e seus joelhos vacilaram, ela despachou o assassino jogando-o contra os tijolos ao perfurar seu rosto duas vezes e uma vez no pomo de Adão. Então, ergueu o corpo e bateu com força sobre seu joelho erguido.

O estalo da coluna foi alto.

E quando se desvaneceu, ela virou-se para confrontar aqueles que assistiam seu trabalho. O que não foi uma surpresa. Uma guerreira tão boa quanto ela sabia imediatamente quando outros se aproximavam dela.

Inclinando a cabeça para o lado, Payne não se assustou... Por outro lado, por que se assustaria? Ocultavam-se com as sombras e estava muito claro que eram de sua espécie: até Xcor se revelar, não fazia ideia do perigo que corria.

– Boa noite, fêmea – disse em um tom baixo vindo das trevas.

– Quem está aí? – ela gritou.

Chegou a hora, ele pensou, dando um passo à frente em direção à luz...

– Não estamos sozinhos – Throe sussurrou de repente.

Xcor parou de avançar, seus olhos estreitaram-se nos sete assassinos que apareceram no final do beco.

De fato. Não estavam sozinhos.

Mais tarde, Xcor viria a acreditar que a única razão pela qual foi bem-sucedido no ato de capturar a fêmea foi a chegada daqueles novos redutores. O avanço do inimigo desviou seus olhos... e sua atenção. Mas antes que pudesse se desmaterializar em outra posição, Xcor colocou-se muito próximo a ela.

Apesar de seu coração estar batendo forte, a vingança deu-lhe foco para dispersar suas moléculas assim que ela se virou para enfrentar o esquadrão que se aproximava. O punho de aço de Xcor segurou o pulso de Payne num piscar de olhos e quando ela se virou com uma fúria cega em seu rosto, ele lembrou-se do processo de incineração que havia lançado sobre seu pai.

O que o salvou foi um tiro disparado por um redutor.

O barulho foi sutil, mas sua consequência um benefício espetacular: no momento em que ela já estava levantando a mão livre para colocar sobre ele, a perna vacilou e ela caiu, estava claro que a bala havia atingido algo vital. E naquele momento de fraqueza, Xcor a dominou... tinha apenas uma chance de assumir o controle sobre ela. Se não fizesse isso, não tinha certeza se conseguiria livrar-se daquela situação.

Unindo os pulsos, pegou a trança e a envolveu em volta da garganta. Puxando com força, obstruiu a passagem de ar enquanto seus soldados avançavam com as armas em punho.

Oh, como ela lutou. Tão valente. Tão poderosa.

Era apenas uma fêmea... mas muito mais do que isso. Quase tão forte quanto ele e essa não era sua única vantagem. Mesmo capturada e à beira da asfixia, os olhos claros permaneciam fixos nos dele, como se pudesse penetrar em sua mente e controlar seus pensamentos.

Mas ele não se intimidou. Enquanto os sons do combate eclodiam no beco, manteve o olhar de diamante da assassina de seu pai enquanto seus grandes braços estreitavam cada vez mais o laço ao redor do pescoço.

Lutando para respirar, ela engasgava e se contorcia, seus lábios se moviam.

Ele baixou a orelha, queria ouvir o que ela tinha a...

– ... por quê...?

Xcor recuou, ao mesmo tempo em que ela parou de lutar e aqueles olhos deslumbrantes reviraram.

Pelo amor da Virgem Escriba, a fêmea nem sabia quem ele era.


CAPÍTULO 51

Como o homem das cavernas que era, V. sempre pensou que a sala de bilhar na mansão da Irmandade tinha tudo. Uma tela de TV gigante com som estéreo. Sofás com estofamento suficiente para qualificá-los como camas. Uma lareira com chamas bastante atrativas. Um bar com todo tipo de bebida concebível: refrigerante, chá, café, cerveja, qualquer coisa.

E uma mesa de bilhar. Dã.

A única coisa “ruim”, na verdade, era um benefício: a máquina de pipoca era um vício recente... e travava uma estranha batalha. Rhage gostava de brincar com a maldita coisa, mas toda vez que o fazia, Fritz ficava nervoso e queria entrar em ação. De qualquer forma, era legal. As pequenas cestas de vime ficavam sempre cheias, então qualquer que fosse o casal que não tivesse ainda apanhado uma delas tinha sua vez na máquina.,

Enquanto Vishous esperava para dar sua próxima tacada, pegou um bloquinho de giz azul e esfregou sobre a ponta do taco. Do outro lado do feltro verde, Butch curvou-se e alinhava seus ângulos enquanto a música Aston Martin Music, de Rick Ross, tocava alto.

– Sete no canto – o tira disse.

– Vai acertar essa, não? – V. apoiou o giz e balançou a cabeça quando houve um golpe, algo rolou e, por fim, uma batida. – Bastardo.

Butch ergueu os olhos, havia uma expressão de “Peguei você” brilhando naquele olhar.

– Eu sou muito bom. Desculpe, otário.

O tira tomou um gole de uísque e voltou a se posicionar do outro lado da mesa. Ao avaliar as bolas, seu sorriso esperto estava exatamente onde deveria estar: à frente e no centro, revelando um pouco de sua coroa de porcelana.

V. mantinha seus olhos no cara. Depois de passarem horas juntos, separaram-se de maneira meio desajeitada e tomaram uma ducha separados. Felizmente, porém, a água quente reinicializou os dois e encontraram-se outra vez na cozinha do Buraco, conversando sobre as mesmas coisas de sempre.

E era uma pena continuar assim.

Não que não houvesse a tentação de perguntar ao cara se estava tudo bem. Isso acontecia, mais ou menos, a cada cinco minutos. Parecia que tinham lutado juntos e exibiam feridas e hematomas que já desapareciam como prova disso. Mas V. tinha de lidar com o que acontecia bem diante dele: seu melhor amigo estava lhe dando uma surra no bilhar.

– E esse é o fim do jogo – o tira anunciou quando a bola oito rolou e acertou em cheio a caçapa.

– Você me venceu.

– Sim – Butch sorriu e ergueu a taça. – Quer mais uma rodada?

– Pode apostar.

O cheiro de manteiga derretida e o som de grãos estourando na maldita máquina anunciaram a chegada de Rhage... ou seria Fritz? Não, era Hollywood perto da máquina com sua Mary.

V. inclinou-se para enxergar através do arco, ao longo do saguão, em direção à sala de jantar onde o mordomo e sua equipe estavam organizando a Última Refeição.

– Cara, Rhage está brincando com fogo – Butch disse ao começar a recolher as bolas. – Dou trinta segundos para que Fritz... Lá vem ele.

– Vou fingir que não estou aqui.

V. tomou um gole de seu Goose.

– Eu também.

Enquanto se ocupavam recolhendo as bolas, Fritz veio a todo vapor pelo corredor de entrada como um míssil em busca de uma fonte de calor.

– É melhor Hollywood tomar cuidado – V. murmurou enquanto Rhage aproximava-se com uma cesta de pipocas quentinhas.

– É bom mesmo. Ele precisa do exercício... Fritz! Como vai, cara?

Enquanto Butch e V. reviravam os olhos, Rehv entrou com Ehlena vestido com seu grosso casaco de visom. O filho da mãe de cabelo moicano estava agasalhado, como de costume, e sempre apoiado sobre sua bengala, mas seu sorriso permanente de macho vinculado estava ali e sua shellan brilhava ao lado dele.

– Garotos – ele disse.

Vários grunhidos o cumprimentaram enquanto Z. e Bella entrava com Nalla. Phury e Cormia chegaram também, pois passaram o dia ali. Wrath e Beth ainda deviam estar no escritório... talvez verificando a papelada; talvez colocando George brevemente no topo da escada para que pudessem ter um pouco de “privacidade”.

Quando John e Xhex desceram com Blay e Saxton, as únicas pessoas que não tinham aparecido eram Qhuinn e Tohrment, que deveriam estar na academia, e Marissa, que estava no Lugar Seguro.

Bem, aqueles três e sua Jane, que estava na clínica repondo os suprimentos gastos na noite anterior.

Oh, e claro, sua irmã gêmea, que sem dúvida estava em meio a muitos... “hum, isso”... com o cirurgião dela.

Com todos os recém-chegados na sala, o som de vozes profundas multiplicava-se e retumbava enquanto pessoas serviam bebidas, passavam o bebê de mão em mão e apanhavam punhados de pipoca. Enquanto isso, Rhage e Fritz colocavam uma nova carga de grãos na máquina. E alguém mudava os canais da TV, provavelmente Rehv, que nunca estava satisfeito com o que passava. E outra pessoa cutucava o fogo ruidoso da lareira.

– Ei. Você ainda está bem? – Butch disse suavemente.

V. camuflou sua surpresa com tudo aquilo enrolando um cigarro que tirou do bolso de sua jaqueta de couro. O tira falou tão baixo que não havia possibilidade de ninguém mais ter ouvido e isso era bom. Sim, estava tentando livrar-se daquela coisa toda de ser tão reservado, mas ninguém precisava saber quão longe tinham chegado. Aquilo era assunto particular.

Acendendo o cigarro, tragou.

– Sim. Estou bem, de verdade. – Em seguida, encarou os olhos de avelã de seu melhor amigo. – E... você?

– Sim. Eu também.

– Legal.

– Legal.

Eeeeei, olha só o maldito relacionamento. Mais um pouco e ele ganharia uma estrela dourada no caderno.

Em um estalar de dedos, Butch estava de volta ao jogo, alinhando a primeira tacada enquanto V. se deliciava no brilho de se relacionar com as pessoas como se fosse um profissional.

Ia dar outro gole em sua bebida forte quando seus olhos pularam para a entrada arqueada da sala.

Jane hesitou quando olhou para dentro, seu jaleco branco abriu-se quando se inclinou para o lado, como se procurasse por ele.

Quando seus olhos se encontraram, ela sorriu um pouco. Em seguida, muito.

Seu primeiro impulso foi esconder seu sorriso por trás da bebida. Mas, então, não se conteve. Vivia uma nova ordem mundial.

Vamos lá, sorria, filho da mãe, pensou.

Jane fez um rápido aceno e fez uma brincadeira com isso, era assim que costumavam agir quando estavam juntos em público. Virando-se, ela foi até o bar para servir-se de alguma coisa.

– Espere um pouco, tira – V. murmurou ao apoiar a bebida e o taco sobre a mesa.

Sentia como se tivesse quinze anos; colocou o cigarro entre os dentes e ajeitou a camiseta na cintura da calça. Uma rápida passada de mãos no cabelo e estava... Bem, tão pronto quanto possível.

Aproximou-se de Jane por trás na mesma hora em que ela se inclinou para conversar com Mary... e quando sua shellan virou-se para cumprimentá-lo, parecia um pouco surpresa por ele ter vindo até ela.

– Oi, V... Tudo...

Vishous aproximou-se ainda mais, deixando-os corpo a corpo, então, passou os braços ao redor da cintura de Jane. Ao segurá-la numa atitude de posse, inclinou seu corpo lentamente até ela ter de segurar em seus ombros e seus cabelos caírem do rosto.

Quando ela ofegou, disse exatamente o que ele pensava:

– Senti sua falta.

Com isso, colocou seus lábios sobre os dela e beijou seu corpo sólido que ficaria eternamente vivo, deslizando uma das mãos para baixo até o quadril enquanto enfiava a língua na boca e continuava, continuava, continuava...

Tiveram a vaga impressão de que a sala caiu num silêncio profundo e que tudo o que respirava ali olhava para ele e sua companheira. Mas não importava. Aquilo era o que desejava fazer e faria na frente de qualquer um... e do cachorro do Rei, como viram depois.

Pois Wrath e Beth chegaram, vindos do saguão de entrada.

Quando Vishous endireitou lentamente sua shellan, as vaias e assovios começaram e alguém jogou um punhado de pipoca como se fosse confete.

– É isso aí – Hollywood disse. E jogou mais pipoca.

Vishous limpou a garganta.

– Tenho um anúncio a fazer.

Certo. Tudo bem, havia muitos olhos sobre os dois. Mas com certeza estava disposto a engolir a vontade de desistir.

Aconchegando sua inquieta e corada Jane a seu lado, disse em alto e bom tom:

– Vamos nos acasalar. Apropriadamente. E espero que todos vocês estejam lá e... Sim, é isso.

Silêncio. Total.

Então, Wrath soltou a coleira de George e começou a aplaudir. Alto e devagar.

– Já era hora!

Seus irmãos, suas shellans e todos os convidados da casa seguiram o exemplo e, logo, os lutadores começaram a cantar tão alto que atingiram o teto e algo mais... suas vozes vibraram pelo ar.

Quando olhou para Jane, ela brilhava. Resplandecia.

– Talvez eu devesse ter perguntado antes – ele murmurou.

– Não – ela o beijou. – Isso foi perfeito.

Vishous começou a rir. Cara, se isso era a vida em todo seu potencial, manteria a rotina noite após noite: seus Irmãos estavam com ele, sua shellan estava feliz e... bem, poderia passar sem a pipoca no cabelo, mas enfim.

Minutos depois, Fritz trouxe taças de champanhe e, agora, havia um tipo diferente de estalo no ar, eram rolhas voando, e as pessoas falavam ainda mais alto do que antes.

Quando alguém empurrou um copo para sua mão enluvada, sussurrou no ouvido de Jane:

– Champanhe me deixa excitado.

– Mesmo...?

Deslizando a mão sobre seus quadris... e ainda mais abaixo... puxou-a contra sua ereção repentina.

– Já conhece a área dos banheiros?

– Acho que fomos formalmente apresen... Vishous!

Parou de mordiscar seu pescoço, mas continuou empurrando seu quadril contra o dela. O que era um pouco indecente, mas nada que os outros casais não fizessem de vez em quando.

– O que foi? – falou lentamente. Quando ela pareceu sem palavras, V. sugou seus lábios e resmungou: – Se não me engano, estávamos falando sobre o banheiro. Estava pensando que talvez pudesse apresentar vocês dois. Não sei se está ciente disso, mas o balcão da pia está gritando por você.

– E você deve fazer um ótimo trabalho nessas pias.

V. arranhou uma de suas presas pela garganta dela.

– Com certeza.

Quando sua ereção começou a latejar, pegou a mão de sua fêmea...

O relógio de pêndulo no canto da sala começou a soar e ouviram quatro badaladas profundas. O que o fez recuar um pouco e checar o relógio mesmo sem precisar... pois aquele relógio dava a hora certa há duzentos anos.

Quatro da manhã? Onde diabos estava Payne?

Quando o impulso de ir ao Commodore para trazer sua irmã de volta para casa o atingiu em cheio, lembrou-se de que embora o amanhecer fosse chegar rápido, ela ainda tinha mais ou menos uma hora. E considerando o que ele e Jane estavam prestes a fazer atrás de uma porta fechada, não poderia culpá-la querer prolongar cada momento que tinha com seu macho... mesmo se V. não concordasse nem um pouco com isso.

– Está tudo bem? – Jane perguntou.

Voltando à realidade, baixou a cabeça.

– Vai ficar assim que eu colocá-la sobre aquele balcão.

Ficaram no banheiro por quarenta e cinco minutos.

Quando saíram, todos ainda estavam na sala de bilhar. Colocaram música para tocar e a canção I’m not a human being, de Lil Wayne, ecoava até o teto do saguão. O doggen circulava pela sala servindo algumas coisas finas em bandejas de prata e havia um círculo de pessoas rindo ao redor de Rhage enquanto ele contava piadas.

Por um momento, pareciam os bons e velhos tempos.

Mas, então, não viu sua irmã na multidão. E ninguém veio até ele para dizer que ela havia subido para o quarto de hóspedes que estava usando.

– Volto já – disse para Jane. Deu um rápido beijo e esquivou-se da festa, andou rápido pelo saguão de entrada e entrou na sala de jantar vazia. Ao contornar a mesa bem arrumada, mas abandonada tirou o celular do bolso e discou para o telefone que havia dado a Payne.

Ninguém atendeu.

Tentou outra vez. Nenhuma resposta. Terceira vez? Nenhuma... maldita resposta.

Praguejando, discou o número de Manello e estremeceu com a ideia do que poderia interromper... mas, provavelmente, puxaram as cortinas e perderam a noção do tempo. E os telefones poderiam perder-se nos lençóis, pensou com uma careta.

Ring... ring.... ring...

– Atenda seu...

– Alô?

Manello parecia estar mal. Baleado. Mortalmente ferido.

– Onde está minha irmã? – pois não havia razão para o cirurgião atender assim se ela estivesse na cama dele.

A pausa também não foi uma boa notícia.

– Não sei. Ela saiu daqui há horas.

– Horas?

– O que está acontecendo?

– Jesus Cristo... – V. desligou na cara dele e ligou para sua irmã outra vez. E outra vez.

Procurando com a cabeça, olhou para o saguão de entrada e para a porta principal.

Com um zumbido sutil, as persianas de aço que protegiam a casa do sol começaram a descer.

Vamos lá, Payne... vamos lá. Agora mesmo.

Agora...

Mesmo...

O toque suave de Jane arrastou-o de volta à realidade.

– Está tudo bem? – ela perguntou.

Seu primeiro instinto foi o de esconder tudo com uma mentira usando uma das piadas de Rhage.

Em vez disso, forçou-se a ser sincero com sua companheira.

– Payne está... talvez esteja desaparecida. – Quando ela ofegou e estendeu a mão procurando a sua, quis fugir de alguma maneira. Mas manteve os pés firmes sobre a tapeçaria oriental. – Ela deixou Manello... – há horas – ah, há horas. E agora estou rezando para uma mãe que desprezo para que ela passe logo por aquela porta.

Jane não disse mais nada. Em vez disso, inclinou-se para conseguir observar também a entrada e esperou com ele.

Ao pegar a mão dela, percebeu que era um alívio não estar sozinho quando a coisa toda surgiu... e sua irmã ainda não tinha voltado para casa.

Aquela visão que teve dela sobre um cavalo negro, cavalgando em um assustador declive, voltou a ele no silêncio da sala de jantar. Seus cabelos escuros esvoaçavam junto com a crina do garanhão, os dois corriam a toda velocidade... indo para Deus sabe onde.

Uma alegoria?, pensou. Ou apenas o anseio de seu irmão de que ela estivesse finalmente livre...?

Jane e ele ainda ficaram ali parados, juntos, olhando para a porta que não se abriu quando o sol ergueu-se oficialmente vinte e dois minutos depois.

Enquanto Manny andava pelo apartamento, começou a ficar preocupado. Muito preocupado. Queria deixar o local logo depois de Payne ter saído, mas ficou sem energia e acabou passando a noite toda olhando... a noite.

Extremamente vazio.

Simplesmente vazio demais para se mover.

Quando o telefone tocou ao lado dele, observou o número e sentiu um alívio momentâneo. Número particular. Tinha de ser ela.

E considerando que sua mente retomava o que havia dito a ela várias vezes, precisou de um segundo para organizar as coisas depois de toda aquela divagação inútil. No momento em que proferiu aquele discurso, parecia tão racional, razoável e inteligente... Até que olhou para o futuro que estava além de um vago e profundo buraco negro.

Atendeu a ligação sem esperar que nenhum macho falasse com ele do outro lado.

Muito menos o irmão dela. Muito menos o bastardo ficando todo surpreso por Payne não estar no apartamento.

Enquanto Manny andava em círculos, encarou o telefone, desejando que tocasse outra vez... desejando que o maldito dispositivo eletrônico soasse e fosse Payne dizendo que estava bem. Ou seu irmão. Qualquer um.

Ninguém.

Pelo amor de Deus, Al Roker* poderia lhe telefonar para dizer que ela estava bem.

Só que a madrugada passou rápido demais e o telefone permaneceu em silêncio, e, como um fracassado, acessou sua lista de chamadas recentes e tentou ligar de volta para o número “particular”. Quando tudo o que ouviu foi um tom de discagem, quis jogar o celular pelo quarto, mas onde isso o levaria?

A impotência era esmagadora. Um grande triturador.

Queria sair e... droga, encontrar Payne se estivesse perdida. Ou trazê-la de volta se estivesse lá fora sozinha. Ou...

O telefone tocou. Número particular.

– Graças a Deus – disse quando foi atendido. – Payne...

– Não.

Manny fechou os olhos: o irmão dela parecia péssimo.

– Onde ela está?

– Não sabemos. E não podemos fazer nada daqui... estamos presos dentro da casa. – O cara suspirou como se estivesse fumando algo. – O que diabos aconteceu antes dela sair? Pensei que passaria a noite inteira com você. Tudo bem se vocês dois... sabe...? Mas por que ela saiu tão cedo?

– Disse a ela que não ia dar certo.

Longo silêncio.

– Que lixo tem na cabeça?

Com certeza, se não estivesse tão iluminado e ensolarado lá fora, o filho da mãe bateria na porta de Manny, procurando acabar com algum descendente de italiano.

– Achei que isso o deixaria feliz.

– Ah, sim. Com certeza... partiu o coração da minha irmã. Adorei. – Soltou o ar outra vez com força, como se estivesse soprando fumaça. – Ela está apaixonada por você, idiota.

Aquilo tirou-o dos trilhos. Mas continuou com o programa.

– Ouça, ela e eu...

Nesse momento, deveria explicar a coisa toda sobre os resultados dos exames físicos e como estava assustado e que não sabia as repercussões daquilo. Mas o problema era que assim que Payne saiu, percebeu, durante aquelas horas, que havia algo mais importante acontecendo dentro dele: estava sendo um grande canalha. Dispensou Payne por que, na verdade, estava morrendo de medo por finalmente ter se apaixonado de fato por uma mulher... fêmea... não importa. Sim, houve uma tremenda sobreposição de elementos metafísicos que ele não entendia, nem conseguia explicar, blá, blá, blá. Mas a questão central de tudo isso era que sentia algo tão profundo por Payne que não sabia mais quem era e essa era a parte assustadora.

Saiu correndo quando teve uma chance.

Mas aquilo havia acabado.

– Estamos apaixonados – disse com clareza.

E maldito seja, devia ter tido coragem para dizer isso a ela. E abraçá-la. E ficar com ela.

– Então, como eu disse, que lixo tem na cabeça?

– Ótima pergunta.

– Meu... Deus.

– Ouça, como posso ajudar...? Posso sair à luz do dia e não há nada que eu não faça para trazê-la de volta. Nada. – Energizado pela obsessão, procurou suas chaves. – Se ela não está com você, para onde poderia ir? E quanto àquele lugar... o Santuário?

– Cormia e Phury foram até lá. Nada.

– Então... – Odiava pensar assim. – E quanto a seus inimigos? Onde eles ficam durante o dia... Vou até lá.

Ouviu uma maldição. Uma baforada de ar. Pausa. Em seguida, o som de um movimento rápido e algo sendo inalado, como se o cara estivesse acendendo outro cigarro.

– Sabe? Não deveria fumar – Manny ouviu-se dizendo.

– Vampiros não têm câncer.

– Sério?

– Sim. Certo, o negócio é o seguinte: não temos um local específico para a Sociedade Redutora. Os assassinos tendem a se infiltrar na população humana em pequenos grupos, por isso, é quase impossível encontrá-los sem criar uma situação perturbadora grave. A única coisa... Vá aos becos localizados próximos ao rio no centro da cidade. Ela deve ter encontrado alguns redutores... vai procurar por evidências de uma luta. Haverá óleo negro por toda parte. Como óleo de motor. E um cheiro doce... como se houvesse uma mistura de carniça e talco. É muito evidente. Vamos começar por aí.

– Preciso ser capaz de entrar em contato com você. Preciso de seu número.

– Vou mandar uma mensagem de texto com ele. Tem uma arma? Qualquer uma?

– Sim. Tenho. – Manny já estava tirando sua pistola calibre quarenta licenciada do armário. Viveu na cidade durante toda sua vida adulta e coisas ruins aconteciam... então, aprendeu a lidar com uma arma há vinte anos.

– Diga que é maior que uma nove milímetros.

– Sim.

– Pegue uma faca. Vai precisar de uma lâmina de aço inoxidável.

– Entendido. – Foi até a cozinha e pegou a maior e mais afiada faca que tinha. – Mais alguma coisa?

– Um lança-chamas. Bastões. Estrelas-ninja. Uma metralhadora compacta. Quer que eu continue?

Se ao menos ele tivesse aquele tipo de arsenal.

– Vou levá-la de volta, vampiro. Escreva minhas malditas palavras... Vou levá-la de volta. – Pegou sua carteira e estava se dirigindo para a porta quando um pavor o deteve. – Quantos são? Seus inimigos?

– Um número incontável.

– São... machos?

Pausa.

– Costumavam ser. Antes de serem transformados, são homens humanos.

Um som saiu da boca de Manny... um que tinha plena certeza de que nunca havia proferido antes.

– Não, ela consegue lidar sozinha com uma luta mano a mano – seu irmão disse em um tom mortal. – Ela é forte assim.

– Não era isso que eu estava pensando. – Teve de esfregar os olhos. – Ela é virgem.

– Ainda...? – o cara perguntou depois de um momento.

– Sim. Não achei certo... tirar isso dela.

Oh, Deus, a ideia de que ela poderia ser ferida...

Sequer conseguiu finalizar a frase para si mesmo.

Entrando em ação, saiu do apartamento e chamou o elevador. Enquanto esperava, percebeu que só houve silêncio do outro lado por um tempo.

– Oi? Você está aí?

– Sim – a voz do irmão gêmeo irrompeu. – Sim. Estou aqui.

A conexão entre eles permaneceu aberta enquanto Manny entrava no elevador e apertava S. E toda a viagem dele até o carro aconteceu sem dizerem absolutamente nada.

– São impotentes – o irmão gêmeo finalmente murmurou assim que Manny entrou no Porsche. – Não conseguem fazer sexo.

Bem, aquilo realmente não fez com que se sentisse melhor. E considerando o tom do irmão dela, o cara também estava pensando da mesma maneira.

– Eu te ligo – Manny disse.

– Faça isso, cara. Faça isso mesmo.

Trabalha como homem do tempo para a rede de televisão NBC, além de escrever livros de mistério e atuar. (N.P.)


CAPÍTULO 52

Quando Payne recobrou a consciência, não abriu os olhos. Não havia motivo algum para chamar atenção ao fato de que estava acordada para os outros que a rodeavam.

As sensações do corpo informaram sua situação: estava em pé, com os pulsos algemados e puxados para as laterais e as costas estavam apoiadas contra uma parede de pedra úmida. Os tornozelos estavam esticados e amarrados também, e a cabeça pendia para frente em uma posição muito desconfortável.

Quando respirou mais fundo, sentiu o odor de sujeira almiscarada e vozes masculinas vinham da esquerda.

Vozes muito profundas. Uma excitação ressoava como se algo bom tivesse sido preso em suas garras.

Era ela.

Quando reuniu suas forças, não teve ilusões sobre o que fariam com ela. Em breve. E quando se recompôs um pouco mais, afastou os pensamentos de seu Manuel... aqueles homens fariam de tudo, abusariam dela muitas vezes antes de matá-la, tirando dela o que deveria ser de seu curandeiro...

Só que não podia, nem pensaria nele. Aquele pensamento era um buraco negro que a sugaria, a prenderia e a deixaria indefesa.

Em vez disso, puxou os fios da memória, fundiu as imagens dos rostos de seus sequestradores com o que conhecia das bacias do Santuário.

Por quê?, ela se perguntava. Não fazia ideia do porquê de algum deles desejar destruí-la com tanto ódio...

– Sei que está acordada – a voz era incrivelmente baixa, havia um forte sotaque e estava bem perto de seu ouvido. – Sua respiração mudou.

Ao abrir os olhos e erguer a cabeça ao mesmo tempo, deslocou o olhar até o soldado. Estava nas sombras ao lado dela; assim, não conseguia enxergá-lo muito bem.

De repente, as outras vozes silenciaram e sentiu que muitos olhares estavam sobre ela.

Então, era assim que uma presa se sentia.

– Estou magoado por não se lembrar de mim, fêmea. – Com isso, trouxe uma vela para mais perto de seu rosto. – Penso em você todas as noites desde que nos vimos pela primeira vez. Centenas de anos atrás.

Ela estreitou os olhos. Cabelos negros. Olhos cruéis de um azul-marinho. E um lábio leporino que obviamente era de nascença.

– Lembre-se de mim – não era uma pergunta, mas uma exigência. – Lembre-se de mim.

E, então, as lembranças voltaram. A pequena aldeia à beira de um vale arborizado, onde ela matou seu pai. Aquele era um dos soldados de Bloodletter. Sem dúvida, todos eles eram.

Oh, era definitivamente uma presa, pensou. E estavam ansiosos para machucá-la antes de a matarem, em retaliação por ter assassinado o líder deles.

– Lembre-se de mim.

– Você é um dos soldados de Bloodletter.

– Não – vociferou, colocando o rosto sobre o dela. – Sou mais que isso.

Quando ela franziu a testa, ele apenas recuou e andou pelo local em um pequeno círculo, os punhos fecharam-se com força, a vela pingava cera sobre a mão contorcida.

Quando voltou a ficar diante dela, estava sob controle. Um pouco.

– Sou o filho dele. Seu filho. Você roubou meu pai de mim...

– Impossível.

– ... injustamente... O quê?

Em seu silêncio vacilante, ela disse em alto e bom tom:

– É impossível que seja filho dele.

Quando as palavras foram registradas, a fúria cega no rosto dele era a melhor definição de ódio e sua mão tremia quando levantou-a acima do ombro.

Bateu nela com tanta força que Payne viu estrelas.

Quando endireitou a cabeça e encontrou os olhos dele, não se importava com nada daquilo. Nem com aquela crença equivocada. Nem com aquele grupo de homens que media seu corpo. Nem com a ignorância criminal.

Payne sustentou o olhar do seu captor.

– Bloodletter gerou um e apenas um filho macho...

– Vishous, membro da Irmandade da Adaga Negra – sua risada forte ecoou. – Ouvi algumas histórias de suas perversões...

– Meu irmão não é um pervertido!

Nesse momento, Payne perdeu todo o controle, a raiva que a induziu naquela noite quando matou seu pai voltou e sobrepôs-se a tudo: Vishous era seu sangue e seu salvador por tudo o que havia feito por ela. E não ia aceitar que o desrespeitassem... mesmo se defendê-lo custasse-lhe a vida.

Em um piscar de olhos, foi consumida por uma energia interior que iluminou com uma luz branca intensa a adega onde estavam.

As algemas queimaram, caindo no chão de terra fazendo um barulho metálico.

O macho diante dela saltou para trás e preparou-se, assumindo uma posição de combate, enquanto os outros pegavam suas armas. Mas ela não ia atacar, não fisicamente.

– Ouça-me bem – proclamou. – Sou nascida da Virgem Escriba. Sou uma Escolhida do Santuário. Então, quando digo a você que Bloodletter, meu pai, não gerou outro filho macho, isso é um fato.

– Mentira – o macho ofegava. – E você... não pode ter nascido da Mãe da raça. Ninguém nasce dela...

Payne ergueu seus braços brilhantes.

– Sou o que sou. Negar isso é por sua conta.

A cor desapareceu da pele do macho e houve um longo e tenso impasse; enquanto armas tradicionais apontavam em sua direção, ela brilhava com uma fúria sagrada.

E, então, o líder saiu de sua posição de combate, deixou as mãos caírem para os lados e as coxas se endireitaram.

– Não pode ser – engasgou. – Impossível...

Macho tolo, ela pensou.

Erguendo o queixo, ela declarou:

– Sou fruto gerado da união entre Bloodletter e a Virgem Escriba. E lhe digo agora – deu um passo para aproximar-se dele – que matei meu pai, não o seu.

Levantando a palma da mão, colocou-a para trás e atingiu o rosto dele.

– E não insulte meu sangue.

Quando a fêmea o atingiu, a cabeça de Xcor virou tão rápido e com tanta força que precisou firmar o ombro na tentativa de manter a maldita coisa sobre a coluna. O sangue inundou imediatamente sua boca e cuspiu um pouco antes de se endireitar.

Na verdade, a fêmea diante dele era majestosa em sua fúria e determinação. Quase tão alta quanto ele, olhava diretamente em seus olhos, com as mãos fechadas em punho, estava preparada para usá-las contra ele e seu bando de bastardos.

Aquela não era uma fêmea comum. E não só pela maneira como dissolveu aquelas algemas.

De fato, quando ela o encarou com firmeza, Xcor lembrou-se de seu pai. Tinha a vontade de aço de Bloodletter não apenas em seu rosto, seus olhos ou em seu corpo. Estava em sua alma.

Com efeito, ele tinha a impressão muito clara de que todos eles poderiam atacá-la, ao mesmo tempo, que ela combateria a todos até o último suspiro, até a última batida de seu coração.

Deus era testemunha de que o golpeou como um guerreiro. Nada parecido com a força de uma fêmea.

Mas...

– Ele era meu pai. Ele me disse isso.

– Era um mentiroso – dito isso, ela sequer piscou. Nem abaixou os olhos ou o queixo. – Sou testemunha, observando nas bacias de visão, das incontáveis filhas bastardas que teve. Mas havia apenas um filho e é meu irmão gêmeo.

Xcor não estava preparado para ouvir isso na frente de seus machos.

Olhou para eles. Até mesmo Throe estava armado e na face de cada um deles havia uma raiva impaciente. Um ato seu de assentir com a cabeça e todos iriam atacá-la, mesmo se incinerasse a todos.

– Deixem-nos a sós – ele ordenou.

Não foi surpresa quando Zypher foi o único a argumentar.

– Deixe-nos segurá-la enquanto o senhor...

– Deixe-nos.

Houve um momento de imobilidade. Em seguida, Xcor gritou:

– Deixe-nos!

Rapidamente, começaram a se mover e desapareceram pela escadaria que dava para a sala escura no andar de cima. Então, a porta foi fechada e passos soaram em suas cabeças à medida que andavam pelo local, como animais enjaulados.

Xcor voltou a se concentrar na fêmea, e, por um bom tempo, apenas olhou para ela.

– Procuro por você há séculos.

– Não estava sobre a Terra. Até agora.

Ela permaneceu inflexível ao confrontá-lo sozinho. Totalmente inflexível. E quando ele examinou seu rosto, pôde sentir uma mudança glacial nos campos gélidos de seu coração.

– Por quê? – ele disse asperamente. – Por quê... o matou?

A fêmea piscou lentamente como se não quisesse mostrar vulnerabilidade e precisasse de um momento para certificar-se de que não expressaria nada com relação a isso.

– Porque ele machucou meu irmão gêmeo. Ele... torturou meu irmão e, por isso, precisou morrer.

Bem, talvez houvesse algo verdadeiro naquela lenda, Xcor pensou.

De fato, assim como a maioria dos soldados, Xcor já havia ouvido falar muitas vezes sobre um boato de Bloodletter ter exigido que seu filho unigênito fosse fixado ao chão, tatuado... e, em seguida, castrado. A lenda dizia que os ferimentos foram parciais... havia rumores de que Vishous havia queimado suas amarras magicamente e, então, escapou pela noite antes de ser cortado por completo.

Xcor olhou as algemas que caíram dos pulsos da fêmea... queimadas. Ao erguer uma das mãos, olhou para a própria carne.

Que nunca havia brilhado.

– Disse-me que nasci de uma fêmea que ele havia visitado em busca de sangue. Disse-me... que ela não me quis por causa do meu... – tocou seu lábio mal formado, deixando a sentença incompleta. – Ele me pegou e... ensinou-me a lutar. A seu lado.

Xcor tinha uma vaga consciência de que sua voz estava rouca, mas não se importou. Sentiu como se estivesse olhando para um espelho e vendo o reflexo de si mesmo, um reflexo que não reconhecia.

– Disse-me que era seu filho... e me criou como seu filho. Depois de sua morte, assumi o lugar dele, como os filhos fazem.

A fêmea o avaliou e, em seguida, balançou a cabeça.

– Digo-lhe que ele mentiu. Olhe nos meus olhos. Veja que falo a verdade que deveria ter ouvido há muito, muito tempo – a voz dela diminuiu para um mero sussurro. – Conheço bem a traição de sangue. Conheço a dor que sente agora. Não é certo este fardo que carrega. Mas não se vingue baseado em uma ficção, eu lhe imploro. Pois serei forçada a matá-lo... e se não for eu, meu irmão irá caçá-lo com a Irmandade e fará com que rogue pela própria morte.

Xcor procurou dentro de si e viu algo que desprezava, mas não podia ignorar: não tinha memória alguma da vadia que o concebera, mas sabia muito bem a história de como ela o rechaçou na sala de parto por causa de sua feiura.

Queria ser reivindicado. E Bloodletter fez isso... a desfiguração física nunca foi importante para o macho. Importava-se apenas com as coisas que Xcor tinha em abundância: velocidade, agilidade, resistência, potência... e uma concentração letal.

Xcor sempre achou que era assim por ter puxado seu pai.

– Ele me deu um nome – ouviu-se dizendo. – Minha mãe me rejeitou. Mas, Bloodletter... Deu-me um nome.

– Sinto muito.

E sabe qual era a coisa mais estranha? Ele acreditava nela. Antes pronta para lutar até a morte, agora parecia estar triste.

Xcor afastou-se dela e andou pelo lugar. Se não era o filho de Bloodletter, então, quem era? Será que ainda deveria liderar seus machos? Será que deveriam segui-lo no campo de batalha outra vez?

– Olho para o futuro e não vejo... nada – murmurou.

– Também sei como é essa sensação.

Ele parou e encarou a fêmea. Ela havia cruzado os braços levemente sobre os seios e não olhava para ele, mas para a parede do outro lado. Em suas feições, via o mesmo vazio que sentia dentro do peito.

Erguendo os ombros, dirigiu-se até ela.

– Não tenho qualquer problema para resolver com você. Suas ações relacionadas a meu... – pausa – a Bloodletter... tiveram motivos válidos.

Na verdade, tinham sido guiados pela mesma lealdade ao sangue e pelo mesmo sentimento de vingança que o incitou a buscar por ela.

Como um guerreiro faria, ela curvou-se até a cintura, aceitando a mudança da situação e, com isso, o ar ficou mais leve entre eles.

– Estou livre para ir?

– Sim... mas ainda é dia. – Quando ela olhou em volta para os beliches e a cama como se estivesse imaginado os machos que a desejavam, ele interrompeu. – Nenhum mal lhe sucederá aqui. Sou o líder deles e...

Bem, havia sido o líder.

– Vamos passar o dia no andar de cima em favor de sua privacidade. Comida e bebida estão sobre a mesa logo ali.

Xcor fez aquelas modestas concessões de provisão e acomodação não por causa de questões ridículas de decoro que giravam em torno de uma Escolhida. Mas aquela fêmea era... algo que respeitava: se alguém era capaz de compreender a importância da vingança contra um insulto à família, esse alguém era ele. E Bloodletter tinha causado danos permanentes ao irmão dela.

– Ao cair da noite – disse ele –, vamos levá-la daqui com os olhos vendados, pois não pode saber onde estamos instalados. Mas será libertada ilesa.

Virando as costas para ela, foi até a única cama que não tinha um andar superior. Sentindo-se um tolo, ainda assim endireitou o cobertor áspero. Não havia travesseiro, então, inclinou-se e pegou algumas de suas camisas lavadas.

– Aqui é onde eu durmo... pode usá-la para seu descanso. E caso tema por sua segurança ou virtude, há uma arma em cada lado no chão. Mas não se preocupe. Chegará ao pôr do sol em segurança.

Ele não fez um voto formal colocando sua honra em jogo, pois, na verdade, já havia feito. E não olhou para trás quando aproximou-se das escadas.

– Qual é seu nome? – ela disse.

– Ainda não sabe, Escolhida?

– Não sei tudo.

– Pois é – colocou a mão sobre o corrimão áspero. – Nem eu. Bom dia, Escolhida.

Ao subir as escadas, sentiu como se tivesse envelhecido séculos desde que carregou o corpo quente e inanimado daquela fêmea até o subsolo.

Ao abrir a pesada porta de madeira, não fazia ideia do que encontraria ali. Após o anúncio de sua condição, seus homens poderiam muito bem decidir ignorá-lo...

Lá estavam todos, em semicírculo, Throe e Zypher assumiam cada ponta do grupo. As armas estavam empunhadas e seus rostos demonstravam algo fúnebre e sombrio.

Fechou a porta e recostou-se contra ela. Não era covarde para fugir deles ou do que havia acontecido lá embaixo e não via nenhum benefício em amenizar o que havia sido revelado com pausas ou palavras cuidadosas.

– A fêmea disse a verdade. Não tenho uma relação sanguínea com aquele que pensava ser meu pai. Então, o que têm a dizer?

Não disseram uma palavra. Não olharam um para o outro. E não houve qualquer hesitação.

Ajoelharam-se todos de uma vez, afundando-se sobre o assoalho e abaixando as cabeças.

Throe falou:

– Estamos sob seu comando.

Com a resposta, Xcor limpou a garganta. E fez isso outra vez. E mais uma vez. No Antigo Idioma, pronunciou:

– Nenhum líder jamais conheceu maior proteção e tamanha lealdade quanto a que se reúne aqui diante de mim.

Os olhos de Throe se ergueram.

– Não foi em memória de seu pai que servimos todos esses anos.

Houve um grande brado de concordância... que foi melhor do que qualquer voto dito em linguagem rebuscada. E, em seguida, as adagas foram enterradas sobre o piso de madeira diante dos pés de cada um deles, os punhos que as envolveram com firmeza pertenciam aos soldados que foram e continuavam a ser liderados por ele.

E teria deixado as coisas daquela maneira, mas seus planos em longo prazo exigiam uma revelação e posterior confirmação.

– Tenho um propósito maior do que lutar paralelamente à Irmandade – disse em voz baixa, assim, a fêmea no andar de baixo não poderia ouvir nada. – Minhas ambições são uma sentença de morte se forem descobertas por outras pessoas. Entendem o que estou dizendo?

– O Rei – alguém sussurrou.

– Sim – Xcor olhou para cada um daqueles olhos. – O Rei.

Nenhum deles desviou o olhar ou se levantou. Eram uma unidade sólida de músculos, força e determinação letal.

– Se isso muda alguma coisa para qualquer um de vocês – declarou –, deve ser dito agora e, em seguida, deve-se partir ao cair da noite e nunca mais voltar ou será condenado à morte.

Throe moveu-se ao baixar a cabeça. Mas isso era o mais longe que iria. Não se levantou para ir embora e nenhum outro fez isso também.

– Bom – Xcor disse.

– E quanto à fêmea? – Zypher disse com um sorriso sombrio.

Xcor balançou a cabeça.

– Absolutamente, não. Ela não merece punição.

As sobrancelhas do macho se ergueram.

– Tudo bem. Posso fazer só coisas boas com ela, então.

Oh, pelo amor de Deus, já estava farto do maldito Lhenihan.

– Não. Não deve tocá-la. Ela é uma Escolhida. – Isso chamou a atenção deles, mas não iria adiante com as revelações. Já tinha dito o suficiente. – E vamos dormir aqui em cima.

– Que diabos? – Zypher ficou em pé e os outros o acompanharam. – Se diz que ela não pode ser tocada, eu a deixarei em paz, assim como os outros. Por que...

– Porque é isso o que eu decreto.

Para reforçar a determinação, Xcor sentou-se ao pé da porta e apoiou as costas contra os painéis. Confiava em seus soldados no campo de batalha, mas havia uma bela e poderosa fêmea lá embaixo e eles eram filhos da mãe no cio e excitados, todos eles.

Teriam de passar por cima de Xcor para chegar até ela.

Afinal, era um bastardo, mas não totalmente desprovido de um código de conduta, e ela merecia a proteção de que provavelmente não necessitava, pela boa ação que havia feito a ele.

Matar Bloodletter?

Aquilo havia se revelado um favor a Xcor naquele momento, pois significava que não teria de matar o mentiroso filho da mãe.


CAPÍTULO 53

Manny estava atrás do volante do carro, segurava-o com força, olhos fixos na estrada a sua frente, quando fez uma curva fechada... e foi direto à descrição exata do cenário que Vishous havia lhe dito.

Finalmente. Após umas boas três horas dando voltas e voltas quarteirão após quarteirão para encontrar a maldita coisa.

Mas, sim, era o que estava procurando: à luz das dez horas da manhã que sangrava entre os edifícios, uma bagunça oleosa e escorregadia brilhava ao longo do pavimento, nas paredes de tijolos, na lixeira e naquelas janelas envoltas com cercas de arame.

Acionando a embreagem, colocou o carro em ponto morto e pisou no freio.

No instante em que abriu a porta, recuou.

– Mas que inferno...

O mau cheiro era indescritível. Provavelmente porque acertou em cheio seu nariz e bloqueou o cérebro. Horrível.

Mas reconheceu o aroma. O cara com o boné dos Sox exalava esse cheiro na noite em que Manny operou os vampiros.

Ao pegar o telefone, ligou para o número supersecreto de Vishous e pressionou a tecla send. A linha mal tocou uma vez antes que o irmão gêmeo de Payne atendesse.

– Achei – disse Manny. – É tudo como você me falou... cara, o cheiro. Certo. Sim. Entendi. Falo com você depois.

Quando desligou, parte dele consumia-se ao pensar na possibilidade de Payne estar envolvida no que era evidente ter sido um banho de sangue. Mas se conteve enquanto procurava ao redor por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse lhes dizer o que aconteceu...

– Manny?

– Caramba! – quando se virou, agarrou sua cruz... ou talvez fosse seu coração, para que a coisa não saísse pela boca. – Jane?

A forma fantasmagórica de sua ex-chefe de traumatologia solidificou-se diante de seus olhos.

– Oi.

Seu primeiro pensamento foi: meu Deus, o sol... o que demonstrava o quanto sua vida havia mudado.

– Espere! Não tem problemas com a luz do dia...?

– Estou bem – ela estendeu a mão e o acalmou. – Vim para ajudar... V. disse-me onde estava.

Segurou seu ombro por alguns instantes.

– Estou... muito feliz em vê-lo.

Jane deu-lhe um abraço rápido e firme.

– Vamos encontrá-la. Prometo.

Sim, mas em quais condições ela estará?

Trabalhando juntos, os dois vasculharam o beco, esquadrinhando as sombras e as partes iluminadas. Graças a Deus ainda era cedo e aquela era uma parte deserta da cidade, pois não estava no clima de lidar com a complicação de pessoas – especialmente a polícia – aparecendo por ali.

Na próxima meia hora, ele e Jane percorreram cada centímetro quadrado do beco, mas tudo o que acharam foram restos de drogas usadas, lixo e alguns preservativos que Manny não tinha a menor intenção de olhar mais de perto.

– Nada – murmurou. – Nada mesmo.

Certo. Não importava. Continuaria agindo, procurando, esperançoso...

Um ruído estridente chamou sua atenção e o levou à lixeira.

– Tem alguma coisa fazendo barulho por aqui – ele gritou enquanto se ajoelhava. Só que conhecendo a sorte que tinham, não seria nada além de um rato tomando café da manhã.

Jane aproximou-se assim que ele alcançou o latão.

– Acho... acho que é um telefone – ele resmungou quando estendeu-se e vasculhou com a ponta dos dedos, com a esperança de pegar... – Consegui.

Ao se inclinar, descobriu que, sim, era um celular tocando e a coisa vibrava, o que explicava o barulho. Infelizmente, seja lá quem estivesse telefonando, cairia no correio de voz, pois quando pressionou o botão send para atender viu que estava bloqueado.

– Cara, está coberto por uma tinta escura. – Limpou a mão na borda do contêiner de lixo... enquanto dizia: – E a coisa está protegida por senha.

– Precisamos levar para V. Ele consegue hackear qualquer coisa.

Manny levantou-se e olhou para ela.

– Não sei se tenho permissão de ir até lá. – Tentou entregar o telefone. – Aqui. Leve. Enquanto isso, tentarei encontrar outros lugares como este.

Porém, honestamente, parece que já tinha percorrido todo o centro.

– Não prefere saber o que acontece em primeira mão?

– Claro que sim, mas...

– E se V. descobrir alguma coisa, não seria melhor você sair outra vez com o equipamento certo?

– Bem, sim, mas...

– Então, nunca ouviu falar em fazer alguma besteira e desculpar-se depois por isso? – Quando ele ergueu uma sobrancelha, ela deu de ombros. – Foi assim que lidei com você no hospital durante anos.

Manny apertou a mão sobre o celular.

– Está falando sério?

– Vou levar-nos de volta ao complexo e, se houver algum problema, darei um jeito nisso. E sugiro parar em sua casa primeiro para pegar tudo o que for necessário para ficar hospedado por um tempo.

Ele balançou a cabeça lentamente.

– Se ela não voltar...

– Não. Não vamos pensar assim. – Os olhos de Jane eram mortais ao encará-lo. – Quando ela voltar para casa, não importa quanto tempo isso leve, você estará lá. V. disse que deixou seu trabalho... porque Payne contou para ele. Podemos falar disso depois...

– Não há nada a dizer. A diretoria do São Francisco simplesmente pediu que eu saísse.

Jane engoliu em seco.

– Oh, Deus... Manny...

Deus, não pôde acreditar no que saiu de sua boca:

– Não importa, Jane. Contanto que ela volte bem... é tudo o que importa para mim.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção ao carro.

– Então, por que ainda estamos conversando?

Ótima pergunta.

Os dois foram para o Porsche, instalaram-se e saíram com Jane ao volante.

Quando ela acelerou o carro em direção ao Commodore, Manny estava transformado por um propósito: tinha estragado tudo com sua mulher uma vez. Mas isso não ia acontecer de novo.

Jane estacionou em frente ao arranha-céu e Manny correu para o saguão, chamou o elevador e subiu até seu apartamento. Movendo-se como um raio, pegou o laptop, seu carregador de celular...

O cofre.

Lançou-se para o armário em seu quarto, colocou a combinação e destravou a pequena porta. Com mãos ágeis e uma mente determinada, tirou sua certidão de nascimento, sete mil dólares, dois relógios de ouro e seu passaporte. Pegando uma mala aleatoriamente, colocou tudo nela, junto com o computador e o carregador. Em seguida, pegou mais duas mochilas que já estavam transbordando de roupas e saiu correndo do apartamento.

Enquanto aguardava o elevador, percebeu que estava mudando sua vida. Para melhor. Se, no final, ficasse com Payne ou não, não voltaria atrás... e não se tratava apenas do endereço físico.

No momento em que deu as chaves para Jane, pela segunda vez, virou uma esquina em sua tempestade de neve metafórica: não fazia ideia do que estava à frente dele, mas não havia como voltar atrás e estava tranquilo com relação a isso.

Na rua, jogou suas coisas no porta-malas e no banco traseiro.

– Vamos lá.

Mais ou menos trinta e cinco minutos depois, Manny estava outra vez no terreno nebuloso da montanha dos vampiros.

Olhando para o celular quase em ruínas na palma da mão, rezou para que aquilo pudesse conectá-lo a Payne e fazê-los ficar juntos outra vez... dando a ele mais uma chance de conseguir o que havia jogado fora...

– Mas que... droga... – Mais à frente, emergindo de uma estranha névoa, uma tremenda quantidade de rocha assomava-se, tão grande quanto o Monte Rushmore*.

– Que... casa enorme.

Mausoléu era outra palavra para ela.

– Os Irmãos levam a segurança muito a sério. – Jane estacionou o carro em frente a um conjunto de escadas digno de uma catedral.

– Ou isso... – ele murmurou. – Ou os parentes de algum deles têm uma pedreira.

Saíram juntos, e antes de pegar as malas, Manny analisou a paisagem. O muro que protegia a propriedade a envolvia em todas as direções, erguendo-se a mais de seis metros do chão e havia câmeras por toda a parte externa, assim como cercas de arame farpado retorcido na parte superior. A mansão em si era enorme, expandia-se em todas as direções e exibia quatro andares. E por falar em fortaleza: todas as janelas estavam cobertas com folhas de metal. E aquelas portas duplas? Seria necessário um tanque de guerra para ultrapassá-las.

Havia carros no pátio, alguns dos quais, em outras circunstâncias, ele teria bastante inveja, e viu outra casa bem menor feita com a mesma pedra do castelo. A fonte central estava seca, mas poderia imaginar os sons tranquilos que produzia quando a água caía.

– Por aqui – Jane disse quando abriu o porta-malas e pegou uma de suas mochilas.

– Eu faço isso. – Pegou a que estava com ela, assim como outras duas. – Primeiro, as damas.

Jane ligou para seu macho logo na entrada, assim, Manny teve a clara impressão de que a gente de Payne não o mataria no momento. Mas quem poderia dizer com certeza?

Que bom que não se importava consigo naquele momento.

Na grandiosa entrada, ela tocou a campainha e o bloqueio foi liberado. Ao entrar com ela, viu-se em um vestíbulo sem janelas que o fez pensar em uma prisão... uma prisão muito elegante e, cara, cheia de painéis de madeira esculpidos e um aroma de limão no ar.

Não havia possibilidade de saírem dali a não ser que alguém permitisse.

Jane falou para a câmera:

– Somos nós. Estamos...

O segundo conjunto de portas foi aberto imediatamente e Manny ficou impressionado quando a entrada foi aberta completamente. O saguão colorido e brilhante do outro lado não era nada do que esperava: majestoso e decorado com as matizes de cores do arco-íris, era tudo o que a parte externa fortificada não era. E, bom Deus, parecia que cada tipo imaginável de mármore decorativo e pedras foram usados... e, caramba, havia muito cristal e objetos folheados a ouro.

Então, ele entrou e viu os afrescos no teto três andares acima... e uma escadaria que faria as de E o vento levou... parecerem uma escada portátil.

Quando as portas fecharam-se atrás dele, o irmão de Payne surgiu do que parecia ser uma sala de bilhar, com o cara do boné do Red Sox a seu lado. Quando o vampiro avançou, estava muito concentrado em colocar um cigarro entre as presas e ajeitar sua roupa de couro preto.

Ao pararem na frente de Manny, os dois o encararam... e teve de se perguntar se aquilo chegaria a um fim antes mesmo de começar... com ele servido como refeição.

Só que, em seguida, o vampiro estendeu uma das mãos.

Claro, o celular.

Manny largou as malas e tirou o aparelho do bolso do casaco.

– Aqui... este é...

O cara aceitou o que foi oferecido, mas não olhou para a coisa. Apenas trocou de mão e estendeu a direita outra vez.

O gesto era tão simples, mas significava algo tão profundo.

Manny agarrou a mão dele e nenhum deles disse nada. Não havia razão para isso, pois a mensagem estava clara: respeito oferecido e aceito de ambos os lados.

Quando soltaram as mãos, Manny disse:

– O telefone?

Para o vampiro, descobrir tudo sobre a coisa era jogo rápido.

– Deus... você é rápido – Manny murmurou.

– Não. Esse foi o aparelho que dei a ela. Estava ligando de hora em hora. O GPS foi retirado... caso contrário, eu teria lhe dado o endereço exato de onde o encontrou.

– Droga. – Manny esfregou o rosto. – Não havia mais nada ali. Jane e eu vasculhamos o beco... e dirigi pelo centro durante horas. E agora?

– Esperamos. É tudo o que podemos fazer enquanto a luz do dia estiver lá fora. Mas, assim que escurecer, a Irmandade sairá daqui com um sentimento de vingança. Vamos encontrá-la, não se preocupe...

– Vou também – disse. – Só para que fique bem claro.

Quando o irmão gêmeo de Payne começou a fazer um gesto com a mão, Manny interrompeu qualquer protesto de “seja razoável”.

– Desculpe. Pode ser sua irmã lá fora... mas ela é minha mulher. E isso significa que faço parte disso.

Com isso, o cara do boné de baseball tirou o acessório e alisou o cabelo.

– Mas que droga...

Manny congelou, o resto do que o cara disse não foi registrado.

Aquele rosto... aquele maldito rosto.

Aquele... maldito... rosto.

Manny enganou-se sobre onde havia visto o cara.

– O que foi? – o cara disse, olhando para si mesmo.

Manny tinha a vaga consciência de que o irmão de Payne franziu a testa e de que Jane olhava para ele preocupada. Mas seu foco era no outro homem. Examinou aqueles olhos cor de avelã, aquela boca e aquele queixo, tentando encontrar alguma coisa que não encaixasse, algo fora do lugar... algo que discordasse da lógica que ele sustentava.

A única coisa que parecia um pouco fora do lugar era o nariz... mas só porque tinha sido quebrado pelo menos uma vez.

A verdade estava nos ossos.

E a conexão não estava no hospital ou sequer na Catedral de São Patrício... pois, pensando melhor, tinha visto mesmo o homem, o macho... vampiro, que seja... na igreja antes.

– Que porcaria é essa? – Butch murmurou, olhando para Vishous.

Para explicar-se melhor, Manny inclinou-se e vasculhou as malas. Enquanto procurava pelo que havia trazido sem intenção, soube, sem dúvida, que encontraria. O destino havia alinhando os dominós com perfeição demais para que aquele momento não acontecesse.

E, sim, lá estava.

Quando Manny se endireitou, suas mãos tremiam tanto que o suporte da moldura da imagem bateu contra a parte traseira.

Já que sua voz havia sumido, tudo o que conseguiu fazer foi virar o vidro e mostrar aos três a fotografia em preto e branco.

Que era uma imagem vívida do macho chamado Butch.

– Esse é meu pai – Manny disse asperamente.

A expressão do cara passou de sim, tanto faz para um choque pálido e suas mãos começaram a tremer ao estender uma delas para pegar a antiga imagem com cuidado.

Não se incomodou em negar nada. Não poderia.

O irmão de Payne exalou uma nuvem de fumaça de aroma delicioso.

– Maldição.

Bom, aquilo resumia tudo muito bem.

Manny olhou para Jane e, em seguida, para o homem que poderia ser seu meio-irmão.

– Você o reconhece?

Quando o cara afirmou lentamente com a cabeça, Manny olhou para o irmão gêmeo de Payne.

– Os humanos e vampiros podem...

– Sim.

Ao encarar outra vez a face que não deveria ser tão familiar, pensou “Droga, como isso foi acontecer?”

– Então, você é...

– Um mestiço? – o cara disse. – Sim. Minha mãe era humana.

– Filho da mãe – Manny sussurrou.

Localizado em Keystone, Dakota do Sul, é nele que estão esculpidos os rostos de quatro presidentes norte-americanos: George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. (N.P.)


CAPÍTULO 54

Quando Butch pegou a imagem do homem que era inegavelmente idêntico a ele, pensou, de uma maneira bem estranha, nas placas de advertência das rodovias.

Aquelas onde se lia PISTA ESCORREGADIA... ou ÁREA COM DESMORONAMENTO... ou as placas temporárias de DEVAGAR, HOMENS TRABALHANDO encontradas antes de áreas em construção ou reforma. Pensou até mesmo naquelas com a silhueta de um cervo saltando ou com grandes setas pretas apontando para a esquerda ou para a direita.

Naquele momento, parado ali no saguão, teria agradecido muito alguma advertência prévia de que sua vida estaria prestes a sair dos trilhos.

Por outro lado, colisões eram colisões e não poderiam ser planejadas.

Erguendo os olhos da fotografia, olhou para os olhos do humano cirurgião. Eram de um castanho profundo, uma bela cor à moda antiga. Mas o formato deles... Deus, por que não viu a semelhança com os seus antes?

– Tem certeza? – ouviu-se dizendo. – Este é seu pai?

Só que sabia a resposta antes mesmo do cara assentir.

– Quem... Como... – Sim, que grande jornalista seria, hum? – O que...

Muito bem. Agora era só acrescentar um quando e um onde que poderia substituir um grande apresentador de notícias da TV.

No entanto, a questão era que depois de ter se acasalado com Marissa e passado pela transição, finalmente tinha encontrado paz com quem era e com o que fazia de sua vida. No mundo humano, por outro lado, foi um estranho para todos, andando ao lado deles, mas nunca interagindo de verdade com sua mãe, irmãs e irmãos.

E seu pai, claro.

Ou ao menos quem as pessoas diziam que era seu pai.

Acreditava que com aquele verdadeiro lar e sua companheira, tinha concluído a assimilação, alcançado uma reconciliação pacífica com tudo o que tinha sido tão doloroso.

E não é que aquela porcaria toda veio à tona outra vez?

O humano falou gravemente:

– Seu nome era Robert Bluff. Era cirurgião no hospital Columbia Press em Nova York quando minha mãe trabalhava lá como enfermeira...

– Minha mãe era enfermeira – a boca de Butch ficou seca. – Mas não nesse hospital.

– Ele atuou em vários lugares... até... até mesmo em Boston.

Houve um grande silêncio durante o qual Butch testou as águas frias e confusas de uma possível infidelidade de sua mãe.

– Todos aqui precisam de uma bebida, não? – disse V.

– Lag...

– Lagavulin...

Butch e o cirurgião ficaram em silêncio quando V. revirou os olhos.

– Por que isso não me surpreende?

Enquanto o Irmão dirigia-se ao bar na sala de bilhar, Manello disse:

– Eu nunca o conheci de verdade. Acho que o vi... uma vez? Para ser sincero, não consigo me lembrar.

V. atuou como uma comissária de bordo e voltou com a bebida.

Quando Butch tomou um bom gole do que havia no copo, Manello fez o mesmo e, em seguida, balançou a cabeça...

– Sabe? Nunca gostei desse até depois de...

– Do quê?

– Rapazes, vocês estão começando a me enlouquecer. Você costumava gostar do uísque Jack. Porém, ano passado... tudo mudou.

Butch assentiu mesmo não tendo acompanhado o comentário. Cara, simplesmente não conseguia parar de olhar para a fotografia e, depois de um tempo, foi estranho, mas aquilo tudo era um alívio.

A análise de seus antepassados havia provado que descendia de Wrath, mas nunca soube com certeza ou se importou em saber exatamente como. E lá estava. Na frente dele.

Caramba, era como se tivesse uma doença o tempo todo e alguém finalmente a nomeasse: você sofre da síndrome de Tenho Outro Pai. Ou seria Bastardonice?

Tudo aquilo fazia sentido. Sempre achou que seu pai o odiava e talvez esse fosse o motivo por trás de tudo. Apesar de ser quase impossível imaginar sua mãe piedosa e puritana ou mesmo flertando com alguém. Aquela noite contava a história de ao menos uma noite com outra pessoa.

Seu primeiro pensamento foi de que precisava encontrar sua mãe e pedir detalhes... bem, alguns detalhes.

Mas, como faria isso? Afastou-se da realidade há muito tempo por causa da demência e estava tão distante que mal o reconhecia... O que era a única razão pela qual ele não a visitava mais. E não poderia perguntar a seus irmãos e irmãs. Eles o apagaram de suas vidas quando desapareceu, mas o ponto principal é que deviam saber tanto quanto ele.

– Ele ainda está vivo? – Butch perguntou.

– Não tenho certeza. Acreditava que estava enterrado no Cemitério Bosque dos Pinheiros. Mas agora? Quem pode saber?

Depois de um momento de silêncio, V. disse:

– Posso descobrir. – Manny e Butch olharam para o Irmão. – É só dizer alguma coisa e vou encontrá-lo... estando no mundo vampiro ou no humano.

– Encontrar quem?

A voz profunda vinha do alto da escada e todos olharam para cima quando as palavras ecoaram por todo o saguão. Wrath estava parado no patamar do segundo andar com George a seu lado e o humor do Rei era fácil de adivinhar, mesmo com os olhos ocultos atrás dos óculos escuros: havia algo mortal em sua mente.

Porém, era difícil saber se era por causa do humano no saguão ou não, pois Deus era testemunha de que havia milhares de coisas com as quais o cara tinha de lidar naquele momento.

Vishous falou... o que foi bom. Butch havia perdido a voz e era evidente que Manello também.

– Parece que esse bom cirurgião pode ser um parente seu, meu senhor.

Quando Manello recuou, Butch pensou: Santo Deus.

Aquilo lançou um pouco mais de lenha ao fogo.

Manny esfregou a testa quando o enorme vampiro de longos cabelos negros desceu as escadas, um cachorro dourado parecia liderar o caminho. Pelo jeito o filho da mãe era o dono do lugar e, considerando a droga toda relacionada ao “meu senhor”, era realmente isso.

– Será que ouvi direito, V.? – o macho perguntou.

– Sim. Ouviu.

Eeeeeeeeee aquilo levantava outra questão... pois Manny se perguntava se estava com algum problema nos ouvidos também.

– Esse é nosso Rei – Vishous anunciou. – Wrath, filho de Wrath. Este é Manello. Doutor Manny Manello. Acho que os dois não foram apresentados formalmente antes.

– É o macho de Payne.

Não houve hesitação sobre isso. Nenhuma hesitação em sua resposta.

– Sim. Sou eu.

O rugido baixo que saiu de uma boca cruel era parte riso, parte maldição.

– E como acha que somos parentes?

V. limpou a garganta e respondeu:

– Há uma semelhança impressionante entre o pai de Manny e Butch. Quero dizer... droga, é como olhar a foto de meu amigo.

As sobrancelhas escuras desapareceram por trás dos óculos escuros. Então, a expressão aliviou.

– É desnecessário dizer, mas não posso fazer tal ligação.

Ah, então ele era cego. Isso explicava o cachorro.

– Podemos fazer uma regressão de ancestrais com ele – Vishous sugeriu.

– Sim – Butch disse. – Vamos fazer...

– Espere um minuto, isso não pode matá-lo? – Jane interveio.

– Espere – Manny fez um movimento de cautela com as mãos. – Esperem um maldito minuto. Regressão de quê?

Vishous exalou a fumaça.

– É um processo no qual entro em você e vejo o quanto de nosso sangue há em suas veias.

– Mas isso poderia me matar? – Droga, o fato de que Jane balançava tanto a cabeça não inspirava confiança alguma.

– É a única maneira de se ter certeza. Se você é um mestiço, não podemos ir ao laboratório e dar uma olhada em seu sangue. Mestiços são diferentes.

Manny olhou em volta, para todos eles: o Rei, Vishous, Jane... e o cara que poderia ser seu meio-irmão. Cristo, talvez fosse por isso que se sentia tão diferente com relação a Payne... Desde o segundo em que a viu, foi como se... uma parte dele tivesse despertado.

Talvez aquilo explicasse também a alta temperatura de seu sangue, e depois de uma vida inteira questionando-se sobre seu pai e suas raízes, pensou... poderia ter encontrado a verdade agora.

Só que quando olharam de volta para ele, lembrou-se de ir até o hospital na semana anterior pensando ser manhã, mas descobriu que era noite. E depois aquela coisa toda com Payne e a mudança em seu corpo veio-lhe à mente.

– Sabem de uma coisa? – disse. – Estou bem assim.

Jane assentiu como se concordasse com ele. Com isso, teve certeza de que estava no caminho certo.

Além disso, estavam se distraindo do verdadeiro problema.

– Payne voltará para casa de uma forma ou de outra – ele disse. – E não vou arriscar minha vida antes de vê-la outra vez... mesmo se isso significar a diferença entre pertencer ao mundo de vocês ou não. Sei quem é meu pai... e estou olhando para o reflexo dele na minha frente neste momento. Isso é tudo o que eu preciso saber... a não ser que Payne pense diferente.

Deus... sua mãe, pensou abruptamente... Será que ela sabia?

Quando Vishous cruzou os braços sobre o peito, Manny preparou-se para discutir.

– Gosto de você idiota – o cara disse em vez de contrariá-lo. – Gosto mesmo.

Se considerasse o que o desgraçado havia feito há não muito tempo, aquilo era surpreendente. Mas não se abalou.

– Certo, então, concordamos nisso. Se minha mulher quiser... eu faço. Mas, caso contrário, estou bem com quem eu sou.

– É justo – Wrath pronunciou.

Naquele momento, não houve nada além de silêncio. Porém, o que havia para ser dito? A realidade sobre onde Payne estava... ou não estava... pairava sobre todos.

Manny nunca se sentiu tão impotente em toda sua vida.

– Com licença – seu meio-irmão disse. – Preciso de outra bebida.

Quando Butch saiu e entrou na outra sala, Manny observou-o desaparecer pelo arco bem ornamentado.

– Sabe, serei o próximo com a bebida.

– Minha casa é sua casa – o Rei disse sombriamente. – O bar é por ali.

Lutando contra um estranho impulso de fazer uma reverência, Manny apenas assentiu.

– Obrigado, cara – Quando o Rei estendeu uma das mãos fechadas, ele o cumprimentou ao golpear os nós de seus dedos e acenou com a cabeça para Jane e seu marido.

A sala em que entrou era como a melhor sala de espera de grandes centros hípicos que já havia visto. Cara, tinham até uma máquina de pipoca.

– Mais Lag? – o cara murmurou do outro lado.

Manny virou-se e viu-se observando um superbar.

– Sim. Por favor.

Trouxe um copo até o cara e o entregou. Quando o som da bebida ecoou tão alto quanto um grito, vagou até um sistema de som que provavelmente poderia ser usado em um grande show a céu aberto.

Ao ligar o som, ouviu... um rap de gângster.

Mudando rápido as estações do rádio de alta definição, procurou por uma que tocasse metal. Quando Dead Memories, do Slipknot, começou a tocar, respirou fundo.

O anoitecer. Esperava apenas o anoitecer.

– Aqui – o tira disse, entregando a bebida. Com uma careta, acenou para um dos alto-falantes. – Você gosta dessa porcaria?

– Sim.

– Bem, não nos parecemos nisso.

O irmão gêmeo de Payne colocou a cabeça para dentro da sala.

– Que diabos é esse barulho? – Como se alguém estivesse falando em alguma língua estranha. Ou talvez tivesse colocado Justin Bieber para tocar.

Manny apenas balançou a cabeça.

– É música.

– Só se for para você.

Manny revirou os olhos e voltou para um lugar muito escuro e perigoso em sua mente. A realidade de que não podia fazer nada por sua mulher naquele momento o fez desejar machucar alguém. E o fato de que, aparentemente, havia um vampiro dentro dele era exatamente o tipo de revelação que não precisava ter em um dia como aquele.

Deus, sentia como se estivesse morto.

– Alguém quer jogar bilhar? – disse entorpecido.

– Claro que sim.

– Com certeza.

Jane entrou na sala e deu-lhe um rápido abraço.

– Pode contar comigo.

Parece que não era o único desesperado por uma distração.


CAPÍTULO 55

Quando Payne sentou-se em algo acolchoado com as mãos no colo, imaginou que estivesse em um carro, pois a sensação de uma sutil vibração era similar ao que sentiu quando viajou ao lado de Manuel em seu Porsche. Contudo, não conseguia confirmar isso visualmente, porque assim como o soldado de Bloodletter havia prometido, estava de olhos vendados. Porém, ao lado dela, sentia o cheiro do macho que liderava os outros. Como ele permanecia imóvel em seu lugar, outra pessoa estava dirigindo o veículo.

Nada havia acontecido a ela entre as horas seguintes ao confronto e aquele passeio de carro: passou o dia sentada na cama do líder, joelhos recolhidos contra o peito, as duas armas próximas a ela sobre o cobertor áspero. Contudo, ninguém a incomodou, então, depois de um tempo, parou de prestar atenção em cada ruído que vinha do andar de cima e relaxou um pouco.

Pensamentos sobre Manuel logo ocuparam a maior parte de sua atenção e começou a passar e repassar cenas do breve tempo quando estiveram juntos até seu coração doer de agonia. Porém, sem se dar conta, o líder desceu e perguntou se ela gostaria de algo para comer antes de partirem.

Não, ela não queria comer.

Depois disso, ele a vendou com um tecido branco e imaculado... tão limpo e adorável que Payne perguntou-se onde ele havia conseguido. Então, pegou seu cotovelo com firmeza e a guiou lentamente ao subir as escadas onde a havia carregado em direção contrária antes.

Foi difícil saber quanto tempo passaram no carro. Vinte minutos? Talvez meia hora?

– Aqui – o líder disse em dado momento.

A seu comando, quem quer que fosse, diminuiu a velocidade, parou em seguida e uma das portas foi destrancada. Quando o ar fresco e frio invadiu o interior do carro, seu cotovelo foi tomado mais uma vez e a equilibraram quando saiu. A porta fechou-se e houve um estrondo... como se um punho tivesse golpeado uma parte do veículo.

Os pneus lançaram terra sobre seu manto. E, então, ficou sozinha com o líder.

Apesar de estar em silêncio, pôde senti-lo movimentando-se atrás dela e o tecido sobre seus olhos foi solto. Quando caiu, ela ficou ofegante.

– Pensei que se fosse ser libertada, deveria ser diante de uma vista digna de seus olhos pálidos.

Toda a cidade de Caldwell foi revelada sob eles, as luzes cintilantes e o fluxo do tráfego foram um acontecimento glorioso para sua visão. Na verdade, estavam sobre os ombros de uma pequena montanha, com a cidade esparramando-se a seus pés às margens do rio.

– Isso é lindo – ela sussurrou, olhando para o soldado.

Quando se distanciou, ficou longe o bastante para se retirar, sua desfiguração ficou oculta nas sombras. Então, voltou-se para ela.

– Cuide-se bem, Escolhida.

– Você também... Ainda não sei seu nome.

– É verdade – ofereceu-lhe uma meia-reverência. – Boa noite.

Com isso, ele partiu, desmaterializando-se para longe dela.

Depois de um momento, voltou-se para a vista e perguntou-se onde poderia estar Manuel naquela cidade. Seria no emaranhado dos altos edifícios, passando pela ponte, seria... ali?

Sim, ali.

Erguendo uma das mãos, desenhou um círculo invisível em torno da construção alta e esguia de vidro e aço onde tinha certeza que Manny morava.

Quando seu peito doeu e ela ficou sem ar, permaneceu ali mais um pouco e, em seguida, dispersou-se a nordeste, em direção ao complexo da Irmandade. Não havia qualquer entusiasmo na viagem, apenas um sentimento de obrigação em informar seu irmão gêmeo de que estava viva e bem.

Ao assumir forma nos degraus de pedra da grande mansão, aproximou-se das portas duplas com um estranho temor. Sentia-se grata por estar de volta àquela casa que, de alguma forma, era seu lar, mas a ausência de seu macho a esvaziava de qualquer alegria que deveria sentir com os reencontros.

Depois de tocar a campainha, a primeira porta de entrada imediatamente se abriu e pôde se esquivar da noite fria.

O segundo conjunto de portas foi aberto ainda mais rápido pelo mordomo sorridente.

– Madame! – ele gritou.

Quando entrou no saguão que a encantou no momento em que o viu pela primeira vez dias atrás, teve uma leve impressão de que seu irmão saltou surpreso sob o arco da sala de bilhar.

Porém, tudo o que teve dele foi essa breve visão.

Algo forte atingiu Vishous com tanta intensidade que ele quase flutuou, sua mão soltou o copo que segurava e a bebida nele foi pulverizada no ar.

Manuel saiu correndo pelo saguão, o corpo surgia diante dela, a expressão em seu rosto era de descrença, terror e alívio ao mesmo tempo.

Só que não fazia sentido ele estar correndo em sua direção, não fazia sentido que ele estivesse ali na...

Tomou-a em seus braços antes que pudesse finalizar o pensamento e, oh céus, seu aroma era o mesmo, aquelas especiarias escuras que eram tão singulares, tão próprias de Manuel, inundavam seus sentidos. E, com isso, seus ombros mostraram-se tão largos quanto se lembrava, a cintura era estreita e seu abraço ainda era maravilhoso.

O forte corpo dele tremia enquanto a envolvia com força por um momento e, em seguida, ele recuou como se tivesse medo de machucá-la. Seus olhos estavam frenéticos.

– Você está bem? O que posso fazer por você? Precisa de um médico? Está machucada...? Estou fazendo muitas perguntas... Desculpe. Deus... o que aconteceu? Onde estava. Droga, tenho que parar...

Talvez aquelas não fossem as palavras floridas que toda fêmea gostaria de ouvir em um encontro romântico, mas, para ela, significavam tudo no mundo.

– Por que você está aqui? – ela sussurrou, colocando as mãos sobre o rosto dele.

– Porque eu amo você.

De muitas maneiras, aquilo não explicava nada... e disse-lhe tudo o que precisava saber.

De repente, colocou as mãos atrás das costas.

– Mas e quanto ao que fiz com seu corpo...?

– Não me importo. Vamos dar um jeito nisso... descobrir algo... mas eu estava errado sobre nós. Fui um maricas... um covarde, estava errado e sinto muito. Droga. – Ele balançou a cabeça. – Preciso parar de falar assim. Oh, Deus, seu manto...

Ela olhou para baixou e viu o sangue negro dos assassinos que matou, bem como a mancha vermelha que representava o seu.

– Estou inteira e bem – ela disse claramente. – E amo você...

Interrompendo-a, ele beijou-a na boca solenemente.

– Diga isso outra vez. Por favor.

– Amo você.

Quando ele gemeu e passou os braços ao redor dela, Payne sentiu em seu coração um grande fluxo de calor e gratidão e deixou as emoções carregá-la contra ele. E enquanto se abraçavam, olhou sobre o ombro de seu macho. Seu irmão estava em pé com sua shellan a seu lado.

Ao encontrar os olhos de seu irmão gêmeo, leu todas as perguntas e medos em seu olhar.

– Estou ferida – disse para seu macho e seu irmão.

– O que aconteceu? – Manuel perguntou contra seus cabelos. – Encontrei seu celular esmagado.

– Estava procurando por mim?

– Claro que sim – recuou. – Seu irmão me ligou de madrugada.

De repente, viu-se rodeada por pessoas, como se algum gongo tivesse soado e chamado todos os machos e fêmeas da casa até o saguão. Sem dúvida, a comoção de sua chegada os atraiu e estavam afastados por respeito. Ficou claro que sua chegada tranquilizou mais do que apenas duas mentes, e aquilo fez com que se sentisse parte daquela família.

– Estava às margens do rio – disse em voz alta para que todos pudessem ouvi-la – quando senti o cheiro do inimigo. Atraída em direção a eles, percorri os becos e encontrei dois redutores. – Sentiu Manuel enrijecer-se e viu que seu irmão fazia o mesmo. – Pareceu-me importante lutar...

Nesse ponto, ela hesitou. Só que o Rei assentiu com a cabeça. E uma mulher forte de cabelos curtos fez o mesmo... como se também lutasse na guerra e soubesse a necessidade e a satisfação que havia nisso. Porém, ficou claro que os Irmãos não se sentiram à vontade.

Ela continuou:

– Um grupo de machos aproximou-se atrás de mim... fortes, bem armados, na verdade, um esquadrão de soldados. O líder era muito alto, com olhos e cabelos escuros e... – ela colocou uma das mãos sobre a boca – tinha um defeito no lábio superior.

Nesse momento, maldições começaram a ser proferidas... e quando isso aconteceu, desejou ter utilizado mais as bacias de visão do Outro Lado antes de ter partido. Estava claro que o macho que descreveu não era um desconhecido para eles e não foi bem recebido durante a narrativa.

– Ele me aprisionou... – Não houve apenas um, mas dois rugidos ao dizer isso: vindos de seu irmão e de Manuel. E ao tranquilizar o macho que permanecia tão perto dela, olhou para seu irmão. – Houve um mal-entendido e ele achou que eu havia cometido um atentado contra sua linhagem. Ele acreditava ser o filho de Bloodletter... e testemunhou a noite em que levei a morte até seu pai. De fato, procurava por mim para vingar-se há séculos.

Nesse ponto, conteve-se, percebendo que tinha acabado de admitir o parricídio. Porém, ninguém pareceu incomodado... O que lhe disse com clareza não apenas sobre o caráter dos machos e fêmeas que ali estavam como também sobre o desgraçado que havia sido seu pai.

– Esclareci ao soldado que estava cometendo um engano. – Ela não mencionou o fato de que ele a golpeou de lado e ficou contente de que o hematoma em seu rosto havia desaparecido. De alguma forma, acreditava que ninguém precisava saber disso. – E ele acreditou em mim. Não me machucou... de fato, protegeu-me de seus machos, oferecendo-me sua cama...

Manuel exibiu os dentes como se tivesse presas... e aquilo a excitou.

– Sozinha, eu dormi sozinha. Manteve todos os subordinados no andar de cima. – Sentiu que acalmava Manuel outra vez... ao menos até perceber que estava totalmente excitado, como faria um macho cuja intenção seria marcar sua fêmea.

E aquilo era muito erótico.

– Ah... ele me vendou e levou-me até um local onde havia uma vista panorâmica da cidade. Então, deixou-me ir. Isso foi tudo.

Wrath falou:

– Ele a levou contra sua vontade.

– Ele acreditava ter uma causa. Pensou que eu havia matado seu pai. E assim que soube disso, dispôs-se a me libertar, mas era dia, então, eu não poderia ir a lugar algum. Teria ligado, mas meu telefone foi perdido e não parecia que ele tivesse algum disponível, também não vi nada. Na verdade, eles vivem à moda antiga, de maneira comunitária e modesta, em uma sala subterrânea iluminada por velas.

– Tem ideia de onde eles ficam? – perguntou seu irmão gêmeo.

– Não. Estava inconsciente quando... – Ao soar um rugido de alarme em muitas gargantas, ela balançou a cabeça. – Fui baleada por um redutor...

– Mas que droga...

– Você foi o quê?!

– Uma arma...

– Baleada com uma...

– ... ferida?!

Humm. Parece que aquilo não ajudou.

Quando os Irmãos começaram a falar todos ao mesmo tempo, Manuel pegou-a no colo e a manteve erguida, seu rosto era a máscara de uma fúria profunda.

– É isso. Já chega por enquanto. Vou fazer um exame em você. – Olhou para o irmão dela. – Onde posso levá-la?

– Subindo as escadas. Vire à direita. Três portas depois há um quarto de hóspedes. Vou pedir que entreguem comida e fale comigo se precisar de suprimentos médicos.

– Entendido.

Com isso, o macho de Payne chegou à escadaria com ela em seus braços.

Foi bom ele ter finalizado sua história: levando em conta o queixo de Manuel, ela não iria falar mais nada sobre seu sofrimento por algum tempo.

A menos que ela quisesse vê-lo totalmente furioso.

De fato, ao observá-lo ali, parecia que aquele soldado tinha algo com que se preocupar se um dia seus caminhos se cruzassem.

– Estou tão feliz por vê-lo – disse ela. – Você era tudo o que eu pensava quando estava...

Ele fechou brevemente os olhos como se estivesse com dor.

– Eles não a machucaram?

– Não. – E foi então que percebeu o quanto Manuel estava preocupado.

Colocando uma das mãos sobre seu rosto, ela disse.

– Ele não me tocou. Nenhum deles.

O estremecimento que percorreu o corpo que a carregava foi tão forte, que ele quase tropeçou. Mas seu macho recuperou-se logo... e continuou andando.

Quando Vishous assistiu o humano levar sua irmã ao longo da grande escadaria, percebeu que estava testemunhando o futuro desenrolar-se bem diante de seus olhos. O casal estava tentando fazer a coisa funcionar e aquele cirurgião com um gosto musical muito questionável faria parte da vida dela... e da vida de V... para sempre.

De repente, sua mente voltou doze meses, o botão de retroceder parou de ser pressionado quando chegou ao ponto da narrativa em que tinha ido ao escritório do cirurgião para apagar as memórias do cara sobre si mesmo durante o tempo que passou no São Francisco.

Irmão.

Havia ouvido a palavra irmão em sua cabeça.

Naquela época, não fazia a menor ideia do que aquela palavra significava... pois, ora, como poderia?

E, ainda assim, lá estava, a realidade mais uma vez fazia jus a suas visões. Porém, para ser mais exato, a palavra deveria ser cunhado.

Só que, nesse momento, olhou para Butch. Parecia que seu melhor amigo também estava olhando para cima em direção ao cara.

Droga, pensou que irmão encaixava-se muito bem. O que era bom. Manello era o tipo de cara com quem ninguém se incomodaria de ser aparentado.

Como se o Rei lesse sua mente, Wrath anunciou:

– O cirurgião pode ficar. O quanto quiser. E pode entrar em contato com qualquer família humana que tiver... se desejar. Como um parente meu, é bem-vindo em minha casa sem restrições.

Houve um burburinho de consentimento: como sempre, quando se tratava da Irmandade, segredos nunca mantinham-se guardados por muito tempo; então, todos já sabiam sobre a conexão Manello/Butch/Wrath. Inferno, todos olharam aquela fotografia. Especialmente V.

Contudo, V. havia feito um pouco mais do que isso. O nome “Robert Bluff” era apenas um escudo... óbvio. E o macho tinha de ser um mestiço, caso contrário, não haveria como trabalhar em qualquer hospital durante a luz do dia. A questão era se ele sabia e o quanto sabia sobre seu lado vampiro... e se ainda estava vivo.

Quando Jane colocou uma das mãos sobre o peito de Vishous, passou os braços ao redor dela com mais firmeza ainda. E, então, olhou para Wrath.

– Xcor, não?

– Sim – o Rei disse. – O sinal é evidente. E essa não foi a última vez que ouviremos falar dele. É só o começo.

Com certeza, V. pensou. A chegada do bando de bastardos não era uma boa notícia para ninguém... especialmente para Wrath.

– Cavalheiros – o Rei disse em voz alta – e damas, a Primeira Refeição está esfriando.

Essa foi a deixa para que todos voltassem para a sala de jantar e realmente comessem o que havia sido ignorado até agora.

Com Payne em segurança e em casa, os apetites estavam livres para andar à solta outra vez... Porém, Deus era testemunha de que se esforçaria para não pensar sobre o que o cirurgião e sua irmã estavam prestes a fazer.

Quando V. gemeu, Jane apertou o braço em volta da cintura dele.

– Está tudo bem?

Olhou para sua shellan.

– Acho que minha irmã não tem idade suficiente para fazer sexo.

– V., ela tem a mesma idade que você.

Ele franziu a testa por um momento. Ela tinha? Ou será que ele havia nascido primeiro?

Sim, só havia um lugar aonde ir para se obter a resposta.

Cara, sequer pensou em sua mãe durante tudo isso. E agora que a ideia lhe sobreveio... não tinha qualquer desejo ou interesse de ir até lá e anunciar que Payne estava ótima, dane-se aquilo tudo.

Não. A Virgem Escriba desejava ser atualizada sobre o que suas “crianças” estavam fazendo? Poderia visualizar isso naqueles lixos que eram as bacias de visão que ela gostava tanto.

Beijou sua shellan.

– Não ligo para o que o calendário diz ou qual é a ordem de nascimento. É minha irmãzinha e nunca ficará velha o suficiente para... “oh, sim”.

Jane riu e reposicionou-se debaixo do braço dele.

– Você é um macho muito doce.

– Imagina.

– É sim.

Levando-a para sala de jantar e até a mesa, ele puxou a cadeira para ela como um cavalheiro e sentou-se a sua esquerda, assim, Jane ficou ao lado da mão da adaga.

Quando as conversas se espalharam no ar, as pessoas encheram seus pratos e sua Jane riu de algo que Rhage havia dito; Vishous olhou para frente e viu Butch e Marissa sorrindo um para o outro, de mãos dadas.

Quer saber?, ele pensou... a vida estava boa demais naquele momento.

Estava mesmo.


CAPÍTULO 56

No andar de cima, Manny chutou a porta atrás dele e de sua mulher e, então, deitou-a sobre uma cama do tamanho de um campo de futebol.

Não havia razão para trancar a porta. Apenas um idiota os incomodaria.

O brilho das janelas agora abertas oferecia luz suficiente para enxergar e, cara, adorou o que estava diante de seus olhos: sua mulher, sã e salva, deitada em... bem, certo, aquela não era a cama deles, mas ele daria um jeito nisso antes de amanhecer.

Quando sentou-se ao lado dela, tentou esconder discretamente a grande ereção que sentia desde que a viu entrar por aquela porta. E apesar de terem muitas coisas para conversar, tudo o que conseguia fazer era olhar para ela. Até o médico nele vir à tona.

– Está ferida?

Suas mãos adoráveis desceram ao longo do manto e quanto mais a barra da vestimenta subia, mais as pálpebras de Payne se fechavam.

– Acho que verá que já estou curada. Foi apenas um arranhão... bem aqui.

Ele engoliu em seco. Caramba... sim, ela estava bem. A pele de sua coxa estava tão macia quanto seda.

– Porém, talvez queira me examinar mais de perto – ela disse arrastando as palavras.

Os lábios dele se abriram quando os pulmões ficaram tensos.

– Tem certeza de que está bem... e que eles... não a machucaram?

Ele nunca superaria se acaso aquilo acontecesse.

Payne sentou-se e encontrou os olhos dele.

– Aquilo que sempre o pertenceu continua intacto para que o possua.

Fechou os olhos brevemente. Não queria que ela tivesse a impressão errada.

– Não me importaria se você não fosse mais... quero dizer, não é uma questão de propriedade... – Céus, parecia que não conseguia conversar aquela noite. – Só não suportaria se tivessem machucado você.

O sorriso dela fez com que se sentisse grato pelo colchão onde estava sentado. Pois se estivesse em pé, ela o teria nocauteado.

– Sinto muito por ontem à noite – disse ele. – Cometi um erro...

Payne colocou a mão sobre a boca dele.

– Estamos aqui agora. Isso é tudo o que importa.

– Tenho algo que preciso lhe dizer.

– Vai me deixar?

– Nunca.

– Ótimo. Então, vamos ficar juntos primeiro e depois conversamos. – Inclinando-se ainda mais, substituiu os dedos pela boca, beijando-o longa e profundamente. – Hummm... sim, muito melhor que falar, eu acho.

– Tem certeza que deseja... – isso foi o mais longe que Manny chegou antes da língua dela roubar seus pensamentos.

Gemendo, ergueu-se sobre a cama e colocou-se sobre ela. Em seguida, ao encontrar seus olhos, aproximou lentamente seu corpo sobre o dela... o último contato foi o da ereção sendo colocada entre suas pernas.

– Não vai ter volta se eu beijá-la agora. – Droga, a voz dele era tão gutural, que parecia praticamente um rosnado no ouvido dela. Mas estava sendo sincero em cada palavra. Havia alguma outra força que o impulsionava... não era apenas o sexo, apesar da mecânica do ato estar envolvida. Ao tomar sua virgindade, ele a marcava de uma maneira que não entendia, mas também não questionava.

– Eu o desejo – ela disse. – Esperei durante séculos por aquilo que só você pode me dar.

Minha, ele pensou.

Antes de beijá-la outra vez, virou-se para o lado e liberou seus cabelos da trança. Espalhou as ondas escuras por cima da colcha de cetim e passou os dedos ao longo do comprimento.

Então, posicionou os quadris sobre o núcleo de Payne, empurrava, recuava e repetia o movimento... enquanto deslizava uma das mãos em seu seio, pressionando o tecido frágil do manto.

Sinceramente, ficou chocado com o que ele desejava fazer.

– Desejo ficar nua diante de você – ela ordenou. – Faça isso, Manuel.

O maldito manto não teve chance alguma. Erguendo-se, agarrou-o pelas lapelas e rasgou a parte da frente, ao dividir o material com precisão, desnudou seus seios expondo-os a seus olhos quentes e ao ar fresco. Reagindo ao movimento, ela arqueou e gemeu... e foi isso: ele se lançou sobre os mamilos enrijecidos com a boca e tocou seu núcleo com uma das mãos. Seu corpo estava sobre ela completamente, levando-a a um orgasmo ao chupá-la e acariciá-la com cuidado e quando uma liberação rápida e desesperada tomou Payne, ele abafou o grito dela.

Manny queria dar mais... e tinha toda a intenção de fazer isso... mas seu corpo não ia esperar. Suas mãos tatearam confusas as calças, então, liberou o cinto e desceu o zíper para liberar seu pênis.

Estava pronta para ele, escorregadia e aberta... e ansiosa, considerando a maneira como suas pernas pressionavam seu corpo.

– Irei devagar – ele disse contra sua boca.

– Não tenho medo da dor. Não com você.

Bom, então, talvez aquilo funcionasse fisicamente da mesma maneira que acontecia com as mulheres humanas. O que significava que a primeira vez não seria fácil para sua mulher.

– Shhh – ela sussurrou. – Não se preocupe. Possua-me.

Estendendo a mão, ele se posicionou e... oh, cara... quase gozou. Ela estava quente, lubrificada e...

Ela se moveu tão rápido que Manny não conseguiria parar mesmo se quisesse. As mãos dela estenderam-se para baixo e agarraram o traseiro dele, as unhas cravaram com força sobre a pele e, então...

Payne impulsionou os quadris e, ao mesmo tempo, puxou-o para baixo e o fez percorrer o caminho até o fim, penetrando total e irrevogavelmente. Quando ele resmungou, ela ficou rígida e silvou por causa do golpe... o que era muito injusto, pois, cara, estava maravilhosa. Mas ele não ia se mover... não até que ela se recuperasse da invasão.

Então, teve uma ideia.

Quando serpenteou uma das mãos ao redor de sua nuca, colocou os lábios perto da garganta de Payne.

– Possua-me.

O som que ela produziu fez com que gozasse dentro dela... era simplesmente muito gostoso para segurar. E quando seu pênis teve um espasmo, as presas de Payne penetraram profundamente sua veia.

O sexo tornou-se selvagem. Ela se movia contra ele, seu sexo apertado o pressionava e liberou uma grande quantidade do líquido leitoso quando gozou outra vez... e, então, começou a golpear os quadris com força. O sangue sorvido e o ritmo alucinado levaram os dois a um violento movimento de corpos e ele sabia como se sentiriam pela manhã depois disso: não havia nada de civilizado, eram um homem e uma mulher destilando seus instintos mais primitivos.

E Manny sentiu que foi a melhor coisa que já havia feito na vida.


CAPÍTULO 57

Thomas DelVecchio sabia exatamente onde seu assassino iria em seguida.

Não havia dúvida em sua mente. Quando o detetive de la Cruz voltou à delegacia para trabalhar com os outros garotos sobre teorias e induções – o que era bem inteligente – Veck sabia onde ir.

E quando aproximou-se do estacionamento do Motel Monroe com a moto bem devagar e as luzes dos faróis apagadas, pensou que talvez fosse uma boa ideia ligar para de la Cruz e dizer ao cara onde estava.

Porém, acabou deixando o telefone onde estava em seu bolso.

Parando a moto perto das árvores à direita do estacionamento, baixou o descanso, desceu e pendurou o capacete no guidão. Sua arma estava no coldre sob a axila e disse a si mesmo que permaneceria ali se alguém aparecesse.

Quase acreditou nessa mentira também.

Porém, a terrível verdade era que estava sendo animado por algo há muito, muito tempo adormecido. De la Cruz estava certo em ser cauteloso sobre tê-lo como parceiro... e correto ao perguntar onde os pecados do pai terminavam e os do filho começavam.

Pois Veck era um pecador. E juntou-se à força policial para tentar drenar aquilo de si; mas, provavelmente teria sido melhor ser exorcizado, porque às vezes sentia como se houvesse um demônio dentro dele, sentia mesmo.

Ainda assim, não estava ali para matar alguém. Estava ali para pegar um assassino sob custódia antes que o desgraçado voltasse ao trabalho.

Honesto.

Quando Veck aproximou-se do motel, deteve-se devido à escuridão das árvores e focou-se no quarto onde a última garota havia sido encontrada. Tudo estava da mesma maneira que o Departamento de Polícia de Caldwell havia deixado: ainda havia uma fita amarela formando um triângulo ao redor da porta e parte da calçada em frente a ela... Também havia um selo no batente, o que teoricamente só poderia ser rompido em uma missão oficial. Não havia luzes no interior do quarto ou sua área externa era iluminada. Ninguém por perto.

Ao posicionar-se atrás de um tronco grosso de uma árvore viçosa, usou as mãos com as luvas pretas para baixar o gorro preto, aproximando-o da gola alta da blusa.

Era tão bom ficar em silêncio que quase desaparecia. Também era muito bom em canalizar sua energia para atingir uma calma penetrante que conservava seus recursos para deixá-lo hiperalerta.

Sua vítima ia aparecer; aquele assassino louco tinha perdido todos os troféus... sua coleção estava agora nas mãos das autoridades e o pessoal da perícia criminal estava se esforçando para relacioná-lo aos outros assassinatos não solucionados que ocorreram por todo o país. Mas o safado doentio não voltaria ao local na esperança de obter alguma coisa ou tudo de volta. O retorno seria para revisitar e lamentar a perda do que havia se esforçado tanto para adquirir.

Seria um ato imprudente? Com certeza, mas fazia parte de um ciclo voraz. O assassino não devia estar pensando com clareza e provavelmente estava desesperado devido a suas perdas. E Veck esperaria com calma durante as próximas noites até que o sujeito aparecesse.

Enquanto o tempo passava e ele esperava e esperava e esperava um pouco mais... mostrava-se tão paciente quanto qualquer bom caçador. Porém, deu-se conta de que poderia ser desastroso ficar ali sozinho, com uma faca guardada na parte de trás da cintura e aquela maldita arma...

O estalar de um galho lançou seus olhos para a direita, mas não sua cabeça. Não se moveu ou mudou a respiração ou sequer se contraiu.

E lá estava: um homem surpreendentemente magro percorria seu caminho com cautela ao longo das armações de arbustos macios da floresta. A expressão no rosto do homem era quase de devoção ao se aproximar da lateral do motel, mas aquele não era o único elemento que o identificava como o assassino. Suas roupas estavam cobertas de sangue seco e seus sapatos também. Mancava, como se tivesse uma lesão na perna e seu rosto exibia arranhões... de unhas.

Peguei você, Veck pensou.

E agora que encarava o assassino... uma das mãos deslizou até os quadris e foi até a parte de trás. Em direção à faca.

Mesmo quando disse a si mesmo para deixar a arma onde estava e recorrer aos punhos, não conseguiu mudar sua atitude. Sempre existiram duas metades dele, duas pessoas em uma só pele e, em momentos como aquele, tinha a impressão de que observava a si mesmo enquanto agia, como se fosse o passageiro de um táxi e independentemente do destino que tivesse solicitado, não chegaria lá como resultado de seus esforços.

Começou a andar em direção ao homem, seguindo-o em silêncio; como uma sombra, encurtou a distância até estar a menos de dois metros do desgraçado. A faca havia se amoldado à palma da mão de Veck e ele realmente não a queria ali, mas era tarde demais para guardá-la. Tarde demais para desviar-se daquele caminho. Tarde demais para ouvir a voz que lhe dizia que aquilo era um crime que o levaria para a cadeia. O outro lado dele havia assumido o controle e estava perdido, prestes a matar...

Um terceiro homem surgiu do nada.

Um cara gigantesco, vestido com roupas de couro, saltou na frente do assassino e bloqueou seu caminho. E quando David Kroner recuou assustado, um silvo percorreu o ar como se algo fervilhasse.

Deus, aquilo não soava humano. E... aquilo eram... presas?

Mas que inferno...?

O ataque foi tão brutal que com apenas o primeiro golpe no pescoço do assassino em série, a cabeça do cara quase foi separada de seu corpo. E o massacre continuou, voou tanto sangue e tão longe que salpicou as pesadas calças pretas, a blusa de gola alta e o gorro de Veck.

Só que não havia nenhuma faca ou punhal envolvido.

Dentes. O filho da mãe rasgava o homem com os dentes.

Veck tentou recuar confuso, mas bateu em uma árvore e o impacto o desestabilizou muuuito mais do que o necessário. E deveria ter saído correndo em direção à moto ou simplesmente ter fugido, mas ficou paralisado pela violência... e a convicção de que tudo aquilo que visualizava não era humano.

Quando o ataque acabou, o monstro deixou cair os restos massacrados do assassino em série sobre o chão... e, em seguida, olhou para Veck.

– Santo... Deus... – Veck sussurrou.

O rosto tinha uma estrutura óssea bem humana, mas as presas não condiziam com isso, nem o tamanho, nem aquele olhar vingativo. Deus, havia sangue pingando de sua boca.

– Olhe nos meus olhos – a voz com um forte sotaque pronunciou.

Um som de algo borbulhando ergueu-se do que havia restado do assassino em série. Mas Veck não olhou. Estava paralisado por um conjunto impressionante de olhos... muito azuis... e brilhantes...

– Droga... – engasgou quando uma súbita dor de cabeça atingiu tudo o que via ou ouvia. Caindo para o lado, assumiu uma posição fetal por causa da dor e permaneceu assim.

Piscou um pouco.

Por que estava no chão?

Piscou.

Cheirava a sangue. Mas por quê?

Piscou mais um pouco.

Com um gemido, levantou a cabeça e...

– Droga!

Erguendo-se rapidamente em choque, olhou para a bagunça sangrenta que estava a sua frente.

– Oh... droga – amaldiçoou. Tinha feito aquilo. Finalmente matou alguém.

Só que, em seguida, olhou para a faca em sua mão. Não havia sangue. Nem na lâmina. Nem em suas mãos. E apenas alguns respingos em suas roupas.

Olhando em volta, não fazia ideia do que tinha acontecido. Lembrava-se de ter dirigido até lá... estacionado a moto... e perseguido o homem que agora estava morto no chão.

Se fosse bastante sincero consigo mesmo, assumiria que teve a intenção de matar, o tempo todo; mas, considerando as evidências físicas? Não tinha sido ele.

O problema era que um buraco negro sem qualquer informação era tudo o que possuía.

Um gemido do assassino em série fez com que voltasse a cabeça para a direita. O homem estendia-se para ele. Pedia uma ajuda muda enquanto sangrava por toda parte. Como ainda estava vivo?

Com as mãos trêmulas, Veck pegou o celular e discou para a emergência.

– Sim, detetive DelVecchio, Departamento de Homicídios da Polícia de Caldwell. Preciso de uma ambulância no Motel Monroe.

Depois que o relato foi registrado e os médicos estavam a caminho, arrancou o paletó, enrolou-o em formato de uma bola e ajoelhou-se ao lado do homem. Pressionando o casaco sobre as feridas na garganta do cara, rezou para que o desgraçado sobrevivesse. Em seguida, teve de se perguntar se isso era bom ou ruim.

– Eu não matei você – disse. – Matei?

Oh, Deus... o que diabos havia acontecido ali?


CAPÍTULO 58

– Ele veio vê-lo.

Do ponto de vista de Blaylock deitado na cama, Saxton, filho de Tyme, exibia seu melhor ângulo. E não, não era seu traseiro. O macho barbeava-se em frente ao espelho do banheiro e seu perfil perfeito era banhado pela luz suave vinda de cima.

Deus, era um macho muito bonito.

De muitas maneiras, o namorado que tinha era tudo o que poderia desejar.

– Quem? – Blay disse suavemente.

Os olhos que se deslocaram em direção aos dele tinham um ar de “ah, por favor”.

– Ah – Para evitar qualquer conversa, Blay olhou para baixo em direção ao edredom e puxou-o sobre seu peito descoberto. Estava nu sob o peso do cetim, assim como Saxton também estivera até ter colocado um roupão.

– Queria saber se você estava bem – Sax continuou.

Já que “Ah” já havia sido utilizado como resposta, Blay soltou um...

– Mesmo?

– Estava lá fora na varanda. Não quis entrar e nos incomodar.

Engraçado, enquanto permanecia desmaiado após seu abdômen ter sido costurado, perguntou-se vagamente o que Saxton fazia lá fora. Mas estava com tanta dor no momento, que era difícil pensar demais sobre qualquer coisa.

Agora, porém, sentiu um arrepio terrível percorrer seu corpo.

Graças à Virgem Escriba, já havia se passado um bom tempo desde que sentira aquele formigamento tão familiar pela última vez; porém, o lapso de tempo não havia diminuído a sensação, e o rubor que se seguiu, após se perguntar sobre o que tinham conversado, não era algo que pudesse controlar. Por um lado aquilo era um desrespeito para com Saxton; por outro, era inútil.

O bom era que tinha munição suficiente para manter-se calado: tudo o que deveria fazer era pensar em Qhuinn voltando para casa há mais ou menos uma semana, cabelos desgrenhados, com o cheiro de perfume de outro homem exalando dele e aquela expressão arrogante de satisfação que ostentava no momento.

A ideia de que Blay havia se jogado para o macho não apenas uma, mas duas vezes... e ser repelido? Sequer conseguia suportar pensar naquilo.

– Não quer saber o que ele disse? – Saxton murmurou enquanto deslizava uma lâmina afiada sobre a garganta, evitando com habilidade a marca da mordida que Blay havia lhe dado há meia hora.

Blay fechou os olhos e perguntou-se se conseguiria afastar-se da realidade de que Qhuinn havia transado com tudo e com todos menos com ele.

– Não? – Saxton perguntou.

Quando a cama se moveu, Blay abriu os olhos. Saxton tinha se sentado sobre a borda do colchão, o macho enxugava seu queixo e bochechas com uma toalha cor de sangue.

– Não? – repetiu.

– Posso perguntar uma coisa? – Blay disse. – E essa não é uma boa hora para lançar seu charme sarcástico.

Instantaneamente, o rosto deslumbrante de Saxton ficou muito sério.

– Pergunte.

Blay acariciou o edredom sobre seu peito. Algumas vezes.

– Eu... lhe dou prazer?

– Na cama? – Saxton perguntou.

Os lábios de Blay estreitaram-se quando ele assentiu e pensou que talvez pudesse ter explicado um pouco melhor, mas, quando as palavras saíram, sua boca ficou seca.

– Por que diabos me perguntou isso? – Saxton disse suavemente.

Bem, porque devia ter algo de errado com ele.

Blay balançou a cabeça.

– Não sei.

Saxton dobrou a toalha e colocou-a de lado. Em seguida, estendeu um dos braços sobre os quadris de Blay e inclinou-se até ficarem face a face.

– Sim – Com isso, colocou a boca sobre a garganta de Blay e deu um leve chupão. – Sempre.

Blay colocou uma das mãos sobre a nuca do macho e encontrou o cabelo macio e ondulado na base do pescoço.

– Graças a Deus.

Nunca experimentou nada parecido com a familiaridade daquele corpo debruçado sobre o seu antes e sentiu que era certo. Parecia bom. Conhecia cada curva e saliência do peito, dos quadris e das coxas de Saxton. Sabia quais eram os pontos que deveriam ser pressionados e mordidos, sabia exatamente como segurar, deslizar e arquear-se para que Saxton ficasse excitado.

Então, não, provavelmente não deveria ter perguntado.

Mas Qhuinn... Alguma coisa naquele macho o desnudava e o feria. E mesmo com todos os curativos que havia aprendido a fazer por fora, a ferida permanecia tão ruim e profunda quanto no momento em que havia sido feita... quando ficou óbvio que o único homem a quem desejava acima de todos os outros, nunca, jamais ficaria com ele.

Saxton recuou.

– Qhuinn não consegue lidar com o que sente por você.

Blay soltou uma risada áspera.

– Não vamos falar dele.

– Por que não? – Saxton estendeu a mão e deslizou o polegar sobre o lábio inferior de Blay. – Ele está aqui conosco, quer façamos alguma coisa ou não.

Blay pensou em mentir, mas desistiu de lutar.

– Sinto muito por isso.

– Está tudo bem... sei no que me envolvi. – A mão livre de Saxton serpentou sob o edredom. – E sei o que quero.

Blay gemeu quando a palma daquela mão acariciou o que imediatamente tornou-se uma forte ereção. E quando seus quadris ergueram-se e ele abriu as pernas para Saxton, encontrou os olhos de seu namorado e chupou aquele polegar para dentro de sua boca.

Aquilo era muito melhor do que subir na montanha-russa de Qhuinn... Conhecia e gostava daquilo. Estava seguro. Não seria ferido. E havia encontrado uma conexão profunda e sexual ali.

O olhar de Saxton era quente e sério quando soltou o que havia encontrado, tirou as cobertas do corpo de Blay e soltou o nó do laço do roupão.

Aquilo era muito bom, Blay pensou. Aquilo era o certo...

Quando a boca de seu namorado encontrou sua clavícula e desviou-se mais para baixo, Blay fechou os olhos... só que quando começou a se perder nas sensações, o que viu não foi Saxton.

– Espere, pare... – sentou-se e levou o outro macho a fazer o mesmo.

– Está tudo bem – Saxton disse em voz baixa. – Sei onde estamos.

O coração de Blay partiu-se um pouco. Mas Saxton apenas balançou a cabeça e colocou os lábios de volta sobre o peito de Blay.

Nunca falaram de amor... a aquilo fez com que percebesse que nunca falariam, pois Saxton deixou as coisas bem claras: Blay ainda estava apaixonado por Qhuinn... e provavelmente sempre estaria.

– Por quê? – disse a seu namorado.

– Porque o desejo pelo tempo que puder tê-lo.

– Não vou a lugar algum.

Saxton apenas balançou a cabeça contra o abdômen contraído que mordiscava.

– Pare de pensar, Blaylock. E comece a sentir.

Quando aquela boca talentosa começou a descer sobre seu corpo, Blay sibilou uma respiração e decidiu seguir o conselho. Pois era a única maneira de sobreviver.

Alguma coisa lhe dizia que era apenas uma questão de tempo antes de Qhuinn aparecer e anunciar que ele e Layla se acasalariam.

Não sabia muito bem como, mas sabia. Os dois encontravam-se há semanas e a Escolhida esteve lá outra vez no dia anterior... percebeu seu aroma e sentiu o sangue dela no quarto ao lado, e embora aquela convicção fosse apenas um exercício mental para deprimi-lo ainda mais, sentia que era muito mais do que isso. Era como se a névoa que normalmente encobria os dias, meses e anos vindouros tivesse se tornado muito fina e as sombras do destino estivessem se mostrando para ele.

Era apenas uma questão de tempo.

Deus, aquilo iria matá-lo.

– Estou feliz por estar aqui – gemeu.

– Eu também – disse seu namorado em torno de sua ereção. – Com certeza, eu também.


CAPÍTULO 59

Na noite seguinte, Payne rodeou a mansão da Irmandade, passando da sala de jantar, ao longo do saguão, e indo até a sala de bilhar, voltando pelo mesmo caminho outra vez. E outra vez. E outra vez.

Seu macho havia deixado a casa no meio da tarde para “cuidar de algumas coisas”, e embora tivesse se recusado a informá-la o que eram essas coisas, ela gostou muito do sorriso maroto em seu rosto enquanto a detinha na cama que haviam usado tão bem durante a noite... e, então, ele partiu.

Não conseguiu dormir depois disso. Nem um pouco. Estava feliz demais, por muitos motivos. E surpresa também.

Parando em frente a uma das portas francesas que se abria para o pátio, pensou na fotografia que Manuel havia lhe mostrado. Era tão óbvia a relação de sangue entre ele, Butch e o Rei. Mas nem Manny nem ela estavam interessados em arriscar uma regressão de linhagem. Não, ela concordava plenamente com ele sobre isso. Tinham um ao outro e levando em conta tudo o que superaram, não havia razão para arriscar a possibilidade de um resultado ruim.

Além disso, a informação não mudaria nada: o Rei abriu a casa para que seu macho transitasse livremente sem uma declaração formal de afinidade sanguínea e foi permitido a Manuel ter contato com sua família humana. Além disso, foi decidido que trabalharia ali, com a doutora Jane, e também com Havers. Afinal, a raça precisava de bons médicos e Manuel era um superlativo disso.

Quanto a ela? Sairia para lutar. Nem Manuel nem seu irmão estavam exatamente animados com o perigo que ela iria enfrentar, mas não a deteriam. De fato, depois de ter conversado longamente com Manuel, ele pareceu aceitar que aquilo fazia parte de quem era. Sua única ressalva foi de que teria de levar as melhores armas possíveis... e seu irmão insistiu que asseguraria isso.

Céus, os dois pareciam estar se dando bem. E quem poderia ter previsto?

Movendo-se para a próxima janela, procurou por luzes na escuridão.

Onde ele estava? Onde ele estava...

Manuel também conversaria com a doutora Jane sobre as mudanças físicas que experimentou... mudanças que, considerando a maneira como Payne brilhava toda vez que faziam amor, iriam continuar. Ele iria monitorar o corpo e ver o que aconteceu e os dois estavam rezando para que o efeito que ela tinha sobre ele fosse de torná-lo mais saudável e jovem para sempre. Apenas o tempo poderia dizer.

Resmungando, ela voltou a cruzar o saguão... e entrou na sala de jantar.

Na terceira janela de uma fileira delas, olhou para o céu. Não tinha qualquer interesse em ver sua mãe. Deveria ser maravilhoso compartilhar seu amor com aqueles que a trouxeram ao mundo; mas seu pai estava morto e sua mahmen? Payne não confiava na Virgem Escriba e temia que a aprisionasse outra vez: Manuel era um mestiço. Devia passar longe da ideia de pureza que sua mãe aprovaria...

Dois faróis brilhantes subindo a montanha sobre a qual o complexo havia sido construído fizeram seu coração disparar. E, então, uma música... um som abafado fazia o vidro trepidar.

Payne saiu correndo da sala de jantar e atravessou a todo vapor o mosaico que representava uma macieira em plena floração. Estava fora do saguão e saiu pela noite um momento depois...

Deslizou até parar no topo da escadaria externa.

Manuel não estava desacompanhado. Atrás de seu Porsche havia um veículo sólido, algum tipo de... um veículo enorme de duas partes.

Seu macho saiu de trás do volante do carro.

– Oi – ele gritou.

Era todo sorrisos quando se aproximou dela, colocou as mãos em seus quadris e a trouxe contra seu peito.

– Senti sua falta – murmurou contra a boca dela.

– Eu também – agora ela também sorria. – Mas... o que você trouxe?

O mordomo idoso saiu de trás do volante do outro veículo.

– Senhor, posso...

– Obrigado, Fritz, mas cuido disso de agora em diante.

O mordomo se curvou.

– Tem sido um prazer servi-lo.

– Você é o melhor, cara.

O doggen estava radiante ao entrar na casa. E, então, o macho de Payne virou-se para ela.

– Fique aqui.

Quando o som de algo batendo ressoou de dentro da grande geringonça, ela franziu a testa.

– Claro.

Depois de beijá-la outra vez, Manuel desapareceu atrás da coisa.

As portas se abriram. Mais batidas. Algo rangendo e rolando, em seguida, uma série de batidas rítmicas. E, então...

O relincho lhe disse o que ela sequer ousava esperar. E, então, a bela potranca de Manny desceu uma rampa e foi trazida até ela.

Payne apertou as mãos sobre a boca enquanto lágrimas se formavam. A égua desfilava com graça, o pelo brilhava sob a luz que vinha da casa, sua força e vitalidade estavam de volta.

– O que... o que ela está fazendo aqui? – disse Payne com voz rouca.

– Os humanos dão para suas noivas alguma coisa como símbolo de seu amor – Manuel abriu um grande sorriso. – Pensei que Glory fosse melhor que qualquer diamante que eu pudesse comprar. Significa mais para mim... e espero que para você também.

Quando ela não respondeu, ele estendeu as rédeas de couro que conduziam o cavalo.

– Estou dando ela a você.

Com isso, Glory soltou um tremendo relincho e pulou como se concordasse com a mudança de propriedade.

Payne enxugou os olhos e atirou-se em Manuel, beijando-o profundamente.

– Não tenho palavras.

Então, ela aceitou as rédeas quando Manuel estufou o peito todo orgulhoso.

Respirando fundo, ela...

Sem se dar conta do movimento, pulou no ar e montou sobre Glory como se as duas estivessem juntas há anos, não há minutos.

A égua não precisava de esporas, de permissão, de nada... Glory avançou, batendo com força seus cascos sobre os seixos e iniciando uma corrida a toda velocidade.

Payne enrolou seus dedos na longa crina negra e equilibrava-se perfeitamente no vigoroso dorso que se movimentava embaixo dela. Quando o vento atingiu seu rosto, ela sorriu de puro encantamento como se disparasse em um caminho de alegria e liberdade. Sim... sim! Mil vezes sim!

Para o sair pela noite.

Para a liberdade de se movimentar.

Por ter um amor esperando por ela.

Aquilo era mais do estar apenas viva. Aquilo era viver.

Enquanto Manny ficava parado junto ao reboque do cavalo e observava suas meninas decolarem juntas, estava louco de alegria. Eram uma combinação perfeita, ambas um corte da mesma roupa, uma só unidade, fortes, rasgando a escuridão em um galope que a maioria dos carros teria problemas para acompanhar.

Certo. Talvez estivesse um pouco emocionado. Mas que droga. Aquela era uma noite incrível para...

– Eu vi isso.

– Jesus Cristo... – ele agarrou sua cruz e virou-se. – Você sempre se aproxima sorrateiro assim?

O irmão de Payne não respondeu... ou talvez não conseguisse. Os olhos do vampiro estavam fixos em sua irmã e na égua galopante, e parecia tão emocionado quanto Manny.

– Pensei que seria um garanhão – Vishous balançou a cabeça. – Mas, sim, foi isso o que vi... ela sobre um puro-sangue negro, cabelos no vento. Porém, não achei que seria o futuro...

Manny voltou-se para suas garotas, que estavam bem longe do muro de proteção e faziam uma grande volta para retornar à casa.

– Eu a amo tanto – Manny ouviu-se dizer. – Aquele é o meu coração. Aquela é minha mulher.

– Muito bem.

Quando um acordo poderoso entre eles percorreu o ar, Manny sentiu-se em casa de muitas maneiras e não queria pensar muito sobre isso por medo de que as frágeis bênçãos se afastassem.

Um momento depois, olhou em volta.

– Será que posso perguntar uma coisa.

– Vá em frente.

– Que diabos você fez com o meu carro?

– Como assim, está falando sobre a música?

– Onde estão todos os meus...

– Aquela porcaria? – os olhos de diamante encontraram os dele. – Vai morar aqui, precisa começar a ouvir os meus ritmos, entendeu?

Manny balançou a cabeça.

– Está de brincadeira?

– Está dizendo que não gostou da nova batida?

– Que seja. – Depois de uma expressão de descontentamento, Manny acabou concordando. – Tudo bem, não são um lixo total.

A risada foi apenas um pooouco triunfante demais.

– Eu sabia.

– Então, o que era?

– Agora ele quer nomes. – O vampiro pegou um cigarro artesanal e acendeu. – Vamos ver... Cinderella Man, do Eminem. I’m not a human, de Lil Wayne’s. Aquela do Tupac...

A lista continuou e Manny ouviu até voltar a olhar sua mulher cavalgar enquanto acariciava o pesado crucifixo de ouro em seu pescoço.

Ele e Payne estavam juntos... Aquele tal de Butch e ele iam à igreja juntos à meia-noite... E Vishous não o esfaqueou. Além disso, se a memória não lhe enganava, o irmão gêmeo de Payne dirigia aquele Escalade preto por aí e isso significava que poderia se vingar com uma boa dose de Black Veil Bride, Bullet for My Valentine e Avenged Sevenfold tocando no sistema de som do carro.

Aquele pensamento o fez sorrir.

Somando tudo?

Sentia como se tivesse ganhado na loteria. Em cada um dos cinquenta estados do país. Ao mesmo tempo.

Eles todos eram sortudos assim.

 

 

                                                                                                    J. R. Ward

 

 

 

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