Irmandade da "Adaga Negra"
CAPÍTULO 61
No Outro Lado, Payne sentou na borda da piscina cristalina e olhou seu próprio rosto na tranquila água.
Reconheceu o cabelo negro, os olhos de diamante e os traços fortes.
Também tinha plena consciência de quem a havia criado e dado a luz.
Poderia recitar os dias de sua história até o momento.
E, no entanto, sentia como se não tivesse a menor ideia de quem realmente era. De muitas maneiras, ela não era nada além de um reflexo na superfície da piscina, uma imagem sem profundidade e substância... e não deixaria qualquer legado de sua existência ao partir.
Quando Layla se aproximou por trás dela, encontrou os olhos da fêmea no espelho d’água.
Mais tarde, entenderia que o sorriso de Layla foi o elemento que mudou tudo. Embora, claro, havia mais do que isso... mas a expressão radiante de sua irmã foi o que basicamente a colocou à mercê dos ventos da mudança, o impulso sutil que a fez cair do penhasco.
Aquele sorriso era verdadeiro.
– Olá, minha irmã – Layla disse. – Estava lhe procurando.
– E você me encontrou. – Payne forçou-se a se virar e encarar a Escolhida. – Por favor. Sente-se e junte-se a mim. Considerando seu bom humor posso deduzir que está avançando em ritmo acelerado com aquele macho.
Layla inclinou-se apenas por um momento, e então sua alegria a fez ficar em pé outra vez.
– Oh, sim, de fato. Ele pode me chamar outra vez a qualquer momento do dia e devo ir. Oh, querida irmã, não pode imaginar... é como estar presa num círculo de fogo e, ainda assim, sair ilesa e radiante. É um milagre. Uma benção.
Payne voltou-se para a água e observou quando suas próprias sobrancelhas ficaram tensas.
– Posso lhe fazer uma pergunta pessoal?
– Claro, minha irmã. – Layla aproximou-se e sentou mais uma vez na beirada de mármore da piscina. – Qualquer coisa.
– Você está pensando em se unir a ele? Não apenas ficar se encontrando com ele... mas tornar-se sua shellan?
– Bem, sim. Claro que penso. Mas estou esperando o momento certo para abordar esse assunto.
– O que fará... se ele disser não? – Quando o rosto de Layla congelou, como se nunca tivesse considerado tal coisa, Payne sentiu como se tivesse esmagado um botão de rosa na palma da mão. – Oh, maldição... não quis entristecê-la. Apenas...
– Não, não. – Layla respirou fundo. – Conheço bem você e seu coração e não há um pingo de maldade dentro dele. Na verdade, é por isso que sinto que posso falar com tamanha franqueza com você.
– Por favor, esqueça o que perguntei.
Agora era Layla quem encarava a piscina.
– Eu... na verdade, ainda não tivemos relações de verdade.
As sobrancelhas de Payne se estreitaram. Com certeza, se apenas o pensamento do ato provocava tamanha euforia, o ato em si deveria ser incrível.
Ao menos para a fêmea diante dela.
Layla envolveu os braços em torno de si, sem dúvida lembrando-se da sensação de outro abraço mais forte.
– Eu queria, mas ele se conteve. Espero... acredito que seja por desejar se unir da maneira apropriada comigo primeiro, com uma cerimônia.
Payne sentiu o peso terrível da premonição.
– Cuidado, irmã. Você é uma alma delicada.
Layla ficou em pé, o sorriso agora era triste.
– Sim, terei. Mas prefiro que meu coração seja partido ao invés de fechá-lo e sei que se deve pedir para receber.
A fêmea estava tão certa e firme que, na sombra daquela coragem, Payne se sentiu pequena. Pequena e fraca.
Quem ela era exatamente? Um reflexo? Ou uma realidade?
De repente, levantou-se.
– Poderia dar-me licença?
Layla pareceu surpresa e fez uma reverência.
– Mas é claro. E, por favor, não quis ofender-lhe com minhas divagações...
Seguindo um impulso, Payne abraçou a Escolhida.
– Não me ofendeu. Não se preocupe. E boa sorte com seu macho. Em verdade, ele é abençoado por tê-la.
Antes que mais alguma coisa pudesse ser dita, Payne partiu, movendo-se rapidamente pelo dormitório, ganhando cada vez mais velocidade ao subir a colina que levava ao Templo do Primaz. Atravessando o local sagrado, que nunca mais foi usado, entrou no pátio de mármore de sua mãe e caminhou ao longo das colunas.
A porta modesta que marcava os aposentos privados da Virgem Escriba não era o que se esperava de um local divino. Mas quando o mundo lhe pertence, não se tem nada a provar, tem?
Payne não bateu. Mas considerando o que iria fazer, a inconveniência de irromper sem bater e sem ser convidada seria quase nada na sua lista de pecados.
– Mãe – disse ao entrar na sala branca vazia.
Houve uma longa espera antes que houvesse uma resposta, e a voz que surgiu parecia etérea:
– Sim, filha.
– Deixe-me sair daqui. Agora.
Qualquer consequência que lhe sobreviesse daquele novo confronto seria melhor que uma existência castrada.
– Expulse-me – disse para as paredes brancas e para o vácuo. – Deixe-me ir. Nunca mais retornarei, se desejar. Mas não ficarei mais aqui.
Em um lampejo, a Virgem Escriba apareceu diante dela sem sua vestimenta preta habitual. Na verdade, Payne tinha quase certeza de que nunca ninguém havia visto sua mãe como realmente era, uma energia sem forma.
Porém, já não brilhava mais. Sua luz estava opaca, pouco mais que uma onda de calor.
Aquela diferença fez Payne conter a própria raiva.
– Mãe, deixe-me ir... por favor.
A resposta da Virgem Escriba demorou a chegar:
– Sinto muito. Não posso conceder o que deseja.
Payne revelou suas presas.
– Maldita seja, apenas faça isso. Deixe-me sair daqui ou...
– Não existe ‘ou’, minha filha querida. – A voz da Virgem Escriba desapareceu, retornando em seguida. – Deve permanecer aqui. É o destino.
– De quem? O seu ou o meu? – Payne gesticulou na quietude inebriante. – Pois não tenho uma vida aqui de fato. Que tipo de destino é este?
– Sinto muito.
E esse foi o fim da discussão... pelo menos da parte de sua mãe. Lançando um brilho, a Virgem Escriba desapareceu.
Payne gritou para o enorme vazio.
– Liberte-me! Desgraçada! Liberte-me!
Ela achou que seria morta ali mesmo, mas então a tortura terminaria, e onde estaria a graça nisso?
– Mãe!
Quando não houve resposta, Payne procurou ao redor e desejou com todas as forças algo para arremessar... mas não havia nada ao alcance, e isso simbolizava perfeitamente sua situação: nada para ela, não havia absolutamente nada ali para ela.
Aproximando-se da porta, descarregou sua raiva arrancando o painel das dobradiças e arremessando dentro do quarto frio e vazio. O painel branco quicou duas vezes e depois deslizou ao longo do espaço aberto, como uma pedra jogada sobre a superfície de um lago tranquilo.
Ao se dirigir à fonte, ouviu uma série de cliques, e quando olhou sobre o ombro, viu que a porta havia se consertado sozinha, preenchendo, como mágica, os batentes vazios, ficando exatamente como era antes, sem sequer um arranhão para mostrar o que ela havia feito.
A fúria cresceu dentro dela de tal forma que obstruiu sua garganta e fez suas mãos ficarem trêmulas.
Com o canto do olho, viu uma figura vestida de preto caminhando entre as colunas, mas não era sua mãe. Era apenas No’One com uma cesta de oferendas para a Virgem Escriba, seu andar manco deslocava-se vacilante de um lado para o outro.
A visão daquela Escolhida miserável e excluída alimentou ainda mais sua raiva...
– Payne?
O som de uma voz profunda a fez girar a cabeça: Wrath estava parado sob a árvore branca de pássaros coloridos, sua forma maciça dominava o pátio.
Payne saltou até ele, transformando-o num alvo com o qual pudesse lutar. E o Rei Cego claramente sentiu a violência dela e sua abordagem cruel: num piscar de olhos, entrou em postura de luta, tornando-se poderoso, preparado e pronto.
Ela deu a ele tudo o que tinha e ainda mais, seus punhos e pernas voavam contra o rei, seu corpo tornou-se um turbilhão de socos e chutes, dos quais ele se defendeu com os braços e esquivou o tronco e a cabeça.
Mais rápida, mais resistente, mais mortal, continuou pressionando o rei, forçando-o a devolver o que estava dando ou se arriscaria a ficar seriamente machucado. O primeiro golpe forte dele a acertou no ombro, tirando seu equilíbrio... mas ela se recuperou rapidamente e virou-se, trabalhando com a perna e o pé.
O impacto no estômago dele foi tão forte que gemeu... pelo menos até ela girar mais uma vez e acertá-lo no rosto com os nós dos dedos. Quando o sangue escorreu e as lentes escuras de seus óculos saltaram para longe, Wrath amaldiçoou.
– Que droga é essa, Pay...
O rei não teve a chance de terminar de pronunciar o nome. Ela chocou-se contra ele, pegando-o pela cintura e empurrando seu enorme peso para trás. No entanto, não houve uma disputa de fato. Ele era duas vezes maior e assumiu o comando com facilidade, soltando-se dela e girando-a para que ficasse de costas à sua frente.
– Caramba, qual é o seu problema? – rosnou em seu ouvido.
Ela jogou a cabeça para trás, acertando-o no rosto, e o aperto dele afrouxou por uma fração de segundo. E isso era tudo que ela precisava para se soltar. Livrando-se dele, pôde utilizar aquele corpo forte como plataforma para se lançar, então ela...
Subestimou seu impulso. Ao invés de pousar seu peso em ângulo perpendicular com o chão, foi lançada para frente... o que significou machucar um dos pés seriamente. Com isso, seu corpo caiu descontrolado para o lado.
A borda de mármore da fonte a impediu de bater no chão, mas o impacto foi pior do que se tivesse.
O estalo de suas costas foi tão alto quanto um grito.
Assim como a dor.
CAPÍTULO 62
Quando Lash acordou em seu rancho esconderijo, a primeira coisa que fez foi olhar para seus braços.
Além das mãos e pulsos, os antebraços também se tornaram sombras, uma espécie de fumaça que se movia sob seu comando e que podia ser tão etérea quanto ar ou se tornar sólida se desejasse.
Sentando-se, empurrou o cobertor e levantou-se. Seus pés estavam prestes a desaparecer também. O que era bom, mas... droga, quanto tempo mais levaria para a transformação terminar? Se seu corpo ainda tivesse forma física, com um coração batendo, precisando de comida, água e descanso, não estava completamente a salvo de balas e facas.
Além disso, francamente, considerando todos os pedaços que tinham caído dele, lidar com todo aquele lixo biológico não era fácil.
Tinha transformado o colchão em que havia dormido na maior fralda do planeta.
Um chiado atrás das persianas atraiu sua atenção e ele as abriu um pouco com a ponta dos seus não-dedos. Através da fresta, observou os humanos prosseguindo com seus inúteis dias, dirigindo, andando de bicicleta. Idiotas com suas vidas simples e ínfimas. Acordar. Ir ao trabalho. Voltar para casa. Reclamar do dia. Acordar e fazer a mesma coisa outra vez.
Quando um sedan passou, implantou um pensamento na mente do motorista e sorriu quando o carro desviou da pista, subiu no meio-fio e disparou em direção ao sobrado do outro lado da rua. O lixo humano se lançou com tudo em um banco próximo às janelas, atravessando o vidro e a estrutura de madeira. O air bag explodiu dentro do carro.
Melhor que uma xícara de café para iniciar o dia.
Virou-se, foi até a escrivaninha e ligou o laptop que havia encontrado na parte de trás do Mercedes. A transação de drogas que havia interrompido no caminho de casa valeu a pena. Conseguiu uns dois mil dólares além de um pouco de cocaína, êxtase e doze pedras de crack. Mais importante: deixou os dois traficantes e o cliente em transe, os colocou de volta no carro, levou-os até ali e os transformou.
Deixaram o banheiro um lixo por terem vomitado a noite inteira, mas, francamente, ele estava farto de sua casa e estava pensando em colocar fogo em tudo.
Então... tinha uma equipe de quatro. E como nenhum deles havia se oferecido, assim que os drenou e trouxe de volta à “vida” prometeu todo tipo de porcaria. Para saciar seus vícios, drogados acreditam em qualquer coisa. Só é preciso prometer um bom futuro... e assustar os coitados até a morte.
O que não era grande coisa para ele. Naturalmente, morreram de medo quando viram seu rosto, mas pelo menos estavam tão alucinados por causa das drogas que conversar com um morto-vivo não estava tão fora de suas experiências alucinógenas. Além do mais, era persuasivo quando queria.
Era uma pena não conseguir fazer uma lavagem cerebral neles permanente. O máximo que podia era uma sugestão como aquela que fez com o motorista: breve e insustentável, não ultrapassando uns dois segundos.
Maldito livre-arbítrio.
Depois que o computador iniciou, foi até o site do Correio de Caldwell.
Página inicial. Dedicaram uma série de artigos ao “Massacre da Fazenda”. O sangue, as partes dos corpos e o estranho resíduo oleoso geravam todo o tipo de descrições dignas do prêmio Pulitzer de jornalismo. Os repórteres também entrevistaram o policial que estava lá, o carteiro que ligou para a emergência, doze vizinhos e o prefeito que, evidentemente, estava “mobilizando os melhores homens e mulheres da polícia de Caldwell para resolver esse terrível crime contra a comunidade”.
O consenso era: mortes num ritual de sacrifício. Provavelmente vinculado a uma seita desconhecida.
Tudo conversa fiada que obscurecia o que realmente estava procurando...
Bingo. No último artigo, encontrou um pequeno relato de dois parágrafos informando que a cena do crime havia sido arrombada na noite anterior. Os “melhores homens e mulheres da polícia” tinham admitido a contragosto que um dos seus carros de patrulha noturna passou por lá e descobriu que alguém tinha invadido a cena do crime. Foram rápidos em apontar que as evidências relevantes já haviam sido removidas e que estavam colocando uma vigilância em tempo integral a partir de agora.
Então, a Irmandade havia seguido sua pequena mensagem.
Será que Xhex tinha ido também? Será que esperou para ver se ele apareceria?
Droga, tinha perdido uma grande chance com ela. E com os Irmãos.
Mas tinha tempo. Inferno, quando seu corpo se transformará em sombras por completo? Com isso feito, teria uma eternidade.
Observando o relógio, apressou-se, vestindo rapidamente calças pretas, uma blusa com gola alta e uma capa de chuva com capuz. Deslizando as luvas de couro, colocou seu boné de beisebol preto e deu uma olhada no espelho.
Sim. Certo.
Ao remexer as coisas no quarto, encontrou uma camiseta preta que rasgou em tiras e envolveu o rosto, deixando livres apenas os olhos sem pálpebras, a cartilagem do nariz e a abertura da boca.
Não estava excelente, mas era melhor que nada.
A primeira parada seria no banheiro para checar sua tropa. Estavam todos desmaiados em uma pilha no chão, braços e pernas entrelaçados, cabeças aqui e ali... mas os filhos da mãe estavam vivos.
Cara, era totalmente o fundo do poço, modelos da escória humana, pensou. Se tivessem sorte, o QI de todos eles juntos poderia chegar a três dígitos.
Contudo, seriam úteis mesmo assim.
Lash trancou a casa com um feitiço e caminhou até a garagem. Abrindo o porta-malas do Mercedes, levantou o painel de carpete, pegou o pacote de cocaína e ergueu às suas não-narinas antes de ir para trás do volante.
Bom diaaa! Quando um coro caótico ecoou dentro de si próprio, deu a ré e dirigiu para fora da vizinhança, indo pelo caminho oposto dos policiais e ambulâncias que tinham chegado à casa do outro lado da rua.
Que agora tinha um drive-thru ao invés de uma sala de estar.
A viagem até o centro da cidade deveria ser feita em dez minutos, mas por causa do tráfego do horário de pico, o tempo se estendeu para mais de vinte minutos... mas com a corrida em sua mente e corpo, sentiu-se paralisado no trânsito o tempo todo.
Era um pouco mais de nove horas quando entrou num beco e estacionou perto de uma van prata. Ao sair do carro, agradeceu a Deus pela cocaína... de fato, sentia como se tivesse um pouco de energia. O problema era que se sua transformação não terminasse logo, iria acabar com o estoque de cocaína no porta-malas em questão de dias.
Foi exatamente por isso que marcou um encontro imediato ao invés de esperar mais tempo.
Ricardo Benloise era pontual e já estava em seu escritório: o Mercedes castanho que utilizava estava estacionado do outro lado da van.
Lash se aproximou da porta dos fundos da galeria de arte e esperou em frente à câmera de vídeo. Sim, preferia ter adiado o encontro alguns dias, mas precisava continuar os negócios. Tinha vendedores sendo constituídos em seu banheiro e precisava do produto para mandá-los para as ruas.
Em seguida, precisaria transformar mais alguns soldados.
Afinal, o Idiotinha não perderia tempo preenchendo suas fileiras... apesar de não ter como saber quantos foram perdidos depois do ataque da Irmandade na fazenda.
Nunca pensou que ficaria feliz por aqueles filhos da mãe serem letais no trabalho. Quem diria.
Lash supunha que o novo brinquedinho do Ômega providenciaria um novo lote de induzidos rapidamente. E considerando que era um negociante de sucesso, retomaria a fabricação de redutores assim que possível. Isso daria recursos, não apenas para lutar contra os vampiros, mas para ir de encontro a Lash.
Então, era apenas uma questão de tempo. Lash tinha certeza de que o Idiotinha não poderia conseguir um encontro com Benloise agora, porque era um peixe pequeno... mas até quando? As vendas eram o que importava. A inteligência era o que importava. Se Lash teve sua oportunidade, qualquer um teria.
Especialmente alguém com os talentos especiais de um Redutor Principal.
Com um clique, as fechaduras da porta foram suspensas e um dos capangas de Benloise a abriu. O cara franziu a testa diante de Lash, mas logo voltou a si. Sem dúvida, já tinha visto muita coisa maluca... e não apenas no tráfico de drogas: artistas estavam sempre em contato com aquele mundo.
– Onde está sua identidade? – o cara disse.
Lash mostrou a carteira de motorista falsa.
– Bem no seu nariz, filho da mãe.
Com certeza, a combinação do cartão laminado e da voz familiar de Lash foram suficientes, pois apenas um momento depois foi autorizado a entrar.
O escritório de Benloise ficava no terceiro andar e a viagem até lá foi silenciosa. O espaço particular do cara era uma grande sala vazia, nada além de uma extensão de assoalho preto envernizado que culminava numa plataforma elevada... com uma altura equivalente ao salto de um sapato. Benloise estava parado no trono, sentado atrás de uma mesa do tamanho de uma limusine.
Quando Lash aproximou-se, o sul-americano observou os próprios dedos e falou com seu jeito suave e culto:
– Fiquei muito contente em receber sua ligação depois que faltou em nosso último encontro. Por onde esteve, meu amigo?
– Problemas familiares.
Benloise franziu a testa.
– Sim, sangue pode ser um problema.
– Não faz ideia. – Lash olhou para o nada absoluto em volta, localizando as câmeras escondidas e portas: estavam nas mesmas posições da última vez. – Primeiramente, deixe-me assegurá-lo que nosso relacionamento comercial continua sendo minha prioridade.
– Fico muito feliz em saber disso. Quando você não chegou a comprar as peças que se comprometeu em contrato, fiquei me questionando sobre seu compromisso comigo. Como um negociante de arte, dependo dos meus clientes regulares para manter meus artistas ocupados. Também espero que esses clientes cumpram suas obrigações.
– Entendo. E esse é o verdadeiro motivo pelo qual vim até aqui. Preciso de um adiantamento. Tenho uma parede vazia em minha casa que precisa ser ocupada com uma de suas pinturas, mas não posso pagar com dinheiro hoje.
Benloise sorriu, mostrando seus dentes bem ordenados.
– Temo não fazer esse tipo de arranjo. Deve pagar pela arte que leva. E porque seu rosto está coberto?
Lash ignorou a pergunta.
– Vai fazer uma exceção em meu caso.
– Eu não faço exceções...
Lash se desmaterializou, tomando forma atrás do cara e colocando uma faca em sua garganta. Com um grito, o guarda que estava mais próximo à porta foi em busca de sua arma, mas não há muito em que atirar quando a jugular de seu chefe está prestes a sangrar.
Lash sussurrou no ouvido de Benloise:
– Tive uma semana realmente péssima e me cansei de jogar segundo as regras humanas. A minha intenção é de continuar a nossa relação e você vai tornar isso possível, não só porque isso traz benefícios a ambos, mas porque vou cuidar disso pessoalmente se não o fizer. Saiba de uma coisa: não pode se esconder de mim e não existe lugar onde possa ir que eu não consiga encontrá-lo. Não há fechadura forte o suficiente para manter-me do lado de fora, nenhum homem que eu não possa dominar, não existe qualquer arma que possa usar contra mim. Esse são meus termos: uma peça importante para preencher a minha parede e vou levá-la agora.
Quando descobrisse os contatos de Benloise no exterior, poderia simplesmente tirar o bastardo do jogo... mas isso seria um movimento precipitado. O sul-americano era o principal distribuidor do produto em Caldwell e essa era a única razão pela qual o filho da mãe tinha uma boa chance de almoçar mais tarde.
Benloise respirou com força.
– Enzo, as novas pinturas estão para chegar ainda esta noite. Quando chegarem, empacote uma delas e...
– Quero isso agora.
– Precisa esperar. Não posso dar o que não possuo. Mate-me nesse momento e não terá nada disso.
Maldito. Filho da mãe.
Lash voltou a pensar em quanto havia ficado no porta-malas do Mercedes... e considerou o fato de que o efeito da cocaína já estava acabando, deixando um rastro de sono atrás de si.
– Quando? Onde?
– Mesma hora e local, como sempre.
– Tudo bem. Mas vou levar uma amostra comigo agora. – Cravou a faca no pescoço. – E não me diga que está totalmente zerado. Isso me deixará irritado... e inquieto. Inquieto é bem ruim para você...
Depois de um momento, o cara murmurou:
– Enzo, por favor vá buscar uma amostra dos novos trabalhos do artista.
O pedaço de carne do outro lado parecia estar com um pouco de dificuldade para processar toda a informação, ver alguém desaparecer no ar era sem dúvida uma coisa nova para ele.
– Enzo. Vá, agora.
Lash sorriu atrás de seus envoltórios de múmia.
– Sim, apresse-se, Enzo. Vou cuidar muito bem do seu chefe até que volte.
O guarda-costas recuou e logo se ouviu o som de suas botas afastando-se ao descer a escada.
– Então, você é o digno sucessor do Reverendo – Benloise disse, tenso.
Ah, o apelido anterior de Rehvenge no mundo dos humanos.
– Sim, assumi seu território.
– Sempre houve algo diferente nele.
– Acha que essa coisa que fiz foi especial? – Lash sussurrou. – Você não viu nada.
De volta à mansão da Irmandade, Qhuinn estava sentado em sua cama, encostado na cabeceira. Tinha o controle da TV equilibrado sobre uma coxa e uma pequena garrafa de Tequila Herradura.
Estava no meio de outra noite de insônia.
Na frente dele, a televisão brilhava na escuridão com as notícias matutinas. A polícia acabou encontrando o homofóbico que Qhuinn tinha surrado no beco ao lado do bar de charutos e o levaram para o Hospital St. Francis. O cara se negava a identificar quem o atacou ou comentar o que tinha acontecido, mas Qhuinn não se importaria se abrisse a boca. Havia centenas de filhos da mãe vestidos de couro, tatuados e com piercings na cidade, e dane-se a polícia.
Mas não importava, aquele filho da mãe não ia dizer nada a ninguém... e Qhuinn estava disposto a apostar seu traseiro de que o cara nunca mais voltaria a se meter com um gay.
Em seguida, veio uma notícia sobre aquilo que os humanos estavam chamando de “O Massacre da Fazenda”... O informe era, basicamente, um monte de informação velha e muitas hipérboles induzidas pela histeria. Cultos! Rituais de sacrifício! Não saia de casa depois do anoitecer!
Claro que tudo estava baseado em provas circunstanciais, porque a brigada de homens com crachás e uniformes azuis não tinha nada em que se basear além do rescaldo do ataque... nada de corpos. E ainda que as identidades de alguns perdedores começassem a vir à tona, seria um beco sem saída: os poucos assassinos que tinham escapado da infiltração da Irmandade estavam agora firmemente arraigados na Sociedade Redutora, e seus ex-amigos e ex-familiares nunca mais os veria ou ouviria falar deles.
Então, basicamente, os humanos ficaram com um trabalho digno de uma empresa profissional na área de limpeza e nada mais: dane-se os investigadores criminais, o que precisavam mesmo era de uma máquina de limpeza à vapor para o tapete, muitos espanadores e um balde de tira-manchas. Se achavam que iriam resolver o crime, tais policiais estavam apenas gastando as solas dos sapatos e a ponta das canetas.
O que realmente tinha acontecido era apenas um fantasma que até conseguiam sentir, mas nunca capturar.
Como se tivessem planejado, apareceu uma propaganda do novo episódio especial de Investigadores Paranormais. A câmera mostrou uma visão panorâmica da mansão sulista com árvores que pareciam precisar urgentemente de uma poda.
Qhuinn balançou os pés na beira da cama e esfregou o rosto. Layla queria voltar outra vez, mas quando entrou em contato, ele enviou um pensamento como resposta dizendo que estava exausto e que precisava dormir.
Não era o caso de não querer estar com ela... era só que...
Maldição, ela gostava dele, desejava-o e era evidente o que estava em seu coração. Então, por que não a chamava, se unia a ela e tirava esse item da lista? Isso completaria seu maior objetivo na vida.
Enquanto pensava sobre o plano, veio-lhe à mente uma imagem do rosto de Blay e foi forçado a dedicar um olhar frio e duro à sua vida: sofreu muito até então, e todas as porcarias que ele começou e não conseguiu consertar estavam se tornando um fardo cada vez mais insuportável.
Levantando-se, saiu para o corredor de estátuas e olhou à direita. Para o quarto de Blay.
Com uma maldição, aproximou-se da porta pela qual tinha entrado e saído tantas vezes. Quando bateu, o contato foi suave, não o seu habitual bang-bang-bang.
Nenhuma resposta. Tentou de novo.
Girando o pulso, empurrou apenas um centímetro e desejou não ter razões para ser discreto. Mas talvez Saxton estivesse ali com o cara.
– Blay? Está acordado? – sussurrou no escuro.
Nenhuma resposta... e a falta do som de uma ducha de água caindo sugeria que os dois não estavam tomando um banho juntos. Entrando, Qhuinn acendeu as luzes...
A cama estava feita, super organizada, totalmente intacta. A maldita coisa parecia um anúncio de revista, com todas as suas almofadas organizadas e o edredom adicional dobrado como se fosse um taco mexicano de pano aos pés do colchão.
O banheiro tinha toalhas secas, nenhuma condensação de água no vidro e não havia qualquer vestígio de espuma na banheira.
Sentiu o corpo ficar dormente quando voltou ao corredor e seguiu adiante.
Na porta do quarto que foi designado a Saxton, deteve-se e olhou os painéis. Excelente trabalho de carpintaria, as peças se juntavam sem emendas. O trabalho de pintura era perfeito também, sem nenhuma pincelada atrapalhando a superfície lisa. Uma bela maçaneta de bronze, tão brilhante quanto uma moeda de ouro recém-fabricada.
Sua aguda audição reconheceu um som suave e franziu a testa... até que compreendeu o que estava ouvindo. Só uma coisa produzia aquele som rítmico...
Cambaleando para trás, bateu com as costas na estátua grega que estava bem atrás dele.
Tropeçando, caminhou cegamente para algum lugar, qualquer lugar.
Quando chegou ao escritório do rei, olhou sobre o ombro e observou o tapete onde havia pisado.
Nenhum rastro de sangue. O que, se considerasse a forma como doía seu peito, era uma surpresa.
Com certeza, sentia como se houvesse recebido um tiro no coração.
CAPÍTULO 63
Xhex acordou gritando.
Felizmente, John tinha deixado a luz do banheiro acesa, com isso conseguiu convencer seu cérebro sobre onde seu corpo estava: de fato, não estava de volta à clínica humana, sendo tratada como um rato de laboratório. Estava ali, na mansão da Irmandade, com John.
O qual tinha pulado da cama e apontado uma arma para a porta, preparado para abrir um buraco através da maldita coisa.
Tapando a boca com uma das mãos, rezou para tê-la fechado a tempo, antes de acordar a casa inteira. A última coisa que ela precisava era de um bando de Irmãos aparecendo na porta.
Com um movimento silencioso, John balançou o cano da arma ao redor das janelas fechadas e em seguida fez uma varredura no armário. Quando finalmente baixou sua arma, assobiou em um gesto questionador.
– Eu estou... bem – ela respondeu, encontrando a voz. – Só um pesa...
A batida na porta que a interrompeu foi tão sutil quanto um xingamento numa sala silenciosa. Ou como o grito que tinha acabado de deixar escapar.
Enquanto ela puxava os lençóis até o pescoço, John abriu uma fresta da porta e a voz de Z. invadiu o quarto:
– Está tudo bem por aqui?
Não. Nem um pouco.
Xhex esfregou o rosto e tentou se reconectar com a realidade. Tarefa difícil. Seu corpo estava leve e desconectado e, cara, aquela sensação flutuante não ajudava a manter os pés no chão.
Não precisava ser um gênio para descobrir porque seu subconsciente tinha lembrado da primeira vez que foi sequestrada. Ficar na sala de operações enquanto o chumbo era retirado da perna de John com certeza foi uma refeição apimentada para seu cérebro, com o pesadelo sendo a versão craniana do vômito.
Cristo, ela suava frio, gotas escorriam de seu lábio superior, as palmas das mãos estavam úmidas.
Em desespero, ela se concentrou no que podia ver através da porta parcialmente aberta do banheiro.
Concentrar-se nas escovas de dente no balcão de mármore foi o que a salvou. Estavam num copo de prata entre as duas pias, parecendo um casal de curiosos com suas cabeças inclinadas para trocar fofocas. As duas eram de John, ela supunha, pois convidados não eram, em geral, bem-vindos naquela casa.
Uma era azul. A outra vermelha. Ambas tinham cerdas verdes no centro que com o uso se tornavam brancas, indicando quando deveriam ser trocadas por novas.
Era o retrato da normalidade. Talvez se tivesse um pouco mais disso, não estaria procurando por saídas de emergência da vida. Ou tendo pesadelos que transformavam sua garganta em um megafone.
John se despediu de Z. e voltou-se para ela, deixando a arma na mesa de cabeceira e deslizando sob as cobertas. Seu corpo quente era sólido e suave. Xhex se aproximou dele com uma facilidade que supôs ser comum entre os amantes.
Algo que nunca teve com ninguém antes.
Quando ele puxou sua cabeça para trás para que ela pudesse ver seu rosto, John assinalou com a boca:
O que foi isso?
– Sonho. Um sonho muito ruim. De quando... – respirou fundo. – De quando estive naquela clínica.
Ele não a pressionou por detalhes. Ao invés disso, ela apenas o sentiu acariciando seu cabelo.
No silêncio que se seguiu, ela não quis falar sobre o passado – especialmente quando a última coisa que precisava era de mais ecos do pesadelo. Porém, de alguma forma, as palavras se formavam em sua garganta e ela não podia impedi-las de sair.
– Eu queimei todo o prédio. – Seu coração bateu ao lembrar-se, mas, pelo menos, a recordação do que tinha acontecido não era tão ruim quanto estar lá de volta em um sonho. – É estranho... não tenho certeza se os humanos acreditavam que estavam fazendo algo de errado... tratavam-me como um raro animal de zoológico, dando tudo que eu precisava para sobreviver enquanto me cutucavam, me exibiam e faziam teste após teste... bem, a maioria dos seres humanos era boa para mim. Mas havia um maldito sádico no grupo. – Ela balançou a cabeça. – Eles me mantiveram por cerca de um mês ou dois e tentaram me dar sangue humano para me manter, mas liam nos indicadores clínicos que eu estava ficando mais fraca. Libertei-me porque um deles me deixou sair.
John deitou de costas e colocou suas mãos na faixa de luz.
Droga, sinto muito. Mas estou contente por ter destruído o lugar.
Em sua mente, lembrou de quando voltou para onde havia sido presa... e a consequência dessa volta.
– Sim, tive que queimar a coisa. Estava livre há algum tempo quando voltei... mas não conseguia dormir com os pesadelos. Coloquei fogo nas instalações depois que todos saíram do trabalho. Contudo – levantou o dedo indicador –, pode ter havido uma morte horrível. Mas o filho da mãe merecia. Eu sou o tipo de garota olho por olho.
As mãos de John reapareceram gesticulando:
Isso é bastante óbvio... mas não é uma coisa ruim.
Desde que não fosse Lash, ela pensou consigo mesma.
– Posso perguntar uma coisa? – Quando ele encolheu os ombros, ela sussurrou. – Na noite em que me levou para percorrer alguns pontos da cidade... já havia voltado a qualquer um daqueles lugares antes?
Na verdade, não. John balançou a cabeça. Não gosto de me debruçar sobre o passado. Vou em frente.
– Como o invejo. Já eu, não consigo me livrar da história.
E não se tratava apenas daquela porcaria que aconteceu na clínica ou do pequeno pesadelo no ninho de amor de Lash. Por alguma razão, o fato dela nunca ter se encaixado – nem com a família que a criou, nem com os vampiros ou mesmo os sympathos – ressoava através dela, definindo-a mesmo quando não pensava conscientemente nisso. Seus momentos de liberação foram poucos e distantes entre si... e tragicamente pareciam focados em seus trabalhos como assassina.
Só que, então, pensou em seu tempo com John... e ajustou um pouco a aritmética deprimente. Estar com ele, os corpos entrelaçados, parecia correto. Mas era uma espécie de paralelo com seu lado assassino profissional – em última análise não era uma coisa saudável para os envolvidos. Inferno, olha o que tinha acontecido: ela acordou gritando e foi John quem despertou com a arma em punho e enfrentou a situação... enquanto ela atuava como uma pobre fêmea medrosa com o lençol agarrado junto ao seu coração assustado.
Essa não era ela. Simplesmente não era.
E Deus, ter caído tão facilmente no papel de ser a protegida... a assustou ainda mais do que os sonhos que a faziam gritar. Se a vida lhe havia ensinado uma coisa, era que a melhor aposta era cuidar dos próprios assuntos. A última coisa no mundo que queria era ser uma garotinha boba e confiar em alguém – mesmo que esse alguém seja honrado, digno e gentil como John.
Contudo... o sexo era bom. Parecia básico e um pouco cru colocar isso assim, mas era uma grande verdade.
Quando chegaram ali, pouco depois da brincadeira no túnel, nem sequer se incomodaram com as luzes. Não havia tempo, tempo nenhum – tirar as roupas, cama, entrar com força. Ela acabou dormindo, e um pouco depois John deve ter se levantado para usar o banheiro e deixou a luz acesa. Provavelmente para se certificar que não se sentiria perdida se acordasse.
Porque esse era o tipo de macho que era.
Houve um clique, um giro e as venezianas de aço começaram a se levantar para a noite, o céu escurecido foi revelado, seu devaneio mental misericordiosamente cortado.
Odiava ficar ruminando. Nunca resolvia nada e só a fazia se sentir pior.
– A água quente está nos chamando – ela disse, forçando o corpo a ficar em pé. As dores deliciosas em seus músculos e ossos a faziam querer dormir durante dias naquela grande cama ao lado de John. Talvez semanas. Mas aquele não era seu destino, era?
Xhex se inclinou e olhou o rosto de John nas sombras. Após observar suas belas feições, teve que erguer a mão e acariciá-lo.
Eu te amo, ela articulou com os lábios no escuro. Então Xhex disse:
– Vamos.
O beijo que deu em John foi uma espécie de adeus... talvez nesta noite finalmente capturassem Lash e isso significaria o fim de momentos assim.
De repente, John agarrou seu braço, mas como se lesse sua mente e soubesse muito bem o resultado, soltou-a.
Quando ela se levantou e saiu da cama, os olhos dele a seguiram... podia sentir isso.
No banheiro, ela abriu a água e pegou algumas toalhas no armário.
Xhex parou quando viu seu reflexo no espelho sobre a pia.
Seu corpo era o mesmo de sempre, mas pensou em como se sentia quando ela e John transavam. Estava tão acostumada a pensar em seu corpo como uma arma, somente algo útil e necessário para realizar coisas. Inferno, ela se alimentava e se cuidava da mesma maneira que cuidava de suas armas e facas – porque era assim que permaneciam úteis.
Em suas horas juntos, John havia lhe ensinado algo diferente, tinha-lhe mostrado que poderia obter um profundo prazer de sua carne. Algo que nem mesmo o relacionamento dela com Murhder proporcionou.
Como se ele tivesse sido convocado por seus pensamentos, John se colocou atrás dela, a altura e a largura de seus ombros eclipsaram seu reflexo.
Encontrando os olhos dele, colocou a mão no seio e tocou o próprio mamilo, lembrando-se de como era sentir o toque, a língua e a boca dele ali. No instante em que fez o contato, o corpo dele respondeu, sua essência de vinculação inundou o banheiro e sua ereção tocou os quadris dela.
Estendendo a mão para trás, ela o puxou contra si, sua excitação penetrou o vão formado pelo seu sexo e suas coxas. Quando os quadris de John pressionaram, as mãos quentes dele circularam ao longo do corpo de Xhex e acariciaram sua barriga. Aproximando a cabeça de seu ombro, seus dentes brancos brilharam ao arrastá-los delicadamente sobre a pele na curva de seu pescoço.
Arqueando-se, ela se estendeu e passou as mãos por seu cabelo escuro. Apesar de cortar bem curto, os fios estavam crescendo e ela gostou da sensação. Preferia longo porque dava uma sensação muito melhor entre seus dedos... tão sedoso, tão suave.
– Entre em mim – disse ela com voz rouca.
John deslizou a mão para cima e segurou o seio que ela havia acariciado, em seguida aproximou seus corpos, direcionou seu membro e introduziu com suavidade. Ao mesmo tempo, percorreu suas presas desde a garganta até a veia de Xhex.
Ele não precisava se alimentar. Sabia disso. Então, ficou estranhamente excitada quando suas presas a tocaram, porque significava que fazia isso apenas por desejo: John a queria dentro de si também.
Sob a luz, Xhex observou quando ele a tomou por trás, flexionando seus músculos, seus olhos queimando, sua ereção entrando e saindo. Ela observou a si mesma também. As pontas dos seios estavam rígidas, seus mamilos rosados, e não apenas porque essa era a cor deles, mas porque ele tinha os acariciado bastante durante as horas do dia. Sua pele estava toda brilhante, o rosto em chamas, seus lábios inchados, os olhos apertados e eróticos.
John quebrou o contato que havia estabelecido com sua veia e sua língua rosa surgiu, lambendo os furos, selando-os. Virando a cabeça, ela capturou sua boca com a sua, saboreando o gosto e o contato de suas línguas enquanto seus corpos seguiam o mesmo ritmo abaixo.
Não demorou muito para o sexo crescer urgente e cru, não mais sensual, mas poderoso. Enquanto os quadris de John bombeavam contra ela, seus corpos batiam um no outro e suas respirações soavam como rugidos. O orgasmo dela foi tão forte que se ele não estivesse agarrando seus quadris, seus joelhos teriam cedido e ela teria caído. E, assim que atingiu o ápice, sentiu os espasmos de John emanando de sua ereção e varrendo o corpo... e a alma dela.
E então aconteceu.
No auge de sua liberação, sua visão ficou vermelha e plana... e, enquanto o êxtase se desvanecia gradativamente, o aparecimento repentino de seu lado mal era um sinal de alerta que ela já estava esperando mesmo que de maneira inconsciente.
Ao poucos, começou a sentir a crescente umidade e calor do chuveiro... o som da água caindo... os milhares de pontos de contato entre eles... e como todas as coisas assumiam uma coloração de tons de sangue.
John ergueu a mão e tocou a lateral de seus olhos vermelhos.
– Sim, eu preciso dos meus cilícios – ela disse.
Ele ergueu as mãos e gesticulou:
Estou com eles.
– Está?
Eu os guardei. Ele franziu a testa. Mas tem certeza que você precisa...
– Sim – disse com firmeza. – Tenho.
A expressão dura que surgiu no rosto dele lembrou a maneira como havia saltado da cama quando ela acordou gritando. Intratável. Todo macho. Durão. Mas não havia nada que ela pudesse fazer para ajudá-lo com essa atual desaprovação. Ela tinha que cuidar de si mesma, e se ele estava ou não de acordo com o que fazia para manter-se “normal”, isso não iria mudar a realidade.
A verdade era que eles não nasceram para ficar juntos, não importa o quanto fossem compatíveis algumas vezes.
John se retirou de dentro dela e deu um passo atrás, percorrendo os dedos por sua coluna, como uma espécie de agradecimento... e considerando o olhar sombrio em seus olhos, provavelmente aquilo era um adeus. Afastando-se, dirigiu-se para o chuv...
– Oh... Meu... Deus...
O coração de Xhex parou quando o olhou no espelho. Sobre as costas dele, em uma gloriosa extensão de tinta preta... havia uma declaração que não sussurrava, mas gritava em letras grandes e com ornamentos em volta...
Era o nome dela no Antigo Idioma.
Xhex virou-se enquanto John congelava.
– Quando fez isso?
Depois de um momento tenso, ele encolheu os ombros e ela foi cativada pelo modo como a tinta se movia, alongando-se e voltando ao lugar. Balançando a cabeça, experimentou o jato quente com a mão, então entrou pela porta de vidro, colocou as costas na água corrente e pegou o sabonete, fazendo espuma com as mãos.
Quando ele se recusou a olhar para ela, enviou uma mensagem clara de que o nome dela em sua pele era problema dele. Eram os mesmos limites que ela tinha estabelecido com relação aos cilícios, não?
Xhex foi até a porta de vidro que os separava. Ergueu a mão e bateu com força.
Quando?, ela articulou com a boca.
Os olhos dele se estreitaram, como se estivesse se lembrando de algo que fazia seu estômago doer. Então, com as pálpebras baixas, gesticulou devagar... e deixou Xhex com o coração partido:
Quando pensei que não voltaria mais para casa.
John fez um rápido trabalho com o sabonete e o xampu, muito consciente de que Xhex estava em pé ao lado do vidro, encarando-o. Queria ajudá-la com a surpresa, mas considerando como as coisas estavam entre eles, não achava que era o melhor momento para mexer com seus próprios sentimentos.
Quando perguntou a ela sobre os cilícios, Xhex foi muito clara sobre deixá-lo de fora disso... e essa atitude reiniciou seu cérebro. Desde que foi ferido na noite anterior, tinham retomado a conexão sexual, mas isso apenas encobria a realidade. Mas não mais.
Depois que terminou o banho, saiu do chuveiro, passou por ela e envolveu uma toalha em torno dos quadris. No espelho, encontrou os olhos dela.
Vou pegar os seus cilícios, ele sinalizou.
– John...
Quando ela não disse mais nada, ele franziu a testa pensando que isso os descrevia em poucas palavras: em pé, a um metro de distância um do outro e, mesmo assim, separados por quilômetros.
Saiu do banheiro e entrou no quarto, pegou um jeans e vestiu. Estava com sua jaqueta de couro quando chegou à clínica na noite anterior, portanto deveria estar em algum lugar por lá.
Descalço, passou pelas estátuas de mármore, desceu a escadaria e entrou pela porta oculta. Cara... voltar ao túnel foi difícil: tudo que conseguia pensar era em Xhex e ele juntos no escuro.
Como um completo covarde, desejou muito poder voltar àqueles momentos quando nada existia a não ser seus corpos rugindo. Ali embaixo, seus corações estavam livres para bater... e cantar.
Maldita vida real.
Que saco.
Estava caminhando em direção à entrada do centro de treinamento quando a voz de Z. o deteve.
– Ei, John.
John girou, os pés descalços chiaram no chão do túnel. Quando ergueu a mão em saudação, o Irmão veio caminhando da porta da mansão vestido para a luta, com suas roupas de couro preto e camiseta sem mangas. Com a cabeça raspada e as luzes do teto percorrendo todas aquelas cicatrizes irregulares em seu rosto, não era de se admirar que as pessoas morriam de medo dele.
Especialmente com o olhar estreito daquela maneira e a mandíbula com uma expressão severa.
E aí?, John gesticulou quando o Irmão parou na frente dele.
Quando não houve resposta imediata, John preparou-se, pensando-se “Oh... droga, o que será que aconteceu agora?”.
O que foi?, gesticulou.
Zsadist soltou uma maldição e começou a andar pelo local, as mãos sobre os quadris, os olhos fixos ao chão.
– Eu nem sei por onde começar, cara.
John franziu a testa e recostou-se contra a parede do túnel, pronto para mais uma má notícia. Apesar de não fazer ideia do que tinha acontecido, a vida dava um jeito de ser bastante criativa, não?
Finalmente, Z. parou, e quando o encarou, seu olhar não estava dourado como normalmente era quando estava em casa. Estava escuro como breu. Um negro cruel. E o rosto do macho estava da cor da neve.
John endireitou-se.
Jesus... o que há de errado?
– Você se lembra dos passeios que você e eu costumávamos ter na floresta? Pouco antes de sua transição... depois que brigou com Lash pela primeira vez?
Quando John assentiu, o Irmão continuou:
– Nunca se perguntou o porquê de Wrath nos colocar juntos?
John assentiu com a cabeça lentamente.
Sim...
– Não foi por acaso. – Os olhos do Irmão estavam frios e escuros como o porão de uma casa mal assombrada, as sombras não envolviam apenas a íris, mas o que estava por trás daquele olhar. – Você e eu temos algo em comum. Entende o que estou dizendo? Você e eu... temos algo em comum.
John franziu a testa outra vez, sem entender...
De repente, sentiu uma explosão de calafrios percorrer o corpo. Z...? Espere, será que tinha ouvido direito? Será que estava entendendo errado?
Só que, então, tudo ficou claro como o dia, lembrou-se de como os dois se encaravam... logo depois do Irmão ler o que o psicólogo tinha escrito no prontuário de John.
“Pode escolher como vai lidar com isso, porque não é da conta de mais ninguém”, Z. disse na época. “Não vai precisar dizer sequer mais uma palavra sobre o assunto, nada sairá dos meus lábios.”
Naquele dia, John foi surpreendido pela compreensão inesperada do Irmão e o fato de que não parecia julgá-lo ou vê-lo como um fraco.
Agora entendia a razão.
Deus... Z.?
O Irmão levantou a mão.
– Não estou dizendo isso para lhe assustar e, droga, preferiria que nunca ficasse sabendo... por razões que eu tenho certeza que entende. Mas estou trazendo isso à tona por causa do grito de sua fêmea nesta manhã.
As sobrancelhas de John ficaram tensas quando o Irmão começou a andar outra vez.
– Olha, John, não gosto de pessoas se metendo nos meus problemas e sou a última pessoa que gostaria de falar disso. Mas aquele grito... – Z. encarou John. – Passei muito por isso para não saber que tipo de inferno uma pessoa tem que viver para gritar assim. Sua garota... ela já tem algo de sombrio mesmo num dia bom, mas depois de Lash? Não preciso de detalhes... mas posso concluir que ela está muito abalada. Inferno, às vezes, quando você se vê a salvo outra vez... é quase pior.
John esfregou o rosto enquanto as têmporas latejavam, depois ergueu as mãos... mas deu-se conta de que não tinha nada para gesticular. A tristeza que o atingiu acabou com suas palavras, deixando-o com uma estranha dormência e uma sensação de branco em sua mente.
Tudo que podia fazer era concordar.
Zsadist deu uma batida em seu ombro e continuou:
– Encontrar e ficar com Bella foi meu bote salva-vidas. Mas não era a única coisa que eu precisava. Olha só, antes de nossa cerimônia de união, Bella me deixou... ela se foi e me deu um pontapé sem qualquer bom motivo. Sabia que tinha que fazer alguma coisa para colocar minha cabeça no lugar se quisesse ter uma chance com ela. Então, conversei com alguém sobre... tudo. – Z. amaldiçoou de novo e fez um gesto no ar com a mão. – E não, não foi ninguém da equipe de Havers. Foi alguém em quem eu confiava. Alguém que fazia parte da família... que eu sabia que não me veria como fraco ou sujo ou como um lixo.
Quem?, John articulou com a boca.
– Mary. – Z. suspirou. – A Mary de Rhage. Tivemos sessões na sala da caldeira. Um em frente ao outro. Perto da fornalha. Isso ajudou na época e ainda volto a conversar com ela de tempos em tempos.
John pôde ver a lógica instantaneamente. Mary tinha um tipo de calma que explicava como foi capaz de dominar não só o Irmão mais selvagem, mas a terrível fera interior que havia nele.
– O grito desta noite... John, se quer se unir com esta fêmea, tem que ajudá-la com isso. Ela precisa falar sobre sua dor, porque se não o fizer, com certeza vai apodrecer de dentro para fora. E eu falei com Mary agora há pouco... sem citar nomes. Ela conseguiu o diploma de psicologia e disse que está pronta para trabalhar com alguém. Se tiver uma chance e perceber o momento certo com Xhex... fale com ela sobre isso. Diga-lhe para conversar com Mary. – Enquanto Z. esfregava a cabeça raspada, os piercings nos mamilos que usava se destacavam num relevo acentuado sob a camiseta preta sem mangas. – E se quiser um testemunho de como isso funciona, posso garantir pela vida da minha filha que sua fêmea estará em boas mãos.
Obrigado, John gesticulou. Sim, com certeza direi isso a ela. Jesus... obrigado.
– Sem problema.
De repente, John encontrou o olhar de Zsadist.
Enquanto os dois mantinham o olhar, era difícil não se sentir parte de um clube exclusivo em que ninguém jamais se oferecia como voluntário para se associar. A adesão não era solicitada ou desejável ou algo para se vangloriar... mas era real e poderosa: sobreviventes de naufrágios semelhantes podiam ver os horrores nos olhos dos outros. Era como se reconhecessem. Eram duas pessoas com a mesma tatuagem em seu interior, compartilhavam um trauma que os separava do resto do planeta, mas que aproximavam duas almas cansadas de maneira inesperada.
Ou três, como era o caso aqui.
A voz de Zsadist soou rouca:
– Matei a vadia que fez isso comigo. E levei a cabeça dela quando fui embora. Já teve essa satisfação?
John negou com a cabeça lentamente.
Gostaria muito.
– Não vou mentir. Isso também me ajudou muito.
Houve um silêncio tenso, estranho, como se nenhum deles soubesse como apertar o botão de reiniciar e voltar ao normal. Então Z. assentiu com a cabeça uma vez e levantou o punho.
John bateu seus dedos nos dele, pensando: caramba, nunca se sabe o que está oculto no armário de alguém, não é mesmo?
Os olhos amarelos de Z. resplandeceram mais uma vez quando virou-se e caminhou de volta em direção à porta que o levaria para a mansão e sua família. No bolso de trás, como se tivesse colocado ali e esquecido, estava um babador rosa de bebê, que tinha partes de velcro e uma pequena caveira com ossos pretos cruzados na frente.
A vida continua, John pensou. Não importa o que o mundo faz, você consegue sobreviver.
E talvez se Xhex conversasse com Mary, ela não...
Deus, não poderia nem sequer pensar no que Xhex poderia fazer.
Apressando-se em direção ao centro de treinamento, foi para a clínica, onde encontrou seu casaco, suas armas e o que Xhex precisava.
Quando pegou a porcaria dos cilícios, sua mente estava agitada com todas aquelas coisas... coisas do passado e do presente.
Ao voltar para a mansão, passou pela grande escadaria e pelo corredor de estátuas. Assim que entrou em seu quarto, ouviu o chuveiro aberto no banheiro e teve uma breve e clara imagem de Xhex gloriosamente nua e escorregadia por causa da água e da espuma – mas não entraria e se juntaria a ela. Aproximou-se da cama e deixou os cilícios ali, em seguida armou-se com seu equipamento de combate e saiu.
Não foi se servir da Primeira Refeição.
Desceu o corredor seguindo para outro quarto. Ao bater na porta, teve a sensação de que o que estava prestes a fazer já havia demorado muito para acontecer.
Quando Tohr abriu, o Irmão ainda estava se vestindo... e estava obviamente surpreso.
– O que foi?
Posso entrar?, John gesticulou.
– Sim, com certeza.
Quando John entrou, sentiu uma estranha sensação de premonição. Mas quando se tratava de Tohr sempre tinha isso... junto com um sentimento de profunda conexão.
Franziu a testa enquanto olhava para o macho, pensou no tempo que passaram naquele sofá lá embaixo, assistindo aos filmes do Godzilla enquanto Xhex estava fora combatendo à luz do dia. Era engraçado, ficava tão à vontade perto do cara, que estar com Tohr era como estar sozinho, mas sem a solidão...
Está me seguindo ultimamente, não é mesmo?, John sinalizou de repente. Você é a... sombra que eu sentia. No estúdio de tatuagem e no Parque Xtreme.
Os olhos de Tohr se estreitaram.
– Sim. Era eu.
Por quê?
– Olha, de verdade, não é porque acho que não consiga se cuidar...
Não, não é isso. O que não entendo é... se estava bem o suficiente para estar lá fora no campo de batalha, porque não está matando os assassinos? Por... ela. Por que perder tempo comigo?
– Ah, que droga, John... – Longa pausa. – Não se pode fazer mais nada pelos mortos. Eles se foram. Está feito. Já os vivos... pode cuidar dos vivos. E conheço o inferno no qual estava vivendo... e ainda está. E eu perdi minha Wellsie porque não estava presente quando ela precisou de mim... não conseguiria suportar perdê-lo pela mesma razão.
Quando as palavras do Irmão se desvaneceram, John sentiu como se tivesse levado um soco no estômago... e, mesmo assim, não ficou chocado. Porque esse era o tipo de macho que Tohr era: firme e verdadeiro. Um macho de valor.
O cara riu asperamente.
– Não me interprete mal. Assim que acabar com esse assunto de Lash e aquele bastardo estiver morto, vou pegar pesado com os filhos da mãe. Vou matar assassinos em memória dela pelo resto da minha vida. Mas a questão é: eu me lembro... entenda, eu estive onde você esteve quando achou que sua fêmea havia partido. Não importa o quão equilibrado se acredita estar, na verdade você fica louco por dentro... você foi abençoado por recuperá-la, mas a vida não traz de volta a sanidade com tanta rapidez. Além disso, vamos admitir... você faria qualquer coisa para salvá-la, até mesmo colocar o peito na frente de uma bala. Algo que posso compreender, mas gostaria que evitasse, se possível.
Ao ouvir as palavras do Irmão, John gesticulou automaticamente:
Ela não é minha fêmea.
– Sim, ela é. E os dois fazem muito sentido. Não faz ideia de como fazem sentido juntos.
John balançou a cabeça.
Não tenho certeza disso que está falando. Sem ofensa.
– Não tem que ser fácil para ser certo.
Neste caso, fomos feitos um para o outro.
Houve um longo silêncio, durante o qual John teve a estranha sensação de que a vida estava redefinindo-se, que as engrenagens que antes faltavam estavam assumindo seu lugar com firmeza outra vez.
E mais uma vez pensou no Clube dos Sobreviventes.
Cristo, sabendo de todas as desgraças pelas quais as pessoas que viviam na mansão tinham passado, talvez V. devesse projetar uma tatuagem para todos. Porque, com toda certeza, o grupo tinha ganhado na loteria no que se referia a grandes impactos.
Ou, Deus, talvez fosse apenas a vida. Para todos no planeta. Talvez o Clube dos Sobreviventes não fosse algo para ser “ganhado”, mas simplesmente algo inato, presente desde quando se sai do ventre da mãe. Seu batimento cardíaco o escala para o jogo e depois o resto era apenas uma questão de vocabulário: os substantivos e verbos que descrevem as desgraças nem sempre seriam os mesmos para todos, mas a crueldade aleatória de doenças e acidentes, ser o foco malicioso de homens maus e de ações desagradáveis, o desgosto da perda com todos os seus chicotes e correntes... no fundo, era tudo a mesma coisa.
E não havia nenhuma cláusula com a opção de exclusão no estatuto do clube – a não ser pelo suicídio.
A verdade essencial da vida, como ele estava começando a compreender, não era romântica e precisava apenas de duas palavras. Desgraças. Acontecem.
Mas o fato é que você continua. Mantendo seus amigos, sua família, seus cônjuges tão seguros quanto possível. E continua lutando mesmo depois de ser derrubado.
Caramba, você levanta da terra e continua a lutar.
Fui horrível com você, John gesticulou. Sinto muito.
Tohr balançou a cabeça.
– Como se eu tivesse agido melhor? Não se desculpe. Como meu melhor amigo e seu pai sempre me dizia: não olhe para trás. Apenas para frente.
Então, é daí que vinha, John pensou. A crença estava em seu sangue.
Quero que esteja comigo, ao meu lado, John sinalizou. Hoje à noite. Amanhã à noite. Durante todo o tempo que for necessário para matar Lash. Faça isso comigo. Encontre o bastardo comigo, conosco.
A sensação de que os dois trabalhariam juntos parecia tão certa. Afinal, por razões individuais, estavam unidos naquele jogo de xadrez mortal: John precisava vingar Xhex por razões óbvias. E quanto a Tohr... bem, o Ômega tinha levado seu filho quando o redutor matou Wellsie. Agora, o Irmão tinha a chance de devolver o favor ao cretino.
Venha comigo. Faça isso... comigo.
Tohr teve que limpar a garganta.
– Pensei que nunca pediria.
Nenhum cumprimento de mãos fechadas desta vez.
Os dois se abraçaram, peito a peito. E quando se separaram, John esperou Tohr vestir uma camisa, pegar sua jaqueta de couro e suas armas.
Então, desceram as escadas lado a lado.
Como se nunca tivessem se separado. Como se as coisas tivessem sido sempre assim.
CAPÍTULO 64
Os quartos dos fundos da mansão da Irmandade tinham o benefício tanto de uma vista para os jardins como também de uma varanda no segundo andar.
O que significava que se estivesse inquieto, poderia sair e sentir um pouco de ar fresco antes de enfrentar o resto da casa.
No segundo em que as persianas foram levantadas para a noite, Qhuinn abriu as portas francesas de seu quarto e saiu para a noite fresca. Apoiando as mãos nos balaústres, inclinou-se, seus ombros aceitando facilmente o peso do peitoral. Estava vestido para a guerra, de couro e botas de combate, mas tinha deixado as armas dentro do quarto.
Observando a cama de flores do jardim e as finas árvores frutíferas que estavam prestes a florescer, sentiu a pedra fria e suave embaixo de suas mãos, a brisa em seu cabelo ainda úmido e a forte tensão dos músculos em seu pescoço. O cheiro de cordeiro recém-assado flutuava da cozinha e luzes brilhavam por toda a casa, a iluminação dourada e aconchegante era derramada sobre o gramado e o pátio mais abaixo.
Mas que ironia... sentir-se tão vazio porque Blay finalmente estava realizado.
A nostalgia o fez lembrar das noites na casa de Blay, os dois sentados no chão aos pés da cama, jogando videogame, bebendo cerveja e assistindo filmes. Havia coisas muito importantes para se falar naquela época, coisas como o que estava acontecendo nas aulas de treino, qual jogo estava para ser lançado na época do natal e quem era mais gostosa: Angelina Jolie ou qualquer outra que usasse saia.
Angelina sempre ganhava. Lash sempre foi um desgraçado. E Mortal Kombat ainda reinava.
Deus... Guitar Hero World Tour ainda nem tinha saído naquela época.
O negócio era que Qhuinn e Blay sempre foram sinceros um com o outro, e, no mundo de Qhuinn, onde todos o odiavam, ter alguém que o entendia e o aceitava como era... tinha sido como um raio de sol tropical na porcaria do polo Norte.
Agora, porém... era difícil compreender como já tinham sido tão próximos. Ele e Blay estavam seguindo caminhos diferentes. Tendo tudo em comum um dia, agora não tinham nada além do inimigo... e até nisso Qhuinn tinha que ficar com John, então, não era como se ele e Blay fossem parceiros.
Droga, o adulto nele reconheceu que era assim que as coisas aconteciam. Mas a criança nele chorou pela perda mais do que...
Ouviu o barulho de uma porta se abrindo.
Saindo do quarto escuro que não era o seu, Blay caminhou para o terraço. Estava usando um roupão de seda preto e estava descalço, o cabelo molhado do banho.
Havia marcas de mordida em seu pescoço.
Deteve-se quando Qhuinn se endireitou.
– Oh... oi – Blay disse e imediatamente olhou para trás como que para ter certeza de que a porta estava fechada.
Saxton estava lá, Qhuinn pensou. Dormindo nos lençóis que tinham desarrumado de maneira majestosa.
– Já estava entrando – Qhuinn disse, coçando o ombro com o polegar. – Está muito frio para ficar aqui fora por muito tempo.
Blay cruzou os braços no peito e olhou para a vista.
– Sim. Está bem frio.
Depois de um momento, o cara aproximou-se e o cheiro do sabonete dele invadiu o nariz de Qhuinn.
Nenhum deles se moveu.
Antes de sair, Qhuinn limpou a garganta e se jogou da ponte:
– Foi bom? Ele tratou você bem?
Deus, sua voz estava rouca.
Blay respirou fundo. E então assentiu:
– Sim. Foi bom. Foi... tudo certo.
Os olhos de Qhuinn se afastaram de seu amigo... apenas para medir a distância até o pátio de pedra, lá embaixo. Hum... fazer um mergulho em direção a toda aquela ardósia talvez fosse capaz de tirar a imagem dos dois juntos de sua mente.
Claro, isso também transformaria seu cérebro em ovos mexidos, mas, de verdade, será que seria tão ruim assim?
Saxton e Blay... Blay e Saxton...
Caramba, ficou calado por algum tempo.
– Estou contente. Quero que você seja... feliz.
Blay não fez qualquer comentário sobre isso, apenas murmurou:
– Aliás, ele está grato. Pelo que você fez. Apesar de ter exagerado um pouco, mas... disse que você secretamente sempre foi um cavalheiro.
Oh, sim. Totalmente. Essa porcaria era seu nome do meio, claaaro.
Qhuinn se perguntou o que o cara pensaria se soubesse que teve vontade de arrastá-lo para fora da casa pelo seu lindo cabelo loiro. Talvez amarrá-lo no chão de cascalho perto da fonte e passar o carro por cima dele algumas vezes.
Na verdade, não, o cascalho não era a superfície correta. Melhor seria dirigir o carro até o saguão e fazer isso lá mesmo. Era melhor ter algo bem duro debaixo do corpo... como quando se corta um pedaço de carne numa tábua de madeira.
“Ele é seu primo, pelo amor de Deus!”, uma voz disse baixinho dentro dele.
“E daí?”, a outra metade respondeu.
Antes de enlouquecer completamente e adquirir um distúrbio de personalidade múltipla, afastou-se de toda aquela coisa homicida.
– Bem, é melhor eu ir. Vou sair com John e Xhex.
– Desço em dez minutos. Preciso me vestir.
Quando Qhuinn olhou o belo rosto de seu melhor amigo, sentiu como se nunca tivesse conhecido aquele cabelo vermelho, aqueles olhos azuis, aqueles lábios, aquele queixo. E foi por causa da longa história que já viveram juntos que procurou por algo para dizer, algo que os levasse de volta ao que tinham sido.
Tudo o que lhe ocorreu foi... Sinto saudades. Sinto tanta saudade de você que até machuca, mas não sei como encontrá-lo mesmo parado na minha frente.
– Certo – Qhuinn disse. – Vejo você na Primeira Refeição.
– Certo.
Qhuinn colocou seu corpo em movimento e caminhou até a porta de seu quarto. Quando deslizou a mão pela maçaneta de bronze, a voz saiu de sua garganta, alta e clara:
– Blay.
– Sim?
– Cuide-se, cara.
Agora era a voz de Blay que estava rouca ao ponto de se quebrar:
– Sim. Você também.
Porque, afinal, “cuide-se” era o que Qhuinn sempre dizia quando estava deixando alguém ir.
Entrou e fechou a porta. Movimentando-se mecanicamente, pegou os coldres para suas adagas, as armas e sua jaqueta de couro.
Engraçado, mal conseguia se lembrar de quando perdeu a virgindade. Lembrava-se da fêmea, claro, mas a experiência não havia deixado nenhum tipo de impressão permanente. Nem mesmo os orgasmos que tinha proporcionado e recebido desde então. Apenas muita diversão, muito suor e muitos alvos identificados e conquistados.
Nada além de transas que eram facilmente esquecidas.
Porém, seguindo em direção ao saguão, deu-se conta de que nunca esqueceria a primeira vez de Blay pelo resto de sua vida. Os dois já estavam se distanciando há algum tempo, mas agora... o último frágil fio que os conectava, aquele vínculo, havia sido cortado.
Que pena que a liberdade se parecia mais com uma prisão do que um horizonte.
Quando suas botas atingiram o chão de mosaico no alto das escadas, aquele velho hino de John Mellencamp ecoou em sua mente, e apesar de sempre ter gostado da música, só agora entendia seu verdadeiro significado.
Desejou que apenas gostar da música ainda fosse o caso.
Life goes on... long after the thrill of living is gone...
No banheiro de John, Xhex permaneceu sob a água quente com os braços sobre o peito e os pés plantados no chão dos dois lados do ralo. A água batia em sua nuca antes de escorrer por seus ombros e descer por sua coluna.
A tatuagem de John...
Maldição...
Fez aquilo como um memorial a ela... gravando seu nome em sua pele para que ficasse com ele para sempre. Afinal, não havia nada mais permanente do que isso... inferno, era por isso que na cerimônia de vinculação os machos tinham suas costas esculpidas: anéis poderiam ser perdidos. Documentos poderiam ser rasgados ou queimados ou extraviados. Mas tinha que levar sua pele com você onde quer que fosse.
Cara, nunca deu a mínima para aquelas fêmeas com seus vestidos, seus cabelos tão longos e bonitos, a maquiagem por todos os poros e a porcaria de sua natureza gentil. De alguma maneira, aqueles adornos de feminilidade pareciam uma declaração de fraqueza. Mas agora, por um breve momento, viu-se invejando a seda e o perfume. Que orgulho elas deviam sentir ao saber que seus machos carregavam seu compromisso junto de seus corpos todas as noites de suas vidas.
John seria um hellren maravilhoso...
Jesus... quando ele se vinculasse, o que diabos ia fazer com aquela tatuagem? Colocaria o nome de sua fêmea por cima do dela?
Certo, Xhex não estava tão empolgada com o lance de ser a primeira da lista naqueles ombros durante o resto da vida. De verdade. Não, de forma alguma. Porque isso faria dela uma grande egoísta, não faria?
Oh, espere, aquela sempre foi a trilha sonora de sua vida.
Obrigando-se a sair do chuveiro, enxugou-se rapidamente e trocou todo o calor e umidade aconchegante do ar do banheiro pelo beijo frio das coisas no quarto.
Parou assim que passou pelo batente. Do outro lado, o edredom estava mais ou menos esticado: alguém arrumou um pouco a bagunça que tinham deixado para trás.
Seus cilícios estavam na base do colchão. Ao contrário dos lençóis e cobertas, foram arranjados com cuidado, as argolas polidas, as duas extensões bem alinhadas.
Ela andou em volta e correu a ponta do dedo pelo metal farpado. John os guardou para ela... e o instinto lhe dizia que ele os teria conservado mesmo se ela nunca tivesse voltado.
Um legado e tanto.
E se estava hospedada na casa para passar a noite, teria que colocá-los. Ao invés disso, vestiu suas roupas de couro sem eles, colocou a camiseta regata e recolheu suas armas e jaqueta.
Graças a ter brincado de estátua embaixo do chuveiro, tinha perdido a Primeira Refeição, então foi direto para a reunião no escritório de Wrath. Todos da Irmandade, bem como John e os meninos, estavam aglomerados dentro da sala decorada ao estilo francês de cor azul pálida... e quase todos, incluindo George, o cão guia, estavam andando sem rumo pelo local.
A única pessoa que faltava era Wrath. O que colocava um freio nas coisas, não?
Seus olhos procuraram e se mantiveram fixos aos de John, mas após um curto e vago aceno de cabeça em sua direção, ele olhou para frente, observando apenas as pessoas que vagavam em seu campo de visão. Ao seu lado, Tohrment estava alto e forte, e lendo a grade emocional da dupla, sentiu que tinham restabelecido uma conexão, algo que significava muito para os dois.
O que a deixava muito feliz. Odiava a ideia de John ficar sozinho depois que ela partisse e Tohrment era o pai que ele nunca teve.
Vishous pegou furioso um de seus cigarros artesanais.
– Mas que inferno! Temos que ir, mesmo que o rei não esteja aqui. Estamos perdendo a escuridão.
Phury encolheu os ombros.
– Contudo, ele deu uma ordem direta para essa reunião.
Xhex estava inclinada a concordar com V., e considerando a maneira como John deslocava o peso do corpo para trás e para frente em suas botas de combate, não era a única.
– Olha, vocês podem ficar aqui – ela rosnou. – Mas eu vou sair agora.
Quando John e Tohr olharam para ela, teve uma estranha sensação percorrendo sua mente, como se não fosse apenas os dois machos que tinham se reunido para encontrar Lash, mas ela também estava integrada com eles.
Afinal, todos tinham contas a acertar, não tinham? No que dizia respeito à Sociedade Redutora ou a Lash, os três carregavam todo o tipo de ressentimento que instigava um assassino.
Sempre representando a voz da razão, Tohrment cortou a tensão:
– Certo, tudo bem, assumo a responsabilidade pela ordem de sairmos. Com certeza, sua pequena “sessão de exercícios” do Outro Lado ainda está acontecendo, e ele não ficaria satisfeito se recuássemos essa noite só por causa dele.
Tohr dividiu todos em equipes. Xhex, Z., ele mesmo e os meninos iriam para o endereço encontrado nos registros do carro chamativo, e o resto da Irmandade se dividiria entre a fazenda e o parque de skate Xtreme. Em pouco tempo, o grupo desceu a escadaria, atravessou o saguão e saiu pela porta da frente. Um por um, desapareceram no ar frio...
Quando Xhex tomou forma novamente, estava em frente a um prédio de apartamentos no centro da cidade, no velho distrito industrial... apesar de que “prédio” era uma palavra muito forte para o lugar. A estrutura de tijolos de seis andares tinha janelas tortas e um telhado cedendo que necessitava do equivalente a uma reeducação de postura... ou talvez de um pouco de gesso para imobilizar tudo. Ela tinha certeza de que a linha de crateras na frente da coisa tinha sido criada por uma metralhadora ou talvez por uma automática cujo atirador sofresse de tremores.
Fazia com que se perguntasse como o departamento de trânsito aceitou o endereço quando tiraram a licença do carro. Por outro lado, talvez ninguém fosse verificar se o que estava na licença era habitável.
– Encantador – resmungou Qhuinn. – Se quiser criar ratos e baratas.
Vamos dar uma olhada nos fundos, John sinalizou.
Havia dois becos que percorriam os dois lados daquele lixo, e escolheram aleatoriamente o da esquerda sem qualquer motivo específico. Andando rápido pelo local, passaram pelos detritos mais comuns em uma cidade... nada de novo, nada de extraordinário, apenas latas de cerveja, embalagens de doces e páginas de jornal.
Xhex corria apoiando-se sobre a parte da frente dos pés enquanto seguia com os machos. O grupo entrou num ritmo acelerado que os levou até o beco de forma eficiente e com relativa calma. A parte de trás da estrutura não era nada além de tijolos vermelhos com metros de fuligem. A única diferença era que a porta de aço reforçado abria-se para um pequeno estacionamento, ao invés de algum corredor de entrada ou algo assim.
Nenhum redutor. Nenhum pedestre humano. Nada além de gatos vadios, asfalto sujo e lamentos distantes de sirenes.
A sensação de impotência tomou conta dela. Droga, podia aparecer ali ou naquele parque ridículo ou na zona rural. Mas não havia como fazer o inimigo vir até ela. E tinham tão poucas pistas para continuar.
– Pelo amor de Deus – murmurou Qhuinn. – Onde diabos está a festa?
Sim, não era a única morrendo de vontade de lutar...
Vindo do nada, Xhex sentiu um formigamento percorrendo-a, o eco ressonante de algo que a princípio ela não entendeu. Olhou para o resto da equipe. Blay e Qhuinn estavam cuidadosamente sem olhar um para o outro. Tohr e John estavam andando ao redor. Zsadist tinha seu telefone em mãos para avisar os Irmãos que estavam no local indicado.
Aquela atração...
E, então, percebeu: estava sentindo o sangue dela em outro.
Lash.
Lash não estava longe.
Girando cegamente sobre os calcanhares, dirigiu-se para fora... primeiro andando, depois rompeu numa corrida. Ouviu gritarem seu nome, mas não havia como parar e explicar.
Nem como detê-la.
[N.T.] “A vida continua... mesmo depois que a alegria de viver acaba” é um verso da canção “Jack and Diane”, do cantor americano John Mellencamp.
CAPÍTULO 65
Do Outro Lado, Payne estava caída numa posição nada natural sobre o mármore duro. Sentia uma dor intensa... mas apenas acima da cintura. Não sentia qualquer agonia nas pernas ou nos pés, somente um formigamento desassociado que a fazia pensar em faíscas de fogo sobre gravetos úmidos. Logo acima do seu corpo quebrado, o Rei Cego estava inclinado, o rosto tenso... e a Virgem Escriba também apareceu, suas vestes negras e difusas flutuavam em círculos.
Não estava chocada por sua mãe ter vindo consertá-la magicamente. Como aquela porta que havia passado da ruína à salvação, sua querida mãe queria limpar, ordenar, fazer tudo perfeito.
– Eu... recuso – disse Payne novamente entre dentes. – Não consinto.
Wrath olhou por cima do ombro em direção à Virgem Escriba, em seguida olhou outra vez para baixo.
– Ah... ouça Payne, isso não tem lógica. Não consegue sentir suas pernas... sua coluna provavelmente está quebrada. Por que não a deixa ajudá-la?
– Eu não sou... um objeto inanimado que ela pode manipular à vontade... para agradar seus caprichos e fantasias...
– Payne, seja razoável...
– Eu sou...
– Você vai morrer...
– Então, minha mãe pode assistir minha morte! – ela gritou... e gemeu logo em seguida. Na sequência da explosão, sua consciência diminuía e retornava, seus olhos perdiam e retomavam o foco, a expressão chocada de Wrath tornou-se a base pela qual avaliava se havia desmaiado ou não.
– Espere, ela é... – o rei apoiou sua mão contra o chão para firmar sua posição agachada. – Sua... mãe?
Payne não se importava que ele soubesse. Ela nunca sentiu nenhum orgulho do fato de ser a filha da fundadora da raça. Na verdade, tinha procurado distanciar-se cada vez mais disso... mas o que importava agora? Se ela recusasse a “intervenção divina”, iria para o Fade. A dor que sentia lhe dizia isso.
Wrath virou-se em direção à Virgem Escriba.
– Isso é verdade?
Nenhuma resposta afirmativa, mas também nenhuma negação. E também não houve nenhum castigo por ter ousado ofendê-la com sua pergunta.
O rei olhou de volta para Payne.
– Jesus... Cristo.
Payne respirava com dificuldade.
– Deixe-nos, querido rei. Retorne para seu mundo e conduza seu povo. Não precisa de ajuda deste lado ou dela. É um belo macho e um guerreiro brilhante.
– Não vou deixar você morrer – ele bradou.
– Não tem escolha, tem?
– Até parece que não! – Wrath ficou em pé e olhou para baixo. – Permita que ela cure você! Não está pensando direito! Não pode morrer assim...
– Mas é claro que... posso. – Payne fechou os olhos, uma onda de exaustão a percorreu.
– Faça alguma coisa! – Era evidente que o rei estava gritando com a Virgem Escriba.
Pena que ela se sentia tão mal, Payne pensou. Caso contrário, teria se divertido com aquela declaração final de independência. De fato, a liberdade tinha vindo sobre as asas da morte, mas ela conseguiu. Enfrentou a mãe. Conquistou sua liberdade com sua recusa.
A voz da Virgem Escriba soou apenas mais alta que sua respiração.
– Ela negou a minha ajuda. Está me bloqueando.
Com certeza estava. Sua fúria era dirigida à mãe a tal ponto que não era difícil acreditar que aquilo podia funcionar como uma barreira para qualquer magia que a Virgem Escriba pudesse descarregar sobre a “tragédia” ocorrida.
Que na verdade parecia-se mais com uma benção.
– Você é a todo-poderosa! – A voz do rei era uma acusação áspera... mas ela não entendia porque ele se importava tanto. Porém, Wrath era um macho de valor, que sem dúvida colocaria a culpa sobre si mesmo. – Apenas conserte-a!
Houve um silêncio. Em seguida, uma resposta fraca:
– Não posso mais alcançar seu corpo... não mais do que posso alcançar seu coração.
Se a Virgem Escriba estivesse tendo alguma noção do que era ficar impotente... Payne poderia morrer em paz.
– Payne! Payne, acorde!
Suas pálpebras se abriram. Wrath estava a centímetros de seu rosto.
– Se eu puder salvá-la, você permitiria?
Não conseguia entender por que era tão importante para ele.
– Deixe-me...
– Se eu puder fazer isso, permitiria?
– Você não pode.
– Responda a maldita pergunta.
Era um macho tão bom, e o fato de sua morte pesar em sua consciência para sempre era uma tristeza.
– Desculpe-me... por isso. Wrath. Desculpe-me. Não é culpa sua.
Wrath virou-se contra a Virgem Escriba.
– Deixe-me salvá-la. Deixe-me salvá-la!
Após a exigência, o capuz da Virgem Escriba levantou-se por conta própria e sua forma, antes brilhante, parecia nada além de uma sombra desbotada.
O rosto e a voz exibidos foram os de uma bela fêmea em agonia tremenda.
– Não queria esse destino.
– Dizer isso não vai ajudar em nada. Vai me deixar salvá-la?
A Virgem Escriba deslocou seu olhar para o céu opaco e uma lágrima caiu de seus olhos sobre o piso de mármore tornando-se um diamante, saltando com um brilho e um lampejo.
Aquele objeto adorável seria a última coisa que Payne veria, pensou, enquanto seus olhos se tornavam tão pesados que não conseguia mais manter as pálpebras abertas.
– Maldição! – gritou Wrath – Deixe-me...
A resposta da Virgem Escriba veio muito distante:
– Não posso mais lutar contra isso. Faça o que quiser, Wrath, filho de Wrath. Melhor que fique longe de mim viva do que morta em meu chão.
Tudo ficou em silêncio.
Uma porta foi fechada.
Então, ouviu-se a voz de Wrath:
– Preciso de você no Outro Lado. Payne, acorde, eu preciso de você no Outro Lado...
Estranho. Era como se ele estivesse falando dentro de seu crânio... mas, provavelmente, estava inclinado atrás dela e falando em voz alta.
– Payne, acorde. Preciso de você para chegar ao meu lado.
Envolta em uma névoa, começou a balançar a cabeça... mas o impulso não foi bem aceito. Melhor ficar parada. Muito melhor.
– Eu não... não consigo chegar até lá...
Uma súbita vertigem a fez vacilar, os pés se moveram ao redor do corpo, sua mente era um turbilhão no qual ela girava. A sensação de ser sugada foi acompanhada de uma pressão em suas veias, como se o sangue estivesse se expandindo, mas, ao mesmo tempo, confinado em locais apertados.
Quando abriu os olhos viu um sublime brilho branco sobre ela.
Portanto, não havia se movido. Estava onde estivera deitada o tempo todo, sob o céu leitoso do Outro Lado...
Payne fez uma careta. Não, aquele não era o céu estranho que havia sobre o santuário. Aquilo era um... teto?
Sim... reconhecia aquilo. E, de fato, em sua visão periférica, percebia as paredes... quatro paredes azuis pálidas. Havia luzes também, só que não igual às que se lembrava... nada de tochas ou velas, mas coisas que brilhavam sem chamas.
Uma lareira. Uma... grande mesa e um trono.
Não foi ela quem trouxe seu corpo até ali. Não tinha forças. E Wrath não tinha poderes para transportá-la. Havia apenas uma explicação. Foi expulsa por sua mãe.
Não tinha como voltar atrás; ela havia concedido seu desejo. Estava livre, para sempre.
Uma paz estranha a dominou, uma paz que significava o manto calmo da morte... ou a percepção de que a luta tinha acabado. Viva ou morta, aquilo que a definiu por anos havia terminado. Um peso foi retirado, permitindo uma vida nova em seu corpo ainda paralisado.
O rosto de Wrath entrou em seu campo de visão, seus longos cabelos negros estavam soltos em seus ombros e caíam para frente. E, naquele momento, um cão loiro mergulhou sob o braço forte do rei, sua expressão indicava boas-vindas, como se ela fosse uma convidada inesperada, mas muito apreciada.
– Vou buscar a doutora Jane – disse Wrath acariciando o cão.
– Quem?
– Minha médica particular. Fique aqui.
– Como se... eu pudesse ir a algum lugar.
Balançou a coleira e então o rei saiu, sua mão firmava-se sobre um arreio que o conectava com o belo cão, as patas do animal ecoaram no chão quando ultrapassaram o limite do tapete e atingiram o piso de madeira.
Ele era mesmo cego. E aqui, deste lado, precisava dos olhos de outro ser para exercer sua função.
A porta se fechou e então ela não pensou em nada, exceto na dor. Estava flutuando, rendida pela agonia de seu corpo... e, ainda assim, apesar do incrível transtorno, estava no alto de uma estranha tranquilidade.
Por nenhuma razão em especial, percebeu que o ar tinha um cheiro encantador ali. Limão. Cera de abelha.
Simplesmente encantador.
O fato era que esteve naquele lado há muito tempo, e considerando a maneira como as coisas pareciam estranhas, era um mundo diferente. Mas ela se lembrou do quanto gostava dele. Tudo fora imprevisível e, portanto, cativante...
Algum tempo depois, a porta se abriu e ela ouviu mais uma vez o barulho da coleira do cão e sentiu a poderosa essência de Wrath. E havia alguém com eles... que não se mostrava de uma forma que Payne pudesse processar. Mas, definitivamente, havia outra entidade na sala.
Payne forçou-se a abrir os olhos... e quase recuou.
Não era Wrath em pé acima dela, mas uma fêmea... ou pelo menos parecia ser uma mulher. O rosto tinha traços femininos... só que as feições e os cabelos eram translúcidos e fantasmagóricos. E quando seus olhares se encontraram, a expressão da fêmea mudou de preocupada para chocada. De repente, ela teve que se apoiar no braço de Wrath.
– Oh... meu Deus... – a voz era rouca.
– É tão óbvio assim, doutora? – disse o rei.
Quando a mulher se esforçou para responder, percebeu que não era o tipo de reação que se esperava de um médico. Na verdade, Payne pensou que a doutora tinha plena consciência de como tinha sido ferida. No entanto, talvez ela não estivesse muito certa quanto à gravidade do seu estado.
– Na verdade, estou... – Payne disse.
– Vishous.
O nome congelou seu coração.
Pois não ouvia falar dele há mais de dois séculos.
– Por que fala sobre meu ente morto? – ela sussurrou.
A face fantasmagórica da médica assumiu uma forma tangível e seus olhos verde-folha revelaram uma profunda confusão, sua carne exibia uma palidez de quem luta contra as emoções.
– Seu ente morto?
– Meu irmão gêmeo... há muito passou para o Fade.
A médica balançou a cabeça, as sobrancelhas se estreitaram ainda mais sobre o olhar inteligente.
– Vishous está vivo. Estou vinculada a ele. Está vivo e bem aqui.
– Não... não pode ser. – Payne desejava chegar mais perto e agarrar o braço sólido da médica. – Você está mentindo... ele está morto. Há muito tempo.
– Não. Ele está muito vivo.
Payne não conseguia entender as palavras. Sempre soube que ele tinha partido, que foi perdido muito jovem para o misericordioso Fade...
Soube por sua mãe. É claro.
Será que a fêmea a impediu de conhecer o próprio irmão? Como alguém poderia ser tão cruel?
De repente, Payne expôs suas presas e rosnou baixo em sua garganta, o fogo da raiva substituindo sua agonia.
– Vou matá-la por isso. Juro que vou tratá-la como fiz com nosso pai.
CAPÍTULO 66
John saiu atrás de Xhex no instante em que ela deixou o grupo e começou a correr. Não gostou da atitude independente ou da direção que tomava – estava indo direto para um beco onde ninguém sabia se havia uma saída ou uma parede de tijolos no final.
Conseguiu alcançá-la, tomando seu braço para chamar a atenção. O que o levou a lugar algum. Ela não parou.
Aonde você vai?, ele tentou sinalizar, mas era difícil fazer isso com uma pessoa ignorando, ao mesmo tempo que tentava correr à toda velocidade...
Ele teria assobiado, mas isso era muito fácil de ignorar, então tentou segurar o braço dela outra vez, mas Xhex o afastou com um empurrão, focando-se exclusivamente em um destino que não podia ver ou sentir. Finalmente, ele simplesmente pulou na frente dela e bloqueou seu caminho, em seguida, a obrigou a observar suas mãos.
Onde diabos você está indo?
– Posso senti-lo... Lash. Ele está perto.
John pegou sua adaga enquanto articulava, Onde?
Ela virou-se, retomou sua perseguição e Tohr uniu-se a eles. Quando os outros começaram a vir, John balançou a cabeça e acenou para que ficassem em seus postos. Apoio adicional em campo era uma coisa inteligente, mas armas demais nesta situação não seria uma vantagem. Estava indo pegar Lash e a última coisa que precisava era de mais dedos no gatilho apontando para seu alvo.
No entanto, Tohr entendia. Sabia muito bem porque John tinha que vingar a sua mulher. E Qhuinn tinha que ir junto. Mas era isso, nada de preparar mais lugares à mesa com xícaras e pires, dando boas-vindas como se fosse uma pequena reunião para um chá.
John ficou ao encalço de Xhex, que parecia escolher sabiamente quando se tratava de becos. Em vez de um beco sem saída, a rua irregular fazia uma curva para a direita e se insinuava entre outros armazéns vazios ao aproximar-se do rio. Sabia que estavam chegando muito perto da água quando o cheiro dos peixes mortos e algas infiltrou-se em seu nariz e o ar parecia ficar mais frio.
Encontraram o Mercedes AMG preto estacionado em frente a um hidrante. O sedan fedia a redutor, e enquanto Xhex olhava em volta como se procurasse a próxima direção, John não estava no clima para esperar.
Fechou um dos punhos e socou o para-brisa dianteiro.
O alarme enlouqueceu e olhou para dentro do carro. Havia algum tipo de resíduo oleoso no volante e o couro creme estava sujo, com manchas. Tinha plena certeza de que as manchas negras eram sangue de redutor... e que a cor de ferrugem era de sangue humano. Jesus, o banco de trás parecia como se tivesse sido atingido por um gato tendo um ataque de espasmos, os arranhões eram tão profundos em alguns lugares que o enchimento do estofado estava à mostra.
John franziu a testa, lembrando-se daqueles dias no centro de treinamento. Lash sempre foi tão minucioso com suas coisas, desde a roupa que usava até a maneira como seu armário era organizado.
Será que aquele não era o seu carro?
– O carro é dele – disse Xhex, colocando as palmas das mãos sobre o capô. – Posso sentir seu cheiro em todos os lugares. O motor está quente. Porém, não sei onde ele está.
John rosnou diante do pensamento do cara ter ficado tão perto de sua mulher que ela o conhecia pelo cheiro. Maldito desgraçado filho da mãe...
Assim que sua raiva já estava saindo do controle, Tohr agarrou-o por trás do pescoço e lhe deu uma sacudida.
– Respire fundo.
– Ele tem que estar por aqui. – Xhex olhou para o edifício em frente a eles, então olhou de ponta a ponta o beco onde estavam.
Quando John sentiu uma dor ardente na mão esquerda, puxou o braço. Estava apertando sua adaga com tanta força que o cabo rangeu em protesto.
Seus olhos deslizaram para os de Tohr.
– Você vai pegá-lo – o Irmão sussurrou. – Não se preocupe com isso.
Lash esperava que os homens de Benloise disparassem contra ele quando encarou os marmanjos durões. Uma distância de quase dez metros os separava e todos estavam bastante tensos.
Enquanto olhava para eles, esperava que dessem uma de caubóis bons no gatilho e tentassem alguma coisa. Os dois bandidos seriam uma ótima adição para seu exército – conheciam o negócio e, com certeza, fizeram por merecer o reconhecimento que tinham junto a Benloise: havia muitos quilos nas maletas de metal que tinham em suas mãos, mas os humanos estavam controlados e calmos.
Armados até os dentes, também.
Assim como Lash. Caramba, aquilo parecia uma festa rave com todas as armas e drogas... e se sentiria muito melhor quando houvesse menos partes do corpo dele passíveis de levar um tiro. A sombra era melhor do que a carne, a qualquer hora.
– Aqui está a arte – disse o sujeito do lado esquerdo enquanto erguia a maleta. – Senhor.
Ah, sim, era o mesmo cara que tinha visto a confusão toda com Benloise. Isso explicava porque ambos estavam sendo tão educados.
– Vamos ver o que você tem – murmurou Lash, mantendo o cano de sua arma calibre quarenta apontado para eles. – E vamos manter as mãos visíveis, ok?
A breve exibição das mercadorias foi eficiente e satisfatória.
Lash assentiu.
– Deixem o produto. E vão embora.
Os humanos fizeram como na brincadeira “o mestre mandou”, deixaram a droga, recuaram e caminharam rapidamente na direção oposta, mantendo as mãos ao lado do corpo.
Assim que viraram e os passos continuaram a ecoar ao longe, Lash caminhou até as maletas e as abriu com suas mãos fantasmagóricas. Sob seu comando, os trincos pularam para cima e as duas cargas de cocaína levitaram do asfalto até suas garras...
O som estridente do alarme de um carro chamou sua atenção, o sinal enlouquecido vinha do beco onde tinha deixado sua Mercedes.
Malditos humanos, montes de lixo do centro da cidade...
Lash franziu a testa enquanto seus instintos saíam dele como ondas e localizavam o que tinha sido tirado dele.
Ela estava ali.
Xhex... sua Xhex estava ali.
Enquanto o que restava de seu lado vampiro rugia com possessividade, Lash sentiu seu corpo vibrando até que começou a mover-se sobre o asfalto com o vento, inclinando-se com um impulso mental e não com as pernas. Mais rápido. Mais rápido...
Virou a esquina e lá estava ela, em pé ao lado de seu carro, transpirando sexo puro com suas roupas de couro e sua jaqueta. No instante em que ele apareceu, Xhex se virou para ele como se a tivesse chamado.
Mesmo na rua escura, Xhex estava resplandecente, a luz ambiente da cidade envolvia seu corpo, como seu carisma interior exigia. Caramba. Estava muito atraente, especialmente assim, com os equipamentos de combate, e quando sentiu um formigamento entre seus quadris, estendeu a mão para baixo.
Algo estava duro. Por trás de seu zíper, havia algo pronto para ela.
Com uma injeção de adrenalina que era melhor do que qualquer cocaína, divertiu-se com a ideia de como seria tomá-la em público. Seu membro havia assumido algum tipo de forma e isso significava que estava de volta aos negócios... bem a tempo.
Quando ela encontrou seus olhos, ele diminuiu a velocidade e focou em quem estava com ela. O Irmão Tohrment. Qhuinn, a falha genética díspar. E John Matthew.
O público perfeito para alguma coisa ao estilo Laranja Mecânica.
Mas. Que. Beleza.
Lash abaixou-se no chão e deixou as maletas no asfalto. Os machos idiotas que a acompanhavam estavam todos ocupados disparando várias ondas de fúria... mas não sua Xhex. Não, ela era mais forte que isso.
– Oi, querida – ele disse. – Sentiu minha falta?
Alguém soltou um rugido que lembrou seu rottweiler, mas dane-se, agora que tinha a atenção de todos, iria aproveitar seu momento em cena. Após tirar o capuz, estendeu o braço, suas mãos fantasmagóricas desfizeram as tiras negras que cobriam seu rosto para revelar seus traços.
– Jesus Cristo... – Qhuinn murmurou. – Você parece um zumbi...
Lash não se dignificou a dar uma resposta, principalmente porque a única coisa que importava era a fêmea com roupa de couro. Obviamente, ela não esperava sua transformação... e a maneira como recuou? Melhor do que um abraço e um beijo. Deixar ela com nojo era tão bom quanto excitá-la... e seria muito mais divertido quando conseguisse trazê-la de volta para passarem algum tempo numa suíte nupcial.
Lash sorriu e proferiu sua nova e melhorada voz pelo ar:
– Tenho planos para você e para mim, vadia. Claro, vai ter que implorar por isso...
A maldita fêmea desapareceu.
Desvaneceu no ar.
Em um momento ela estava ao lado do carro, no outro, não havia nada além de ar. Contudo, a vadia ainda estava no beco. Podia senti-la, só não podia vê-la...
O primeiro tiro que ecoou veio por trás dele e acertou no ombro... ou não, como foi o caso. A capa de chuva foi retalhada com o impacto, mas como não havia carne por baixo Lash não deu a mínima... e tudo que ele sentiu foi uma estranha pontada.
Óóótimo. Caso contrário, aquilo poderia ter doído.
Girou a cabeça, sinceramente impressionado pela forma como ela foi previsível e como sua mira era ruim.
Só que não foi Xhex quem disparou o tiro. Os meninos de Benloise haviam aparecido com reforços, e ainda bem que tinham péssima pontaria. A última vez que verificou, o peito ainda estava sólido, portanto, se acertassem alguns centímetros abaixo e para o centro ele poderia ter uma peneira no lugar do coração.
Furioso com a maldita coragem dos desgraçados traficantes de drogas, Lash formou uma bola de luz na palma de sua mão.
Ao se esquivar por uma porta, lançou aquele acúmulo de energia sobre os humanos, proporcionando um grande espetáculo ao acertar os bastardos como pinos de boliche e iluminando seus corpos quando foram lançados para longe.
Naquele momento, mais Irmãos haviam chegado e todos começaram a atirar, várias armas funcionavam a todo vapor – o que não era grande coisa até Lash levar uma bala no quadril. A dor ardente que percorreu seu tronco fez seu coração ricochetear. Enquanto amaldiçoava e caía, seus olhos se deslocaram para o beco.
John Matthew foi o único que não se protegeu: a equipe dos Irmãos se escondeu atrás do Mercedes e os rapazes de Benloise tinham se arrastado para trás da carcaça enferrujada de um jipe.
Mas John Matthew tinha suas botas de combate plantadas no chão e as mãos abaixadas ao lado do corpo.
O maldito se mostrava como um ótimo alvo. Era quase fácil demais.
Lash invocou outra bola de energia na palma da mão e gritou:
– Está se matando, como se colocasse uma arma na cabeça, seu filho de mãe!
John começou a avançar, presas expostas, um ímpeto frio emanando de seu corpo.
Por um momento, Lash sentiu uma pontada de tensão infiltrando-se em sua nuca. Aquilo não podia estar certo. Ninguém em seu juízo perfeito avançaria em sua direção daquele jeito.
Era suicídio.
CAPÍTULO 67
Planos, planos, planos...
Ou, em outras palavras, besteira, besteira, besteira...
Xhex tinha o plano perfeito quando se ocultou como faziam os sympathos e saiu sorrateiramente de vista. Como assassina, se orgulhava não só do seu índice de sucesso, mas do talento que mostrava em seu trabalho, e essa vingança seria muito boa. Seu “plano” era atacar Lash pela lateral, invisível, e cortar sua garganta antes de cuidar melhor dele... enquanto olhava em seus olhos e sorria como a vadia louca que era.
Primeiro empecilho? Que porcaria tinha acontecido com ele desde a última vez que o viu? A revelação que ele fez descobrindo a cabeça a surpreendeu bastante. Não restava carne alguma em seu rosto; não havia nada além de fibras musculares pretas ensebadas, ossos descobertos e dentes brancos brilhantes. E suas mãos também não estavam normais. Tinham forma, mas não substância. Na noite sombria... não eram nada além de uma sombra mais profunda de escuridão.
Graças a Deus escapou dele – embora talvez toda aquela decadência fosse a razão de ter sido capaz de fugir de sua prisão: parecia lógico concluir que os poderes dele estavam enfraquecendo também.
Mas tanto faz... seu segundo problema na Terra dos Planos? John. Que naquele exato momento estava em pé no centro do beco praticamente com uma placa onde se lia ATIRE AQUI pendurada em seu peito.
Estava bastante óbvio que não havia qualquer raciocínio lógico para se discutir com ele – mesmo que tomasse forma bem perto de seu ouvido e gritasse em seu cérebro, sabia que não havia como desviá-lo do caminho. Ele exibia todo um instinto animal ao confrontar diretamente seu inimigo, presas expostas como as de um leão, corpo curvado para frente como se fosse atropelar o cara.
Pode apostar que John iria morrer se não procurasse abrigo, mas não parecia se importar e o motivo era claro: seu aroma de vinculação era mais alto que qualquer barulho que pudesse fazer com sua garganta, o cheiro apimentado era como um rugido que sobrepunha qualquer outro aroma, desde o odor da cidade à transpiração do rio, até o fedor de redutor que flutuava do corpo apodrecido de Lash.
Em pé no beco arenoso, John era o macho primordial protegendo sua fêmea – e, por essa razão, era tudo que ela não queria em tal situação: era evidente que a segurança pessoal de John não significava nada para ele, seu objetivo superava todo seu bom senso e treinamento específico.
Moral da história? Ele não seria capaz de sobreviver àquela bola de energia que Lash estava segurando na palma de sua mão... e isso mudava tudo em seu mundo.
Novo plano. Nada mais de se ocultar. Nada de incapacitar, desarmar, desmembrar. Nada de extrair dor pela agonia que havia passado, nada da rotina de Jack o Estripador.
Quando tomou forma e deu um bote em Lash, era uma questão de salvar John, não vingar a si mesma. Pois descobriu que na hora da verdade... John era a única coisa que importava para ela.
Xhex agarrou Lash pela cintura no exato momento em que ia lançar sua bola de energia, e embora tenha conseguido levá-lo ao chão consigo, ele deu um jeito de corrigir seu tiro... e atingiu John direto no peito.
O impacto o lançou longe na calçada, quase arrancando o corpo das botas.
– Seu maldito desgraçado! – ela gritou no rosto despido de Lash.
Os braços do filho da mãe a envolveram, fechando-se com uma força incrível. E enquanto a arremessava ao redor e a segurava na calçada embaixo dele, sua respiração era quente e asquerosa no rosto dela.
– Peguei você – ele zombou, esfregando seus quadris nos dela, a ereção era o suficiente para deixá-la enojada.
– Vá se ferrar! – Com um rápido puxão, Xhex o acertou direto no... bem, no que se passava por um nariz... com um golpe de cabeça que o fez uivar.
Infelizmente, não conseguiu outro golpe tão preciso enquanto lutavam pelo controle, rolando ao redor, pernas se entrelaçando, aquela horrível ereção empurrando-a. Ele conseguiu prender um de seus pulsos, mas pelo menos ela conseguiu manter o outro fora do caminho.
O que significou que no momento certo, conseguiu colocar a mão entre eles, agarrar suas bolas e torcê-las tão apertado que se não fosse por suas calças, teria arrancado as malditas coisas.
Lash soltou uma maldição ofegante e ficou rígido, provando que poderia até ser um semideus do lado negro, mas era um maldito mortal quando se tratava de levar um golpe nas joias da casa.
Agora era ela quem estava no controle daquele joguinho no chão, girando-o de costas e ficando em cima dele.
– Peguei você – ela rosnou.
Enquanto o segurava embaixo de seu corpo, a raiva tomou conta dela – ao invés de esfaqueá-lo pura e simplesmente, o agarrou pelo pescoço e apertou até tirar o ar de sua garganta.
– Você não vai ferrar o que é meu – rugiu para ele.
A cara horrível de Lash ficou muito perturbada e de alguma maneira sua voz saiu, mesmo com a pressão que ela fazia em sua laringe:
– Ele já foi bem ferrado. Ou não lhe contou daquele humano que...
Xhex socou o filho da mãe com tanta força que arrancou um dente.
– Nem se atreva a começar com isso...
– Começo por onde eu quiser, querida.
Com isso, ele se moveu como um fantasma, dissolvendo-se... mas não ficou muito tempo assim. Um instante depois, Xhex foi pega por trás, agarrada e erguida com força contra o corpo dele. Nos silenciosos segundos que se seguiram, ela teve um breve vislumbre dos humanos que estavam gemendo no asfalto e então foi virada de repente e usada como escudo quando se voltaram para os Irmãos.
Seus olhos não desperdiçaram tempo verificando as posições de sua equipe atrás do Mercedes ou avaliando quais armas estavam apontadas em sua direção e na de Lash.
John era a única coisa que importava.
E graças a Deus, a Virgem Escriba... ou a quem quer que concedesse bênçãos... ele estava se sentando e sacudindo qualquer lampejo do pesadelo que o atingiu.
Ao menos estava vivo.
Ela provavelmente não iria sobreviver àquilo, mas John... ele sobreviveria. Desde que ela conseguisse tirar Lash e a si mesma dali.
– Leve-me – ela sibilou para o bastardo. – Apenas leve-me e deixe-os.
Houve um sussurro de metal contra metal e então um canivete apareceu em frente ao seu rosto, a lâmina brilhando bem próxima ao seu olho... tão perto que conseguia ver a inscrição do nome do fabricante.
– Gosta de se envolver pessoalmente nas suas matanças. – A voz de Lash não estava muito precisa, a distorção fazia com que as palavras chegassem como ondas em seu ouvido. – Sei disso por causa do que fez com aquele idiota do Grady. Deu a ele uma grande e última refeição. Fico me perguntando... será que ele gostava de salsicha em vida tanto quanto na morte?
A ponta da arma saiu rapidamente de seu campo de visão... e então ela sentiu a ponta entrar na maçã de seu rosto e se arrastar lentamente para baixo.
A brisa estava fria. Mas seu sangue estava quente.
Fechando os olhos, tudo que conseguiu fazer foi repetir:
– Leve-me.
– Oh, eu levarei. Não se preocupe com isso. – Algo molhado pairou sobre o ferimento... era a língua dele lambendo o que havia brotado. Então, ele gritou: – Ela tem um sabor tão bom quanto o que eu me lembrava... Parem aí mesmo. Se alguém der outro passo, eu corto onde realmente importa.
A lâmina foi para a garganta dela e Lash começou a caminhar para trás, arrastando-a com ele. Por instinto, Xhex tentou entrar na mente dele com seu lado sympatho, mas estava bloqueada como se estivesse frente a uma parede de pedra. Não foi uma surpresa.
De repente, perguntou-se por que ele não ocultava os dois...
Lash estava mancando. Levou um tiro em algum lugar – e agora que estava mais focada, podia cheirar seu sangue e vê-lo brilhando na calçada.
Enquanto Lash continuava, aqueles pobres humanos entraram em seu campo de visão outra vez e pareciam cadáveres, muito pálidos e rígidos ao ponto de ficar impressionada por ainda conseguirem fazer algum barulho. O carro deles, ela pensou. Lash iria tentar tirar os dois dali dirigindo o carro que aqueles caras usaram para chegar até ali. E embora estivesse machucado em algum ponto, seu aperto nela era cruelmente forte. E aquela faca? Firme e preparada.
Xhex encarou John e teve certeza de que se lembraria da magnífica visão da vingança de seu guerreiro para sempre...
Franziu a testa ao sentir as emoções dele. Que... estranho. Aquela sombra que sempre sentiu no topo de sua grade emocional não era mais algo meramente secundário... era tão tangível e vívido quanto a constituição primária de sua psique.
De fato, enquanto John encarava o beco, as duas partes dele... tornaram-se uma.
Após John ter sido atingido por aquela bomba de energia, ficou confuso e desorientado, mas forçou sua cabeça a voltar ao jogo e de alguma maneira conseguiu se erguer do chão. Não conseguia sentir parte de seu corpo e a outra metade que não estava dormente gritava de dor, mas não importava. Um propósito mortal o animou, substituindo a batida de seu coração ao conduzir sua forma física.
Encarando a cena a sua frente, suas mãos se contraíram e seus ombros se apertaram. Lash estava usando Xhex como escudo vivo, todos os pontos vitais que poderiam ser atingidos estavam ocultos atrás dela.
A faca na garganta estava posicionada bem em cima de sua veia. Pressionando...
Virando-se rapidamente, a realidade se deformou e se distorceu diante dele, sua visão alternava entre foco e difusão, o que o fez perder a concentração no beco em que todos estavam. Piscando forte, amaldiçoou os truques que Lash tinha à sua disposição...
Só que o problema não era o que tinha atingido John. Era algo dentro dele – uma visão. Uma visão estava surgindo de algum lugar no fundo de sua mente, eliminando o que realmente estava vendo...
Um campo perto de um celeiro. Na escuridão da noite.
Sacudiu a cabeça e ficou aliviado quando o beco em Caldwell voltou a...
Um campo perto de um celeiro. Na escuridão da noite... uma fêmea importante era mantida presa em um abraço cruel, uma faca em sua garganta.
Em seguida, John viu-se abruptamente de volta ao presente, retornando ao distrito industrial... onde uma fêmea importante era mantida presa em um abraço cruel, uma faca em sua garganta.
Oh, Deus... era como se tivesse feito aquilo antes.
Caramba... tinha feito aquilo antes.
Um ataque epilético apoderou-se dele como sempre fazia, confundindo seus neurônios, enviando-o a uma viagem dentro da própria pele.
Normalmente, acabava caído no chão, mas o macho vinculado nele o manteve em pé, dando-lhe uma espécie de poder que vinha da alma, não do corpo: sua fêmea estava nos braços de um assassino e cada célula do corpo de John estava disposta a corrigir tal situação da maneira mais violenta e rápida possível.
Ou talvez de um jeito um pouco mais sangrento e mais rápido que isso.
Deslizou a mão ao longo do casaco para pegar sua arma... mas, droga, onde atiraria? Lash protegia bem seus órgãos vitais e sua cabeça grotesca estava muito perto da dela, não havia margem para erro.
A fúria de John gritou dentro dele...
Com sua visão periférica, viu o cano de uma arma surgir.
Piscou os olhos.
Um campo perto de um celeiro. Na escuridão da noite... uma fêmea importante estava presa em um abraço cruel, uma faca em sua garganta. Uma arma sendo apontada...
Piscou os olhos.
De volta a Caldwell, o amor de sua vida nas mãos de seu inimigo.
Piscou os olhos.
Uma arma disparando...
A explosão bem ao lado da orelha de John o trouxe com firmeza de volta à realidade e soltou um grito sem palavras, arremessando-se para frente como se pudesse pegar a bala.
Não!, gritou sem emitir som algum. Nããão...
Porém, foi um tiro perfeito. A bala atingiu Lash na têmpora... mais ou menos a dois centímetros de distância da cabeça de Xhex.
Em câmera lenta, John olhou por cima do ombro. A arma calibre quarenta de Tohrment estava estendida com uma firmeza inabalável no ar frio.
Por alguma razão, nem o atirador nem a precisão do tiro o surpreenderam, mesmo sendo algo cuja possibilidade de acontecer era de uma em um milhão.
Oh, Deus, tinham feito aquilo antes, não tinham? Exatamente... daquele jeito.
A realidade voltou e John olhou ao redor outra vez. Do outro lado, Xhex foi brilhante quando Lash foi atingido. Ela abaixou-se rapidamente para dar a Tohr um alvo maior e estava quase totalmente fora do caminho quando a segunda bala foi atirada.
O impacto número dois lançou Lash para longe de seus pequenos e preciosos mocassins, fazendo-o aterrissar deitado de costas.
John se desvencilhou dos vestígios de sua vertigem e foi correndo até sua fêmea, suas botas agarravam o chão mantendo-o firme, suas coxas empurraram toda a força para seus pés ao entrar em ação.
Seu único pensamento era salvar Xhex. Pegou a arma que precisava para realizar a ação: a adaga negra de quinze centímetros que estava no coldre em seu peito. Quando se aproximou deles, levantou o braço acima da cabeça, preparando-se para cair em cima de seu inimigo e apunhalar Lash, mandando-o de volta a...
O odor do sangue de Xhex mudou tudo, tirando a lâmina do caminho.
Oh, Jesus... o filho da mãe tinha duas facas. Uma estava na garganta dela. E outra penetrou o ventre de Xhex.
Ela rolou de costas, agarrando a lateral do corpo com uma careta.
Enquanto Lash se contorcia e apertava sua cabeça e peito, Tohr se aproximou com Qhuinn, Blay e os outros Irmãos, todas as armas apontavam para seu inimigo, então John não teve que se preocupar com cobertura enquanto avaliava o estrago.
John se inclinou sobre Xhex.
– Estou bem – ela arfou. – Estou bem... estou bem...
O diabo que estava! Ela mal conseguia respirar, e a mão que mantinha contra o ferimento estava coberta com sangue brilhante, fresco.
John começou a fazer sinais freneticamente.
Chamem a doutora Jane...
– Não! – ela disparou, agarrando o braço dele com sua mão ensanguentada. – Só uma coisa importa para mim nesse exato momento.
Quando os olhos dela encararam Lash, o coração de John bateu com força contra seu peito.
Por cima de sua cabeça veio a voz de Z. dizendo:
– Butch e V. estão trazendo o Escalade do Parque Xtreme... desgraçado... temos companhia.
John deu uma olhada ao redor do beco. Quatro redutores apareceram... evidenciando que o endereço no registro do Civic estava correto, apesar do momento ser muito ruim para comprovarem a informação.
– Vamos cuidar deles – Z. sussurrou enquanto ele e o grupo corriam para se encarregar dos recém-chegados.
O som de uma risada fez John se concentrar outra vez. Lash estava sorrindo muito, a terrível anatomia de seu rosto repuxava num sorriso doentio.
– John, cara... eu transei com ela, John... eu transei com força e ela gostou.
Uma raiva tremenda percorreu John com força, o macho vinculado nele gritava, a adaga em sua mão se ergueu mais uma vez.
– Ela implorou, John... – A respiração era vacilante, mas satisfeita. – Da próxima vez que estiver com ela... lembre-se de que preenchi...
– Eu nunca quis aquilo! – Xhex gritou. – Nunca!
– Fêmea imunda – Lash zombou. – É o que você era e o que sempre será. Imunda e minha...
Tudo diminuiu de velocidade para John, tudo desde a maneira como eles três estavam aglomerados, o modo que o vento soprava pelo beco até a luta que tinham iniciado a alguns metros à frente, perto do Mercedes.
Pensou no abuso que sofreu há muito tempo, naquela escadaria. Imaginou Xhex passando por uma humilhação e degradação semelhantes. Lembrou-se do que Z. havia dito sobre o que já tinha passado. Lembrou-se do que Tohr tinha sofrido.
E no meio das lembranças, sentiu o eco de algo acontecido há muito, muito tempo, algo sobre outro sequestro, outra fêmea injustamente ferida, outra vida arruinada.
O rosto horrível de Lash e sua forma decrépita se tornaram a personificação de tudo isso: uma representação tangível, infecta e podre de todo mal no mundo, de toda dor causada intencionalmente, de toda crueldade, degradação e prazer maligno.
Todas as ações realizadas em um momento, mas que tinham repercussões para toda a vida.
– Eu transei com ela, John, cara...
Num arco cortante, o braço de John que empunhava a adaga mergulhou para baixo.
No último segundo, virou o pulso de forma que a ponta do cabo atingiu Lash no rosto. E o macho vinculado nele queria fazer o que havia feito com aquele assassino na casa de arenito – simplesmente uma estripação completa.
Só que estaria impedindo uma justiça divina que poucas pessoas conseguiam. Seu mal nunca foi corrigido – aquele lixo humano que o feriu conseguiu escapar ileso. E o mal de Tohr nunca poderia ser reparado, porque Wellsie nunca mais voltaria.
Mas Z. conseguiu encerrar o caso dele.
E caramba, Xhex também poderia fazer isso... mesmo que aquela fosse a última coisa neste mundo que fizesse.
John tinha lágrimas nos olhos quando tirou uma das mãos ensanguentadas de Xhex de seu ferimento... e a abriu.
Virando sua adaga, colocou o cabo sobre a mão dela. Enquanto os olhos de Xhex queimavam, fechou os dedos em sua arma e deu a volta para ajudar a levantá-la e aproximá-la do inimigo.
O peito de Lash estava subindo e descendo, sua garganta sem pele flexionava enquanto puxava e soltava o ar. Quando a luz o iluminou e teve um vislumbre do que estava se aproximando, os olhos sem pálpebras se expandiram em suas órbitas e sua boca sem lábios exibiu dentes num sorriso que era algo próprio de filmes de terror.
Lash tentou dizer algo, mas não conseguiu soltar nada.
O que era bom. Já havia falado demais, feito demais, machucado demais.
A hora do ajuste de contas havia chegado.
Em seus braços, John sentiu Xhex reunindo forças e observou quando ela tirou a outra mão do ferimento para ajudar a segurar a arma. Seu olhar fixo queimava de ódio enquanto ela assumia o comando a partir dali, uma súbita onda de poder percorreu o corpo dela ao erguer os braços e formar um arco acima do tórax de Lash.
Entretanto, o bastardo sabia o que estava vindo e bloqueou o golpe cobrindo o peito.
Oh, inferno, não. John disparou e agarrou os bíceps do cara, forçando o idiota a se deitar no chão, exibindo o espaço necessário que ela precisava para atingi-lo, dando-lhe a possibilidade de um golpe claro e preciso.
Quando os olhos de Xhex se ergueram em direção aos de John, havia um tom revelador de vermelho e suas lágrimas faziam sua íris brilhar: toda a dor que ela carregava em seu coração estava tão exposta quanto a feiura de Lash; todo o peso dentro dela manifesto em seu olhar fixo.
Quando John acenou com a cabeça para Xhex, a adaga que estava nas mãos dela desceu e atingiu Lash diretamente no coração...
O grito do mal ecoou entre os edifícios, ricocheteando de um lado a outro até se extinguir com um ruído estranho, acompanhado por um vívido lampejo de luz.
O que levou Lash de volta ao seu maldito pai.
Quando o som e a iluminação desvaneceram, tudo que restou foi um leve círculo chamuscado no asfalto e o cheiro de açúcar queimado.
Os ombros de Xhex vacilaram e a lâmina da adaga chiou pela calçada quando ela caiu para trás: sua força a abandonava. John a segurou antes de atingir o chão, e Xhex o encarou, suas lágrimas se misturavam com o sangue em seu rosto e corriam por seu pescoço.
John a segurou apertado contra si, a cabeça dela se encaixou perfeitamente embaixo de seu queixo.
– Ele está morto – ela soluçou. – Oh, meu Deus, John... ele está morto...
Com suas mãos ocupadas, tudo que ele podia fazer era acenar com a cabeça.
O fim de uma era, ele pensou, olhando em direção a Blay e Qhuinn, que estavam lutando lado a lado com Zsadist e Tohrment contra os assassinos que haviam aparecido.
Deus, tinha a mais estranha sensação de continuidade. Ele e Xhex saíram brevemente do caminho da guerra, fazendo aquela pausa momentânea. Mas a luta nos becos sombrios de Caldwell continuariam sem...
Ela.
John fechou os olhos e escondeu o rosto nos cabelos encaracolados de Xhex.
Este era o final de jogo que ela queria, pensou. Pegar Lash... e escapar da vida.
Obteve exatamente o que queria.
– Obrigada – ele a ouviu dizer com dificuldade. – Obrigada...
Contra a maré de tristeza que tomou conta dele, John percebeu que aquela palavra era melhor que “eu te amo”. Na verdade, significava mais para ele que qualquer outra coisa que Xhex poderia ter pronunciado.
Ele deu o que ela queria. Quando realmente importava, havia feito o certo por ela.
E agora iria abraçá-la enquanto seu corpo ficava cada vez mais frio e Xhex se afastava para um local diferente de onde ele ficaria.
A separação duraria mais tempo do que o número de dias que ele a conhecia.
Tomando a palma da mão de Xhex, John a esticou mais uma vez. E então, com sua mão livre, sinalizou contra a pele dela em posições lentas e precisas:
A.M.A.R.E.I. V.O.C.Ê. P.A.R.A. S.E.M.P.R.E.
CAPÍTULO 68
A morte é dolorosa, confusa e muito previsível... exceto quando decidia exercer seu bizarro senso de humor.
Uma hora mais tarde, quando Xhex abriu um pouco os olhos, percebeu que não estava envolta às névoas do Fade... mas na clínica da mansão da Irmandade.
Um tubo estava saindo de sua garganta. E parecia que alguém tinha cravado uma lança enferrujada na lateral de seu corpo. E em algum lugar à esquerda, luvas estavam sendo retiradas.
A voz da doutora Jane estava baixa:
– Ela teve duas paradas cardíacas, John. Consegui deter o sangramento no intestino dela... mas não sei...
– Acho que ela está acordada – Ehlena disse. – Está voltando para nós, Xhex?
Bem, aparentemente ela estava. Sentia-se péssima, e tendo cortado uma variedade de estômagos ao longo dos anos, não podia acreditar que ainda tinha um batimento cardíaco... mas sim, estava viva.
Sendo mantida por um fio, mas viva.
O rosto pálido de John entrou em seu campo de visão, e ao contrário de sua pele, os olhos azuis ardiam como fogo.
Ela abriu a boca... mas tudo que saiu foi o ar de seus pulmões. Não tinha forças para falar.
Desculpe, ela articulou com a boca.
Ele franziu a testa. Balançando a cabeça, tomou a mão dela, acariciou e...
Ela deve ter desmaiado, porque quando acordou, John estava andando ao seu lado. O que estava acontecendo?... Ah, ela estava sendo movida para outro quarto. Porque outra pessoa estava entrando... alguém preso a uma maca. Uma fêmea, isso considerando a longa e negra trança que balançava ao lado dela.
Ela desmaiou de novo... e voltou para se alimentar do pulso de John. E desmaiou de novo.
Em seus sonhos, viu partes de sua vida voltando a um tempo do qual ela não se lembrava conscientemente. Houve encruzilhadas demais para determinar onde as coisas deveriam ter sido diferentes, onde o destino tinha sido mais uma maldição do que um presente. No entanto, o destino era como o passar do tempo: imutável, implacável e não tinha qualquer interesse na opinião daqueles que respiravam.
E ainda assim... enquanto sua mente revirava debaixo de seu corpo inconsciente, teve a sensação de que tudo aconteceu como deveria, que o caminho pelo qual ela havia passado a levou exatamente para onde deveria ir:
De volta para John.
Mesmo que isso não fizesse sentido algum.
Afinal, ela o conhecia há apenas um ano. O que dificilmente justificaria toda a extensão da história que parecia uni-los.
Mas talvez aquilo fizesse sentido. Quando se está inconsciente sob o efeito de morfina e prestes a entrar no Fade... as coisas parecem ser diferentes. E o tempo é capaz de mudar suas prioridades.
No quarto ao lado, Payne piscou com força e tentou averiguar para onde tinha sido movida. No entanto, nada conseguiu informá-la. As paredes do quarto eram cobertas por um azulejo verde pálido e havia muitas embalagens armazenadas. Mas ela não fazia ideia do que tudo aquilo significava.
Ao menos o transporte havia sido lento, cuidadoso e relativamente confortável. Mas, em seguida, algo foi colocado em suas veias para acalmá-la e relaxá-la... e ela estava realmente grata pela poção, seja lá o que fosse.
De fato, o espectro de sua morte era mais inquietante que seu desconforto ou a incerteza sobre se teria um futuro deste lado. Será que a médica tinha mesmo pronunciado o nome de seu irmão gêmeo? Ou será que aquilo foi uma fábula de sua mente dispersa e confusa?
Ela não sabia. Mas se importava muito.
Com sua visão periférica, viu muitas pessoas observando sua chegada ali, incluindo a médica e o Rei Cego. Havia também uma fêmea loira de rosto gracioso... e um guerreiro de cabelo negro a quem as pessoas chamavam pelo nome de Tohrment.
Exausta, Payne fechou os olhos, o ruído das vozes a levou à deriva em direção ao sono. Não sabia por quanto tempo esteve fora... mas o que a trouxe de volta foi a súbita consciência de uma nova presença chegando ao espaço abafado.
A pessoa era alguém que conhecia muito bem, e sua aparição produziu uma sensação de choque maior do que a realidade de que estava longe de sua mãe.
Quando Payne abriu os olhos, No’One se aproximou, mancando ao longo do suave chão com o capuz de seu manto protegendo seu rosto. O Rei Cego se aproximou por trás da fêmea, braços cruzados sobre o peito, seu cão lindo e loiro e sua rainha linda e morena estavam ao seu lado.
– Por que... está aqui? – Payne disse com voz rouca, ciente de que estava fazendo mais sentido dentro de sua cabeça do que suas palavras poderiam sugerir.
A Escolhida caída parecia bastante nervosa, contudo, Payne não sabia como podia concluir isso. Era algo sentido, mas não visto, uma vez que o manto negro da Escolhida a cobria por inteiro.
– Segure minha mão – Payne disse. – Gostaria de acalmá-la.
No’One negou com a cabeça sob o capuz.
– Sou eu quem tenho que acalmá-la. – Quando Payne franziu a testa, a Escolhida olhou de volta a Wrath. – O rei permitiu que eu ficasse em sua casa para servi-la.
Payne engoliu, mas a boca seca não ofereceu nenhum alívio à sua garganta.
– Não me sirva. Fique aqui... mas para servir a si mesma.
– Sem dúvida... há isso também. – A suave voz de No’One ficou mais tensa. – Em verdade, após sua partida do Santuário, aproximei-me da Virgem Escriba... e meu pedido foi concedido. Você me inspirou a desejar ações diferentes. Tenho sido covarde... mas não mais, graças a você.
– Fico... muito... feliz. – Contudo, o que ela fez para justificar tais motivações era um mistério para Payne. – E fico feliz que esteja aqui.
Com um empurrão explosivo, a porta do outro lado foi aberta com força, e um macho vestido em couro negro e cheirando a morte irrompeu dentro do quarto. A médica estava logo atrás dele, e quando deteve-se, a fêmea fantasmagórica colocou uma das mãos em seu ombro, como se tentasse acalmá-lo.
Os olhos de diamante do macho fixaram-se em Payne, e mesmo nunca tendo o visto antes, sabia quem era. Com a certeza de quando encarava o próprio reflexo.
Lágrimas saltaram espontaneamente de seus olhos, pois a última coisa que ficou sabendo sobre ele era que não respirava mais.
– Vishous – ela sussurrou desesperadamente. – Oh, irmão meu.
Ele ficou ao seu lado num piscar de olhos, tomando forma ao lado dela. Seu olhar incrivelmente inteligente avaliou suas feições e ela tinha a sensação que suas expressões eram idênticas, assim como a cor da pele: a surpresa e incompreensão também pairavam sobre os belos e duros traços dele.
Seus olhos... oh, os olhos de diamante. Eram como os dela – observou esses olhos encarando-a de volta em incontáveis espelhos.
– Quem é você? – ele disse asperamente.
De repente, ela sentiu algo em seu corpo adormecido... e o grande peso não veio de nenhum machucado físico, mas de uma calamidade interna. Não saber quem ela era, que foram separados por uma mentira, era uma tragédia que ela mal conseguia suportar.
A voz dela tornou-se forte:
– Eu sou... seu sangue.
– Jesus Cristo... – Ele ergueu uma mão envolvida numa luva preta. – Minha irmã...?
– Preciso ir. – A médica disse com urgência. – A fratura na espinha dela está além da minha especialidade. Preciso buscar...
– Ache aquele maldito cirurgião – Vishous rosnou, seus olhos ainda presos em Payne. – Ache-o e o traga aqui... não importa o quanto custe.
– Não voltarei sem ele. Tem minha palavra.
Vishous virou para a fêmea e capturou sua boca num beijo rápido e rígido.
– Deus... eu amo você.
O rosto fantasmagórico da médica ficou sólido enquanto olhavam um para o outro.
– Vamos salvá-la, confie em mim. Voltarei assim que possível... Wrath deu sua permissão e Fritz vai me ajudar a trazer Manny aqui.
– Maldita luz do sol. Chegará muito em breve.
– De qualquer maneira, prefiro você aqui. Você e Ehlena precisam checar os sinais vitais dela e Xhex ainda está em estado grave. Quero que tome conta delas.
Quando ele assentiu, a médica desapareceu no ar. Em seguida, Payne sentiu uma palma de mão quente envolver a sua. Era a mão de Vishous sem a luva: a conexão entre eles a relaxou de maneira que não conseguiria definir.
Na verdade, havia perdido sua mãe... mas se conseguisse superar aquilo, ainda tinha uma família. Neste lado.
– Irmã – ele murmurou. Não era uma pergunta, mas a constatação de um fato.
– Irmão meu. – Payne gemeu... antes de sua consciência deslizar e se afastar à deriva.
Mas ela iria voltar para ele. De um jeito ou de outro, não deixaria seu irmão gêmeo nunca mais.
CAPÍTULO 69
Xhex acordou sozinha no quarto ao lado da sala de operações. E logo percebeu que John não estava longe.
A vontade de encontrá-lo lhe deu forças para levantar-se e pendurar suas pernas para fora da cama. Enquanto esperava a diminuição do ritmo cardíaco, notou vagamente que sua roupa hospitalar tinha corações. Pequenos corações rosa e azul.
Não tinha energia sequer para se sentir ofendida. A lateral de seu corpo estava lhe matando e a pele estava pinicando por toda a parte. E ela tinha que procurar John.
Olhando ao redor, viu que a intravenosa em seu braço estava conectada em uma bolsa que pendia perto da máquina de monitoramento na cabeceira da cama. Droga. O que ela precisava era de um daqueles suportes com rodinhas para colocar o soro. Poderia usar a coisa para ajudar a se manter em pé com algum equilíbrio.
Quando finalmente colocou um pouco de peso sobre seus pés, ficou aliviada por não ter caído com a cara no chão. E, depois de um momento se orientando, pegou a bolsa de soro e a levou com ela, dando parabéns a si mesma por ser uma paciente tão boa.
A coisa parecia uma espécie de bolsa de mão. Talvez iniciasse uma nova moda.
Dirigiu-se até a porta que dava para o corredor, ao invés de passar pela sala de operações. Afinal, apesar da doutora Jane ter ajudado com sua fobia, tinha problemas demais para lidar e a última coisa que precisava era presenciar outra operação – e só Deus sabia o que estavam fazendo com a pobre fêmea que tinha sido trazida depois dela.
Xhex parou com um pé no corredor.
John estava no caminho do escritório, parado do lado de fora da porta de vidro e de frente para a parede. Seus olhos estavam fixos nas fissuras do concreto e sua grade emocional estava obscurecida ao ponto de deixar os instintos dela confusos.
Ele estava de luto.
John não tinha certeza se ela havia morrido ou não... no entanto, sentia como se já a tivesse perdido.
– Oh... John.
A cabeça dele moveu-se rapidamente em sua direção.
Droga, gesticulou, andando depressa até ela. O que está fazendo fora da cama?
Xhex começou a caminhar em sua direção, mas John foi até ela primeiro, apressando-se como se estivesse indo pegá-la nos braços.
Ela o deteve, balançando a cabeça.
– Não, estou firme...
Nesse momento, seus joelhos cederam e ele foi a única coisa que a impediu de cair no chão... o que a fez lembrar de estar naquele beco e do momento em que Lash a apunhalou.
John foi quem a salvou naquele momento também.
Com uma força suave, ele a carregou de volta para a sala de recuperação, deitando-a na cama e colocando a bolsa de soro no lugar.
Como está se sentindo?, ele assinalou.
Xhex o observou, enxergando tudo o que ele era, o lutador e o amante, a alma perdida e o líder... o macho vinculado que mesmo assim estava preparado para deixá-la ir.
– Porque fez aquilo? – ela disse com a garganta dolorida. – No beco. Porque me deixou matá-lo?
Os olhos vívidos e azuis de John focaram-se nos dela e ele encolheu os ombros.
Queria que tivesse isso. Era mais importante para você concluir... o desfecho, acho que é assim que se chama. Há muitas coisas no mundo que nunca mais poderão ser corrigidas e você mereceu a satisfação.
Ela riu um pouco.
– De uma maneira estranha... foi o ato de maior consideração que alguém já fez por mim.
Um leve rubor tingiu o rosto dele que, junto com seu queixo quadrado, deixou-o muito atraente. Mas qual parte dele não era assim?
– Então, muito obrigada – ela murmurou.
Bem, você sabe... não é exatamente o tipo de fêmea a quem um cara daria flores. Você meio que limita minhas opções.
O sorriso dela desapareceu.
– Não poderia ter feito isso sem você. Consegue entender isso? Você fez acontecer.
John balançou a cabeça.
Os meios não importam. O trabalho foi feito do jeito certo, pela pessoa certa. Isso é o que conta.
Ela voltou a pensar nele segurando Lash, fixando o desgraçado no chão para dar mais espaço a ela. A menos que colocasse o filho da mãe numa bandeja de prata com uma maçã na boca, John não poderia ter servido melhor seu sequestrador.
Ele a presenteou com o inimigo, colocando as necessidades dela acima das suas.
E quando ela pensava sobre os altos e baixos dos dois, esta era a única constante, não era? Ele sempre a colocava em primeiro lugar.
Agora foi Xhex quem balançou a cabeça.
– Acho que está errado. Os meios foram tudo... são tudo.
John deu de ombros outra vez e olhou para a porta pela qual ele havia passado com ela.
Ouça, quer que eu traga a doutora Jane ou Ehlena? Precisa de comida? Ajuda com o banheiro?
E lá estava ele novamente.
Xhex começou a rir... e depois que começou, não conseguia parar, mesmo com a lateral do corpo começando a gritar de dor e lágrimas vermelhas saltando aos olhos. Ela sabia que John a olhava como se tivesse perdido a cabeça e ela não podia culpá-lo. Também ouvia a nota de histeria que saía de sua boca... e pouco tempo depois, não estava mais rindo; estava chorando.
Cobrindo o rosto com as mãos, soluçou até não poder respirar, a explosão emocional foi tão grande que não tinha como mantê-la dentro de si. Ela simplesmente desmoronou, e pela primeira vez, não tentou lutar contra a maré.
Quando finalmente se acalmou, não se surpreendeu ao encontrar uma caixa de lenços de papel bem na sua frente... cortesia de John.
Ela agarrou um lencinho. E então imediatamente pegou outro e mais outro: depois de todo aquele espetáculo, a limpeza precisaria de muito mais do que apenas um.
Droga, seguindo essa teoria, talvez devesse usar os lençóis da cama.
– John... – Ela fungou enquanto enxugava os olhos; isso, associado a todos os pequenos corações que estava usando, praticamente selou o seu status de mocinha covarde. – Tenho uma coisa para lhe dizer. Já faz tanto tempo... muito tempo. Tempo demais.
Ele ficou tão quieto que nem sequer piscou.
– Deus, isso é difícil. – Mais malditas fungadas. – Ninguém pensaria que três palavrinhas seriam tão difíceis de dizer.
John exalou alto, como se tivesse levado um soco no estômago. Engraçado, ela se sentia da mesma forma. Mas, às vezes, apesar das ondas de náusea e da sensação de asfixia esmagadora, as pessoas tinham que falar o que estava em seu coração.
– John... – Ela clareou a garganta. – Eu...
O que foi?, ele articulou com a boca. Apenas diga. Por favor... diga.
Ela endireitou os ombros.
– John Matthew... sou uma completa idiota.
Quando ele piscou e fez parecer que sua boca estava prestes a se desencaixar, ela suspirou.
– Acho que foram quatro palavras, não?
Bem, sim... foram quatro palavras.
Deus, por um segundo... John obrigou-se a trazer sua mente de volta à realidade – porque só numa fantasia ela diria “eu te amo” para ele.
Não é uma imbecil, ele gesticulou. Quero dizer, idiota.
Ela fungou um pouco mais e o som era totalmente adorável. Droga, a visão dela era tão adorável. Recostada nos finos travesseiros, com todos os lenços amassados ao seu redor, o rosto vermelho, ela parecia tão frágil e bela, quase suave. E ele a queria em seus braços, mas sabia que ela gostava de ter o próprio espaço.
Sempre gostou.
– Eu sou sim. – Ela pegou outro lenço, mas ao invés de usá-lo, dobrou-o em quadrados precisos, reduzindo à metade e depois em um quarto, depois em alguns triângulos até não ser mais nada, apenas um pedacinho de papel entre os dedos.
– Posso perguntar uma coisa?
Qualquer coisa.
– Você poderia me perdoar?
John recuou.
Pelo quê?
– Por ser uma cabeça dura, narcisista, teimosa, um pesadelo emocionalmente reprimido. E não me diga que não sou nada disso. – Ela fungou de novo. – Eu sou uma sympatho. Sou boa em ler pessoas. Poderia me perdoar?
Não há nada para perdoar.
– Você está muito errado.
Bem, já estou acostumado que me digam isso. Já viu os idiotas com quem eu moro?
Ela riu e ele adorou o som.
– Por que se vinculou a mim, afinal? Espere, talvez eu saiba a resposta. Não pode escolher com quem vai se vincular, pode?
Sua voz triste sumiu.
Quando os olhos de Xhex fixaram-se no lenço de papel em sua mão, ela começou a desdobrar o que tinha feito, abrindo as formas a partir dos cantos e esticando-as.
Ele levantou suas mãos, preparando-se para gesticular...
– Eu te amo. – Seus olhos cinza o encararam. – Amo você e sinto muito e estou agradecida. – Ela riu em uma explosão curta e áspera. – Olhe para mim, pareço uma mocinha, toda frágil.
O coração de John batia tão forte em suas costelas que quase olhou para o corredor para ver se estava passando alguma fanfarra por ali.
Xhex apoiou a cabeça outra vez sobre os travesseiros.
– Você sempre fez a coisa certa por mim. Estive envolvida demais em meu drama para ser capaz de aceitar o que estava na minha frente o tempo todo. Isso ou fui muito covarde para fazer algo a respeito.
John estava tendo dificuldades em acreditar no que estava ouvindo. Quando se deseja algo ou alguém de todo o coração, como ele a desejava, as pessoas tornavam-se passíveis a traduzir as coisas de maneira errada – mesmo que estivessem falando na mesma língua.
E quanto ao seu desejo de acabar com tudo?
Ela respirou fundo.
– Acho que gostaria de mudar meus planos.
Como?
Oh Deus, ele pensou, por favor, diga...
– Gostaria que nós dois ficássemos juntos. – Ela limpou a garganta. – Desistir é o caminho mais fácil. Acabe com sua própria vida e pronto. Mas eu sou uma lutadora, John. Sempre fui. E se me quiser... gostaria de lutar com você. – Ela estendeu a mão para ele. – Então, o que me diz? Gostaria de ficar junto com uma sympatho?
Bingo!
John pegou a mão dela e levou aos lábios, beijando-a com força. Então a colocou sobre seu coração, e enquanto a apertava, gesticulou:
Pensei que nunca iria perguntar, cabeça dura.
Xhex riu outra vez e John começou a sorrir tão forte que era como se as suas bochechas estivessem cheias de balas.
Com cuidado, ele a levou até seu peito e a segurou com cautela.
– Deus, John... eu não quero estragar tudo e tenho um histórico ruim demais.
Ele a puxou para trás e acariciou o sedoso e cacheado cabelo em seu rosto. Ela parecia muito ansiosa – não era assim que ele a queria num momento como aquele.
Vamos trabalhar nisso. Agora e no futuro.
– Espero que sim. Droga, nunca lhe contei isso, mas eu tive um amante uma vez... Não era como eu e você, mas era uma relação que ia mais além da questão física. Ele era um Irmão... um bom macho. Eu não contei a ele o que eu era, o que não foi justo. Apenas achei que não daria em nada... e estava totalmente errada. – Ela balançou a cabeça. – Ele tentou me salvar, tentou muito. Acabou indo à colônia me resgatar, e quando descobriu a verdade... ele simplesmente... perdeu a cabeça. Desistiu da Irmandade. Desapareceu. Nem sequer sei se ele está vivo. Essa é a principal razão pela qual eu lutei contra essa... coisa... entre você e eu. Eu perdi Murhder e isso quase me matou... e eu não sentia por ele a metade do que sinto por você.
Isso era bom, John pensou. Não que ela tivesse que passar por tudo aquilo... Cristo, de maneira nenhuma. Mas agora o passado deles fazia ainda mais sentido – e o fez confiar ainda mais no que estavam tendo agora.
Sinto muito, mas estou feliz por ter me contado isso. E eu não sou ele. Vamos lidar com isso noite após noite e não vamos olhar para trás. Olhamos para frente, você e eu. Olhamos para frente.
Ela riu em uma explosão silenciosa.
– Aliás, acho que não tenho mais revelações. Agora você já sabe tudo sobre mim.
Certo... talvez fosse um bom momento para falar algo importante, John pensou.
Ergueu as mãos e sinalizou lentamente:
Ouça, eu não sei como se sente sobre isso, mas há uma fêmea nesta casa... conhece a shellan de Rhage? Ela é uma terapeuta e sei que alguns Irmãos a consultaram para esse tipo de coisa. Poderia apresentá-la. E talvez pudesse conversar com ela. Ela é muito legal e muito discreta... e talvez possa ajudá-la com o passado assim como com o futuro.
Xhex respirou fundo.
– Sabe...? Tenho vivido com essa droga enterrada há tanto tempo... e veja o que aconteceu comigo. Posso ser uma “cabeça dura”, mas não sou uma idiota. Sim... gostaria de conhecê-la.
John se inclinou e pressionou seus lábios nos dela; então esticou-se ao seu lado. Seu corpo estava exausto, mas o coração estava vivo e com uma felicidade tão pura quanto a luz do sol que ele não podia mais ver: era um mudo filho da mãe, com um passado sórdido e um trabalho noturno lutando contra o mau. E apesar de tudo isso... havia conquistado a garota.
Conquistou a garota dele, seu verdadeiro amor, sua perdição.
Claro, não se enganaria. A vida com Xhex não seria normal em vários aspectos – ainda bem que ele gostava de seu lado selvagem.
– John?
Ele assoviou uma nota ascendente.
– Quero me unir com você. Numa cerimônia adequada. Quero que seja perante o rei e todos os outros. Quero que seja oficial.
Bem... não é que aquilo fez seu coração parar?
Quando sentou e a encarou, ela sorriu.
– Meu Deus, a expressão em seu rosto. O que foi? Não imaginava que eu queria ser sua shellan?
Nem em um milhão de anos.
Ela recuou um pouco surpresa.
– E você não se importava com isso?
Era difícil de explicar. Mas o que tinham juntos ia além de uma cerimônia ou de uma tatuagem nas costas ou de votos de compromisso diante de testemunhas. Ele não sabia o motivo com precisão... mas ela era a peça que faltava no seu quebra-cabeça, a primeira e a última página do seu livro. De alguma maneira, era tudo o que precisava.
Tudo o que quero é você. Não importa o que aconteça.
Ela concordou com a cabeça.
– Bem, eu quero o pacote completo.
Ele a beijou de novo, suavemente, porque não queria machucá-la. Então, a puxou e articulou:
Eu amo você. E vou amar ser o seu hellren.
Ela corou. Corou mesmo. E isso fez com que ele se sentisse do tamanho de uma montanha.
– Bom, então está resolvido. – Ela colocou a mão no rosto dele. – Vamos nos unir agora.
Agora? Tipo... agora? Xhex... está com dificuldades até para ficar em pé.
Ela fixou-se nos olhos dele, e quando falou, sua voz tinha algo especial:
– Então, você iria me segurar, não é?
Ele percorreu suas feições com a ponta dos dedos. E enquanto fazia isso, por algum motivo estranho, sentiu os braços da eternidade os envolvendo, mantendo-os perto... vinculando-os para sempre.
Sim, ele articulou. Sempre darei meu apoio, minha amada querida.
Quando ele fundiu suas bocas, pensou que esse era seu voto. Com cerimônia ou não... esse era seu voto para sua fêmea.
CAPÍTULO 70
A tragédia se abateu durante uma tempestade brutal de inverno que, na verdade, não era nada comparada com o longo parto da fêmea em sua cama. A ruína não levou mais que um piscar de olhos... e ainda assim as consequências mudaram o curso de várias vidas.
– Não!
O grito de Tohrment fez Darius levantar rapidamente a cabeça enquanto segurava um recém-nascido escorregadio em suas mãos. No início, não se podia dizer o que havia acontecido para causar tanto alarde. De fato, houve muito sangue durante o parto, mas a fêmea sobreviveu à entrega de seu filho a este mundo. Darius estava cortando o cordão umbilical e prestes a envolver a criança para apresentá-la à mãe...
– Não! Oh, não! – A face de Tohrment estava acinzentada quando estendeu a mão. – Oh, querida Virgem Escriba, não!
– Por que você...
Em princípio, Darius não conseguiu atribuir sentido ao que viu. Parecia... que o punho da adaga de Tohrment se projetava sobre lençóis que cobriam a barriga ainda arredondada da mulher.
E as mãos pálidas da moça, agora ensanguentadas, estavam escorregando lentamente da arma até caírem ao seu lado.
– Ela a pegou! – Tohrment ofegou. – Do meu cinto... eu... foi tão rápido... me abaixei para cobri-la e... ela desembainhou a...
Os olhos de Darius se fixaram na fêmea. Seu olhar estava fixo no fogo da lareira, uma única lágrima escorria em seu rosto enquanto a luz da vida começava a flutuar para longe dela.
Darius derrubou o balde de água ao lado da cama em sua luta para chegar até ela... para tirar a adaga... para salvá-la... para...
O ferimento que ela havia infligido a si mesma foi mortal, considerando tudo o que ela tinha suportado durante o parto... e, ainda assim, Darius não podia deixar de lutar para tentar salvá-la.
– Não deixe sua filha! – disse ele, inclinando-se com a criança que se contorcia. – Você deu à luz a um bebê saudável! Abra os olhos, Abra os olhos!
Enquanto o som da água gotejando da bacia soava tão alto quanto um tiro, nenhuma resposta vinha da fêmea.
Darius sentiu que sua boca estava em movimento e a sensação de que estava falando... mas por alguma razão, tudo que conseguia ouvir era o som do gotejar suave da água sendo derramada enquanto implorava à fêmea para que ficasse com eles... por amor à filha, pela esperança do futuro, pelos laços que ele e Tohrment estavam preparados para estabelecer com ela para que nunca mais estivesse sozinha enquanto criava a criança que havia nascido.
Quando sentiu algo sobre sua calça, franziu a testa e olhou para baixo.
Não era água que caía no chão. Era sangue. Dela.
– Oh, querida Virgem Escriba... – ele sussurrou.
Em verdade, a fêmea havia escolhido seu curso e selado seu destino.
Seu último suspiro foi nada além de um estremecimento, e depois a cabeça pendeu para o lado, seus olhos aparentemente ainda estavam fixos às chamas que lambiam as toras de madeira... quando na verdade ela não via nada, estava cega para sempre.
O lamento do recém-nascido abandonado e os pingos eram os únicos sons que Darius conseguia ouvir na cabana. E, de fato, foi o choro queixoso da criança que o fez entrar em ação, pois não havia nada a fazer sobre o sangue derramado ou a vida perdida. Agarrando a manta que havia sido feita para a criança, embrulhou cuidadosamente a inocente pequenina e segurou-a sobre seu coração.
Oh, que destino cruel havia sido trazido sobre aquele pequeno milagre. E o que aconteceria agora?
Tohrment observou a cama de parto ensanguentada e o corpo que agora já esfriava, com olhos que ardiam de horror.
– Eu me virei apenas por um momento... que a Virgem Escriba me perdoe... apenas por um momento eu...
Darius balançou a cabeça. Quando foi falar, não encontrou sua voz, então colocou a mão sobre o ombro do rapaz e o apertou para oferecer algum consolo. Enquanto Tohrment se debatia consigo mesmo, o choro ficou mais alto.
A mãe havia ido embora. A filha havia permanecido.
Darius se inclinou com a nova vida em seus braços e recolheu a adaga de Tohrment do ventre da fêmea. Afastou o objeto, fechou as pálpebras daqueles olhos e cobriu sua face com um lençol limpo.
– Ela não vai para o Fade – Tohrment gemeu com a cabeça entre as mãos. – Condenou a si mesma...
– Foi condenada pelas ações dos outros. – E o maior pecado dentre todos que haviam cometido contra ela foi a covardia de seu pai. – Estava condenada há muito tempo. Oh destino impiedoso, estava condenada há muito tempo. Certamente, a Virgem Escriba olhará para ela em sua morte com a benevolência que não conheceu durante sua vida.
Oh... maldito... detestável, maldito destino...
Mesmo enquanto criticava tantas coisas em sua cabeça, Darius levou a pequena criança para perto do fogo, pois estava preocupado com o ar frio. Quando os dois se aproximaram da fonte de calor, ela abriu a boca e começou a buscar... e por falta de uma alternativa melhor, ofereceu seu dedo mínimo para que ela sugasse.
Com a tragédia ainda ecoando alto como um grito, Darius analisou os traços da criança e observou quando se estendeu em direção à luz.
Os olhos não eram vermelhos. Em sua mão havia cinco dedos, não seis. E a junção entre eles era normal. Abrindo brevemente a manta, verificou os pés, a barriga, a cabecinha... e viu que o comprimento anormal das feições e membros, características dos devoradores de pecado, não estavam presentes.
O peito de Darius rugiu de dor pela fêmea que havia levado tal vida dentro de seu corpo. Havia se tornado parte tanto dele quanto de Tohrment... e embora ela raramente falasse e nunca sorrisse, sabia que havia se afeiçoado a eles também.
Os três constituíram uma espécie de família.
E agora ela tinha deixado a pequenina para trás.
Darius arrumou outra vez o cobertor e percebeu que a manta era a única maneira pela qual a mulher havia mostrado reconhecimento pelo nascimento iminente. Na verdade, ela mesma havia feito a colcha na qual sua filha estava enrolada. Foi o único interesse que teve na gravidez... provavelmente por saber o que estava por vir.
Todo esse tempo, ela sabia o que iria fazer.
Os olhos bem abertos da criança o observavam, as sobrancelhas arqueadas como se estivesse prestando atenção, e tendo a sensação de um grande fardo, Darius reconheceu como aquele pequeno embrulho era vulnerável... se deixada sozinha no frio, morreria em questão de horas.
Tinha que fazer a coisa certa por ela. Era tudo que importava.
Tinha que cuidar dela e fazer o certo. Ela havia começado com tantas coisas contra ela e agora era órfã.
Querida Virgem Escriba... ele cuidaria dela, mesmo que fosse sua última ação na terra.
Ouviu o som dos lençóis sendo mexidos, e quando Darius olhou por cima do ombro, viu que Tohrment havia envolvido o corpo da fêmea e recolhido-a em seus braços.
– Vou cuidar dela – disse o garoto. Porém, sua voz não era mais a de um garoto. Era a de um macho totalmente crescido. – Eu... vou cuidar dela.
Por alguma estranha razão, o modo como ele segurava a cabeça dela era a única coisa que Darius podia ver: a mão grande e forte de Tohrment embalava o corpo como se estivesse viva, segurando-a como se estivesse consolando-a em seu peito.
Darius clareou a garganta e imaginou se seus ombros eram fortes o suficiente para suportar o peso. Como continuaria respirando... o coração batendo... como continuaria caminhando?
Pois, na verdade, havia falhado. Havia libertado a fêmea, mas no final das contas, havia falhado com ela...
Porém, em seguida, esforçou-se e virou-se para encarar seu protegido.
– A macieira...
Tohrment assentiu.
– Sim. Foi o que pensei. Embaixo da macieira. Vou levá-la até lá agora e para o inferno com essa tempestade.
Não se surpreendeu com a intenção do garoto em lutar contra os elementos da natureza para enterrar a fêmea. Ele, sem dúvida, necessitava do esforço para aliviar sua agonia.
– Ela desfrutará das flores na primavera e do som dos pássaros sobre os ramos.
– E quanto ao bebê?
– Vamos cuidar dela também. – Darius olhou para baixo, para o pequeno rosto. – Entregaremo-na a alguém que cuidará dela como merece.
Na verdade, não poderiam mantê-la ali. Passavam a noite toda fora, lutando, e a guerra não parava por perdas pessoais... a guerra não parava por nada nem ninguém. Além disso, ela precisava de coisas que dois machos, mesmo bem intencionados, não poderiam oferecer.
Necessitava do auxílio de uma mãe.
– É noite ainda? – Darius perguntou bruscamente quando Tohrment foi em direção à porta.
– Sim – o macho disse enquanto destrancava a fechadura. – E temo que seja para sempre assim.
A porta se abriu com força pelo vento e Darius protegeu o bebê com o corpo. Quando a rajada foi detida com o fechamento, olhou para a pequena nova vida.
Traçando seu rosto com as pontas dos dedos, preocupou-se com o que os próximos anos reservariam para ela. Seriam mais gentis do que as circunstâncias que cercaram seu nascimento? Rezou para que fossem.
Rezou para que ela encontrasse um macho de valor para protegê-la e para que tivesse filhos e vivesse como uma pessoa normal dentro de seu mundo.
E faria todo o possível para garantir isso.
Incluindo... abrir mão dela.
CAPÍTULO 71
Quando a noite caiu sobre a mansão da Irmandade, Tohrment, filho de Hharm, colocou suas armas e pegou sua jaqueta do armário.
Ele não ia sair para lutar e, ainda assim, sentia como se estivesse enfrentando um inimigo. E estava indo sozinho. Disse a Lassiter para relaxar e arrumar uma manicure ou qualquer coisa do gênero, porque existem coisas que é preciso se fazer sozinho.
O anjo caído simplesmente assentiu com a cabeça e desejou-lhe boa sorte. Como se soubesse exatamente a situação complicada que Tohr estava prestes a enfrentar.
Deus, o fato do cara não ser surpreendido por nada era quase tão irritante quanto todo o resto sobre ele.
A questão era a seguinte: John tinha chegado em casa há mais ou menos meia hora e compartilhado boas notícias. Coisas pessoais. O garoto estava sorrindo tanto que havia uma grande possibilidade de seu rosto congelar naquela posição, e isso era uma situação totalmente fantástica.
Cara, a vida podia ser tão estranha. E muitas vezes isso significava que coisas ruins devastavam boas pessoas. Entretanto, esse não era o caso. Graças a Deus, não dessa vez.
E era difícil pensar em duas pessoas que merecessem mais isso.
Deixando seu quarto, Tohr caminhou pelo corredor de estátuas. O feliz anúncio de que John e Xhex iriam se unir tinha se espalhado por toda a casa, trazendo muita, e bastante necessária, alegria para todos. Especialmente a Fritz e os doggen, que adoravam uma grande festa.
E cara, pelo barulho lá embaixo, estavam no auge dos preparativos. Ou isso ou alguma grande fabricante de motos estava montando uma super máquina no saguão.
Não. O barulho não era por estarem customizando uma moto, mas uma frota de enceradeiras tinha saído para passear.
Detendo-se, Tohr apoiou as mãos sobre o corrimão e olhou para a imagem da macieira em floração no mosaico. Enquanto observava os doggen girando suas máquinas sobre os galhos e tronco, concluiu que a vida podia ser correta e justa em algumas ocasiões. Podia mesmo.
E essa era a única razão pela qual conseguiu reunir forças para o que tinha que fazer.
Depois de descer a escadaria em uma corrida, acenou para um doggen driblando o caminho dos serviçais e esquivando-se ao longo do corredor. No pátio, respirou fundo e se preparou. Tinha umas boas duas horas antes da cerimônia, o que era bom. Não tinha certeza de quanto tempo isso levaria.
Fechando os olhos, dispersou seus átomos e tomou forma... no terraço da casa que morava com sua shellan, o lugar que ele e sua amada viveram por uns bons cinquenta anos.
Quando abriu os olhos, não olhou para a casa. Ao invés disso, inclinou a cabeça para trás e procurou pelo céu noturno acima do telhado. As estrelas estavam ali, o brilho delas ainda não tinha sido ofuscado pela lua que ainda chegaria a uma altura considerável.
Onde estariam seus mortos? Quais dentre as pequenas luzes eram as almas daqueles que perdera?
Onde estaria sua shellan e seu filho? Onde estaria Darius? Onde estariam todos aqueles que partiram abandonando o árduo caminho terreno para residir na morada aveludada do Fade?
Será que viam o que acontecia ali? Viam o que acontecia, tanto coisas boas quanto ruins?
Sentiam saudade daqueles que deixaram para trás?
Será que sabiam que sentiam falta deles?
Tohr trouxe a cabeça, lentamente, para o nível normal e se enrijeceu.
Sim, claro... doía demais apenas olhar para o lugar.
E a metáfora era muito óbvia: estava olhando para um buraco enorme em sua casa, a janela de vidro do velho quarto de John explodiu em sua estrutura, um monte de nada foi deixado no lugar onde deveria haver algo.
Uma brisa soprou, as cortinas que pendiam de cada lado flutuaram suavemente.
Tão óbvio: a casa era ele. Um buraco foi o que restou depois que perdeu... Wellsie.
Ainda era difícil pensar em seu nome. Quanto mais dizê-lo.
Na lateral, havia meia dúzia de folhas de madeira compensada junto a uma caixa de pregos e um martelo. Fritz os trouxe assim que Tohr soube do acidente, mas o doggen tinha ordens estritas para não resolver o problema sozinho.
Tohr consertava sua casa. Sempre.
Enquanto avançava, as solas de suas botas de combate esmagavam os cacos de vidro, o som de estalos o seguiu até que chegou ao batente da porta. Pegando um chaveiro do bolso, apontou para a casa e apertou um botão para desativar o sistema de segurança. Houve o som distante de um bip-bip, que significava que o sistema de segurança tinha registrado o sinal e estava desativado.
Estava livre para entrar: os detectores de movimento foram desativados e poderia abrir qualquer porta ou janela externa do local.
Livre para entrar.
Sim.
Ao invés de dar aquele primeiro passo, foi até a madeira compensada, pegou uma das placas e a forçou contra o encaixe. Inclinando a coisa contra a casa, voltou-se para os pregos e o martelo.
Levou mais ou menos meia hora para tampar o buraco, e quando deu um passo para trás para inspecionar o esforço, achou que estava uma droga. O resto do lugar estava impecável, apesar do fato de ninguém o habitar desde... o assassinato de Wellsie. Tudo estava organizado: os antigos doggen foram bondosos e cuidaram do exterior e interior da casa uma vez por mês... mesmo tendo mudado para servir outra família fora da cidade.
Engraçado, tentou pagá-los pelo que fizeram ali, agora que ele estava de volta à cidade, mas recusaram o dinheiro. Apenas devolveram tudo com um bilhete amável.
Cada um deve ter sofrido à sua maneira.
Tohr colocou o martelo e o restante dos pregos no topo do painel de madeira que não tinha usado e obrigou-se a caminhar ao redor da parte externa da casa. Olhava de tempos em tempos para as janelas. As cortinas tinham sido puxadas, mas, ainda assim, sua visão penetrou facilmente as dobras do pano, visualizando todos os fantasmas que moravam dentro daquelas paredes.
Nos fundos, viu-se sentado na mesa da cozinha, com Wellsie cozinhando no fogão, os dois discutindo o fato de que ele não tinha guardado as armas na noite anterior. Outra vez.
Deus, ela o excitava mesmo quando brigava com ele.
E quando Tohr chegou à sala, lembrou-se de pegá-la em seus braços e fazê-la dançar enquanto cantarolava uma valsa em seu ouvido. Muito mal.
Ela sempre se encaixou tão bem nele, seus corpos foram feitos um para o outro.
E na porta da frente... lembrou-se de entrar com flores. Em todos os aniversários.
Suas flores favoritas eram as rosas brancas.
Quando chegou na frente da garagem e olhou para dentro, observou a vaga da esquerda, a que era mais próxima da casa.
Aquela de onde Wellsie tirou o Range Rover pela última vez.
Após o tiroteio, a Irmandade pegou o carro e se livrou dele, e Tohr nem sequer quis saber o que aconteceu com a coisa. Nunca perguntou sobre isso. Nunca perguntaria.
A fragrância tanto do perfume quanto do sangue dela era demais para ele suportar, mesmo hipoteticamente.
Balançou a cabeça enquanto olhava para a porta fechada. Nunca se sabe a última vez que se vê alguém. Quando aconteceria a última discussão, a última vez que faria sexo com essa pessoa ou a última vez que olharia nos olhos dela e agradeceria a Deus por estar em sua vida.
Depois que partiam? Só se consegue pensar nisso.
Dia e noite.
Andando pela lateral da garagem, encontrou a porta que estava procurando e teve que forçá-la com o ombro.
Caramba... ainda tinha o mesmo cheiro: uma mistura do ar seco do concreto, do óleo suave do carro e do combustível remanescente no cortador de grama. Acendeu a luz. Cristo, o lugar parecia como um museu de uma era muito, muito antiga; reconhecia os objetos daquela vida, poderia descrever seus usos... mas não tinham um lugar na sua atual existência.
Focou sua atenção no presente.
Entrou na casa e encontrou a escada para o segundo andar. O sótão acima da garagem estava totalmente terminado, aquecido e mobiliado com uma combinação eclética de baús do século 19, caixas de madeira do século 20 e contêineres de plástico do século 21.
Não chegou a olhar para o que tinha vindo buscar, mas pegou o baú dentro do qual aquilo sempre esteve guardado e carregou o velho roupeiro para baixo.
Não era possível se desmaterializar com aquilo, que droga.
Precisaria de uma carona. Por que não tinha pensado nisso?
Olhando por cima do ombro, observou o Corvette 1964 que restaurou. Tinha gastado horas no motor e na lataria, trabalhava nele até mesmo durante o dia – o que deixava Wellsie louca.
Vamos lá, querida, como se o teto fosse sair voando...
Tohr, estou lhe dizendo, você está abusando.
Hum, e se eu abusar de outras coisas também...
Fechou os olhos com força e enviou a lembrança para longe.
Aproximando-se do carro, imaginou se a chave ainda estava no...
Bingo.
Abriu a porta do lado do motorista e se espremeu atrás do volante. O teto estava aberto como sempre, porque ele nunca cabia de verdade naquela coisa com o teto abaixado. Socando a bota direita na embreagem, virou a chave e...
O rugido disparou como se a maldita coisa tivesse esperado tempo demais e estava louca da vida por ter sido ignorada, quase dizendo “finalmente”.
Metade do tanque de combustível. O nível do óleo estava bom. O motor funcionava na mais perfeita sincronia.
Dez minutos depois, reativou o alarme de segurança e saiu da garagem com o baú na parte de trás do conversível. Prender a coisa foi fácil; colocou um cobertor para proteger a pintura, posicionou o peso na parte de cima e amarrou de todas as formas possíveis.
Contudo, teria que ir devagar. Mas tudo bem.
A noite estava fria e as pontas de suas orelhas ficaram dormentes antes mesmo de percorrer um quilômetro. Mas o aquecedor estava a todo vapor e o volante parecia bom e sólido contra as palmas de suas mãos.
Quando voltou à mansão da Irmandade, parecia que tinha sobrevivido a um teste mortal. E, ainda assim, não sentiu nenhuma sensação de triunfo em sua superação.
No entanto, estava decidido. E como Darius dizia, preparado para olhar para frente.
Pelo menos quando se tratava de matar seu inimigo.
Sim, estava ansioso por isso. Começando por esta noite, era todo o motivo que tinha para viver e estava mais que preparado para cumprir suas obrigações.
CAPÍTULO 72
Levaram a pequenina até sua nova casa no lombo de cavalos de guerra.
A família que a adotou morava a muitas vilas e aldeias de distância. Darius e Tohrment viajaram durante a noite após o nascimento completamente armados, cientes de todas as maneiras pelas quais poderiam ser detidos no caminho. Quando chegaram ao chalé que procuravam, não era diferente da cabana de Darius, com um telhado de palha e paredes de pedras. Havia árvores que cercavam a casa e ofereciam proteção das intempéries e um celeiro do lado de fora que tinha cabras, ovelhas e vacas leiteiras pastando.
A casa tinha até mesmo um doggen, conforme Darius ficou sabendo na noite anterior quando havia visitado aquela modesta, mas próspera família. Claro, não tinha sido apresentado à fêmea da residência naquele momento. Ela não estava atendendo e Darius e o macho tinham falado do assunto em particular, na varanda da frente.
Quando ele e Tohrment puxaram as rédeas, os cavalos pararam e ficaram inquietos. De fato, os grandes garanhões foram criados para lutar, não para terem paciência, e depois que Darius desmontou, seu protegido conseguiu subjugar os dois animais apenas pela força física.
A cada milha percorrida do caminho até ali, Darius havia repensado sua escolha, mas agora que tinham chegado, sabia que aquele era o lugar onde a criança deveria estar.
Aproximou-se da porta com sua preciosa carga e o dono da casa foi quem abriu o sólido portal. Os olhos do macho brilhavam sob o luar, mas não era de alegria. De fato, uma perda bem familiar tinha atingido o virtuoso lar... foi assim que Darius os encontrou.
Os vampiros mantinham contato ao longo das colinas e vales da mesma forma que os seres humanos faziam: compartilhando histórias e compaixão.
Darius se curvou ao cavalheiro apesar de sua posição ser mais elevada.
– Saudações nesta noite fria.
– Saudações, senhor. – O macho curvou-se muito, e quando levantou, seu olhar se dirigiu para o minúsculo pacote. – Entretanto, está esquentando.
– Certamente. – Darius desdobrou o topo da manta e olhou mais uma vez para o rosto minúsculo. Aqueles olhos, aqueles olhos cinza-escuro arrebatadores, o encararam de volta. – Gostaria de... inspecioná-la primeiro?
Sua voz sumiu, pois não queria nenhum tipo de julgamento sobre a pequena nem agora nem nunca – na verdade, havia feito seu melhor para garantir isso. De fato, não havia compartilhado as circunstâncias de sua concepção com o macho. Como poderia? Como a aceitariam? E como ela não tinha traços visíveis de sua outra metade, ninguém jamais saberia.
– Não vou precisar de inspeção. – O cavalheiro balançou a cabeça. – Ela é uma bênção que preencherá os braços vazios de minha shellan. Disse que ela é saudável, isso é tudo o que importa para nós.
Darius soltou uma respiração aliviada que não sabia que estava segurando e continuou a olhar para o bebê.
– Tem certeza que deseja abrir mão dela? – o cavalheiro disse suavemente.
Darius olhou para Tohrment. Os olhos do macho queimavam enquanto o observava de cima de seu precioso cavalo, seu corpo de guerreiro vestido com peles de couro preto, com suas armas atadas ao peito e à sela: sua aparência era um prenúncio de guerra, morte e sangue derramado.
Darius estava ciente que ele mesmo apresentava um quadro semelhante quando se voltou para o cavalheiro e limpou a garganta.
– Poderia fazer-me um favor?
– Sim, senhor. Por favor, peça o que quiser.
– Eu... eu gostaria de dar-lhe o nome.
O cavalheiro fez uma nova reverência.
– Isso seria um gesto gentil e muito bem-vindo.
Darius olhou por cima do ombro do civil para a porta do chalé que havia sido fechada para deter o frio. Lá dentro, em algum lugar, havia uma fêmea de luto, a qual tinha perdido seu bebê no parto.
Na verdade, entendeu algo sobre aquele vazio sombrio, enquanto se preparava para entregar ao outro o que estava em seus braços. Uma parte de seu coração sempre estaria faltando depois que se afastasse daquele vale arborizado e daquela família que agora estaria curada – mas a jovem merecia o amor que a esperava ali.
A voz de Darius soou forte:
– Ela será chamada Xhexania.
O cavalheiro fez outra reverência.
– “Abençoada”. Sim, adequa-se lindamente a ela.
Houve uma longa pausa durante a qual Darius memorizou aquele rosto angelical. Não sabia quando a veria outra vez. Essa era sua família agora, não precisava de dois guerreiros cuidando dela – seria melhor que não se intrometessem. Dois lutadores visitando aquela localidade tranquila regularmente? Questões poderiam ser levantadas sobre os motivos e talvez isso pudesse colocar em perigo o segredo que envolvia a concepção e o nascimento dela.
Para protegê-la, ele deveria desaparecer de sua vida para garantir que fosse criada como alguém normal.
– Senhor? – o cavalheiro disse humildemente. – Tem certeza que deseja fazer isso?
– Sinto muito. Mas claro... tenho certeza. – Darius sentiu o peito queimar quando se inclinou para frente e colocou a pequena nos braços de um estranho.
Seu pai.
– Obrigado... – A voz do macho falhava ao aceitar o pequeno peso. – Obrigado pelo presente de ter trazido luz à nossa escuridão. Em verdade, não há nada que possamos fazer pelo senhor?
– Sejam... sejam bons para ela.
– Seremos. – O macho começou a virar-se, mas fez uma pausa. – Nunca mais voltará, não é?
Ao balançar a cabeça, Darius não podia tirar os olhos do manto que a jovem mãe havia preparado.
– Ela é sua como se viesse de sua linhagem. Vamos deixá-la aqui sob seus bons cuidados e confiar que cuidará bem dela.
O cavalheiro deu um passo à frente e tocou o antebraço de Darius. Apertando-o, ofereceu consolo.
– Foi sábio ao confiar em nós. E saiba que será sempre bem-vindo aqui para vê-la.
Darius inclinou a cabeça.
– Obrigado. Que a Virgem Escriba olhe em favor de ti e dos seus.
– O mesmo para você.
Com isso, o cavalheiro atravessou a porta e entrou na casa. Com um aceno final de despedida, ele fechou-se com a pequenina.
Enquanto os cavalos bufavam e batiam os cascos, Darius caminhou de volta e olhou através dos vitrais de chumbo ondulados, esperando ver...
Perto do fogo, em cima de uma cama de lençóis limpos, uma fêmea estava com o rosto voltado para o calor flamejante. Estava pálida como o lençol que a cobria e os olhos vazios lembraram-no da trágica fêmea que passou ao Fade diante de sua lareira.
A shellan do cavalheiro não se sentou ou olhou para seu hellren quando ele entrou no quarto e, por um momento, Darius temeu ter cometido um erro.
Mas a pequenina deve ter emitido algum som, pois a cabeça da fêmea se virou de repente.
Quando ela viu o pacote que lhe foi apresentado, sua boca se abriu, confusão e temor passaram por suas feições encantadoras. Abruptamente, empurrou o cobertor dos braços e pegou o bebê. Suas mãos tremiam tanto que seu hellren teve que ajudá-la a colocar o bebê sobre o coração... mas ela abraçou a filha recém-nascida sozinha.
Foi o vento que fez os olhos de Darius marejarem. Sim, foi o vento.
Quando limpou o rosto com a palma da mão, disse a si mesmo que estava tudo bem e assim era como deveria ser... mesmo se sentisse uma grande tristeza dentro do peito.
Atrás dele, seu cavalo soltou um rugido e ergueu-se contra o domínio das rédeas, batendo seus cascos maciços contra a terra. Com o som, a fêmea no quarto ergueu o olhar alarmada e ninou seu precioso presente ainda mais perto de si, como se precisasse proteger o bebê.
Darius virou-se e andou às cegas até sua montaria. Com um salto, estava nas costas da grande besta, assumindo o controle do animal, aproveitando a potência e a raiva que havia em todos os músculos e ossos.
– Vamos até Devon – Darius disse, necessitando de um propósito a mais, do que precisar de ar ou de batimentos cardíacos. – Há relatos de redutores por lá.
– Sim. – Tohrment observou a casa. – Mas você está... com disposição para lutar agora?
– A guerra não espera nenhum macho se acalmar. – De fato, às vezes é melhor estar fora de si.
Tohrment assentiu.
– Avante a Devon, então.
Darius soltou as rédeas e o cavalo de guerra arrancou depois de ter sido forçado a parar, galopando para dentro da floresta, a toda velocidade. O vento no rosto de Darius afastou suas lágrimas, mas não fez nada para curar a dor em seu peito.
Enquanto cavalgava de volta à guerra perguntou-se se veria o bebê outra vez – mas sabia a resposta. Não havia qualquer possibilidade de seus caminhos se cruzarem. Como poderiam? Quantas reviravoltas a vida teria que dar para uni-los outra vez?
Na verdade, isso desafiava o destino, não?
Oh, aquela pequenina. Mal concebida. Nunca seria esquecida.
Sempre levaria um pedaço de seu coração com ela.
CAPÍTULO 73
Mais tarde Xhex refletiria que as coisas boas, assim como as más, vinham todas de uma vez.
Nunca teve essa experiência em particular antes... não com a questão de vir tudo de uma vez, mas com a parte das coisas “boas”.
Graças ao sangue de John Matthew e o trabalho da doutora Jane, estava nova em folha uma noite após a luta com Lash, e sabia que estava de volta ao seu estado normal porque havia colocado seus cilícios novamente. E cortado o cabelo. E ido até sua casa no Rio Hudson para pegar roupas e armas.
E passou mais ou menos... quatro horas fazendo amor com John.
Também havia se encontrado com Wrath e parecia que ela tinha um novo emprego: o grande Rei Cego a convidou para lutar com a Irmandade. Quando ela demonstrou surpresa num primeiro momento, ele alegou que suas habilidades eram muito necessárias e bem-vindas na guerra – e matar redutores não era nada mal.
Grande. Ideia. Estava totalmente dentro dessa.
E por falar em estar dentro de algo, ela se mudou para o quarto de John. No armário dele, suas roupas de couro e camisetas estavam penduradas ao lado das dele, suas botas de combate estavam alinhadas juntas e todas as facas, armas e brinquedinhos dela estavam agora trancados no gabinete à prova de fogo dele.
Até suas munições estavam guardadas juntas.
Assustadoramente romântico.
Então, sim. Os negócios estavam como de costume.
Exceto por... bem, exceto pelo fato de que estava sentada naquela grande cama esfregando as palmas suadas das mãos já fazia meia hora. John estava se exercitando no centro de treinamento antes da cerimônia e ela estava contente que ele estivesse ocupado em outro lugar.
Não queria que a visse nervosa como estava.
Porque, no final, além da fobia médica, havia outra pequena falha na sua fiação interna: a ideia de ficar em pé diante de uma tonelada de pessoas e de ser o foco das atenções durante uma cerimônia de união lhe dava náuseas. Contudo, achava que essa reação não deveria ser tão surpreendente. Afinal, em seu trabalho como assassina, a ideia era manter-se invisível. E ela sempre foi introvertida, tanto pelas circunstâncias quanto pelo seu caráter.
Recostando-se outra vez nos travesseiros, apoiou-se na cabeceira da cama, cruzou os pés e pegou o controle remoto. O pequeno modelo da Sony realizou suas funções com admirável talento, a coisa mudava os canais tão rápido quanto a batida de seu coração.
Não era apenas o fato de que haveria tantas testemunhas para a cerimônia dela e de John. Era porque se casar a fazia pensar na maneira como as coisas deveriam ter sido se ela tivesse uma vida normal. Em noites como esta, a maioria das fêmeas se vestiam com roupas feitas especialmente para a ocasião e eram cobertas pelas joias da família. Ficavam ansiosas para serem entregues aos seus pretendentes por seus pais orgulhosos e suas mães deviam estar chorando agora, assim como quando os votos fossem trocados.
Por outro lado, Xhex andaria pelo altar sozinha. Vestindo couro e uma camiseta regata, porque essas eram as roupas que possuía.
Enquanto os canais de TV mudavam diante de seus olhos, a distância entre ela e a “normalidade” parecia cada vez maior: não haveria reformulação do passado, nem correção dos picos e vales de sua história. Tudo, desde seu sangue mestiço, passando pelo simpático casal que havia criado um pesadelo, até tudo o que tinha acontecido com ela desde que deixou a casa... tudo isso estava escrito na fria pedra do passado.
Nunca seria alterado.
Pelo menos ela sabia que o bondoso casal que tentou criá-la como sua própria filha acabou tendo um bebê de sua linhagem, um filho que cresceu forte, vinculou-se bem e deu-lhes uma nova geração.
A ideia de os ter abandonado ficou mais fácil depois disso.
Mas todo o resto de sua vida, exceto por John, não havia tido um final feliz. Deus, talvez aquela também fosse a causa de seu nervosismo. Toda a coisa de vinculação com John era como uma revelação, quase bom demais para ser verdade...
Ela franziu a testa e ergueu-se. Em seguida, esfregou os olhos.
Não podia estar vendo direito o que havia na tela.
Não era possível... era?
Pressionando o botão direito do controle remoto, Xhex aumentou o volume.
– ... o fantasma de Rathboone assombra os corredores de sua mansão que foi construída na época da Guerra Civil. Que segredos aguardam a nossa equipe de Investigadores Paranormais enquanto tentam descobrir...
A voz do narrador diminuiu enquanto a câmera se aproximava mais e mais do retrato de um homem com cabelos escuros e olhos mal-assombrados.
Murhder.
Ela reconheceria aquele rosto em qualquer lugar.
Levantando-se de um salto, correu para a TV... mas como isso poderia ajudar?
A câmera se afastou para mostrar um bonito salão, em seguida imagens de uma casa branca de fazenda. Estavam falando sobre algum especial ao vivo... durante o qual iriam tentar expulsar o fantasma de um abolicionista da Guerra Civil que tantos afirmavam ainda percorrer as salas nas quais tinha vivido.
Voltando a se concentrar no comentarista novamente, tentou desesperadamente ver onde a mansão estava localizada. Talvez ela pudesse...
Nos arredores de Charleston, Carolina do Sul. É onde ele estava.
Dando um passo para trás, bateu na cama com suas panturrilhas e sentou-se. Seu primeiro pensamento foi se desmaterializar até lá e ver por si mesma se era seu ex-amante, um fantasma de verdade ou apenas alguns produtores de televisão talentosos fazendo muito barulho por nada.
Mas a razão superou o impulso. A última vez que tinha colocado os olhos em Murhder, deixou claro que não queria nada com ela. Além disso, apenas porque existia uma antiga pintura a óleo que lembrava o macho, não significava que ele estava morando naquela mansão antiga e dando uma de Gasparzinho.
Apesar de o retrato ser muito semelhante. E aterrorizar seres humanos parece mesmo a praia dele.
Droga... ela o queria bem. Totalmente. E se não estivesse convencida de que seria mal recebida assim como foi o segredo que ela deveria ter contado depois que se envolveram, teria feito a viagem.
No entanto, às vezes a melhor coisa que você pode fazer por uma pessoa é ficar longe dela. E Xhex lhe deu seu endereço no Hudson. Sabia onde encontrá-la.
Deus, esperava que ele estivesse bem, apesar de tudo.
A batida na porta a fez girar a cabeça.
– Olá? – disse ela.
– Isso é um “entre”? – uma profunda voz masculina respondeu.
Ela levantou-se e franziu a testa, pensando que com certeza não soava como a voz de um doggen.
– Sim. Está destrancada.
A porta se abriu com força para revelar... um baú – um baú guarda-roupa. Um baú guarda-roupa Louis Vuitton para ser mais exata. E ela concluiu que o cara que o segurava era um Irmão... levando em conta as botas de combate e a calça de couro que apareciam por baixo.
A menos que Fritz tivesse trocado o estilo mordomo certinho por algo que seguisse mais o manual de V. E engordado uns quarenta e cinco quilos.
O baú baixou o suficiente para que ela tivesse uma visão clara do rosto de Tohrment. A expressão do Irmão era grave, mas ele nunca foi de gracinhas mesmo. Nunca tinha sido... e levando em conta o rumo que sua vida havia tomado, nunca seria.
Ele limpou a garganta e depois inclinou a cabeça em direção ao que estava contra seu peito.
– Trouxe uma coisa para você. Para sua cerimônia.
– Hum... bem, John e eu não fizemos a lista de presente em lugar nenhum. – Ela fez sinal para que ele entrasse. – Afinal, lojas de móveis e utilidades não vendem armas. Mas obrigada.
O Irmão entrou pelo batente da porta e colocou o baú no chão. A coisa tinha um metro e meio de altura e cerca de um metro de largura e parecia abrir bem no meio.
No silêncio que se seguiu, os olhos de Tohrment deslizaram sobre seu rosto e mais uma vez ela tinha a estranha sensação de que o cara sabia demais sobre ela.
Ele limpou a garganta novamente.
– É costume na cerimônia de união de uma fêmea que sua família ofereça as vestimentas.
Xhex franziu a testa outra vez. Então, lentamente, balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Eu não tenho família. Não de verdade.
Deus, aquele olhar grave e conhecedor a deixava louca... e, rapidamente, seu lado sympatho saiu para se infiltrar na grade emocional dele, avaliando, medindo.
Certo. Isso não fazia sentido. A dor, o orgulho, a tristeza e a alegria que estava sentindo... seriam razoáveis apenas se ele a conhecesse. E pelo que sabia, eram estranhos entre si.
Para encontrar a resposta, ela tentou vasculhar sua mente e memórias... mas ele a impedia de entrar em sua mente. Ao invés de ler seus pensamentos... tudo que ela conseguiu foi assistir uma cena de Godzilla vs. Mothra.
– Quem é você para mim? – ela sussurrou.
O Irmão acenou com a cabeça em direção ao baú.
– Eu trouxe algo... para você vestir.
– Bem, sim, mas estou mais interessada na razão. – Claro, soou ingrato, mas boas maneiras nunca tinham sido seu forte. – Por que se importa?
– As razões específicas não são relevantes, mas são suficientes. – Leia-se: não iria entrar no assunto. – Vai permitir que eu lhe mostre?
Normalmente, a resposta dela seria um sonoro “não”, mas esse não era um dia normal e nem ela estava em seu humor normal. E tinha a estranha sensação... de que ele estava protegendo-a com todo aquele bloqueio mental. Protegendo-a de uma série de fatos que ele temia feri-la profundamente.
– Certo. Ok. – Ela cruzou os braços sobre o peito, sentindo-se um tanto incomodada. – Abra-o.
Os joelhos do Irmão estalaram quando ele se ajoelhou na frente do baú e pegou uma chave de bronze do bolso traseiro. Houve um clique, em seguida soltou as travas na parte superior e inferior e movimentou-se por trás da coisa.
Mas ele não abriu. Ao invés disso, passou os dedos por todo o baú com reverência... enquanto sua grade emocional estava quase tendo um colapso por causa da dor que estava sentindo.
Preocupada com sua saúde mental e com o sofrimento que estava passando, ela ergueu a mão para detê-lo.
– Espere. Tem certeza que quer...
Ele abriu o baú, puxando as duas metades da frente...
Metros de cetim vermelho... metros de cetim vermelho-sangue derramaram-se dos limites do móvel, caindo sobre o tapete.
Era um verdadeiro vestido para uma cerimônia de união. O tipo de coisa que era passado de fêmea para fêmea. O tipo de vestido que tirava seu fôlego, mesmo não sendo muito feminina.
Xhex encarou o Irmão. Ele não estava olhando para o que tinha trazido. Seu olhar estava fixo na parede do outro lado da sala, sua expressão era de tolerância, como se o que estava fazendo estivesse matando-o.
– Por que me trouxe isso? – ela sussurrou, reconhecendo o que aquilo deveria ser. Sabia pouco sobre o Irmão, mas tinha plena consciência de que sua shellan tinha sido alvejada pelo inimigo. E esse tinha que ser o vestido da cerimônia de Wellesandra. – É uma verdadeira agonia para você.
– Porque uma fêmea deve ter um vestido apropriado para caminhar... pelo... – Ele teve que limpar a garganta mais uma vez. – Este vestido foi usado pela última vez pela irmã de John no dia de sua união com o rei.
Xhex estreitou os olhos.
– Então, isso é de John?
– Sim – disse ele com voz rouca.
– Você está mentindo... não quero desrespeitá-lo, mas sei que não está me dizendo a verdade. – Ela observou todo o cetim vermelho. – É incrivelmente lindo. Mas eu simplesmente não entendo por que você iria aparecer aqui esta noite e oferecer tal vestimenta para eu usar... porque suas emoções são muito pessoais neste momento, e você não consegue sequer olhar para a coisa.
– Como eu disse, minhas razões são particulares. Mas seria... um gesto bem-intencionado, se pudesse se unir vestida com ele.
– Por que isso é tão importante para você?
Uma voz feminina os interrompeu.
– Porque ele estava lá no começo.
Xhex virou-se. Na porta, em pé, entre os batentes, estava uma figura negra com capuz e seu primeiro pensamento foi que era a Virgem Escriba... só que não havia luz brilhante sob as vestes.
Seu segundo pensamento foi que a grade emocional daquela fêmea... era uma cópia da que Xhex possuía.
Ao ponto de serem idênticas.
A figura aproximou-se mancando e Xhex cambaleou para trás e tropeçou em algo. Enquanto caía, tentou equilibrar-se na cama e não conseguiu, aterrissando com tudo sobre o chão.
Suas grades eram absolutamente idênticas, não em termos de emoções, mas a estrutura em si. Idênticas... como mãe e filha seriam.
A fêmea levou as mãos até o capuz, e lentamente levantou o material que cobria o rosto.
– Jesus... Cristo.
A exclamação veio de Tohrment e o som de sua voz fez a fêmea voltar seu olhar cinzento para ele. E curvou-se em uma reverência lenta.
– Tohrment... filho de Hharm. Um dos meus salvadores.
Xhex tinha uma vaga ideia de que o Irmão apoiava-se no baú, como se os seus joelhos tivessem decidido tirar umas férias. Mas o que realmente a preocupava eram os traços revelados. Eram tão semelhantes com os dela, mais arredondados, é verdade... mais delicados, sim... mas a estrutura óssea era a mesma.
– Mãe... – Xhex sussurrou.
Quando os olhos da fêmea voltaram a observá-la, analisou seu rosto da mesma maneira que Xhex havia feito.
– É verdade... você é linda.
Xhex tocou o próprio rosto.
– Como...
A voz de Tohrment estava chocada quando perguntou:
– Sim... como?
A fêmea avançou um pouco mais com aquele andar manco... e Xhex imediatamente quis saber quem ou o que a tinha ferido: apesar de não fazer qualquer sentido – disseram-lhe que sua verdadeira mãe havia morrido durante o parto – mas não queria que nenhum mal se abatesse sobre aquela adorável e triste criatura com a túnica.
– Na noite do seu nascimento, filha minha, eu... eu morri. Mas quando procurei a entrada do Fade, não fui autorizada a passar. No entanto, a Virgem Escriba, com toda sua misericórdia, permitiu que eu ficasse isolada no Outro Lado, e naquele lugar eu tenho permanecido, servindo as Escolhidas como penitência para a minha... morte. Ainda estou a serviço de uma Escolhida e vim para este lado a fim de cuidar dela. Mas... em verdade, cheguei neste plano para finalmente olhar para você pessoalmente. Tenho-lhe observado e orado muito por você no Santuário... e agora que a vejo... estou bem ciente de que há muito pelo que precisa considerar e pode ficar irritada... mas se tiver um coração aberto para mim, gostaria de moldar... um elo de afeição entre nós. Também conseguirei entender se for tarde demais...
Xhex piscou. Por mais tola que isso a fizesse parecer, era tudo que podia fazer... além de absorver a dor incrível da fêmea.
Finalmente, numa tentativa de entender alguma coisa, qualquer coisa, ela tentou vasculhar a mente da figura vestida com a túnica diante dela, mas não chegou muito longe. Quaisquer pensamentos ou memórias específicas, como as de Tohrment, estavam bloqueados para sua percepção. Tinha um contexto emocional, mas nenhum detalhe.
No entanto, sabia que a mulher dizia a verdade.
E embora muitas vezes sentiu-se abandonada por aquela que tinha lhe dado à luz, não era estúpida. As circunstâncias de sua concepção, considerando quem tinha sido seu pai, não poderiam ter sido alegres.
Terríveis, era o mais provável nesse caso.
Xhex sempre sentiu que devia ter sido uma maldição sobre a mãe que a carregou, mas agora, conhecendo a fêmea face a face? Não sentiu qualquer aspereza em relação à figura parada e tensa diante dela.
Xhex ficou em pé, e enquanto se levantava, sentiu o desespero e a incredulidade de Tohrment. Ela mesma conhecia tais sentimentos. Mas não quis afastar-se daquela oportunidade... daquele presente dado pelo destino na noite de sua união.
Ela caminhou lentamente pelo tapete. Quando se aproximou da mãe, percebeu que a outra fêmea era muito menor do que ela, de constituição mais magra e de uma natureza mais tímida.
– Qual é o seu nome? – Xhex perguntou com voz rouca.
– Eu sou... No’One – respondeu. – No’One...
Um assovio estridente vindo da porta passou por todos. John estava na entrada do quarto com sua irmã, a rainha, ao seu lado e uma pequena bolsa vermelha nas mãos onde se lia “Joalheria Marcus Reinhardt, desde 1893”.
Era evidente que John não tinha ido treinar. Tinha ido com Beth ao mundo humano... para escolher um anel.
Xhex olhou ao redor, em direção ao grupo reunido no quarto e visualizou a pintura que formavam: Tohrment ao lado do baú Louis Vuitton, John e Beth na porta, No’One ao lado da cama.
Ela iria lembrar-se deste momento todos os dias de sua vida. E embora houvesse mais perguntas do que respostas em sua mente, encontrou forças na própria alma para responder a pergunta muda de John sobre quem era sua convidada misteriosa.
E, na verdade, foi por causa dele que foi capaz de responder: “Sempre olhar para frente”. Havia muita coisa no passado que era melhor deixar nos anais da história. Ali, naquele quarto, com aquelas pessoas, precisava olhar para frente.
Limpando a garganta, ela disse em voz alta e clara:
– John... esta é minha mãe. E ela ficará ao meu lado em nossa cerimônia.
John parecia absolutamente perplexo – mas superou rapidamente. Como um perfeito cavalheiro, aproximou-se e inclinou até a cintura diante de No’One. Depois de gesticular, Xhex traduziu com voz rouca:
– Ele disse que é grato por sua presença nesta noite e que será sempre bem-vinda em nossa casa.
No’One colocou as mãos sobre o rosto, evidentemente dominada pela emoção.
– Obrigada... obrigada.
Xhex não era muito de abraços, mas era muito boa em segurar as pessoas e ela segurou o braço extremamente magro de sua mãe para que não caísse sobre o tapete.
– Está tudo bem – ela disse para John, que estava obviamente assustado por ter perturbado a fêmea. – Espere... não olhe para lá, não pode ver o meu vestido de noiva.
John congelou com os olhos fixos no meio da sala.
Vestido de noiva?
Difícil saber o que foi mais chocante: sua mãe aparecendo pela primeira vez em trezentos anos, ou o fato de que, sim, parecia que vestiria um vestido de noiva.
Nunca se sabe para onde a vida leva as pessoas, não é mesmo?
E, às vezes, as surpresas não são tão ruins, nem um pouco ruins.
Um... John.
Dois... um vestido de noiva.
Três... sua mãe.
Aquela era uma noite boa, uma noite muito boa mesmo.
– Bem, vamos descer – disse ela, movimentando-se para fechar o vestido dentro do baú. – Tenho que me vestir... não quero estar atrasada para a minha união.
Quando empurrou o baú para fora do quarto, recusando a ajuda dos machos, pediu para No’One e Beth irem com ela. Afinal, no que dizia respeito a sua mãe e a irmã de John, era necessário que todos começassem a se conhecer... e que melhor maneira do que ajudarem a vestir-se adequadamente para seu futuro hellren?
Para seu macho de valor.
Para o amor de sua vida.
Aquela noite era, de fato, a melhor noite de sua vida.
CAPÍTULO 74
John Matthew foi forçado a ficar de lado e assistir à sua shellan levando um baú do tamanho de um carro em direção ao corredor, com a irmã dele... e a mãe dela?
Estava entusiasmado com as duas últimas fêmeas; não tanto com o peso que ela carregou. Mas sabia que era melhor não bancar o machão forte. Se Xhex precisasse de ajuda, ela pediria.
Bom, acontece que ela era forte o suficiente para fazer isso sozinha.
Certo, na verdade... isso era excitante... não ia mentir.
– Já providenciou suas roupas? – Tohrment perguntou.
Quando John deu uma olhada no cara, ficou evidente que o Irmão estava muito abalado emocionalmente. Estava cambaleando sobre as botas de combate. Considerando a linha rígida formada em sua testa e seu maxilar firme, não entraria em detalhes sobre o assunto.
Ah... eu não sei o que vou vestir, John gesticulou. Um terno?
– Não, vou pegar o que você precisa. Espere.
A porta foi fechada.
John olhou ao redor de seu quarto, e quando viu o armário, aquele sorriso que agora parecia usar o tempo todo voltou. Aproximando-se mais, colocou a pequena bolsa vermelha que trouxe da joalheria na mesa e fez uma pausa.
Oh, cara... ela se mudou. Ela se mudou mesmo. As roupas de Xhex e as dele estavam penduradas juntas.
Estendendo a mão, tocou as roupas de couro, as camisetas regatas e os coldres dela... e sentiu um leve rubor de orgulho e felicidade. Xhex lutaria na guerra. Lado a lado com ele e os Irmãos. A Antiga Lei proibia expressamente, mas o Rei Cego já havia provado que não era um escravo dos antigos costumes – e Xhex já havia provado que se garantia muito bem no campo de batalha.
John dirigiu-se para a cama e sentou-se. Não tinha certeza de como se sentiu com relação a ela naquela noite com os assassinos.
Certo. Até parece. Sabia exatamente como se sentiu.
Contudo, não pediria para que ela não lutasse. Xhex era quem era. John estava se unindo com uma guerreira.
Ela era exatamente assim.
Seus olhos se deslocaram para a mesa de cabeceira. Inclinando-se, abriu a primeira gaveta e retirou o diário de seu pai. Alisando com a mão o couro macio, sentiu a história deslizar do intelectual para o real. Muito, muito tempo atrás, outras mãos tinham segurado este livro e escrito em suas páginas... e por meio de uma série de acidentes e desventuras, o diário havia chegado, ao longo das noites e dias, até John.
Por alguma razão, naquela noite, o laço com seu pai Darius parecia forte o bastante para atravessar o éter nebuloso do tempo e unir os dois, fundindo-os até que... Deus, quase pareciam ser a mesma pessoa.
Porque sabia que seu pai teria ficado feliz com isso. Tinha plena certeza como se o cara estivesse sentado ao seu lado na cama.
Darius gostaria que ele e Xhex terminassem juntos. Por quê? Quem poderia saber? Mas aquela era uma verdade tão real quanto os votos que logo estaria fazendo.
John alcançou a gaveta de novo e pegou a pequena caixa velha. Levantando a tampa, olhou fixamente para o pesado anel de sinete de ouro. A coisa era enorme e feito para caber na mão de um guerreiro, sua superfície brilhava através da fina rede de riscos que cobria o brasão e as laterais.
Encaixava-se no dedo indicador de sua mão direita com perfeição.
E abruptamente decidiu que não iria tirá-lo outra vez, mesmo quando estivesse lutando.
– Ele teria aprovado isso.
John ergueu os olhos depressa. Tohr estava de volta e havia trazido um monte de seda preta com ele – também trouxe Lassiter. Em pé atrás do cara, o anjo caído espalhava luz em todas as direções, como se o nascer do sol acontecesse no corredor.
Sabe? Por alguma razão, acho que você está certo, John gesticulou.
– Sei que estou certo. – O Irmão aproximou-se e sentou na cama. – Ele a conhecia.
Quem?
– Ele conhecia Xhex. Estava lá quando ela nasceu, quando sua mãe... – Houve uma longa pausa, como se o cérebro de Tohr estivesse confuso e a ficha ainda não tivesse caído. – Quando a mãe dela morreu, ele entregou Xhex a uma família que pudesse cuidar dela. Ele amava aquela garota... assim como eu. Foi por isso que ele a chamou de Xhexania. Cuidava dela de longe...
O ataque epiléptico veio tão de repente que John não teve tempo para tentar lutar contra a crise – em um momento estava sentado ouvindo Tohr; no outro, estava caído ao chão, movimentando o corpo em uma dança frenética.
Quando os espasmos finalmente pararam e seus membros caíram sem força, sua respiração saía e entrava pela boca com dificuldade. Para seu alívio, Tohr estava sobre ele, agachando-se.
– Como está? – o cara perguntou firme.
John se apoiou no chão e sentou-se direito. Esfregando o rosto, ficou contente em perceber que sua visão ainda funcionava. Nunca pensou que ficaria feliz em ter uma imagem clara do rosto de Lassiter.
Lutando para controlar suas mãos, conseguiu sinalizar:
Sinto como se tivesse sido batido em um liquidificador.
O anjo caído assentiu gravemente:
– Sua aparência também diz isso.
Tohr lançou um olhar severo ao cara, em seguida, voltou-se para John.
– Não se preocupe, ele é cego.
– Não, não sou.
– Em um minuto e meio, você vai ser. – Tohr segurou John pelo braço e o arrastou de volta para a cama. – Quer beber alguma coisa?
– Ou talvez um cérebro novo? – Lassiter ofereceu.
Tohr se inclinou.
– Prestando um serviço público, vou deixá-lo mudo também, certo?
– Você é tão generoso.
Houve uma longa pausa e depois John sinalizou:
Meu pai a conhecia? – Sim.
Você também, não é?
– Sim.
No silêncio que se seguiu, John decidiu que algumas coisas eram melhores se deixadas como estão. E esta era uma delas, considerando a expressão tensa do Irmão.
– Estou feliz por estar usando o anel dele – disse Tohr de repente enquanto ficava em pé. – Especialmente numa noite como esta.
John olhou para o pedaço de ouro em seu dedo. Parecia tão correto. Com se usasse o objeto há anos.
Eu também, sinalizou.
– Agora, se me der licença, vou me vestir.
Quando John olhou para cima, foi levado a um momento que havia acontecido tempos atrás, quando abriu a porta daquele lixo de apartamento em que vivia e apontou uma arma no rosto do cara.
E agora Tohr havia trazido suas vestes cerimoniais.
O Irmão sorriu um pouco.
– Gostaria que seu pai estivesse aqui para ver isso.
John franziu a testa e rolou o anel ao redor do dedo, pensando sobre o quanto devia ao macho. Então, com um rápido impulso, ficou em pé... e abraçou forte o Irmão. Tohr pareceu momentaneamente surpreso, mas, em seguida, braços fortes o envolveram em reciprocidade...
Quando John se desvencilhou, olhou diretamente para aqueles olhos.
Ele está aqui, sinalizou. Meu pai está aqui comigo.
Uma hora depois, John estava em pé no chão de mosaico no saguão de entrada, deslocando seu peso para trás e para frente sobre os pés. Estava vestido com o traje tradicional de um nobre macho de valor, a calça de seda preta arrastava-se no chão, a parte superior era folgada e estava presa a um cinto de joias que foi presente do rei.
Decidiram realizar a cerimônia na base da grande escadaria, sob o arco que formava a sala de jantar. As portas duplas do salão onde todos comiam foram fechadas para formar uma parede, e do outro lado os doggen tinham preparado um banquete.
Tudo estava organizado, a Irmandade em pé e alinhados ao lado dele, as shellans e os outros membros da mansão estavam reunidos num grande semicírculo em frente. Dentre os que seriam testemunhas, Qhuinn estava em uma extremidade, Blay e Saxton em outra. iAm e Trez estavam no meio, como convidados especiais.
Quando John percorreu o olhar pelo espaço, observou as colunas, as paredes de mármore e os lustres. Desde que chegou ali para ficar, ouviu muitas vezes o quanto seu pai teria gostado de ver pessoas preenchendo todos os quartos e vivendo suas vidas sob aquele sólido telhado novamente.
John focou-se na macieira retratada no chão. Era tão linda, um sinal da primavera, florindo eternamente... o tipo de coisa que animava toda vez que a via.
Adorava a árvore desde que se mudou...
Um suspiro coletivo fez com que ele erguesse a cabeça.
Oh... minha... mãe... do...
Seu cérebro parou de funcionar naquele momento. Simplesmente ficou em branco. Tinha certeza de que seu coração ainda estava batendo, já que permanecia em pé, mas fora isso?
Bem, tinha acabado de morrer e ido para o céu.
Parada no topo da grande escadaria, com sua mão sobre o corrimão dourado, Xhex fez uma aparição gloriosa que lhe deixou sem fôlego e hipnotizado.
O vestido vermelho que usava estava perfeito, o laço preto na parte superior combinava com o cabelo negro e com os olhos cinza escuros, os quilômetros de cetim caíam ao redor de seu esguio corpo em ondas resplandecentes.
Quando ela encontrou seus olhos, ajeitou a cintura, depois alisou a frente do vestido.
Venha, ele sinalizou. Desça até mim, minha fêmea.
No canto, um tenor começou a cantar, a voz cristalina de Zsadist flutuou em direção à pintura de guerreiros no teto muito acima de todos eles. No começo, John não sabia qual era a canção... porém, não saberia responder nem mesmo qual era seu próprio nome naquele momento.
Mas, então, os sons se fundiram e ele distinguiu a melodia. Era “All I Want Is You”, do U2.
Aquela que John havia pedido para o macho cantar.
O primeiro passo de Xhex trouxe lágrimas aos olhos das fêmeas. E em Lassiter, evidentemente. Ou isso ou o anjo tinha algum cisco nos olhos.
A cada degrau que Xhex descia, o peito de John inflava ainda mais, até que sentiu como se não só seu corpo estivesse flutuando, mas como se estivesse levantando o grande peso da mansão com ele.
Ela parou na base da escada outra vez e Beth correu para arrumar a longa saia.
E então, Xhex estava com ele na frente de Wrath, o Rei Cego.
Eu amo você, John sinalizou com a boca.
O sorriso dela começou pequeno, apenas de um lado, mas espalhou-se... oh, Deus, espalhou-se até que começou a sorrir tanto que suas presas foram expostas e seus olhos brilhavam como estrelas.
Eu também amo você, ela fez com os lábios como resposta.
A voz do rei ecoou até o elevado teto:
– Ouçam-me, todos reunidos diante de mim. Estamos reunidos aqui para testemunhar a união deste macho e desta fêmea...
A cerimônia começou e prosseguiu, com ele e Xhex respondendo quando deveriam. A ausência da Virgem Escriba foi atenuada com o rei pronunciando que era uma boa união; os votos foram feitos e então havia chegado o momento mais importante.
Quando Wrath deu a ordem, John se inclinou e pressionou seus lábios nos de Xhex, em seguida, recuou, retirou o cinto de joias e o casaco. Estava sorrindo como um idiota quando os entregou a Tohr e Fritz trouxe a bandeja com o pote de sal e o jarro de prata com água.
Wrath desembainhou sua adaga negra e disse em voz alta:
– Qual é o nome de sua shellan?
Para todos ali presentes, John gesticulou:
Ela é chamada Xhexania.
Com Tohr guiando sua mão, o rei esculpiu a primeira letra em cima da tatuagem que John havia feito. Então, os outros Irmãos seguiram o exemplo, marcando toda a tinta sobre a pele, as lâminas da Irmandade não apenas cortaram os quatro símbolos no Antigo Idioma, como também os arabescos que o tatuador tinha desenhado. A cada corte, sua mente se concentrava cada vez mais na macieira, aguentando com orgulho a dor, recusando-se a deixar até mesmo um sussurro escapar dos lábios. E após esculpirem cada letra e arabesco, olhou para Xhex. Ela estava em pé na frente das fêmeas e dos outros machos, com os braços fechados sobre o corpete do vestido, seu olhar era grave, mas de aprovação.
Quando o sal bateu nas feridas frescas, cerrou os dentes com tanta força que sua mandíbula estalou sob a tensão, o som sobrepôs até o gotejar da água. Mas ele não suspirou ou gesticulou uma maldição, embora a agonia o atravessasse e fizesse sua visão embaçar.
Quando endireitou o tronco sobre os quadris, o grito de guerra da Irmandade e dos soldados da casa ecoou por todo o lugar e Tohr secou o desenho feito na carne com uma toalha de linho branca. Depois que o Irmão terminou, colocou o pano em uma caixa preta envernizada e deu a John.
Erguendo-se sobre os joelhos, John se aproximou de Xhex com a presunção de um macho cheio de si... que tinha acabado de passar por um desafio e se saído muito bem, obrigado. Na frente dela, ajoelhou-se, baixou a cabeça e lhe ofereceu a caixa preta para que aceitasse ou recusasse, a escolha era dela. A tradição dizia que se ela aceitasse a caixa, também o aceitava.
Xhex não esperou sequer um piscar de olhos.
O peso lhe foi retirado e olhou para cima. Belas lágrimas vermelhas inundavam os olhos dela enquanto embalava a caixa junto ao coração.
Enquanto os reunidos aclamavam e aplaudiam, John colocou-se em pé com um salto e arrebatou Xhex com aquele grande e lindo vestido vermelho em seus braços. Beijou-a com força, e na frente do rei, de sua irmã, de seus melhores amigos e da Irmandade, carregou sua fêmea ao subir as escadas que ela havia descido.
Sim, havia um banquete em homenagem ao casal prestes a começar. Mas o macho vinculado dentro dele precisava deixar sua marca... depois desceriam para a comida.
Estava no meio do caminho para o topo quando a voz de Hollywood soou:
– Caramba, eu também quero a minha tatuagem com essa droga de redemoinhos.
– Nem pense nisso, Rhage – foi a resposta de Mary.
– Podemos comer agora? – Lassiter perguntou. – Ou alguém mais quer virar sushi?
A festa começou; vozes, risadas e a batida da música “Young forever”, de Jay-Z, preencheu o espaço. No topo da escada, John fez uma pausa e olhou para baixo. A vista, juntamente com a fêmea em seus braços, o fez sentir como se tivesse escalado uma grande montanha e, finalmente, de uma maneira inexplicável e inacreditável, tinha chegado ao topo.
A voz rouca de Xhex selou o acordo com sua ereção:
– Veio só dar um volta ou me trouxe até aqui por um bom motivo?
John a beijou, deslizando sua língua entre os lábios dela. Ficaram assim enquanto andavam até o quarto dele...
O quarto deles.
Dentro, a colocou sobre a cama e ela o observou como se estivesse mais do que pronta para o que ele tinha para dar.
Xhex pareceu surpresa quando John simplesmente se afastou.
Mas antes ele tinha que entregar o presente que havia comprado.
Quando voltou para a cama, tinha a bolsa da joalheria Reinhardt com ele.
Fui criado como um humano, e quando eles se casam, o macho dá à fêmea um símbolo de afeição. De repente, ficou nervoso. Espero que goste. Tentei escolher um que a agradasse.
Xhex se levantou e suas mãos tremiam um pouco quando segurou a longa e fina caixa.
– O que você fez, John Matthew...?
Seu suspiro quando abriu a tampa foi simplesmente fabuloso.
John estendeu a mão e pegou a grossa corrente do ninho de veludo. O quadrado de diamante situado no meio dos elos de platina era de seis quilates – seja lá o que isso significasse. Tudo que importava era que a pedra era grande, brilhante e cintilante o suficiente para ser vista do maldito Canadá.
Apenas no caso de algum macho a vir e ter alguma pretensão errada com relação a ela ou algo assim: queria que soubessem que ela tinha dono. E se a essência da vinculação de John não chegasse aos seus narizes, com certeza o reflexo daquela pedra saltaria em suas retinas.
Não lhe dei um anel porque sei que vai lutar e não gostaria de sobre-carregar suas mãos. E se você gostar, adoraria se usasse o tempo todo...
Xhex segurou seu rosto e o beijou de uma maneira tão longa e profunda que ele não conseguiu respirar. Mas não se importou.
– Nunca vou tirá-lo. Nunca.
John fundiu suas bocas e montou sobre ela, empurrando Xhex e aquele vestido contra os travesseiros, suas mãos foram até os seios e depois desceu até seus quadris. Quando arqueou o corpo, começou a buscar dentre os metros de cetim...
Levou mais ou menos um segundo e meio para ficar frustrado.
Mas o vestido acabou ficando melhor ainda fora dela.
John fez amor lentamente com sua fêmea, deleitando-se no corpo dela, acariciando-a com suas mãos e sua boca. Quando finalmente fez com que se tornassem um, o encaixe foi tão perfeito, o momento tão certo, que a única coisa que fez foi aproveitar o momento. A vida o levou até ali com ela, com os dois juntos...
Esta seria a história que viveria a partir de agora.
– Então, John... – ela disse com uma voz rouca.
Ele assoviou em uma nota ascendente.
– Estava pensando em usar um pouco de tinta em mim. – Quando ele inclinou a cabeça para o lado, ela passou as mãos por seus ombros cautelosamente. – Que tal irmos àquela loja da tatuagem... quem sabe colocar seu nome nas minhas costas, hum?
O orgasmo que estremeceu o corpo dele e, evidentemente, o dela também, serviu como uma ótima resposta na falta de sua capacidade de pronunciar uma.
Xhex riu e moveu os quadris contra os dele.
– Vou tomar isso como um “sim”...
Sim, John pensou enquanto começava a impulsionar os quadris dentro dela. Sim, oh, claro que sim...
Afinal, se era bom para ele, também devia ser interessante para ela. Direitos iguais.
Deus, ele amava a vida. Amava a vida e todas as pessoas daquela casa e todas as pessoas de valor em todos os cantos do mundo. Não foi fácil... mas o destino acabou endireitando as coisas.
Afinal, tudo acontece exatamente como estava destinado a ser.
J. R. Ward
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