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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE RENASCIDO - P.2 / J. R. Ward
AMANTE RENASCIDO - P.2 / J. R. Ward

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Irmandade da Adaga Negra

AMANTE RENASCIDO

Segunda Parte

 

Mal precisou diminuir a velocidade nas câmeras de segurança, o que significava que estava sendo aguardada.

Depois de atravessar a última barreira, e passar pela curva larga que levava ao pátio, seu coração foi parar na barriga. Maldição, a grande casa de pedra parecia a mesma. Mas vamos lá, como se fosse mudar? Podia cair uma chuva de bombas nucleares na costa nordeste e o lugar permaneceria sólido.

Esta fortaleza, baratas e Twinkies[1], seriam tudo o que restaria.

Estacionou sua Ducati bem perto dos degraus de pedra que subiam para a porta da frente, mas não desmontou. Olhando para os portais arcados, os sólidos painéis entalhados, as gárgulas ferozes que tinham câmeras nas bocas – não havia boas-vindas ali.

A entrada era por sua conta e risco, tudo parecia ameaçar.

Uma rápida olhada ao relógio disse-lhe o que já sabia: John já estaria fora para a noite, lutando na parte da cidade que ela acabara de deixar...

Xhex inclinou a cabeça para a esquerda.

A rede de sentimentos de sua mãe foi sentida lá fora, nos jardins atrás da casa.

Era bom. Ela não queria entrar. Não queria atravessar aquele vestíbulo. Não queria lembrar do que usara, pensara, ou com o que sonhara antes da cerimônia de emparelhamento.

Fantasia estúpida sobre como a vida seria.

Desmaterializando-se para o outro lado da cerca, não teve problemas em se localizar. Ela e John tinham vagueado por aqui na primavera, enfiados embaixo dos galhos que mal brotavam nas árvores frutíferas, respirando o esquecido cheiro de terra fresca, abraçando-se contra o frio que sabiam que não permaneceria por muito tempo no ar.

Havia tantas possibilidades naquela época. E dado onde estavam neste momento, parecia apropriado que agora que o calor do verão tinha ido embora, aquele período de desabrochar vital também estivesse perdido. Agora as folhas estavam no chão, os galhos estavam novamente nus, e tudo estava a ponto de desabar.

Bem, ela não estava um cartão do Hallmark[2] hoje?

Concentrando-se na rede de sentimentos de sua mãe, contornou a casa, passando pelas portas francesas da sala de jogos e da biblioteca.

No’One estava na beirada da piscina, uma figura imóvel iluminada pelo brilho azul da água que ainda não tinha sido drenada.

Uau... Xhex pensou. Uma grande mudança ocorrera na fêmea, e fosse o que fosse, tinha alterado muito de sua estrutura emocional. Sua rede estava confusa, mas não de uma maneira ruim; mais como uma casa que estivesse passando por reformas extensas. Era um bom começo, uma transformação positiva que provavelmente levaria algum tempo.

– Bom trabalho, Tohr, – Xhex murmurou por sob o fôlego.

Como se a tivesse ouvido, No’One olhou por cima do ombro – e foi quando Xhex percebeu que o capuz que ela sempre trazia posto estava baixado, a capa de suaves cabelos loiros de sua mãe sugerindo que o cabelo estava trançado, com a ponta da longa extensão escondida sob o manto.

Xhex esperou pelo medo iluminar aquela rede. E esperou. E esperou...

Merda, algo realmente mudou.

– Obrigada por vir, – No’One disse, enquanto Xhex se aproximava.

A voz estava diferente. Um pouco mais profunda. Certamente, ela se transformara de várias maneiras. – Obrigada por me convidar, – Xhex replicou.

– Você parece bem.

– Assim como você.

Parando na frente da mãe, analisou o modo que a luz vacilante da piscina jogava contra o rosto perfeitamente adorável da fêmea. E naquela quietude que se seguiu, Xhex franziu o cenho, informação inundando-a através de seus receptores sensíveis, completando a imagem.

– Você está em um impasse, – ela disse, pensando que era meio irônico.

As sobrancelhas de sua mãe se elevaram. – Para ser sincera... Estou.

– Engraçado. – Xhex olhou para o céu. – Eu também.

Encarando a fêmea forte e orgulhosa a sua frente, No’One sentiu a mais estranha conexão com sua filha: enquanto os reflexos incessantes da piscina jogavam brilhos sobre os traços duros e severos, aqueles olhos cinza metálicos expressavam uma frustração irascível, semelhante a sua própria.

– Então, Tohr e você, hum, – Xhex disse casualmente.

No’One colocou as mãos nas bochechas ruborizadas. – Eu não sei o que responder a isto.

– Talvez eu não devesse ter tocado no assunto. É só que... É, está em toda sua mente.

– Não realmente.

– Mentirosa. – Não era uma acusação. Nem censura. Só a afirmação de um fato.

No’One se virou novamente para a água e lembrou a si mesma que, como metade sympath, sua filha saberia a verdade, mesmo se ela não dissesse uma palavra.

– Eu não tenho direitos sobre ele, – murmurou, olhando para a superfície agitada da piscina. – Não tenho direito a nenhuma parte dele. Mas não é por isto que lhe pedi para vir...

– Quem disse?

– Perdão?

– Quem disse que ele não é seu?

No’One balançou a cabeça. – Você conhece todos os motivos.

– Não, eu não conheço. Se você o quer e ele a quer...

– Ele não me quer. Não... Inteiramente. – No’One passou a mão no cabelo mesmo que ele não estivesse sobre seu rosto. Querida Virgem Escriba, seu coração estava batendo tão forte. – Eu não posso... Eu não devia estar falando sobre isto.

Era mais seguro não revelar uma sílaba a ninguém – ela sabia que Tohr não gostaria que ficassem especulando sobre ele pelas costas.

Houve um longo silêncio.

– As coisas não estão bem entre John e eu.

No’One a olhou, sobrancelhas erguidas diante da sinceridade da filha. – Eu... Eu tenho me perguntado. Você se foi há muito tempo daqui, e ele não tem parecido feliz ultimamente. Eu esperava por... Um resultado diferente de alguma forma

Incluindo entre as duas.

E de fato, era verdade o que Xhex dissera. Ambas estavam num impasse – não o acordo que ela desejava. No entanto, ela aceitaria qualquer semelhança que se apresentasse entre elas.

– Eu acho que você e Tohr fazem sentido, – Xhex disse subitamente, enquanto ela voltava a olhar para a piscina. – Eu gosto da ideia de vocês dois juntos.

No’One arqueou a sobrancelha de novo. E reavaliou a regra de não-falar. – Sério?

– Ele é um bom macho. Fiel, confiável... Malditamente trágico o que aconteceu à família dele. John se preocupou por ele por tanto tempo... Você sabe, ela foi a única mãe que John teve. Wellsie, era ela.

– Você a conheceu?

– Não formalmente. Ela não era o tipo de mulher que frequentava o lugar onde eu trabalho, e Deus sabe que eu nunca fui bem-vinda onde a Irmandade estava. Mas eu conhecia sua reputação. Embora doce, era realmente forte, uma fêmea de valor, aparentemente. Não acho que a glymera fosse grande fã dela, e o fato dela não se importar com a opinião deles, era somente mais uma coisa que depunha a seu favor, em minha opinião.

– Foi uma verdadeira história de amor.

– Sim, pelo que sei. Francamente, estou surpresa que ele tenha conseguido seguir adiante, mas me alegro, pois lhe fez imensamente bem.

No’One respirou fundo e cheirou as folhas secas. – Ele não teve escolha.

– Perdão?

– Não é minha história para eu contá-la, basta dizer que se ele pudesse escolher outro caminho, qualquer outro, ele escolheria.

– Eu não compreendo aonde você quer chegar. – Quando No’One não completou a explicação, Xhex deu de ombros. – Mas respeito seus limites.

– Obrigada. Estou feliz por você ter vindo.

– Estou surpresa por você me chamar...

– Eu falhei com você incontáveis vezes. – Enquanto Xhex recuava visivelmente, No’One acenou com a cabeça, – Assim que eu cheguei aqui, estive tão impressionada, perdida, embora conhecesse o idioma, isolada, embora não estivesse sozinha. Eu quero que saiba, no entanto, que você é a razão verdadeira que me trouxe aqui... E esta noite, eu preciso me desculpar.

– Por quê?

– Por abandoná-la após seu nascimento.

– Jesus... – A fêmea esfregou os cabelos curtos, o corpo poderoso recuando sem sair do lugar, como se estivesse se esforçando para não escapulir. – Ah, ouça, não há nada pelo que se desculpar. Você não pediu para ser...

– Você foi um bebê, recém-chegado a este mundo, sem uma mahmen para cuidar de você. Eu lhe abandonei a sua própria sorte quando não podia fazer nada além de chorar em busca de calor e ajuda. Eu... Sinto tanto, minha filha. – Ela colocou a mão sobre o coração. – Levou-me tempo demais para encontrar minha voz e as palavras, mas saiba que eu ensaiei isto por horas, em minha mente. Eu quero que seja correto o que eu digo a você, porque tudo foi tão errado entre nós desde o primeiro dia... E é tudo culpa minha. Eu fui tão egoísta, e eu perdi a coragem, e eu...

– Pare. – A voz de Xhex estava tensa. – Por favor... Só pare...

– ...Estava errada em lhe virar as costas. Errei em esperar tanto tempo. Errei em tudo. Mas esta noite... – Ela firmou o pé. – Esta noite eu revelo a você meus erros, de modo que eu talvez possa prometer meu amor, por mais imperfeito e não desejado que ele seja. Eu não mereço ser sua mãe, ou chamá-la de filha, mas talvez possamos formar uma espécie de... Amizade. Eu consigo entender que isto não é bem-vindo também, e eu sei que não tenho direito de exigir nada. Só saiba que estou aqui, e meu coração e mente estão abertos para aprender sobre quem... E o que você é.

Xhex piscou uma vez, e então ficou em silêncio. Como se o que tinha sido falado a ela tivesse chegado por meio de uma radiofrequência ruim e ela estivesse sendo forçada a interpretar o significado.

Depois de um momento, a fêmea disse rudemente, – Eu sou uma sympath. Você sabe disto, né? O termo... Mestiço... Não significa merda nenhuma quando implica em ser metade devoradora de pecado.

No’One ergueu o queixo. – Você é uma fêmea de valor. É isto o que é. Não me importa a composição de seu sangue.

– Você tinha medo de mim.

– Eu tinha medo de tudo.

– E você deve ver aquele... Macho em meu rosto. Toda vez que olha para mim, você tem de lembrar o que ele fez a você.

Ante aquilo, No’One engoliu a seco. Ela supunha que aquela parte era verdade, mas também era a coisa menos importante agora. Era mais do que hora de que aquilo tudo fosse sobre sua filha. – Você é uma fêmea de valor. É isto que eu vejo. Nada mais... E nada menos.

Xhex piscou de novo. Algumas vezes. Então mais rápido.

E então ela se arremeteu para frente, e No’One se viu envolta em um abraço certeiro e muito apertado.

Não hesitou nem por um momento em retribuir aquele gesto de afeição.

Enquanto abraçava sua filha, ela pensou, sim, de fato, o perdão expressava-se bem melhor através do contato. Palavras não eram capazes de expressar a sensação de segurar o que tinha desprezado em um momento de grande agonia, de ter o seu sangue contra ela, de apoiar, mesmo que apenas brevemente, a fêmea a quem tinha prejudicado de forma tão egoísta.

– Minha filha, – ela disse em uma voz partida. – Minha linda, forte... Valorosa filha.

Com mãos trêmulas, ela segurou a nuca de Xhex e virou o rosto da fêmea para o lado, de forma que pudesse abraçá-la contra seu ombro como se fosse um bebê. Então, com toques gentis e suaves, ela acariciou o cabelo curto.

Tinha sido impossível dizer que se sentiria grata por qualquer coisa que aquele sympath tinha feito a ela. Mas este momento levou a dor embora, este momento vital quando ela sentiu como se o círculo que começou a ser desenhado em seu útero tivesse finalmente se completado, duas metades que estiveram separadas por tanto tempo, fechando-se uma vez mais.

Quando Xhex se afastou, No’One engasgou. – Você está sangrando! – Levando a mão ao rosto da filha, ela limpou as gotas vermelhas com suas mãos. – Vou chamar a doutora Jane...

– Não se preocupe com isto. É só... Sim, nada para se preocupar. É meu jeito de... Chorar.

No’One colocou sua mão no rosto da filha e balançou a cabeça assombrada. – Você é tão diferente de mim. – Enquanto a fêmea desviava o olhar, ela completou, – Não, isto é bom. Você é tão forte. Tão poderosa. Eu amo isto em você... Eu amo tudo em você.

– Você não está falando sério.

– Sua metade sympath... É uma espécie de bênção. – Quando Xhex começou a discordar. No’One cortou-a. – Lhe dá uma camada de proteção contra... As coisas. Lhe dá uma arma contra... Coisas.

– Talvez.

– Definitivamente.

– Sabe de uma coisa? Eu nunca fiquei brava com você. Digo, eu entendo porque você fez o que fez. Você trouxe uma abominação para o mundo...

– Nunca mais use esta palavra perto de mim, – No’One brigou. – Não quando se referir a si mesma. Estamos entendidas?

Xhex riu de uma maneira engasgada, erguendo os braços em defesa. – Ok, ok.

– Você é um milagre.

– Mais como uma maldição. – Quando No’One abriu a boca para discutir, Xhex cortou-a. – Ouça, eu agradeço tudo... Isto. Eu realmente agradeço... Digo, é realmente bondade da sua parte. Mas eu não acredito em borboletas e unicórnios, e nem você deveria. Você sabe o que eu tenho sido nos últimos... Deus, tantos anos quantos posso me lembrar?

No’One franziu o cenho. – Você trabalha no mundo humano, não? Acho que ouvi algo a respeito disso.

Xhex ergueu suas mãos pálidas, flexionando os dedos em garras e relaxando-os. – Eu sou uma assassina. Fui paga para caçar pessoas e matá-las. Há sangue em mim inteira, No’One... E você tem de saber disto antes de planejar qualquer tipo de reunião cor-de-rosa para nós. De novo, me alegro que você tenha me pedido para vir aqui, e você está mais do que totalmente perdoada por tudo... Mas eu não tenho certeza se tem uma imagem realística de mim.

No’One escondeu os braços nas mangas do manto. – Você... Ainda trabalha nisto?

– Não para a Irmandade ou para meu ex-chefe. Mas com o trabalho que tenho no momento? Se eu tivesse de voltar a utilizar estas minhas habilidades, eu faria sem hesitação. Eu protejo o que é meu, e se alguém fica no caminho, eu faço o que tiver de fazer. É assim que eu sou.

No’One estudou aqueles traços, aquela expressão severa, aquele corpo tenso e musculoso que tinha muito de masculino... E viu o que estava por trás da força: havia uma vulnerabilidade em Xhex, como se ela estivesse esperando ser abandonada, posta de lado.

– Eu acho que isto está bem.

Xhex realmente pulou. – O quê?

No’One ergueu o queixo de novo. – Eu estou cercada de machos que vivem sob estas regras. Porque seria diferente com você, só porque é uma fêmea? Pelo contrário, eu estou orgulhosa de você, na verdade. Melhor ser a agressora, do que a vítima... Eu prefiro que você seja assim.

Xhex tomou um fôlego trêmulo. – Deus... Maldição... Você não faz ideia do quanto eu precisava ouvir isto, neste momento.

– Terei prazer em repetir, se você quiser.

– Eu nunca pensei... Bem, que seja. Estou feliz que esteja aqui. Estou feliz que tenha ligado. Estou feliz que você...

Quando a frase não foi terminada, No’One sorriu, um brilhante, resplandecente sorriso que explodia de seu peito. – Eu também. Talvez, se você tiver... Como é mesmo que eles dizem... Um tempinho de folga? Possamos passar algumas horas juntas?

Xhex começou a sorrir um pouco. – Posso lhe perguntar uma coisa?

– Qualquer coisa.

– Você já andou de motocicleta?

– O que é isto?

– Venha comigo até a frente de casa. Deixe-me mostrar-lhe.

 

Tohr retornou no final da noite com duas adagas sujas, nenhuma munição e uma contusão no osso da canela direita, que o fazia mancar como um zumbi.

Malditas chaves de roda. Mas também, vingar-se especificamente daquele lesser tinha sido meio divertido. Nada como arrebentar a cara do inimigo para melhorar o humor.

O asfalto era seu amigo.

Tinha sido uma noite dura de luta para todos eles e uma longa também, – o que era igualmente bom. As horas tinham voado, e mesmo fedendo a carne estragada, com todo aquele sangue preto, sua calça nova precisando de costura em uma lateral, sentia-se melhor do que quando tinha saído.

Lutar e foder, como Rhage sempre disse. Aqueles eram os dois melhores estabilizadores de humor que existiam.

Que pena que o fato de estar mais relaxado, não significava que alguma coisa havia mudado. A mesma merda estava a sua espera quando chegou em casa.

Atravessando o vestíbulo, começou o ritual de se desarmar, abrindo o coldre do peito, o coldre do ombro e o cinto de armas. O aroma de cordeiro, recém-cozido com alecrim, enchia o salão e um rápido olhar para a sala de jantar, mostrava que os doggen já estavam preparando tudo, a prataria reluzia, os cristais brilhavam e as pessoas já começavam a se reunir para a Última Refeição.

No’One não estava entre eles, como era seu costume.

Correndo pelas escadas, ele não pôde negar a excitação que ia aumentando à medida que se aproximava de seu quarto. Mas a ereção não o deixava exatamente feliz.

Você sabe tão bem quanto eu, o quanto você ainda não fez.

Quando chegou a sua porta, segurou a maçaneta e fechou os olhos. Então, forçando a abertura do painel, disse: – No’One?

O turno dela já devia ter acabado há uma hora – Fritz tinha insistido que ela tivesse algum tempo para se aprontar para o jantar, algo que ela discutira no início, mas parecia estar aproveitando, já que a Jacuzzi estava sempre úmida perto do ralo quando ele voltava para casa, depois de lutar.

Esperava que ela não estivesse na banheira. Queria uma chuveirada, mas não aguentaria os dois nus, juntos no banheiro.

Você sabe tão bem quanto eu...

– Cala. A. Boca. – Largou suas armas e começou a tirar a camiseta e as botas. – No’One? Está aqui?

Franzindo o cento, se inclinou para o banheiro, e o encontrou cheio de ninguém.

Nenhum aroma no ar. Sem umidade no ralo da banheira. Sem toalhas fora do lugar.

Estranho.

Com a mente distraída, voltou ao corredor, chegou à grande escadaria e abriu a porta escondida que ficava lá embaixo. Enquanto atravessava o túnel subterrâneo, se perguntou se ela estaria na piscina.

Esperava que não. Já seu pau, rezava que estivesse.

Pelo amor de Deus, ele não sabia mais que porra pensar.

Só que... Ela não estava flutuando, nem nua, nem de outro jeito, na superfície. E não estava no lugar onde as lavadoras e as secadoras ficavam. Nem na sala de exercícios, vestiário, ou no cômodo de suprimentos do ginásio. Nem na área da clínica, colocando roupas limpas nas prateleiras.

Ela não estava... Lá.

Sua volta à mansão levou metade do tempo da caminhada de ida, quando chegou à cozinha, tudo o que encontrou foi uma porrada de doggen adiantando o jantar.

Utilizando seus sentidos pela primeira vez, descobriu... Ela não estava em nenhum lugar da mansão.

Um pânico avassalador atravessou-o, fazendo sua cabeça zunir...

Não, espere, aquele era o som de uma... Motocicleta?

O profundo e retumbante ronco não fazia sentido. A menos que Xhex tivesse vindo por alguma razão – o que era boa notícia para John...

No’One estava em frente à casa. Naquele momento.

Seguindo a pista de seu sangue nas veias dela, correu pelo saguão, voou pelo vestíbulo, e... Parou, de supetão, no primeiro degrau da entrada.

Xhex estava em sua Ducati, sua figura em couro negro combinando perfeitamente com a moto. E bem atrás dela? No’One dividia o assento, capuz abaixado, cabelo despenteado, com um sorriso tão brilhante quanto o sol.

A expressão mudou quando o viu, enrijecendo-se.

– Oi, – ele disse, sentindo as batidas do coração começarem a normalizar.

Atrás dele, sentiu alguém mais sair do vestíbulo. John.

Xhex olhou de relance para seu companheiro e acenou, mas não desligou o motor. Olhando para trás, disse, – Tudo bem aí, mãe?

– Na verdade, sim. – No’One desmontou sem jeito, seu manto se reposicionando a seus pés, como se aliviado pelo fim da viagem. – Vejo você amanhã à noite?

– Sim. Venho buscá-la às três.

– Perfeito.

As duas fêmeas compartilharam um sorriso tão espontâneo que ele quase lacrimejou pela porra toda. Havia algo entre elas... E se ele não pudesse ter sua Wellsie e filho de volta... É, ele gostaria que No’One encontrasse sua verdadeira família.

Aparentemente, ela já tinha dado um passo nesta direção.

Quando No’One subiu os degraus, John tomou seu lugar, descendo até a moto. Tohr queria lhe perguntar onde tinham ido, o que tinham feito, o que conversaram. Mas lembrou a si mesmo, que o arranjo de dormirem juntos, não incluía quaisquer outros direitos.

O que mostrava exatamente o quão longe eles não tinham ido, não é?

– Você se divertiu? – ele disse enquanto se afastava e segurava a porta para ela.

– Sim, me diverti. – Ela levantou a barra do manto e mancou pelo vestíbulo. – Xhex me levou para um passeio de moto... Ou seria motocicleta?

– Ambos estão certos. – Viagem mortal. Fazedora de doadores de órgãos. Tanto faz. – Mas, na próxima vez, use um capacete.

– Capacete? Como de um cavaleiro?

– Não exatamente. Estamos falando de algo mais resistente do que veludo com uma cordinha no queixo. Vou lhe arrumar um.

– Oh, obrigada. – Ela alisou as pontas despenteadas em seu cabelo louro. – Foi tão emocionante. Como voar. Tive medo, no início, mas ela foi devagar. Depois, eu aprendi a adorar. Fomos bem rápido.

Bem, e aquilo não o fazia querer cagar num saquinho pelo resto da vida?

E pela primeira vez, pegou-se desejando que ela tivesse ficado com medo. Aquela Ducati não passava de um motor com um maldito assento em cima. Um desequilíbrio qualquer, e aquela pele delicada dela seria só uma mancha vermelha na estrada.

– Sim... Que ótimo. – Em sua cabeça, começou a lhe passar um sermão sobre energia cinética, cheia de termos médicos como hematoma e amputação. – Está pronta para comer?

– Tanto ar fresco me deixou faminta.

À distância, ele ouviu o ronco da moto se afastando, e então John entrou parecendo morto.

O garoto foi direto para a sala de bilhar, e numa aposta de dez contra um, ele não estava atrás de petiscos doces – mas não dava para falar com ele. Ele deixara isso malditamente claro no início da noite.

– Vamos, – Tohr disse. – Vamos nos sentar.

O costumeiro barulho de conversa ao redor da mesa silenciou quando passaram pela entrada, mas, ele estava concentrado demais na fêmea caminhando à sua frente para se importar. A ideia de que ela tinha estado no mundo lá fora, sozinha, vibrando noite a dentro com Xhex, fazia-a parecer... Diferente.

A No’One que ele conhecia nunca teria feito uma coisa daquelas.

E, merda... Por alguma razão, seu corpo se excitou com o pensamento dela vestida em roupas diferentes daquele manto dela, montada naquela moto, cabelo livre da trança e voando na noite.

Como ela ficaria de jeans? Daqueles bons... Do tipo que envolvia o traseiro da fêmea, fazendo um macho desejar um tipo de cavalgada não em uma moto.

De repente, ele a imaginou nua, encostada na parede com as pernas abertas, os cabelos soltos, as mãos segurando os seios. Como um bom garoto, ele estaria de joelhos, com a boca em seu sexo, a língua lambendo aquele lugar que conhecia tão bem com os dedos.

Ele a devoraria. Sentindo-a em seu rosto, enquanto ela se arqueava e ficava tensa...

O rosnado que saiu dele foi alto o suficiente para reverberar na sala silenciosa. Alto o bastante para fazer o rosto surpreso de No’One olhar para trás. Alto o bastante para fazê-lo sentir-se um completo idiota.

Para disfarçar, fez movimentos excessivos para puxar a cadeira para ela se sentar. Como se a merda fosse uma cirurgia cerebral.

Enquanto No’One se sentava, sua própria excitação chegou até o nariz dele, e ele quase teve de se estrangular para evitar que outro rosnado vibrasse seu peito acima.

Sentando-se em sua própria cadeira, sua ereção se apertou por trás do zíper, e por ele, tudo bem. Talvez o suprimento de sangue fosse cortado e a maldita murchasse – só que... Bem, falando na teoria do anel peniano, o oposto também poderia acontecer.

Fantástico.

Ele pegou o guardanapo, desmanchou a elaborada dobra, e...

Todo mundo estava olhando para ele e No’One. A Irmandade. Suas shellans. Mesmo o doggen que ainda ia começar a servir.

– O quê? – murmurou, enquanto colocava o tecido adamascado no colo.

Eeeeee foi quando ele percebeu que não estava usando uma camiseta. E No’One não tinha colocado o capuz.

Difícil saber quem estava chamando mais atenção. Provavelmente ela, já que a maioria deles nunca tinha visto seu rosto descoberto antes...

Antes que percebesse, seu lábio superior se retraiu acima de suas presas alongadas, e ele olhou nos olhos de cada um dos machos, sibilando para eles baixa e violentamente. Apesar do fato de todos estarem felizmente emparelhados. E serem seus Irmãos. E ele não ter direito nenhum de ser territorial.

Muitas sobrancelhas se ergueram. Alguns pediram outra dose de fosse lá o que estivessem bebendo. Alguém começou a assobiar.

Enquanto No’One colocava seu capuz de volta no lugar, conversas desconfortáveis sobre esporte e o tempo brotaram.

Tohr só esfregou as têmporas. Difícil saber o que estava causado aquela dor de cabeça.

Eram muitas opções.

No final, a refeição passou sem maiores incidentes. Mas também, tirando uma briga de comida ou incêndio na cozinha, era difícil imaginar o que poderia ser um complemento digno de seu numerosinho de serpente para a Irmandade.

Quando as coisas terminaram, ele e No’One fugiram da sala de jantar – mas não pelas mesmas razões, evidentemente.

– Eu preciso trabalhar, – ela disse enquanto eles subiam a escada. – Estive fora a noite toda.

– Você pode compensar ao anoitecer.

– Isto não seria certo.

Quando ele se viu a ponto de dizer a ela que ela devia ir para a cama, percebeu que nos últimos meses, No’One passara tempo demais só com ele. Sim, claro, ela trabalhava, mas fazia isto sozinha, e às refeições ela estava sempre calada.

Por falar nisto, quando estavam lá em cima, ou estavam se agarrando ou dormindo. Então ela também não interagia muito com ele.

– Onde você e Xhex foram?

– Em muitos lugares. Descemos o rio. Fomos à cidade.

Ele fechou brevemente os olhos à menção de “à cidade”. E então teve de se perguntar por que ele nunca a levava a lugar algum. Quando estava de folga, ficava no ginásio ou lendo na cama, esperando por ela. Nunca lhe ocorreu fazer nada mais com ela no mundo lá fora.

É porque você a esconde o máximo que consegue, sua consciência apontou.

Que fosse. Ela estava sempre trabalhando...

– Ei, espere um minuto, por que você nunca tem dias de folga? – ele reclamou com uma careta enquanto fazia as contas. Merda, o que infernos aquele mordomo estava querendo, fazendo esta fêmea se matar de trabalhar...

– Oh, eu tenho, mas eu nunca tiro. Não gosto de ficar sentada sem fazer nada.

Tohr esfregou a sobrancelha com o polegar.

– Se me der licença, – ela murmurou, – Vou descer ao centro de treinamento e começar a trabalhar.

– Quando você termina?

– Provavelmente às quatro da tarde.

– Ok. – Enquanto ela se virava, ele colocou a mão em seu braço. – Ah, ouça, se for ao vestiário durante as horas do dia, sempre bata e se anuncie, ok?

A última coisa que alguém precisava, era ela dar de cara com um dos Irmãos nu.

– Oh, claro. Eu sempre faço isso.

Enquanto ela desaparecia na esquina, ele a observou, sua figura manquejando com uma dignidade inata que ele, subitamente, sentiu não estar honrando.

– Temos um encontro, lembra?

Olhando para a direita, balançou a cabeça para Lassiter. – Sem clima.

– Grande merda. Vamos... Já arranjei tudo.

– Ouça, sem ofensa, mas não serei uma boa companhia agora...

– E quando é que você é?

– Eu realmente não...

– Blá, blá, blá, blá. Cala a porra da boca e mexa esse traseiro.

Quando o anjo o segurou e o puxou, Tohr desistiu da luta e permitiu-se ser arrastado até a escada e descer pelo corredor das estátuas – para o outro lado. Eles passaram pelo seu quarto, o quarto dos meninos, a suíte de Z, Bella e Nalla. Saíram na ala da equipe de serviço. Na entrada da sala de cinema.

Tohr parou. – Se isto for outra maratona Beaches[3], eu vou dar uma de Bette em cima do seu traseiro, até que você não consiga mais se sentar.

– Oh, veja só! Tentando ser engraçado.

– Sério, se você tem alguma compaixão, deixe-me ir para a cama...

– Eu tenho M&M’s de amendoim lá.

– Não fazem meu estilo.

– Raisinets[4].

– Eca.

– Sam Adams[5].

Tohr estreitou os olhos. – Geladas?

– Estupidamente geladas.

Tohr cruzou os braços sobre o peito e disse a si mesmo que não ia fazer manha como um garotinho de cinco anos. – Eu quero Milk Duds[6].

– Vai ter. E pipoca.

Praguejando, Tohr abriu a porta e entrou na sala parcamente iluminada. O anjo fez tudo sem pausas quando chegaram lá: tudo arrumado como um noivado real. Sam Adams no chão dentro de um balde de gelo. Uma vitrine embaraçosamente calórica com, sim, uma caixa amarela de Milk Duds. E a maldita pipoca.

Sentaram lado a lado, e chutaram os apoios para pés.

– Diga-me que não são filmes pornôs da década de 50. – Tohr murmurou.

– Não. Pipoca? – o anjo disse enquanto apertava play e oferecia a tigela. – Manteiga extra... Industrializada, não daquele tipo horrível da vaca real.

– Por enquanto não.

Na tela, apareceram créditos em cima do logotipo de algum estúdio. E então, apareceram duas pessoas sentadas em um sofá. Conversando.

Tohr tomou um gole da cerveja. – Que porra é essa?

– Harry e Sally – Feitos um para o outro.

Tohr afastou sua longneck da boca. – O quê?

– Fique quieto. Depois disto, vamos ver um episódio de A Gata e o Rato. Então, Tarde Demais para Esquecer... A versão antiga, não aquela estupidez com Warren Beatty. Então A Princesa Prometida...

Tohr apertou o botão perto de seu quadril e endireitou a cadeira. – Ok. Certo. Divirta-se com isso...

Lassiter apertou pause e bateu uma mão pesada em seu ombro. – Senta a porra da bunda aí. Observe e aprenda.

– Aprender o quê? O quanto eu odeio comédias românticas? Que tal se somente instituirmos isto e você me deixar ir?

– Você vai precisar disto.

– Para minha segunda carreira como boiola?

– Porque você tem que se lembrar como ser romântico.

Tohr balançou a cabeça. – Não. De jeito nenhum. Não vai acontecer...

Quando ele já ia pegando carona no ‘só-por-cima-do-meu-cadáver’, Lassiter apenas balançou a cabeça. – Você precisa se lembrar de que é possível, camarada.

– O inferno que preciso...

– Você está empacado, Tohr. E embora você tenha tempo para ficar peidando por aí, Wellsie não pode se dar este luxo.

Tohr calou a boca. Sentou-se. Começou a cutucar o rótulo de sua cerveja. – Eu não posso fazer isto, cara. Não consigo fingir que sinto... Que me sinto desta maneira.

– Tipo não poder fazer sexo com No’One? Quanto mais tempo você planeja continuar do jeito que estão?

– Até que você desapareça. Até que Wellsie seja libertada e você suma.

– E como isto está funcionando para você? Você gostou de seu sonho de hoje?

– Filmes não irão ajudar, – ele disse depois de um momento.

– O que mais você vai fazer? Se masturbar em seu quarto até No’One voltar do trabalho... Para então se masturbar em cima dela? Oh, espere, deixe-me adivinhar... Perambular, inutilmente. Porque isto não é nada que você não tenha feito antes. – Lassiter enfiou a tigela, que oferecera antes, na cara de Tohr. – Que porra vai lhe custar ficar aqui comigo? Cala a boca e coma sua metade das pipocas, imbecil.

Tohr aceitou o que estava à sua frente, porque era isto ou ele terminar coberto com pipocas.

Uma hora e trinta e seis minutos depois, ele teve de limpar a garganta enquanto Meg Ryan dizia a Billy Crystal que o odiava, no meio da festa de Ano Novo.

– Tempero a parte, – Lassiter disse enquanto se levantava. – A resposta para tudo.

Um minuto depois, o jovem Bruce Willis apareceu na tela, e Tohr deu graças. – Isto é muito melhor. Mas precisamos de mais cerveja.

– Deixa comigo.

Uma caixa de cerveja depois e eles tinham passado por dois episódios de A Gata e o Rato, incluindo um especial de Natal onde o elenco e a equipe cantaram junto com os atores na última cena.

O que não o fez querer limpar a garganta de novo. Realmente. Não fez.

Então eles tentaram assistir Tarde demais para Esquecer. Pelo menos até Lassiter se apiedar dos dois e começar a apertar o botão de avanço rápido.

– As garotas dizem que este é o melhor, – o anjo murmurou, enquanto apertava o botão de novo e fosse lá quem fosse, começava a se mover em velocidade avançada. – Talvez tenha sido um erro.

– Amém.

Ok, o filme da princesa não era ruim – aquela merda era engraçada em algumas partes. E, sim, foi... Legal quando os dois ficaram juntos no final. O que ele mais gostou foi do Columbo como o avô. Mas não podia dizer que aquilo o estava transformando num Casanova.

Lassiter olhou para ele. – Ainda não terminamos.

– Só continue a me dar cerveja.

– Peça e receberá.

O anjo estendeu-lhe uma cerveja gelada e desapareceu na sala de controle para mudar o DVD. Quando voltou para onde estavam sentados, a tela se iluminou com...

Tohr saltou para trás em seu banco. – Que inferno!

Enquanto o corpo inteiro de Lassiter cortava a projeção na tela, um gigantesco par de seios balançantes cobriu seu rosto e peito. – Aventuras à moda MILF[7]. Um verdadeiro clássico.

– É pornô!

– Dãh...

– Ok, eu não vou ficar sentado aqui vendo isto com você.

O anjo, ainda em pé, deu de ombros. – Só queria me certificar de que você visse o que está perdendo.

Gemidos se ergueram pelo som surround enquanto aqueles peitos... Aqueles fodidos peitos pareciam espancar Lassiter na boca...

Tohr cobriu seus olhos horrorizado. – Não! Não vou fazer isto!

Lassiter parou o filme, os sons desapareceram. E uma rápida checada por entre os dedos indicou que era um stop e não uma pausa, misericordiosamente.

– Só estou tentando lhe entender. – Lassiter sentou, abriu outra cerveja e pareceu cansado. – Cara, esta merda de ser anjo... É tão fodidadamente difícil influenciar qualquer coisa. Eu nunca tive problema com o livre arbítrio antes, mas pelo amor da merda, eu queria apenas agir como Jeannie é um gênio com você para levá-lo com um truque rápido, para onde você precisa estar. – Enquanto Tohr recuava, o anjo murmurou, – Mas tudo bem. Vamos chegar lá de algum jeito...

– Na verdade, eu o estou imaginando com uma fantasia rosa de odalisca.

– Ei, eu tenho um grande traseiro, se quer saber.

Eles beberam cerveja por um tempo até que um logotipo da Sony começou a aparecer em pontos aleatórios na tela. – Você já se apaixonou? – Tohr perguntou.

– Uma vez. Nunca mais.

– O que houve? – Quando o anjo não respondeu, Tohr o encarou. – Oh, então tudo bem para você conhecer cada cantinho sujo e escuro da minha vida, mas não pode retribuir o favor?

Lassiter deu de ombros. Abriu outra cerveja. – Você sabe o que eu acho?

– Não até você me dizer.

– Eu acho que devíamos assistir outro episódio de A Gata e o Rato.

Tohr exalou longa e lentamente e teve de concordar. Não era ruim assistir a filmes com o cara, falando sobre os diálogos enquanto bebiam Sam Adams e comiam besteiras. De fato, ele não conseguia se lembrar da ultima vez em que apenas... Tinha passado o tempo assim.

É claro, deve ter sido com Wellsie. Todos os seus momentos de folga eram passados com ela.

Deus, quantos dias eles tinham passado sem fazer nada, despreocupadamente largados em frente à TV, assistindo reprises e filmes horríveis nos canais pagos, às vezes, notícias monótonas. Eles ficavam de mãos dadas, ou ela recostada em seu peito, ou ele brincando com seu cabelo.

Tanto tempo perdido, pensou. Mas enquanto naquele intervalo de minutos e horas, tinha sido... Uma espécie de simples e tranquila benção.

Mais outra coisa para lamentar.

– Que tal assistirmos a algo mais recente da carreira de Bruce Willis? – ele disse rudemente.

– Duro de Matar?

– Prepare o filme que vou ligar a máquina de pipoca.

– Fechado.

Enquanto ambos se levantavam e se dirigiam aos fundos, ele para o balcão de doces e refrigerantes, Lassiter para a cabine de controle, Tohr fez o cara parar.

– Obrigado, cara.

O anjo lhe deu um tapa no ombro, e então seguiu para colocar algum filme de machão para rodar. – Só estou fazendo o meu trabalho.

Tohr olhou o cabelo loiro-e-preto do anjo desaparecer através da porta estreita.

O maldito livre-arbítrio estava certo. E quanto a ele e No’One?

Era duro para ele pensar no que viria em seguida. Inferno, quando ele ficou com ela pela primeira vez, custou-lhe tanto domar as emoções para poder aceitar a veia dela, dar-lhe a sua, e ficar com ela do jeito que tinha ficado.

Se ele fosse mais além?

O próximo nível ia fazer aquela merda parecer um passeio no parque.

 

Era meio dia quando o celular de Xcor tocou, e a suave campainha invadiu seu sono leve. Com movimentos aleatórios, ele procurou o botão verde de atender, e depois de apertá-lo, colocou a coisa no ouvido.

Na prática, ele odiava aquelas malditas coisas. Em termos práticos, eles haviam sido uma vantagem incrível, o que o fazia se perguntar por que tinha sido tão resistente a eles.

– Sim, – falou. Quando uma voz arrogante respondeu a ele, sorriu sob a luz tênue do porão. – Saudações, cavalheiro. Como vai, Elan?

– O que... O quê? – o aristocrata teve de se controlar para recuperar o fôlego. – O que foi que me enviou?

Sua fonte no Conselho já tinha uma voz estridente; o pacote que obviamente acabara de abrir, tinha elevado o tom à estratosfera.

– A prova de nosso trabalho. – Enquanto falava, cabeças começaram a se erguer dos beliches, seu Bando de Bastardos acordando para ouvir. – Eu não quero que você pense que exageramos nossas habilidades... Ou a Virgem Escriba nos preserve, mentimos sobre nossas atividades.

– Eu... Eu... O que eu devo fazer com... Isso?

Xcor girou os olhos. – Talvez algum de seus servos possa dividi-lo para distribuir entre seus amigos, membros do Conselho. E então eu imagino que seu tapete terá de ser lavado.

Dentro da grande caixa de papelão que enviou, Xcor tinha colocado alguns dos suvenires de suas matanças, todos os tipos de pedaços e partes de lessers: braços, mãos, aquela coluna espinhal, parte de uma perna. Ele tinha colecionado, preparando o momento certo de chocar o Conselho... E provar que o trabalho estava sendo feito.

O risco era que a natureza grotesca de seu “presente” poderia se considerado contraproducente e eles passarem a ser vistos como selvagens. A vantagem em potencial era que ele e seus soldados seriam vistos como eficientes.

Elan limpou a garganta. – De fato, você andou... Bem ocupado.

– Eu sei que isto é assustador, mas a guerra é um negócio assustador, em que você deveria ser beneficiário e não participante. Precisamos salvar você... – Mesmo sendo um inútil. – ... Deste tipo de desprazer. Eu gostaria de ressaltar, no entanto, que esta é só uma pequena amostra do tanto que já matamos.

– De verdade?

A pitada de admiração na pergunta foi gratificante. – Sim. Você pode ter certeza de que lutamos todas as noites pela raça, e somos altamente eficazes.

– Sim, claramente, vocês são... E eu gostaria de deixar bem claro que não desejo mais “provas”, como você diz. Mas iria lhe ligar mais tarde, de qualquer jeito. O encontro final com o rei foi agendado.

– Oh?

– Eu chamei os membros do Conselho porque marquei para esta noite uma reunião... Informal, claro, então não há necessidade procedimental em incluir Rehvenge. Assail respondeu que não poderá participar. Obviamente, ele deve ter um encontro com o rei... Ou ele viria até minha casa.

– Claro, – Xcor rosnou. Ou mais precisamente, obviamente não. Dadas as atividades noturnas de Assail, que só se intensificaram desde o verão, já andava ocupado o suficiente. – E eu lhe agradeço pela informação.

– Quando os outros chegarem, eu vou exibir esta... Amostra, – o aristocrata disse.

– Faça isto. E diga-lhes que estou disposto a encontrá-los a qualquer momento. Você pode me chamar... Sou seu servo nisto e em todas as coisas. De fato, – ele fez uma pausa de efeito, – seria uma honra me associar a eles através de sua indicação... E juntos, você e eu nos asseguraremos de que eles entendam adequadamente a condição vulnerável deles, sob o governo do Rei Cego, e a segurança que você e eu podemos proporcionar.

– Ah sim, claro... Sim. – O cavalheiro se animou diante de tanto palavreado, que foi usado exatamente com este propósito. – Eu aprecio a sinceridade.

É surpreendente quando a premeditação é confundida com sinceridade.

– E eu, por seu apoio, Elan. – Quando Xcor desligou o telefone, passou os olhos pelos soldados e então se fixou em Throe. – Depois do pôr do sol, vamos aparecer na propriedade de Assail de novo. Talvez consigamos alguma coisa desta vez.

Enquanto os outros rosnavam em aprovação, sem falar ergueu o telefone... E acenou com a cabeça para seu segundo em comando.

 

– Senhor, nós chegamos. A porta está à traseira do veículo.

Quando a voz de Fritz veio pelo comunicador da van, o aviso do mordomo não era novidade, ainda que Tohr não conseguisse ver onde eles estavam, do ponto onde estava, bem atrás.

– Obrigado, cara.

Batendo os dedos no chão de revestimento da van, ele ainda estava meio tonto daquelas cervejas que tomara com Lassiter, e seu estômago era um poço dolorido graças à maratona de manteiga industrializada e Milk Duds.

Mas talvez a náusea fosse mais devido ao lugar onde eles estavam.

– Senhor, já pode sair.

Tohr se arrastou de lado para as portas duplas, e se perguntou por que infernos estava fazendo isto consigo mesmo. Depois dele e Lassiter terminarem as homenagens a John McClane[8], o anjo tinha saído para dormir, e Tohr tinha... Tido esta grande ideia, sem motivo aparente.

Abrindo a porta... Saiu para sua garagem escura e fechou as portas.

Fritz abaixou a janela. – Senhor, talvez eu devesse esperar aqui.

– Não, você pode ir. Vou ficar aqui até o anoitecer.

– Tem certeza que as cortinas estão puxadas lá dentro?

– Sim. É costume, e eu confio em meus doggen.

– Talvez eu deva só verificar de novo?

– Não é neces...

– Por favor, senhor. Não me mande embora para encarar o rei e seus Irmãos sem a certeza da sua segurança.

Difícil discutir com isto. – Eu espero aqui.

O doggen apressou seus velhos ossos para fora do volante e se dirigiu pelo caminho com admirável velocidade – provavelmente por estar preocupado em Tohr mudar de ideia.

Enquanto o mordomo entrava em casa, Tohr andou em volta, inspecionando seus velhos equipamentos de jardinagem, seus ancinhos, o sal para a neve. O conversível Stingray tinha sido levado para a garagem da mansão... Naquela noite em que ele trouxe o vestido de Wellsie para Xhex.

Ele não teve vontade de voltar aqui para trazer o vestido, depois de lavado e passado.

Não tinha certeza de querer estar aqui agora.

– Tudo está seguro, senhor.

Tohr se virou afastando-se do espaço vazio onde o Corvette tinha estado estacionado. – Obrigado, cara.

Não esperou o mordomo partir para entrar na casa – havia muita luz do sol do outro lado das portas da garagem. Então com um aceno final, ele se preparou... E andou para a entrada dos fundos.

Quando a porta se fechou atrás de si, a primeira coisa que viu foram seus casacos de inverno. As malditas parkas ainda estavam penduradas nos ganchos, a sua, a de Wellsie e a de John.

A de John era pequena, porque ele ainda era um pretrans naquela época.

Era como se as malditas coisas estivessem esperando pelo retorno deles.

– Boa sorte com isto, – ele murmurou.

Preparando-se, continuou em frente, entrando na cozinha que tinha sido o sonho de Wellsie.

Fritz tinha consideradamente mantido as luzes acesas, e o choque de ver tudo pela primeira vez, desde as mortes fez Tohr imaginar se não teria sido melhor vir em plena escuridão: os balcões que eles escolheram juntos, e a sólida Sub-Zero[9] que ela amara tanto, e aquela mesa que eles compraram online no site 1stdibs.com, o jogo de prateleiras que ele instalara para os livros de receita dela... Tudo estava à mostra, limpo e brilhante, como no dia em que tinha sido instalado/entregue/montado.

Merda, nada mudara. Tudo estava exatamente como tinha estado na noite em que ela tinha sido morta, seu doggen manteve longe a poeira, e foi só.

Andando pela mesa embutida, forçou-se a pegar um Post-it que tinha algo rabiscado por ela.

Terça: Havers – check-up, 11:30

Largou o bloco e se virou, seriamente questionando sua sanidade. Por que tinha vindo aqui? Era possível que algo bom resultasse disso?

Perambulando em volta, passou pela sala de estar, a biblioteca, e a sala de jantar, fazendo uma volta nas salas do primeiro andar... Até que se sentiu como se não conseguisse respirar, até que a tontura do álcool passou e sua visão, olfato e audição estiveram insuportavelmente aguçados. Por que ele estava...?

Tohr piscou quando se viu em frente a uma porta.

Ele deu um giro completo, até voltar para a cozinha.

E ele estava parado no caminho para o porão.

Ah, merda. Isto não... Não estava pronto para isto.

A verdade era que Lassiter e seus filmes de merda, tinham feito mais mal do que bem. Todos aqueles casais na tela... Mesmo que eles fossem inquestionavelmente instrumentos de ficção, alguns deles tinham se infiltrado em seu cérebro, e disparado todo tipo de coisas.

Nenhuma delas tinha sido sobre Wellsie.

Ao invés disto, ele pensava somente naqueles dias com No’One, os dois deitados com todas aquelas cobertas entre seus corpos, ela olhando para ele como se quisesse mais do que ele estava dando, ele se segurando em respeito a sua morta... E talvez porque ele, no fundo, no fundo, fosse um completo covarde.

Provavelmente um pouco dos dois.

Por causa disto rondando sua mente, tinha vindo aqui. Precisava das lembranças de sua amada, imagens de sua Wellsie, que talvez tivesse esquecido, um poderoso golpe do passado para combater aquilo que sentia como sendo uma traição em seu presente.

De uma grande distância, olhou sua mão se estender e segurar a maçaneta. Girando a direita, empurrou para abrir o pesado e pintado painel de aço. Enquanto as luzes automáticas se acendiam na escada, foi atingido por muita coisa creme: os degraus que desciam estava acarpetado em um amarelo claro e as paredes também, tudo calmo e sereno.

Este tinha sido o santuário deles.

O primeiro passo foi como pular da beira do Grand Canyon. E o passo número dois não foi melhor.

Ainda se sentia daquele jeito quando chegou ao fim da escada e não havia mais degraus a descer.

O porão da casa seguia o plano do primeiro andar, embora apenas dois terços do espaço estivesse acabado, com uma suíte máster, uma academia, lavanderia, e uma mini-cozinha, o resto funcionando como despensa.

Tohr não tinha ideia de quanto tempo ficou ali.

Finalmente, ele se adiantou em direção a porta fechada a sua frente...

O fato de abrir a coisa direto para um buraco negro fazia sentido...

Meeerda, ainda tinha o cheiro dela. Seu perfume. Sua essência.

Entrando, fechou a porta e se preparou enquanto acendia a luz gradualmente.

A cama estava arrumada.

Como se pelas mãos dela. Mesmo que eles tivessem empregados, ela tinha sido o tipo de fêmea que gostava de fazer as coisas ela mesma. Cozinhar. Limpar. Dobrar roupas.

Arrumar a cama deles no fim do dia.

Não havia nada de poeira em nenhuma das superfícies, nem nos armários, dele e dela... Nem na mesa de cabeceira, com o relógio despertador, o dela com telefone... Nem na mesa com o computador que dividiam.

Maldito fosse, não conseguia respirar.

Para dar um tempo no sofrimento, entrou no banheiro com a ideia de recuperar o oxigênio que seu corpo precisava.

Não devia ter feito isto. Ela estava por todo o lugar azulejado também; da mesma forma que estava em toda casa.

Abrindo um dos gabinetes, pegou um frasco de seu hidratante e leu o rótulo, frente e verso – algo que nunca fez enquanto ela vivia. Fez o mesmo com os xampus, vidros de sais de banho que... Sim, cheiravam como ele recordava, limão verbena.

Voltou ao quarto.

Andou até o closet...

Ele não teve certeza de quando a mudança ocorreu. Talvez tenha sido enquanto ele passava pelos suéteres dela, acondicionados nos cubículos. Talvez tenha sido enquanto olhava para os sapatos alinhados na prateleira. Talvez quando ele passava a mão pelas blusas nos cabides, ou não, suas calças... Ou talvez as saias ou vestidos...

Mas finalmente, no silêncio, sua dolorida solidão, em seu lamento permanente... Ocorreu a ele que aquilo tudo eram só coisas.

Suas roupas, sua maquiagem, artigos de higiene... A cama que ela tinha arrumado, a cozinha onde ela cozinhara, a casa que ela tornara deles.

Eram só coisas.

E do jeito que ela nunca mais ia usar o vestido de emparelhamento de novo, ela nunca mais voltaria aqui para se apossar de nada disto. Tudo tinha sido dela e ela tinha vestido, usado, e necessitado de cada pouquinho – mas isto não era mais dela.

Então diga – diga que ela está morta.

Eu não consigo.

Você é o problema.

Nada do que ele fizera neste processo de luto a trouxera de volta. Nem a agonia de relembrar, nem a bebedeira inconsequente, nem as lágrimas inúteis de fraqueza, ou a resistência a outra fêmea... Nem evitar este lugar, ou as horas sentado sozinho com um buraco vazio em seu peito.

Ela se fora.

E aquilo significava que tudo aquilo eram só coisas em uma casa vazia.

Deus... Não era isto que ele esperara sentir. Ele tinha vindo aqui para pavimentar No’One. Ao invés disto? Tudo o que encontrara fora uma coleção de objetos inanimados sem mais o poder de transformar onde ele estava, do que tinham de falar e se mexer sozinhos.

No entanto, considerando onde Wellsie estava, a ideia de que ele estivesse procurando por uma maneira de interromper sua conexão com No’One, era loucura. Ele devia estar adorando a ideia de estar pensando em outra fêmea.

Ao invés disto, sentia como se isto fosse uma maldição.

 

De volta à mansão da Irmandade, No’One se sentou na cama que compartilhava com Tohrment, seu manto sobre o edredom ao seu lado, seu movimento cobrindo sua carne.

Silencioso. Tão silencioso este quarto estava sem ele.

Onde ele estava?

Quando ela retornou do seu trabalho no centro de treinamento, esperava encontrá-lo aqui em cima esperando por ela, quente e talvez até adormecido no edredom. Ao invés disso as cobertas estavam todas no lugar, os travesseiros organizados na cabeceira, o acolchoado extra, aquele que ele usava para se esquentar ainda cuidadosamente dobrado nos pés da cama.

Ele não esteve na sala de musculação, na piscina ou no ginásio. Nem na cozinha quando ela esteve rapidamente para pegar um refresco. Nem na sala de bilhar ou biblioteca.

E também não apareceu para a Primeira Refeição.

A maçaneta girou e ela se sobressaltou... Apenas para liberar uma profunda respiração. Seu sangue no corpo do guerreiro anunciava a sua chegada, mesmo antes de seu cheiro se apoderar do seu nariz ou seu corpo preencher o batente da porta.

Ele ainda não tinha colocado uma camisa. Ou botas nos pés.

E seu olhar fixo era sombrio e desolado como os corredores do Inferno.

– Onde você esteve? – ela sussurrou.

Ele se esquivou tanto de seus olhos como da pergunta entrando no banheiro.

– Estou atrasado. Wrath nos chamou para uma reunião.

Enquanto ele tomava banho, ela recolheu seu manto e o puxou por cima de seus ombros, sabendo que ele de alguma maneira ficava desconfortável com ela nua fora da cama. Mas essa não era a causa do seu humor; ele já estava desse jeito antes mesmo de olhar para ela.

Sua amada, ela pensou. Tinha que ter algo a ver com sua amada.

E ela provavelmente deveria deixá-lo em paz.

Mas não deixou.

Quando ele saiu do banho tinha uma toalha enrolada em torno do quadril e foi diretamente ao closet sem sequer olhar para ela. Apoiando uma palma no batente da porta, ele a abriu e se inclinou, o nome em seus ombros iluminado sob a lâmpada de teto acima dele.

Só que ele não pegou nenhuma roupa. Ele deixou sua cabeça pender ainda mais.

– Fui em casa hoje. – ele disse abruptamente.

– Hoje? Como… Durante o dia?

– Fritz me levou.

Seu coração bateu forte só de pensar nele exposto ao sol... Espera aí, eles não viveram juntos aqui?

– Nós tínhamos nossa própria casa. – disse ele. – Não morávamos aqui com todo mundo.

Então este não era o quarto do casal. Ou sua cama.

Quando ele não disse mais nada, ela perguntou. – O que você… Encontrou lá?

– Nada. Absolutamente porra nenhuma.

– Estava vazio de suas coisas?

– Não, deixei tudo exatamente como estava na noite em que ela morreu. Até os pratos que estavam limpos no lava louças, a correspondência sobre o balcão, o rímel que ela deixou bem antes de sair de casa pela última vez.

Oh, que agonia para ele, ela pensou.

– Fui até lá procurando por ela e tudo que obtive foi uma exibição do passado.

– Mas você nunca está longe dela... Sua Wellesandra está sempre com você. Ela vive em seu coração.

Tohrment se virou com seus olhos encobertos e intensos. – Não como ela costumava viver.

Abruptamente ela se aprumou sob seu olhar. Mexendo na barra do seu manto. Cruzou suas pernas. Em seguida, descruzou-as. – Por que está me olhando assim?

– Eu quero foder você. É por isso que voltei para casa.

Enquanto o rosto de No’One registrava um choque de alta octanagem, Tohr não se incomodou em amenizar a verdade com palavras bonitas ou com algum tipo de desculpa qualquer. Ele estava tão cheio de tudo: de lutar contra seu corpo, discutir com o destino, lutar com uma inevitabilidade, a qual ele se recusava a ceder por tempo demais.

Em pé na frente dela, estava nu de um modo que não tinha nada a ver com a falta de roupas. Nu e cansado… E faminto por ela...

– Então você deve me possuir. – ela disse numa voz suave.

Conforme suas palavras afundavam gradualmente, ele se sentiu empalidecer.

– Você entendeu o que eu disse?

– Você foi contundente o suficiente.

– Você deveria me mandar para o inferno.

Houve uma breve pausa. – Bem, nós não temos que prosseguir.

Sem rancor. Sem súplica. Sem desapontamento... Era tudo sobre ele e onde ele estava.

Como ela podia ser tão… Amável? Ele se perguntou.

– Eu não quero lhe machucar. – disse ele, sentindo-se como se quisesse retribuir o favor.

– Você não vai. Eu sei que você ainda ama sua companheira e não lhe culpo. O que você teve com ela é um amor de uma vez na vida.

– E quanto a você?

– Não tenho nenhuma necessidade ou desejo de tomar o lugar dela. E o aceito como você é, de qualquer forma que escolher vir pra mim. Ou não, se este é o modo que deve ser.

Tohr amaldiçoou enquanto uma parte de sua dor inesperadamente se aliviou. – Isso não é justo pra você.

– Sim, é. Estou feliz simplesmente por este tempo com você. Isso é suficiente... E mais do que eu jamais poderia esperar do meu destino. Estes últimos meses foram uma alegria complicada que eu não teria trocado por nada. Se isso deve terminar, então pelo menos eu tive estes momentos. E se continuar, então tenho mais sorte do que mereço. E… Se isso de alguma maneira coloca em você um pouco de paz, então servi ao meu único propósito.

Enquanto ela se silenciava, aquela sua calma dignidade o destruía, verdadeiramente. E foi com uma sensação de irrealidade absoluta que ele caminhou até ela, curvou-se e tomou seu rosto em suas palmas.

Acariciando sua bochecha com seu polegar, ele olhou dentro de seus olhos.

– Você é… – Sua voz se partiu. – Você é uma fêmea de valor.

No’One colocou suas mãos nos seus pulsos grossos, seu toque suave e leve.

– Ouça minhas palavras e acredite nelas. Não se preocupe comigo. Cuide do seu coração e de sua alma primeiro... Isso é o que mais importa.

Ajoelhando-se diante dela, trabalhou seu caminho entre suas pernas, preenchendo o espaço criado por seu corpo. Como sempre, com ela, se sentia tanto desajeitado quanto à vontade estando tão perto.

Com seus olhos, traçou seu rosto, aquele rosto tão bonito e amável. E então se concentrou em seus lábios.

Movendo-se lentamente ele se inclinou não realmente certo do que diabos estava fazendo. Ele nunca a havia beijado. Nem uma vez. Por tudo que ele conhecia sobre o seu corpo, não conhecia nada de sua boca e, conforme seus olhos se acenderam, era óbvio que ela nunca esperou por tal intimidade.

Inclinando sua cabeça, ele fechou seus olhos… E diminuiu a distância até que encontrou um monte aveludado.

Suavemente, castamente, pressionou e se afastou.

Não era suficiente.

Mergulhando novamente ele se demorou em sua boca, roçando, assediando. Então ele interrompeu bruscamente o contato e se levantou em um salto. Se não parasse agora, não pararia mais e já estava atrasado para encontrar Wrath e seus Irmãos. Além do mais, isso não se tratava de uma sessão de sexo rápido.

Era mais importante do que isso.

– Tenho que me vestir. – disse a ela. – Tenho que ir.

– E eu estarei aqui quando você voltar. Se quiser que eu esteja.

– Eu quero.

Afastando-se ele não perdeu tempo em colocar suas roupas ou recolher suas armas, e assim que ele agarrou sua jaqueta de couro tinha toda a intenção de ir direito porta afora. Invés disso ele parou e olhou para ela. Ela tinha as pontas dos dedos sobre seus lábios, seus olhos arregalados e cheios de surpresa… Como se ela nunca tivesse sentido nada nem perto do que acabou de sentir.

Ele voltou para a cama. – Este foi seu primeiro beijo?

Ela enrubesceu na cor rosa mais adorável, seus olhos baixando timidamente para o tapete.

– Sim.

Por um momento, tudo que ele pode fazer foi sacudir sua cabeça por tudo que ela passou. Então se inclinou para baixo. – Vai me deixar lhe dar outro?

– Sim, por favor… – ela suspirou.

Ele a beijou por mais tempo desta vez, demorando-se em seu lábio inferior, até mesmo mordiscando-o suavemente com uma de suas presas. Com contato, o calor explodiu entre eles, especialmente, quando ele a puxou contra o seu corpo, segurando-a mais forte do que deveria, já que muitas armas estavam presas em seu torso.

Antes que a tomasse, ele se forçou a colocá-la de volta na cama. – Obrigado. – ele suspirou.

– Pelo quê?

Tudo que ele podia fazer era dar de ombros porque grande parte da sua gratidão era muito complicada para falar em voz alta. – Acho que por não tentar me mudar.

– Nunca. – ela disse. – Agora, fique seguro.

– Eu vou.

Do lado de fora no corredor ele fechou a porta silenciosamente e respirou fundo...

– Você está bem, meu Irmão?

Ele se sacudiu e olhou para Z. O macho também estava vestido para lutar, mas vinha pelo corredor da direção oposta de sua suíte.

– Ah, sim, claro. E você?

– Fui enviado para lhe chamar.

Certo. Entendido. E estava contente que fosse Z. Sem dúvida o cara estava bastante ciente do seu fodido humor, mas ao contrário dos outros... Cof–Rhage–Cof... Ele nunca se intrometeria.

Juntos eles caminharam corredor abaixo e entraram no escritório do rei, chegando exatamente quando V dizia, – Não gosto disso. Aquele vampiro que nos fodeu por meses de repente chama do nada e diz que está pronto para lhe ver?

Assail, Tohr pensou, no momento em que se posicionava contra a estante de livros.

Enquanto seus Irmãos murmuravam diferentes variações num tema não-tão-quente, ele se focou na situação em pauta e concordou completamente. Era muita coincidência...

Atrás da grande mesa, a expressão de Wrath era fria como uma pedra e, somente um olhar naquele rosto aquietou o lugar: ele iria, com ou sem os demais.

– Fodido inferno. – Rhage reclamou. – Você não pode estar falando sério.

Praguejando baixo, Tohr imaginou que poderia muito bem pular a fase da argumentação: pela determinação no maxilar de Wrath, os Irmãos perderiam em qualquer contestação. – Você vai com um colete Kevlar[10]. – ele disse ao rei.

Wrath mostrou suas presas. – E quando é que eu não uso?

– Só precisava que isso ficasse claro. Que horas você quer partir?

– Agora.

Vishous acendeu um cigarro enrolado à mão e soprou a fumaça. – Fodido inferno mesmo.

Wrath se levantou, agarrou a guia de George e deu a volta na mesa ao redor do trono.

– Quero apenas o esquadrão regular com quatro. Iremos até lá com armas demais e vai parecer que estamos nervosos. Tohr, V, John e Qhuinn estarão na primeira equipe.

Fazia sentido. Rhage com sua besta era mais que um curinga. Z e Phury estavam tecnicamente fora de rotação hoje à noite. Butch precisava ficar na retaguarda com o Escalade. E Rehv não estava na sala, o que significava que seu trabalho diário de ser rei dos symphaths o levou para o norte novamente.

Oh, e Payne? Considerando a sua aparência, ela era capaz de fritar os circuitos de Assail, tornando-o muito estúpido para falar. Como seu gêmeo, ela tendia a causar uma grande impressão no sexo oposto.

No entanto, todos estariam apenas a um torpedo de distância e Wrath estava certo. Se levassem toda mal-di-ta-fa-mí-lia, isso enviaria a mensagem errada.

Enquanto todos saíam e alcançavam a escadaria principal, havia todo tipo de resmungos sussurrados e, na parte inferior, armas eram checadas novamente e coldres reajustados.

Tohr relanceou o olhar para John. Qhuinn estava mais grudado no garoto do que um par de calças e isso era uma coisa boa, já que era óbvio que nem tudo estava bem no mundo de John: ele exalava seu cheiro de vínculo, mas se parecia com a morte.

O rei se abaixou e falou com George por um momento. Então agarrou sua rainha e a beijou como se quisesse dizer: “Estarei em casa antes que você perceba leelan.”.

Enquanto Wrath caminhava através do grupo e desaparecia no pátio sem ajuda, Tohr alcançou Beth, pegou sua mão e a apertou.

– Não se preocupe com nada. Eu o trarei de volta inteiro, assim que terminarmos.

– Obrigada, oh Deus, obrigada. – Ela colocou seus braços ao seu redor e o abraçou apertado. – Eu sei que ele está seguro com você.

Quando ela se agachou para confortar o retriever ansioso, Tohr se dirigiu para a porta, diminuindo a velocidade conforme se juntava ao congestionamento de Irmãos no espaço. Esperando para passar, ele ergueu seu olhar para a sacada no segundo andar. No’One estava no topo da escada, de pé, sozinha, com aquele seu capuz abaixado.

A trança precisava ser desfeita, ele pensou consigo mesmo. Um cabelo tão bonito como o dela foi feito para captar a luz e brilhar.

Ele ergueu sua mão acenando e depois que ela ecoou o adeus, ele se esquivou e emergiu na noite fria.

Permanecendo próximo, mas não tão perto de John, ele esperou por Wrath para dar o ok e então se desmaterializou com o rei e os rapazes para uma península no Hudson, bem ao norte da cabana de Xhex.

Enquanto Tohr se materializava no centro de um baixo relevo de floresta, o ar estava estimulantemente frio e cheirava a folhas caídas e a pedras úmidas do litoral.

À frente, a mansão contemporânea de Assail era um verdadeiro espetáculo, mesmo a partir da vista traseira das garagens. A estrutura palaciana tinha dois andares principais, com uma varanda que se estendia por toda a volta, tudo angulado e com janelas para proporcionar o máximo de visão possível da água.

Um lugar idiota para um vampiro viver. Todo aquele vidro na luz do dia?

Mas de novo, o que se poderia esperar de um membro da glymera.

A casa já havia sido analisada antes, assim como cada um dos outros locais para as reuniões tinha sido, então eles já estavam familiarizados com a disposição no exterior... E V havia entrado e vistoriado o interior também. Relatório: nada demais lá dentro e, claramente, isso não havia mudado. Nas luzes que iluminavam a partir do teto, existia pouca coisa no departamento de móveis.

Era como se Assail vivesse em uma vitrine apresentando a si mesmo.

E ainda assim, aparentemente, o cara fez algumas coisas inteligentes. De acordo com V, todos aqueles painéis de vidro estavam envolvidos com fios de aço finos, parecidos com desembaçadores de vidros automotivos, que não permitiam nenhuma desmaterialização de dentro para fora ou vice-versa. Ele também eliminou o gramado que rodeava o lugar, de forma que qualquer coisa ou alguém que se aproximasse seria alvo fácil.

Com isto, Tohr deixou seu instinto e sentidos vagarem… E um grande nada bateu na tela do seu radar. Nada se movia além do que devia: apenas os galhos de árvores e folhas na brisa, um cervo à aproximadamente trezentos metros de distância, seu Irmão e os rapazes atrás dele.

Pelo menos até que um carro se aproximou pela via estreita e pavimentada.

Jaguar, Tohr supôs, pelo som do motor.

Sim, ele estava certo. XKR preto. Com as janelas laterais escurecidas.

O conversível de longo capô frontal passou por ele, parou na porta da garagem mais próxima da mansão e então foi desacelerando enquanto painéis se erguiam. Assail, ou quem quer que estivesse atrás do volante, não desligou o motor ou saiu do carro imediatamente. Ele esperou que a porta deslizasse de volta ao lugar atrás dele e quando fez, Tohr notou que não havia nenhum vidro nas janelas da coisa. A merda também era um tom levemente mais claro do que o acabamento do restante da casa. O mesmo com os outros cinco compartimentos.

Ele acrescentou aquelas portas desde que se mudou, Tohr pensou.

Talvez o FDP não fosse um completo idiota.

– Ok, eu avançarei pela porta da frente. – Os olhos diamantinos de V brilharam. – Eu vou lhe dar um sinal… Ou você vai ouvir aquele grito agudo como o de uma garota. De qualquer forma, você sabe o que fazer.

Eeeeee lá foi ele, se desmaterializando em volta do canto da casa. Seria melhor ter os olhos nele, mas Wrath era a parte mais importante disso e a linha de árvores atrás era a única cobertura que havia.

Enquanto aguardavam, Tohr pegou sua arma e, John Matthew e Qhuinn fizeram o mesmo. O rei estava carregado com as suas armas calibre quarenta, mas seu conjunto permaneceu no lugar. Um modo defensivo demais tê-lo com uma pistola na mão.

Mas a sua guarda pessoal? Era parte da fodida descrição do trabalho.

Mantendo-se vigilante, ele desejou mais uma vez que poderiam ter deixado o rei em casa para o processo preliminar, mas Wrath disse um simples e claro não para a ideia há meses atrás. Muito irritante, sem dúvida, já que ao contrário do seu pai, ele foi um guerreiro antes de assumir o trono, o que apenas, fodido inferno, fazia momentos como esses fazer você querer arrancar a pele do seu próprio rosto.

O celular do Tohr disparou três tensos minutos mais tarde: porta da cozinha pela garagem.

– Ele nos quer na entrada de trás. – disse Tohr guardando a coisa de volta. – Wrath, são quarenta e cinco metros à frente.

– Entendido.

Os quatro se desmaterializaram e reapareceram na varanda de trás numa formação flanqueada que fornecia o máximo de proteção possível para Wrath: Tohr estava bem na frente do rei, John à sua direita, Qhuinn à sua esquerda. V imediatamente assumiu a retaguarda.

E bem na hora, Assail abriu a porta.

 

A primeira impressão de Tohr de seu anfitrião era que Assail não mudara nada. Ele era ainda grande o bastante para ser um Irmão, com cabelos tão escuros que faziam V parecer um loiro. E suas roupas eram, como sempre, formais e perfeitamente cortadas. Ele também continuava reservado, seu olhar, perspicaz e velado... Vendo demais, capaz de coisas demais.

Outra boa adição para o continente?

Não.

O aristocrata deu um sorriso que não lhe alcançou os olhos. – Devo supor que Wrath está no meio destes corpos?

– Mostre alguma porra de respeito, – V exigiu.

– Elogios são o tempero da conversa. – Assail se virou, deixando-os passar pela porta sozinhos. – Eles só atrapalham...

Wrath se materializou bem no caminho do cara, movendo-se tão rápido, que ficaram peito-a-peito.

Expondo presas tão longas quanto adagas, o rei rosnou baixo. – Cuidado com a língua, filho. Ou vou impossibilitá-lo de continuar a falar merdas como esta.

Assail recuou um passo, os olhos se estreitando como se lendo os sinais vitais de Wrath. – Você não se parece com seu pai.

– Nem você. Infelizmente.

Assim que V fechou a porta, Assail remexeu dentro do bolso – e imediatamente teve quatro armas apontadas para sua cabeça. Quando ele congelou, seus olhos passaram de arma a arma.

– Eu ia pegar um charuto.

– Eu o faria lentamente, se fosse você, – Wrath murmurou. – Meus garotos não se incomodariam em derrubá-lo bem aí onde está.

– Que bom não estarmos na minha sala de estar, então. Eu adoro aquele tapete. – Olhou para V. – Tem certeza que quer fazer isto aqui, no vestíbulo?

– Sim, porra, tenho certeza, – Vishous falou.

– Fobia de janela?

– Você estava para acender, – Wrath disse, – Ou para ser baleado. Que tal resolvermos o primeiro, e então conversaremos sobre o estilo da casa.

– Eu gosto da vista.

– Que pode ser a minha em pé diante de seu túmulo, – V anunciou enquanto apontava para a mão desaparecida do cara.

Erguendo a sobrancelha, Assail puxou um longo charuto cubano, e mostrou-o a todo mundo. Então remexeu em um bolso lateral, tirou um isqueiro dourado, e ergueu-o bem alto, para sua fila do gargarejo.

– Alguém me acompanha? Não? – Ele cortou a ponta e acendeu, parecendo despreocupado que sua cabeça ainda estivesse na mira.

Depois de um par de tragadas, ele disse, – Então eu quero saber uma coisa.

– Não comece com isso, – V murmurou.

– Foi para isto que finalmente me chamou? – Wrath perguntou.

– Sim, foi. – O vampiro girou seu charuto, para frente e para trás, entre seu polegar e indicador. – Você tem alguma intenção de alterar as leis a respeito do comércio com humanos?

Inclinando-se para o lado, Tohr fez uma vistoria rápida do que conseguia enxergar do resto da casa – que não era muito: uma cozinha moderna, uma sugestão da sala de jantar, uma sala de estar do outro lado. Não visualizando nenhum movimento nas salas vazias, voltou a se concentrar.

– Não, – Wrath disse. – Desde que os negócios continuem fora do radar, pode fazer o que quiser. Em que tipo de comércio você atua?

– Vendas a varejo.

– De quê?

– Interessa?

– Se não responde, vou assumir que são drogas ou mulheres. – Wrath franziu o cenho quando não houve resposta. – Então qual deles?

– Mulheres trazem problemas.

– A merda das drogas é difícil de manter escondida.

– Não do meu jeito de lidar com as coisas.

V bufou. – Então você é o motivo pelo qual os distribuidores estão se matando nos becos.

– Prefiro não comentar.

Wrath franziu o cenho de novo. – Por que mencionar isto agora?

– Digamos que me deparei com uma parte interessada.

– Seja mais específico.

– Bem, media cerca de um metro e oitenta e dois centímetros. Cabelos escuros bem curtos. O nome lembra sexo, para o que o corpo parece ter sido moldado.

Oh, não, você não disse isto, Tohr pensou...

O vaio que veio de John fez todo mundo virar a cabeça. E os olhos do cara estavam fixos em Assail, como se, ao menos em sua mente, ele já estivesse despedaçando a garganta do cara.

– Mil desculpas, – Assail falou pausadamente. – Não sabia que ela era conhecida de vocês.

Tohr rosnou em nome do filho... Mesmo que estivessem estremecidos neste momento. – Ela é fodidamente mais do que só conhecida. Então pode arrancar este ar de especulação do seu rabo... E enquanto estiver fazendo isto... Mantenha-se longe dela.

– Foi ela que veio até mim.

Óooootimo. Aquilo caiu como um balão de chumbo...

Antes que a merda saísse do controle, Wrath ergueu a mão. – Eu não ligo a mínima para o que você faz com os humanos... Desde que limpe sua sujeira. Mas saiba que se for descoberto, estará sozinho.

– E sobre nossa espécie interferindo em meu comércio.

Wrath sorriu um pouco, seu rosto cruel não mostrando nenhum humor. – Já está tendo problemas em defender seu território? Adivinhe. Você não pode ter o que não conseguir manter.

Assail inclinou a cabeça. – Justo...

Um som de vidro se quebrando soou por trás deles, cortando tudo, fazendo o tempo passar a se arrastar: tiros.

Com um movimento forte, Tohr saltou, seu corpo sólido voando sobre o azulejo espanhol, o seu alvo: Wrath.

Enquanto um rat-tat-tat-tat-tat de chuva de balas atingia o fundo da casa, ele jogou o rei ao chão, cobrindo seu Irmão com tanto de seu corpo quanto possível. Os outros, incluindo Assail, também foram ao chão e se arrastaram procurando abrigo próximo às paredes.

– Meu senhor, foi atingido? – Tohr sibilou ao ouvido de Wrath enquanto apertava enviar à mensagem de alerta.

– Talvez no pescoço, – veio a resposta grunhida.

– Continue deitado.

– Você está em cima de mim. Exatamente onde quer que eu vá?

Tohr virou a cabeça para perscrutar onde estava todo mundo. V estava sobre Assail, a mão travada na garganta do cara, a arma perto da têmpora do anfitrião. E Qhuinn e John estavam deitados de costas, dos dois lados de onde tinham entrado, cobrindo a saída, bem como a entrada da cozinha.

A fria brisa que vinha da janela quebrada na porta, não trazia nenhum aroma em especial, e isto provava o que era: matadores teriam empesteado o lugar, já que tanto o vento, quanto os tiros, vinham do norte.

Era Xcor e seu Bando de Bastardos.

Mas vamos lá, como se já não soubessem disto. Aquele único tiro tinha de vir de um rifle, e devia ter sido mirado em Wrath através daquela porra de painel envidraçado – e já fazia um tempo que a Sociedade Lessening não demonstrava nenhuma sutileza em seus ataques.

– Você devia ter mantido esta reunião em segredo, vampiro, – V disse em um tom mortal.

– Ninguém sabe que vocês estão aqui.

– O que me leva a crer que você ordenou o assassinato, sozinho.

Ele estava a ponto de atirar no filho da puta, Tohr pensou, sem se importar. Bem aqui, bem agora.

Assail manteve-se calmo, esquadrinhando os Irmãos de forma que agora o cano da arma estava apontado para o centro de sua testa. – Foda-se... Era por isto que eu queria fazer isto na sala de estar. Os vidros lá são a prova de balas, imbecil. E para sua informação, também estou ferido, seu tolo.

O macho ergueu o braço e mostrou sua mão pingando sangue, a que tinha segurado o charuto.

– E daí, talvez seus amigos tenham uma mira ruim.

– Isto não foi uma mira ruim. Eu também sou alvo...

Mais balas choveram dos fundos da casa, achando seu caminho através da abertura na porta. Fodido inferno, painel térmico era bom para proteger contra os invernos de Nova Iorque, mas não valiam merda nenhuma para parar o melhor da Remington.

– Como você está? – Tohr sussurrou no ouvido de Wrath enquanto verificava, em seu celular, se havia resposta dos outros Irmãos.

– Bem. Você? – Só que o rei tossiu... E cara, havia chiado em seus pulmões.

Ele sangrava em algum ponto de seu sistema respiratório...

Movendo-se rápido como um engasgo, Assail escapou do agarre de V, e se arrastou pelo vestíbulo, se dirigindo à porta que levava à garagem. – Não atire! Eu tenho um carro no qual você pode levá-lo! E estou cortando a energia da casa.

Enquanto tudo ficava escuro, Vishous se materializou em cima do cara, tombando-o ao chão e apertando-lhe o rosto contra o piso. – Eu vou matá-lo agora...

– Não, – Wrath ordenou. – Não, até que saibamos o que está acontecendo.

Nas sombras, V cerrou os dentes e olhou para o rei. Mas pelo menos, não apertou o gatilho. Ao invés disto, colocou a boca no ouvido do anfitrião, e rosnou, – Melhor pensar duas vezes antes de tentar escapar de novo.

– Então faça você mesmo. – Saiu como, – ’tão fa’ cê exmo.

Vishous olhou para Tohr, os dois olhares se cruzaram. Quando Tohr deu um aceno sutil, o outro Irmão praguejou... Então, esticou-se, e abriu a porta da garagem. As luzes automáticas ainda estavam acesas, de quando Assail chegara em casa mais cedo, e Tohr vislumbrou quatro carros: o Jaguar. Um Spyker. Um Mercedes preto. E uma van preta, sem janelas laterais.

– Peguem a GMC, – Assail gemeu. – As chaves estão na ignição. É inteiramente a prova de balas.

Quando tudo se silenciou lá fora, John e Qhuinn começaram turnos de vigia, através do vidro quebrado, num ritmo constante e alternado, apenas para se certificarem de que ninguém tentaria se materializar para dentro.

Merda, sua munição não ia durar muito mais.

Tohr amaldiçoou a falta de opções, além do fato de não ter tido resposta da Irmandade...

– Temos tudo sob controle, – Qhuinn disse, sem tirar os olhos da porta. – Mas precisamos dos outros Irmãos aqui, antes que tentem sair.

– Eu já os alertei, – Tohr murmurou. – Eles estão a caminho.

Ao menos, ele esperava.

A voz de Assail se ergueu por sobre os tiros. – Peguem a maldita van. Não estou mentindo.

Tohr encarou o cara com olhos duros. – Se estiver, eu vou esfolá-lo vivo.

– Não estou.

Dado que não havia garantias, Tohr saiu de cima de Wrath, e ajudou o rei a se erguer. Merda... Havia sangue do lado do pescoço dele. Muito sangue. – Mantenha sua cabeça baixa, meu senhor, e me siga.

– Não precisa dizer.

Movendo-se tão rápido quanto se atrevia, Tohr atravessou o caminho, mantendo o rei próximo a parede, para que Wrath pudesse manter uma mão apoiada, para se orientar.

– Máquina de lavar, – Tohr disse, puxando-o para se desviar da máquina quadrada. – Secadora. Porta a um metro e meio. Um metro. Meio metro. Degrau.

Quando passaram por Assail, o macho os observava. – Jesus, ele é realmente cego.

Wrath se endireitou rapidamente, e desembainhou as adagas, apontando-as diretamente para o rosto do cara. – Mas minha audição funciona muito bem.

Assail provavelmente teria recuado, mas preso entre a parede dura, uma bala e uma ponta afiada – não havia muito espaço para se movimentar. – Sim. Certamente.

– Esta reunião não acabou, – Wrath disse.

– Eu não tenho mais nada a dizer.

– Eu tenho. Cuide-se, filho... Se descobrirmos que está por trás disto, sua próxima casa será um caixão de madeira.

– Não fui eu. Eu juro... Eu sou um homem de negócio, pura e simplesmente. Eu quero ser deixado em paz.

– Greta Fodido Garbo[11]! – V rosnou, quando Tohr incitou Wrath a se mover.

Na garagem, Tohr se arrastou com o rei pelo concreto nu, rodeando os outros veículos. Quando rodearam a van, verificou-a, então abriu as portas duplas e enfiou lá o vampiro mais poderoso do planeta, como se fosse uma maleta.

Quando voltou a fechar os painéis, tomou um tempo para respirar fundo. Então, dirigiu-se para o assento do motorista, e entrou. A luz interior manteve-se ligada, por um momento, depois que ele se sentou, e sim, as chaves estavam bem onde Assail disse que estariam. E sim, o veículo estava grandemente modificado: dois tanques de gasolina, revestimento de aço reforçado, vidro grosso que indicava que era mesmo a prova de balas.

Havia uma partição deslizante, que separava a parte de trás da parte da frente, e ele a abriu o suficiente para poder monitorar o rei.

Com sua audição aguçada, o sangue pingando na van parecia tão alto quanto os tiros que o causara. – Você foi gravemente atingido, meu senhor.

Tudo o que obteve como resposta foi aquela tosse.

Porra.

 

John estava pronto para matar.

Enquanto permanecia à esquerda daquela maldita porta traseira, os músculos grossos de suas coxas estremeciam, e seu coração alucinava no peito. Sua arma, no entanto, estava firme como uma rocha.

O Bando de Bastardos tinha começado o ataque de onde a Irmandade tinha começado: no canto mais longe do gramado podado, na floresta por trás da casa.

Um inferno de tiro, pensou. Aquela primeira bala de rifle tinha furado o painel de vidro da porta e tinha ido direto para a cabeça de Wrath, mesmo havendo numerosas pessoas em volta do cara.

Muito perto. Perto demais.

Estes caras eram verdadeiros profissionais – o que significava que tinha de estar se reagrupando para um segundo ataque... E não daquele mesmo ângulo que agora estava tão bem guardado.

Enquanto Qhuinn continuava a apertar seu gatilho em movimentos lentos, John recuou e olhou pela entrada da cozinha.

Assobiando baixo, chamou atenção do olhar de Qhuinn e apontou naquela direção.

– Entendido.

– John, você não vai lá sozinho, – V disse, – Eu vou cobrir a porta dos fundos com nosso anfitrião.

– E se eles virem pela abertura? – Qhuinn perguntou.

– Eu os derrubarei um a um.

Difícil discutir com o cara. Ainda mais quando o Irmão mirou sua segunda arma bem onde Qhuinn e John estavam atirando.

Era o fim de qualquer discussão.

John e Qhuinn caíram em posição de lado e saíram juntos. Guiando-se pela luz da lua, passaram pela cozinha profissionalmente equipada, e testaram cada porta que viram. Trancada. Trancada. Trancada.

As salas de jantar, estar e familiar se revelaram enormes, do tamanho de campos de futebol. A boa notícia era haver colunas em intervalos regulares para sustentação do teto, e Qhuinn as usou como cobertura, enquanto avançavam, checando portas envidraçadas de correr, e se abaixava de novo.

Tudo estava trancado. Enquanto trabalhavam em círculo pela sala gigantesca, a merda estava conferida em todos os lados. Mas Deus, todo aquele vidro...

Parando brevemente, ele ergueu sua arma para um trecho envidraçado, assobiou duas vezes para avisar V... E atirou para testar.

Não despedaçou. Nem mesmo rachou. O grande painel simplesmente reteve a bala, como se a coisa fosse feita de chiclete.

Assail não mentiu. Pelo menos não sobre aquilo.

Dos fundos da casa, a voz de seu anfitrião estava distante, mas clara. – Feche e tranque a porta na base da escada para o segundo andar. Rápido.

Copiado.

John deixou Qhuinn verificar os banheiros e o escritório enquanto corria até uma escadaria de mármore branco e preto. Realmente, enfiado na parede estava um painel, a prova de balas, feito totalmente de aço inox, que quando puxado, cheirava a tinta fresca, como se tivesse sido instalado recentemente.

Havia duas trancas nele, uma que podia trancar pelo lado de dentro, e outra pelo lado de fora.

Enquanto mantinha a coisa segura e no lugar, sentiu algum baita respeito pelo modo como Assail lidava com as questões de segurança.

– Este lugar é uma fortaleza. – Qhuinn disse, enquanto saía de outro banheiro.

Porão? John expressou com a boca, para não ter de soltar as armas.

Como se lesse suas mentes, Assail chamou, – A porta do porão está trancada. Fica na cozinha, perto da segunda geladeira.

Eles voaram para aquela direção, localizando outro daqueles pedaços de aço, que já estava posicionado e trancado.

John verificou seu celular, e viu a mensagem de texto em grupo que Rhage tinha enviado. – Briga pesada no centro... Todos para lá imediatamente.

Porra, ele suspirou enquanto mostrava a tela para Qhuinn.

– Eu vou sair, – o cara anunciou enquanto corria para a porta. – Tranque a porta depois que eu...

John se adiantou para o guerreiro, segurando-o: O inferno que vai, expressou.

Qhuinn soltou-se de seu forte aperto. – A coisa está a ponto de ficar muito feia, e Wrath precisa ser levado à clínica. – Enquanto John amaldiçoava em silêncio, Qhuinn balançou a cabeça. – Seja razoável, camarada. Você está coberto por V com Assail, e vocês precisam manter o interior da casa seguro. Desta forma, aquela van tem de começar a rodar por causa da hemorragia do rei. Você precisa me deixar sair e fazer o que posso para cobrir a área... Não podemos perder mais ninguém.

John amaldiçoou de novo, sua mente procurando por outras opções.

Finalmente ele agarrou o amigo pela nuca e trouxe a testa para junto da sua, por um breve momento. Então, deixou-o ir e recuou – mesmo que isto quase o tenha matado.

Afinal, sua obrigação primordial era para com a segurança do rei, não com a de seu melhor amigo. Wrath era a missão crítica aqui, não Qhuinn.

Ademais, Qhuinn era um mortal filho da puta, rápido com os pés, bom com a arma, ótimo com uma faca.

Eram habilidades que mereciam confiança. E o desgraçado estava certo: eles estavam dolorosamente vulneráveis nesta situação.

Com um aceno final, Qhuinn deslizou uma porta de vidro, que John fechou e trancou, por trás dele... Deixando o macho sozinho lá fora.

Pelo menos o Bando de Bastardos assumiria que todos na casa, continuariam na casa – não tinham como saber que o reforço estava a caminho, e na maioria das situações, pessoas esperavam seus reforços chegarem antes de armar um contra ataque.

– John! Qhuinn! – V chamou. – O que diabos está acontecendo aí!

John correu de volta para o vestíbulo. Infelizmente, não havia jeito eficiente de comunicar sem largar a arma...

– Merda, Qhuinn não saiu sozinho, saiu?

Assail riu suavemente. – E eu que pensei que fosse o único com inclinações suicidas.

 

Imediatamente após Syphon puxar o gatilho de seu rifle de longo alcance, o primeiro pensamento de Xcor foi que o macho podia muito bem ter matado o rei.

Parado no abrigo da floresta, ele ficou surpreso com a precisão de seu soldado: a bala atravessou o gramado, explodindo com o vidro do painel da porta... E derrubou o rei como um saco de areia.

Ou isso, ou o rei havia escolhido se abrigar.

Não havia nenhuma maneira de saber se o desaparecimento foi uma reação defensiva ou o colapso de um homem gravemente ferido.

Talvez fossem ambas as coisas.

– Abrir fogo. – ele comandou pelo ultramoderno transmissor de rádio em seu ombro. – E assumir segundas posições.

Com precisão treinada, seus soldados entraram em ação, o som de tiros dando cobertura enquanto todos, exceto ele e Throe, moviam-se em várias direções.

A Irmandade chegaria a qualquer momento, por isso havia pouco tempo para fechar as escotilhas e se preparar para o conflito. Ainda bem que seus soldados eram bem treinados...

De repente, a casa ficou às escuras – inteligente. Isso os tornou mais difícil de serem isolados como alvos, embora considerando que todos os vidros, exceto o da porta dos fundos, eram a prova de balas, parecia que Assail era muito mais tático do que se esperaria de um tolo membro da glymera.

Carros-bomba, não obstante.

Na calmaria que se seguiu, Xcor teve que assumir que, se o rei estivesse vivo e completamente sem lesões, Wrath teria desmaterializado através da abertura na porta dos fundos, saído da área, e os outros teriam atacado. Se o rei estava ferido, eles ficariam à surdina e esperariam os outros membros da Irmandade chegarem e darem cobertura para irem embora. E se o Rei Cego estivesse morto? Eles iriam ficar com o corpo para protegê-lo até que os outros chegassem aqui...

Uma arma disparou no interior. Um tiro, cujo brilho apareceu à esquerda.

Eles estavam testando o vidro, ele pensou. Assim, ou Assail estava morto, ou eles não confiavam nele.

– Alguém está saindo. – disse Throe ao seu lado.

– Atire para matar. – Xcor ordenou em seu ombro.

Não havia razão para se arriscar numa captura. Qualquer um que lutasse ao lado da Irmandade seria treinado para resistir à tortura e, portanto, não seria um bom candidato para coleta de informações. Ainda por cima, essa situação era um barril de pólvoras prestes a explodir, e reduzir o número do inimigo era o objetivo mais importante; tomar prisioneiros não.

Tiros soaram quando seus bastardos tentaram acertar quem quer que fosse que tinha saído, mas, naturalmente, o lutador se desmaterializou por isso era improvável que eles tivessem o atingido...

A Irmandade chegou toda de uma vez, os lutadores enormes tomando posições em todo o exterior da casa, como se tivesse sido combinado anteriormente.

Tiros foram trocados, com Xcor apontando para um par no telhado, enquanto os outros focaram nas formas escuras que se deslocavam ao redor das varandas, bem como em qualquer um que pudesse estar vindo de trás na floresta.

Ele precisava ficar no caminho de qualquer veículo que tentasse fugir da casa.

– Eu vou cobrir a garagem. – ele falou em seu transmissor. – Mantenham as posições.

Olhando por cima do ombro para Throe, ele ordenou:

– Ajude os primos ao norte.

Quando seu soldado assentiu e partiu, Xcor se abaixou e fez o mesmo, mudando de posição correndo, já que ele estava muito tenso para desmaterializar. Se eles tentassem retirar Wrath utilizando-se de um veículo porque ele estava ferido, Xcor tinha que ser aquele a ter a satisfação de impedir a fuga do rei... E terminar o trabalho necessário. A garagem, portanto, era o seu melhor ponto de vantagem. Os Irmãos teriam de requisitar um dos veículos de Assail, já que eles pareciam ter chegado sem nenhum – e Assail iria oferecer o auxílio. Ele não tinha qualquer lealdade a nenhum grupo em particular – nem ao Bando de Bastardos, nem ao Conselho, e provavelmente nem mesmo ao rei. Mas ele não gostaria de sustentar o preço da vingança de alguém contra Wrath.

Xcor se fixou atrás de uma pedra enorme que ficava na beira do asfalto da praça atrás da casa. Tirando uma pequena e convexa faixa de metal que tinha sido polido até ficar brilhante, ele posicionou o espelho sobre a rocha para que ele visse qualquer coisa que estivesse atrás dele. E então ele esperou.

Ah, sim. Certo novamente...

Quando o tiroteio continuou ao redor, a porta da garagem mais à direita se abriu, a proteção que ela oferecia desaparecendo painel por painel.

A van que saiu não tinha janelas em sua parte traseira, e ele estava disposto a apostar que, assim como a casa, seus flancos eram impenetráveis ​​por nada menos do que um míssil antiaéreo.

Era perfeitamente possível, é claro, que isso fosse um truque.

Mas ele não ia perder a oportunidade no caso de não ser.

Movendo os olhos para cima, ele verificou atrás dele, então voltou seu foco para a van. Se ele pulasse no caminho dela, ele poderia ser atingido pelo bloco do motor através da grade frontal...

O ataque que veio de trás foi tão repentino, tudo o que ele sentiu foi um braço fechando em torno de sua garganta e seu corpo sendo puxado para trás. Mudando instantaneamente para o modo autodefesa mão-a-mão, ele impediu o macho de rasgar seu pescoço atingindo o lutador com fortes cotoveladas, e em seguida aproveitou-se do atordoamento para se virar.

Ele teve uma breve impressão de olhos de cores diferentes... E depois era só luta.

O macho atacou com tanta ferocidade, os socos eram como ficar sob uma chuva de carros. Felizmente, ele tinha excelente equilíbrio e reflexos, e se agachando, ele agarrou o macho pelas coxas e o abordou com força. Montando a parte inferior daquele corpo maciço para o chão, ele pulou para a parte de cima e trabalhou no rosto do lutador até que houvesse sangue não apenas em seus dedos, mas voando pelo ar.

Sua posição superior não durou muito. Apesar do fato de que não era possível que o soldado pudesse ver claramente, de alguma forma ele segurou um dos pulsos de Xcor e o prendeu. Com força brutal, ele o puxou para o chão, trazendo Xcor para seu alcance, e deu-lhe uma cabeçada tão forte, que por um momento o mundo ficou incandescente como se as árvores ao redor deles tivessem fogos de artifício como ramos e folhas.

Uma mudança abrupta na gravidade lhe informou que ele estava sendo rolado, mas foda-se. Ele parou o impulso lançando uma perna fora e cravando sua bota no solo. Enquanto ele se esforçava contra um grande peso sobre seu peito, ele viu a van negra gritando para fora como um morcego saindo do inferno por baixo da garagem.

A raiva pela oportunidade perdida com o rei lhe deu energia extra, e ele se levantou sobre seus pés com o macho envolto em seus ombros, um xale de soldado.

Desembainhando sua faca de caça, ele esfaqueou ao redor de seu próprio torso, e ele soube que bateu em alguma coisa, dada a resistência e o praguejo. Mas então o aperto em seu pescoço retornou, desafiando suas vias aéreas, fazendo-o trabalhar ainda mais por oxigênio.

A grande pedra atrás da qual ele tinha se abrigado estava a cerca de um metro de distância, e ele foi em direção a ela, suas botas soando pesadas pelo gramado. Girando,ele bateu no macho uma vez... Duas vezes...

Na terceira vez, pouco antes de ele estar prestes a apagar, o aperto afrouxou. Descuidado e desorientado, ele se libertou justamente quando uma bala assobiou por sua cabeça, tão perto que ele sentiu uma faixa de calor em seu couro cabeludo.

Atrás dele, o soldado caiu sobre a grama, mas aquilo não ia durar – e uma rápida olhada para a troca de tiros sendo travada ao redor disse a ele que se ele e seus bastardos ficassem por muito mais tempo, haveria perdas catastróficas – sim, eles levariam alguns da Irmandade com eles, mas a um custo tremendo para seus próprios números.

Seu instinto lhe disse que Wrath já tinha saído. E que droga, pois mesmo se metade da Irmandade estivesse dentro ou ao redor daquela van – e se o rei estava sendo transportado, alguns deles estavam sem dúvida acompanhando o veículo – ainda havia muitos Irmãos deixados aqui na beira do rio para causar danos vitais para ele e seus machos.

O Bloodletter teria ficado e lutado.

Ele, no entanto, era mais esperto do que isso. Se Wrath foi mortalmente ferido, ou se aquele era o corpo dele, Xcor iria precisar de seu bando de bastardos para a segunda fase de sua tomada de poder.

– Recuar. – ele gritou na peça em seu ombro.

Ele rebocou em suas botas de combate e chutou aquele filho da puta de olhos diferentes no chão – para garantir que o macho ficaria onde estava.

Então ele fechou os olhos e forçou a se acalmar... Se acalmar... Se acalmar....

A vida e morte dependendo do fato dele conseguir se colocar no correto estado mental...

Exatamente quando outra bala passou zunindo por sua cabeça, ele sentiu criar asas... E voar.

 

– Como estamos aí atrás?

Tohr gritou a pergunta quando ele forçou a van em mais uma curva na estrada. O pedaço de merda fez a curva como se fosse em uma mesa de café com pernas bambas, balançando para lá e para cá, até que ele mesmo se sentiu um pouco enjoado.

Wrath, enquanto isso, estava sendo jogado como bolinhas-de-gude na parte de trás, o rei rolando e agitando seus braços para segurar a si mesmo.

– Alguma chance... – Wrath cambaleou na direção oposta e tossiu um pouco mais. – Você pode... Ir mais devagar com esse ônibus?

Tohr olhou no espelho retrovisor. Ele manteve a divisória aberta para que pudesse manter um olho no o rei, e no reflexo do painel Wrath estava branco como um lençol. Exceto por onde o sangue manchava a pele de sua garganta. Que estava vermelha como uma cereja.

– Não dá para reduzir... Desculpe.

Se a sorte estava do lado deles, a Irmandade estava mantendo o Bando de Bastardos totalmente ocupados na casa, mas vai saber. E ele e Wrath estavam do lado errado do rio Hudson com uns bons vinte minutos de estrada pela frente.

E sem apoio.

E Wrath... Merda, ele realmente não parecia bem.

– Como está indo? – Tohr chamou de novo.

Houve uma pausa maior neste ponto. Muito longa.

Rangendo os dentes, ele triangulou a distância para a clínica de Havers. Porra, era quase a mesma distância – então acelerar para aquela instalação na esperança de encontrar alguém, qualquer pessoa com formação médica não iria poupar muito tempo.

Vindo do nada, Lassiter apareceu no assento do passageiro – simplesmente de lugar nenhum.

– Você pode abaixar sua arma. – o anjo disse secamente.

Merda, ele tinha puxado seu cano no cara.

– Vou assumir o volante. – Lassiter ordenou. – Você se ocupa com ele.

Tohr estava sem o cinto de segurança e fez a mudança de motorista num piscar de olhos, e quando o anjo assumiu, ficou claro que o cara estava completamente armado. Boa coisa.

– Obrigado, cara.

– Sem problemas. E aqui, permita-me lançar alguma luz nisso.

O anjo começou a brilhar, mas apenas em direção à parte de trás. E... Porra... quando Tohr atravessou a divisória, o que ele viu na iluminação dourada era a morte em quatro patas vindo para o rei: a respiração de Wrath estava superficial e saindo em sopros, as cordas do seu pescoço tensas com o esforço que era levar oxigênio para os pulmões.

Aquele tiro no pescoço estava comprometendo as vias aéreas acima do pomo de Adão. A esperança era que fosse apenas um inchaço; no pior caso, ele estava sangrando de uma artéria e se afogando em seu próprio sangue.

– O quão longe da ponte? – ele gritou para Lassiter.

– Eu posso vê-la.

Wrath estava ficando sem tempo.

– Não reduza. Por nada.

– Entendido.

Tohr se ajoelhou ao lado do rei e arrancou sua própria jaqueta de couro.

– Eu vou ver se posso ajudar você, meu irmão...

O rei agarrou seu braço.

– Não vá... Se... Desesperar.

– Eu não pretendo, meu senhor. – E ele não estava sendo paranoico sobre o perigo que eles estavam enfrentando. Se o rei não tivesse alguma ajuda com a coisa da respiração, ele ia morrer antes que alguém pudesse avaliar o que mais ele tinha.

Entrando em ação, ele rasgou o casaco do rei, arrancou a frente do colete Kevlar – e não estava muito seguro de que não encontraria nada para fazer naquele grande peito. O problema era o ferimento no pescoço, e sim, uma inspeção mais próxima sugeriu que a bala estava alojada em algum lugar. Só Cristo sabia exatamente o que estava errado. Mas ele tinha certeza de que se ele pudesse abrir um ponto de acesso de ar abaixo da lesão, eles talvez teriam uma chance de lutar.

– Wrath, eu tenho que fazer com que você respire. E por favor, pelo amor de sua shellan, não brigue comigo sobre o problema no qual você está. Eu preciso que você trabalhe comigo, e não contra mim.

O rei tateou com a mão em seu rosto, acabou encontrando seus óculos-escuros e os jogou para fora do caminho. Quando aqueles incrivelmente belos e brilhantes olhos verdes se fixaram nos de Tohr, era como se eles enxergassem.

– Tohr? Tohr... – Estalando, estalando desesperadamente enquanto o rei tentava respirar. – Onde você...?

Tohr capturou aquela palma acenando e apertou com força.

– Eu estou bem aqui. Você vai me deixar ajudá-lo a respirar, ok? Acene para mim, meu Irmão.

Quando o rei acenou, Tohr gritou para Lassiter: – Mantenha isso realmente estável até eu avisar.

– Alcançando a ponte agora.

Pelo menos eles estavam em um trecho reto.

– Realmente estável, anjo, estamos entendidos?

– Entendido.

Desembainhando uma de suas adagas, ele a colocou no carpete do chão próximo a cabeça de Wrath. Então, ele esvaziou seu cantil e o despedaçou. Pegando o tubo de plástico flexível que serpenteava do bocal até a bexiga, ele tirou a coisa para fora e cortou em ambas as extremidades; em seguida, soprou a água que ainda havia no interior.

Ele se inclinou para Wrath:

– Eu vou ter que colocar em você.

Merda, a respiração estava ainda pior, entrecortada.

Tohr não aguardou consentimento ou mesmo reconhecimento. Ele manejou sua faca e, com sua mão esquerda, sondou a macia e corpulenta área entre as junções das clavículas do rei.

– Prepare-se. – disse ele com voz rouca.

Era uma pena ele não poder esterilizar a lâmina, mas mesmo se ele tivesse uma fogueira para queimá-la completamente, ele não teria tempo para a coisa esfriar. Aquelas respirações estavam ficando mais silenciosas, em vez de mais ruidosas.

Com uma prece silenciosa, Tohr fez exatamente como V o havia treinado. Ele apertou a ponta afiada de sua adaga através da pele para o túnel duro do esôfago. Outra rápida prece... E então ele cortou profundamente, mas não muito fundo. Imediatamente depois, ele empurrou o tubo flexível oco para dentro do rei.

O alívio foi rápido, o ar correndo com um pequeno assobio. E logo depois, Wrath sorveu uma respiração adequada, e outra... E outra.

Plantando uma palma no chão, Tohr se concentrou em manter o tubo exatamente onde estava, fincado na frente do pescoço do rei. Quando o sangue começou a escorrer de todo o lugar, ele abandonou o procedimento de rotina e beliscou a pele ao redor da borda do plástico, mantendo-o vedado tão apertado quanto possível.

Aqueles olhos cegos com suas íris como alfinetes encontraram os seus, e havia gratidão neles, como se ele tivesse salvado a vida do cara ou algo assim.

Mas isso eles ainda teriam que ver. Cada sutil solavanco registrado através da suspensão da van deixava Tohr doido, e eles ainda estavam muito longe de casa.

– Fique comigo. – murmurou Tohr. – Fique bem aqui comigo.

Quando Wrath concordou e fechou os olhos, Tohr olhou para o colete Kevlar. As malditas coisas foram projetadas para proteger os órgãos vitais, mas eles não eram uma garantia de segurança.

Na mesma nota, como diabos eles tinham conseguido tirar a van de lá, afinal? Certamente os soldados de Xcor teriam guarnecido a garagem – aqueles bastardos sanguinários saberiam que aquela era a única rota de fuga para um rei ferido.

Alguém deve ter lhes dado cobertura – sem dúvida um dos Irmãos chegando em cima da hora.

– Você pode dirigir mais rápido? – Tohr exigiu.

– Eu estou afundando o pedal. – O anjo olhou para trás. – E eu não ligo para o que mais eu tenha que afundar.

 

No’One estava no centro de treinamento, empurrando um cesto de rodas cheio de lençóis limpos para cobrir as camas, quando aconteceu de novo.

O telefone tocou na sala de exames principal, e ela ouviu através da porta aberta a doutora Jane falando rápido e claramente... O nome “Tohr”...

O que começou como uma hesitação se transformou em uma pausa, suas mãos apertando a moldura de metal do cesto, coração batendo forte enquanto o mundo se inclinava largamente, fazendo-a girar e girar...

Do outro lado do corredor, a porta de vidro do escritório se escancarou e Beth, a rainha, derrapou no corredor.

– Jane! Jane!

A médica colocou a cabeça para fora da sala de exames. – Estou no telefone com Tohr. Já estão trazendo-o para cá.

Beth partiu corredor abaixo, o cabelo escuro esvoaçando atrás dela. – Estou preparada para alimentá-lo.

Levou um momento para compreender.

Tohr não, não era Tohr, não Tohr... Querida Virgem Escriba, obrigada.

Mas Wrath – não o rei!

O tempo se tornou uma tira elástica, esticando-se infinitamente, minutos se arrastando enquanto as pessoas da casa começavam a chegar – só que, de repente, um limite foi atingido e snap! Tudo se tornou um borrão.

A doutora Jane e o médico Manuel saíram voando da sala de exames, a maca rolante entre eles, uma sacola preta esportiva com uma cruz vermelha pendurada no ombro do macho. Ehlena estava ao lado deles, com mais equipamentos em suas mãos. E também vinha a rainha.

No’One os seguiu pelo vestíbulo, correndo nas solas de seus calçados, segurando a porta pesada de aço que levava até o estacionamento esgueirando-se por dela, antes que se fechasse. Na calçada, uma van com janelas negras parou, expelindo fumaça pelo cano ejetor.

Vozes – perturbadas e profundas – lutavam por espaço enquanto as portas do veículo eram abertas e o médico Manuel pulava para dentro.

Então Tohr desceu.

No’One arfou. Ele estava coberto de sangue, as mãos, o peito, as roupas de couro, tudo manchado de vermelho. Só que ele parecia bem. Devia ser sangue do Wrath.

Querida Virgem Escriba, o rei.

– Beth! Venha aqui, – Manuel gritou. – Agora.

Depois de ajudar a rainha a entrar, Tohr parou perto das portas abertas com as mãos nos quadris, o peito subindo e descendo rapidamente, seu olhar frio fixo no tratamento do rei. No’One, enquanto isto, perambulou pelos arredores, esperando e rezando, os olhos indo e voltando da expressão horrível e fixa de Tohr nos escuros recessos da van. Tudo o que ela via do rei eram suas botas, de solado duro, grosso e preto, as ranhuras nelas profundas o suficiente para deixar marcas no concreto – pelo menos quando calçadas num macho tão grande como ele.

Será que ele iria voltar a andar?

Pondo os braços ao redor de si, desejou ser uma Escolhida, uma fêmea sagrada que possuísse uma conexão com a Virgem Escriba, algum jeito de se aproximar da mãe da raça em convocações especiais. Mas ela não era.

Tudo o que podia fazer era esperar junto com os outros no círculo que tinha se formado perto da van...

Não havia jeito de saber quanto tempo eles trabalharam no rei naquele veículo. Horas. Dias. Mas eventualmente Ehlena reposicionou a maca tão perto quanto possível e Tohr voltou a entrar na traseira da van.

Wrath foi carregado pelo seu leal Irmão, que o deitou estirado no colchão coberto com lençol branco – que não permaneceria branco por muito tempo, ela temia, enquanto avaliava o pescoço do rei: vermelho já estava vazando pelas laterais das camadas de gaze.

Tempo era crucial – mas antes que o arrastassem para dentro, o grande macho agarrou a camiseta arruinada de Tohr e então começou a movimentar a garganta. De repente ele fez um punho, e então abriu a palma virada para cima como se estivesse segurando alguma coisa.

Tohr assentiu, e olhou para os médicos. – Vocês precisam tentar tirar a bala. Temos de recuperá-la... É a única maneira de conseguirmos provar quem o atacou.

– E se isto puser a vida dele em risco? – Manuel perguntou.

Wrath começou a balançar a cabeça e apontar novamente, mas a rainha o interrompeu. – Então vocês vão deixá-la onde está. – Enquanto o macho olhava para ela, ela deu de ombros. – Desculpe, meu hellren. Estou certa de que os Irmãos vão concordar... O mais importante de tudo é que você sobreviva.

– Está certo, – Tohr murmurou. – A prova é o de menos... No mais, já sabemos quem são os culpados.

Wrath começou a mexer a boca – só que não conseguiu falar, por que... Havia um tubo enfiado em sua garganta?

– Bom, me alegro que estejamos de acordo, – Tohr murmurou. – Cuidem dele, sim?

Os médicos assentiram e saíram levando o rei, a rainha ficando junto a seu companheiro, falando com ele num tom suave, mas ansioso, enquanto corria ao seu lado. De fato, enquanto eles passavam pelas portas rumo ao centro de treinamento, os olhos de Wrath, verde claros e resplandecentes, estavam travados, mas sem foco, no rosto dela.

Ela o estava mantendo vivo, No’One pensou. Aquela conexão entre eles era o que o sustentava mais do que qualquer coisa que os médicos pudessem fazer...

Tohr, enquanto isto, também ficou com o líder, passando por ela sem nem mesmo um olhar.

Ela não o culpou. Como ele podia ver qualquer outra coisa?

Entrando novamente no corredor, ela se perguntou se não devia voltar a trabalhar. Mas não, sem chance disto.

Ela só seguiu o grupo até que todos eles, inclusive Tohr desaparecessem na sala de cirurgia. Não se atrevendo a entrar, ficou do lado de fora.

Pouco tempo depois, o resto da Irmandade se juntou a ela.

Tragicamente.

Pelas horas seguintes, os horrores da guerra ficaram evidentes demais, os riscos à vida e aos corpos se evidenciavam nos ferimentos que se apresentavam enquanto os Irmãos saíam de campo numa corrente.

Tinha sido um brutal ataque armado. Ao menos, foi o que disseram a suas companheiras, todas que se juntaram para confortá-los, rostos ansiosos, olhos horrorizados, corações em pânico aproximando ainda mais os casais. O lado bom era que todos eles voltaram para casa, os machos, e a única fêmea, Payne, todos voltaram vivos para serem tratados.

Só para temerem por Wrath.

O último a chegar era o ferido mais gravemente, além do rei – a ponto de, inicialmente, ela não reconhecer de quem se tratava. O emaranhado cabelo escuro e o fato de que John Matthew estava carregando-o evidenciava que era aquele que se chamava Qhuinn – mas que não dava para adivinhar só olhando para o rosto dele.

Ele tinha apanhado muito.

Enquanto o macho era deixado na segunda sala de operação, ela pensou na bagunça deformada de sua perna e rezou para que a cura fosse total para ele, para todos eles, que não fosse como a dela.

O amanhecer eventualmente chegou, mas ela só soube disto ao olhar o relógio na parede. Relances intermitentes eram revelados quando as portas da sala de cirurgia eram abertas e fechadas, conforme aqueles que eram tratados eram liberados para as salas de recuperação, ou lhes era permitido seguir para a casa principal – não que qualquer um deles o tenha feito. Todos ficaram como ela, recostados nas paredes de concreto do corredor, sentados em vigília não apenas pelo rei, mas pelos seus companheiros de luta.

Doggens trouxeram comidas e bebidas para aqueles que conseguiam comer, e ela ajudou a passar bandejas com sucos de frutas e café e chá. Ela trouxe travesseiros para recostar pescoços tensos, e cobertores para amenizar a dureza do chão, e lenços de papel – não que qualquer um deles estivesse chorando.

A natureza estoica daqueles machos e suas companheiras eram um tipo de poder em si mesmo. Ainda que soubesse, que apesar de seu autodomínio, estavam todos aterrorizados.

Ainda outros membros da casa chegaram: Layla, a Escolhida. Saxton, o advogado que trabalhava com o rei. Rehvenge, que sempre a deixava nervosa mesmo que nunca tivesse sido outra coisa além de perfeitamente educado com ela. O adorado cão do rei a quem não havia sido permitido entrar na sala de cirurgia, mas era confortado por todos. O gato preto, Boo, que se esgueirava por entre botas esticadas, e pulava num colo, onde era acarinhado, e então pulava para outro.

Fim da manhã.

Tarde.

Fim da tarde.

Às cinco. Oh, sete, a doutora Jane e seu parceiro, Manuel, finalmente apareceram, tirando as máscaras dos seus rostos exaustos.

– Wrath está indo conforme esperado, – a fêmea revelou. – Mas dado que ele foi tratado em campo, temos vinte e quatro horas de observação por infecção pela frente.

– Mas vocês podem lidar com isto, – o Irmão Rhage falou alto. – Certo?

– Podemos tratá-lo malditamente bem, – Manuel disse com um aceno. – Ele vai sair desta. Aquele desgraçado durão não aceitaria de nenhuma outra maneira.

Ouve um súbito grito de guerra da Irmandade, seu respeito e adoração e alívio tão óbvios. E enquanto No’One liberava também um suspiro de alívio, percebeu que não era pelo rei. Era porque ela não queria que Tohr sofresse por nenhuma perda a mais.

Isto era... Bom. Graças à Virgem Escriba.

 

De início, Layla não conseguia compreender para o que estava olhando. Um rosto, sim, e um que ela supunha conhecer, pelo formato. Mas os traços que o compunham, estavam tão distorcidos, que ela não teria identificado o macho se não o conhecesse tão bem.

– Qhuinn...? – suspirou enquanto se aproximava do leito de hospital.

Ele tinha sido costurado, pequenas linhas de fio negro desciam pela sua sobrancelha, atravessando a bochecha, a pele brilhante de suor, o cabelo ainda sujo de sangue seco, respiração superficial.

Olhando para as máquinas perto da cama, não ouviu alarmes, nem nada acender. Aquilo era bom, não era?

Ela se sentiria melhor se ele lhe respondesse. – Qhuinn?

Na cama, a mão dele virou e relaxou seu punho apertado, revelando a extensão da palma.

Ela colocou a sua sobre a dele e sentiu-o apertando levemente. – Então você está aí, – disse roucamente.

Outro apertão.

– Preciso lhe alimentar, – ela gemeu, sentindo sua dor como se fosse dela. – Por favor... Abra sua boca. Deixe-me lhe aliviar...

Quando ele obedeceu, houve um som de estalo, como se as juntas de sua mandíbula não estivessem funcionando direito.

Abrindo a própria veia, ela levou seu pulso até os lábios machucados e abertos dele. – Tome de mim...

De início, era claro que ele tinha dificuldade de engolir, então ela lambeu um dos furos da mordida para diminuir o fluxo. Quando ele aumentou o ritmo, ela se mordeu novamente.

Ela o alimentou por tanto tempo quanto ele permitiu, rezando para que a sua força pudesse se tornar a dele, e que fosse uma força curativa.

Como aquilo acontecera? Quem fizera aquilo com ele?

Dado o número de membros envoltos em gazes do lado de fora, era óbvio que os lessers enviaram uma força brutal às ruas de Caldwell, naquela noite. E Qhuinn tinha certamente enfrentado o mais cruel e forte membro das forças inimigas... A ponto de ela se preocupar sobre aquela inclinação vingativa dele.

Havia uma linha tão fina separando a coragem da imprudência mortal.

Quando ele terminou, ela fechou suas feridas e puxou uma cadeira, sentando-se perto dele, com a mão junto à dele, novamente.

Era um alívio observar a transformação milagrosa dos ferimentos em seu rosto. Àquela velocidade, eles logo não seriam nada mais do que machucados superficiais, imperceptíveis no dia seguinte.

Quaisquer danos que ele tivesse internamente também estariam descartados. Ele iria sobreviver.

Sentado com ele, em silêncio, pensou sobre os dois, e a amizade que brotara daquela adoração inadequada dela. Se algo lhe acontecesse, ela lamentaria como por um irmão de seu próprio sangue, e não havia nada que não fizesse por ele – e mais, ela tinha a forte impressão de que isto era recíproco.

De fato, ele tinha feito tanto por ela. Tinha-a ensinado a dirigir e a lutar com os punhos, atirar com arma de fogo e mexer em computadores. Tinha mostrado a ela filmes e músicas, trouxera roupas diferentes das tradicionais túnicas das Escolhidas, perdeu tempo respondendo às perguntas dela sobre este lado, e a fizera rir quando precisava.

Ela aprendera tanto com ele. Devia tanto a ele.

Então parecia... Ingratidão... Sentir-se insatisfeita com sua parte. Mas ultimamente, ela vinha experimentando uma estranha ironia: quanto mais ela se expunha, mais a vida parecia vazia. E ainda assim, por mais que seguisse direções opostas, ainda encarava seu serviço à Irmandade como a coisa mais importante a fazer com seu tempo.

Enquanto Qhuinn tentava mudar de posição, praguejou de desconforto, e ela esticou-se para acalmá-lo, acariciando seu cabelo pegajoso. Um dos olhos dele funcionava, e se voltou para ela, a luz por trás da cor azul, exausta e cheia de gratidão.

Um sorriso esticou-se nos lábios dela e ela acariciou a bochecha machucada dele com a pontinha dos dedos. Estranho, esta proximidade platônica que eles compartilhavam – era como uma ilha, um santuário, e ela valorizava tão mais do que qualquer calor que já tinha sentido por ele.

A ligação vital também a fez consciente do quanto ele sofreu, observando seu amado Blay com Saxton.

A dor dele estava sempre presente, cobrindo-o como sua própria carne e o prendendo da mesma maneira, definindo seus contornos e limites.

Isto a fazia ressentir-se de Blay às vezes, mesmo sabendo que não devia julgar: se havia algo que aprendera, era que os corações dos outros pertenciam somente a eles mesmos – e Blay era, em seu núcleo, um macho de valor...

A porta se abriu atrás dela, e por cima do ombro, viu o macho em seus pensamentos aparecer como que invocado pelas suas ruminações.

Não que Blaylock não estivesse ferido, mas estava bem melhor do que o macho na cama – pelo menos externamente. Internamente era outro papo: ainda totalmente armado, ele aparentava ser muito, muito mais velho. Especialmente quando viu o soldado amigo.

Ele parou assim que entrou no quarto. – Eu queria saber como você... Ele... Está.

Layla se concentrou novamente em Qhuinn. Seu olho funcional estava fixo no macho ruivo, e o olhar que havia nele, não mais lhe era doloroso – bem, não do jeito que doeria, caso ela ainda o desejasse para si mesma.

Ela queria este soldado para Qhuinn. Verdadeiramente.

– Entre, – ela disse. – Por favor... Já terminamos.

Blay se aproximou lentamente, e suas mãos remexiam aleatoriamente nas fivelas – em seus coldres, seu cinto, na faixa de couro no alto da coxa.

Mas sua postura era contida. Pelo menos até ele falar. Então sua voz falhou. – Seu estúpido filho da puta.

As sobrancelhas de Layla se afundaram em um clarão, mesmo que Qhuinn dificilmente precisasse de alguém como ela para defendê-lo. – Com o seu perdão?

– De acordo com John, ele saiu da casa para enfrentar o Bando de Bastardos. Sozinho.

– Bando de Bastardos?

– Os que tentaram assassinar Wrath hoje. Este estúpido filho da puta decidiu ir direto para cima deles, sozinho, como se fosse algum tipo de super-herói... É um milagre ele não ter se matado.

Ela imediatamente transferiu seu olhar para a cama. Claramente, a Sociedade Lessening tinha uma nova divisão, e a ideia de que ele se expusera desta forma a fez querer gritar com ele. – Seu... Estúpido filho da puta.

Qhuinn tossiu um pouco. Então um pouco mais.

Com uma apunhalada de medo, ela pulou. – Eu vou chamar os médicos...

Só que Qhuinn estava rindo. E não morrendo engasgado.

Ele riu tensamente de início, e então num crescendo, até que a cama se chacoalhou de uma hilaridade que só ele via.

– Não vejo graça nenhuma, – ela cortou.

– Nem eu, – Blay juntou. – Que infernos há de errado com você?

Qhuinn só continuou a rir, divertindo-se sabe-se lá, a Virgem Escriba, com o quê.

Layla olhou para Blay. – Está me dando vontade de bater nele.

– Seria inútil a esta altura. Espere até ele sarar, então bata. Se quiser, eu o seguro para você.

– Foi... A coisa... Certa... A fazer... – Qhuinn rosnou.

– Concordo. – Layla colocou as mãos nos quadris. – Blay está absolutamente certo... Eu vou lhe socar mais tarde. E você me ensinou exatamente onde é preciso socar um macho.

– Legal, – Blay murmurou.

Depois que silenciaram, o jeito intenso com o que os machos se olharam fez o coração dela se acender. Talvez eles pudessem entrar em um acordo agora?

– Eu vou sair para verificar os outros, – ela disse rapidamente. – Para ver se mais alguém precisa se alimentar...

Qhuinn estendeu o braço e pegou sua mão. – Você?

– Não, estou bem. Você foi mais do que generoso semana passada. Sinto-me muito forte. – Ela se inclinou e beijou a testa dele. – Só descanse, virei encontrá-lo mais tarde.

Em seu caminho de passagem por Blay, ela disse suavemente, – Vocês dois conversem. Eu direi a todos para os deixarem em paz.

Enquanto a Escolhida saía, Blay só conseguia olhar em descrença para as costas de seu penteado perfeito.

Quando ele entrara no quarto, a conexão entre Qhuinn e a fêmea o atingira no estômago: todo aquele contato visual, e as mãos dadas, o jeito que ela curvava seu elegante corpo na direção dele... O jeito que ela e só ela o sustentava.

E ainda assim... Parecia que ela queria que ele ficasse a sós com Qhuinn.

Não fazia sentido. Se alguém tivesse de querer os dois separados era ela.

Concentrando-se no macho, ele pensou, Deus, aqueles ferimentos eram difíceis de olhar, mesmo em processo de cura.

– Com quem você lutou? – perguntou rudemente. – E não se incomode em discutir... Eu falei com John assim que cheguei em casa. Eu sei o que você fez.

Qhuinn ergueu uma mão inchada e sinalizou um X.

– Xcor...? – Quando o cara concordou, ele fez uma careta como se o movimento fizesse sua cabeça doer. – Não... Sim, não force.

Qhuinn acenou de seu jeito clássico de não-vou-fazer. Em voz grossa, falou – Tudo bem.

– O que o fez sair para lutar contra ele?

– Wrath... Ferido... Sabia que o ego de Xcor... O faria estar... – Respirou fundo, chiando – ...O cara ia tentar impedir que o rei saísse. O desgraçado tinha... Tinha de ser impedido... Ou Wrath nunca teria...

– Saído de lá vivo. – Blay esfregou a nuca. – Puta merda... Você salvou a vida do rei.

– Não... Todo mundo... Fez isso.

Sim, ele não tinha tanta certeza disto. Lá na casa de Assail, tinha sido um caos total – o tipo de descontrole que facilmente prejudicava os dois lados: se o Bando de Bastardos não tivesse recuado logo após a chegada da Irmandade, haveria muito mais perdas de ambos os lados.

Olhando para Qhuinn, ele teve de se perguntar em que estado Xcor estaria. Se ele estava assim? O desgraçado deveria estar da mesma forma, talvez até pior.

Blay se agitou, sabendo que estava parado ao lado da cama, em silêncio.

– Ah...

Antigamente, uma vida lá atrás, não havia silêncio entre eles. Só que... Eram garotos então. Não machos totalmente transicionados.

Padrões diferentes, ele achava.

– Eu acho que deveria deixá-lo descansar, – ele disse. Sem sair.

Isto tão facilmente podia ter terminado de outra forma, pensou. A habilidade de Xcor em matar era conhecida – não por Blay pessoalmente, mas ouvira histórias do País Antigo. E mais, pelo amor de Deus, alguém com bolas suficientes para não só se opor a Wrath verbalmente, mas para realmente enfiar uma bala no rei?

Perigosamente mortal ou estúpido. E a segunda opção não era a que parecia neste caso.

Qhuinn podia facilmente ter sido atingido por mais do que socos múltiplos.

– Posso lhe trazer alguma coisa? – Blay disse. Só que, dãh, o cara não podia comer, e ele já tinha sido alimentado.

Layla tinha cuidado disto.

Cara, se ele fosse brutalmente honesto consigo mesmo – e parecia que brutalmente era a palavra do dia – havia vezes em que se ressentia da Escolhida, mesmo que o pensamento fosse um desperdício colossal de emoção. Ele não tinha o direito de sentir-se ciumento, ainda mais agora, que ele e Saxton estavam em um relacionamento razoavelmente sério. Especialmente sabendo que nada ia mudar do lado de Qhuinn.

Você quase morreu esta noite, ele queria dizer. Seu estúpido filho da puta, você quase morreu... E então o que seria de nós?

E não “nós”, se referindo à Irmandade.

Nem mesmo “nós” se referindo a ele e John. Mais como... “eu”.

Merda, porque ele continuava voltando a isto com este macho?

Era tudo tão estúpido. Particularmente, enquanto ficava ali parado acima do cara, observando como mais cores enchiam aquele rosto deformado, e sua respiração ficava menos trabalhosa, e os machucados se clareavam ainda mais... Tudo isto graças à Layla.

– É melhor eu ir, – ele disse, sem sair.

Aquele olho, o azul, continuava a fitá-lo. Raiado de sangue, com um corte na sobrancelha acima dele, a coisa não parecia capaz de focar. Mas focava.

– Eu tenho que ir, – Blay disse finalmente.

Sem sair.

Maldito fosse ele, não sabia exatamente que infernos estava fazendo...

Uma lágrima escapou daquele olho. Escorreu da pálpebra inferior, juntou no canto externo, formou um círculo de cristal, e aumentou tanto que não conseguiu mais se apegar às pestanas. Correndo solta, deslizou para baixo, perdendo-se no cabelo escuro das têmporas.

Blay quis chutar seu próprio traseiro. – Merda, vou buscar a doutora Jane... Você deve estar com dor. Já volto.

Qhuinn chamou seu nome, mas ele já tinha se virado.

Idiota. Estúpido idiota burro imbecil. O pobre macho estava sofrendo em seu leito de hospital, parecendo um figurante em Sons of Anarchy[12] – a última coisa de que precisava era companhia. Mais analgésicos – era o que necessitava.

Correndo pelo corredor, achou a doutora Jane acessando o computador principal da clínica, digitando anotações em registros médicos.

– Qhuinn precisa de uma dose de alguma coisa. Você vem rápido?

A fêmea se levantou, pegando uma maleta antiquada de médico e voltando ao corredor com ele.

Quando ela entrou, Blay deu-lhes um pouco de privacidade, andando para frente e para trás, perto da porta.

– Como ele está?

Parando e virando-se, ele tentou sorrir para Saxton... Sem conseguir. – Ele decidiu ser um herói... E eu acho que pode ter conseguido. Mas, Deus...

O outro macho se aproximou, movendo-se com elegância, em seu terno bem cortado, seus sapatos Cole Haan fazendo ruídos suaves, como se fossem refinados demais para fazer barulhos altos – mesmo no linóleo.

Ele não pertencia à guerra. Nunca pertenceria.

Ele nunca seria como Qhuinn, abandonando a segurança no calor da luta, indo pra cima do inimigo, com suas mãos nuas em punhos, para derrubar o agressor e servir-lhe suas próprias bolas para o almoço.

Era provavelmente parte da razão pela qual era tão fácil lidar com Saxton. Não havia extremos. Mais, o macho era inteligente, refinado e divertido... Tinha maneiras adoráveis, e gostava muito das coisas boas da vida... Sempre se vestia bem...

Era fantástico na cama...

Por que isto soava como ele tentando se convencer de algo?

Enquanto ele explicava o que acontecera em campo, Saxton parou bem perto, seu perfume Gucci, um aroma tranquilizador. – Sinto muito. Você deve estar com a cabeça em frangalhos com isto tudo.

Eeeee o macho era um santo. Um santo altruísta. Não sentia nunca ciúme? Qhuinn não era assim. Qhuinn era ciumento e possessivo como o inferno... – Sim, eu estou, – Blay disse. – Devastado.

Saxton estendeu o braço e segurou sua mão, dando um sutil aperto e então retirando sua morna e suave palma.

Qhuinn nunca era discreto sobre nada. Ele era uma banda marcial, um coquetel Molotov, um búfalo em loja de porcelana, que não se importava com o tipo de bagunça que estaria fazendo.

– A Irmandade sabe?

Blay agitou-se. – Desculpe?

– Do que ele fez? Eles sabem?

– Bem, se eles ouviram sobre isto, não foi por mim. John parecia chateado e eu perguntei a ele... E foi assim que eu ouvi a história...

– Você devia contar a Wrath... Tohr... Alguém. Ele deve levar o crédito por isto... Mesmo que não seja o estilo dele, se importar com este tipo de coisa.

– Você o conhece bem, – Blay murmurou.

– Conheço. E você também conhece. – A expressão de Saxton se endureceu, mas ele sorriu mesmo assim. – Você precisa cuidar dele neste caso.

A doutora Jane saiu do quarto, e Blay girou para ela. – Como ele está?

– Não tenho certeza... O que exatamente você achou que estava errado? Ele estava descansando confortavelmente quando cheguei aqui.

Bem, merda, ele não ia dizer que o cara estivera chorando. Mas o fato era que, Qhuinn nunca demonstraria tamanha fraqueza se não estivesse sofrendo muito.

– Eu acho que interpretei mal.

Por cima do ombro de Jane, Blay notou como Saxton correu a mão pelos cabelos louros cuidadosamente esculpidos.

Era estranho... Sax podia ser parente de sangue de Qhuinn, mas naquele momento, ele parecia demais com o que Blay tinha sido por anos.

Mas também, não ser correspondido era sempre igual, não importavam as características que refletiam a emoção.

Merda.

 

No corredor, Tohr estava sentado em uma cadeira próxima ao leito de hospital onde Wrath estava deitado. Provavelmente era hora de ir.

Já estava li há um tempo.

Pelo amor de Deus, mesmo a rainha tinha adormecido próxima ao seu companheiro na cama.

Ele achava que era uma coisa boa Beth não se importar com sua xeretice. Mas também, eles tinham entrado em acordo, anos atrás, provando somente o que uma maratona do Godzilla podia fazer por um relacionamento.

No canto, em uma enorme e redonda cama Orvis da cor de aveia, George se esticou da posição enrolada que estava e olhou para seu dono. Sem resposta, baixou a cabeça e suspirou.

– Ele vai ficar bem, – Tohr disse.

As orelhas do cachorro se levantaram e ele agitou o rabo duas vezes. – Sim. Eu prometo.

Pegando a deixa do cão, Tohr se reposicionou, e esfregou os olhos. Cara, ele estava exausto. Tudo o que queria era se enrolar como George e dormir o dia inteiro.

O problema era, mesmo que o drama estivesse acabado, sua glândula de adrenalina ainda jorrava, cada vez que ele pensava naquela bala. Cinco centímetros para a direita e teria atingido a jugular, apagando Wrath para sempre. De fato, de acordo com a doutora Jane e Manny, onde a bala se alojou, por pura chance, tinha sido o único lugar seguro – assumindo que o cara estivesse com alguém que pudesse, oh, digamos, fazer uma traqueotomia em uma van em movimento, com nada além de um tubo oco e uma adaga negra.

Jesus Cristo... Que noite.

E graças à Virgem Escriba por aquele anjo. Sem Lassiter ter aparecido para dirigir? Ele estremeceu...

– Pensando na morte da bezerra[13]?

Os olhos de Tohr foram para a cama. As pálpebras do rei estavam baixadas, mas abertas, sua boca esticada num meio sorriso.

Emoção fluiu, espessa e rapidamente, inundando os neurotransmissores de Tohr, roubando sua voz.

E Wrath pareceu entender. Abrindo a mão livre, ele o chamou, mesmo sem poder erguer o braço.

Os pés de Tohr pareceram cambalear quando se levantou e se aproximou da cama. Tão logo estava ao alcance, se ajoelhou perto do rei e pegou aquela grande palma, virou... E beijou o diamante negro gigantesco, que brilhava no dedo de Wrath.

Então, como um maricas, ele baixou a cabeça no anel, no nó do dedo de seu irmão.

Tudo podia ter se perdido esta noite. Se Wrath não tivesse sobrevivido... Tudo podia ter mudado.

Quando o rei apertou sua mão em resposta, Tohr pensou na morte de Wellsie, e só sentiu terror absoluto. Perceber que havia ainda outros a perder, não o consolava em absoluto. Quando muito, o fazia estremecer, a ansiedade fazendo um nó em suas tripas.

Era de se esperar que depois da morte de sua shellan, ele seria isentado da poça de tristeza.

Ao invés disto, aparentemente, só tinha um poço ainda mais profundo para encarar no futuro.

– Obrigado, – Wrath disse roucamente. – Por salvar minha vida.

Tohr ergueu a cabeça e balançou-a. – Não fui só eu.

– Foi você, em boa parte. Eu lhe devo, Irmão meu.

– Você teria feito o mesmo.

Aquele tom autocrático característico veio novamente: – Eu. Lhe. Devo.

– Então compre-me uma Sam[14] uma noite destas e estaremos quites.

– Está dizendo que minha vida vale somente seis dólares?

– Você subestima grandemente o meu amor por uma boa longneck... – Uma cabeça quadrada e loira de cachorro se meteu por baixo de seu braço. Olhando para baixo, ele disse, – Viu? Eu lhe disse que ele ficaria bem.

Wrath riu um pouco, então franziu o rosto, como se doesse. – Ei, grande homem...

Tohr saiu do caminho de forma que dono e cão pudessem estar juntos... Então acabou erguendo o pacote de pelos louros de 40 quilos para colocá-lo perto do rei.

Wrath positivamente resplandeceu enquanto olhava de sua shellan, que estava adormecida, para o animal, que parecia pronto para ser seu enfermeiro.

– Estou feliz que aquela tenha sido nossa última reunião, – Tohr confessou.

– É, eu gosto de sair com estrondo...

– Eu não posso mais deixá-lo fazer uma merda destas. Você sabe, não é?! – Tohr olhou para os braços do rei, seguindo aquelas tatuagens ritualísticas, que revelavam sua linhagem. – Você precisa estar vivo ao final de cada noite, meu senhor. As regras são diferentes para você.

– Ouça, eu já tinha sido ferido antes...

– E não vai acontecer de novo. Não no meu turno.

– O que infernos quer dizer? Vai me acorrentar no porão?

– Se for preciso.

As sobrancelhas de Wrath caíram, e a voz ficou mais forte. – Você pode mesmo ser um imbecil, sabe disto.

– Não é questão de personalidade. E é óbvio, de forma que não é preciso que coma suas calcinhas[15].

– Não estou vestindo nenhuma. – O rei deu outro sorriso. – Estou pelado aqui embaixo.

– Obrigado pela imagem.

– Você sabe, tecnicamente, você não pode me obrigar a nada.

Wrath tinha razão; você não mandava o líder da raça fazer merda nenhuma. Mas quando Tohr encontrou o olhar cego do macho, ele não estava falando com o líder deles; estava falando com seu Irmão.

– Até que Xcor esteja neutralizado, não vamos nos arriscar com você...

– Se houver uma reunião do Conselho, eu vou. Ponto final.

– Não haverá. Não até que desejemos que haja... E agora? Ninguém precisa de você em lugar algum além daqui.

– Puta que pariu! Eu sou o rei... – Quando Beth franziu o cenho em seu sono, ele acalmou a voz. – Podemos falar disto depois?

– Não há razão para isto. Já terminamos o assunto... E cada um dos Irmãos concorda comigo neste assunto.

Tohr não desviou o olhar quando foi atingido por um olhar que, apesar dos olhos cegos, era forte o bastante para queimar um buraco atrás de seu crânio.

– Wrath, – ele disse roucamente, – veja o que tem perto de você. Você quer deixá-la sozinha? Você quer vê-la lamentando sua perda? Foda-se tudo... E sua Beth?

Era um golpe baixo jogar a carta da shellan, mas qualquer arma em uma guerra...

Wrath praguejou e fechou os olhos.

E Tohr soube que vencera, quando o macho virou o rosto para o cabelo de Beth e aspirou profundamente, como se cheirando seu xampu.

– Estamos de acordo, – Tohr exigiu.

– Foda-se, – o rei murmurou contra sua amada.

– Bom, me alegro que estejamos acertados.

Depois de um momento, Wrath desviou os olhos de novo. – Eles tiraram a bala do meu pescoço?

– Tiraram. Tudo o que precisamos agora é o rifle do qual ela saiu. – Tohr acariciou a cabeça de George. – E ele vai estar no covil do Bando de Bastardos... Xcor é o único que tentaria fazer algo assim.

– Precisamos descobrir onde eles estão vivendo.

– Eles são cautelosos. Espertos. Vamos precisar de um milagre.

– Então comece a rezar, meu Irmão. Comece a rezar.

Tohr reconstituiu o ataque mentalmente de novo. A audácia fora sem precedentes – e sugeria que Xcor era capaz de qualquer coisa.

– Eu vou matá-lo, – disse em voz baixa.

– Xcor? – Quando concordou, Wrath disse, – Acho que vai ter de entrar na fila... Assumindo que consiga ligá-lo ao atentado. As boas novas é que como o cabeça do BdB[16], ele pode ser responsabilizado pelas ações de seus soldados... Então, desde que um de seus soldados tenha apertado o gatilho daquele rifle, podemos pegá-lo.

Quando Tohr relembrou a merda toda, aquele nó em suas tripas se apertou a um nível insuportável. – Você disse que me deve um favor... Bem, é isto o que eu quero, eu quero que a morte de Xcor esteja em minhas mãos, e nas de ninguém mais.

– Tohr... – Quando ele apenas encarou em frente, Wrath encolheu os ombros. – Eu não posso entregá-lo a você até termos uma prova.

– Mas você pode estipular, que, se ele for responsável, ele é meu.

– Tudo bem. Ele é todo seu... Se tivermos a prova.

Tohr pensou nas expressões nos rostos dos Irmãos lá fora, no corredor. – Você precisa oficializar.

– Ora, vamos lá, se eu digo...

– Você sabe como eles são. Se qualquer um deles cruzar o caminho daquele cabeça de merda, eles o descascarão como uma uva. Neste exato momento aquele macho tem mais alvos pintados em seu traseiro do que uma tábua de tiro. Além disso, uma proclamação não tomará muito tempo.

As pálpebras de Wrath se fecharam brevemente. – Ok, ok... Pare de discutir e arrume uma testemunha.

Tohr adiantou-se e enfiou a cabeça pra fora do quarto – e para sua sorte, a primeira pessoa que viu... Foi John Matthew.

O garoto estava sentado perto da sala de recuperação, do outro lado, de bunda no chão perto de um Blaylock preocupado, cabeça nas mãos como se houvesse um alarme de incêndio soando dentro de seu crânio.

Só que ele se endireitou de imediato e assinalou, Wrath está bem?

– Sim. – Tohr olhou para o fim do corredor enquanto Blay murmurava uma prece de agradecimento. – Ele vai ficar bem.

Está procurando alguém?

– Eu preciso de uma testemunha...

Posso ser.

Tohr ergueu as sobrancelhas. – Ok. Obrigado.

Quando John Matthew se levantou, fez um ruído alto, como se suas costas estivessem fazendo quiropraxia em si mesma. E quando ele mancou, Tohr percebeu que ele estava ferido.

– Você já deixou a doutora Jane dar uma olhada nisto?

John se dobrou e levantou a perna da roupa de hospital que usava. Sua panturrilha estava enrolada em gaze branca.

– Tiro ou corte? – Tohr perguntou.

Tiro. E sim, eles também recuperaram a bala.

– Bom. E você, Blay?

– Só um ferimento superficial no braço.

Só isto? Tohr pensou. Porque o fodido parecia transtornado – mas então, tinha sido uma longa noite e dia, para todos.

– Me alegro, filho. Voltaremos já.

– Não vou sair daqui.

Tohr abriu a porta completamente, saindo de lado para John atravessá-la, e então o seguiu.

– Como você está, filho? – Wrath perguntou, enquanto o garoto se aproximava dele, se curvando para beijar o anel.

Enquanto John fazia sinais, Tohr traduziu, – Ele diz que está bem. Ele diz... Que se isto não ofendê-lo, tem algo que ele e Blay precisam que você saiba?

– Sim, com certeza. Pode dizer.

– Ele diz... Ele estava com... Qhuinn na casa... Depois de você ser ferido, antes da Irmandade chegar... Qhuinn saiu sozinho... Ah, Blay falou com o cara agora há pouco. Blay diz que... Qhuinn disse a ele que se encontrou com... Xcor... Então... Espere John, devagar. Obrigado... Ok, encontrou com Xcor... De forma que vocês pudessem sair com a van...

Beth se mexeu, abriu os olhos, sobrancelhas juntas como se estivesse acompanhando a conversa.

– Está falando sério? – o rei falou sem pensar.

– Ele lutou... Com Xcor... Mano a mano... – Puta merda, Tohr pensou. Ele ouvira que o garoto tinha saído, mas só isso.

Wrath assobiou por sobre o fôlego. – Ele é um macho de valor.

– Espere, John, me deixe entender. Mano-a-mano... Então Xcor, quem estava a espera para atacar a van, foi neutralizado... Ele – John, seria – quer saber se há alguma espécie de reconhecimento oficial que... Você possa dar a Qhuinn? Algo para reconhecer... Seus serviços mais do que suficientes...? E a propósito, – Tohr falou por si mesmo, – Eu, pessoalmente? Concordo totalmente com isso.

Wrath ficou quieto por um momento. – Sinto muito, deixe-me entender isto. Qhuinn saiu depois que os Irmãos chegaram, certo?

Tohr voltou a traduzir. – John diz que não. Ele estava sozinho, sem cobertura, sem proteção, antes deles chegarem. Qhuinn disse... Que ele tinha de fazer o que pudesse para garantir que você ficasse bem.

– Aquele idiota estúpido.

– Herói seria mais adequado, – Beth disse de repente.

– Leelan, você acordou. – Wrath se voltou imediatamente para a sua companheira. – Eu não queria perturbá-la.

– Acredite-me, só ouvir o som de sua voz é o paraíso... Pode me acordar assim a qualquer momento. – Ela beijou a boca dele suavemente. – Bem-vindo de volta.

Tohr e John se ocuparam olhando para o chão, enquanto palavras ternas eram trocadas.

Então o rei voltou ao assunto. – Qhuinn não devia ter feito isto.

– Eu concordo, – Tohr murmurou.

O rei se concentrou em John. – É, tudo bem. Vamos fazer algo por ele. Eu não sei o que... Mas este tipo de merda é épica. Estúpido, mas épico.

– Por que você não o torna um Irmão, – Beth sugeriu.

No silêncio que se seguiu, a boca de Wrath se abriu, e foi uma reação em cadeia – a mandíbula de Tohr também o fez, e também a de John.

– O quê? – a rainha disse. – Ele não merece isso? Ele não esteve sempre ali por todo mundo? E ele perdeu toda a família dele... É, ele vive aqui, mas algumas vezes eu tenho a impressão de que ele sente como se não pertencesse. Que melhor maneira de agradecer-lhe e dizer-lhe que ele pertence? Eu sei que ninguém aqui duvida da força dele em campo.

Wrath limpou a garganta. – Bem, de acordo com as Leis Antigas...

– Foda-se as Leis Antigas. Você é o rei... Pode fazer tudo o que quiser.

Mais silêncio boquiaberto se estendeu, limpando todos os sons do sistema de ar que soprava ar quente pelos ventiladores do teto. – O que você acha, Tohr? – o rei perguntou.

Quando Tohr olhou para John, ele foi atingido com o quanto ele queria conceder esta honra à coisa mais próxima que já teve de um filho. Mas Qhuinn era de quem estavam falando.

– Eu acho... É, eu acho que pode ser uma boa ideia, – ouviu-se dizer. – Qhuinn merece um agradecimento, e os Irmãos o respeitam... Merda, esta noite não foi a única vez em que ele se destacou. Ele é um guerreiro brilhante, mas mais do que isto, ele se acalmou tremendamente no último ano. Então, é, eu acho que ele pode lidar com a responsabilidade agora, o que não é algo que eu poderia ter dito em outra época.

– Ok, eu vou pensar a respeito, leelan. É uma sugestão maravilhosa. – O rei olhou de volta para Tohr. – Agora, sobre o favor. Aproxime-se, Irmão meu, e se ajoelhe... Temos duas testemunhas agora, o que é ainda melhor.

Enquanto Tohr obedecia e segurava a mão real, Wrath proclamou no Idioma Antigo, – Tohrment, filho de Hharm, você está preparado para ter atribuída a você, e só a você, a morte de Xcor, filho de pai desconhecido, cuja morte deve ocorrer por suas mãos, e suas mãos só, em retaliação ao atentado mortal contra a minha pessoa na noite passada – se esta afronta puder ser comprovadamente atribuída a ações diretas ou indiretas de Xcor?

Colocando a mão livre sobre seu coração, disse com seriedade. – Estou totalmente preparado, meu senhor.

Wrath olhou para sua companheira. – Elizabeth, filha de sangue do Irmão da Adaga Negra Darius, emparelhada comigo, seu rei, você aqui concorda em testemunhar minha concessão ao pedido deste macho, levando adiante a representação deste momento aos demais, colocando também sua marca em pergaminho para celebrar este anúncio? – Quando ela respondeu afirmativamente, ele olhou para John. – Tehrror, filho de sangue do Irmão da Adaga Negra Darius, também conhecido pelo nome de John Matthew, você aqui concorda em testemunhar minha concessão ao pedido deste macho, levando adiante a representação deste momento aos demais, colocando também sua marca em pergaminho para celebrar este anúncio?

Tohr traduziu da linguagem de sinais. – Sim, meu senhor, ele concorda.

– Então, pelo poder certo e verdadeiro investido a mim pelo meu pai, tenho a honra de ordenar que você, Tohrment, filho de Hharm, vá adiante e execute o dever, agora real, de retribuição em meu nome – se assim for provado, de forma indubitável. Retornando no futuro, com o corpo de Xcor, filho de pai desconhecido, para mim como um serviço a seu rei e sua raça. Seu compromisso é um crédito a sua linhagem, passado, presente e futuro.

Uma vez mais, Tohrment se curvou para o anel que havia sido usado por gerações da linhagem de Wrath. – Eu estou, nesta e em todas as coisas, às suas ordens, meu coração e corpo buscando apenas obedecer a sua autoridade.

Quando ergueu os olhos, Wrath estava sorrindo. – Eu sei que você vai trazer o desgraçado para casa.

– Tem razão, meu senhor.

– Agora dê o fora daqui. Nós três precisamos dormir um pouco.

Despedidas foram trocadas, e então Tohr e John saíram para o corredor em um silêncio estranho. Blay estava adormecido do lado de fora da sala de recuperação, mas não estava descansando – havia uma expressão de profunda preocupação em seu rosto, como se estivesse remoendo algo, mesmo no meio de seu REM[17].

Um toque em seu antebraço fez Tohr se voltar para John.

Obrigado, o garoto assinalou.

– Por quê?

Por apoiar Qhuinn.

Tohr deu de ombros. – Somente faz sentido. Merda, o número de vezes que aquele cara se jogou na frente de batalha, com todas as armas atirando? Ele merece – e a coisa de nomeação da Irmandade não devia ser somente sobre linhagem, mas por mérito.

Você acha que Wrath vai fazê-lo?

– Eu não sei... É complicado. Muita história para lidar... As Leis Antigas devem ser levadas em conta. Mas tenho certeza que o rei fará algo por ele...

No fim do corredor, No’One saiu por uma porta, como que atraída pelo som de sua voz.

No instante em que a viu, ele perdeu a linha de pensamento, tudo o que ele tinha se fixou em sua figura vestida no manto. Fodido inferno... Ele estava rude demais para ficar perto dela, faminto demais por um contato vital, inclinado demais a fazer escolhas erradas.

Deus os ajudasse a ambos, mas se ele se aproximasse dela, iria tomá-la.

Pelo canto dos olhos, viu que John assinalava alguma coisa.

Tomou-lhe cada grama de autocontrole forçar sua cabeça a virar para o garoto.

Ela estava tão preocupada com você. Ficou sentada aqui esperando conosco... Ela pensou que você estava ferido.

– Oh... Bem... Merda.

Ela te ama.

Ok, bem, aquilo não o fazia querer cagar nas calças? – Não, ela só... Você sabe, é uma pessoa compassiva.

John limpou a garganta, mesmo que fossem suas mãos que estavam fazendo a coisa de falar. Eu acho que não sabia que vocês dois estavam tão a sério.

Pensando em quão incomodado o garoto ficara, Tohr afastou o comentário com um gesto da mão. – Não, digo, não é grande coisa. De verdade. Eu sei quem eu amo... E a quem eu pertenço.

Só que aquele gesto não parecia correto, não em sua língua, em seus ouvidos... Não no meio de seu peito.

Eu sinto muito por... Sabe, ter perdido o controle antes, John assinalou. É só... Wellsie foi a única mãe que eu tive, e... Eu não sei. A ideia de você com outra pessoa me deixava doente – mesmo eu sabendo que não era justo.

Tohr balançou a cabeça e baixou a voz. – Nunca se desculpe por se importar com nossa fêmea. E quanto à coisa de amor, eu vou dizer de novo. Apesar do que possa parecer visto de fora, eu vou amar uma e somente uma fêmea pelo resto de minha vida. Não importa o que eu faça, com quem eu esteja, ou como as coisas pareçam, você pode confiar nessa merda, filho. Entendidos?

O abraço rude de John foi difícil de aguentar – porque afastar-se do garoto tinha sido de matar, e era duro não se preocupar com a possibilidade disto acontecer de novo.

Era também difícil, porque as convicções de Tohr eram sinceras de coração e honestas... Iguais à condenação de Wellsie, não eram?

Deus, encontraria ele, algum dia, um jeito de sair desta confusão?

Enquanto o pensamento assustador lhe ocorria, desviou os olhos e olhou em direção da figura imóvel e esguia de No’One.

Por trás dela, Lassiter deu um passo a frente, e só o olhou diretamente, a decepção no rosto do cara tão evidente, que era claro que ele, de alguma forma, sabia o que tinha sido dito.

Talvez soubesse de tudo.

 

Quando Tohr se afastou em direção a No’One, John retomou sua tarefa de encerar carinhosamente o linóleo[18] do lado de fora do quarto de Qhuinn.

Honestamente, ele não queria ver o Irmão percorrer o corredor para encontrar aquela outra fêmea. Parecia fundamentalmente errado, como se uma das leis do universo houvesse decidido seguir em direção contrária. Inferno, tomando como paralelo a sua própria vida, a ideia de que pudesse haver outra fêmea além de Xhex, era-lhe repugnante. Muito embora estivesse em agonia constante sem ela, ainda a amava tanto, que virou assexuado.

Mas, bem… Ela ainda estava viva.

E você não podia argumentar que esse relacionamento não estava sendo bom para Tohr. Ele estava de volta ao que era quando John o conheceu, enorme, sólido e forte. E fala sério, ele não caminhara para uma armadilha suicida no meio de um tiroteio ou saltara de uma ponte há, tipo, meses.

Que bom que fora Qhuinn quem partiu para ação dessa vez. Oba!

Além disso, ficava difícil não aprovar No’One: ela não era nem um pouco promíscua… Era calma. Despretensiosa. E sua aparência, não era para se jogar fora.

Havia tantas candidatas piores no mundo lá fora. Interesseiras. Tipos arrogantes da glymera. Peitudas desorientadas com risadinhas tolas.

Encostando a parte de trás de sua cabeça na parede de concreto, ele fechou os olhos enquanto ouvia o casal conversando. Pouco tempo depois as vozes pararam e ele assumiu que tinham ido embora, provavelmente iriam para cama...

Ok, ele não ia nem pensar nisso.

Deixado à própria solidão, ele escutou a respiração suave de Blay e o ocasional reposicionamento dos membros, resolutamente mantendo sua mente longe de Xhex.

Engraçado, essa coisa de esperar-e-se-preocupar parecia como nos velhos tempos… Ele e Blay esperando por Qhuinn.

Rapaz, eles eram afortunados pelo cara ter retornado vivo…

Conforme sua memória cuspia imagens daquela mansão no rio, ele via Wrath indo para o chão e V com sua arma apontada para a cabeça de Assail… E Tohr fazendo seu corpo de escudo para proteger o rei. Em seguida, ele e Qhuinn vasculhando a casa… Discutindo próximos àquela porta de vidro deslizante… Brigando com seu melhor amigo a respeito dele sair pela noite, sem cobertura e sozinho.

Você precisa me deixar fazer o que eu posso.

O olhar de Qhuinn era resoluto e absolutamente destemido, pois ele sabia do que era capaz, sabia que podia se sair com uma Ave Maria e resolver as coisas, sabia que muito embora houvesse uma chance de não voltar para casa, era forte o suficiente e convicto o bastante de suas habilidades de combate, que faria tudo o que fosse possível para diminuir esse risco.

E John o deixou ir. Mesmo com seu coração gritando, sua cabeça tocando um alarme e seu corpo preparado para bloquear a saída. Embora não fossem apenas recrutas Lessers lá fora, mas sim o Bando de Bastardos que era altamente treinado, muito experiente e brutal como o inferno. Mesmo Qhuinn sendo seu melhor amigo, um macho que era importante para ele neste mundo, alguém cuja perda poderia abalá-lo por toda vida…

Merda.

John colocou as mãos no rosto e deu uma boa esfregada.

Ocorre que nenhuma esfregada mudaria a revelação que estava se rastejando nele, de forma indesejável e inegável.

Ele viu Xhex naquela reunião com a Irmandade lá na primavera, quando ela se ofereceu para encontrar o covil de Xcor: Eu posso cuidar disso, especialmente se eu os atingir durante o dia.

Ela esteve com os olhos completamente duros e lúcidos, segura de si e de suas capacidades. Seu povo precisa de mim para fazer o que eu posso.

Quando foi com seu melhor amigo? Ele não gostou, mas ficou de lado e deixou o macho fazer o que tinha que ser feito para o bem maior, mesmo havendo perigo mortal envolvido. Se algo tivesse acontecido com o cara e ele tivesse morrido? John teria ficado destroçado… Mas esse era o código dos soldados, o código da Irmandade.

O código dos machos.

Perder Xhex seria muito pior, é claro, porque ele era um macho vinculado. Mas a realidade era que, tentando salvá-la de um destino violento, ele a perdera completamente: não havia sobrado nada para eles, nenhuma paixão, nenhuma conversa, nenhum calor… Pouco contato. E tudo porque seu impulso protetor assumiu o controle.

Era tudo culpa sua.

Ele tinha se emparelhado com uma guerreira e então, pirou quando a coisa de risco-de-ferimentos foi do hipotético para o real. E Xhex estava certa, ela não queria vê-lo morto ou nas mãos do inimigo, mas mesmo assim permitia que ele saísse todas as noites.

Ela o deixava fazer o que podia para ajudar.

Ela não estava permitindo que suas emoções tentassem impedi-lo de executar o trabalho dele, e se ela tentasse? Bem, então ele teria explicado pacientemente e com todo o amor, que ele nasceu para lutar, e que era cuidadoso consigo mesmo, e…

Quanta hipocrisia, não?

Além disso, como ele teria se sentido se alguém visse o fato dele ser mudo como um fator de limitação para lutar? Como teria reagido se tivessem lhe dito que, apesar de todas as suas outras qualificações e habilidades, apesar do seu talento e instintos naturais e porque não podia falar, ele não estava autorizado para luta de campo?

Ser fêmea não era uma deficiência em qualquer sentido da palavra. Mas ele tinha tratado como se fosse, não tinha? Decidiu que, por ela não ser um macho, apesar de todas suas qualificações e habilidades, ela não podia sair para o combate.

Como se seios, de repente, tornassem a merda mais perigosa.

John recomeçou com a esfregação, a cabeça começando a latejar com a pressão. Seu lado emparelhado estava arruinando sua vida. Apague isto – já tinha arruinado sua vida. Porque ele não estava certo que, não importasse o que fizesse agora, se conseguiria Xhex de volta.

Porém, ele estava certo sobre uma coisa.

De repente ele pensou em Tohr e naquele juramento.

E soube o que tinha que fazer.

 

Quando Tohrment caminhou em sua direção, No’One ficou ofegante: o corpo sólido dele estava se deslocando de um lado para o outro no ritmo de sua marcha, os olhos ardentes se fixando nela como se quisessem consumi-la de algum jeito vital.

Ele estava pronto para acasalar, ela pensou.

Querida Virgem Escriba, ele estava vindo tomá-la.

Eu quero foder você.

Sua mão foi para o laço em seu manto e foi um choque perceber que ela estava pronta para abrir sua roupa neste momento. Não aqui, ela disse para seus dedos. Em algum outro lugar, entretanto…

Não havia nenhum pensamento sobre aquele symphath, nenhuma ansiedade sobre se doeria, nenhuma sensação de que poderia se arrepender disso. Havia apenas uma paz ressonante no centro de seu corpo, martelando pela necessidade de que este macho era o que ela procurava; esse acasalamento era o que ela havia esperado tão pacientemente.

Ambos estavam prontos.

Tohrment parou na frente dela, o peito dele subindo e descendo e as mãos se fechando em punhos.

– Estou lhe dando a chance de se afastar de mim. Agora mesmo. Deixe o centro de treinamento e eu ficarei aqui.

A voz dele estava distorcida, tão baixa e profunda que as palavras eram quase ininteligíveis.

A dela, por outro lado, estava muito clara:

– Eu não vou me afastar de você.

– Está entendendo o que estou dizendo? Se você não for… Vou estar dentro de você em um minuto e meio.

Ela ergueu o queixo.

– Quero você dentro de mim.

Um grande grunhido surgiu dele, o tipo de som que, se ela ouvisse em outro contexto, poderia ter se apavorado. Mas cara-a-cara com este magnífico macho excitado? O corpo dela respondeu com um relaxamento maravilhoso, preparando-se ainda mais para aceitá-lo.

Ele não foi gentil quando se abaixou e a pegou, balançando as longas pernas dela para o alto e apanhando-as na dobra do seu braço. E não foi lento quando seguiu em direção à piscina, como se a ideia de levá-los para uma cama adequada dentro de casa era simplesmente demais para se dar ao trabalho.

Enquanto ele andava a passos largos com ela capturada como um troféu, ela encarou o rosto dele. As sobrancelhas estavam franzidas com força, a boca separada revelando as presas, a cor exaltada com antecipação. Ele queria isso. Precisava disso.

E não havia como voltar atrás.

Não que ela tivesse escolhido isso. Ela amava o modo como ele a fazia se sentir neste momento.

Embora fosse traiçoeiro se sentir lisonjeada com o desespero com o qual ele tomou posse dela. Ele ainda estava apaixonado por sua companheira falecida. Então, bem, ele a queria e isso era suficiente. Isso era, talvez, tudo o que ela jamais teria e, mesmo assim, como ela havia dito a ele, era muito mais do que poderia ter pedido.

Após o comando dele, a porta de vidro para o hall de entrada da piscina se abriu para eles, e quando se fechou facilmente após passarem, ela ouviu a fechadura ser trancada. Em seguida passaram rapidamente pela sala de espera e dobrando a esquina, entraram na piscina propriamente dita, o calor daquele ar úmido e espesso tornando o corpo dela ainda mais lânguido...

Numa sequência coordenada, as luzes do teto esmaeceram e o brilho esverdeado da piscina se intensificou, lançando uma iluminação aquática sobre tudo.

– Não há volta. – Tohrment disse, como se dando a ela uma última oportunidade de acabar com tudo.

Quando ela simplesmente assentiu, ele rosnou novamente e então a baixou num dos bancos de madeira, deitando-a de costas. Ele foi fiel à sua palavra. Não esperou ou hesitou; arqueou-se em cima dela e fundiu suas bocas, trazendo seu peito para o dela, posicionando suas pernas entre as dela.

Envolvendo os braços em torno da nuca dele, ela o manteve próximo enquanto os lábios dele se moveram contra os dela e a língua dele a penetrou. O beijo era glorioso e avassalador, ao ponto dela nem ter percebido que ele estava desfazendo o laço de sua túnica.

E então as mãos dele estavam sobre ela. Através da abertura do tecido, as palmas dele queimavam enquanto acariciava-lhe seus seios e seguiam mais para baixo. Separando suas coxas ainda mais para ele, ela puxou a bainha e conseguiu o que queria. O toque dele direto em seu núcleo, massageando-a, trazendo-a para aquele limite de liberação, mas não além disso.

– Quero lhe beijar. – ele grunhiu contra sua boca. – Mas não posso esperar.

Ela pensou, ele já não a estava beijando?

Antes que ela pudesse responder, ele afastou seus quadris dos dela e trabalhou com rude urgência na parte da frente da calça de couro.

E então algo quente e duro estava colidindo… Cutucando… Deslizando contra ela.

No’One se arqueou e chamou o nome dele e foi quando ele a tomou, enquanto a voz dela ecoava para o alto teto, seu corpo a reivindicou, empurrando para dentro, abrindo seu caminho, duro, porém suavemente.

Tohrment deixou sua cabeça cair ao lado da dela conforme se juntavam, e então, ele parou de se mover completamente, o que foi bom. A sensação de estiramento e acomodação ao tamanho dele beirava a dor, não que ela trocasse isso por nada no mundo.

Gemendo profundamente, o corpo dele começou a se mover, lentamente a princípio, depois com maior rapidez, os quadris balançando contra os dela enquanto agarrava as coxas dela e apertava. Com uma grande onda de paixão os atropelando, cada sensação foi ampliada, sua mente ao mesmo tempo em que estava completamente presente, estava totalmente desintegrada pela maneira que ele a dominava sem machucá-la.

Quando o ritmo beirou o limite do controle, No’One se agarrou a ele por sua preciosa vida, sua forma física subindo rapidamente mesmo enquanto estava presa debaixo dele, seu coração se estilhaçando e sendo curado no mesmo instante em que o prazer de repente se acumulou e então explodiu. Na verdade o orgasmo fez seu núcleo se agarrar a ele e ceder para um ritmo alternado, o clímax completamente diferente de qualquer outro sentido anteriormente... Mais intenso, mais duradouro. E pareceu lançá-lo no limite em suas próprias contrações selvagens, sua pélvis o lançando para dentro depois se sacudindo contra ela.

Tudo parecia durar para sempre, mas quando levantamos voo, eventualmente nos afastamos da liberdade dos céus e retornamos a terra.

A consciência era um fardo gradual e inquietante.

Ele ainda estava vestido e ela também, o manto ainda envolto nos seus ombros e braços. E o banco estava cortando suas omoplatas e a parte de trás de sua cabeça. E o ar a sua volta não era tão quente quanto a paixão havia sido.

Que estranho, ela pensou. Embora tenham compartilhado tanto antes, este exato momento os tinha conduzido a uma grande transição.

Ela se perguntou como isso o fazia se sentir...

Tohrment ergueu sua cabeça e baixou os olhos para ela. Não havia nenhuma expressão particular no rosto dele, nem alegria, nem tristeza, nem culpa.

Ele só olhava para ela.

– Você está bem? – ele disse.

Como sua voz parecida tê-la abandonado, ela acenou, mesmo não tendo certeza do que sentia. Fisicamente seu corpo estava bem, de fato continuava bem com a presença dentro de seus recantos. Mas até saber como ele estava, ela não podia testemunhar qualquer outra coisa.

A última fêmea com quem ele esteve foi sua shellan... E certamente aquilo estava na mente dele neste tenso silêncio.

 

Tohr congelou bem onde estava, em cima de No’One, a ereção ainda enterrada no corpo dela, seu sexo se agitando para continuar os movimentos, mesmo que ele tivesse colocado freios à luxúria.

Ele esperava que sua consciência começasse a gritar.

Ele se preparou para uma desolação arrebatadora, por estar com outra fêmea.

E estava... Pronto para alguma coisa, qualquer coisa, se elevasse em seu peito – desespero, raiva, frustração.

Tudo o que teve foi a sensação de que o que acontecera era um começo, e não um fim.

Levando os olhos para o rosto de No’One, ele perscrutou suas feições, procurando por qualquer indicação de que a tomara por sua shellan, testando seu circuito interno por sinais de alarme... Preparando-se para alguma grande explosão.

Tudo o que teve foi uma sensação de certeza.

Afastou uma mecha do cabelo louro, do rosto dela.

– Tem certeza de que está bem?

– Você está?

– Sim. Estou meio que... Digo, eu realmente estou... Bem. Acho que estava preparado para tudo, menos isso, se é que faz sentido.

O sorriso que brotou no rosto dela, não era nada menos do que o brilho do sol, transformando a expressão de seus traços, numa beleza tão resplandecente que lhe roubou o fôlego.

Tão gentil. Tão compassiva. Tão concordante.

Ele não poderia ter feito isto com ninguém mais.

– Se importa se tentarmos de novo? – Ele disse com voz suave.

As bochechas dela enrubesceram para um rosa profundo.

– Por favor...

O tom em sua voz fez o pau dele pular dentro dela, seu calor úmido e apertado rodeando-o de uma vez, fazendo-o pronto para rugir e começar a se mover de novo.

Só que não era justo pedir a ela para se deitar naquele banco duro.

Com os braços a seu redor, ele a puxou para perto de seu peito e deixou que suas coxas fortes fizessem todo o trabalho de levantá-los. Quando suas pernas sustentaram o peso de ambos, beijou-a de novo, movendo a cabeça e trabalhando sua boca na dela enquanto espalmava seu traseiro e se preparava para começar a se mover. Usando os braços, levou-a para cima e para baixo em sua ereção, beijando o que conseguia de sua garganta e clavícula enquanto a penetrava em um ângulo diferente, mais profundo.

Ela estava inacreditável, envolvendo-o, apertando-o forte, a fricção fazendo-o querer mordê-la só para sentir seu gosto.

Mais rápido. Ainda mais rápido.

O manto estava esvoaçando selvagemente, e No’One devia estar odiando o tecido tanto quanto ele, porque subitamente jogou fora a coisa, tirando-a pelo ombro e deixando-a cair no piso. Quando os braços dela retornaram para o redor de seu pescoço, ela o segurou forte – o que ele gostou.

Enterrando os dedos, ele se aproximou cada vez mais do final – e era o mesmo com No’One. Os sons que ela fazia, os gemidos incríveis, sua essência maravilhosa se elevando no ar, sua trança golpeando...

Subitamente, ele diminuiu os movimentos e soltou o laço que segurava o peso do cabelo dela, arrancando-o e libertando as mechas. Balançando as ondas pesadas de sua prisão, ele as jogou sobre o ombro dela e dele próprio, cobrindo os dois.

Algo neste gesto de liberar, levou-a se liberar também: duas bombeadas depois, e seu corpo se livrou das amarras, a liberação se sobrepondo a tudo, até que ele praguejou em uma respiração explosiva.

Flutuando pelo prazer, ele a apertou fortemente e enterrou o rosto em todo aquele cabelo loiro, respirando e cheirando o shampoo delicado que ela usava. Merda, a essência dela o atingia ainda mais fortemente, até que seu orgasmo subitamente se tornou desenfreado, tomando seu corpo, tirando seu equilíbrio, deixando-o temporariamente cego.

Deve ter sido o mesmo para ela – à distância, ele ouviu-a gritar seu nome enquanto travava as pernas em sua cintura, grudando-os ainda mais.

Incrível. Absolutamente incrível. E ele viajou no prazer pelo tempo que durou – de ambos os lados. Quando ele finalmente se acalmou, a cabeça de No’One caiu sobre o ombro dele, o corpo se chocando contra seu peito, a adorável carne dela solta como seu cabelo.

Livre, uma de suas mãos achou a coluna dela e traçou um caminho leve até a base de seu pescoço. Enquanto seu fôlego se normalizava, ele só... A abraçou.

Antes que percebesse, ele estava balançando levemente os dois, de um lado para outro. Ela pesava perto de nada em seus braços poderosos, e ele tinha a sensação de que podia mantê-los unidos um contra o outro... Para sempre.

Eventualmente, ela suspirou,

– Eu devo estar pesando.

– Nem um pouco.

– Você é muito forte.

Cara, aquilo fazia bem ao ego dele. De fato, se ela soltasse outra dessas, ele sentiria como se pudesse erguer um ônibus. Com um jatinho estacionado no teto.

– Vou lhe limpar, – ele disse.

– Para quê?

Ok, aquilo era sexy. E o fez querer... Fazer outras coisas com ela. Todo o tipo de coisas.

Por sobre o ombro dela, ele olhou para a piscina, e pensou que a eficiência é que era na realidade a mãe da invenção.

– Que tal um mergulho?

No’One ergueu a cabeça.

– Eu podia ficar assim...

– Para sempre?

– Sim. – Os olhos dela estavam semicerrados e brilhando à luz azul-esverdeada. – Para sempre.

Enquanto ele olhava para ela, ele pensou... Ela estava tão viva. Suas bochechas coradas, os lábios inchados por ele tê-los por inteiro, o cabelo bagunçado e um pouco selvagem. Ela era vital e quente e...

Ele começou a rir.

Oh, caralho... Não fazia ideia do motivo – não havia nada engraçado na situação, mas de repente ele estava rindo como um maníaco.

– Desculpe, – ele conseguiu dizer. – Eu não sei qual o problema.

– Não importa. – Ela sorriu de alegria para ele, mostrando as presas delicadas e seus dentes brancos. – É o som mais bonito que já ouvi.

Pego por um impulso que ele não entendia, ele deu um giro e foi na direção da piscina, dando um passo largo, então outro, então um terceiro. Com um salto poderoso, ele os enviou à fonte parada de luz azulada.

Pousaram na água morna como um só, braços suaves e invisíveis envolvendo-os em um enlace morno, tirando-os do domínio da gravidade, poupando a ambos de um pouso difícil.

Quando a cabeça dele submergiu, ele encontrou a boca da fêmea e a tomou, beijando-a por baixo da superfície enquanto plantava os pés e impulsionava para cima para buscar ar...

No processo, seu pau roçou o núcleo dela de novo.

Ela estava bem lá com ele, cruzando aquelas pernas em seus quadris de novo, imitando seu ritmo, beijando-o de volta. E era bom. Era... Certo.

Algum tempo depois, No’One se viu nua, molhada, e esticada ao lado da piscina em uma cama de toalhas que Tohrment tinha arrumado para ela.

Ele estava ajoelhado perto dela, as roupas dele coladas a seus músculos, os cabelos ensopados, os olhos intensos enquanto olhava para o corpo dela.

Uma súbita insegurança a atingiu, esfriando-a.

Sentando-se, ela se cobriu.

Tohrment lhe pegou as mãos e gentilmente colocou-as de lado.

– Você está arruinando minha vista.

– Você gosta...?

– Oh, sim... Eu gosto. – Ele se inclinou e beijou-a profundamente, deslizando sua língua dentro dela, acalmando-a até deitá-la de costas de novo. – Hummm, é disto que estou falando.

Quando ele se afastou um pouco, No’One sorriu para ele.

– Você me faz sentir...

– O quê? – Ele baixou a cabeça e passou os lábios pela garganta dela, pela clavícula... O bico do seio. – Bela?

– Sim.

– É o que você é. – Ele beijou seu outro mamilo e sugou-o na boca. – Bela. E eu acho que você devia jogar fora este maldito manto de vez.

– O que eu vou vestir?

– Eu lhe arrumo roupas. Todas as roupas que quiser. Ou você pode andar nua.

– Na frente dos outros... – O chiado que ele soltou era quase o melhor elogio que ela podia ganhar. – Não?

– Não.

– Então, talvez em seu quarto.

– Agora, isto eu posso deixar passar.

Os lábios dele viajaram abaixo para a lateral, até que ele esfregou a presa no quadril dela. Então ele estava atravessando a barriga, os beijos suaves e preguiçosos. Não foi até, ele ir mais adiante, demorando-se em seu quadril e então esfregando-os próximo ao seu sexo, que ela percebeu sua intenção.

– Abra as pernas para mim, – ele incentivou em uma voz profunda. – Deixe-me ver a parte mais bonita de você. Deixe-me beijá-la no lugar onde quero estar.

Ela não tinha certeza do que ele estava sugerindo, mas não podia negar nada quando ele usava aquele tom de voz com ela. Em uma névoa, levantou um joelho, separando as coxas... E soube quando ele olhou para ela, pois ele rosnou de satisfação.

Tohrment se moveu entre as pernas dela e esticou mais, espalmando as duas coxas e abrindo ainda mais. E então seus lábios estavam sobre ela, cálidos, sedosos e úmidos. A sensação de suavidade sobre suavidade desencadeou outro orgasmo, e ele o aproveitou, penetrando-a com a língua, sugando-a, encontrando seu ritmo e levando-a além.

As mãos dela se enterraram nos cabelos dele, enquanto ondulava os quadris.

E pensar que ela tinha gostado do sexo...

Mal sabia que havia tanto mais para descobrir.

Ele era despedaçadoramente atencioso e cuidadoso em suas explorações, tomando seu tempo até que a levava ao ápice do prazer. E quando ele finalmente afastou a boca, seus lábios estavam escorregadios e rubros, e ele correu a língua sobre eles, enquanto olhava para ela por sob as pálpebras.

Então ele se ergueu e agarrou os quadris dela, levantando-os.

A ereção dele era impossivelmente grossa e longa, mas ela já sabia que se encaixava nela perfeitamente.

E ele fez novamente.

Desta vez ela prestou mais atenção à visão do que a sensação dele. Erguendo-se sobre ela, ele se moveu daquele jeito poderoso e potente, dando prazer a ambos enquanto ondulava os quadris acima e abaixo, movendo-se para dentro e para fora.

O sorriso dele era sombrio. Erótico. – Gosta de me ver?

– Sim. Oh, sim...

Aquilo era o mais longe que ela foi enquanto outra onda de liberação se erguia e tomava controle de seus pensamentos, seu discurso, seu corpo... Sua alma, lavando a tudo até a limpeza total.

Quando ela finalmente se aquietou e se viu novamente capaz de se concentrar, viu uma tensão no rosto de Tohrment, a firmeza da linha de sua mandíbula e seus olhos, o movimento de seu peito. Ele ainda não tinha encontrado sua liberação.

– Você quer ver, – ele falou por entre dentes.

– Oh, sim...

Abandonando o corpo dela, sua ereção estava como seus lábios tinham estado, brilhante e inchada.

Com uma grande mão ele segurou a si mesmo, e com a outra, apoiou seu peso contra o chão, de forma que pudesse se esticar sobre seu corpo aberto e relaxado. Movendo os ombros, ele forneceu a ela uma vista e tanto enquanto se acariciava para cima e para baixo, a cabeça do membro aparecendo e desaparecendo de dentro de seu punho.

Sua respiração ficou entrecortada e barulhenta, enquanto ele mostrava a ela como acontecia para ele.

Quando chegou a hora, o grito dele soou em seus ouvidos e a cabeça jogada para trás, o queixo erguido enquanto expunha as presas e sibilava. Então com pulsações rítmicas, jatos foram expelidos, direto para o sexo e baixo ventre dela, fazendo-a arquear-se como se a satisfação fosse dela própria.

Quando ele finalmente parou, ela esticou os braços. – Venha aqui.

Não houve hesitação quando ele obedeceu, trazendo seu peito ao dela antes de virar de lado para acomodar o peso nela.

– Você está com frio, – ele murmurou. – Seu cabelo está úmido.

– Não me importo. – Ela se aninhou ao corpo dele. – Estou... Perfeita.

Um ruído de aprovação subiu da garganta dele. – Isto você é... Rosalhynda.

Ao som de seu antigo nome, ela se encolheu, mas ele a segurou firme. – Eu não posso mais lhe chamar de No’One. Não depois... Disso.

– Eu não gosto daquele nome.

– Então outro.

Fitando o rosto dele, ela teve a clara impressão de que ele não ia ceder quanto a isso. E ele também não ia se referir mais a ela pelo nome que ela escolhera há um longo, longo tempo... Quando aquela palavra era o que ela sentia que era.

Mas, talvez ele estivesse certo. Ela subitamente não se sentia mais como ninguém.

– Você precisa de um nome.

– Eu não posso escolher, – ela retrucou, consciente da grande dor em seu coração.

Ele olhou para o teto. Segurou um pouco de seu cabelo nos dedos. Estalou a língua.

– Outono é minha estação favorita do ano, – ele disse depois de um tempo. – E isto não é uma cantada ou coisa assim... Mas eu gosto quando as folhas se tornam avermelhadas e alaranjadas. Elas são lindas à luz da lua, mas mais direto ao ponto, é uma transformação impossível. O verde da primavera e verão é só uma sombra à identidade verdadeira das árvores, e toda aquela cor enquanto as noites esfriam é um milagre cada maldita vez que acontece. É como se elas estivessem se refazendo da perda do calor com todo o seu fogo. Eu gosto... Autumn[19]. – Ele a olhou nos olhos. – Você é assim. Você é bela e arde brilhantemente... E é hora de se revelar. Então eu digo... Autumn.

No silêncio que se seguiu, ela sentiu um formigamento no canto dos olhos.

– O que há? – ele se apressou. – Merda! Não gosta? Posso escolher outro. Lihllith? Que tal Suhannah? E... Joe? Fred? Howard?

Ela colocou a mão em seu rosto. – Eu adorei. É perfeito. A partir de agora, serei chamada pelo nome que você me deu, a estação do ano quando as folhas queimam – Autumn.

Erguendo-se, ela colou os lábios nos dele. – Obrigada. Obrigada...

Enquanto ele concordou solenemente, ela o enlaçou com os braços, e apertou-o fortemente. Ser nomeada era ser reivindicada, e isto a fez sentir-se... Renascida.

 

Passou um longo tempo até que Tohr e Autumn saíssem dos confins cálidos e úmidos de sua piscina. Cara, ele nunca iria entrar naquele lugar novamente sem pensar nele como “deles”.

Mantendo aberta a porta do corredor para ela, ele deu um profundo suspiro de alívio. Autumn… O nome perfeito para uma fêmea perfeitamente encantadora.

Caminhando lado a lado, eles seguiram seu caminho para o escritório juntos, os seus pés deixando impressões molhadas, porque a calça úmida que ele havia torcido estava pingando nas bainhas. Ela, por outro lado, não deixou rastro, sua túnica estava seca.

Última vez que ela ia vestir a maldita coisa.

Merda, o seu cabelo parecia tão bem todo solto ao redor dos seus ombros. Talvez ele pudesse conseguir que ela perdesse a trança, também.

Quando eles saíram no túnel, ele colocou seu braço ao redor dela, aconchegando-a contra ele. Ela se encaixava bem. Ela era menor do que… Bem, Wellsie tinha sido muito mais alta. A cabeça de Autumn ficava abaixo de seus peitorais, seus ombros não tão largos, e seu andar era desigual, enquanto sua companheira tinha sido lisa como a seda.

Mas ela se encaixava. Diferentemente, sim, mas a fechadura e chave de seus corpos eram inegáveis.

Abrindo a porta que levava para a mansão, ele ficou para trás e deixou-a subir os degraus à sua frente. No nível superior, ele a alcançou, digitou o código, e abriu a porta segurando para ela passar.

Quando ela passou, ele perguntou, – Com fome?

– Faminta.

– Então você vai para cima e me deixa servir você.

– Oh, eu posso conseguir algo na cozi...

– Não. Nem pense nisso. Eu sirvo você. – Ele a levou em torno da base da escadaria principal. – Você sobe e entra na cama. Eu trarei a comida.

Ela hesitou no passo. – Isto realmente não é necessário.

Ele agitou sua cabeça quando pensou sobre todo o exercício que eles fizeram ao lado da piscina. – É muito necessário. E você vai tirar essa túnica e cair nua nos lençóis.

Seu sorriso começou tímido… Terminando espetacular.

E então ela se virou e ele teve um relance de sua parte traseira.

Assistir seu balanço de quadris enquanto ela andava o deixou duro. Novamente.

Sua mão apertou o corrimão esculpido, ele teve que olhar para baixo, no tapete e tranquilizar-se.

Uma maldição sórdida veio a sua cabeça.

Palavra ruim, bom timing…

Andando a passos largos através do mosaico de uma macieira em flor, ele se debruçou na sala de bilhar. Lassiter estava no sofá, enfocado na tela plana da TV acima da lareira.

Embora Tohr estivesse meio desnudo e meio molhado, ele andou a passos largos ficando entre o anjo e a TV. – Escute, eu...

– Que porra! – Lassiter começou a movimentar suas mãos como se estivessem em chamas, tentando lhe jogar faíscas. – Saia da frente!

– Funcionou? – Tohr exigiu.

Amaldiçoando, o anjo se jogou ao lado em uma tentativa de enxergar a tela da TV. – Me dê apenas um minuto.

– Ela está livre? – Ele silvou. – Só me diga.

– Aha! – Lassiter apontou para a televisão. – Seu filho da puta! Eu sabia que você era o pai!

Tohr lutou contra o desejo de dar um bofetão no filho de uma cadela. O futuro de sua Wellsie estava em jogo, e este asno estava preocupado sobre testes de paternidade de Maury? – Você só pode estar brincando.

– Não, eu estou condenadamente sério. O bastardo tem três crianças com três irmãs. Que tipo de homem é esse?

Tohr bateu em sua própria cabeça ao invés do anjo. – Lassiter… Vamos, cara.

– Olha, eu ainda estou aqui, não estou? – o sujeito murmurou quando ele silenciou a tela aos gritos e pulos de Maury na cena. – Enquanto eu ainda estiver aqui, existe trabalho a ser feito.

Tohr se deixou cair em uma cadeira. Escorando sua cabeça em sua mão, ele mordeu fortemente seus molares. – Eu não compreendo essa porra. O destino quer sangue, suor, e lágrimas... Bem, eu me alimentei dela, nós temos... Ah, suado bastante, com certeza. E, merda, eu já chorei bastante.

– As lágrimas não contam, – o anjo disse.

– Como isto é possível?

– Simplesmente é, meu chapa.

Grande. Fantástico. – Quanto tempo mais até eu conseguir libertar minha Wellsie?

– Seus sonhos são a resposta para isso. Enquanto isso, eu sugiro que você vá alimentar sua fêmea. E pelas suas calças molhadas, acredito que você deu a ela um inferno de exercícios.

As palavras, Ela não é minha, surgiram automaticamente em sua garganta, mas ele as bloqueou na esperança de que se as mantivesse dentro, de alguma forma ajudaria.

O anjo apenas sacudiu a cabeça, como se ele estivesse bem ciente dos sentimentos que permaneceram não ditos… E do futuro que era ainda desconhecido.

– Maldição. – Tohr murmurou quando ele saiu para a cozinha. – Maldito.

 

Cerca de algumas milhas distantes dali, no rancho que sediava a sede dos Bastardos, o som ofegante, rítmico, irregular, miserável de movimento chegava ao celeiro.

À medida que Throe olhava fixamente a luz da vela sem objetivo algum, ele não se sentia bem com o estado de saúde de seu líder.

Xcor tinha estado em um inferno de uma briga mano-a-mano no fim da armação feita na casa de Assail. Ele se recusou a dizer com quem, mas deve ter sido um Irmão. E naturalmente, ele não teve nenhuma atenção médica desde então, não que eles tivessem muito para oferecer.

Amaldiçoando a si mesmo, Throe cruzou seus braços acima de seu tórax e tentou lembrar-se da última vez que o macho se alimentou. Querida Virgem Escriba… Isso tinha sido na primavera com aquelas três prostitutas? Não era de se estranhar que ele não se curara dos ferimentos ainda… E ele não iria até que estivesse mais bem nutrido.

O arquejo se tornou uma tosse áspera… Se transformando em uma respiração mais lenta, mais dolorosa.

Xcor iria morrer.

Aquela conclusão medonha já se desenhava com vigor inexorável desde que seu padrão respiratório mudara horas atrás. Para sobreviver, o macho precisava de uma dessas duas coisas, de preferência ambas: acesso a instalações médicas, material, e pessoal especializado como o que a Irmandade contava e o sangue de uma vampira.

Não havia nenhum modo de conseguir o primeiro, e o segundo provou ser um desafio ao longo dos últimos meses. A população de vampiros em Caldwell estava crescendo devagar, mas desde as invasões, as fêmeas passaram a ser um prêmio valioso. Ele ainda teria que achar uma que estivesse disposta a servi-los, mesmo que tivesse que pagar graciosamente.

Embora… Considerando a condição de Xcor, talvez até mesmo essa proeza poderia não ser suficiente. O que eles precisavam era de um milagre.

Espontaneamente, a imagem daquela espetacular Escolhida que o alimentou na instalação da Irmandade apareceu. O sangue dela poderia ser o que salvaria a vida de Xcor agora mesmo. Literalmente. Exceto obviamente que isto não era viável em muitos níveis. Como ele poderia alcançá-la, primeiramente? E ainda que ele pudesse se conectar com ela, ela indubitavelmente saberia que ele era o inimigo. Ou não? Ela o chamara de soldado de valor. Talvez a Irmandade tivesse mantido a identidade dele em sigilo longe de sua delicada sensibilidade.

Nenhum som. Nada.

– Xcor? – Ele gritou quando ele se sentou depressa. – Xcor.

Naquele ponto, ele começou a tossir e então a respiração foi retomada.

Querida Virgem Escriba, ele não tinha nenhuma ideia de como os outros conseguiam dormir apesar de tudo. Eles tinham lutado por tanto tempo com nada além de sangue humano, que dormir poderia ser suas únicas chances de recarregarem as energias. As glândulas suprarrenais de Throe haviam substituído esse imperativo a partir das duas da tarde, de qualquer jeito. Exatamente quando ele começara sua vigília ao ritmo respiratório de Xcor.

Quando ele agarrou seu telefone celular para verificar as horas, ele lutou contra sua mente frenética para enfocar nos números que eram exibidos.

Desde aquele incidente entre eles no verão, Xcor tinha sido um macho diferente. Ainda autocrático, exigente, e cheio de cálculos que podiam chocar e aturdir… Mas seu olhar fixo era diferente quando ele considerava seus soldados. Ele estava mais conectado a todos eles, seus olhos abertos para algum novo nível de relacionamento, os gostos de cada um, que ele aparentemente não havia estado ciente antes.

Seria vergonhoso perder o bastardo agora.

Throe finalmente conseguiu ver as horas: cinco e trinta e oito. O sol estava provavelmente abaixo do horizonte, o crepúsculo sem nenhuma dúvida não demoraria a aparecer no céu ao leste. Seria melhor esperar que a escuridão verdadeiramente chegasse, mas ele não tinha mais tempo a desperdiçar, especialmente dado que ele não estava certo sobre o que deveria ser feito.

Fora de seu beliche, ele se levantou caminhando através do quarto e agitou o amontoado de cobertores que cobria Zypher.

– Vá embora. – o soldado murmurou. – Ainda tenho trinta minutos…

– Você precisa tirar os outros daqui, – Throe sussurrou.

– Assim farei.

– E você deve ficará na retaguarda.

– Assim ficarei.

– Eu vou tentar achar uma fêmea para alimentar Xcor.

Isso conseguiu a atenção do soldado. A cabeça de Zypher se ergueu. – Sério?

Throe se sentou no beliche, assim eles podiam se olhar nos olhos. – Tenha certeza de que ele fique aqui, e esteja preparado para levá-lo diretamente às minhas coordenadas.

– Throe, sobre o que você está falando?

Sem responder, ele se virou e começou a vestir suas vestes de couro, suas mãos estavam agitadas pelo estado traiçoeiro de Xcor… E pelo fato de que se suas preces fossem respondidas, ele estaria na companhia daquela fêmea uma vez mais.

Olhando abaixo para as suas roupas de guerreiro, ele hesitou… Querida Virgem Escriba, ele desejava ter algo diferente para vestir ao invés de couro. Um terno adorável de lã e gravata. Sapatos adequados. Roupa íntima.

– Onde você vai? – Zypher perguntou bruscamente.

– Não importa. O que eu encontrar é a única coisa importante.

– Me diga que você está levando armas.

Throe novamente pausou. Se por alguma razão isto explodir, ele poderia precisar de armamentos. Mas ele não queria assustá-la, assumindo de fato que ele conseguisse alcançá-la de alguma maneira e a trouxesse com ele. Tal delicada fêmea que ela era…

Deveria esconder algumas, ele decidiu. Uma arma ou duas. Algumas facas. Nada que ela pudesse ver.

– Bom, – Zypher murmurou quando ele começou a verificar suas armas.

Minutos mais tarde, Throe subia do porão, dirigindo-se à porta da cozinha.

Gemendo e arremessando seus braços para o alto, ele foi forçado a voltar para a casa escura. Com seus olhos ardendo e lacrimejando, ele amaldiçoou e foi para a pia, deixando correr água fria, espirrando-a em seu rosto.

Pareceu uma eternidade até que ele viu a hora em seu celular e percebeu que poderia fazer uma saída mais segura, e neste tempo ele abriu a porta em desafio.

Oh, o alívio da noite.

Deixando para trás seu confinamento, ele aterrissou na boa Terra e encheu seus pulmões com o ar frio e úmido do outono. Fechando seus olhos ainda latejando, ele focou a si mesmo desmaterializando para longe da casa, lançando sua partículas moleculares ao norte até que chegou a um prado de grama com uma grande árvore em seu centro.

Ficando à frente do grande tronco, debaixo da cobertura das folhas vermelhas e douradas, ele inspecionou a paisagem com seus sentidos afiados. Este lugar bucólico era longe, bem longe das batalhas no centro da cidade, e nem mesmo perto do complexo dos Irmãos ou da Sociedade Lessening – pelo menos era o que ele achava.

Para se assegurar que estava no local certo, ele esperou tão imóvel quanto a grande árvore atrás de si, mas longe de estar sereno. Ele estava preparado para se engajar com qualquer coisa ou pessoa.

Nada e ninguém veio sobre ele, no entanto.

Cerca de uns trinta minutos mais tarde, ele se sentou no chão com as pernas cruzadas, ligando suas mãos e esperou.

Ele estava bem ciente do perigo deste caminho que estava iniciando. Mas em algumas batalhas, você tinha que fazer suas próprias armas, ainda que você corresse o risco de que elas explodissem em seu rosto. Existia grande perigo nisto, porque se havia uma coisa que você podia contar com a Irmandade, era a extrema proteção antiquada de suas fêmeas.

Ele tinha levado uns socos na mandíbula para provar isto.

Então, estava ciente do fato de que se ele alcançasse a Escolhida, ela não deveria saber sua identidade verdadeira.

Ele também estava forçando a si mesmo a deixar de lado qualquer sensação de culpa pela posição em que ele a colocaria.

Antes de fechar seus olhos, ele olhou à sua volta novamente. Havia cervos na extremidade longe da floresta, seus delicados cascos batendo nas folhas caídas, suas cabeças indo para cima e para baixo quando eles andavam juntos. Uma coruja à direita, o piar levada pela luz, a brisa fria passando por suas orelhas recuperadas. Longe, à sua frente, em uma estrada que ele não podia ver, um par de faróis apareceu, provavelmente um caminhão de fazenda.

Nada de lessers.

Nada de Irmãos.

Ninguém além dele.

Baixando suas pálpebras, ele visualizou a Escolhida e recapturou aqueles momentos quando seu sangue estava entrando dentro dele, o reavivando, chamando-o de volta da beira da morte. Ele a viu com grande claridade e enfocou o gosto e o cheiro dela, a essência de quem ela era.

E então ele rezou, rezou como nunca fez antes, até mesmo quando viveu uma vida civilizada. Ele rezou tão forte que suas sobrancelhas estavam apertadas e seu coração batia forte e não podia respirar. Rezou com um desespero que deixou uma parte dele perguntando-se se isto era para salvar Xcor… Ou simplesmente para vê-la uma vez mais.

Ele rezou até que perdeu as palavras e tudo que ele tinha era uma dor em seu peito, uivando uma necessidade que ele só podia esperar ser um sinal forte o suficiente para ela responder, se ela realmente conseguisse.

Throe manteve isto em mente até que estava entorpecido de frio e tão exausto que sua cabeça estava pendurada não mais em reverência, mas de fadiga.

Ele se manteve ali, até que o silêncio persistente ao redor dele sobrepujou seu pedido… E dizendo a si mesmo que ele tinha que aceitar o fracasso.

Quando ele finalmente reabriu seus olhos, encontrou aquele brilho se movendo furtivamente debaixo da árvore onde estava sentado, se agachando para pular na terra.

Seu grito ecoou alto quando ele se levantou.

Mas não era a luz da lua a causa do brilho.

Sua Escolhida estava ali, com uma túnica branca tão brilhante que parecia ter sua própria iluminação. Ela estendeu as mãos à frente o tranquilizando.

– Eu sinto muito surpreender você.

– Não! Não, não, é bom… Você está aqui.

– Você não me chamou? – Ela pareceu confusa. – Eu não estava certa sobre o que havia me chamado. Eu… Simplesmente tive este desejo de vir aqui. E você estava aí.

– Eu não sabia se funcionaria.

– Bem, funcionou. – Ela sorriu para ele.

Oh, Santa Virgem Escriba nos grandes céus acima dele, ela era bonita, seu cabelo enrolado em sua cabeça, sua forma tão elegante e graciosa, sua essência de ambrosia.

Ela fez uma carranca e olhou abaixo, para ela mesma. – Eu não estou corretamente coberta?

– Perdão?

– Você me olha fixamente.

– Oh, realmente, eu estou… Por favor, me perdoe. Meus modos foram esquecidos porque você é muito adorável para que meus olhos possam compreender.

O que a fez recuar levemente. Como se ela não estivesse habituada a receber elogios – ou talvez ele a tivesse ofendido.

– Eu sinto muito, – ele disse antes de querer amaldiçoar a si mesmo. Seu vocabulário teria que expandir além de desculpas. E Rápido. E ajudaria se ele não se comportasse como um colegial em sua presença. – Eu não quero ser desrespeitoso.

Agora ela sorriu novamente, uma exibição atordoante de felicidade. – Eu acredito em você, soldado. Suponho que eu tenha ficado simplesmente surpreendida.

Que ele a achou atraente? Bom Senhor…

Recordando seu passado como um membro distinto da glymera, Throe baixou a cabeça. – Você me honra com sua presença, Escolhida.

– O que traz você aqui?

– Eu quis… Bem, não é o meu desejo que corra qualquer tipo de dano enquanto lhe peço um favor de grande peso.

– Um favor? Sério?

Throe pausou. Ela era tão sincera, tão encantada em ser chamada, que sua culpa renovou. Mas ela era a única salvação que Xcor poderia ter, e isto era guerra...

Enquanto ele lutava com sua consciência, ocorreu-lhe que existia uma maneira dela fazer o que ele queria, desde que ele fizesse um voto em troca de seu presente, se ela escolhesse dar esse presente.

– Eu perguntaria se… – Ele limpou sua garganta. – Eu tenho um companheiro que está gravemente ferido. Ele vai morrer se nós não fizermos...

– Eu devo ir a ele. Agora. Mostre-me onde quer que ele esteja que vou ajudá-lo.

Throe fechou seus olhos e não pôde soltar qualquer respiração. Realmente, ele até sentiu lágrimas ameaçarem cair. Em uma voz rouca, ele disse,

– Você é um anjo. Você não é desta Terra em sua compaixão e generosidade.

– Não desperdice bonitas palavras. Onde esta seu companheiro de luta?

Throe tirou seu telefone e enviou uma mensagem a Zypher. A resposta que recebeu foi imediata e o tempo para chegada ridiculamente pequeno. A menos que, claro, o soldado já estivesse com Xcor no veículo e pronto para começar a dirigir.

Tal macho de valor ele era.

Quando Throe colocou seu celular atrás em seu bolso, ele enfocou na Escolhida mais uma vez. – Ele já está a caminho neste momento. Ele está sendo transportado por veículo, porque ele não se encontra bem.

– E então nós o levaremos para o centro de treinamento?

Não. Dificilmente. Não. – Você deve ser o suficiente para ele. Ele está mais fraco da pouca alimentação do que de suas feridas.

– Nós devemos esperar aqui, então?

– Sim. Nós esperamos aqui. – Houve uma longa pausa, e ela começou a ficar inquieta como se estivesse desconfortável. – Perdoe-me, Escolhida, se eu continuo olhando-a fixamente.

– Oh, nenhuma necessidade para se desculpar. Eu só estou constrangida porque é raro eu prender a atenção de alguém.

Agora fora ele quem recuou. Não havia dúvidas do motivo do Irmãos tratarem qualquer macho na presença dela como eles fizeram.

– Bem, permita-me persistir, – ele suavemente murmurou. – Você é tudo que eu consigo enxergar.

 

Qhuinn saiu pela porta oculta embaixo da escadaria por volta das seis daquela tarde. Sua cabeça ainda estava meio confusa, os passos mais arrastados, o corpo doía inteiro. Mas, ei, ele estava em pé, se movendo, e estava vivo.

As coisas podiam ser piores.

Além disto, ele tinha um propósito. Quando a doutora Jane veio examiná-lo, disse que Wrath tinha convocado uma reunião com a Irmandade. Claro que ela também o informou que estava dispensado e tinha de ficar na clínica, em repouso – como se ele fosse perder o encontro onde seriam discutidos os fatos ocorridos na casa de Assail. Negativo.

Naturalmente, ela fez de tudo para persuadi-lo a não ir, mas no final, ela tinha telefonado e dito ao rei para esperar por mais um.

Enquanto avançava pelo corrimão entalhado, conseguia ouvir os Irmãos falando no segundo andar, aquelas vozes altas e profundas, uma se sobressaindo da outra. Claramente, Wrath não tinha posto ordem na merda ainda – o que significava que havia tempo para pegar uma bebida antes de subir.

Porque, dãh, isto era exatamente o que era necessário quando você estava chacoalhado para começo de conversa.

Depois de cuidadosa avaliação, decidiu que a distância até a biblioteca era menor do que a da sala de jogos. Cambaleando através das portas de carvalho, congelou assim que passou pela arcada.

– Puta que pariu...

Havia pelo menos cinquenta livros do Idioma Antigo espalhados no chão, e isso não era nem metade. Em cima do suporte da mesa próxima às janelas de vidro, mais volumes com capa de couro estavam abertos com as entranhas expostas, como soldados atingidos em campo de batalha.

Dois computadores. Um notebook. Livros legais.

Um ruído vindo de cima fez com que erguesse os olhos. Saxton estava em uma escada e se esticava para alcançar um livro no alto da prateleira, próxima ao teto.

– Boa noite para você, primo, – o cara disse de seu poleiro sublime.

Bem o macho que ele precisava ver. – O que está fazendo com tudo isto?

– Você parece ter se recuperado bem. – A escada fez mais um barulho enquanto o macho descia com o livro. – Todos estávamos tão preocupados.

– Ah, estou bem. – Qhuinn foi até as garrafas de bebidas alinhadas no bar de mármore. – Então, no que está trabalhando.

Não pense nele com Blay. Não pense nele com Blay. Não pense nele...

– Eu não sabia que você era chegado a um xerez.

– Hã? – Qhuinn olhou para a bebida que tinha se servido. Porra. Em meio a seu sermão auto-imposto, ele pegara a garrafa errada. – Oh, você sabe... Tudo bem para mim.

Para provar, tomou um gole – e quase se engasgou com a doçura que bateu em sua garganta.

Serviu-se de mais um pouco só para não parecer o tipo de idiota que não prestava atenção ao que punha em seu próprio copo.

Ok, ânsia de vômito. O segundo gole foi pior do que o primeiro.

Pelo canto do olho, viu Saxton se acomodar na mesa, a luminária de metal à sua frente, fornecendo o mais perfeito brilho no rosto dele. Meeeeerda, ele parecia alguém saído de um comercial da Ralph Lauren, com seu terno de tweed colorido com bolsos quadrados salientes e aquele suéter abotoado mantendo-o confortável.

Enquanto isto, Qhuinn vestia roupas de hospital, pés descalços. E xerez.

– Então, qual é o projeto grandioso? – perguntou de novo.

Saxton olhou para ele com uma estranha luz nos olhos. – É um divisor de águas, se pode-se dizer assim.

– Ohhhh, tipo de coisa supersecreta.

– De fato.

– Bem, boa sorte então. Parece que tem o bastante para se ocupar por um bom tempo.

– Vai levar pelo menos um mês, talvez mais.

– O que está fazendo, reescrevendo a maldita lei?

– Somente uma parte dela.

– Cara, você me faz adorar meu trabalho. Prefiro ser atingido por um tiro a cuidar da papelada. – Serviu-se de uma terceira filha-da-puta dose e tentou parecer menos zumbi enquanto ia até a porta. – Divirta-se.

– E você com seus afazeres, primo querido. Estaria lá em cima também, mas meu prazo é curto, e há muita coisa ainda por fazer.

– Você vai conseguir.

– Sim, eu vou.

Enquanto Qhuinn anuía e subia as escadas, pensou... Bem, pelo menos aquela interação não tinha sido muito ruim. Ele não tinha pensado em nada inapropriado. Sequer tinha se imaginado batendo no filho da puta até que sangrasse a linda roupa inteira.

Progresso. Iupi!

No segundo andar, as portas duplas do estúdio estavam abertas, e ele hesitou ante a multidão. Puta merda... Todo mundo estava ali. Não só os Irmãos e os guerreiros, mas as shellans... E os empregados?

Havia praticamente quarenta pessoas na sala, amontoadas como sardinhas em volta do mobiliário chiquetoso.

Mas talvez fizesse sentido. Depois do maldito ataque, o rei estava de volta atrás da sua mesa, sentado em seu trono, como que de volta do mundo dos mortos. Meio que requeria uma celebração, ele achava.

Antes de passar pela porta, ele fez menção de tomar outro gole de xerez, mas assim que a merda bateu em seu nariz, sentiu engulhos e viu que não conseguiria. Inclinando-se, jogou a coisa em um vaso de plantas, deixou o copo na mesa do salão e...

No instante em que o viram passar pela porta, todo mundo silenciou. Como se houvesse um controle remoto para a sala e alguém tivesse apertado o botão de “mudo”.

Qhuinn congelou. Olhou para si mesmo verificando se não estava mostrando algo indecente. Olhou para trás, caso houvesse alguém importante subindo as escadas depois dele.

Então olhou em volta da sala, se perguntando o que perdera...

Na grande ausência de som e movimento, Wrath se apoiou nos braços da rainha e grunhiu enquanto ficava em pé. Tinha um curativo no pescoço, e parecia um pouco pálido, mas estava vivo... E trazia uma expressão tão intensa, que Qhuinn se sentiu como se estivesse sendo fisicamente envolvido.

Então o rei colocou a mão do anel de diamante negro sobre o próprio peito, bem no meio, diretamente sobre o coração... E lentamente, cuidadosamente, com ajuda de sua shellan, inclinou-se.

Fazendo uma reverência a Qhuinn.

Enquanto sentia todo o sangue se esvair da cabeça, Qhuinn se perguntou que caralhos o vampiro mais importante do planeta estava fazendo, alguém começou a bater palmas lentamente.

Clap. Clap. Clap!

Outros se juntaram até que todos na sala, de Phury e Cormia, a Z, Bella e a bebê Nalla, a Fritz e sua equipe... A Vishous e Payne e seus companheiros, a Butch e Marissa e Rehv e Ehlena... Estavam aplaudindo a ele com lágrimas não derramadas em seus olhos.

Qhuinn deixou os braços cair enquanto seus olhar desigual encarava vagamente a todos e em todos os lugares da sala.

Até que pousaram em Blaylock.

O ruivo estava no extremo direito da sala, aplaudindo como todos os outros, os olhos azuis iluminados com emoção.

Por outro lado, ele sabia o quanto algo deste tipo significava para um garoto fodido com um defeito de nascença, cuja família não o quisera por perto para embaraço e desgraça social.

Ele sabia como era difícil aceitar a gratidão.

Ele sabia o quanto Qhuinn queria só fugir da atenção... Embora estivesse emocionado além da medida, diante da honra que não merecia.

No meio de tudo o que não conseguia lidar, ele só olhou para seu velho e querido amigo.

Como sempre, Blay era a âncora que o mantinha na superfície, impedindo-o de afundar.

 

Quando Xhex passou pelo mhis em sua moto, achou difícil acreditar que estava voltando à mansão por ordem real: o próprio Wrath tinha enviado o “convite” – e por mais iconoclasta que ela fosse, não iria recusar uma ordem direta do rei.

Cara, ela estava enjoada.

Quando recebera o recado telefônico, pensara que John tinha morrido, tinha sido assassinado em campo. Uma rápida mensagem de “Olá” para ele tinha sido respondida imediatamente. Curto e doce. Somente um Você virá esta noite?

Foi tudo o que ela tivera; mesmo depois de dizer sim, e tinha esperado algo mais.

Então sim, ela sentia como se fosse vomitar, porque isto era provavelmente John colocando um fim oficial. O equivalente a divórcio no mundo vampiro era raro, mas as Leis Antigas permitiam que fosse legalmente autorizado. E naturalmente, para pessoas do nível social de John – sendo filho legítimo de um Irmão da Adaga Negra – o rei era o único que podia oficializar a separação.

Isto tinha de ser o fim.

Merda, ela realmente ia vomitar.

Rodeando a frente da mansão, ela não estacionou a Ducati atrás da fila de carros, SUVs e caminhonetes. Não – ela deixou a moto bem no pé da escada. Se fosse um decreto real de divórcio, ela ia ajudar John colocar um fim na miséria deles, e então ela...

Bem, ela iria ligar para Trez e dizer-lhe que não poderia trabalhar. Então ela iria se trancar em casa e chorar como uma garotinha. Por uma semana ou duas...

Tão estúpida. Esta coisa toda entre eles era tão fodidamente estúpida. Mas ela não podia mudá-lo, e ele não podia mudá-la, então o que infernos restava para eles? Fazia meses desde que eles não tinham nada além de distância e silêncios desconfortáveis entre eles. E nada indicava que a situação estivesse mudando; o buraco negro estava ficando cada vez mais fundo e sombrio...

Enquanto ela subia os degraus que levavam às portas duplas, sentia-se partindo ao meio, despedaçando-se como se seus ossos tivessem se tornado pedrinhas e estivessem colapsando sob o peso de seus músculos. Mas ela continuou em frente, porque era isso que os guerreiros faziam. Eles empurravam a dor para fora do caminho e focavam em seus objetivos – e certo como a merda, que ela e John matariam algo esta noite, algo que tinha sido tão precioso e raro que ela estava envergonhada por eles não terem encontrado um jeito de cultivá-lo no meio deste mundo gelado e duro.

Dentro do vestíbulo, ela não ficou imediatamente em frente à câmera. Nunca fora o tipo de fêmea que precisasse se arrumar, ainda assim, ela se viu passando os dedos no cabelo. Ajustou rapidamente a jaqueta de couro – e sua postura – e então disse a si mesma para cortar essa.

Ela já tinha enfrentado milhares de coisas piores.

Somente por orgulho, conseguiria manter algum auto-controle pelos próximos dez ou quinze minutos.

Teria então o resto de sua vida normal para perder a compostura, sozinha.

Com uma maldição, apertou a campainha e deu um passo pra trás, forçando-se a olhar para a câmera. Enquanto ela esperava, ajeitou a jaqueta de novo. Bateu as botas.

Checou novamente as armas em seus coldres.

Jogou com o cabelo.

Ok, que inferno.

Inclinando-se, apertou o botão novamente. O doggen aqui era de alto padrão. Você tocava aquela campainha, e era sempre respondida em segundos.

Na terceira tentativa, ela se perguntava quantas vezes mais teria de implorar para...

A porta interna do vestíbulo se abriu e Fritz pareceu mortificado.

– Minha senhora! Sinto muito...

Uma cacofonia alta encobriu o que o mordomo dizia, e ela franziu o cenho enquanto passava pelo velho macho. Por cima da cabeça branca do doggen, no alto da grande escadaria, havia uma multidão enorme saindo da sala, como se a festa tivesse acabado de terminar.

Talvez alguém tivesse acabado de anunciar que se emparelharia.

Boa sorte, ela pensou.

– Grande anúncio? – ela perguntou enquanto atravessava o vestíbulo e preparava-se para as boas novas de outra pessoa.

– Mais um reconhecimento. – O mordomo abriu a porta. – Deixarei que os outros a informem.

Sempre o obediente mordomo – discreto até a medula.

– Estou aqui para ver...

– A Irmandade. Sim, eu sei.

Xhex franziu o cenho. – Só Wrath, eu acho.

– Bem, sim, claro que o rei também. Por favor, venha ao escritório real.

Enquanto cruzava o chão de mosaico e começava a subida, acenava para as pessoas que desciam... As shellans, a equipe que ela conhecia, as pessoas com quem tinha vivido por algumas semanas, mas que tinham se tornado, em pouco tempo, um tipo de família para ela.

Ela ia sentir quase tanta falta deles quanto de John.

– Madame? – o mordomo perguntou. – Você está bem?

Xhex forçou um sorriso e percebeu que provavelmente deixou escapar alguma maldição em voz baixa. – Sim. Muito bem.

Quando chegou ao estúdio de Wrath, havia tanta aprovação no ar, que ela teve de praticamente afastar a coisa com as mãos para entrar na sala: os Irmãos estavam com o peito cheio de orgulho... Exceto Qhuinn, que estava tão profundamente ruborizado que parecia uma vela romana[20].

John parecia reservado – não olhava para ela, mas para um ponto qualquer a sua frente.

Por detrás da mesa, Wrath olhou para ela. – E agora, aos nossos negócios, – o rei anunciou.

Enquanto as portas se fechavam, ela não fazia ideia da merda que iria acontecer. John ainda se recusava a olhar para ela... E, porra, o rei tinha um ferimento no pescoço – supondo que ele não estivesse usando aquela gaze só como adorno.

Todo mundo ficou quieto, se endireitou, expressões se tornaram sérias.

Oh, cara, eles tinham de fazer isto em frente a toda Irmandade?

Mas também, o que mais ela esperava? O pensamento coletivo era tão intenso neste monte de machos, é claro que eles quereriam estar presentes quando as coisas acabassem.

Ela permaneceu forte. – Vamos acabar logo com isso. Onde eu assino?

Wrath franziu o cenho. – Perdão?

– Os papéis.

O rei olhou para John. Voltou a olhar. – Este não é o tipo de coisa que eu poria em papéis. Jamais.

Xhex olhou em volta e então voltou a se concentrar em John, lendo sua rede emocional. Ele estava nervoso. Triste. E decidido de uma maneira tão poderosa que ela se sentiu momentaneamente estúpida.

– Que infernos está acontecendo aqui? – ela exigiu.

A voz do rei soou alta e clara. – Eu tenho uma tarefa para você... Se estiver interessada. Algo que, acredito, serão necessárias suas notáveis habilidades. Desde que esteja interessada em nos ajudar.

Xhex olhou fixamente para John, chocada.

Ele era responsável por isto, ela pensou. Fosse lá o que estivesse rolando nesta sala, começara com ele.

– O que você fez? – ela disse diretamente a ele.

Aquilo o fez olhar para ela apropriadamente. Erguendo as mãos, ele expressou, O que conseguimos fazer é limitado. Precisamos de você para isto.

Olhando para Rehv, ela captou um monte de seriedade vindo até ela – e nada mais. Não havia censura, sem sentimento de “garotas não são bem-vindas”. O mesmo para o resto dos machos na sala. Não havia nada além de calma aceitação de sua presença... E sua capacidade.

– O que exatamente você quer que eu faça? – ela disse lentamente ao rei.

Enquanto o macho falava, ela continuou a olhar para John enquanto ouvia coisas como Bando de Bastardos... Uma tentativa de assassinato... O esconderijo deles... Um rifle.

Ao fim de cada frase, as sobrancelhas dela se erguiam um pouco mais.

Ok, não era nada sobre eventos beneficentes ou merda assim. Era sobre localizar o coração do inimigo, infiltrar-se em seus domínios secretos e retirar qualquer armamento de longo alcance que pudesse ter sido usado para tentar matar Wrath naquela noite.

Assim, providenciar para a Irmandade, se tudo desse certo, a prova que eles precisavam para condenar Xcor e seus soldados à morte.

Xhex colocou as mãos nos quadris – para impedir-se de esfregá-las de contentamento. Isto era exatamente seu departamento – uma proposta impossível apoiada num princípio que ela apoiava: vingar-se de alguém que fodeu com você.

– Então, o que acha? – Wrath perguntou.

Xhex olhou para John, na esperança que ele olhasse para ela de novo. Quando ele não olhou, ela apenas leu novamente a rede emocional dele. Ele estava aterrorizado, mas decidido.

Ele queria que ela fizesse isso. Mas por quê? O que infernos tinha mudado?

– É, me interessa, – ouviu-se responder.

Enquanto vozes profundas masculinas grunhiram em aprovação, o rei fechou a mão em punho e bateu na mesa. – Bom! Muito bem. Só há uma coisa.

Uma pegadinha. Naturalmente. – Eu trabalho melhor sozinha. Eu não quero trezentos e sessenta quilos de babás se esgueirando atrás de mim.

– Não. Você vai sozinha... Sabendo que tem todos os nossos recursos como apoio, se precisar, ou quiser. A única restrição é que você não pode matar Xcor.

– Sem problemas. Vou trazê-lo vivo para vocês interrogarem.

– Não. Você não pode tocá-lo. Ninguém pode até que analisemos a bala. E então, se tivermos certeza do que desconfiamos, ele é de Tohr para matar. Por proclamação oficial.

Xhex olhou para o Irmão. Jesus Cristo, ele estava totalmente diferente, como se fosse o Irmão mais jovem, e mais saudável do que o cara que ela conhecera após a morte de Wellsie. E dado o jeito que ele estava agora? Xcor tinha uma cova com seu nome nela.

– O que acontece se eu tiver de me defender?

– Tem permissão para fazer o que for preciso para garantir sua segurança. De fato, neste caso... – O rei virou os olhos cegos na direção de John. – Eu lhe encorajo a levar qualquer arma que puder para se defender.

Entenda-se: Use aquele seu lado sympath, garota.

– Mas se possível, – Wrath completou, – cause o mínimo de estrago possível, e Xcor vivo.

– Isto não vai ser um problema, – Xhex disse. – Eu não tenho que tocar nele ou em qualquer outro. Posso me concentrar só no rifle.

– Bom. – Enquanto o rei sorria e expunha as presas, os outros começaram a falar rapidamente. – Perfeito...

– Espere, eu não concordei com nada ainda, – ela disse, calando a todos enquanto olhava para John. – Não... Ainda.

 

– Solte-me, seu tolo, – Xcor resmungou quando percebeu que era erguido novamente.

Estava longe de parar de ser manuseado. Do leito onde estivera descansando. Para dentro do veículo. Levado a outro lugar. E agora perturbado de novo.

– Quase lá, – Zypher disse.

– Deixe-me... – Aquilo era, supostamente, para ter soado como uma ordem. No entanto, soou como uma criança a seus próprios ouvidos.

Ah, como queria ter sua força antiga, de modo que pudesse se libertar sozinho, e ficar em pé sobre as próprias pernas.

Mas o tempo passou. De fato, ele estava longe de estar bem... E talvez estivesse acabado.

Sua condição horrível, não era resultado de nenhum ferimento específico daquela luta com o soldado. Era a culminação de todos eles, os ferimentos cobriam sua cabeça e seu torso, a agonia era algo como a batida de seu coração, uma força que existia e persistia nele, sobre a qual ele não tinha controle.

Inicialmente, ele tinha lutado contra a corrente apegando-se à teoria masculina do ‘deixar para lá’. Mas, seu corpo tinha outros planos para ele, e mais influência do que sua mente e força de vontade tinham. Agora ele sentia como se estivesse possuído por esta mortalha de desorientação e exaustão...

Subitamente, o ar que ele respirava se tornou frio e limpo, dando-lhe algum sentido.

Lutando para focar os olhos, viu uma campina, uma campina oscilante que se elevava de encontro a uma magnífica árvore outonal. E lá... Sim, lá, sob os galhos cobertos de vermelho e amarelo, estava Throe.

Próximo a uma figura esguia vestida de branco... Uma fêmea.

A menos que ele estivesse vendo coisas?

Não, ele não estava. Enquanto Zypher o carregava para perto, ela se tornou mais distinta. Ela era... Incalculavelmente bela, com pele clara e cabelos louros retorcidos no topo de sua cabeça.

Ela era uma vampira, não humana.

Ela era... Etérea, uma luz se derramava de sua forma, uma tão brilhante que cobria a lua.

Ah, então isto era um sonho.

Ele devia ter adivinhado. Depois de tudo, não havia motivo para Zypher levá-lo à área rural, arriscando a vida deles, por um pouco de ar fresco. Não havia motivo para qualquer fêmea estar esperando sua chegada. Sem chance de que alguém tão perfeito quanto ela estivesse sozinho no mundo.

Não, isto era só fruto de seu delírio, e desta forma ele relaxou nos braços de aço de seu soldado, reconhecendo que, fosse lá o que seu subconsciente tivesse criado ele não teria poder algum sobre isto, então ele bem podia deixar as coisas seguirem. Eventualmente, ele acordaria, e talvez isto fosse o sinal de que, finalmente, tinha caído em um profundo sono restaurador.

No mais, quanto menos lutasse, mais poderia se concentrar nela.

Oh... Delicadeza. Oh, virtuosa beleza, o tipo que transformava reis em servos e soldados em poetas. Este era o tipo de fêmea por quem valia à pena lutar, morrer, só para olhar por um momento, seu rosto.

Que pena que ela não passava de uma visão...

O primeiro sinal de que algo não se encaixava, foi ela ser pega de surpresa ao vê-lo.

Mas também, sua mente estava somente tentando parecer realista. Ele era horrível não lesionado. Ferido e faminto? Tinha sorte de que ela não se encolhesse de horror. Do jeito que era, as mãos dela se ergueram para as bochechas e a cabeça foi para frente e para trás, até Throe dar um passo a frente para proteger suas delicadas sensibilidades.

Aquilo o fez desejar ter uma arma. Este era seu sonho. Se ela ia ser protegida, ele tomaria conta disto. Bem... Assumindo que conseguisse ficar em pé. E que ela não fugisse...

– Ele está morrendo, – ouviu-a dizer.

Seus olhos flutuavam na direção do puro e doce som. Aquela voz era perfeita como o resto dela, e ele se concentrou duramente, tentando forçar seu cérebro a fazê-la falar mais em seu sonho.

– Sim, – Throe disse. – Isto é uma emergência.

– Qual o nome dele?

Xcor falou neste momento, pensando que ele mesmo devia se apresentar. Infelizmente, só o que saiu foi um grunhido.

– Deite-o, – a fêmea disse. – Precisamos fazer isto rapidamente.

Suave e fria grama se ergueu para apoiar seu corpo quebrado, amortecendo-o como se a palma da terra estivesse enluvada em lã. Quando ele abriu novamente as portas de aço de seus olhos, ele a viu se ajoelhar ao seu lado.

– Você é tão bela... – foi o que ele disse. O que saiu de sua boca não passou de um gargarejo.

E subitamente, teve dificuldade de respirar, como se algo tivesse explodido em seu interior, talvez como resultado dos movimentos?

Só que, se era um sonho, porque aquilo importaria?

Quando a fêmea trouxe a ele seu pulso, ele esticou uma mão em negativa e parou-a antes que pudesse abrir a veia.

Os olhos dela encararam o seu.

Na periferia, Throe novamente se aproximou, como se preocupado que Xcor fosse fazer algo violento.

Não a ela, ele pensou. Nunca a esta gentil criatura de sua imaginação.

Limpando a garganta, ele falou tão claramente quanto possível. – Poupe seu sangue, – ele disse a ela. – Bela criatura, poupe o que lhe é vital.

Ele estava muito abaixo dela. E isto era verdade não somente por estar terrivelmente ferido e provavelmente morrer.

Mesmo em sua imaginação, ela era boa demais para sequer aproximar-se dele.

Quando Layla caiu de joelhos, encontrou dificuldade em falar. O macho esticado a sua frente estava... Bem, gravemente ferido, sim, é claro. Mas ele era mais do que isto. Apesar do fato de estar no chão e claramente indefeso, ele era...

Poderoso era a única palavra que lhe vinha à mente.

Tremendamente poderoso.

Ela quase não podia ver nada de suas feições, por causa do inchaço e dos hematomas, e o mesmo podia-se dizer de suas cores, por causa de todo aquele sangue seco. Mas em forma física, embora ele aparentasse não ser tão alto quanto os Irmãos, era grande em todas as partes, de ombros muito fortes, com braços brutalmente musculosos.

Talvez sua impressão sobre ele se devesse a sua forma física?

Não, o guerreiro que a tinha invocado a esta campina era de tamanho igual, como também o macho que trouxera o ferido aqui a seus pés.

Este soldado caído era simplesmente diferente dos dois outros – e de fato, eles mostravam uma deferência a ele de maneiras sutis com seus movimentos e seus olhos.

De fato, este não era um macho com quem se pudesse brincar, mas ao invés, como um búfalo, capaz de destruir qualquer coisa em seu caminho.

Ainda assim a mão que a tocou era leve como uma brisa e ainda menos confinadora – ela teve a distinta impressão de que, não apenas ele não a estava segurando ali, mas queria que ela se fosse.

Mas ela não iria abandoná-lo.

De uma maneira estranha, ela estava... Enfeitiçada... Aprisionada por um olhar profundamente azul que, mesmo à noite, e apesar do fato de que ele era perigosamente mortal, aparentava estar aceso como fogo. E sob aquele olhar, seu coração se acelerou e seus olhos apegaram-se a ele, como se fosse ao mesmo tempo indecifrável e compreensível a ela...

Sons saíram dele, guturais e incompreensíveis por causa de seus ferimentos, incitando-a a apressar-se.

Ele precisava ser limpo. Cuidado. Tratado até estar saudável dentro de alguns dias, talvez semanas. Ainda assim aqui estava ele em campo, com estes machos que obviamente sabiam mais sobre armas do que tratamento médico.

Ela olhou para o soldado que conhecia. – Você deve levá-lo para ser tratado depois que terminarmos.

Embora ela recebesse um aceno afirmativo como resposta, seus instintos diziam a ela que era mentira.

Machos, ela pensou ridiculamente, eram durões demais para seu próprio bem.

Ela voltou a se concentrar no soldado. – Você precisa de mim, – ela disse a ele.

O som de sua voz pareceu colocá-lo novamente em um estado de escravidão, e ela se aproveitou disto. Enfraquecido como estava, ela tinha a sensação clara de que ele ainda tinha poder, mais do que suficiente, em seu corpo, para impedi-la de trazer sua veia à sua boca.

– Shhhh, – ela disse, estendendo a mão e acariciando seu cabelo preto curto. – Acalme-se, guerreiro. Para proteger e servir aos da minha espécie, permita-me retribuir seus serviços.

Tão orgulhoso ele era – ela podia dizer pela linha dura de seu queixo. E ainda assim ele parecia ouvi-la, sua mão soltou o antebraço dela, a boca entreaberta, como se estivesse sob seu domínio.

Layla se moveu rápido, preparada para aproveitar-se desta rendição relativa – sem dúvida alguma ele logo sairia deste estado. Mordendo o próprio pulso, ela rapidamente trouxe seu braço sobre os lábios dele, as gotas caindo, uma a uma.

Quando ele aceitou sua oferta, o som que fez foi... Nada menos do que de tirar o fôlego: um gemido misturado com gratidão infinita e, em sua opinião, temor infundado.

Oh, quando aqueles olhos dele se fixaram nos dela, até que o campo, a árvore, os outros dois machos se desvaneceram, e tudo o que ela sentia era o macho a quem estava alimentando.

Compelida por alguma coisa que não se sentia inclinada a questionar, ela baixou o braço... Até que a boca dele tocou seu pulso. Isto era algo que ela nunca tinha feito com outros machos, mesmo Qhuinn. Mas ela queria saber qual seria a sensação, da boca deste soldado sobre sua pele...

No instante que o contato foi feito, aquele som que ele fez voltou, e então ele grudou a boca em volta dos furos gêmeos. Ele não a machucou; mesmo grande como era, faminto como estava, ele não a atacou. Longe disto. Ele sugou com cuidado, mantendo seu olhar sempre sobre o dela, como que a protegendo, apesar de ser ele quem necessitava de proteção, na condição atual.

O tempo passou, e ela sabia que ele estava tomando muito dela, mas não se importou. Ela teria ficado para sempre nesta campina, embaixo desta árvore... Ligada a este bravo guerreiro que quase tinha perdido a vida na guerra contra a Sociedade Lessening.

Ela se lembrava de sentir algo assim com Qhuinn, esta incrível sensação de predestinação, mesmo que não soubesse na época no que estava se metendo. Mas esta atração colocava o que ela havia experimentado uma vez com o outro macho em total segundo plano.

Isto era épico.

E ainda assim... Porque ela deveria confiar em tal sentimento? Talvez isto fosse só uma versão mais romantizada do que ela sentira por Qhuinn. Ou talvez isto fosse simplesmente o modo que a Virgem Escriba assegurava a sobrevivência da raça, biologia sobrepujando a lógica.

Colocando tais pensamentos blasfemos de lado, ela se concentrou em sua tarefa, sua missão, sua contribuição abençoada que era sua única oportunidade de servir, agora que a relevância das Escolhidas andava tão diminuída.

Prover sangue aos machos de valor era tudo o que restara de seu chamado. Tudo o que ela tinha na vida.

Ao invés de pensar em si mesma, ou do jeito que se sentia, ela precisava agradecer à Virgem Escriba por ter chegado aqui a tempo para cumprir com seu dever sagrado... E então ela tinha de voltar a mansão para procurar outras oportunidades de ser útil.

 

– O que mudou, John?

No quarto em que ele e Xhex uma vez compartilharam, John foi até as janelas e sentiu o frio emanando através do límpido vidro. Lá embaixo, os jardins eram banhados pelas luzes de segurança, o falso brilho de luar fazendo com que o rejunte em torno das lajotas do terraço parecesse fosforescente.

Ele vistoriava a paisagem, mas não havia muito o que se olhar. Tudo havia sido preparado para o inverno, os canteiros de flores cobertos por malha, as árvores frutíferas embaladas, a piscina agora vazia. As folhas perdidas dos bordos[21] e carvalhos na borda da floresta ignoradas através da escurecida grama cortada, como se estivessem desabrigadas e à procura de abrigo.

– John, que diabos está acontecendo?

No final, Xhex não se comprometeu e ele não a culpava. Um giro de cento e oitenta graus era desorientador e a vida real, certo como a merda, não vinha com cinto de segurança ou air bags.

Como poderia explicar? Ele se perguntava enquanto procurava palavras. Eventualmente, deu uma meia volta, levantou suas mãos e sinalizou. Você estava certa.

– Sobre o quê?

Sobre tudo, ele pensou no momento em que começava a sinalizar.

Ontem à noite eu vi Qhuinn sair para a zona de risco sozinho. Wrath estava caído; estávamos lutando desordenadamente; a Irmandade ainda não tinha chegado para dar retaguarda, tiros por toda parte. O Bando de Bastardos havia nos cercado e estávamos ficando sem tempo por causa do ferimento do rei. Qhuinn..., Ouça, sabia que seria mais útil fora da casa, sabia que se ele pudesse proteger a garagem, nós seríamos capazes de sair com Wrath. E... Sim, aquilo quase me matou, mas eu o deixei sair. Ele é meu melhor amigo... E eu o deixei ir.

Xhex se aproximou e lentamente se sentou numa cadeira. – É por isso que o pescoço de Wrath estava todo enfaixado… E Qhuinn estava...

Ele enfrentou Xcor, no mano a mano, e deu a Wrath sua melhor chance de sobrevivência. John balançou sua cabeça para ela. E novamente eu o deixei sair porque… Eu sabia que ele tinha que fazer o que pudesse. Foi a coisa certa naquela situação.

John andava de um lado para o outro, então empacou no pé da cama, apoiando as palmas nas suas coxas, esfregando-as de cima a baixo. Qhuinn é um bom combatente, é forte e decisivo. Um peso pesado. E porque ele fez o que fez, Wrath está vivo, então sim, Qhuinn estava certo, muito embora aquilo fosse perigoso.

Ele olhou para ela. Com você é a mesma coisa. Precisamos fazer essa busca para declarar guerra aos Bastardos, Wrath precisa ter a prova. Você é uma caçadora que pode sair na luz do dia, nenhum de nós pode fazer isso. Você também tem suas habilidades de symphath se a merda ficar crítica. Você é a pessoa certa para o trabalho, mesmo que o pensamento de você indo em direção a qualquer lugar próximo deles me apavore, você é a pessoa certa para ser enviada para onde quer que eles estejam.

Houve uma longa pausa.

– Eu não... Sei o que dizer.

Ele deu de ombros. É por isso que não expliquei nada a você de antemão. Estou farto de conversar também. Em certo ponto, é só conversa mole. A ação que importa. Provar importa.

Quando ela esfregou o rosto como se sua cabeça doesse, ele franziu o cenho.

Pensei que… Isso te faria feliz.

– Sim. Claro. É ótimo. – Ela se levantou. – Vou fazer isto. Claro que vou. Vou ter que manter Trez a par de algumas coisas, mas começarei hoje à noite.

John sentiu os receptores de dor no seu peito se acenderem como uma rede elétrica, o que lhe disse o quanto esperava sair dessa com um ramo de oliveira[22].

Ele esperava que aquilo os unisse.

Um Ctrl+Alt+Del que reiniciasse seus sistemas.

Ele assobiou para atrair seus olhos de volta para ele. O que está errado? Pensei que isso mudaria as coisas.

– Oh, é claro que já mudou. Se não se importa, eu vou apenas... – À medida que sua voz falhava, ela pigarreou. – Sim, vá falar com Wrath. Diga a ele que sim, estou dentro.

Conforme ela se dirigia para a porta, parecia estar totalmente desligada, seus movimentos formais e rígidos.

Xhex? Ele sinalizou, o que não adiantou, pois ela se afastou.

Ele assobiou novamente, então saltou para fora do colchão e a seguiu pelo corredor. Alcançando-a, ele bateu no seu ombro porque não quis ofendê-la agarrando-a.

– John, só deixe-me ir...

Ele entrou na sua frente e perdeu o fôlego. Seus olhos estavam brilhando com lágrimas vermelhas não derramadas.

Qual é o problema? Ele sinalizou desesperadamente.

Ela piscou rapidamente, recusando-se a deixar cair qualquer coisa pelas suas bochechas.

– Acha que estou pulando de alegria porque você não está mais vinculado a mim?

Ele recuou tanto que quase caiu. Como é que é?

– Eu não sabia que podia terminar, mas no seu caso, claramente term...

Puta merda! Ele bateu seus pés porque tinha que fazer algum barulho. Estou fodidamente vinculado a você! E isto é totalmente por nós, porque eu quero ficar com você novamente e totalmente, não porque eu queira ou não, isto ainda é a coisa certa a fazer! Você é a pessoa certa para o trabalho!

Ela pareceu momentaneamente atordoada, nada além daquelas pálpebras se movendo rapidamente. Então cruzou seus braços sobre o peito e olhou fixamente pra ele.

– Você está falando sério?

Sim! Ele se forçou para não ficar exaltado novamente. Deus, sim... Porra, sim... Com tudo que eu tenho, sim.

Ela desviou o olhar. Olhou de volta. Depois de um momento ela disse roucamente.

– Eu... Odiei não estar com você.

Eu também. E sinto muito. Enquanto respirava profundamente, seu coração se aliviou o bastante para que ele não sentisse que a coisa estivesse prestes a atravessar o seu esterno. Não acho que possa lutar novamente lado a lado com você. É como esperar que um cirurgião operasse sua própria esposa. Mas não vou ficar no seu caminho... E ninguém mais vai. Você estava certa desde o começo... Você tem lutado por muito mais tempo do que esteve comigo e deve ser capaz de fazer o que quiser. Eu, verdadeiramente, não posso estar lá com você, porém... Quero dizer, ouça, se acontecer, aconteceu, mas gostaria de evitar isso, se pudermos.

Quando as pálpebras dela baixaram um pouco, ele teve a sensação de que ela o estava analisando pelo seu outro lado e ele endireitou os ombros sob seu escrutínio: ele sabia que ela estava em sua mente, seu coração e sua alma.

Ele não tinha nada além de amor por ela.

Ele a queria de volta.

Ele não tinha nada a esconder.

E aquelas condições que ele mal tinha acabado de expor eram tais que ele não só pensou longa e profundamente a respeito, mas sabia que eram com elas que poderia conviver. Isto não era o improviso de um cara recém-emparelhado pensando que a vida seria uma brisa só porque ele tinha a garota dos seus sonhos em seus braços e um futuro tão brilhante que precisava colocar óculos escuros.

Agora, enquanto ele falava, era como um macho que viveu por meses sem sua companheira; que passou pelo estranho vale da morte que veio com o conhecimento que aquela a quem amava estava no planeta, mas não na sua vida; que emergiu do outro lado do inferno com uma nova compreensão de si mesmo… E dela.

Ele estava pronto para encontrar a vida real, envolvendo duas pessoas… E se comprometer a ela.

Ele só rezava para que não fosse o único.

 

Quando Xhex levantou o olhar para John se viu piscando como uma idiota. Porcaria, ela não esperava por isso: o chamado pessoal de Wrath, a oportunidade apresentada a ela… E definitivamente não o que John estava lhe dizendo agora.

Ele estava sendo totalmente sincero, apesar de tudo. Isso não era uma manobra calculada para trazê-la de volta à sua vida, embora ela já soubesse disso sem ler sua mente. Não era o modo de agir dele.

Ele queria dizer cada palavra.

E ainda estava vinculado a ela, graças a Deus.

O problema era… Ela havia estado nesta posição com ele antes. Esteve pronta para uma longa vida normal e feliz. Em vez disso? O relacionamento mais importante que ela teve se despedaçou.

– Tem certeza que vai ficar bem comigo indo para onde quer que eles vivam e talvez lutando diretamente com eles? Sem apoio?

Se alguma coisa acontecer a você, vou ser como Tohr. Igualzinho. Cem por cento seguro. Mas o medo disso não vai me fazer tentar mantê-la em casa.

– Você esteve bem convencido de que onde Tohr está não é um lugar onde você quereria estar.

Ele deu de ombros. Mas veja, já estou nele se nós não estamos juntos. Depois que você foi ferida, eu pensei... Acho que tive esta ideia de que se eu pudesse apenas conseguir que você não lutasse, estaria protegido do que ele estava passando, que não seria exposto a essa merda porque você não seria apunhalada ou... Sim, pior. Mas fala sério, o centro de Caldwell não é o lugar mais seguro do planeta e não é como se você estivesse trabalhando com crianças ao seu redor naquele trabalho com Trez. Mais precisamente, eu estou inteiramente em você, seja pela idade, pelo ônibus número dezenove[23] ou pela bala do inimigo... Qualquer coisa que aconteça com você e eu estou fodido.

Xhex estreitou seus olhos. Ela podia ler a sua grade emocional, mas não cada parte do seu cérebro e, antes dela se abrir para ele novamente e ter esperanças, era fundamental saber o que ele pensava se essa merda acontecesse.

– E depois dessa missão? Digamos que eu consiga o rifle, traga-o para cá e isto acabe por ser a arma utilizada e, se eu quiser ir atrás deles? Wrath não é o meu rei, mas eu gosto do cara e a ideia de que alguém tentou acabar com ele me deixa irritada.

O olhar de John não vacilou, levando-a a acreditar que ele de fato já havia considerado aquele resultado. Desde que eu não esteja no mesmo turno que você, ficarei bem. Se eu tiver que entrar como equipe de apoio, bem, vamos lidar com isso, eu lidarei com isso, – ele corrigiu. – Eu só não quero estar no mesmo território que você se pudermos evitar.

– E se eu quiser manter meu trabalho com Trez? Permanentemente.

Isto é com você.

– E se eu quiser continuar ficar na minha cabana?

Eu realmente não tenho o direito de exigir nada neste momento.

Era, é claro, tudo o que ela queria ouvir: sem limitações pra ela, livre para escolher, livre para ser igual.

E, Deus, ela queria cair na conversa. Estar separada dele era uma merda tão grande de escuridão como nunca havia sofrido. Mas o ponto era que ela estava acostumada ao sofrimento crônico. A única coisa pior que isso seria se acostumar a este tipo de inferno tudo de novo. Ela não achou que pudesse passar por aquilo...

Não estou fazendo isso para “fazer as pazes” com você, Xhex. Eu quero isso, porra, sim, eu realmente quero isso. Mas é assim que eu espero que as coisas sejam de agora em diante. E como eu disse, palavras não significam uma merda. Então que tal você começar a trabalhar e ver o que acontece. Deixe-me lhe provar através de ações o que eu lhe disse agora.

– Você percebe que não posso passar por outra crise dessas. Eu não posso... É muito difícil.

Estou tão malditamente arrependido. Enquanto ele sinalizava, também formou as palavras com a boca, a vergonha em seu rosto esfaqueando seu peito. Sinto muito, não estava preparado para como eu reagiria, porque nunca considerei as ramificações até que estava atolado até os joelhos. Lidei mal com a situação e gostaria que me desse uma chance de fazer melhor dessa vez. Mas no seu tempo, a sua escolha.

Seus pensamentos voltaram a um milhão de anos atrás para Lash e aquele beco, quando John havia lhe dado a sua vingança, tinha permitido que ela fosse a única a matar seu inimigo pessoal. E isso apesar da coisa do macho vinculado que sem dúvida o fez querer rasgar aquele maldito filho da puta em pedaços.

Ele estava certo, ela pensou. Boas intenções nem sempre funcionam, mas ele poderia provar como as coisas seriam ao longo do tempo.

– Ok. – ela disse com voz rouca. – Vamos ver aonde isso vai. Venha comigo ver o Wrath?

Quando John assentiu, ela foi para o seu lado.

Juntos caminharam até o escritório do rei.

Cada passo que davam parecia instável, embora a mansão fosse sólida como uma rocha. Então, novamente, ela sentiu como se o terremoto que havia lançado sua vida em um liquidificador, de repente, tivesse parado e ela não confiasse em seu equilíbrio ou na estabilidade debaixo dos seus pés.

Antes que batessem nas portas fechadas, ela se virou em direção ao macho que tinha seu nome gravado em suas costas. A missão que estava prestes a aceitar era perigosa, algo vital para Wrath e a Irmandade. Mas suas implicações para sua própria vida e a de John, pareciam ainda mais significativas.

Se aproximando dele, ela pôs seus braços ao redor do seu corpo e o segurou. Quando ele devolveu o abraço, os dois se encaixaram do mesmo jeito que sempre fizeram, como uma mão na luva.

Porra, ela esperava que isso funcionasse.

Oh, e sim, acertar Xcor e seu bando de aberrações?

Era um agradável bônus.

 

A realidade de que a fêmea na túnica branca não era um sonho caía gradualmente sobre Xcor, mais ou menos como névoa desvanecendo sobre a visão para revelar os contornos e quadros previamente obscurecidos pela proteção.

Estava de volta no furgão, recostado no assento que o levava em direção ao seu covil, sua cabeça apoiada na curva interna do seu cotovelo, com seus joelhos dobrados e empilhados um sobre o outro. Zypher não estava atrás do volante dessa vez. Throe estava dirigindo.

O macho havia estado em silêncio desde que eles deixaram a campina. Tão atípico.

Enquanto Xcor olhava fixamente para frente, ele traçava o padrão sutil na cobertura de couro falso no assento onde Throe estava. Era um trabalho difícil, já que a única luz que possuía era a do painel à sua frente.

– Ela era real, então. – ele disse depois de um tempo.

– Sim. – veio à resposta calma.

Xcor fechou os olhos e se perguntou como era possível que uma fêmea como aquela realmente existisse.

– Ela era uma Escolhida.

– Sim.

– Como você a conseguiu?

Houve uma longa pausa. – Ela me alimentou quando estive sob custódia da Irmandade. Eles disseram a ela que eu era um soldado, não me identificando como seu inimigo para não afligi-la.

– Você não deveria tê-la usado. – ele rosnou. – Ela é uma inocente em tudo isso.

– Que outra opção eu tinha? Você estava morrendo.

Ele afastou aquele fato de sua mente, concentrando-se ao invés disso na revelação de que a lenda realmente vivia e respirava. E servia a Irmandade. E Throe.

Por alguma razão, o pensamento do seu soldado tomando da veia daquela fêmea, fazia Xcor querer dar a volta no encosto do assento, alcançar o macho e quebrar o seu pescoço. Exceto que ciúmes, por mais infundado que fosse, era apenas um dos seus problemas.

– Você nos expôs.

– Eles nunca a usarão como um localizador. – Throe disse severamente. – Uma Escolhida? Entrando na guerra de alguma forma? Os Irmãos são muito antiquados e ela é extremamente valiosa. Eles nunca a levarão para o campo de batalha.

Refletindo mais adiante, ele decidiu que Throe provavelmente estava certo, aquela fêmea era inestimável em mais formas do que podia contar. Além disso, ele e seu Bando de Bastardos saíam ao anoitecer todos os dias, estavam muito longe de serem pegos desprevenidos. E se encontrassem os Irmãos? Eles lutariam novamente. Ele não era nenhum covarde para correr do seu inimigo, melhor planejar um ataque, mas nem sempre isso é possível.

– Qual é o nome dela? – Ele exigiu.

Mais silêncio.

Enquanto esperava pela resposta, a reticência disse a ele que tinha razão para ser ciumento, pelo menos em uma parte: era evidente que seu segundo no comando se sentia do mesmo modo que ele.

– Seu nome.

– Eu não sei.

– Há quanto tempo você a tem visto?

– Eu não tenho. Eu clamei por ela unicamente em seu favor. Rezei para ela vir e ela veio.

Xcor respirou profunda e lentamente, sentindo suas costelas se expandirem sem dor pela primeira vez desde que enfrentou aquele lutador com olhos de cores diferentes. Era o sangue dela dentro dele. Realmente, que milagre ela era: aquela sensação de se afogar em seu próprio corpo havia se aliviado, o latejar em sua cabeça diminuindo, seus batimentos cardíacos se ajustando a um ritmo constante.

E ainda sim, com o poder correndo através dele, puxando-o de volta da beira do abismo, isso não pressagiava nada de bom para ele e seus soldados. Se isso era o que a Irmandade utilizava normalmente? Então eles eram mais fortes não só pela pureza de sua linhagem, mas também pela alimentação.

Pelo menos aquilo não os tornava insuperáveis. O tiro de Syphon provou que até o rei de raça pura tinha seus pontos vulneráveis.

Mas eles eram ainda mais perigosos do que ele pensava.

E quanto à fêmea…

– Você vai invocá-la novamente? – Ele perguntou ao seu soldado.

– Não. Nunca.

Nenhuma hesitação, o que sugeria que ou era uma mentira ou um voto. Pelo bem de ambos, ele esperava que fosse o último...

Oh, mas o que ele poderia fazer a respeito. Ele se alimentou dela só uma vez e ela não lhe pertencia e nunca pertenceria por razões demais para contar. De fato, relembrando o modo como até a prostituta humana na primavera recuou diante dele, ele sabia que alguém tão puro e perfeito quanto a Escolhida não teria nada a ver com alguém como ele. Throe, por outro lado, poderia ter uma chance, exceto, é claro, que ele não era um Irmão.

No entanto, ele estava cativado por ela.

Sem dúvida ela estava acostumada a isso.

Xcor fechou os olhos e se concentrou em seu corpo, sentindo-o se refazer, realinhar, reacender.

Ele se encontrou desejando que o mesmo rejuvenescimento pudesse ocorrer em seu rosto, seu passado, sua alma. Naturalmente, ele manteve aquela impotente oração para si mesmo. Por um lado, era uma impossibilidade. Por outro, tal coisa era um capricho provocado pela visão de uma bela fêmea, que não sentira repulsa por ele. Na verdade, não havia redenção para ele ou seu futuro: ele havia dado um golpe poderoso contra a Irmandade e eles viriam atrás dele e do Bando de Bastardos com toda a força que pudessem reunir.

Eles também poderiam tomar outras ações. Se Wrath estivesse morto e sem descendentes, eles estariam correndo para ocupar o trono com a relação de sangue mais próxima que pudessem encontrar. A menos que o rei estivesse se segurando a beira da morte por um fio? Ou talvez tenha se recuperado graças a toda aquela tecnologia médica que eles cultivavam no seu Complexo…?

Normalmente, pensamentos como estes o estariam consumindo, a falta de respostas retorcendo duro em suas entranhas e fazendo com que ele andasse de um lado para o outro sem parar, se não estivesse lutando.

Agora, porém, na letargia remanescente da alimentação, as ruminações eram nada além de gritos distantes de urgência que não iam longe e falhavam em energizá-lo.

A fêmea na base do colorido carvalho silvestre[24] era o que permanecia em sua mente.

Enquanto relembrava suas feições, disse a si mesmo que lhe era permitido esta única noite de distração. Ele não estava em condição de lutar, mesmo com o presente dela e, seus soldados estavam nas ruas levando adiante a missão contra os Lessers, pelo menos ainda havia algum progresso sendo feito.

Uma noite. E então no pôr do sol do dia seguinte, ele a colocaria de lado como fez tanto com suas fantasias quanto com seus pesadelos, deste modo retornando assim ao mundo real para lutar mais uma vez.

Uma noite apenas.

Isso era tudo que ele concederia a esta distração imaginária sem futuro…

Supondo-se que, uma pequena voz ressaltou, Throe mantivesse sua palavra e nunca mais a procurasse.

 

– Mais um?

Quando Tohr voltou sua atenção para a bandeja de prata com comida, No’One quis recusar a oferta. Na verdade, recostada nos travesseiros da cama dele, ela se sentia estufada.

E ainda assim quando ele se moveu em sua direção com outro morango maduro, segurando-o por sua coroa verde, ela achou que a fruta era difícil de resistir. Separando seus lábios ela o aguardava, como havia aprendido a esperar, que ele lhe trouxesse a comida.

Várias das frutas vermelhas que falharam em cumprir as exigências rigorosas dele foram colocadas na borda da bandeja. O mesmo havia sido feito com algumas das fatias de peru preparadas na hora, como também partes da salada verde. O arroz havia passado por sua inspeção, no entanto, bem como os deliciosos pãezinhos.

– Aqui. – ele murmurou. – Este está bom.

No’One o via olhar para ela enquanto aceitava o que ele lhe dava. Estava estranhamente focado em sua alimentação, de uma forma que era tanto comovente quanto fonte de fascinação. Ela tinha ouvido falar de machos fazendo isso. Até mesmo vira seus pais em tal ritual, sua mãe sentada à esquerda de seu pai na mesa de jantar, ele inspecionando cada prato, tigela e copo antes que fosse dirigido a ela pessoalmente por ele, no lugar dos serviçais, desde que a comida estivesse em qualidade elevada o suficiente. Ela assumira que a prática era um resquício curioso de um tempo antigo. Não era assim. Este espaço particular aqui com Tohrment era à base de trocas como aquela. De fato, ela podia imaginar eras atrás, na vida selvagem, um macho retornando com algo que tivesse caçado recentemente e fazendo a mesma coisa.

Isso a fazia se sentir… Protegida. Valorizada. Especial.

– Mais um? – Ele disse novamente.

– Você vai me engordar.

– Fêmeas deveriam ter carne nos ossos. – Ele sorriu de um modo distraído enquanto pegava um morango grande e franzia o cenho.

Conforme suas palavras ressoaram, ela não tomou o que ele disse ao pé da letra, de qualquer modo. Como podia, quando ele não fez nada além de escolher o alimento mais perfeito e eliminar o que não achava que era digno o suficiente para ela?

– Um último, então, – ela disse suavemente – E, em seguida, devo recusar todos os outros oferecimentos. Estou cheia a ponto de explodir.

Ele lançou a fruta de lado com as outras rejeitadas e agarrou outra, enquanto rosnava para a pobre coisa, seu estômago soltou um grunhido vazio.

– Você precisa comer também. – ela assinalou.

O grunhido que ela recebeu de volta era ou de aprovação relutante da segunda fruta ou concordando, provavelmente o primeiro.

Enquanto ela mordia e mastigava, ele descansou os braços no colo e olhou fixamente para sua boca, como se estivesse preparado para ajudá-la a engolir se tivesse que fazer.

Naquele momento silencioso ela pensou, oh, como ele mudou desde o verão. Ele estava muito maior, tão impossivelmente maior, seu corpo há um tempo estava grande, agora era absolutamente gigantesco. E ainda que não inchassem de maneira pouco atraente, seus músculos se expandiram dos seus limites sem qualquer camada de gordura sobre eles, sua forma proporcional era agradável aos olhos. Seu rosto permanecia magro, mas não mais fatigado e sua pele perdeu a palidez acinzentada a qual não havia reconhecido, até que a cor floresceu novamente em suas bochechas.

Porém, a mecha branca permanecia em seu cabelo, evidência de tudo por que passou.

Com que frequência ele pensava em sua Wellesandra? Ela ainda morava em seus pensamentos?

Claro que morava.

Seu peito doía, ela encontrava dificuldade em respirar. Ela sempre teve simpatia por ele, seus receptores de dor disparavam quando ele estava em sofrimento, certa como se sua perda fosse dela própria.

Agora, porém, ela sentia um tipo diferente de agonia atrás do seu esterno.

Talvez porque eles estivessem ainda mais próximos agora. Sim, era isso. Ela estava solidária com ele num nível ainda mais profundo.

– Terminou? – ele disse com seu rosto inclinando para o lado, a luz da luminária o atingindo com suave gentileza.

Não, ela estava errada, pensou enquanto arrastava outro fôlego para dentro.

Isso não era compaixão.

Isso era algo completamente diferente de se preocupar com o sofrimento alheio.

– Autumn? – ele disse. – Você está bem?

Levantando o olhar para ele, sentiu um calafrio repentino arrepiar a pele dos seus antebraços e deslizar pelos seus ombros nus. Embaixo do calor das cobertas, seu corpo vibrando em sua própria carne, esfriando e então se incandescendo com calor.

Que foi o que aconteceu, ela supôs, quando seu mundo virou de cabeça pra baixo.

Querida Virgem Escriba… Ela estava apaixonada por ele.

Ela se apaixonou por este macho.

Quando isso aconteceu?

– Autumn. – Sua voz se tornou mais vigorosa. – O que está acontecendo?

Ela decidiu que o “quando” não poderia ser definido. A mudança aconteceu milímetro por milímetro, a engrenagem de transformação impulsionada por pequenas e grandes trocas entre eles… Até que, semelhante ao modo como a adorável noite caía e reivindicava a paisagem da Terra, o que começou como imperceptível culminou no inegável.

Ele se levantou num salto. – Vou chamar a Doutora Jane...

– Não. – ela disse, estendendo sua mão. – Estou bem. Só cansada e saciada pela comida.

Por um momento, ele lhe deu o mesmo olhar que deu ao morango, aqueles seus olhos perspicazes se estreitando e se fixando nela.

No entanto, ela claramente passou pelo seu escrutínio quando ele se sentou novamente.

Forçando um sorriso em seus lábios, ela se moveu para a segunda bandeja, a que ainda estava coberta com a tampa de prata.

– Você devia comer agora. De fato, talvez devêssemos pegar pra você alguma comida fresca.

Ele deu de ombros. – Isso está bom.

Ele lançou em sua boca as frutas que não foram boas o suficiente pra ela e destampou o seu jantar, então comeu tudo o que sobrou em sua bandeja como também tudo que estava na dele.

Sua atenção desviada era uma boa coisa.

Quando ele acabou com sua refeição e com o restante da comida dela, pegou as bandejas e os suportes e colocou-os do lado de fora no corredor.

– Eu já volto.

Com isso ele desapareceu no banheiro e, logo, o som da água correndo chegou até ela.

Curvando-se de lado, ela olhou para as cortinas fechadas.

As luzes se apagaram e, em seguida, os silenciosos passos dele atravessaram o carpete. Houve uma pausa antes de subir na cama e, por um momento, ela se preocupou que ele tivesse lido a sua mente. Mas então ela sentiu uma brisa refrescante contra ela e percebeu que ele havia erguido as cobertas. Pela primeira vez.

– Tudo bem se eu me juntar a você?

Abruptamente, ela piscou para conter as lágrimas. – Por favor.

O colchão se afundou e então seu corpo nu veio contra o dela. Quando ele a apanhou em seus braços, ela foi desejosa e surpresa para ele.

Aquele estranho calafrio passou por ela novamente, trazendo também uma sensação de pressentimento. Entretanto, tal sensação era morna, até mesmo quente… De sua pele contra a dela.

Ele jamais deveria saber, ela pensou quando fechou os olhos e descansou sua cabeça no peito dele.

Ele nunca, jamais deveria saber o que bate dentro do seu coração por ele.

Isto destruiria tudo.

 

                                                                       INVERNO

 

Quando Lassiter se sentou na base da escadaria principal, ele levantou o olhar para o teto pintado uns três andares acima dele. Dentre a representação de guerreiros montados em garanhões, ele procurou as nuvens pintadas e achou a imagem que estava procurando, mas não queria ver.

Wellsie estava sempre bem atrás na paisagem, sua forma ainda mais compacta enquanto se encolhia dentro de si mesma naquele campo de pedras acinzentadas.

Na verdade ele estava perdendo a esperança. Logo ela estaria tão longe que eles não seriam capazes de vê-la de jeito nenhum. E seria aí que tudo estaria perdido: ela estaria perdida, ele estaria perdido... Tohr estaria perdido.

Ele pensou que No’One era a resposta. E, sabe, voltando ao início do outono, ele ficou empolgado achando que tudo estivesse resolvido. Na noite depois que Tohr finalmente se deitou com aquela fêmea, de vez e adequadamente, ela chegou à mesa de jantar sem seu capuz ou aquela túnica horrorosa. Ela estava usando um vestido, um vestido de flores azuis que era grande demais para ela, e mesmo assim adorável, e o cabelo dela estava solto ao redor dos ombros, uma cascata loira.

Eles dois tinham um ar que só provinha depois que duas pessoas tiram uma casquinha uma da outra por horas.

Ele voltou a fazer as malas naquele ponto. Rondou indeciso pelo quarto. Andou de um lado para o outro por horas, esperando ser chamado pelo Criador.

Quando o sol se pôs novamente, ele contabilizou aquilo como um atraso administrativo. Quando o sol se levantou mais uma vez, ele começou a ficar preocupado.

Então, ele se resignou.

Agora, ele estava em pânico…

Com sua bunda sentada olhando fixamente para a imaginação de uma fêmea morta, ele se encontrou fazendo a mesma pergunta que Tohr fazia tão frequentemente.

O que mais o Criador queria com isso?

– O que você está procurando?

Uma voz profunda o interrompeu e ele correu o olhar para o macho em questão. Tohrment obviamente tinha saído da porta secreta debaixo da escada: ele estava vestido com um short de corrida preto e uma camiseta de ginástica, e o suor lustrava sua pele e cabelo.

Fora os respingos pós-treinamento, o cara parecia ótimo. Mas era isso que acontecia com eles quando estavam bem alimentados, fodendo bem e ilesos.

No entanto, o Irmão perdeu um pouco daquele vigor-e-saúde quando seus olhos se encontraram. O que sugeria que ele tinha a mesma preocupação bem abaixo da superfície, sempre duradoura, uma preocupação crônica.

Tohr se aproximou e se sentou, enxugando seu rosto com uma toalha.

– Converse comigo.

– Você está tendo mais sonhos com ela? – Não havia razão para esclarecer a quem ele se referia. Entre eles dois, havia apenas uma fêmea que importava.

– O último faz uma semana.

– Como ela estava? – Como se ele já não soubesse. Ele estava malditamente olhando para ela neste exato momento.

– Mais distante. – Tohr pegou a toalha ao redor do seu pescoço e a esticou entre seus punhos. – Você tem certeza de que talvez ela não esteja somente se desvanecendo para o Fade?

– Ela lhe pareceu feliz?

– Não.

– Esta é sua resposta.

– Estou fazendo tudo o que posso.

Lassiter deu uma olhada pra cima e assentiu.

– Sei que está. Absolutamente sei que você está.

– Então você também está preocupado.

Não havia razão para responder aquilo.

Em silêncio, o par se sentou quadril com quadril, seus braços balançando pra fora dos joelhos, a metafórica parede de tijolos da qual eles estavam diante, bloqueando qualquer horizonte.

– Posso ser honesto com você? – O Irmão disse.

– Seria bom.

– Estou apavorado. Não sei o que estou perdendo aqui. – Ele esfregou a toalha em cima do rosto novamente. – Eu não durmo muito e não posso decidir se é porque estou com medo do que vou ver... Ou do que não vou ver. Eu não sei como ela está se mantendo.

A breve resposta era que ela não estava.

– Eu converso com ela. – Tohr murmurou. – Quando Autumn está dormindo eu me sento na cama e olho para o escuro. Eu digo a ela…

Quando a voz do cara se partiu, Lassiter quis gritar – e não porque pensou que Tohr estava sendo um maricas. Era mais porque doía muito ouvir a agonia naquela voz.

Merda, em algum momento no ano passado ele deve ter desenvolvido uma consciência ou algo assim.

– Digo a ela que eu ainda a amo, que sempre a amarei, mas que fiz o que pude para… Bem, não para preencher o vazio que ela deixou, porque ninguém pode fazer isso. Mas para pelo menos tentar viver algum tipo de vida…

Enquanto o macho continuava a falar em tons suaves e tristes, Lassiter foi atingido com um súbito terror de que ele tenha levado o cara para o caminho errado, que ele fez... Merda, ele não sabia. Fodeu com tudo, fez o que não devia, enviou este pobre idiota pesaroso em uma direção errada.

Ele revisou tudo que sabia sobre a situação, começando do andar de baixo, construindo a lógica, camada por camada, reconstruindo onde eles estavam.

Ele não conseguiu achar nenhuma falha, nenhum erro. Ambos fizeram o melhor que podiam.

No fim, isso parecia que era o único consolo que ele podia ter – e isso era apenas um pé no saco. A ideia de que ele poderia, mesmo que inadvertidamente, ter prejudicado este macho de valor era bem pior do que sua versão do purgatório.

Ele nunca deveria ter concordado com isso.

– Porra. – ele respirou baixinho enquanto fechava seus olhos doloridos. Eles chegaram tão longe, mas era como se estivessem perseguindo um alvo em movimento. Quanto mais rápido eles corriam e mais longe viajavam, mais distante o fim parecia ficar.

– Só tenho que me esforçar mais. – disse Tohr. – Essa é a única resposta. Não sei o que mais posso fazer, mas preciso ir mais fundo de algum jeito.

– É.

O Irmão se virou para ele.

– Você ainda está aqui, certo?

Lassiter lhe lançou um olhar.

– Se você está falando comigo, isto é um sim.

– Ok… Isso é bom. – O Irmão se levantou. – Então ainda temos algum tempo sobrando.

Yuhu. Fantástico. Como aquilo fosse fazer alguma diferença.

 

Do lado de fora da sua cabana particular, Xhex estava parada sozinha nas margens do Hudson, suas botas plantadas na neve branca, sua respiração deixando seu nariz em baforadas que se afastaram por cima do seu ombro. O brilho pêssego e rosa do pôr do sol caía sobre a paisagem congelada por trás dela, as cores apanhadas pelas ondas vagarosas no centro do canal.

Não havia muita água aparente no rio – o gelo estava se formando nas margens e se fechando, ameaçando estrangular a superfície enquanto o frio resistia durante a estação.

Sem nenhum comando dela, seus sentidos symphath perfuraram o crepúsculo, tentáculos invisíveis que sondaram o ar fino e gélido. Ela não esperava conseguir nenhuma resposta positiva, mas estava tão acostumada a estar receptiva depois destes últimos meses, descobriu aquele seu lado querendo se esticar e se estender pra fora, mesmo que fosse apenas para se exercitar.

Ela não tinha encontrado o Bando de Bastardos. Ainda.

Pessoa certa para o trabalho, né? Francamente, a merda estava ficando constrangedora.

Bom, então, as razões para lidar com tudo cuidadosamente eram muitas para se contar: tanta coisa estava dependendo dela conseguir alguma informações deles com mais calma e tranquilamente possível, e pelo menos o rei e os Irmãos entendiam isso.

John também encorajara infinitamente sua missão. Paciente. Pronto para discutir qualquer ângulo ou não comentar nada quando ela estava na mansão – o que tinha sido regularmente como se revelou. Entre ver sua mãe, atualizar a Irmandade e o rei, ou mesmo passando o tempo, ela estava lá duas ou três vezes por semana.

Ainda assim, quando se tratava de John as coisas não tinham ido além de uma refeição cortês.

Embora os olhos dele queimassem por ela.

Ela sabia o que ele estava fazendo. Estava mantendo sua palavra, contendo-se até que ela penetrasse o B.d.B.[25] para que então ele pudesse provar realmente o que disse. Exceto que tão estúpido quanto era… Ela queria estar com ele. E não estar com ele separados-por-uma-mesa-de-jantar.

Era uma melhora para eles em relação ao verão e outono, com certeza – e nem perto do suficiente.

Voltando a se concentrar, ela continuou a procurar nos arredores sem nenhuma boa razão, até que a escuridão desceu rápido, a luz drenando do céu como acontece no final de dezembro – o que significava que a merda saía como se estivesse fugindo, perseguida pelo frio.

No alto à sua esquerda, na mansão na península, luzes se acenderam de repente, como se Assail tivesse persianas no interior de todas as suas janelas: num momento a propriedade estava apagada; no outro era como um estádio de futebol.

Ah, sim, o cavalheiro Assail... Não.

O controle que o cara mantinha no cenário de drogas em Caldwell era quase seguro, sem ninguém de algum significado diferente daquele fornecedor influente Benloise. O que ela não podia entender era quem eram as tropas do vampiro. Ele não podia estar operando um negócio como aquele sozinho, e ainda assim não havia ninguém indo ou vindo da sua casa que não fosse ele.

Então novamente, por que ele ia querer seus associados em seu espaço particular?

Um pouco depois um carro manobrou pela alameda, do lado de fora do portão. Aquele Jaguar dele.

Cara, ele precisava investir num Range Rover blindado. Ou num Hummer como o do Qhuinn. O Jaguar era rápido e caia bem no filho da puta, mas qual é. Uma pequena tração em toda aquela neve nunca era uma má ideia.

O carro esporte diminuiu a velocidade até parar à medida em que se aproximou dela, o exaustor balançando e brilhando nas luzes vermelhas da traseira como algo que um mágico chamaria para subir no palco.

Uma janela desceu e uma voz masculina disse:

– Apreciando a visão?

A tentação foi dar o dedo médio pra ele, mas manteve seu dedo embainhado enquanto rangia os dentes desviando pela neve para ele. Neste ponto Assail não era visto como um “suspeito” por si só – ele não fez nada além de ajudar a Irmandade a retirar Wrath de lá quando a tentativa de assassinato não deu certo. Mas mesmo assim o ataque ocorrera na casa dele, e ela se perguntou onde Xcor estava conseguindo seus recursos financeiros. Assail tinha dinheiro mesmo antes de decidir ser um rei do narcotráfico, e guerras requeriam dinheiro.

Especialmente se você estivesse tentando lutar contra o rei.

Focando seu lado symphath no macho, ela leu a mente dele e viu um monte de… Bem, uma das coisas era luxúria. Ele a queria, mas ela apostava que não era especificamente ela.

Assail gostava de sexo com garotas. Certo. Entendido.

Embaixo daquela onda de testosterona, porém, ela encontrou uma fome por poder que era curioso. Entretanto não se tratava de derrubar o rei. Era…

– Lendo minha mente? – Ele disse com voz arrastada.

Se ele apenas soubesse o que estava falando.

– Ficaria surpreso com o que posso descobrir sobre as pessoas.

– Então sabe que eu quero você.

– Vou sugerir que fique na sua. Sou emparelhada.

– Foi o que ouvi. Mas onde está o seu homem?

– Trabalhando.

Quando ele sorriu, as luzes do painel pegaram suas feições, destacando-as e tornando-o ainda mais bonito. Mas ele não era apenas um menino bonito: havia uma pitada de mal naqueles olhos quentes.

Macho perigoso. Apesar de parecer que não era nada mais do um membro engomadinho da glymera.

– Bem, – ele murmurou – Você sabe o que eles dizem. Muito tempo separado faz o coração ficar...

– Diga uma coisa. Você viu Xcor por aí em algum lugar?

Isso calou a boca dele. E o fez abaixar as pálpebras.

– Eu não faço ideia, – ele disse depois de um momento – Por que está me perguntando isso?

– Oh, mesmo?

– Não tenho a menor ideia.

– Eu sei o que aconteceu na sua casa no outono.

Houve outra pausa.

– Eu não teria imaginado que a Irmandade misturasse negócios com prazer. – Quando ela só o olhou, ele deu de ombros. – Bem, francamente, não posso acreditar que eles ainda estão procurando por ele. Na verdade é uma surpresa que aquele filho da mãe ainda esteja respirando.

– Então você o viu ultimamente.

Com isso a mente dele se acendeu em um setor específico – uma obstrução. Ele estava escondendo algo dela.

Ela sorriu friamente.

– Não o viu, Assail?

– Escute, vou lhe dar um conselho gratuito. Sei que você é toda essa mulher bem atualizada no mundo, vestida de couro surrado e resistente, mas você não quer se meter com aquele cara. Você viu como ele é? Você está emparelhada com um cara bonito como John Matthew, não precisa...

– Não quero trepar com o desgraçado.

A linguagem deliberadamente grosseira dela o fez piscar.

– De fato. E, ah, bom para você. Quanto a mim, eu não o tenho visto. Nem mesmo na noite que ele emboscou Wrath.

Mentiroso, ela pensou.

Quando Assail falou em seguida a voz dele estava muito baixa:

– Deixe aquele macho quieto. Você não que cruzar o caminho dele... Ele tem menos misericórdia do que eu tenho.

– Então você acha que só os meninos grandes devem lidar com ele.

– É isso aí, querida.

Quando ele pôs o Jaguar em marcha, ela deu um passo atrás e cruzou os braços no peito. Tão fodidamente típico. O que tinha sobre o pênis e as bolas que fazia os machos pensarem que só eles tinham força?

– Vejo você por aí, vizinho. – ela disse com voz arrastada.

– Estou falando sério sobre Xcor.

– Oh, posso dizer que está.

Ele sacudiu a cabeça.

– Certo. É o seu funeral.

Quando ele foi embora, ela pensou, pronome errado aí, amigo. Pronome malditamente errado…

 

Autumn estava profundamente adormecida quando ele se juntou a ela na cama, mas mesmo em seu profundo, quase doloroso repouso, ela sabia de quem era a mão que vinha sobre sua pele, viajando pelo seu quadril, alisando seu estômago. Ela sabia exatamente de quem eram as mãos que cobriam seus seios e a girava.

Para fazer sexo.

O ar gelado caiu sobre sua pele enquanto as cobertas foram afastadas, e por instinto, ela separou as pernas, preparando-se para receber o único macho que sempre tomaria dentro de si.

Ela estava pronta para Tohrment. Parecia que nas últimas semanas ela estava sempre pronta para ele.

Disponível – como ele teria dito. Como ele sempre estava pronto para ela.

Seu grande guerreiro achou caminho por entre suas coxas, abrindo-as ainda mais com os quadris – não, agora eram as mãos dele, como se ele tivesse um plano e então tivesse mudado de ideia...

A boca dele encontrou-a, encaixando-se e então lambendo.

Com os olhos ainda fechados e a mente naquele submundo confuso que não era nem sono nem despertar, o prazer foi tão intenso que ela recuou e então se jogou contra a língua, entregando-se a ele com tudo o que tinha enquanto ele sugava, provocava e então penetrava...

Só que não houve orgasmo para ela. Não importava o quanto prazer estivesse sentindo.

Tentando como podia alcançar a liberação, não conseguia passar do limite, o prazer agulhando a ponto da agonia – e ainda assim, ela não conseguia gozar, mesmo ensopada de suor, e com o fôlego preso na garganta.

Desespero a fez agarrar a cabeça dele, puxando-o ainda mais.

Só que ele desapareceu.

Não era nada além de um pesadelo, ela pensou, enquanto chorava de frustração. Um sonho torturante com nuances eróticas...

Tohrment surgiu às suas costas, e desta vez era o corpo inteiro dele contra ela. Enfiando os braços atrás dos joelhos dela, ele a abriu enquanto a dobrava como uma pequena bola sob seu grande peso.

E então ele a penetrou, forte e rápido.

Aí ela gozou. No instante em que ele a preencheu com sua longa extensão, seu corpo respondeu com uma explosão enorme e despedaçadora, o orgasmo tão violento que ela mordeu o lábio com ambas as presas.

Enquanto sangue inundava sua boca, ele diminuiu os movimentos para lambê-lo. Mas ela não queria devagar. Usando os braços dele como apoio para as pernas, encontrou seu próprio ritmo contra o membro dele, montando-o, tomando-o... Até que se encontrou novamente no limite.

E não indo a lugar algum.

No começo, tinha sido tão fácil para ela ter o que precisava quando acasalavam. Ultimamente, no entanto, estava cada vez mais difícil...

Enquanto ela se esticava contra ele, bombeando-se rápido e rápido, sua frustração a deixou selvagem.

Ela o mordeu.

No ombro.

Marcou-o com as unhas.

A combinação devia tê-lo feito parar para pedir um comportamento mais civilizado.

Ao invés disto, com o sangue dele fluindo sobre ela, ele soltou um rugido tão poderoso, que houve um som de algo se quebrando no quarto, como se tivesse atingido algo na parede.

Então ele teve um orgasmo. E graças a doce Virgem Escriba pela liberação dele. Enquanto ele golpeava contra ela e sua ereção pulsava violentamente, ela finalmente pegou aquele esquivo caminho também, seu corpo se mexendo com ele, a cabeceira da cama batendo.

Alguém estava gritando.

Ela.

Então houve outro som de algo se quebrando.

A luminária...?

Quando eles finalmente pararam, ela estava inteiramente ensopada de suor, pulsando entre as pernas, trêmula a ponto de se sentir derretendo. Uma das luminárias laterais tinha mesmo caído da mesinha e enquanto ela olhava pelo quarto, viu que o espelho da cômoda tinha se rachado.

Tohrment ergueu a cabeça e olhou para ela. À luz que vinha do banheiro, ela viu o dano que tinha feito no ombro dele.

– Oh... Pelo amor... – Ela colocou a mão na boca horrorizada com a ferida ensanguentada. – Sinto tanto.

Ele deu uma olhada e franziu o cenho. – Está brincando?

Quando ele olhou para ela, estava sorrindo com um orgulho masculino que não fazia absolutamente nenhum sentido.

– Eu lhe machuquei. – Ela queria chorar. – Eu lhe...

– Shh. – Ele afastou uma mecha úmida de cabelo do rosto dela. – Eu adorei. Eu fodidamente amei isto. Arranhe-me. Devore-me. Morda-me... Está tudo certo.

– Você é doido. – Para usar uma expressão que ela aprendeu.

– Eu ainda não estou satisfeito, é isto que eu sei... – Só que quando ele se moveu dentro dela, ela se encolheu.

Instantaneamente, ele congelou. – Merda, acho que peguei pesado.

– Foi maravilhoso.

Tohrment elevou seu grande tórax com os braços e saiu dela tão lenta e cuidadosamente, que ela mal sentiu. E ainda assim ela sentiu repuxar por dentro. Ou talvez fosse outro orgasmo? Difícil saber, já que o corpo dela estava tão sobrecarregado de sensações.

De qualquer maneira, aquele desgaste quase doloroso era uma coisa ótima. Eles estavam tão familiarizados um com o outro, tão confortáveis com o acasalamento, e a intensidade incrível que alcançaram era resultante de uma ausência total de barreiras, liberdade... E a confiança que compartilhavam.

– Deixe-me lhe levar para o chuveiro e lhe limpar.

– Está tudo bem. – Ela sorriu para ele. – Eu só vou relaxar aqui enquanto você toma banho. Em seguida eu vou.

Na verdade, ela não confiava em si mesma nua no banheiro com ele. Era arriscado que ela o mordesse no outro ombro – e por mais que tivesse apreciado a carta branca com os dentes, ela preferia evitar.

Tohrment se desenroscou dos cobertores bagunçados e ficou perto dela um momento, os olhos se estreitando. – Tem certeza de que está bem?

– Prometo.

Finalmente, ele acenou e se virou.

– Suas costas! – Parecia como se ele tivesse sido atacado por um gato, grandes arranhões vermelhos atravessando seu torso e espinha.

Ele olhou para a marca da mordida e sorriu com mais orgulho. – A sensação é ótima. Vou pensar em você quando sair esta noite, toda vez que ela repuxar.

Quando ele desapareceu no banheiro, ela balançou a cabeça para si mesma. Machos eram... Bem, doidos.

Fechando os olhos, ela descobriu o corpo e moveu os braços e pernas. O ar estava frio no quarto, talvez até gelado, mas depois de tudo, ela era sua própria fornalha, os resquícios da paixão praticamente evaporando de seus poros.

Enquanto Tohrment tomava banho, o calor gradualmente diminuiu, no entanto, como o fez as sensações doloridas do pós-sexo. E então, finalmente, ela encontrou a paz que procurava, seu corpo desenrolando, a tensão e dor restantes acalmando.

Com um espreguiçar que se sentia ainda melhor por causa de sua nudez, ela sorriu para o teto. Nunca tinha conhecido tamanha felicidade...

Do nada, aquele estranho calafrio que ela sentia de vez em quando desde o outono, caiu sobre ela, uma premonição que ela podia sentir, mas não definir, um aviso sem contexto.

Gelada agora, ela puxou as cobertas para se cobrir.

Sozinha na cama, sentiu-se observada pelo destino tão certamente como se estivesse em uma floresta a noite, com lobos que conseguia ouvir mas não ver, caminhando por entre árvores...

Prontos para atacá-la.

No banheiro, Tohr se secou e se inclinou para o espelho. A marca de mordida em seu ombro já começava a curar, sua pele se juntando novamente por sobre os furos, tudo sendo selado perfeitamente. Pena – ele queria que as feridas ficassem com ele por um tempo.

Havia orgulho em ser marcado daquele jeito.

Ainda assim, ele decidiu usar uma camiseta com manga ao invés de regata por baixo da jaqueta. Não havia motivo para expor aquilo aos Irmãos. Aquela merda era particular – só entre ele e Autumn.

Maldição... Aquela fêmea era incrível.

Apesar do estresse sob o qual ela andava, apesar daquele encontro com Lassiter na escada, apesar do fato de ele ter começado a tocá-la somente porque achava que devia, no final, e como de costume, tinha sido tudo sobre o sexo, o cru e selvagem sexo: Autumn era como um vórtex, em torno do qual ele girava, o agarre erótico que ela tinha sobre seu corpo atraindo-o, e então o mandando de volta à superfície, em busca de ar... Antes de puxá-lo novamente.

Nisto, ele tinha de confessar, ele tinha mesmo ido adiante.

Doía admitir, e algumas vezes ele se deitava lá depois, com os dois recuperando o fôlego e esfriando o suor em seus corpos, aquela dor familiar afiava-se como uma ponta de adaga em seu peito.

Ele não achava que iria jamais se livrar desta sensação.

E ainda assim, a cada amanhecer, ele a buscava e a tomava... E ele tinha toda intenção de repetir a dose dali a doze horas.

Saindo do banheiro, ele a encontrou ainda na cama. Ela tinha se encurvado na direção da janela e estava deitada de lado com os lençóis a seu redor.

Ele a viu pelada.

Completa. Fodidamente. Pelada.

A imagem fez seu corpo endurecer imediatamente, seu sexo repuxando nos quadris. E como se ela conseguisse sentir sua excitação, gemeu em um ronronar erótico e ondulou. Puxou as partes das cobertas que a cobriam e moveu a perna dela para frente, expondo o sexo dela que cintilava.

– Oh, inferno, – ele grunhiu.

Seu corpo foi a ela sem um pensamento ou decisão, rastreando-a com tal foco que ele não teria matado quem estivesse no caminho: ele simplesmente pisaria em tal pessoa e então esperaria para cometer o assassinato depois que tivesse terminado as coisas com ela.

Subindo no colchão, ele pegou o pau com a mão e encaixou-se nela por trás, pressionando a cabeça em seu centro. Ele foi cuidadoso ao penetrá-la, só em caso que ela estivesse dolorida, e então esperou, apoiando-se sobre ela para ter certeza de que ela o queria de novo, tão rápido.

Quando tudo o que ela fez foi gemer seu nome em satisfação, ele começou a bombear.

Molhado, suave, quente...

Ele a tomou sem pedir licença e gostou da liberdade de fazer isto. Ela ainda era de compleição frágil, mas era mais forte do que parecia, e nos últimos meses, ele tinha aprendido a permitir-se, porque sabia que ela gostava também.

Com uma das mãos no quadril dela, ele reposicionou o seu corpo de forma que pudesse ir ainda mais profundo. E é claro, havia outra vantagem nesta posição: ele conseguia ver a si mesmo entrando e saindo dela, olhando a crista da cabeça aparecer antes de se aprofundar, só para voltar a quase sair dela novamente. Ela estava rosada e inchada, e ele estava duro e brilhando graças a ela...

– Porra, – Ele exclamou quando começou a gozar de novo.

Ele a montou enquanto se liberava, sentindo-a gozar com ele, seu sexo ordenhando. E ele olhou o show até que fechou os olhos – o que era bom, porque ele ainda podia vê-la por trás de suas pálpebras.

Depois de terminar, ele quase caiu sobre ela, mas segurou-se a tempo. Baixando a cabeça, encontrou sua boca no alto da espinha, e tomou vantagem da proximidade, esfregando os lábios em sua pele.

Sabendo que devia dar um descanso para ela, forçou-se a se afastar e sair dela. Só que enquanto ele se libertava, ele teve de cerrar os dentes ante a visão do quão preparada ela ainda estava para ele.

Plantando as mãos na sua bunda perfeita, ele a abriu para sua língua. Merda... O gosto dela e dele misturados, a sensação do sexo suave, liso contra sua boca...

Quando ela começou a ficar inquieta, como se estivesse quase lá, mas não o suficiente, ele lambeu três dedos e deslizou-os para dentro dela, enquanto continuava a lambê-la. Aquilo fez a mágica. Enquanto ela gritava seu nome e convulsionava em seu rosto, ele sorriu e ajudou-a através dos tremores que a inundavam.

E então era hora de parar. Ponto final.

Pela última semana ou mais, ele estivera nela toda – o que era o motivo pelo qual ele se forçava a ir malhar hoje. Ela parecia cansada, e a razão? Ela insistia em trabalhar a noite, e ele não a deixava em paz durante os dias.

Autumn rolou de modo que deitou de bruços; então ela colocou um joelho para o lado e arqueou as costas. Pedindo mais.

– Jesus, – ele gemeu. – Como vou conseguir deixar você?

– Não deixe. – Ela disse.

Não foi preciso pedir duas vezes. Ele a tomou por trás de novo, erguendo seus quadris, agarrando-os e elevando a pélvis dela de modo que pudesse ir bem fundo. Ele terminou com um antebraço por baixo da cintura dela, apoiando seu peso com a outra mão, trabalhando-a, apertando-a até que seus corpos explodiram de novo e a cama fez aquele barulho novamente. Ele gozou com uma maldição, seu orgasmo explodindo para fora dele como se não tivesse sexo há meses.

E ele ainda tinha fome dela. Especialmente quando ela gozou também.

Depois que as coisas se aquietaram, eles se deitaram no colchão, de conchinha. Acarinhando-a com o nariz no pescoço, ele se preocupou pelo modo como vinha tratando-a na cama.

Como se ela soubesse que ele precisava de algumas confirmações, ela se esticou para trás e acariciou seu cabelo.

– Você me faz me sentir maravilhosamente.

Talvez. Mas ele se sentiu mal pelas exigências que andava fazendo ao corpo dela. – Posso lhe dar banho agora?

– Oh, seria maravilhoso. Obrigada.

Voltando ao banheiro, ele foi à Jacuzzi, ligou a torneira e jogou sais de banho.

Enquanto ele checava a temperatura da água e fazia um ajuste mínimo, percebeu que gostava de cuidar dela. Percebeu também que ele encontrara várias maneiras de fazer isto. Arranjava desculpas para levá-la para cima e alimentá-la em particular. Comprara roupas para ela pela Internet. Parara no Walgreens e CVS para arranjar-lhes suas revistas favoritas como Vanity Fair, Vogue e The New Yorker.

Sempre se certificava de que houvesse Pepperidge farm Milanos[26] aqui em cima, caso ela tivesse vontade.

E ele não era o único cuidando dela e mostrando-lhe novas coisas.

Xhex vinha a casa para vê-la, pelo menos uma ou duas vezes por semana. Juntas, as duas iam ao cinema para ver filmes. Ou iam aos melhores lugares da cidade, onde Autumn pudesse ver casas bonitas. Ou iam aos mercados e lojas que ficavam abertos até tarde – onde elas compravam coisas com o dinheiro que Autumn ganhara com seu trabalho.

Inclinando-se, testou a água, mexeu na temperatura de novo, e pegou algumas toalhas para ela.

Por sua vez, o deixava um pouco inquieto que ela estivesse lá fora com tantos humanos loucos, lessers violentos e os ventos não confiáveis do destino. Mas no final das contas, Xhex era uma assassina completa, e ele sabia que ela protegeria sua mãe se alguém ousasse espirrar na direção delas.

Ademais, quando mãe e filha saíam, Autumn sempre voltava com um sorriso no rosto. O que colocava um sorriso no rosto dele.

Cristo, eles chegaram tão longe desde a primavera. Eles eram quase duas pessoas diferentes.

E então o que mais restava?

Movendo as mãos na água inquieta da banheira, ele imaginou com desespero o que caralhos faltava entender...

 

Duas noites depois, Xhex despertou com uma estranha convicção a perseguindo. Como se ela tivesse engolido seu despertador durante o dia e a coisa estivesse alarmando em sua barriga.

Intuição. Ansiedade. Pavor.

Nenhum botão de soneca naquela merda.

Enquanto tomava banho, continuou a ser perseguida pela sensação de que forças invisíveis e desconhecidas estavam se unindo, que a paisagem mudaria, que as peças de xadrez de várias pessoas estavam prestes a serem movidas, não por suas próprias mãos, para lugares que não faziam parte de suas estratégias.

Ela esteve presa a essa preocupação durante a curta viagem ao centro de Caldwell; persistente quando as coisas começaram no Iron Mask.

Incapaz de aguentar muito mais tempo, ela removeu seus cilícios e saiu para a cidade mais cedo do que costumava fazer. E enquanto se desmaterializava de telhado em telhado procurando os Bastardos, ela teve uma sensação… Esta noite era a noite.

Mas para quê?

Com aquela pergunta pesando sobre ela, foi especialmente cuidadosa para ficar longe de onde os Irmãos estavam lutando.

O fato que se comprometeu a dar um amplo espaço a eles era provavelmente o maior fator em sua demora em encontrar aquele rifle. O Bando de Bastardos estava em campo todas as noites, mas como as escaramuças com a Sociedade Lessening tendiam a acontecer somente nas partes desertas da cidade, era difícil chegar perto o suficiente mantendo uma distância de John e da Irmandade.

Sim, ela tinha algumas mentes que eram novas em seu repertório, mas era difícil isolar quem era Xcor – e embora fosse acadêmico, porque precisava que apenas um daqueles soldados cometesse um deslize, fosse ferido e tivesse que ser levado de volta para o seu esconderijo em um carro que ela pudesse acompanhar, queria conhecer intimamente seu maior alvo.

Checar seus segredos do lado de dentro.

Que ela não chegara a lugar nenhum até agora a estava deixando doida. E os Irmãos não estavam loucos por isso também, embora por outro motivo: eles queriam apenas tirar os outros lutadores fora de combate, mas Wrath bateu naquela tecla: eles precisavam do rifle primeiro, então o rei declarou aquele renegado grupo de traidores fora dos limites até que ele tivesse a prova que precisava. Logicamente falando, a proclamação fazia sentido – nada de bom viria de sacrificar todos eles e em seguida tentar acalmar a glymera com uma desculpa tipo oh-mas-eles-atiraram-em-mim. Mas noite após noite era duro.

Pelo menos eles tinham uma coisa a seu favor: era improvável que aquele rifle tivesse sido destruído.

O B.d.B. iria gostar de manter aquela merda como troféu, sem dúvida.

Porém estava na hora de acabar com isso. E talvez esta coisa de premonição que a estava balançando significava que ela estava finalmente chegando lá.

Sob aquele ângulo, e sob a teoria de que fazer a mesma coisa inúmeras vezes esperando um resultado diferente era insano, ela decidiu parar de procurar por Xcor.

Não, hoje à noite ela estaria atrás de Assail – e pelo que se sabe, ela localizou sua marca no teatro do distrito… Dentro da Galeria de Arte Benloise, naturalmente.

Uma rápida mudança na rua um nível abaixo e ela examinou uma festa que estava acontecendo na instalação.

Embora os entendidos em arte fossem perfeitamente capazes de vestir couro e considerá-lo traje de negócios, ela escorregou dentro...

Quente. Apertado. Um monte de egocêntricos ecoando ao redor.

Putz, num lugar como este você não podia saber o sexo das pessoas – todos faziam trejeitos com as mãos e tinham as unhas feitas.

Assim que deu dois passos pela porta, lhe foi prontamente oferecida uma taça de champanhe – como se fanfarrões com ilusões de ser Warhol[27] corressem com Veuve Clicquot.

– Não, obrigada.

Enquanto o garçom, um cara de boa aparência de preto, deu-lhe um pequeno aceno com a cabeça e saiu tranquilamente, ela quase o puxou de volta só pela companhia.

Sim, puxa, havia tantas sobrancelhas arqueadas e narizes erguidos que você se perguntava se essas pessoas aprovavam a si mesmas. E um olhar rápido ao redor na “arte” disse que ela e sua mãe tinham que vir aqui – só então Autumn poderia ter uma ideia de quão verdadeiramente hediondos e indulgentes demais algumas formas de autoexpressão podiam chegar a ser.

Humanos totalmente idiotas.

Com firme determinação, ela abriu seu caminho através de todos os ombros, girando de tal forma que se esquivasse dos outros garçons. Ela não se deu ao trabalho de esconder seu rosto. Rehv lidava com todos os seus negócios sozinho ou com Trez e iAm, de modo que ninguém aqui a reconheceria.

Rapidamente, ela identificou o caminho para o escritório de Benloise. Era tão malditamente óbvio: dois capangas vestidos como garçons, mas sem carregar bandejas, estavam de pé de cada lado de uma porta praticamente perfeita cortada numa parede divisória coberta por um pano.

Assail estava no segundo andar. Ela podia senti-lo claramente...

Mas chegar até ele era outra coisa. Era complicado tentar se desmaterializar em espaços desconhecidos. Provavelmente havia uma escada na parte mais distante que estava sendo guardada, mas ela não queria ficar cheia de buracos igual a um queijo suíço tomando sua forma ali no meio.

Além do mais, ela sempre podia pegar o cara na saída. As chances eram boas que ele entrasse pela parte de trás e saísse da mesma maneira. Ele era cauteloso, e sua visita não era sobre a maldita arte.

Boa coisa também, como era difícil ver cotonetes colados em um recipiente Tupperware[28] montados num vaso sanitário como qualquer coisa além de lixo.

Posicionando-se mais profundamente no edifício, ela deslizou por uma porta de acesso restrito apenas para funcionários e se viu num lugar de armazenamento com piso de concreto que cheirava a pó de giz e lápis. No alto, lâmpadas fluorescentes estavam presas ao teto, penduradas no alto e com tubulações e fiações expostas escavadas pelas vigas como toupeiras em um gramado. Escrivaninhas e arquivos foram colocados lado a lado, o centro do espaço permanecendo vazio, como se as grandes instalações fossem usadas regularmente como passagem pelos fundos.

As portas duplas em frente eram feitas de aço e tinham alarme de segurança conectado a elas...

– Talvez eu possa lhe ajudar.

Não foi uma pergunta.

Ela deu meia volta.

Um dos seguranças a seguiu para dentro e estava parado com seus pés separados e sua jaqueta aberta, como se tivesse uma arma ali.

Revirando os olhos, ela acenou com uma mão e o pôs num transe temporário. Então, colocando um pensamento em sua mente que não havia nada de anormal acontecendo, ela o enviou de volta ao seu posto – onde ele relataria ao seu grande amigo bundão, que de fato não havia nada de incomum acontecendo.

Não era exatamente uma ciência espacial com esses homo sapiens. Mas só por segurança, ela fritou as câmeras de segurança enquanto ia para as portas de trás. Merda. Um olhar para o modo como os painéis de aço estavam conectados e ela decidiu não seguir em frente e arriscar um incidente envolvendo a polícia.

Se quisesse estar no beco teria que trabalhar por isso.

Xingando, ela voltou para a festa. Levou uns bons dez minutos para abrir caminho através de todas aquelas pessoas de gosto questionável e ego indiscutível, e logo que estava do lado de fora no ar da noite, ela se desmaterializou até o telhado e caminhou para o outro lado.

O carro de Assail estava estacionado no beco abaixo, virado para a saída.

E ela não era a única olhando para ele…

Puta... Merda...

Xcor estava nas sombras esperando pelo macho também.

Tinha que ser ele – quem quer que fosse tinha um bloqueio em seu âmago a tal ponto, que havia uma pequena superestrutura a ser lida: por hábito ou por trauma, ou provavelmente um pouco de ambos, as três dimensões se encolheram uma na outra até que formaram uma massa firme e retorcida, que era impossível para ela conseguir uma merda sobre qualquer emoção.

Cara, ela viu impressões como estas de tempos em tempos. Geralmente significavam problemas reais, enquanto o indivíduo era capaz de tudo.

Por exemplo, você precisaria justamente deste tipo de núcleo fechado para ter bolas para fazer uma corrida para o rei.

Aquele era seu alvo. Ela sabia disso.

E agora que se trancou naquela mente mutilada, ela recuou, desmaterializando-se para o telhado de um edifício alto, um quarteirão distante dali. Ela não queria assustar o filho da puta ficando muito perto, e daqui ela ainda tinha uma linha de visão adequada para o Jaguar.

Merda, se seu radar apenas tivesse um alcance maior: ela poderia ir talvez uma milha com seu lado symphath, mas aquilo a estava empurrando, seus instintos fortalecidos, só que de curto alcance. Então se ele se desmaterializasse para uma grande distância? Ela o perderia…

Enquanto esperava, ela se perguntou mais uma vez sobre a conexão de Xcor com Assail. Infelizmente para aquele aristocrata, se ele estivesse financiando a revolta, mesmo indiretamente, ele mesmo se encontraria direto sob fogo cruzado.

Nem era um bom lugar para estar.

Cerca de meia hora mais tarde, Assail surgiu da parte de trás da galeria.

Ele sabia que o outro macho estava ali… E proferiu algum tipo de comentário precisamente para onde Xcor estava.

A brisa fria e o barulho da cidade matou o som de qualquer troca ocorrida entre o par, mas ela não precisava de dublagem para entender a essência: as emoções de Assail mudavam até que ela teve que aprovar a antipatia e desconfiança que ele sentia em direção a quem ele estava falando. O macho fechadão, naturalmente, não dava nada de graça.

E então Assail decolou. E a outra mente também.

Ela seguiu o rastro do último.

 

Como tantas coisas na vida, em retrospecto, o que aconteceu com Autumn por volta das onze horas da noite fazia sentido. Os indícios estiveram lá por meses, mas como costumava acontecer nesses casos, quando você estava deixando a vida lhe levar, acabava interpretando mal os sinais, lia errado a posição da agulha na bússola, confundindo uma coisa pela outra.

Até que estivesse num destino que não era nada com o que você teria escolhido, e não era algo que você poderia se afastar.

Ela estava no centro de treinamento, levando uma pilha de lençóis quentes da secadora quando a tempestade a atingiu.

Depois, muito depois, uma vida mais tarde, ela se lembraria com clareza de sentir aquele calor suave contra seu tórax, o calor escavando em seu ventre e fazendo o suor brotar em sua testa.

Ela lembraria para sempre de se virar para o lado e colocar os macios lençóis brancos no balcão.

Porque quando ela deu um passo para trás, ela sentiu seu período de necessidade bater pela segunda vez em sua vida.

A princípio parecia como se ainda estivesse segurando os lençóis, o calor permanecendo com ela junto com um peso em sua barriga, como se ainda estivesse carregando um fardo.

Enquanto a transpiração escorria pelo seu rosto, ela deu uma olhada para o termostato na parede, pensando que estava com defeito ou posicionado numa temperatura muito elevada. Mas não, estava marcando vinte e um graus.

Com o cenho franzido ela baixou o olhar para si mesma. Embora vestisse apenas uma camiseta e o que eles chamavam de “calças de ioga”, era como se estivesse com a parka que usou lá fora com Xhex...

Uma câimbra percorreu seu baixo ventre, socando suas entranhas, suas pernas cambaleando até que não teve escolha a não ser se permitir descer para o chão. E isso era uma coisa boa, pelo menos temporariamente. O concreto estava frio e se estendeu sobre ele – até que a próxima grande crise a agarrou.

Pressionando suas mãos em sua pélvis, ela se enrodilhou toda tensa, lançando sua cabeça para trás enquanto tentava escapar do que avassalava seu corpo.

E então aquilo começou.

Seu sexo, que esteve latejando um pouco desde que ela e Tohr ficaram juntos naqueles ásperos e intensos acasalamentos antes dele partir, ganhou sua própria pulsação, seu núcleo implorando pela única coisa que lhe daria alívio.

Um macho...

O desejo sexual bateu tão violentamente que não poderia ter resistido se tivesse que fazer, não poderia ter pensado em qualquer outra coisa que escolhesse, não poderia ter falado palavras inteligíveis se quisesse.

Isto era muito pior do que foi com o symphath.

E isso era culpa sua… Isso era tudo culpa sua…

Ela não foi até o Santuário. Isso foi… Querida Virgem Escriba, passaram-se meses desde que permaneceu neste Outro Lado para regular o seu ciclo. Na verdade não houve necessidade de se renovar com sangue porque Tohr a alimentou, e não queria perder nenhum momento com ele.

Ela deveria saber que isso aconteceria...

Cerrando os dentes, ela arquejou duramente através de outro pico. Então, justamente quando cedeu e ela estava prestes a gritar por socorro, a porta se abriu de fora a fora.

O Dr. Manello parou bruscamente, seu rosto uma máscara de confusão.

– O que...

Ele caiu contra o umbral da porta, e abruptamente cobriu a frente dos seus quadris com as mãos.

– Você está bem?

Com o desejo aumentando novamente, ela captou uma imagem fugaz dele saindo da posição em que ele se encontrava parado, entretanto suas pálpebras pesaram e seu maxilar se trancou e ela ficou momentaneamente perdida.

De longe ela o ouviu dizer.

– Deixe-me trazer a Jane.

Buscando mais o chão frio, Autumn rolou de costas, mas como seus joelhos não se desdobraram, ela não teve contato suficiente com a superfície. Virou de lado. Então de bruços, embora suas pernas quisessem recuar contra seu peito.

Empurrando-as para baixo com suas mãos, ela tentou assumir o controle da sensação e manipular sua posição, tentou achar outro arco, fôlego ou estender seus braços ou coxas para trazer alívio.

Não havia nenhum. Ela estava no meio da cova dos leões, dentes enormes de necessidade mordendo dentro dela, rasgando sua carne, quebrando seus ossos. Este era o auge daquelas ondas de calor que ela confundiu com picos de paixão, e as rajadas de calafrios que ela atribuiu a premonições, e os surtos de náuseas que ela culpou às grandes refeições. Isso era exaustão. O apetite. Provavelmente o sexo quente que ela teve ultimamente com Tohrment.

Conforme gemia, ela ouviu seu nome e pensou que alguém estava falando com ela. Mas não foi até que o desejo diminuiu que ela pode abrir seus olhos e ver que sim, de fato ela não estava sozinha.

Doutora Jane estava ajoelhada diante dela.

– Autumn, você pode me ouvir?

– Eu…

A mão pálida da curadora tirou os fios loiros embaraçados para longe do seu rosto.

– Autumn, acho que esta é a sua necessidade, estou certa?

Autumn acenou até que a onda de hormônios ressurgiu, roubando-a de tudo, menos da necessidade premente de alívio sexual.

Que seu corpo sabia que poderia vir apenas de um macho.

Seu macho. O que ela amava.

Tohrment…

– Ok, ok, vamos chamá-lo...

Autumn estendeu uma mão e agarrou o braço da outra mulher. Forçando seus olhos a trabalhar, ela prendeu a curandeira com uma dura exigência.

– Não o chame. Não o ponha nessa posição.

Isso o mataria. Atendê-la em sua necessidade? Ele nunca faria isso – sexo era uma coisa, mas ele já havia perdido um filho...

– Autumn, querida… A escolha é dele, você não acha?

– Não o chame… Não se atreva a chamá-lo...

 

Qhuinn odiava as noites de folga. Desprezava completamente.

Quando se sentou em sua cama, olhando fixamente para uma TV que não estava ligada, ficou claro para ele que não havia assistido nada durante quase uma hora. Ainda assim, pegar o controle remoto e escolher um canal parecia ser apenas uma trabalheira danada para muito pouco em troca.

Droga, estava há apenas a algumas milhas do que poderia correr no ginásio. Apenas algumas navegadas que poderia fazer na internet. Um número limitado de viagens que poderia fazer para cima e para baixo na cozinha…

Sim, e este último era especialmente verdade, já que Saxton ainda estava usando a biblioteca como seu escritório pessoal. Aquelas “coisas supersecretas do rei” o estavam deixando mais maluco que nunca.

Ou isso ou ele estava ficando muito distraído. Por um certo ruivo...

Ok, não vá por aí. Não.

Qhuinn consultou seu relógio novamente. Onze horas.

– Porra.

Sete e meia da noite estava a uma eternidade de distância.

Mudando seus olhos para a parede lisa do outro lado, ele apostava que John Matthew estava na porta ao lado, trancado na mesma monotonia. Talvez eles devessem sair e tomar uma bebida em algum lugar.

Então, novamente, dane-se. Ele realmente queria se dar ao trabalho de se vestir só para tomar uma cerveja com um bando de humanos bêbados e excitados? Em um determinado momento ele teria que fazer sexo com eles. Agora, a perspectiva de toda aquela patética ânsia induzida pelo álcool o deprimia demais.

Ele não queria estar em casa. Não queria sair.

Cristo, ele não tinha certeza se até mesmo queria estar lutando, no que dizia respeito a esse assunto. A guerra parecia apenas uma fatia ligeiramente mais interessante nesse vazio.

Oh, pelo amor de Deus, qual era o seu problema...

Seu telefone fez um bip ao seu lado e o levantou sem qualquer interesse real. O texto não fazia nenhum sentido; Todos os machos ficam na casa principal. Não entrar no centro de treinamento. Grata, Dra. Jane.

Hein?

Ele se levantou, agarrou um roupão e foi até John. A batida na porta foi imediatamente respondida por um assovio.

Colocando sua cabeça pra dentro, ele achou seu amigo na mesma posição em que ele mesmo estava antes – exceto que a TV de plasma estava ligada. 1000 maneiras de morrer[29] no Spike TV. Legal.

– Você recebeu esse texto?

Qual?

– Da Drs. Jane. – Qhuinn virou seu celular. – Alguma ideia?

John leu e deu de ombros.

Nenhuma pista. Mas eu já malhei. Você?

– Também. – Ele caminhou ao redor do quarto. – Cara, é só eu ou o tempo está se arrastando?

O assovio que ele soltou em resposta foi um grande e redondo sim.

– Você quer sair? – Ele perguntou com todo o entusiasmo de alguém sugerindo uma viagem para ir a um salão fazer as unhas.

O movimento na cama atraiu seus olhos ao redor: John estava de pé e se dirigindo ao seu closet.

Atravessado profundamente na pele de suas costas, o nome de sua shellan estava esculpido no Velho Idioma:

 

                     XHEXANIA

 

Pobre coitado…

Enquanto o macho vestia uma camisa preta de mangas compridas e cobria seu traseiro nu com couro, Qhuinn deu de ombros. Calculou que iriam tomar uma cerveja.

– Vou colocar uma roupa e já volto.

Saindo para o corredor, ele franziu o cenho… E seguiu o instinto que o compelia a pular até o patamar que levava a entrada.

Debruçando-se sobre o parapeito folheado a ouro, ele gritou.

– Layla?

Ante o eco do seu nome, a fêmea emergiu da sala de jantar.

– Oh, oi. – Seu sorriso era automático e vazio, sua expressão o equivalente a uma parede em branco. – Como está se saindo?

Ele teve que rir.

– Você sempre me surpreende com essa alegria extrema.

– Eu sinto muito. – Ela pareceu chateada por sua distração. – Não quis ser rude.

– Não se preocupe com isso. O que está fazendo aqui? – Ele sacudiu sua cabeça. – O que eu quero dizer é, você foi convocada?

Alguém voltou pra casa ferido? Blay, por exemplo…

– Não, não tenho nada para fazer. Estou só jogando conversa fora, como vocês dizem.

Pensando nisso, todo cair da noite ela vinha fazendo muito isso, só rondando por aí, vadiando como se estivesse esperando por algo.

Ela estava diferente, ele pensou de repente. Ele não podia se meter, mas ultimamente ela mudou. Solene. Menos rápida para sorrir. Séria.

Para colocar em termos humanos, ele supôs que ela fora uma menina durante o tempo que ele a conheceu. Agora ela estava começando a parecer com uma mulher. Não mais admirada com os olhos arregalados sobre tudo que este lado da fronteira tinha a oferecer. Não mais brilhando de entusiasmo. Não mais…

Merda, ela parecia bastante como ele e John estavam. Desgastados pelo mundo.

– Ei, quer sair com a gente? – Ele perguntou.

– Sair? Como em…

– John e eu vamos tomar uma bebida. Talvez duas. Talvez mais. Acho que você devia vir com a gente. Afinal, a miséria adora companhia.

Ela se abraçou.

– É tão óbvio?

– Você ainda está linda.

Layla riu.

– Você está sendo encantador.

– Donzela em perigo, você sabe o que fazer. Venha com a gente, vamos apenas matar algum tempo.

Ela olhou ao redor. Então, ela contornou e subiu as escadas. Quando chegou ao topo olhou fixamente para ele.

– Qhuinn… Eu posso, por favor, lhe perguntar uma coisa?

– Contanto que não seja tabuada de multiplicar. Sou péssimo em matemática.

Ela riu um pouco, mas rapidamente perdeu a leveza.

– Você já pensou que a vida seria tão… Vazia? Algumas noites eu me sinto como se pudesse sufocar com o vazio.

Jesus, ele pensou. Sim, ele já pensou.

– Venha aqui. – disse a ela. Quando ela deu um passo em sua direção, ele a puxou para perto, aconchegando-a contra seu peito e descansando o queixo no topo da sua cabeça. – Você é uma fêmea tão boa, você sabe disso?

– Você está sendo encantador novamente.

– E você ainda está angustiada.

Ela relaxou em seus braços.

– Você é muito bom para mim.

– Digo o mesmo.

– Não é você, sabe. Eu não estou ansiando mais por você.

– Eu sei. – Ele esfregou suas costas como um irmão faria. – Então me diga com quem você está saindo, mas fique avisada. Eu poderia simplesmente fazer você me dizer de quem você está sentindo falta.

O modo como ela se afastou e baixou seus olhos disse a ele que sim, havia um macho envolvido, e não, ela não daria voluntariamente qualquer informação.

– Vou precisar de algumas roupas.

– Vamos tentar o quarto de hóspedes. Acho que vamos encontrá-las ali. – Ele pôs um braço ao redor dos seus ombros e a levou corredor abaixo. – E quanto a esse seu Joe Shmoe[30], prometo não bater nele, a menos que ele parta seu coração. Então eu poderia ter que fazer algum trabalho dental no desgraçado.

Quem diabos poderia ser? Ele se perguntou. Todos na casa estavam vinculados.

Talvez fosse alguém que ela conheceu quando estava no norte, no grande acampamento de Phury? Mas quem deixaria o cara entrar?

Poderia ser um dos Sombras? Hmm… Aqueles bastardos eram machos de valor, com certeza o tipo de coisa que podia definitivamente virar a cabeça de uma fêmea.

Cara, ele desejava que fosse outra coisa, por causa dela. O amor era duro, mesmo que boas pessoas estivessem envolvidas.

No quarto de hóspedes ele encontrou uma calça jeans e um casaco de lã pretos. Ele não gostava da ideia dela em alguma minissaia – não só porque isso ofendia suas sensibilidades delicadas, mas ele não precisava do Primale fazendo qualquer serviço dentário nele.

Quando eles saíram, John estava esperando no corredor, e se ele ficou surpreso por se juntar à Escolhida não mostrou muita reação. Em vez disso ele foi gentil com Layla, conversando com ela através de gestos labiais enquanto Qhuinn vestia roupas adequadas.

Uns dez minutos mais tarde os três se desmaterializaram no centro da cidade – porém não nos bares: nem ele nem John estavam interessados em escoltar uma Escolhida dentro do Screamer’s ou no Iron Mask. Em vez disso eles acabaram no bairro do teatro, num lugar que servia sobremesas, ficava aberto até uma da manhã e servia licor de chocolate, bem como aquelas coisinhas envolvidas no que quer que sejam cobertas com blá-blá-blá num prato escaldante, hum, sim. As mesas eram pequenas, as cadeiras também e eles se sentaram em frente à saída de emergência traseira, acautelando-se quando a garçonete continuava a matraquear sobre os especiais do dia, nenhum dos quais eram apelativos.

A seleção da cerveja foi misericordiosamente curta e ao ponto.

– Duas Black e Tan[31] para nós. – ele disse. – E para a dama?

Quando ele olhou de relance para Layla, ela balançou sua cabeça.

– Não consigo me decidir.

– Pegue dois do que mais lhe apetecer.

– Certo… Vou querer o Crème Brûlée e a Torta Lua[32]. E um cappuccino, por favor.

A garçonete sorriu enquanto escrevia em seu bloco.

– Adoro seu sotaque.

Layla inclinou sua cabeça graciosamente.

– Obrigada.

– Não posso localizá-lo, francês e alemão? Ou… Húngaro?

– Aquelas cervejas cairiam bem agora. – Qhuinn disse firme. – Estamos com sede.

Quando a mulher saiu, ele examinou cuidadosamente os outros clientes, marcando seus rostos e cheiros, escutando a conversa, imaginando se havia algum ataque vindo. Do outro lado John estava fazendo o mesmo. Por que sim, era tão relaxante levar uma Escolhida para passear mundo afora.

– Nós não somos uma companhia muito boa. – ele disse para Layla depois de um tempo. – Desculpe.

– Eu também não. – Ela sorriu para ele e depois para John. – Mas estou gostando de estar fora de casa.

A garçonete voltou com o pedido e todos se afastaram da mesa enquanto copos, pratos, xícaras e pires eram dispostos.

Qhuinn agarrou seu copo alto assim que a barra ficou limpa.

– Então nos conte sobre ele. Somos de confiança.

Do outro lado da mesa, John parecia como alguém que teve as bochechas da sua bunda agarradas e apertadas, especialmente quando Layla corou.

– Qual é. – Qhuinn tomou um gole de sua cerveja. – É óbvio que se trata de um macho e John não dirá uma palavra.

John olhou por cima dela e assinalou; em seguida Qhuinn se exibiu em grande velocidade.

– Ele diz, hã, que ele é mudo. – Qhuinn traduziu. – E se você não sabe o que significa aquele gesto final, não serei eu a dizer. – Layla riu e levantou seu garfo, rompendo a superfície dura do Crème Brûlée.

– Bem, realmente estive esperando vê-lo novamente.

– É por isso que estava rondando por aí?

– É errado?

– Deus, não. Você é sempre bem-vinda, você sabe disso. Mas quem é o cara sortudo?

Ou morto, dependendo…

Layla respirou profundamente e deu duas garfadas da sua primeira sobremesa – como se a coisa fosse um V&T.

– Promete que não vai contar a uma alma?

– Sinal da cruz, prometo morrer, toda essa merda.

– Ele é… Um dos seus soldados.

Qhuinn baixou seu copo para a mesa.

– Desculpe?

Ela ergueu sua xícara e sorveu da beirada.

– Lembra quando aquele lutador entrou no centro de treinamento por volta do outono, ele estava com você contra os lessers? Ele foi ferido gravemente e vocês foram cuidar dele?

Enquanto John se sentava endireitando-se alarmado, Qhuinn engoliu seu próprio porra-dos-infernos e sorriu suavemente.

– Oh, sim. Nós nos lembramos.

Throe. Segundo tenente do Bando dos Bastardos.

Puta merda, se ela pensou que estava com ele, eles tinham um problemão.

– Eeeee... – ele iniciou, forçando sua voz a se manter estável. Boa coisa que ele baixou o Guinness, ele estava estressado o suficiente para esmagar o copo.

Então novamente, ele supôs que a merda poderia ser pior. Throe não seria capaz de chegar em nenhum lugar perto dela...

– Ele me chamou.

Layla começou a beliscar sua torta lua, e foi uma maldita boa coisa. Ele e John, ambos desnudaram suas presas.

Humanos, ele lembrou a si mesmo. Eles estavam em público com os humanos… Agora não era hora para exposição canina. Mas porra…

– Como? – Ele silvou, só para falar novamente. – Quero dizer, você não tem um telefone celular. Como ele chegou até você?

– Ele me convocou. – Enquanto ela fazia um gesto com sua mão como se não fosse grande coisa, ele disse ao seu homem das cavernas interior para fechar o bico, filhinho. Haveria tempo para resolver os comos mais tarde. – Eu fui e ali havia outro soldado, ferido gravemente. Oh, Deus, ele foi tão espancado.

Tentáculos de puro pânico arrepiaram toda a volta do pescoço dele e se fixaram no seu peito, aumentando sua frequência cardíaca. Não… oh, merda… não...

– Não entendo por que os machos são tão teimosos. Eu disse a eles que o trouxessem para a clínica, mas disseram que ele só precisava se alimentar. Ele estava tendo dificuldade de respirar e… – Layla se fixou na torta lua como se fosse uma tela, como se estivesse se lembrando de cada coisa que tinha acontecido. – Eu o alimentei. Quis cuidar dele ainda mais, mas o outro soldado parecia estar com pressa de levá-lo embora. Ele era… Poderoso, tão poderoso, mesmo ferido. E quando ele olhou pra mim... Eu me senti como se ele estivesse me tocando. Foi como nada que eu já conheci antes.

Qhuinn disparou um olhar para John sem mover sua cabeça.

– Como ele se parecia?

Talvez ele fosse um dos outros. Talvez não fosse...

– É difícil dizer. Seu rosto estava bastante ferido, esses lessers são cruéis. – Ela levou sua mão até a boca. – Seus olhos eram azuis e seu cabelo escuro… Seu lábio superior era retorcido...

Enquanto ela continuava falando, a audição de Qhuinn fez uma pausa.

Alcançando-a, ele pôs sua mão em seu braço a interrompendo.

– Amor, um momento. Esse primeiro soldado lhe chamou para onde?

– Era um prado. Um campo numa fazenda.

Como se um litro de sangue fosse drenado de sua cabeça, John começou a abrir sua boca e formar vários palavrões e estava malditamente certo sobre tudo aquilo. A ideia de Layla sair sozinha de noite e indefesa, não apenas com Throe, mas com o coração da besta?

Mais ainda… Puta merda, ela alimentara o inimigo.

– O que está errado? – Ele a ouviu perguntar. – Qhuinn…? John…? Qual é o problema?

 

No outro lado da cidade, no Distrito Meatpacking, Tohr sacou as duas adagas negras preparando-se para atacar. Z e Phury estavam apenas a uma quadra longe dele, mas não havia nenhuma razão para chamá-los e não por que ele desejasse a merda do desejo da morte de novo.

Estes dois lessers à sua frente estavam sofrendo de um caso fantástico de vagabundagem, eles estavam apenas andando relaxadamente juntos como se não tivessem nada melhor para fazer do que gastar as solas de suas botas.

A Sociedade estava recrutando mais membros, pensou, cavando mais fundo na piscina dos canalhas antissociais. E, então, uma vez que eles eram admitidos, os filhos de uma cadela não estavam recebendo suporte ou treinamento suficientes.

Ao seu lado, o telefone vibrou quando um texto apareceu, mas ele ignorou partindo em uma corrida. A cobertura de neve ajudou a abafar o som de suas botas, e graças ao ar frio soprando nele, ele não exalava nenhum cheiro, impedindo-os de percebê-lo – não que estes tolos perceberiam.

No último instante, no entanto, alguma coisa caiu às suas costas e eles olharam para trás.

Ele não poderia ter pedido uma resposta melhor.

Ele cravou os dois no pescoço, o que rasgou suas carótidas, abrindo uma segunda boca abaixo de seus queixos. Conforme suas mãos subiam, ele rasgava o espaço entre elas e rodou ao redor, pronto para escoltá-los ao chão, se necessário.

Oh, mas não. Os maricas já estavam de joelhos.

Assobiando entre os dentes, ele sinalizou para os outros sacando seu telefone para ligar solicitando a limpeza de Butch.

Ele congelou. O texto que tinha chegado era da Dra. Jane: eu preciso que você venha para casa agora.

– Autumn…? – Quando seus Irmãos vieram derrapando ao virar a esquina, ele olhou para cima. – Eu tenho que ir.

Phury franziu a testa.

– O que está acontecendo?

– Eu não sei.

Ele se desmaterializou no mesmo lugar, andando como um fantasma ao norte. E se ela estivesse machucada? Talvez em baixo trabalhando na clínica? Ou... O inferno do caralho. E se ela estiver fora, na cidade com Xhex e alguém a tinha agredido?

Quando se materializou nos degraus em frente à mansão, ele quase quebrou as portas do vestíbulo. Boa coisa Fritz reduzir a necessidade de um carpinteiro e dar conta das necessidades internas rapidamente.

Tohr passou voando pelo mordomo em uma corrida mortal. Ele estava malditamente certo que o sujeito estava conversando com ele, mas não houve nenhum sinal desta ou de qualquer outra conversa. Alcançando a porta secreta debaixo da escada, ele saiu em uma corrida rápida em disparada pelo túnel subterrâneo.

A primeira pista de que algo estava errado chegou quando ele irrompeu no almoxarifado e no escritório.

Seu corpo enlouqueceu, os sinais de seu cérebro isolados por uma interferência e uma mudança de foco que não fazia sentido: uma ereção, espessa e comprida, perfurou seu couro, sua cabeça nadando com uma súbita e esmagante necessidade de chegar até Autumn e...

– Ah, porra... Não... – O som áspero de sua voz foi cortado por um grito emitido de algum lugar do corredor, estridente e horrível, era o de uma fêmea com uma dor horrível.

Seu corpo respondeu imediatamente, tremendo quando uma necessidade absoluta o atingiu. Ele tinha que chegar a Autumn, a menos que ele a servisse, ela ia passar as próximas dez ou doze horas no inferno, ela precisava de um macho dentro dela, cuidando dela...

Tohr avançou para a porta de vidro, braço estendido, a mão pronta para empurrar a frágil barreira transparente de lado.

Ele simplesmente segurou-se enquanto abria caminho.

Que diabos ele estava fazendo? Que diabos ele estava fazendo?

Outro grito ecoou até ele quando uma onda de instinto sexual quase o deixara de joelhos. Enquanto obscurecia o seu raciocínio mais lógico novamente, seus padrões de pensamentos paralisaram quando tudo em que ele podia pensar era estar montando Autumn e aliviar seu tormento.

Mas quando os hormônios baixaram, o seu cérebro começou a funcionar novamente.

– Não – ele gritou. – Não, de jeito nenhum.

Afastando-se da porta, ele se movimentou para trás até que bateu na mesa e segurou a única coisa que o impedia de dar uma próxima investida.

Imagens da necessidade de Wellsie, aquela quando tinham concebido seu filho, e o ataque incessante tão inegável quanto seu corpo solicitava. Sua Wellsie sofreu tanta dor, a dor incapacitante...

Ele tinha ido para casa antes do amanhecer, com fome, cansado, pensando que estava indo desfrutar de uma boa refeição e um pouco de TV ruim antes de adormecerem um contra o outro... Mas assim que ele entrou na sua garagem, ele teve a mesma resposta com a qual lutava agora: um impulso irresistível para acasalar.

Havia apenas uma coisa que causava esse tipo de reação.

Wellsie seis meses antes, fê-lo jurar, sobre a base sagrada do seu acasalamento, que quando ela entrasse no próximo estado de necessidade, ele não a drogaria. Cara, eles tiveram uma briga por causa disso. Ele não queria perdê-la no parto, como um monte de machos compromissados, ele ao contrário teria permanecido sem filhos para o resto de suas longas vidas juntos, do que ficar sem nada.

E sobre você lutar? Ela gritou com ele. Você enfrenta sua própria maldita morte de parto a cada noite.

Ele agora não conseguia lembrar o que ele havia dito a ela na época. Sem dúvida, ele tentou acalmá-la, mas não funcionou.

Algo acontece com você, ela disse, eu também não tenho nada. Você acha que eu não passo por esse prova, todas as fodidas noites?

O que ele havia dito? Foda-se, ele não sabia. Mas ele podia imaginar seu rosto claro como o dia quando ela olhou para ele.

Eu quero um jovem, Tohr. Um pedaço de nós dois, juntos. Eu quero uma razão para continuar vivendo, se você não quer... Porque é isso que eu vou ter que fazer. Vou ter que continuar vivendo.      

De maneira nenhuma eles sabiam que ele seria o único deixado para trás. Que o jovem não existiria por que ela morreu. Que todas as coisas que lutaram naquela noite não foram as preocupações corretas.

Mas a vida era assim. E assim que ele entrou em casa, ele quis chamar Havers, tinha até mesmo ido até o telefone. Mas no final, como de costume, ele não tinha sido capaz de negar nada a ela.

E ao invés do sangramento após o período de necessidade ter passado, ela estava grávida. Excitação mal conseguia descrever sua alegria...

O grito seguinte foi tão alto, que foi um milagre não quebrar a porta de vidro.

Jane invadiu o escritório.

– Tohr! Escute, eu preciso da sua ajuda.

Com as mãos em garra segurando a borda da mesa para se manter no lugar, ele sacudiu a cabeça como um louco.

– Eu não vou fazer isso. Eu não vou servi-la de forma alguma. Eu não vou fazer isso, eu não vou fazer isso, eu não vou fazer isso.

Balbuciando, ele estava malditamente tagarelando. Ele nem sequer ouvia suas próprias palavras quando começou a levantar a mesa e batê-la no chão repetidas vezes, até que algo duro e pesado caiu no chão.

Em algum lugar no fundo da sua mente, ele pensava vagamente que era malditamente irônico estar pirando nesta sala novamente.

Ele descobriu que Wellsie estava morta aqui.

Jane ergueu as mãos para cima.

– Não, espere, eu preciso de sua ajuda, mas não dessa forma.

Outra onda de instinto o fez cerrar os dentes e teve que inclinar a parte superior do seu corpo enquanto ele amaldiçoou.

– Ela me disse para não chamá-lo.

Então porque ele estava aqui? Ah, inferno sangrento, o desejo.

– Então por que você me enviou um texto!

– Ela não vai tomar nenhuma droga.

Tohr balançou a cabeça somente uma vez na tentativa de melhorar sua audição.

– O quê?

– Ela está recusando as drogas. Eu não posso drogá-la sem o seu consentimento, e eu não sei mais quem chamar. Eu não posso localizar Xhex e mais ninguém é próximo a ela. Ela está sofrendo.

– Drogue-a de qualquer jeito.

– Ela é mais forte do que eu. Eu não consigo nem levá-la de volta a cama sem que ela me expulse. Mas isso não é ético, eu não posso tratar alguém que não me deixa. Eu não vou fazer isso. Talvez você possa falar com ela?

A essa altura, os olhos de Tohr começaram a planejar e, na verdade, centrou-se na fêmea. Seu casaco branco estava rasgado, uma lapela pendurada, descuidadamente suspensa como se fosse um retalho de pele branca.

Tohr pensou sobre Wellsie em sua necessidade. Quando ele desceu para seu quarto, parecia que o lugar tinha sido saqueado. A mesa de cabeceira e tudo em cima dela no chão e quebrado. O rádio relógio no chão. Os travesseiros fora do colchão, os lençóis rasgados.

Ele encontrou sua mulher do outro lado, no tapete, em uma bola de agonia. Ela estava nua, ruborizada e suada embora estivesse fria.

Ele nunca esqueceria o jeito que ela olhou para ele e, em meio às lágrimas, implorou para ele dar o que ela precisava.

Tohr a havia montado totalmente vestido.

– Tohr...? Tohr...?

– Os outros machos já estão em quarentena? – ele murmurou.

– Sim. Eu mesma tive que enviar Manny para longe. Ele estava...

– Sim. – O cara estava provavelmente chamando Payne do campo. Ou isso, ou gastar um tempo significativo com a mão esquerda. Uma vez que o macho era exposto, ele permanecia duro por algum tempo mesmo que deixasse a vizinhança.

– Eu também disse a Ehlena e ela precisa ficar longe. Eu acho que o ciclo de uma fêmea pode afetar as outras? E ninguém quer estar grávida por aqui.

Tohr pôs as mãos nos quadris e inclinou a cabeça, juntando a merda. Disse a si mesmo que não era um animal para tomar Autumn em qualquer cama que ela estivesse deitada. Ele não era...

Merda, o quanto ele estava disposto a confiar nessa resolução? E o que diabos ela estava pensando? Por que diabos ela não estava tomando os medicamentos?

Talvez isto fosse um plano. Para levá-lo a serví-la.

Ela poderia ter calculado isso?

O próximo grito foi de cortar o coração e ele ficou puto. Ao despertar, ele disse a si mesmo para virar-se para o armário de suprimentos e colocar a coisa em bom uso, exceto que ele não poderia deixar a Dra. Jane. Com certeza, ela tentaria outra vez ajudar Autumn e levar outra patada.

Ele olhou para a curadora.

– Vamos descer juntos, e eu não me importo se ela consentir ou não. Você vai deixá-la fora dessa miséria, mesmo que eu tenha que amarrá-la, porra.

Tohr tomou algumas respirações, levantando seu ânimo.

Jane estava falando com ele, sem dúvida jogando todo o tipo de ética, isso é imoral, ele não estava ouvindo.

Esse passeio pelo corredor durou muito? A cada passo as necessidades de seu corpo se apertavam, transformando-o em uma bomba de instinto. Até o ponto em que ele chegou à porta da sala de recuperação, ela estava lá, ele estava curvado agarrando-se na virilha, na frente da Dra. Jane. Seu pênis estava latejando, seus quadris tensos...

Ele abriu a porta.

– Pooooorra...

Seus ossos quase se partiram em dois, metade dele foi jogado para frente e a outra metade teve que se segurar no batente de aço.

Autumn estava na cama, com um joelho até o peito, a outra perna estendida em um ângulo torturado. Seu movimento torceu firme em volta da cintura, toda molhada de suor, o cabelo uma bagunça de emaranhado em torno de sua cabeça. E havia manchas de sangue perto de sua boca, ela provavelmente havia mordido seu lábio.

– Tohrment... – sua voz fraca aumentou. – Não... Vá embora...

Ele cambaleou até a cama e colocou o rosto diante dela.

– É hora de parar com isso.

– Vá... Embora... – seus olhos injetados encontraram os dele sem se concentrar, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto espetacularmente colorido, os hormônios inundando sua pele com um tom de pêssego como se ela fosse antiga, uma fotografia pintada à mão. – Vai... Não...

O grunhido que cortou a palavra aumentou em volume para outro grito.

– Dê as drogas, – ele se virou para a curadora.

– Ela não vai tomá-los.

– Tomará. Talvez você precise do seu consentimento, mas tenho certeza que ela não...

– Fale com ela primeiro.

– Não. – Autumn gritou.

O inferno começou naquele momento, todo mundo gritando um com o outro até que veio a próxima onda e atingiu Autumn e ele mesmo, os dois mais uma vez cederam sobre a pressão.

O aparecimento de Lassiter foi registrado entre um batimento cardíaco e uma onda de alívio, deixando a próxima rodada de discussão para depois? O anjo se aproximou da cama e estendeu a sua mão.

Autumn acalmou imediatamente, os olhos rolando para trás em sua cabeça, seus membros relaxados. Tohr estava aliviado, assim como ele, ao menos sofrimento dela tinha recuado.

Ele ainda estava dominado pela necessidade, mas ela já não iria se matar.

– O que você está fazendo com ela? – a Dra. Jane perguntou.

– Apenas um transe. Isso não vai durar.

Ainda assim, essa merda foi impressionante. Mentes de vampiros eram mais fortes que as de humanos e, o fato de que o anjo poderia anular esse tipo de reação em seu estado, sugeria que ele tinha alguns truques especiais guardados na manga.

Os olhos de Lassiter voltaram-se para Tohr:

– Você tem certeza?

– Sobre o quê? – ele retrucou. Porra, estava a meio caminho de perder sua mente aqui.

– Em servi-la em sua necessidade.

Tohr riu em uma explosão fria.

– Não nesta vida. Nunca.

Para provar o seu ponto, ele pulou para a direita, onde uma bandeja de seringa repousava à sua espera, claramente destinada a Autumn. Agarrando os dois, ele fincou na coxa e injetou o que estava dentro.

Muita gritaria, a esta altura, mas não durou muito. O coquetel de drogas teve efeito e ele caiu no chão.

A última imagem que passou na porra de seus olhos nebulosos foi de Autumn vendo-o cair no chão.

 

Enquanto Qhuinn e John olhavam fixamente para ela com expressões cuidadosamente em branco, Layla se endireitou na dura cadeira que estava acomodada.

Olhando ao redor do restaurante, ela viu apenas humanos calmamente apreciando pequenas porções confeccionadas iguais às que estavam em seu prato, sendo assim difícil de entender o que estava errado.

– É algo do lado de fora? – Ela sussurrou, inclinando-se para frente. De um modo geral, ela achava que os humanos eram quase o mesmo que os vampiros, apenas tentando viver suas vidas sem interferência. Mas estes dois machos poderiam saber caso contrário.

Qhuinn olhou para ela e sorriu de um modo que não alcançava seus olhos. – Depois que você alimentou o macho, o que você fez? O que eles fizeram?

Ela franziu a testa, desejando que eles lhe dissessem o que estava errado. – Ah… Bem, eu tentei conversar com eles e trazê-los para o centro de treinamento. Eu imaginei que desde que seu companheiro tinha sido tratado lá, ele poderia ser também.

– Você acredita que seus ferimentos poderiam ter sido fatais?

– Se eu não chegasse lá a tempo? Sim, eu acho. Mas ele apresentava uma aparência melhor quando eu parti. Sua respiração estava muito melhor.

– Você se alimentou dele.

Agora o tom da voz de Qhuinn era terrível. A tal ponto que, se os limites de seu relacionamento não estivessem bem definidos, ela poderia ter pensado que ele estava com ciúmes.

– Não, eu não o fiz. Você é a única pessoa com quem eu tenho feito.

O silêncio posterior disse-lhe mais do que as perguntas o fizeram. O problema não eram os humanos ao redor deles no restaurante ou fora nas ruas.

– Eu não entendo, – ela disse furiosamente. – Ele estava necessitado e eu cuidei dele. Você, de todas as pessoas, não deveria discriminar simplesmente porque ele é um soldado e não de nascimento nobre.

– Você não disse a ninguém onde você estava indo naquela noite? O que você fez lá?

– O Primale nós dá passe livre. Eu tenho alimentado e cuidado dos guerreiros por muito tempo, é o que eu faço. É meu propósito. Eu não entendo...

– Você teve algum contato com eles desde então?

– Eu estava esperando… Na verdade, eu esperava que um dos dois ou ambos aparecesse na mansão em alguma posição oficial, de forma que eu pudesse ver o ferido novamente. Mas não, eu não os vi. – Ela afastou seu prato. – O que está tão errado aqui?

Qhuinn se levantou e tirou seu rolo de dinheiro. Descascando um par de vinte, ele os lançou sobre a mesa. – Nós temos que voltar para o Complexo.

– Por que você está sendo... – Ela baixou seu tom de voz quando algumas pessoas olharam. – Por que você está agindo assim?

– Vamos.

John Matthew se levantou também, sua expressão furiosa, seus punhos cerrados, sua mandíbula dura.

– Layla, volte conosco. Agora.

Para evitar uma cena, ela se levantou e os seguiu pelo ar frio do lado de fora. Mas ela não tinha nenhuma intenção de receber ordens e desmaterializar-se como uma boa garotinha. Se os dois iriam se comportar deste jeito, eles poderiam malditamente dizer-lhe por que.

Plantando seus pés na neve, ela olhou para os dois machos. – O que está errado com vocês?

Seu tom de voz era um que até um ano atrás ela teria ficado chocada em ouvir saindo de sua própria boca. Mas ela não era a mesma fêmea que uma vez tinha sido.

Quando nenhum deles respondeu, ela balançou sua cabeça. – Eu não vou me mover deste trecho da calçada até que vocês conversem comigo.

– Nós não vamos fazer isto, Layla, – Qhuinn cuspiu. – Eu tenho que...

– A menos que você me diga o que está acontecendo aqui, na próxima vez que qualquer um daqueles soldados me contatar, é melhor você acreditar que eu vou vê-los...

– Então você seria uma traidora, também.

Layla piscou. – Desculpe-me... Traidora?

Qhuinn olhou acima para John. Quando o macho deu de ombros e levantou ambas as mãos, houve uma série longa de maldições.

E então, a terra deslocou debaixo de seus pés: – Eu acredito que o macho que você alimentou é um soldado chamado Xcor. Ele é o líder de um esquadrão de guerreiros desonestos, coloquialmente chamados de Bando de Bastardos. E no outono passado, na mesma época em que você o alimentou, ele fez um atentado contra a vida de Wrath.

– Eu… Eu sinto muito. O que… – Quando ela perdeu as forças nas pernas, John se aproximou e a segurou com firmeza. – Mas como você pode ter certeza…

– Eu fui a pessoa que pôs aquelas contusões em seu rosto, Layla. Eu dei uma surra nele, de forma que Wrath pudesse chegar à mansão em segurança e ter seu ferimento de bala tratado. Este é nosso inimigo, Layla, assim como a Sociedade Lessening é.

– O outro... – Ela teve que limpar sua garganta. – O outro soldado, entretanto, a pessoa que me levou para ele. Ele estava no centro de treinamento. Phury me trouxe para alimentá-lo, com Vishous. Eles me disseram que ele era um soldado de valor.

– Eles disseram isto? Ou permitiram que você acreditasse nisto.

– Mas… Se ele fosse o inimigo, por que abrigá-lo?

– Este é Throe, o segundo no comando de Xcor. Ele foi deixado para morrer por seu chefe, e nós íamos ser amaldiçoados se ele morresse sob a nossa vigilância.

John tirou seu telefone celular com sua mão livre e mandou uma mensagem rapidamente, mas Layla não estava acompanhando nada. Seus pulmões estavam queimando, sua cabeça nadava, suas entranhas torcendo. – Layla?

Alguém estava chamando por ela, mas o pânico que a reivindicou era a única coisa que ela podia se conectar. Enquanto seu coração martelava, e sua boca escancarava por ar, uma escuridão desceu sobre ela...

– Inferno fodido, Layla!

 

Trabalhando os telhados de Caldwell, Xhex manteve Xcor em uma distância, acompanhando-o de beco em beco e de distrito em distrito, enquanto ele avançava contra os assassinos. Do pouco que ela viu, o macho era um guerreiro incrivelmente eficiente, aquela foice fazia um maldito de um sério trabalho.

Maldição que ele fosse um megalomaníaco com delírios de vários tronos.

Em todos os momentos, ela ficou o mínimo de um quarteirão de distancia. Não havia nenhuma razão para pressionar sua sorte e correr o risco de arriscar-se com o fato de que ele estava sendo seguido. Ela tinha uma sensação de que ele sabia, entretanto. Se a maneira como ele lidou com o inimigo era uma indicação, ele era esperto o suficiente para assumir que Wrath e a Irmandade enviariam emissários atrás dele, e não era como se ele estivesse se escondendo. Ele era um indivíduo com um padrão dentro de um espaço geográfico limitado. Ele lutava em Caldwell. Toda fodida noite.

Olá.

Quando flocos de neve começaram a rodar no ar, o macho em questão mudou de posição, entrando em uma corrida com seu braço direito, Throe, ao seu lado. Permanecendo sobre eles, ela se desmaterializou para outro prédio. E outro. E um terceiro. Onde eles estavam indo? Ela pensou, quando eles deixaram o setor de combate.

Meia milha de distância à frente, Xcor pausou abaixo do nível da rua, claramente tentando decidir entre a esquerda e a direita. Quando Throe surgiu próximo a ele, palavras raivosas foram trocadas. Talvez porque Throe reconheceu que eles estavam indo na direção errada?

Enquanto eles discutiam, ela olhou para o céu. Verificado seu relógio. Merda. Xcor estava indo desmaterializar-se no fim da noite, e era assim que ela iria perdê-lo. Com seus instintos vagando até certo ponto, ele iria sair rapidamente de alcance quando desaparecesse à distância.

Mas pelo menos ela tinha sua rede mental agora. E mais cedo ou mais tarde, ele ou um de seus soldados iriam ser feridos e teriam que ser expulsos da cidade. Era inevitável, e isso era quando ela iria alcançá-los: uma dispersão de moléculas ela não poderia seguir. Mas um carro, um furgão, um caminhão, um SUV, isso era sua entrada. E a merda era que sabia que eles estavam meses atrasados para um maldito dano.

Abruptamente, Xcor se movimentou novamente, posicionando-se em torno do edifício em que ela estava, chamando-a de volta à ação. Com uma intensidade sombria, ela triturou através da neve do telhado, circulando para ele, movimentando-se por aberturas de climatização e outros maquinários. Quando ela chegou ao outro lado, ela...

John Matthew.

Merda, seu John não estava longe. Que inferno...

Ele disse a ela que iria ficar em casa hoje à noite porque ele estava fora da ronda.

Com quem ele tinha saído? Qhuinn tinha desistido de seus propósitos de homem-puta... Parte errada da cidade para isto, de qualquer maneira. Este era o distrito do teatro.

Desmaterializando-se para a beira do edifício, ela olhou para baixo. Do outro lado da rua, na frente de um beco, John estava de pé nas sombras, com Qhuinn e… Layla. Que estava erguida do chão nos braços de Quinn, parecendo que ela tinha desmaiado?

Merrrda. Muito drama lá em baixo. Grande drama, do tipo que estava ameaçando fritar a grade emocional da Escolhida completamente.

Dispersando suas moléculas, Xhex reapareceu na frente de John, surpreendendo o grupo. – Ela está bem?

Nós estamos esperando por Butch, John assinalou.

Ele está preso através da cidade em uma limpeza. Mas nós precisamos dele agora.

Claramente. O que quer que tenha acontecido aqui foi intenso.

– Você pode me colocar no chão agora, – Layla disse rispidamente.

Qhuinn apenas balançou sua cabeça e continuou a segurá-la fora da neve.

– Olhe, iAm não está longe. – Xhex pegou seu celular e mostrou-o. – Você vai me deixar chamá-lo?

– Sim, isso seria bom, – Qhuinn respondeu.

Quando ela chamou o Sombra, ela olhou fixamente para John, enquanto o telefone tocava. – Ei, iAm, como você está? Sim. Uh-huh, como você sabe? Sim, eu preciso de um conjunto de rodas no distrito do teatro, situa… Você é o cara, iAm. – Ela concluiu a chamada. – Feito. HORA PREVISTA DE CHEGADA em menos de cinco minutos.

Obrigado, John assinalou.

– O que é isto? – Qhuinn disse quando Layla começou a endurecer.

Xhex estreitou seus olhos no rosto da Escolhida quando a rede da fêmea se iluminou… Com excitação. E vergonha. E dor.

– Ele está aqui, – a Escolhida sussurrou. – Ele não está muito longe.

John e Qhuinn imediatamente apanharam suas armas, no qual era um bom truque por parte deste último, dado que ele ainda tinha Layla em seus braços.

Do que diabos ela estava falando...

– Xcor, – Xhex respirou quando ela olhou na mesma direção que a Escolhida estava enfocando. E então, conectando os pontos, ela pensou alto, – Jesus Cristo… Xcor?

iAm escolheu aquele momento para parar em uma BMW X5, e uma fração de segundo depois, ele estava fora e segurando a porta aberta.

Qhuinn pulou para a SUV, e Layla não impôs qualquer luta quando ela foi empurrada para lá como uma inválida.

– Leve o veículo, – iAm disse aos machos. – Use-o como se fosse seu.

Depois de um abrupto agradecimento de Qhuinn, houve um breve momento e- agora- o- quê quando John olhou para Xhex.

Apoiando-se um pouco no peito enorme do macho, ela queria amaldiçoar...

Nós a levaremos de volta, John assinalou. Você ficará aqui e fará o que você tem que fazer. Exatamente assim, eles pularam na SUV de iAm e partiram.

– Você precisa de ajuda? – iAm perguntou.

– Obrigado, mas não, – ela murmurou enquanto via os faróis vermelhos dos freios sinalizar e depois desaparecer na curva da esquina. – Eu tenho isto sob controle.

 

Xcor tinha sentido a essência da fêmea Escolhida há vários quarteirões atrás. Atraído para ela, ele mudou seu curso e seguiu em sua direção, até Throe entrar no caminho e discutir com ele.

O que tinha sido, de certo modo, uma boa coisa. Isso significava que o macho estava verdadeiramente firme e fiel ao seu voto de nunca vê-la novamente.

Xcor, por outro lado, não fez nenhuma promessa, assim, ele tinha prosseguido adiante, deixando seu soldado para trás. Santo Destino, ele passou tantos dias olhando fixamente para as vigas cobertas de teia de aranha acima de seu beliche, perguntando-se onde ela poderia estar, o que estava fazendo. Como ela estava passando.

Se a Irmandade descobrisse quem ela tinha ajudado naquele campo, eles estariam furiosos, e Wrath, o Rei Cego, era conhecido por viver de acordo com seu nome[33]. Putz, como Xcor ainda lamentava que seu segundo tenente a houvesse trazido para esta bagunça. Ela era sincera, uma inocente buscando somente ajudar, e eles a transformaram numa traidora.

Ela merecia coisa melhor.

Na verdade, parecia loucura rezar por misericórdia para seu alvo, no caso ela. Mas ele o fez. Ele rezou para que Wrath a poupasse se a verdade aparecesse...

Aproximando-se dela, ele não ousou chegar muito perto… E ele a encontrou no abrigo de um pequeno café, envolta em sombras, não importando o quanto seus olhos esticassem, ele não conseguia penetrar.

Ela não estava sozinha; ela estava guardada por soldados, dois deles machos, um deles fêmea.

Será que ela o sentia? Ele se perguntou, seu coração batendo como se ele estivesse sendo perseguido. Será que ela diria a eles que ele estava perto...

Um veículo preto veio arrancando para o grupo, e o que saiu era algo que ele só tinha ouvido rumores: Isso era um Sombra? Um Sombra realmente vivo?

A Irmandade tinha aliados dignos, isso era certo...

Com velocidade, sua Escolhida foi levada para o carro nos braços do soldado com quem ele lutou naquela noite na casa de Assail.

Xcor arreganhou suas presas, mas manteve seu grunhido para si mesmo. Aquele outro macho a tocando o fez se revirar por dentro. Será que ela estava ferida de algum modo? Isto o fez se apavorar ao ponto de sentir tremores.

No último momento, pouco antes dela desaparecer no banco de trás, ela olhou em seu sentido.

O momento de conexão diminuiu a velocidade do tempo até que tudo, desde os flocos de neve que estavam caindo, ao piscar do sinal de neon ao lado dela, até a forma como ela foi despachada para fora de sua vista, entrou em um único quadro, as fotografias sendo tiradas por sua mente uma por uma.

Ela não estava com a túnica branca, mas com roupas humanas que não a favoreciam. Seu cabelo estava ainda puxado para cima no alto de seu pescoço, porém, acentuando as características espetaculares de seu rosto. E quando ele respirou, seu peito zumbia tanto pelo frio quanto pelo cheiro delicado dela.

Era tudo o que ele lembrava dela. Exceto que agora ela estava claramente em angústia, sua pele muito pálida, seus olhos muito arregalados, sua mão tremendo enquanto ela a levava até sua garganta como que para se proteger.

Sua mão lutava para avançar em direção a ela, como se houvesse algo que ele pudesse fazer para aliviá-la de seu sofrimento, como se ele pudesse ajudá-la de algum modo.

Foi um gesto que teria de permanecer para sempre nas sombras. Ela sabia que ele estava ali, e foi provavelmente por isso que eles a estavam levando embora.

E ela estava com medo dele agora. Provavelmente porque ela sabia que ele era seu inimigo.

Os dois machos se acomodaram com ela, o mais alto ficando atrás do volante, o que lutou com ele deslizando para trás ao lado dela.

Sem estar ciente disto, sua palma se moveu furtivamente dentro de sua jaqueta, e encontrou sua arma. A tentação de aparecer no caminho daquele veículo, matar os dois machos e tomar o que ele queria era tão grande, que ele realmente mudou de posição para a rua abaixo.

Mas ele não poderia fazer isso com ela. Ele não era seu pai, ele não era o Bloodletter. Ele não torturaria sua consciência para o resto de seus dias com tal violência, porque seguramente ela extrapolaria e se culparia pelas mortes.

Não, se ele alguma vez a tivesse seria porque ela veio até ele de seu livre arbítrio, o que era uma impossibilidade, claro.

E então... Ele a deixou ir. Ele não ficou no caminho do automóvel para pôr uma bala na testa do motorista. Ele não se apressou adiante, atirando no cara do banco de trás, e nem virou para matar a fêmea soldado que estava, naquele exato instante, exatamente atrás dele alguns passos atrás. Ele não se infiltrou no veículo, bloqueando a Escolhida e levando-a para fora para algum lugar quente e seguro.

Depois que ele tirasse aqueles trapos humanos terríveis de sua pele… E os substituísse por seu corpo nu.

Deixando sua cabeça cair, ele fechou seus olhos e alinhou seus pensamentos, controlando-os, orientando-os para longe da fantasia. Na verdade, ele nem sequer a usaria como uma maneira para achar os Irmãos: isso seria assinar sua sentença de morte, tão certo como ele realmente poderia escrever seu próprio nome.

Não, ele não a usaria como uma ferramenta nesta guerra. Ele já a comprometera demais.

Girando na neve, ele encarou em direção àquela que estava atrás dele. Que os soldados tenham deixado o lugar com a escolhida ao invés de lutarem com ele era lógico. Uma fêmea como ela era um artigo altamente valioso, e eles provavelmente chamariam muitos reforços para assegurar sua chegada onde quer estivessem indo.

Interessante era que eles tivessem escolhido para ficar para trás um soldado do sexo oposto. Eles deveriam ter assumido que ele sairia em perseguição.

– Eu sinto você claro como o dia, fêmea, – ele gritou.

Para seu crédito, ela andou até a luz de uma ruela abaixo do beco. Com o cabelo curto e uma constituição firme, poderosa, que estava envolta em couro, ela era definitivamente uma guerreira.

Bem, não era esta uma noite para surpresas? Se ela estivesse associada a Irmandade, ele tinha que assumir que ela era perigosa, então isto poderia ser divertido.

E ainda, quando ela o confrontou, sequer sacou alguma arma. Ela estava preparada, embora de fato, sua postura dissesse a ele que ela estava pronta para fazer o que ela deveria. Mas ela não estava na ofensiva.

Xcor estreitou seus olhos. – Muito elegante para lutar?

– Você não é meu para levar.

– Então de quem eu sou. – Quando ela não respondeu, ele soube que havia um jogo em andamento. A pergunta era, de que tipo. – Nada a dizer, fêmea?

Ele deu um passo em direção a ela. E outro. Só para testar onde os limites estavam. Ainda assim, ela não retrocedeu, mas lentamente abriu o zíper da frente de sua jaqueta como se ela estivesse pronta para chegar às suas armas de fogo.

De pé naquele charco de luz, com a neve caindo ao redor dela e suas botas plantadas no chão branco e fofo, sua figura negra era reduzida a um retrato completo. Ele não estava atraído por ela, contudo, talvez fosse mais fácil se ele estivesse. Alguém com sua aspereza intrínseca poderia se sair melhor em face de seu… Rosto, por assim dizer.

– Você parece bastante agressiva, fêmea.

– Se você me forçar a lhe matar, eu matarei .

– Ah. Bem, eu devo manter isso em mente. Diga-me, você permaneceu aqui pelo prazer de minha companhia?

– Eu duvido que houvesse muito prazer nisto.

– Você está certa. Eu não sou conhecido por minhas virtudes sociais.

Ela estava rastreando-o, ele pensou. Essa era a razão pela qual ela estava aqui. De fato, ele tinha a sensação que desde o começo da noite havia uma sombra sobre ele.

– Eu receio que eu tenha que ir, – ele disse com voz arrastada. – Eu tenho a sensação que nossos caminhos devem se cruzar novamente, no entanto.

– Você pode apostar sua vida nisto.

Ele inclinou sua cabeça em direção a ela… E prontamente desapareceu para longe. Sejam quais fossem suas habilidades de monitoramento, ela não poderia seguir as moléculas. Ninguém era tão bom.

Nem mesmo sua Escolhida poderia fazer isso, e graças ao Destino por isto. Na verdade, o pensamento permaneceu durante um tempo em sua mente, de que ela pudesse achá-lo se ela desejasse, o sangue dela nele era um farol que ela poderia seguir por bastante tempo.

Mas ela não fez isso, e ela não iria. Ela não era da guerra...

Seu telefone disparou assim que ele voltou a sua forma física nas margens do Hudson longe do centro da cidade. Tirando o dispositivo preto, ele olhou para a tela. O retrato de um dândi antiquado estava aparecendo ao lado de escritas e números que ele não poderia decifrar, o que indicou que seu contato dentro da glymera estava chegando até ele.

Ele apertou o botão verde com letras sobre isto. – Como é adorável ouvir você, Elan, – ele murmurou. – Entretanto você está fazendo isto muito bem. Eles estão? De fato. Sim. Eu devo voltar para você com uma localização, mas diga-lhes que sim. Nós devemos nos encontrar com eles rapidamente.

Perfeito, ele pensou apertando o botão vermelho. Um fragmento da facção da glymera queria conhecê-lo pessoalmente. As coisas estavam finalmente começando a se mover.

Já era sem tempo.

Desviando a vista sobre o rio, ele deixou sua agressão fluir, mas a onda não durou. Inevitavelmente, seus pensamentos retornaram para sua Escolhida e aquela expressão repugnante em seu rosto.

Ela sabia quem ele era agora.

E como todas as fêmeas fizeram, ela o via como um monstro.

 

Montado atrás da SUV de iAm, Qhuinn mantinha todos os lados do veículo vigiados no caso de estarem sendo seguidos. Ele também tinha chamado V e Rhage para flanquear o BMW por via das dúvidas.

Não que ele tivesse dito a eles que eram com os Bastardos com quem ele estava preocupado. Eles assumiram que eram lessers, e ele os deixou pensar assim.

E John não estava dirigindo de volta para o complexo, sem nenhum motivo para chegar a qualquer lugar próximo à base de origem. Ao invés disso, eles estavam se encaminhando para fora do subúrbio e andando em círculos, mantendo-se nos pesados bairros humanos até Layla ter tempo suficiente para se recuperar e desmaterializar-se de volta para a mansão.

Ao mesmo tempo, ele olhou acima para ela. Ela estava encarando a vista da janela ao lado dela, seu peito subindo e descendo de um modo muito rápido.

Mas, claro que, descobrir que você ajudou o inimigo, provavelmente salvando sua vida, não era o tipo de coisa que alguém lidaria muito bem.

Ele se inclinou e pôs a mão em sua perna, dando-lhe um aperto. – Está tudo bem, lindinha.

Ela não virou a cabeça para ele. Apenas a balançou. – Como você pode dizer isto?

– Você não sabia.

– Ele ficou para trás na cidade. Ele não nos seguiu.

Bom saber. – Você vai me diz se isso mudar.

– Sim. – Sua voz estava morta. – Não tenha dúvida.

Qhuinn amaldiçoou sob sua respiração. – Layla. Olhe para mim. – Quando ela não o fez, ele pôs seu dedo indicador em seu queixo. – Ei, você não sabia quem ele era.

Layla fechou os olhos, como se desejasse poder voltar a qualquer que tenha sido a noite que tinha encontrado o cara e fazer tudo de novo.

– Venha aqui, – ele disse, puxando-a para um abraço.

Ela veio com firmeza para ele, e quando ele esfregou suas costas, a tensão em seus músculos era tamanha.

– E se o rei me mandar embora? – Ela disse em seu peito. – E se Phury...

– Eles não vão. Eles vão entender.

Quando ela estremeceu contra ele, ele olhou para John no espelho retrovisor e balançou a cabeça para seu melhor amigo. Movendo a boca, ele disse silenciosamente, vamos apenas levá-la. Xcor ficou para trás na cidade.

John ergueu uma sobrancelha, e então movimentou a cabeça.

Afinal, a sensação de sangue não mentia, embora infelizmente, era uma espada que cortava de ambos os lados. A boa notícia era que o mhis que V jogou em torno do complexo, iria manter qualquer um de fora, no intuito de tentarem encontrá-la, o que era a razão de Throe ter sido alimentado em primeiro lugar. E pelo menos essa conexão com Layla estava desvanecendo a cada noite, mesmo com o sangue da Escolhida sendo tão puro.

– Eu não tenho nada meu, – Layla disse baixinho. – Nada. Até meu serviço pode ser tirado de mim.

– Shhh… Nada vai acontecer. Eu não deixarei.

Cara, ele rezou que não fosse mentira. E eles teriam malditamente que dizer ao rei e ao Primale imediatamente. Sua primeira parada, depois que eles a levassem para a Dra. Jane, seria o escritório de Wrath. Aqueles dois acabariam tendo que entender que ela tinha sido manipulada pelo inimigo, explorada como qualquer outro recurso para fazer algo que ela nunca teria feito voluntariamente em um milhão de anos.

Ele desejava ter matado Xcor quando ele teve a chance…

Uns bons trinta minutos mais tarde, John virou o carro na entrada de trás do centro de treinamento, e levou mais outros dez, antes deles finalmente entrarem no estacionamento da garagem.

A primeira pista de que algo estava errado veio quando Qhuinn saiu para a calçada. Sua pele tencionou em uma onda, seu sangue aquecido fervia em suas veias sem qualquer razão. E então ele estalou com uma enorme ereção pulsante.

Com o cenho franzido, ele olhou ao redor. E John fez o mesmo quando o cara bateu a porta e saiu detrás do volante.

Havia algum... Tipo de encantamento trabalhando no estacionamento. Que porra é essa?

– Ah, certo, ok, vamos levar você para a Dra. Jane, – Qhuinn disse quando ele pegou o cotovelo de Layla, e fez com que a frente de seus quadris estivesse coberta pela aba de sua jaqueta de couro.

– Eu estou bem. Honestamente...

– Então isso será o que a boa doutora vai dizer...

Quando John abriu a porta do lugar e todos eles entraram, Qhuinn perdeu seu trem de pensamento quando uma parede de hormônios bateu direto nele. Olhando abaixo para sua pélvis, ele não podia acreditar que ele de repente estava prestes a gozar.

– Alguém está em necessidade, – Layla anunciou. – Eu não acho que vocês dois devessem entrar...

No corredor abaixo, a Dra. Jane saiu de uma sala de exames. – Vocês têm que sair. Qhuinn e John, vocês precisam ir...

– Quem... – Qhuinn teve que fechar os olhos e lentamente sua respiração acalmou. O movimento estava fazendo seu pau esfregar contra o botão da braguilha, ameaçando uma suja explosão. – Quem é...

Como um tipo de onda intensificada, ele perdeu a habilidade de falar.

Porra, era como se ele tivesse acabado de passar por sua transição e estivesse cercado por fêmeas nuas em todas as posições de acesso.

– É Autumn, – Jane disse, correndo em direção a eles e conduzindo-os de volta ao estacionamento. – Você está bem, Layla?

– Eu estou bem...

– Ela precisa de um rápido exame, – Qhuinn murmurou quando ele se virou para o carro do Sombra. – Chegou perto de desmaiar. Mande-me uma mensagem quando você acabar, Layla, ok?

John estava caminhando como um espantalho, com dificuldade e sem qualquer coordenação. Então novamente, quando você tinha um taco de beisebol em suas calças, você dificilmente vai estar no estilo de Fred Astaire.

Quando a pesada porta de aço fechou deixando-os do lado de fora, as coisas ficaram um pouco melhor, e quando eles se dirigiram através de uma série de portas, com menos fúria de tesão, ele estava se sentindo mais racional.

– Jesus, – Qhuinn disse. – Um frasco dessa merda e os meninos do Viagra estão fora do mercado.

Atrás do volante, John assobiou em acordo.

Quando o cara os levou em torno da base da montanha e aproximou-se da frente da casa principal, Qhuinn se contorcia em seus couros.

Ele não tinha feito muito sexo desde… Bem, merda, quase um ano atrás, quando ele teve algum tempo privado com aquele cara de cabelos vermelhos no Iron Mask. Depois disto, ele não teve muito interesse em qualquer coisa ou alguém, macho ou fêmea. Ele nem sequer acordava duro mais.

Inferno, dado o comprimento de seu período de seca, ele começava a pensar que acabaria queimado por sua distribuição de orgasmos. Considerando quantas fodas ele praticou depois de sua transição, era certo do quanto esta merda parecia possível.

Mas aqui estava ele, coçando em seu assento.

Ao lado, John estava fazendo o mesmo, movendo-se para lá e para cá. Roçando para cima e para baixo.

Quando a mansão finalmente fez uma aparição fora do mhis, Qhuinn temia entrar. Lá não parecia nada remotamente sexy ou atraente, ir para seu quarto sozinho, masturbar-se algumas vezes, e então retomar sua vigília na frente de uma tela de TV escura.

Eu não tenho nada meu. Nada. Até meu serviço pode ser tirado de mim.

Layla estava tão certa sobre isto. Embora todo mundo o fizesse se sentir bem-vindo aqui, o resultado final era que, lhe tinha sido permitido ficar porque ele servia a um propósito para John, como ahstrux nohtrum.

Como Layla, no entanto, ele poderia ser despedido.

E quanto ao seu futuro? Ele certamente nunca iria estar emparelhado, porque ele não iria condenar uma fêmea a uma união sem amor, e ele nunca iria ter nenhuma criança, embora, considerando-se seus olhos díspares, talvez isso fosse uma boa coisa.

Resultado final, ele estava olhando para o cano de séculos incontáveis, sem um verdadeiro lar, nenhuma família verdadeira, ninguém de seu próprio sangue.

Quando ele esfregou a mão em seu cabelo e se perguntou se existiria qualquer possibilidade de seu pau magicamente desinflar… Ele sabia exatamente o que aquela Escolhida quis dizer quando se tratava de esvaziar.

 

Xhex precisava de informações urgentes. Imediatamente.

Quando Xcor se desmaterializou para longe dela, saiu do alcance de seu radar em segundos. E sim, ela tinha uma pista da direção dele, mas só um imbecil não camuflaria seu esconderijo.

Certamente, enquanto ela seguia o que conseguia dele, achou-se indecisa às margens do Hudson, não muito longe de sua casa. A trilha esfriava naquele ponto, e não por causa do vento norte frio, que soprava rio abaixo.

Ela chutou um montinho de neve e marchou em volta. Voltou pelo caminho que fizera até chegar ao bairro dos cinemas. Esquadrinhou o resto da cidade, indo de telhado em telhado.

Nada.

Acabou novamente no topo daquele prédio de onde ela vira John e os outros, espionando em volta e amaldiçoando como um marinheiro. Na falta de evidências físicas, ela se forçou a ir com a única coisa que tinha: o drama fora daquela cafeteria.

Pegando seu celular, mandou uma mensagem a John e esperou. E esperou. E... Esperou.

Será que eles tinham caído em uma emboscada no caminho de volta?

Mandou outra mensagem. Ligou para Qhuinn – e não teve resposta.

Maldição, e se algo tivesse acontecido? Só porque Xcor aparentemente deixara a cidade, isto não significava que ele não podia fazer a volta e interceptar a SUV de iAm. Enquanto isto, ela estava aqui, correndo atrás do próprio rabo como uma idiota...

Bem quando ela ia começar outra rodada de mensagens de pânico, John mandou de volta:

@ casa salvo. Dsclp, tava na clínica.

Sentindo o pânico deixá-la, respirou fundo e respondeu: Precisamos conversar sobre Layla. Posso ir aí?

Era possível que Qhuinn não fosse querer sair de perto da Escolhida naquelas condições, e Xhex não queria que John arrastasse seu ahstrux nohtrum para encontrá-la lá fora.

Ao invés de esperar por uma resposta, ela se transportou para a mansão e subiu os degraus para o vestíbulo. A porta interna se abriu imediatamente, e Fritz apareceu demonstrando cansaço.

– Boa noite, minha senhora.

– O que há de errado?

O mordomo se curvou e se endireitou. – Oh, de fato. Sim. A quem a senhora veio ver?

Houve um tempo em que esta pergunta não seria necessária. – John. Ele está na clínica?

– Oh... Não. Não, definitivamente não está lá. Está lá em cima. – Xhex franziu o cenho. – Há algum problema?

– Oh, não. Por favor, madame, entre.

Mentira que não havia nada errado. Ela cruzou correndo o mosaico de macieira e subiu as escadas de dois em dois degraus. Quando chegou ao segundo andar, hesitou.

Mesmo do corredor era perceptível o cheiro de sexo – uma porção deles, na verdade, sugerindo que havia muita gente transando. Literalmente.

E aquilo a fez ter vontade de vomitar.

Enquanto se aproximava da porta de John, ela se preparou para fosse lá o que fosse que estivesse rolando do outro lado. Layla fora treinada como ehros, e Qhuinn há muito tempo era disposto a tudo – e talvez esta separação tivesse jogado seu parceiro em outros braços.

Com um peso no coração, bateu fortemente na porta. – John? Sou eu.

Fechando os olhos, imaginou corpos nus se congelando, pessoas olhando para frente e para trás, John se movendo para pegar algo para se cobrir. Não havia redes emocionais a serem lidas – ela estava muito agitada para conseguir se concentrar nisto. Não dava para isolar essências também – ela já tinha problema suficiente em permanecer em pé porque ela sabia ao menos que uma daquelas essências era de John.

– Eu sei que está aí.

Ao invés de a porta se abrir, ela recebeu uma mensagem de texto: Tô pc ocupado. Posso te encontrar às 18?

Foda-se e o cavalo no qual ele estava cavalgando.

Xhex agarrou a maçaneta, girou com força suficiente para quebrar a coisa, e entrou no quarto num empurrão...

Puta. Merda.

John estava sozinho na cama, deitado em cima de lençóis bagunçados, o corpo nu brilhando à luz do banheiro que se infiltrava no quarto. Uma mão estava entre suas pernas, o grande punho travado em seu pau grosso... A outra estava agarrando a cabeceira da cama para manter o equilíbrio enquanto se masturbava, dentes expostos, os músculos dos ombros e pescoço saltando em busca de alívio enquanto ele se esforçava.

Meeeeerda. O baixo ventre dele já estava pegajoso de outros orgasmos, e ainda assim ele parecia faminto por mais.

Olhos febris encontraram os seus enquanto as mãos se congelavam. Vá, ele expressou. Por favor...

Ela rapidamente entrou e fechou a porta. Isto não era algo que outra pessoa precisasse ver.

Por favor! Ele exigiu.

Por favor, de fato, ela pensou consigo mesma, seu próprio corpo respondendo, seu próprio sangue começando a pulsar.

Passando em cima das roupas que ele jogara no chão, ela só conseguia pensar no quanto ela sentira falta deste lado carnal dele. Era como se ela tivesse estado desligada estes longos meses – e é, teria sido muito melhor para ela sair do quarto, deixando-o lidar com sua ereção sozinho, encontrando-o mais tarde.

Mas, Deus, ela sentia falta de ser a fêmea dele.

Eu não consigo parar, ele expressou. Autumn está em seu período de necessidade – eu fiquei perto demais.

Ah, isto explicava tudo. Só que... – Minha mãe está bem?

Está com Jane, e sim.

Deus, aquela pobre fêmea. Ter de sofrer tudo aquilo de novo, depois de tudo o que já passou. Mas ao menos Jane podia amenizar seu sofrimento – supondo que Tohr não...

Certo, ela não ia pensar isto.

Xhex, você tem que... Ir...

– E se eu não quiser.

Diante daquilo, o corpo dele ondulou largamente, certo como se ela estivesse o tocando, e ele teve outro orgasmo forte, seu apertão deslizando para cima e para baixo enquanto ele gozava em cima dos músculos da barriga.

Bem, se não era aquilo uma resposta muito clara: Ele a queria também.

Xhex aproximou-se da beira da cama e esticou a mão, acariciando a coxa tensa dele com a ponta dos dedos. O leve contato foi suficiente para manter contínua a liberação dele, quadris golpeando, sexo pulsando, o corpo de guerreiro se contraindo enquanto o prazer o atravessava.

Inclinando-se, ela empurrou a mão que ele usava para bombear e o tomou na boca, sugando-o, terminando do jeito certo enquanto ele tombava nos lençóis. E tão logo ele terminara, ao menos este orgasmo específico, ele congelou por apenas um nanosegundo antes de se sentar e puxá-la.

Ela desceu até ele com calma, beijando-o enquanto ele a colocava em cima do corpo. Suas mãos, aquelas mãos grandes e familiares, estavam em todos os lugares... até que sossegaram em sua bunda, e a puxaram para cima, de forma que ele pudesse enterrar o rosto entre os seios dela...

Com um rápido expor de suas presas, ele mordeu a camiseta regata dela, se fixando em seu mamilo, sugando e lambendo enquanto ela o ajudava, tirando a jaqueta, as armas e...

John a virou, deitando-a de costas e resmungou silenciosamente ao ver suas calças.

As coisas não andavam bem para eles – o que, considerando a quantidade de couros que ela vestia, dizia algo sobre a imprevisibilidade da situação de despir-se. No entanto, ele foi esperto o bastante para não mexer nos cilícios.

Tão logo estavam em posição, ele a penetrou de um só golpe, e a sensação de esticar-se para acolhê-lo foi suficiente para jogá-la num orgasmo arrebatador. Ele a seguiu, juntando-se a ela, seus corpos trabalhando um no outro enquanto ela gritava.

E ainda assim ele continuou montando-a, as estocadas incansáveis dando-lhe mais daquilo que ela exatamente precisava.

Expondo as presas, ela esperou até que ele parasse um momento – então o atacou. Mordendo-o fortemente, ela o empurrou de costas, forçando-o a se deitar no colchão de forma que ela pudesse montá-lo. E enquanto ela o segurava pelos ombros e mergulhava em sua garganta, voltou a fodê-lo, as coxas erguendo e baixando, trabalhando a ereção.

A rendição de John a ela era completa. Seus braços permaneciam de lado, sua força cedendo a ela, o corpo dele era dela para usar até que o esgotasse e secasse tanto no pescoço quanto mais embaixo, nos quadris.

Enquanto ela o tomava, os olhos dele continuaram travados em seu rosto, o amor brilhando neles tão grandemente, que eram como dois sóis azuis emanando calor por todo o seu corpo.

Como ela poderia pensar em viver sem ele...

Liberando a garganta dele temporariamente, entregou-se a um novo orgasmo, enterrando o rosto nos ombros dele quando as coisas ficaram tão violentas que ela não conseguiu manter contato com a garganta. Mas ela sabia que sua veia era dela para tomar, tão logo acabasse...

Cara, a vida era complicada. Mas a verdade era simples. Ele era o lar dela.

Ele era o lugar aonde ela pertencia.

Rolando para o lado, ela o encorajou a segui-la, e ele veio com ela tranquilo como água, quente como fogo. Era a vez dele se alimentar... E dado o jeito que seus olhos se fixaram na jugular dela, ele concordava.

– Deixe-me selá-lo antes, – ela disse enquanto ia para os furos marcados da mordida.

Ele segurou seu pulso e a impediu, balançando a cabeça – Não – eu quero sangrar por você.

Xhex fechou os olhos, a garganta apertando.

Era difícil dizer aonde isto ia levar, porque ela nunca teria adivinhado que eles se separariam, em primeiro lugar. Mas era tão malditamente bom estar em casa... Mesmo que por pouco tempo.

 

Horas se passaram, a noite se arrastou e o amanhecer chegou; e então o sol se levantou da borda do horizonte, subindo às alturas do meio-dia, lavando com luz a montanha coberta de neve.

Autumn não tinha consciência de nada disto – e isto seria verdade, estivesse ela lá embaixo na clínica ou lá em cima, na mansão... Ou lá fora, na neve.

De fato, ela bem que podia estar diretamente sob a luz do sol.

Ela estava em chamas.

O calor escaldante em seu ventre lembrava-lhe do nascimento de Xhexania, a agonia subindo às alturas que a fizeram pensar se a morte não estava vindo buscá-la, antes de relaxar só o suficiente para tomar fôlego e se preparar para o próximo pico. E como no parto, o ciclo persistiu, os momentos de abrandamento cada vez mais longínquos e raros até que a dor da necessidade preencheu todos os contornos de seu corpo, assumiu todos os movimentos, toda a respiração, todo o pensamento.

Não tinha sido assim antes. Lá atrás, quando ela estivera com aquele sympath, a necessidade não tinha sido tão forte...

Ou tão longa...

Depois de horas de tortura, ela não tinha mais lágrimas para chorar, não tinha mais soluços, nem mesmo tremores. Só se deitava imóvel, mal respirava, seu ritmo cardíaco falhando, seus olhos fechados enquanto seu corpo ainda sofria internamente.

Era difícil apontar exatamente quando o pico passou, mas gradualmente o tremor entre as pernas, e a queimação em sua pélvis foram diminuindo, os rigores da necessidade substituídos por uma dor constante em suas juntas e músculos por toda a força que fizera.

Quando finalmente levantou a cabeça, seu pescoço estalou alto, e ela grunhiu enquanto encarava um tipo de parede. Franzindo o cenho, ela tentou se localizar... Oh, de fato, ela estava do lado errado da cama, pressionada contra a madeira baixa ao pé da cama.

Ela deitou a cabeça novamente, por um momento. Com calor escaldante amenizando para uma mera fervura, começou a sentir frio, e procurou em volta por um lençol, um cobertor, ou algum tipo de coberta. Não havia nada – estava tudo no chão: ela estava nua diretamente sobre um colchão não forrado – claramente ela arrancara até os lençóis de elástico.

Juntando o pouco de energia que tinha, ela tentou empurrar seu torso para cima e erguer a cabeça. Fez pouco progresso. Como se algo a mantivesse grudada à cama...

Eventualmente, ela se levantou.

A viagem ao banheiro foi árdua e desafiadora como escalar uma montanha, mas ao menos, a alegria com a qual ela entrou no chuveiro ligado valeu a pena.

Enquanto a água morna caía generosamente do chuveiro, ela se sentou no chão azulejado, trazendo os tornozelos contra o traseiro, abraçando a si mesma em volta dos joelhos. Enquanto deixava a cabeça cair para o lado, a água gentil lavou o sal de suas lágrimas e seu suor.

Os calafrios se tornaram mais violentos pouco tempo depois.

– Autumn? – a voz da doutora Jane veio do quarto ao lado.

Seus dentes batendo impediam-lhe de responder, mas o chuveiro disse o suficiente. A outra fêmea apareceu na porta, e então caminhou pelo banheiro, até que puxou a cortina e se ajoelhou de modo que estava à altura de seus olhos.

– Como está se sentindo?

De repente, Autumn teve de esconder o rosto enquanto começava a chorar.

Difícil saber se a explosão era porque a necessidade tinha finalmente passado, ou porque ela estava tão cansada que não tinha sobrado limite algum... Ou porque a última coisa de que lembrava antes que tudo se tornasse um borrão era a visão de Tohr enterrando aquelas duas agulhas nas próprias coxas e caindo ao chão.

– Autumn, consegue me ouvir?

– Sim... – ela gemeu.

– Eu gostaria de colocá-la novamente na cama se você já tiver terminado seu banho. Está muito quente aqui, e estou preocupada com sua pressão arterial.

– Sinto f-f-frio.

– É por causa da febre. Eu vou desligar a água agora, ok?

Ela anuiu, porque não tinha forças para fazer nada mais. Quando o jato quente parou, os tremores sob sua pele se intensificaram enquanto o frio se elevava e atravessava sua carne. Rapidamente, no entanto, um cobertor suave foi jogado sobre seus ombros.

– Consegue ficar em pé? – Quando Autumn anuiu de novo, foi ajudada a se levantar, vestida em uma túnica leve e acompanhada de volta para a cama – que magicamente estava refeita com lençóis limpos e cobertas.

Espreguiçando-se, ela só tinha consciência das lágrimas que escorriam do canto de seus olhos, uma corrente interminável delas, quente contra seu rosto frio. – Shhh, você está bem, – a médica disse, enquanto se sentava na beira do colchão. – Você está bem – acabou...

Enquanto uma mão gentil acariciava seu cabelo molhado, o tom de voz da doutora Jane, mais do que as palavras que dizia, ajudaram mais.

E então houve o barulho de uma lata sendo aberta, que foi trazida para sua boca.

Um gole daquele néctar gelado e doce e os olhos de Autumn giraram sob as órbitas. – Oh, abençoada Virgem Escriba... O que é isto?

– Ginger Ale[34]. E de nada... Ei, não tão rápido.

Depois de acabar com a lata, ela se deitou de novo enquanto uma faixa era ajustada ao seu braço e bombeada antes de ser desinflada. Depois, um disco gelado foi pressionado em seu peito em diferentes locais. Uma luz suave foi apontada para seus olhos.

– Pode me dar mais um pouco de Ginger Ale, por favor? – ela pediu.

– Seu desejo é uma ordem.

A médica fez mais do que isto, retornando não só com outra lata gelada e um canudo, mas também com algumas bolachas que não tinham gosto absolutamente de nada e caíram totalmente como um paraíso em seu estômago.

Ela estava comendo rapidamente quando percebeu que a médica tinha se sentado em uma cadeira e estava calada.

Autumn parou de comer.

– Você não tem outros pacientes?

– Só um, e ela estava bem quando a trouxeram.

– Oh. – Autumn pegou outra bolacha. – Como se chama isto?

– Saltines. De todas as drogas que eu uso aqui, algumas vezes, esta é a melhor.

– São maravilhosos. – Ela colocou na boca o quadrado folhado e esfarelento e mordeu. Como o silêncio persistia, ela disse, – Você quer saber por que eu recusei as drogas.

– Não é da minha conta. Mas eu realmente acho que você precisa falar com alguém sobre isto.

– Um tipo de profissional?

– É.

– Não há nada errado em deixar a natureza seguir seu curso. – Autumn olhou em volta. – Eu lhe implorei para não dizer a ele. Eu lhe pedi para não chamá-lo.

– Não tive escolha.

As lágrimas ameaçaram, mas ela as forçou para longe. – Eu não queria que ele me visse daquele jeito. Wellsie...

– O que tem ela.

Autumn se voltou surpresa, quebrando as bolachas e derrubando o refrigerante em sua mão. Na porta, Tohrment estava parado, uma sombra grande e escura que preenchia o batente.

Doutora Jane se levantou. – Eu vou ver a Layla de novo. Seus sinais vitais estão bons, e eu lhe trarei uma refeição adequada quando voltar.

E então eles estavam sozinhos.

Ele não se aproximou da cama, mas ficou parado à porta, encostado na parede. Com as sobrancelhas bem baixas e os braços cruzados no peito, ele parecia controlado e explosivo ao mesmo tempo.

– O que infernos foi tudo isto. – Ele disse severamente.

Autumn colocou as bolachas e a lata de lado, então se ocupou dobrando e desdobrando a ponta do cobertor.

– Eu fiz uma pergunta.

Autumn pigarreou.

– Eu disse à doutora Jane para não lhe chamar...

– Você achou que se você sofresse, eu viria para lhe ajudar?

– De jeito nenhum...

– Tem certeza disto? Porque o que você achava que Jane ia fazer diante da sua recusa de ser tratada?

– Se você não acredita em mim, pergunte à médica. Eu a instruí especificamente para não chamá-lo. Eu sabia que seria demais para você... Como não seria depois...

– Isto não é sobre minha shellan. Isto não tem nada a ver com ela.

– Eu não tenho tanta certeza disto...

– Acredite-me.

Depois disto, ele não disse nada mais. Ele apenas ficou ali com aquele corpo tenso e aqueles olhos duros, olhando para ela como se nunca a tivesse visto antes.

– No que está pensando? – ela perguntou suavemente.

Ele balançou a cabeça. – Você não vai querer saber.

– Sim. Eu quero.

– Eu acho que estive me enganando estes meses todos.

Enquanto ela sentia os tremores do chuveiro voltando, sabia que a causa não era a febre atingindo seus ossos. Não mais. – Como?

– Melhor não falarmos disto agora.

Enquanto ele se virava para sair, ela teve a nítida impressão de que não o veria novamente. Nunca mais.

– Tohr, – ela disse com voz rouca. – Não houve manipulação da minha parte... Você precisa acreditar nisto. Eu não queria que você me servisse... Eu nunca lhe imporia isto.

Depois de um momento, ele olhou por sobre o ombro, com olhos mortos.

– Sabe o quê? Foda-se! É quase pior que você não me quisesse aqui com você. Porque a outra opção é que você é mentalmente doente.

– Perdão? – Autumn franziu o cenho. – Eu sou completamente sã.

– Não, você não é. Se fosse, você não escolheria encarar tudo isto...

– Eu só não queria ser drogada. Sua interpretação é extrema...

– Ah, é? Bem, prepare-se, você realmente não vai gostar de minha próxima conclusão. Estou começando a pensar que você está comigo para punir a si mesma.

Ela recuou tão rapidamente, que o pescoço estalou de novo. – Eu muito certamente não estou...

– Que maneira melhor de se afundar na miséria do que estar com um macho que ama outra?

– Não é por isto que eu estou com você.

– Quer saber, Autumn. Você tem posado de mártir por séculos. Você tem sido uma serva, uma empregada, uma lavadeira... E você está fodendo comigo pelos últimos meses... O que nos traz de volta ao meu ponto sobre sua insanidade clínica...

– Como se atreve a questionar minhas convicções internas, – ela vaiou. – Você não sabe nada sobre o que eu penso ou sinto!

– Besteira. Você me ama. – Ele virou para encará-la e ergueu a palma da mão para impedi-la de negar. – Não se incomode em negar... Você me diz isto em seu sono todos os dias. Então vamos analisar o caso. Você claramente gosta de se punir. E você sabe malditamente bem que a única razão pela qual estou com você é para tirar Wellsie do Limbo. Então não é que eu me encaixo bem no seu padrão de t...

– Saia, – ela gritou. – Saia já daqui.

– O que... Não quer que eu fique para que doa um pouco mais?

– Seu desgraçado...

– Isso mesmo. Eu tenho lhe usado, e a única pessoa para quem isto está funcionando é você... Deus sabe que não me levou a nada. A boa notícia é que esta coisa toda... – ele apontou de um para outro – ...Vai te dar uma justificativa espetacular para se torturar por ainda mais tempo... Oh, não se incomode em negar. Aquele sympath foi culpa sua. Eu sou culpa sua. O peso do mundo inteiro é culpa sua, porque você gosta de ser a vítima...

– Saia! – ela berrou.

– Sabe, este número de indignação é um pouco difícil de ser levado a sério, considerando que passou as últimas doze horas sofrendo...

– Saia daqui!

– ...Quando não precisava sofrer.

Ela jogou a primeira coisa a seu alcance nele – a lata de refrigerante. Mas os reflexos dele eram tão bons que ele só pegou a lata em sua grande mão... E então a levou de volta à mesinha lateral.

– Você precisa encarar também o fato de que é uma masoquista. – Ele depositou a latinha na mesa com delicadeza deliberada, como se a desafiasse a pegá-la de novo para jogar nele. – E eu tenho sido a droga da vez. Mas eu não vou mais fazer isto... E nem você, ao menos não comigo. Esta merda entre nós dois... não é saudável para mim. Não é saudável para você. E é isto o que fomos um para o outro. Tudo o que temos. – Ele praguejou baixo e duramente. – Ouça, sinto muito, Autumn. Por toda essa merda... Eu realmente sinto. Eu devia ter parado com isto há muito tempo, muito antes de ir tão longe... E tudo o que posso fazer para consertar as coisas é terminar com isto agora. – Ele balançou a cabeça, os olhos aumentados em assombro. – Eu fui parte de sua autodestruição antes, e me lembro bem da quantidade de bolhas que criei cavando o seu túmulo. Eu não vou fazer isto de novo. Não posso. Você sempre terá minha simpatia por tudo o que lhe aconteceu, mas eu tenho minha própria merda para lidar.

Quando ele silenciou, ela enlaçou os braços ao redor de si. Num suspiro disse, – Tudo isto só porque eu não quis ser anestesiada?

– Não é só sobre a sua necessidade. Você sabe que não é. Se eu fosse você, aceitaria o conselho de Jane e conversaria com alguém. Talvez... – Ele deu de ombros. – Eu não sei. Eu não sei mais porra nenhuma. A única coisa que eu tenho certeza é que não podemos continuar com isto. Está nos levando a um lugar muito pior do que lugar algum.

– Você sente algo por mim, – ela disse, erguendo o queixo. – eu sei que não é amor, mas você sente...

– Eu sinto pena de você. É isto que sinto. Porque você é só uma vítima. Você não é ninguém além de uma vítima que gosta de sofrer. Mesmo que eu pudesse me apaixonar por você, não há nada em você que eu possa verdadeiramente me apegar. Você é só um fantasma que não está realmente aqui... Não mais do que eu. E em nosso caso, dois errados não fazem um certo.

Com isto, ele virou as costas para ela e saiu do quarto, abandonando-a cambaleando em dor e perda, deixando-a para enfrentar a visão distorcida que ele tinha de seu passado, seu presente, seu futuro... Deixando-a sozinha de um jeito que não tinha nada a ver com o fato de não ter mais ninguém no quarto.

A porta, enquanto se fechava atrás dele, não fez nenhum som.

 

Quando Tohr saiu pelo corredor ele estava enlouquecido, incoerente, à beira de um colapso violento. Jesus Cristo, ele tinha que sair dali, ficar longe dela. E pensar que a chamou de louca?

Ele era um fodido louco no momento.

Quando olhou pra cima Lassiter estava bem à sua frente.

– Agora não…

O anjo o puxou para trás e o empurrou tão forte que ele viu somente estrelas, viu todas as fodidas galáxias.

Quando bateu na parede de concreto atrás dele, o anjo agarrou a frente de sua camisa e o bateu de volta novamente, chacoalhando seus molares.

Quando sua visão finalmente clareou, o que atravessou aquele rosto não era nada menos do que uma máscara demoníaca, as feições distorcidas pelo tipo de raiva que exigia que se cavasse fundo.

– Você é um babaca. – Lassiter vociferou. – Um fodido babaca.

Tohr se inclinou para o lado e cuspiu sangue.

– Foi Maury ou Ellen quem lhe ensinou a julgar caráter?

Um dedo comprido foi empurrado no seu rosto.

– Ouça-me com muito cuidado, porque só vou dizer isso uma vez.

– Você não gostaria de me bater de novo? Sei que eu gostaria mais disto...

Lassiter o atirou na parede novamente.

– Cale-se. E me ouça. Você ganhou.

– Como é?

– Você conseguiu o que queria. Wellsie está condenada pela eternidade.

– O que...

A terceira pancada o interrompeu.

– Está terminado. Acabou. – Ele apontou para a porta fechada do quarto de Autumn. – Você acabou de matar sua chance quando a rasgou em pedaços.

Tohr perdeu isso, suas emoções detonando.

– Você não sabe sobre que porra está falando, você não sabe de merda nenhuma! Você não tem a menor ideia sobre nada disso, nem sobre mim, nem sobre ela – nem do seu trabalho! Que porra você fez aqui neste ano que passou? Nada! Você esteve sentado e assistindo shows enquanto minha Wellsie está desaparecendo! Você é uma maldita perda de tempo!

– Realmente. Certo, você é tão fodidamente brilhante, que tal essa? – Lassiter o soltou e recuou. – Eu desisto.

– Você não pode desistir…

Lassiter mostrou o dedo do meio.

– Acabei de fazer.

O anjo se virou e seguiu pelo corredor.

– Você está fodidamente desistindo! Isso é ótimo... Fodidamente ótimo! Fale sobre permanecer fiel ao caráter de alguém, seu egoísta filho da puta!

Tudo que recebeu foi outro dedo do meio apontado por cima do ombro.

Com um palavrão Tohr fez um movimento para ir atrás do cara, mas se deteve. Girando, ele deu um golpe rápido, socando o concreto tão forte que sentiu os dedos se quebrando. E sabe, a dor martelando na palma da mão não chegava nem perto da agonia em seu peito.

Ele estava absolutamente em carne viva, por dentro e por fora.

Decolando na direção oposta a do anjo, ele se encontrou na porta pesada de aço que dava ao estacionamento. Sem ideia do que estava fazendo ou para onde estava indo, ele a mandou voando de suas dobradiças e marchou para o ar frio, indo para a direita, subindo a rampa, passando pelos espaços vazios que estavam demarcados com tinta amarela.

Percorreu todo o caminho até a parte de trás, até a parede mais distante e sentou seu traseiro no asfalto frio e duro, seus ombros contra o concreto úmido.

Enquanto respirava com dificuldade sentiu como se estivesse nos malditos trópicos – provavelmente a parte final do efeito da necessidade no seu corpo: mesmo se estivesse de fora à base das drogas teve bastante exposição, suas bolas doloridas como se as tivesse colocado em um espremedor, seu pau ainda duro, suas articulações doloridas como se estivesse tenso até mesmo na névoa da morfina.

Rangendo os dentes se sentou sozinho e olhou fixamente para a escuridão diante dele.

Este era o único lugar seguro para ele neste momento.

Provavelmente por algum tempo.

 

Quando Layla ouviu gritos enfiou a cabeça para fora do ginásio para ver quem estava gritando – e imediatamente mergulhou de volta pra dentro. Tohr e Lassiter estavam brigando e isso não era algo que ela tinha que se envolver.

Ela tinha seus próprios problemas.

Apesar da necessidade de Autumn ela ficara ali embaixo na clínica para passar a noite, sabendo que passou algum tempo no Santuário recentemente, então não havia nenhuma razão para se preocupar com seu ciclo. Mais precisamente, no entanto, ela não tinha nenhum outro lugar para ir. Sem dúvida Qhuinn e John estavam conversando com o rei e o Primale na casa principal, e logo ela seria convocada para saber do seu destino.

Diante de um possível exílio – ou pior, morte por ajudar um traidor – ela passou horas e horas andando de um extremo ao outro do piso cor de mel do ginásio, passando pelas arquibancadas e bancadas, as entradas que davam para o pit e as portas para o corredor. E então voltando por todos eles de novo.

Sua ansiedade era tanta que enrolava sua tensão como uma máquina de fiar lã, os fios trançados se estendendo até se enrolar em sua garganta e descendo até contrair seu ventre.

Ela pensou incessantemente sobre Xcor e seu segundo tenente. Foi usada por ambos – mas especialmente pelo último. Xcor não queria partilhar de sua veia. Ele lutou – e quando ela passou por cima de sua vontade havia um profundo pesar em seus olhos, porque ele sabia exatamente em que posição a estava colocando. O outro soldado não teve tal compulsão.

Na verdade, ela o culpava – o que quer que caísse sobre sua cabeça foi ele quem fez. Quem sabe ela seria reencarnada como um fantasma e poderia assombrá-lo pelo resto de suas noites… Claro, assumindo que ela seria condenada à morte. E se não fosse, o que ela faria? Certamente eles a tirariam de suas tarefas aqui, bem como também de seu status de Escolhida. Para onde ela iria? Não tinha nada dela, nada que não tivesse sido fornecido por ordem do rei ou do Primale.

Continuando suas voltas enfrentou mais uma vez o vazio de seus dias e se perguntava que propósito ela serviria no futuro...

A porta se abriu na outra extremidade e ela parou.

Todos os quatro vieram encontrá-la: O rei, o Primale, Qhuinn e John Matthew.

Endireitando a coluna ela cruzou o ginásio até o meio, segurando seus olhares. Quando chegou perto o suficiente fez uma mesura até o chão e não esperou para ser abordada. Os costumes da corte eram o menor dos seus problemas.

– Meu senhor. Estou preparada para aceitar toda a responsabilidade...

– Levante-se, Escolhida. – Uma mão apareceu diante do seu rosto. – Levante-se e fique à vontade.

Quando ela ofegou e olhou para cima o sorriso do rei era gentil e ele não esperou para ela responder. Curvando-se para ela, juntou sua palma na dele e a ajudou ante sua súplica. E quando ela relanceou o olhar para o Primale, seus olhos pareciam incrivelmente gentis.

Ela apenas balançou a cabeça e se dirigiu a Wrath.

– Meu senhor, eu alimentei seu inimigo...

– Você sabia quem ele era no momento?

– Não, mas...

– Você acreditava que estava ajudando um soldado caído?

– Bem, sim, mas...

– Você o procurou de novo?

– Absolutamente não, mas...

– Você de fato disse a John e Qhuinn onde ele estava quando deixou a cidade ontem à noite?

– Sim, mas...

– Basta com os mas então. – O rei sorriu novamente e pôs sua mão no rosto dela, alisando a bochecha ligeiramente apesar de sua cegueira. – Você tem um grande coração e eles sabiam disso. Aproveitaram-se da sua confiança e a usaram.

Phury assentiu.

– Eu deveria ter dito a você quem estava alimentando em primeiro lugar, mas a guerra é um negócio sujo e sórdido e não queria que fosse sugada para dentro disso. Nunca me ocorreu que Throe a buscaria, mas eu não deveria estar surpreso. O Bando de Bastardos é impiedoso até a medula.

Depressa ela colocou a mão livre na boca, segurando um soluço.

– Eu sinto tanto, eu juro a vocês dois que eu não tinha nenhuma ideia...

Phury deu um passo e a puxou contra ele.

– Está bem. Está tudo bem… Não quero que pense nisso novamente.

Quando ela virou a cabeça para o lado descansando-a no seu peito forte soube que não era possível. Inconscientemente ou não ela traiu a única família que tinha e isso não era o tipo de coisa que alguém podia apenas dar as costas – ainda que sua estupidez fosse perdoada. E essas últimas horas tensas quando seu destino era desconhecido e sua solidão se revelou ao máximo, não seria afastada também.

– A única coisa que peço, – disse Wrath – É que se ele entrar em contato com você novamente.. Se algum deles fizer... Você nos diga imediatamente.

Ela se afastou e teve a ousadia de se estender para a mão da adaga do rei. Como se Wrath soubesse o que procurava estendeu sua palma na dela prontamente, o grande diamante negro relampejando em seu dedo.

Curvando a cabeça e colocando seus lábios no símbolo da monarquia, ela falou no Antigo Idioma.

– Com tudo que tenho e tudo que sou, eu assim juro.

Conforme ela fazia o pacto com seu rei diante do Primale e de duas testemunhas, uma imagem de Xcor tocou através dos olhos de sua mente. Lembrou-se de cada detalhe do seu rosto e do corpo do guerreiro...

Vindo do nada um tiro de calor se espalhou por ela.

De qualquer forma não importava. Seu corpo poderia ser um traidor; seu coração e alma não eram.

Endireitando-se olhou fixamente para o rei.

– Deixe-me ajudar você a encontrá-lo. – ela se ouviu dizer. – Meu sangue está em suas veias. Posso...

Qhuinn a cortou.

– Absolutamente não. De jeito nenhum...

Ela o ignorou.

– Deixe-me provar minha lealdade.

Wrath sacudiu sua cabeça.

– Você não precisa. É uma fêmea de valor e não iremos arriscar sua vida.

– Eu concordo. – o Primale disse. – Lidaremos com aqueles lutadores. Não deve se preocupar com eles e agora quero que cuide de si mesma. Você parece exausta e deve estar faminta. Coma alguma coisa e vá dormir na mansão.

Wrath acenou.

– Sinto muito que demoramos tanto tempo para vir até você. Beth e eu estávamos em Manhattan nos divertindo e só voltamos ao anoitecer.

Layla acenou e concordou com tudo que foi dito, mas só porque de repente estava muito exausta para ficar de pé muito mais tempo. Felizmente o rei e o Primale saíram logo depois disso e então Qhuinn e John assumiram, guiando-a de volta para a mansão, levando-a até a cozinha e a sentando no balcão enquanto abriam de fora a fora a porta da geladeira e da despensa.

Era doce da parte deles querer servi-la, especialmente já que não sabiam nem cozinhar um ovo. Porém só de pensar em comida seu estômago embrulhou, fazendo-a engasgar.

– Não, por favor. – ela disse, afastando os restos da Primeira Refeição. – Oh… Querida Virgem Escriba… Não.

Quando eles colocaram seus próprios pratos de peru e purê de batatas e algum tipo de mistura de brócolis, ela tentou não ver ou cheirar nada.

– Qual o problema? – Qhuinn disse quando deslizou no banco ao lado dela.

– Eu não sei. – Ela deveria estar aliviada que Wrath e Phury foram tão complacentes com sua transgressão. Em vez disso estava mais ansiosa do que nunca. – Não me sinto bem… Eu quero ajudar. Quero fazer uma reparação. Eu…

John começou assinalar alguma coisa no microondas – mas o que quer que fosse Qhuinn sacudiu a cabeça e se recusou a traduzir.

– O que ele está dizendo? – Ela exigiu. Quando não obteve nenhuma resposta colocou a mão no braço do macho. – O que ele está dizendo, Qhuinn?

– Nada. John não está dizendo porra nenhuma.

O outro macho não apreciou o bloqueio, mas não discutiu enquanto preparava um segundo prato de comida, sem dúvida para Xhex.

Depois que John se desculpou e foi alimentar sua shellan, o silêncio na cozinha foi quebrado apenas pelo som dos talheres contra o prato do Qhuinn.

Não demorou muito para estar pronta para saltar e se impedir de gritar, ela começou a andar de um lado para o outro.

– Você realmente deveria descansar. – Qhuinn murmurou.

– Eu não consigo.

– Tente comer alguma coisa.

– Querida Virgem Escriba, não. Meu estômago está uma bagunça e está tão quente aqui.

Qhuinn franziu a testa.

– Não, não está.

Layla continuou caminhando, cada vez mais rápido – e supôs que era porque estava tentando fugir das imagens na sua cabeça: Xcor olhando para ela. Xcor tomando sua veia. O corpo grande de Xcor… O enorme corpo do guerreiro colocado a sua frente e claramente excitado pelo gosto do seu sangue...

– Em que diabos você está pensando? – Qhuinn perguntou sombrio.

Ela parou de repente.

– Nada. Absolutamente nada.

Qhuinn se remexeu em seu banco e então abruptamente empurrou sua comida meio-devorada.

– Eu deveria deixá-lo. – ela anunciou.

– Não, tá legal. Acho que estou irritado, também.

Quando ele levantou do balcão com seus pratos, os olhos dela viajaram seu tronco abaixo e se arregalaram. Ele estava… Excitado.

Assim como ela.

Vestígios da necessidade de Autumn, claramente...

A onda de calor veio sobre ela com tanta presa que mal teve tempo para agarrar o balcão de granito para se manter em pé, e não conseguiu responder quando ouviu Qhuinn gritar seu nome à distância.

Necessidade agarrou seu corpo, apertando seu útero como um punho, fazendo-a se vergar sob sua força.

– Oh… Querida Virgem Escriba… – Entre suas pernas seu sexo abriu, o florescimento não tendo nada a ver com Xcor ou Qhuinn ou qualquer força externa.

A excitação veio de dentro dela mesma.

Sua necessidade…

Não foi suficiente. As visitas ao Santuário não foram suficientes para evitar que fosse pega pela necessidade de Autumn...

A onda seguinte de ânsia ameaçou deixá-la de joelhos, mas Qhuinn estava lá para pegá-la antes de bater no azulejo duro. Enquanto a arrastava em seus braços, ela sabia que não tinha muito tempo para ser racional. E sabia que a resolução que abruptamente lhe sobreveio era ao mesmo tempo inteiramente injusta e totalmente inegável.

– Sirva-me. – ela disse, cortando o que quer que ele estivesse dizendo para ela. – Eu sei que não me ama e sei que não estaremos juntos posteriormente, mas sirva-me para que eu possa ter algo que é meu. Então você pode ter algo que é seu.

Enquanto o sangue drenava do rosto dele e seus olhos díspares se arregalavam ela avançou, falando entre ofegos rápidos.

– Nós dois não temos uma família de verdade. Ambos estamos sozinhos. Sirva-me… sirva-me e mudamos tudo isso. Sirva-me de modo que possamos cada um ter um futuro que é pelo menos parcialmente nosso… Sirva-me, Qhuinn… Eu lhe imploro… Sirva-me…

 

Qhuinn tinha certeza absoluta que ele estava em um universo paralelo. Porque não havia dúvida de que Layla estava entrando em sua necessidade... E se voltando para ele para ajudá-la a passar por isso.

Não.

Esta era apenas uma imagem espelhada da forma como o mundo real era – um mundo onde o biologicamente puro estava preso em si mesmo, de modo que criaram gerações de jovens biologicamente puros e, portanto, superiores.

– Sirva-me e nos dê algo que seja nosso. – Os hormônios estavam se elevando nela num nível mais renovado, superior, cortando sua voz. Logo voltou, no entanto, com as mesmas palavras. – Sirva-me...

Quando começou a arfar, não ficou claro se isso era o sexo em seu sangue ou a vertigem criada por este precipício inesperado de onde pendia.

A resposta era não, é claro. Não, absolutamente, nenhuma criança jamais, certamente não com alguém que ele não estava apaixonado, certamente não com uma virgem Escolhida.

Não.

Não...

Porra, não, merda, não, Deus, não, dane-se tudo, não...

– Qhuinn... – ela gemeu. – Você é minha única esperança e eu a sua...

Bem, na verdade isso não era verdade – pelo menos a primeira parte. Qualquer outro macho na casa ou no planeta poderia cuidar disso. E é claro, logo em seguida eles seriam responsabilizados ​​pelo Primale.

Não era uma conversa pela qual estaria se voluntariando.

Exceto... Bem, ela estava certa sobre a segunda parte. Em seu delírio, em seu desespero, ela estava expressando a mesma coisa que ele tinha pensado há meses. Como ela, ele não tinha nada que fosse realmente seu, sem perspectivas de amor verdadeiro, nenhuma razão duradoura para se levantar a cada pôr do sol além da guerra. Que tipo de vida era essa?

Tudo bem, disse a si mesmo. Adote um maldito cachorro. A resposta a tudo isso era não se deitar com esta Escolhida.

– Qhuinn... Por favor...

– Escute, deixe-me levá-la para a Dra. Jane. Ela vai cuidar de você do jeito certo...

Layla sacudiu a cabeça violentamente.

– Não. Eu preciso de você.

Vindo do nada, ele pensou, crianças com um futuro como o seu. Se você criá-las bem, elas nunca realmente o deixariam e não poderiam ser tirados de você se as mantivessem seguras.

Inferno, se Layla concebesse, inclusive o Primale não poderia fazer merda nenhuma, porque Qhuinn seria… O pai. O que em termos vampíricos era a ultima palavra do rei – e Wrath não tocaria em algo assim privado.

Por outro lado, se ela não engravidasse, eles provavelmente arrancariam suas adoradas bolas por sujar uma fêmea sagrada...

Espere um minuto. Ele estava realmente considerando isto?

– Qhuinn...

Ele poderia amar uma jovem, ele pensou. Amá-la com tudo que era e jamais seria. Amá-la como ele nunca amou nenhum outro, inclusive Blay.

Fechando os olhos por um breve instante, ele voltou ao tempo até a noite que ele morreu e subiu até a porta do Fade. Ele pensou sobre aquela imagem que tinha visto, aquela pequena fêmea…

Oh, Jesus…

– Layla. – ele disse roucamente, conforme ficava de pé. – Layla, olhe para mim. Olhe para mim.

Quando a sacudia ela pareceu se recolher em si mesma, concentrando-se em seu rosto enquanto ela enfiava suas unhas nos seus braços dele.

– Sim…

– Você tem certeza. Se a resposta for positiva, você precisa ter certeza...

Por um breve momento, uma completa expressão de lucidez atravessou suas belas feições torturadas.

– Sim, tenho certeza. Vamos fazer o que devemos. Pelo futuro.

Ele procurou seu rosto cuidadosamente só para ter certeza. Phury ficaria puto, mas então até a Escolhida tinha o direito de escolher – e ela o estava escolhendo, aqui e agora. Quando tudo que viu foi uma resolução absoluta, ele assentiu uma vez, pegou-a de volta em seus braços e saiu a passos largos da cozinha.

Seu único pensamento quando atingiu o início da escadaria principal, era que eles conceberiam nas próximas horas, e ambos, tanto ele quanto Layla viveriam tudo: a gravidez, o parto e aquelas poucas horas críticas depois disso.

Ele e Layla trariam ao mundo uma filha.

Uma filha de cabelos loiros, com olhos que seriam moldados como os seus, a primeira cor como o da Escolhida… Antes deles mudarem para ser um azul e o outro verde, como os seus.

Ele teria sua própria família. Seu próprio futuro.

Finalmente.

 

Quando Xhex saiu do chuveiro sabia que John tinha retornado, porque pegou seu cheiro, bem como o cheiro de algo deliciosamente enlouquecedor. Reaplicando os cilícios que ela removeu para se lavar, embrulhou uma toalha ao seu redor e caminhou para o quarto.

– Oh, cara, peru. – ela disse enquanto ele passava uma bandeja para ela.

Olhando para cima, seus olhos demoraram em seu corpo como se ele quisesse comê-la em vez disso, entretanto ele apenas sorriu e voltou para os seus cuidados com o que ele trouxe para ambos.

– Isto que é uma sincronia perfeita. – ela murmurou enquanto se arrumava na cama. – Estou morrendo de fome.

Depois que tudo estava servido apropriadamente, o guardanapo, os talheres, o copo e o prato coberto; ele trouxe a bandeja para ela, colocando-a em suas coxas. Então, ele retrocedeu para o outro lado do quarto para sua própria comida na espreguiçadeira.

Será que ele preferia estar alimentando-a com a mão? Ela se perguntou enquanto comiam em silêncio. Os machos vampiros gostavam de fazer aquilo… Mas ela nunca teve paciência para isso. A comida era energia para o corpo, não algo para começar um Dia dos Namorados.

Supondo que ambos fossem capazes de convencer um ao outro, eles não eram. E algo estava acontecendo. Sua grade estava em conflito, ao ponto que suas emoções estavam quase congelando.

– Eu vou partir. – ela disse tristemente. – Depois que checar minha mãe, eu vou...

Você não tem que ir, ele disse com gestos, sinalizando. Eu não quero que você vá.

– Tem certeza disso? – Quando ele movimentou a cabeça, ela tinha que perguntar, já que sua mente estava enlouquecida.

Mas qual é, algumas horas na cama não diminuiriam a distância que os balançou ultimamente...

Abruptamente ele respirou fundo e parou de brincar com o que estava em seu prato.

Ouça, preciso lhe dizer uma coisa.

Ela baixou seu garfo e se perguntou o quanto isto doeria.

– Ok.

Layla alimentou Xcor.

– Que por..., desculpe, eu ouvi direito? – Quando ele acenou com a cabeça ela pensou. Certo, ela sabia que havia um drama acontecendo por aí, mas nunca teria imaginado que fosse tão sério.

Ela não sabia quem que ele era. Trhoe a enganou – ele a alcançou, encontrou e a levou até Xcor.

– Jesus… – Que outra razão o rei precisava para matar aquele filho da puta?

Eis a questão. Ela quer ajudar a encontrá-lo – e com seu sangue em suas veias... Ela pode. Ela sabia onde ele estava ontem à noite – sentiu-o claro como o dia. Ela poderia realmente ajudar você.

Xhex esqueceu tudo sobre a comida, a adrenalina subiu rapidamente através do seu corpo.

– Oh, cara, se eu pudesse apenas deixá-la ao alcance… Há quanto tempo ela o alimentou?

No outono.

– Merda. Desperdício de tempo. – Ela se levantou e vestiu suas calças de couro, pegando-as do chão. Droga, estavam rasgadas ao meio...

Há outras ainda no armário.

– Oh, obrigada. – Ela se aproximou e tentou não ficar deprimida quando viu suas roupas alinhadas juntas. Deus… – Ah, você sabe onde ela está?

Lá embaixo na cozinha com Qhuinn.

Quando a grade de John mudou Xhex parou o processo de puxar um novo par para fora. Estreitando seus olhos por cima do ombro, ela disse.

– O que não está me dizendo?     

Wrath e Phury não querem envolvê-la. Ela se ofereceu para ajudar e eles a calaram. Se você usá-la, eles não poderão saber que você o fez – eu não posso dizer isto mais claramente.

Xhex piscou, sua respiração congelada em seus pulmões.

Ninguém pode saber Xhex. Nem mesmo Qhuinn. E não é preciso dizer que você tem que mantê-la segura.

Quando John a encarou sombriamente, ela não se importava com toda esta merda. Nem sequer a ouviu.

Com esta pequena informação ele tinha acabado de escolhê-la e à sua busca, passando por cima do seu rei e do Primale de sua raça. Mais ainda, ele potencialmente entregou-lhe a chave para se infiltrar no Bando de Bastardos – e enviá-la para o ventre da besta.

Falando sobre colocar seu dinheiro onde sua boca estava.[35]

Xhex esqueceu sobre os couros e caminhou em sua direção, pegando seu rosto entre as mãos.

– Por que está me contando isso?

Isto vai te levar até ali. Ele gesticulou.

Ela passou as mãos entre seus cabelos, afastando-os do seu rosto bonito e tenso.

– Se você continuar com isso…

E daí?

– …Vou ficar lhe devendo.

Posso escolher como vai me reembolsar?

– Sim. Pode.

Então quero que você volte a morar comigo. Ou deixe-me viver com você. Eu quero que estejamos apropriadamente juntos novamente.

Piscando forte ela se abaixou e o beijou devagar, meticulosamente. Palavras não significavam merda nenhuma. Ele estava certo sobre isso. Mas este macho, que tinha tudo a ver com muros e obstáculos na primavera, estava abrindo caminho para seu grande momento agora.

– Obrigada. – sussurrou contra sua boca, rolando tudo que estava sentindo naquela simples palavra.

John sorriu largamente para ela. Eu amo você, também.

Depois que o beijou mais uma vez ela se afastou dele, lançou-se num par de calças limpas e agarrou sua camiseta regata. Puxando-a sobre sua cabeça, ela...

A princípio pensou que a onda de calor que passou através dela era porque estava diretamente sob o calor da ventilação no teto. Mas quando se moveu e aquilo ficou preso nela, olhou seu corpo abaixo.

Relanceando o olhar para John, observou-o endurecer e olhar para seu ventre.

– Porra. – ela sussurrou. – Quem diabos está em sua necessidade agora?

John foi verificar seu telefone, e então deu de ombros.

– Eu provavelmente deveria cair fora daqui. – Symphaths geralmente podem controlar sua fertilidade à vontade e ela sempre teve sorte com isso. Porém, como uma mestiça não estava disposta a dar uma chance para isso, com alguém atualmente vivendo na porta ao lado. – Você tem certeza que minha mãe superou isso quando desceu para ver Layla... Merda, aposto que é ela. Aposto que é a Escolhida...

Um gemido atravessou as paredes à direita. Onde o quarto de Qhuinn estava.

O bater abafado que se seguiu só podia significar uma coisa.

– Puta merda, é Qhuinn… – Exceto que ela sabia a resposta para isso. Treinando seus sentidos para a porta ao lado, ela se pegou em suas mentes. Sem amor romântico entre eles – mais como uma resolução de ambos os lados.

Estavam fazendo aquilo com um propósito que ela apenas podia imaginar. Mas por que iriam querer uma criança? Essa merda era uma loucura total, especialmente pela posição da Escolhida… e a dele.

Quando outra onda de necessidade ameaçou tomar conta dela, Xhex avançou para sua jaqueta e suas armas.

– Eu realmente devo ir. Não quero ficar exposta, por via das dúvidas.

John concordou e foi para a porta.

– Vou checar minha mãe agora. Layla estará ocupada durante algum tempo, mas depois conversarei com ela e informarei a você como foi.

Estarei aqui. Esperando para saber de você.

Ela o beijou uma, duas vezes… E uma terceira vez. E então ele abriu a porta e ela partiu...

No instante em que saiu para o corredor os hormônios bateram forte nela, fazendo-a balançar.

– Oh, inferno não. – ela murmurou, decolando para os degraus e então se desmaterializando até a porta escondida debaixo da escada.

Quanto mais distante estivesse, melhor se sentiria. Mas ela estava preocupada com sua mãe. Graças a Deus que eles tinham drogas para suavizar as extremidades daquela provação.

Tohr possivelmente não poderia estar servindo-a. De jeito nenhum.

Emergindo do túnel para o escritório, ela andou a passos largos para fora no corredor longo do centro de treinamento. Não havia nada de peculiar no ar e isso era um alívio. O período de fertilidade era violento, mas o bom era que quando isso terminasse ele sairia da rodada rapidamente – embora a fêmea geralmente exigisse um dia ou dois para se recuperar completamente.

Colocando sua cabeça para dentro da sala de exames principal ela não encontrou ninguém. O mesmo aconteceu nas duas salas de recuperação. Mas sua mãe estava aqui – ela podia senti-la.

– Autumn? – Ela gritou com o cenho franzido. – Olá? Onde você está?

A resposta veio de algum lugar mais distante abaixo, onde as conferências costumavam ser dadas aos estagiários.

Avançando em direção ao som, ela entrou na sala de aula e achou sua mãe acomodada em uma das mesas de frente ao quadro-negro. As luzes estavam acesas acima da sua cabeça e não havia mais ninguém ali com ela.

Nada bom. O quer que a fêmea estivesse pensando… Não era uma boa situação.

– Mahmen? – Xhex disse enquanto deixava a porta fechar suavemente atrás dela. – O que está fazendo?

Hora de agir com cuidado. Sua mãe estava tão imóvel quanto uma estátua e tão arrumadinha, tudo tão organizado, desde seu cabelo firmemente trançado até suas roupas cuidadosamente combinadas.

Porém aquilo de se colocar tudo totalmente arrumadinho era falso, nada além de adornos externos de compostura que acabavam fazendo-a parecer ainda mais frágil.

– Eu não estou bem. – Autumn sacudiu sua cabeça. – Nada bem. Nada bem mesmo.

Xhex caminhou até a escrivaninha do instrutor e colocou suas armas e sua jaqueta.

– Pelo menos você é honesta.

– Pode dizer o que está na minha cabeça?

– Sua grade está desligada. Então você é difícil de ler.

Autumn assentiu.

– Desligada… Sim, isso o encobriria. – Longa pausa, depois que sua mãe olhou em volta. – Sabe por que vim aqui? Pensei que o resíduo dos ensinamentos passariam para mim. Não está funcionando, estou com medo.

Xhex descansou seu traseiro em cima da escrivaninha.

– A Dra. Jane lhe examinou?

– Sim. Estou bem. E antes que pergunte, não, não fui servida. Eu não quis ser.

Xhex soltou um suspiro de alívio. Fora a saúde mental de sua mãe, os riscos físicos de uma gravidez e do nascimento não eram algo que precisassem enfrentar agora – embora talvez isso fosse egoísta.

Porém, vamos lá, ela tinha acabado de encontrar a fêmea; não queria perdê-la tão cedo.

Quando os olhos de Autumn se ergueram havia uma franqueza neles que era nova.

– Preciso de um lugar pra ficar. Longe daqui. Eu não tenho dinheiro, nem trabalho e nem perspectivas, mas...

– Você pode morar comigo. Por quanto tempo quiser.

– Obrigada. – Aqueles olhos se afastaram e se demoraram no quadro-negro. – Eu me esforçarei para ser uma boa hóspede.

– Você é minha mãe. Não é uma hóspede. Ouça, o que aconteceu?

A outra fêmea se levantou.

– Podemos ir agora?

Cara, aquela grade estava totalmente fechada. Trancada. Envolta em autoproteção. Como se ela tivesse sido atacada de alguma maneira.

Agora claramente não era hora de forçar.

– Ah, sim. Certo. Podemos ir. – Xhex se levantou da escrivaninha. – Você quer falar com Tohr antes de ir?

– Não.

Xhex esperou por algum tipo de explicação, mas não veio nenhuma. O que disse o bastante para ela.

– O que ele fez, Mahmen?

Autumn ergueu o queixo, sua dignidade tornando-a mais bonita do que nunca.

– Ele me disse o que pensava de mim. Muito sucintamente. Por isso, neste momento, acredito que ele e eu não temos mais nada a dizer um ao outro.

Xhex estreitou seus olhos, a raiva se curvando em suas entranhas.

– Vamos? – Sua mãe disse.

– Sim… Certo…

Mas ela descobriria que porra tinha acontecido; isso era certo.

 

Depois que as persianas subiram do parapeito e a noite ter levado para longe toda a luz do céu, Blay deixou a sala de bilhar com a intenção de checar Saxton na biblioteca, em seguida tomar um banho para a Primeira Refeição.

Ele não chegou muito mais longe do que o tronco da macieira do mosaico no hall de entrada.

Petrificado, baixou o olhar para seus quadris. A latejante ereção estava se projetando, a excitação tão inesperada quanto exigente.

O que... Olhando pra cima ele se perguntou quem mais estava em sua necessidade. Era a única explicação.

– Você não vai querer uma resposta para isso.

Olhando por cima, ele encontrou Saxton em pé no arco da biblioteca.

– Quem.

Mas ele sabia. Ele sabia essa porra.

Saxton colocou sua mão elegante atrás de si.

– Você não quer vir e tomar uma bebida comigo no meu escritório?

O macho estava excitado também, como mostrava as calças de seu terno fino de tweed rapidamente – exceto que seu rosto não correspondia à sua ereção. Ele estava carrancudo.

– Venha. – ele repetiu, apontando com a mão novamente. – Por favor.

Os pés de Blay fizeram o trabalho, levando-o para a confusão caótica que a biblioteca estava desde que foi dada a Sax sua "atribuição". Qualquer que seja.

Quando Blay entrou ouviu as portas duplas fazendo um clique atrás dele e procurou em sua mente algo para dizer.

Nada. Ele não tinha... Nada. Especialmente quando acima de sua cabeça, no teto ornamentado com sua moldura de gesso, um baque abafado começou a soar.

Até mesmo os cristais no lustre piscavam, como se a força do sexo estivesse sendo transmitida através das vigas do piso.

Layla estava em sua necessidade. E Qhuinn estava servindo-a...

– Aqui, beba isso.

Blay pegou o que foi oferecido e engoliu como se suas entranhas estivessem em chamas e aquela merda fosse água. Porém o efeito foi o oposto de qualquer extintor. O conhaque queimou caminho abaixo e aterrissou como uma bola de calor.

– Mais? – Saxton disse.

Quando ele assentiu o copo desapareceu e retornou muito mais pesado. Depois que ele bebeu o número dois, ele disse:

– Estou surpreso...

Quanto isso parecia terrível. Ele achava que todos os laços entre ele e Qhuinn foram cortados. Ha, ha. Ele deveria ter pensado melhor.

No entanto recusou a terminar o pensamento em voz alta.

– ...Que você possa lidar com esse transtorno. – ele concluiu.

Saxton foi até o bar e se serviu de sua própria bebida.

– Temo que os detritos sejam necessários.

Conforme Blay caminhava até a mesa, ele girava o conhaque em círculos na palma da mão para aquecê-lo e tentou falar de uma maneira sensata.

– Estou surpreso que não esteja fazendo mais coisas no computador.

Saxton discretamente cobriu seu trabalho com outro volume encadernado em couro.

– A ineficiência de tomar notas à mão me dá tempo para pensar.

– Estou surpreso que precise disto, seu primeiro instinto está sempre certo.

– Você ficaria surpreso sobre muitas coisas neste momento.

Apenas uma, realmente.

– Estou só conversando.

– Mas é claro.

Enfim ele examinou seu amante. Saxton se acomodou num sofá de seda do outro lado com suas pernas cruzadas no joelho, suas meias de seda vermelhas aparecendo de relance debaixo da sua bainha sob medida, seus sapatos Ferragamo brilhavam do polimento regular. Ele era tão refinado e caro quanto suas antiguidades nas prateleiras, um macho perfeitamente elegante de uma linhagem condecorada com bom gosto e estilo.

Ele era tudo o que alguém podia querer...

Enquanto a porra do lustre brilhava acima da sua cabeça, Blay disse asperamente.

– Ainda estou apaixonado por ele.

Saxton baixou seus olhos e escovou o topo da sua coxa, como se houvesse um minúsculo fiapo lá.

– Eu sei. Pensou que não estivesse?

Como se isto fosse uma grande estupidez dele.

– Estou tão cansado desta porra. Realmente estou.

– Acredito nisso.

– Estou tão… – Deus, aqueles sons, aquele martelar abafado, aquela confirmação audível do que ele tinha ignorado no último ano...

Numa súbita onda de violência lançou o copo de conhaque na lareira de mármore, quebrando a coisa.

– Porra! Porra! – Se ele pudesse teria saltado e estraçalhado aquela porra daquela luminária do caralho do teto.

Dando meia volta foi cegamente para as portas, tropeçando nos livros, bagunçando as pilhas, quase se chocando com a mesa de café.

Saxton chegou ali primeiro, bloqueando a saída com seu corpo.

Os olhos de Blay se fixaram no rosto do macho.

– Saia do meu caminho. Agora. Você não quer ficar perto de mim.

– Isto não sou eu quem decide?

Blay mudou seu foco para os lábios que ele conhecia tão bem.

– Não força a barra.

– Ou. O quê?

Enquanto seu peito começava a bombear, Blay percebeu que o cara sabia exatamente o que estava provocando. Ou pelo menos achava que sabia. Mas algo transtornou, talvez fosse a necessidade, talvez fosse... Merda, ele não sabia e realmente não se importava.

– Se você não der o fora do meu caminho, vou dobrá-lo sobre essa sua mesa.

– Prove.

Coisa errada a dizer. No tom errado. Na hora errada.

Blay soltou um rugido que sacudiu as janelas envidraçadas. Então pegou seu amante pela parte de trás da cabeça e tudo mais e jogou Saxton do outro lado da sala. Conforme o macho caía sobre a mesa papéis voaram, os blocos amarelos de notas legais e impressos por computador caindo como neve.

Saxton virou seu peito quando olhou para trás para ver o que estava vindo para ele.

– Tarde demais para correr. – Blay rosnou enquanto rasgava o botão da sua braguilha.

Caindo sobre o macho ele foi com as mãos rudes, rasgando as camadas que o impediam de tomar o que queria. Quando não havia mais barreiras, ele arreganhou os dentes e mordeu o ombro de Saxton através de suas roupas, prendendo o macho embaixo dele até mesmo enquanto agarrava seus pulsos e os prendeu no mata-borrão de couro.

Então ele empurrou duro e soltou tudo o que tinha, seu corpo tomando conta... Mesmo que seu coração estivesse muito, muito distante.

A cabana, como Xhex a chamava, era uma acomodação muito modesta.

Conforme Autumn andava em seu interior, não havia muito para atrapalhar o seu caminho. A cozinha estreita nada mais era do que armários e bancadas. O espaço oferecia pouco mais que uma visão do rio, com apenas duas cadeiras e uma mesa pequena como móveis. Havia apenas dois quartos, um com dois colchões, outro com uma enorme e peculiar plataforma de dormir. E o banheiro era apertado, mas limpo, com uma única toalha pendurada na haste do chuveiro.

– Como disse a você, – Xhex falou da sala principal, – Não é muito. Há também uma instalação subterrânea para você durante o dia, mas temos que acessá-la da garagem.

Autumn saiu do banheiro.

– Acho que é bonito.

– Está tudo bem, pode ser honesta.

– Quis dizer o que disse. Você é uma mulher extremamente prática. Gosta que as coisas funcionem bem e não gosta de perder tempo. Este é um bom espaço pra você. – Ela olhou em torno mais uma vez. – Todas as instalações que transportam água para dentro e para fora são novas. Assim como os geradores. A cozinha tem bastante espaço para cozinhar com um fogão que tem seis bocas, não de quatro e é a gás, para que não precise se preocupar com eletricidade. O telhado é de ardósia e, portanto, duradouro, e os pisos não chiam, então presumo que o material é tão bem cuidado quanto todo o resto. – Ela se virou de um canto para o outro. – De todos os ângulos há uma janela para olhar para fora, assim você nunca será pega de surpresa, e vejo que existem fechaduras de cobre em todos os lugares. Perfeito.

Xhex pegou seu casaco.

– Isso é, ah ... Muito perspicaz de sua parte.

– Não realmente. É óbvio para qualquer um que a conheça.

– Estou... Estou realmente feliz que o faça.

– Eu também.

Autumn foi até as janelas que davam para a água. Lá fora a lua lançava uma luz brilhante sobre a paisagem de neve, a iluminação refratária marcando seus olhos azuis.

Você está apaixonada por mim. Não se preocupe em negar... Você me diz enquanto dorme todos os dias... E sabe muito bem que a única razão porque estou com você é para tirar Wellsie do Limbo. Então, eu apenas não me encaixo em seu padrão correto.

– Mahmen?

Autumn se focou no reflexo de sua filha no vidro.

– Desculpe, o quê?

– Você quer me contar o que aconteceu entre você e Tohr?

Xhex ainda tinha que tirar suas armas e enquanto estava ali, ela era tão poderosa, segura, forte... Ela não se curvava diante de nenhum macho e de ninguém, e isso era tão maravilhoso. Não que isso fosse uma bênção enorme.

– Estou tão orgulhosa de você. – disse Autumn, virando-se para enfrentar a fêmea. – Quero que saiba que estou muito, muito orgulhosa de você.

Os olhos de Xhex foram para o chão e ela passou uma mão pelos cabelos, como se não soubesse como lidar com os elogios.

– Obrigada por me trazer. – continuou Autumn. – Vou tentar ganhar meu sustento durante o período que estiver aqui e contribuir de alguma maneira.

Xhex sacudiu a cabeça.

– Continuo dizendo, você não é uma hóspede.

– Seja como for, não serei um fardo.

– Você vai me contar sobre Tohr.

Autumn considerou as armas que ainda pendiam dos coldres de couro e achou que o brilho do bronze era muito parecido com a luz nos olhos de sua filha: uma promessa de violência.

– Você não deve ficar zangada com ele. – ela se ouviu dizendo. – O que aconteceu entre nós foi consensual e acabou por... Uma razão adequada. Ele não fez nada errado.

Enquanto falava não tinha certeza do que realmente pensava sobre tudo, mas uma coisa estava clara: Ela não criaria uma situação onde Xhex fosse atrás do macho com todas as armas em punho – literalmente.

– Você me ouviu, minha filha. – Não era uma pergunta, mas um comando, o primeiro que ela deu em sua vida, soando como de um pai para um filho. – Você não tem motivos para se encontrar com ele ou falar sobre isto com ele.

– Me dá uma razão para isso.

– Você conhece as emoções dos outros, certo?

– Sim.

– Quando foi a última vez que encontrou alguém que se apaixonou por outra pessoa. Que tinha desejado que seus sentimentos fossem numa determinada direção, quando no seu estado natural, seu coração pendia por outra pessoa.

Xhex praguejou baixinho.

– Nunca. É uma receita para o desastre, mas você ainda pode ser respeitosa com a maneira como você diz certas frases.

– A embalagem que envolve certas palavras não muda a natureza da verdade. – Autumn olhou de volta para a paisagem coberta pela neve e o rio que estava parcialmente congelado. – E prefiro saber o que é real a viver uma mentira.

Houve silêncio por um tempo entre elas.

– Isso é o suficiente do “por que”, minha filha?

Praguejou outra vez. Mas então Xhex disse:

– Não gosto disso... Mas, sim é.

 

Tohr estava sentado no parque do estacionamento por só Deus sabia quanto tempo. Tinha que ser por pelo menos uma noite e um dia, e depois talvez mais uma noite ou duas? Ele não sabia e não se importava realmente.

Era como estar de volta dentro do útero, supôs. Exceto que sua bunda estava dormente e seu nariz escorrendo do frio.

Com sua raiva épica desvanecida e suas emoções acalmadas, seus pensamentos se tornaram como um grupo de viajantes, passando através de seções de sua vida, vagando pelas paisagens de diferentes épocas, retornando para o reexame de picos e vales.

Maldita viagem longa. E nesse finalzinho ele estava cansado, embora seu corpo não se movesse por horas e horas.

Nada surpreendente que os dois lugares mais revisitados foram os da necessidade de Wellsie... E de Autumn. Esses acontecimentos e suas respectivas consequências foram as montanhas mais escaladas, as diferentes cenas como paisagens piscando numa sequência alternada de comparação até que se turvasse, formando uma cópia de ações e reações, suas e delas.

Depois de todas as reflexões, havia três resoluções que ele continuava voltando repetidamente.

Teria que pedir desculpas a Autumn, é claro. Cristo, essa era a segunda vez que ele tirava um pedaço dela, a primeira vez foi à quase um ano na piscina. Em ambos os casos seu temperamento levou a melhor sobre ele por causa da carga de estresse em que estava, mas isso não era desculpa.

A segunda era encontrar esse anjo e fazer outra série de “sinto muito”.

E a terceira... Bem, a terceira era realmente a mais importante, a única coisa que tinha que fazer antes das outras.

Ele tinha que fazer contato com Wellsie uma última vez.

Respirando fundo, fechou os olhos e desejou relaxar um pouco os músculos. Então, com mais desespero do que esperança, ele comandou sua mente cansada para estar livre de todos os pensamentos e imagens, vazia de tudo o que o manteve acordado por todo esse tempo, sem remorsos, os erros e a dor...

Eventualmente à ordem foi cumprida, a implacável caminhada mental foi diminuindo até que toda a merda do conhecimento Lewis-e-Clark[36] cessou.

Impregnando seu subconsciente com um único objetivo, ele se deixou cair em sono e esperou em estado de repouso até...

Wellsie chegou até ele em tons de cinza, dentro daquela paisagem árida enevoada, vento frio e pedras. Ela estava tão longe, agora, que o alcance de sua visão o permitiu ver umas das formações rochosas em ruínas de perto...

Só que não eram de fato feitas de pedra.

Nenhuma delas era.

Não, essas eram figuras encolhidas de outros que sofreram como ela, seus corpos e ossos gradualmente desmoronando sobre si mesmos até que fossem apenas montes para serem usados pelo vento.

– Wellsie? – ele gritou.

Conforme o nome dela ia à deriva para o horizonte ela nem olhava pra ele.

Não parecia nem reconhecer sua presença.

A única coisa que se movia era o vento frio que abruptamente pareceu marchar em sua direção, soprando através da planície cinzenta, soprando através dele e dela.

Enquanto o vento pegava o cabelo dela, mechas se formavam ao seu redor...

Não, não mechas. Seu cabelo agora estava cinza, cinzas espalhadas numa corrente invisível que vinha para ele, atingindo-o enquanto a poeira fazia seus olhos lacrimejarem.

Eventualmente isso seria ela toda. E então nada dela.

– Wellsie! Wellsie, estou aqui!

Ele a chamou para despertá-la, para obter sua atenção, para dizer a ela que ele finalmente estava pronto, mas não importava o quanto gritasse ou quanto acenasse com os braços, ela não se concentrava nele. Ela não olhou para cima. Não se mexia... E nem seu filho.

Ainda assim o vento soprava, levando partículas infinitesimais de suas formas, consumindo-as.

Num aperto de medo ele se transformou em um macaco enorme, rugindo e pulando ao redor, gritando bem alto e agitando os braços, mas como se as regras do esforço se aplicassem até mesmo em outro mundo, eventualmente ele perdeu energia e caiu amontoado no chão empoeirado.

Eles estavam sentados na mesma pose, ele percebeu.

E foi aí que a verdade paradoxal chegou até ele.

A resposta veio de uma só vez, tudo o que tinha acontecido com Autumn, o sexo e a alimentação – contudo não tinha nada a ver com ela. Isso tudo era sobre Lassiter tentar ajudá-lo – e nada além disso. Não era nem mesmo sobre Wellsie, realmente.

Era ele. Tudo... E ele.

Em seu sonho, ele baixou o olhar para si mesmo, e abruptamente a força veio para ele com uma tranquilidade que tinha tudo a ver com a sede de sua alma... E o fato de que o caminho do seu sofrimento – e o dela – tinha acabado de ser iluminado pela mão do seu Criador.

Finalmente, após todo esse tempo, toda essa merda, toda essa agonia, ele sabia o que fazer.

Agora quando falou, ele não gritou.

– Wellsie, sei que pode me ouvir, aguente. Preciso de um pouquinho mais de você, finalmente estou pronto. Só lamento que tenha levado tanto tempo.

Ele permaneceu ali por apenas mais um instante, jogando todo seu amor em sua direção, como se pudesse manter o que restava dela intacto. Então ele se retirou, livrando-se num arranco com uma explosão de vontade hercúlea que fez seu corpo se sacudir de sua posição sobre o chão de concreto.

Estendendo a mão, ele se impediu de cair de cara no chão e imediatamente se levantou.

Tão logo se levantou, percebeu que se não urinasse imediatamente sua bexiga explodiria e não conseguiria se segurar.

Avançando para a rampa, correu para a clínica e entrou no primeiro banheiro que encontrou. Quando surgiu não parou para checar qualquer pessoa, mesmo podendo ouvir vozes em outras partes do centro de treinamento.

Lá em cima na casa principal ele encontrou Fritz na cozinha.

– Ei, meu amigo, preciso de sua ajuda.

O mordomo levantou o olhar da lista de compras que estava fazendo.

– Senhor! Você está vivo! Oh, bendita Virgem Escriba, está todo mundo lhe procurando lá fora...

Merda. Tinha esquecido que havia implicações em sair da grade.

– Sim, desculpe. Vou enviar um torpedo pra todo mundo. – Assumindo que pudesse encontrar seu telefone? Provavelmente o deixou na clínica e não perderia tempo indo lá. – Ouça, o que realmente preciso é que você venha comigo.

– Oh, senhor, seria um prazer servi-lo. Mas talvez você devesse ir até o rei primeiro, todos estão tão preocupados...

– Vamos fazer o seguinte. Você dirige e eu vou pegar seu telefone emprestado. – Quando houve uma hesitação, ele baixou sua voz. – Temos que ir agora, Fritz. Preciso de você.

O chamado para o serviço era precisamente o motivador que o mordomo precisava. Com uma reverência, ele disse.

– Como quiser, senhor. E talvez eu deva levar uns refrigerantes para você?

– Boa ideia. Preciso de cinco minutos.

Quando o mordomo acenou com a cabeça concordando e desapareceu dentro da despensa, Tohr deu a volta na base das escadas e subiu pelo carpete vermelho dois passos de cada vez. Parou de correr quando chegou à porta de John Matthew.

Sua batida foi respondida imediatamente, John abriu caminho com um empurrão. Quando o rosto do rapaz registrou surpresa, Tohr ergueu suas mãos em autodefesa, porque sabia que ele daria esporro pelo seu desaparecimento novamente.

– Lamento que eu...

Ele não teve chance de terminar. John abraçou Tohr e segurou com tanta força que sua espinha estalou.

Tohr estava bem ali, devolvendo o favor. E enquanto segurava o único filho que tinha, ele falou em voz baixa e clara.

– John, quero que saia da ronda de hoje à noite e venha comigo. Preciso de você... Venha comigo. Qhuinn pode vir também e isso vai levar a noite toda, talvez mais. – Quando Tohr sentiu o assentimento contra seu ombro, ele respirou fundo. – Bom, filho. Isso é... Bom. Não há nenhuma maneira de eu fazer isso sem você.

 

– Como está se sentindo?

Layla abriu os olhos pesados ​​e olhou para o corpo de Qhuinn acima do seu rosto. Parado ao lado da cama em seu quarto ele estava completamente vestido, grande e distante, desajeitado mas não desagradável.

Ela sabia como ele se sentia. Passado o fogo intenso de sua necessidade, aquelas horas de tensão, martelar e arranhar acabaram e se assentaram, uma nota de rodapé estranha que parecia já estar desaparecendo em sua memória como um sonho. Quando os dois foram presos no punho da experiência, parecia como se nada mais voltasse a ser o mesmo, que seriam mudados e transformados para sempre pelas erupções vulcânicas.

Mas agora... O calmo retorno à normalidade parecia ser tão poderoso quanto começar do zero.

– Acho que estou pronta para me levantar. – ela disse.

Ele foi tão bom alimentando-a de sua veia e também trazendo comida, e ela ficou em repouso por pelo menos vinte e quatro horas depois, como era a tradição lá em cima no Santuário após o Primale ter se deitado com uma Escolhida.

No entanto, já estava na hora de se mexer.

– Você pode ficar aqui, você sabe. – Ele foi até seu closet e começou a se armar para a noite. – Descanse um pouco mais. Relaxe.

Não, ela teve o suficiente disso.

Apoiando-se em seus cotovelos ela esperou se sentir tonta e ficou aliviada quando não se sentiu. Apesar de tudo, ela se sentia forte.

Não havia outra maneira de colocar isto. Seu corpo estava apenas... Forte.

Deslocando suas pernas para fora do colchão, colocou seu peso em seus pés nus e lentamente se levantou. Qhuinn veio imediatamente para o lado dela, mas não precisava de ajuda.

– Acho que vou tomar um banho. – ela anunciou

E depois disso? Não tinha ideia do que iria fazer.

– Quero que você fique aqui. – disse Qhuinn como se estivesse lendo sua mente. – Você vai ficar aqui. Comigo.

– Não sabemos se estou grávida.

– Mais uma razão para ter calma. E se estiver, você ficará comigo.

– Tudo bem. – Afinal eles estavam nisso juntos, supondo que “isso” tinha que ser.

– Vou sair pra lutar agora, mas tenho meu celular comigo o tempo todo e deixei um pra você na mesa de cabeceira. – Ele segurou o seu no alto e apontou o outro ao lado do despertador. – Ligue ou mande uma mensagem se precisar de mim, está claro?

Seu rosto estava muito sério, os olhos focando-a com uma intensidade que lhe deu uma ideia de como ele provavelmente era perfeito em campo. Nada e ninguém ficariam no seu caminho se ela ligasse para ele.

– Prometo.

Ele assentiu e foi para a porta. Antes que a abrisse pra sair, ele parou e pareceu estar à procura de palavras.

– Como vamos saber se você...

– Abortou? Vou começar a sentir cólicas e então vou sangrar. Vi isso acontecer no Outro Lado várias vezes.

– Você estará em perigo se abortar?

– Não que eu já tenha visto, não tão cedo.

– Você deveria ficar em repouso na cama?

– Depois das primeiras vinte e quatro horas, se isto acontecer, acontecerá. Estando em repouso ou não, neste momento nossa sorte já está lançada.

– Vai me avisar?

– Assim que eu souber.

Ele se virou. Pareceu encarar a porta por um instante.

– Ele vai se manter.

Ele estava muito mais confiante do que ela, mas era gratificante saber de sua fé e seu desejo pelo que ela queria.

– Volto ao amanhecer. – ele disse. – Vou estar aqui.

Depois que ele saiu, ela foi sozinha para o chuveiro, passando o sabonete sobre a parte inferior da sua barriga várias vezes. Parecia estranho ter uma coisa tão potencialmente importante ocorrendo em seu próprio corpo e ainda assim desconhecer as particularidades.

Eles descobririam em breve, no entanto. A maioria das mulheres sangrava na primeira semana, se não estivessem grávidas.

Quando saiu debaixo do jato, enxugou-se e descobriu que ele cuidadosamente deixou outra de suas vestes em cima do balcão, então as pegou, junto com algumas roupas intimas, no caso de um aborto ocorrer.

No quarto principal ela se sentou no edredom para calçar seus chinelos, e então...

Não havia nada para ela fazer. E o silêncio e a quietude eram pobres companheiros de sua ansiedade.

Espontaneamente a imagem do rosto de Xcor voltou para ela mais uma vez.

Com uma maldição suave, ela temia que nunca fosse esquecer a maneira pela qual ele a considerou, seus olhos olhando pra ela como se fosse uma visão que ele não pudesse compreender totalmente, e ainda assim, sempre seria grato por ter visto apenas uma vez.

Ao contrário das lembranças da necessidade, as sensações que sentiu quando aquele macho se concentrou nela eram tão incandescentes quanto no momento em que ela as viveu, inalterável ao longo dos meses que a separavam desse encontro. Exceto... Ela simplesmente imaginou tudo isso? Seria possível que a lembrança fosse forte simplesmente porque foi uma fantasia?

Obviamente se a necessidade era passageira, a vida real se desvanecia rapidamente.

Porém o desejo de ser desejada não...

A batida na porta a fez se encolher.

– Sim?

Do outro lado da porta uma voz feminina respondeu:

– É Xhex. Importa-se se eu entrar?

Não podia imaginar o que a fêmea estava fazendo procurando por ela. Ainda assim gostava da companheira de John e ela sempre receberia sua shellan.

– Oh, por favor, entre. Oi, esta é uma grata surpresa.

Xhex as trancou por dentro e sem jeito olhou para todos os lugares, menos para o seu rosto.

– Então, ah... Como está se sentindo?

Na verdade tinha a sensação que um monte de gente estaria lhe perguntando isto na próxima semana.

– Bem o suficiente.

– Ótimo. Sim... Bom.

Fez-se um longo silêncio.

– Há algo em que eu possa ajudá-la? – Layla perguntou.

– Para falar a verdade, sim.

– Então me diga o que é e vou fazer o que puder.

– É complicado. – Xhex estreitou os olhos. – E perigoso.

Layla pôs a mão em seu baixo ventre como se estivesse protegendo seu filho, caso houvesse um.

– O que buscas?

– Por ordens de Wrath estou tentando encontrar Xcor.

O peito de Layla se apertou, a boca abrindo para que assim pudesse respirar.

– Naturalmente.

– Eu sei que está ciente do que ele fez.

– Sim, estou.

– Também sei que você o alimentou.

Layla piscou enquanto a imagem daquele rosto cruel e estranhamente vulnerável veio até ela novamente. Por uma fração de segundo ela teve o instinto absurdo de protegê-lo, mas isso era ridículo e algo que ela pudesse sustentar.

– É claro que ajudarei você e a Wrath. Fico feliz que o rei tenha reconsiderado sua posição anterior.

Agora a fêmea hesitou.

– E se eu lhe disser que Wrath não poderá saber sobre isso? Ninguém pode, especialmente Qhuinn. Isso faria você mudar de ideia?

John, ela pensou. John contou para sua companheira o que havia acontecido.

– Compreendo – disse Xhex – que estou colocando você numa posição terrível, mas você sabe qual é a minha natureza. Vou usar qualquer coisa à minha disposição para conseguir o que quero, e quero encontrar Xcor agora. Não tenho dúvidas de que serei capaz de protegê-la, e não tenho nenhuma intenção de ter você em qualquer lugar perto dele. Só preciso da área geral onde ele se instala durante a noite e vou tirá-la de lá.

– Você vai matá-lo?

– Não, mas darei à Irmandade a munição para fazê-lo. A arma que foi usada para atirar em Wrath era um rifle de longo alcance, não é o tipo de coisa que alguém levaria para o campo em uma noite normal. Assumindo que não o destruíram, eles o deixarão para trás quando saírem. Se eu conseguir desencavá-lo poderemos provar o que eles fizeram, e as coisas tomarão seu curso natural.

Olhos bondosos, ela pensou... O homem tinha olhos desse tipo quando olhou para ela. Mas, de fato ele era o inimigo do seu rei.

Layla sentiu sua cabeça acenando.

– Vou ajudá-la. Farei qualquer coisa que eu puder... E não direi uma palavra.

A fêmea se aproximou e colocou uma mão surpreendentemente gentil em seu ombro.

– Odeio colocar você nesta posição. A guerra é um negócio muito feio que se especializa em comprometer pessoas boas como você. Posso sentir como isso está lhe rasgando e lamento que eu esteja lhe pedindo para mentir.

Era adorável que a symphath se preocupasse com ela, mas seu conflito não estava em dar falso testemunho à Irmandade. Estava no guerreiro que estaria ajudando a matar.

– Xcor me usou. – disse como se estivesse tentando se convencer.

– Ele é muito perigoso. Você tem sorte de ter saído de seu encontro com ele viva.

– Farei o que é certo. – Ela olhou para Xhex. – Quando partimos?

– Agora. Se estiver em condições.

Layla buscou forças lá do fundo. Então assentiu.

– Permita-me pegar meu casaco.

 

Horas mais tarde, quando Marissa se sentou em sua escrivaninha no Lugar Seguro, ela atendeu seu celular e não pôde deixar de sorrir.

– É você novamente.

A voz de Butch com sotaque de Boston estava enrouquecida. Como de costume.

– Quando vai voltar para casa?

Ela olhou para o seu relógio e pensou: Para onde a noite foi? Mas sempre foi assim no trabalho. Ela vinha assim que o sol estava seguro abaixo da linha do horizonte, e antes que percebesse, a luz estava ameaçando no leste e estava se dirigindo de volta para o complexo.

Para os braços do seu macho.

Dificilmente isto era um dever.

– Cerca de quarenta e cinco minutos?

– Você poderia vir agora…

O modo como ele arrastava aquelas palavras sugeria um significado completamente diferente daquele verbalizado, “voltar pra casa”.

– Butch...

– Não consegui sair da cama hoje à noite.

Ela mordeu os lábios, imaginando-o nu debaixo dos lençóis que estavam bagunçados quando ela saiu.

– Não?

– Mmm, não. – Ele arrastou as sílabas, pelo menos até que ficou sem fôlego. – Estive pensando em você…

Sua voz era tão profunda, tão crua, que ela sabia exatamente o que ele estava fazendo em si mesmo, e por um momento fechou seus olhos e se entregou seriamente a algumas belas imagens mentais.

– Marissa… Volte pra casa…

Voltando a si num estalo, ela se retirou do feitiço que ele sabia muito bem que estava tecendo ao redor dela.

– Não posso sair agora. Mas vou começar a checar as coisas... E quanto a isso?

– Perfeito. – Ela podia ouvir o sorriso em seu rosto. – Estarei aqui esperando por você... E ouça, brincadeiras à parte, leve o tempo que precisar. Só chegue antes da Última Refeição. Quero lhe dar um aperitivo que você não vai esquecer.

– Você já é bastante inesquecível.

– Esta é minha garota. Eu amo você.

– Eu também amo você.

Quando terminou a ligação, um grande e largo sorriso de felicidade estava em seu rosto. Seu companheiro era o tipo de macho tradicional da “velha escola,“ como ele mesmo se chamava, com todos os preconceitos que vinham com aquele cenário mental. As fêmeas nunca deveriam pagar por nada, abrir uma porta, abastecer seus carros, atravessar uma poça de lama, carregar algo maior do que poderia caber em um saco de sanduíche... Isso tudo o descreve. Mas ele nunca se meteu no seu trabalho. Nunca. Essa era a única área da sua vida onde ela dava as ordens, e ele nunca reclamou dessas horas, sua carga de trabalho, ou seu nível de estresse.

O que era apenas uma das muitas razões porque adorava o Irmão. As fêmeas e crianças desalojadas que ficavam no Lugar Seguro eram uma espécie de família para ela, uma que ela chefiava. Ela estava no comando da instalação, do pessoal, dos programas, dos recursos, e o mais importante, de tudo e de todos que estavam debaixo do seu teto. E ela amava seu trabalho. Quando Wrath lhe deu carta branca para fazer caridade ela quase recusou, mas estava tão contente que tenha lutado contra o medo para encontrar seu objetivo profissional.

– Marissa?

Erguendo o olhar, ela encontrou uma das suas mais novas conselheiras de pé na entrada do seu escritório.

– Oi. Como está o grupo hoje à noite?

– Realmente bem. Entregarei meu relatório em aproximadamente uma hora, logo depois que terminarmos de fazer biscoitos na cozinha. Sinto muito interrompê-la, mas há um cavalheiro aqui com uma entrega.

– Sério? – Ela franziu o cenho para o calendário na parede. – Nós não temos nada programado.

– Eu sei, por isso não destranquei a porta. Ele disse que você o conhecia, mas não quis dar seu nome. Será que não deveríamos chamar a Irmandade?

– Qual a aparência dele?

A fêmea estendeu uma mão acima da cabeça.

– Muito alto. Grande. Tem cabelo escuro com uma mecha branca na frente.

Marissa se levantou tão rápido que sua cadeira caiu com um chiado no chão.

– Tohrment? Ele está vivo?

– Desculpe?

– Vou lidar com isso. Está tudo bem, pode voltar pra cozinha.

Marissa disparou de seu escritório e desceu o conjunto frontal de escadas. Parando na entrada principal, verificou o monitor de segurança que V instalara e logo em seguida escancarou a porta.

Ela se lançou para o Irmão sem pensar.

– Oh, Deus, onde você estava? Estava perdido a várias noites!

– Na verdade não. – Ele devolveu seu abraço suavemente. – Estava apenas cuidando de alguns negócios. Mas está tudo bem.

Ela recuou, mas continuou segurando seus bíceps volumosos.

– Você está bem?

Todos na mansão sabiam que Autumn tinha passado por sua necessidade e podia imaginar como foi difícil para ele. E ela esperava, assim como todos eles, que a crescente relação entre o Irmão e a calma e decaída aristocrata pudesse curá-lo. Ao invés disso, ele desapareceu depois que ela terminou seu período fértil e Autumn saiu de casa.

Não era um resultado feliz, obviamente.

– Escute, sei que você recebe doações, certo? – Ele disse.

Respeitando o fato de que ele não respondeu sua pergunta, ela parou de sondar.

– Oh, com certeza. Aceitamos qualquer coisa, somos especialistas em adaptar e reutilizar por aqui.

– Bom, porque tenho algumas coisas que gostaria de dar para as fêmeas, pode ser? Não tenho certeza se você pode usar alguma coisa, mas…

Ele se virou e abriu caminho até o furgão da Irmandade que estava estacionado na entrada da garagem. Fritz estava acomodado no banco do passageiro, e o velho mordomo pulou para fora quando ela se aproximou.

Pela primeira vez ele não tinha um sorriso alegre no rosto. No entanto, ele fez uma profunda reverência.

– Senhora, como tem passado?

– Oh, muito bem, Fritz, obrigada.

Ela se calou quando Tohr deslizou o painel lateral...

Um olhar para dentro e ela parou de respirar.

Iluminados pela luz de cima do furgão estavam pilhas organizadas do que parecia serem roupas em cestos de lavanderia, caixas de papelão e mochilas abertas. Havia também saias, blusas e vestidos ainda em seus cabides, envoltos com cuidado no piso da van.

Marissa olhou para Tohr.

O Irmão estava em silêncio e olhando fixamente para o chão – e claramente não fazia contato visual.

– Como eu disse, não tenho certeza se você pode usar qualquer uma delas.

Ela se inclinou e tocou um dos vestidos.

A última vez que o viu, foi em Wellsie.

Estas eram as roupas da shellan dele.

Com uma voz embargada, ela sussurrou.

– Você tem certeza de que quer doar isto?

– Sim. Jogar tudo isso fora parece simplesmente um desperdício e ela não aprovaria isso. Wellsie iria querer que fossem usadas por outras pessoas, seria importante para ela. Ela odiava desperdício. Mas, sim, apesar de tudo eu não sei sobre todas essas coisas de tamanhos femininos.

– Isto é muito generoso de sua parte. – Ela estudou o rosto do macho, percebendo que era a primeira vez desde que ele voltou depois do assassinato, que ela o ouviu dizer o nome. – Vamos usar tudo isto.

Ele acenou com a cabeça, seus olhos ainda evitando os dela.

– Inclui artigos de toalete fechados também. Como xampu e condicionador, seu hidratante, aquele sabonete Clinique que ela gostava. Wellsie era realmente exigente nesse tipo de coisa, ela tendia a encontrar algo que gostava e se apegar... Ela também era ótima em estocar, por isso havia bastante coisa quando limpei nosso banheiro. Ah, e trouxe também algumas coisas da cozinha... Aquelas panelas de cobre que ela preferia e suas facas. Posso levar para uma Legião da Boa Vontade humana se você...

– Ficaremos com tudo o que você tem.

– Aqui estão as coisas de cozinha. – Tohrment deu a volta e abriu a porta de trás para mostrar a ela. – Sei que você não permite homens lá dentro, mas talvez eu possa colocar isso tudo na garagem?

– Sim, sim, por favor. Deixe-me buscar algumas mãos extras para nos ajudar...

– Eu mesmo gostaria de carregar isso, se você não se importar.

– Oh sim, é claro… Sim. – Agitada, ela correu e digitou o código no teclado das portas da garagem.

Quando o lado esquerdo abriu, ela se aproximou e parou junto ao mordomo enquanto Tohrment ia e voltava num ritmo constante, carregando os pertences de sua companheira com cuidado, criando uma pilha alta e arrumada bem ao lado da porta que dava para a cozinha.

– Ele está empacotando a casa? – Ela sussurrou para Fritz.

– Sim, senhora. Nós trabalhamos a noite toda, John, Qhuinn, eu e ele. Ele cuidou dos quartos e da cozinha, enquanto os outros machos e eu trabalhávamos no resto da casa. Ele me pediu para voltar com ele depois deste próximo pôr do sol, de forma que todos os móveis e obras de arte possam ser removidos para a mansão.

Marissa levantou a mão e cobriu sua boca para que seu choque fosse menos evidente. Mas não precisava ter se preocupado sobre sua reação deixar Tohr desconfortável; o Irmão estava focado apenas em sua tarefa.

Quando o furgão estava vazio ele fechou tudo e deu a volta, contornando-o. Exatamente quando ela estava tentando organizar palavras apropriadas de gratidão, de profundo respeito, da mais profunda simpatia, ele a cortou, tirando algo do seu bolso – um saco de veludo.

– Eu tenho mais uma coisa. Você me dá sua mão? – Quando ela estendeu sua palma, ele soltou o cordão no topo da coisa. Virando de cabeça para baixo, ele despejou...

– Oh, meu Deus! – Marissa ofegou.

Rubis. Grandes rubis vermelhos cravejados de diamantes. Muitos deles – um colar – não, um colar e uma pulseira. Brincos também. Ela precisou das duas mãos para segurar aquilo tudo.

– Comprei estes para ela por volta de 1964. De Van Cleef e Arpels?[37] Era para ser para o nosso aniversário, mas não sei que porra eu estava pensando. Wellsie não era uma grande fã de joias, ela gostava mais de objetos de arte. Ela sempre disse que essas joias eram espalhafatosas. Enfim, você sabe, vi essas joias numa revista Town e Country na casa de Darius. Pensei que ficariam bem com seu cabelo vermelho e quis fazer algo excepcional e romântico, só pra provar que eu podia fazer. Ela realmente não se importava com elas, mas a cada ano seguinte, a cada ano sem falhar, ela pegava o conjunto do cofre e os colocava. E todos os anos... A cada ano... Eu tinha que dizer a ela que eles não se comparavam com a beleza dela... – Ele parou de chofre. – Desculpe-me, estou totalmente incoerente.

– Tohr… Não posso aceitá-las. Isto é demais...

– Quero que você venda estas joias. Venda-as, pegue o dinheiro e use-o para expandir a casa nos fundos. Butch disse algo sobre você precisar de mais espaço? Acho que elas devem valer uns duzentos e cinquenta mil, talvez mais. Wellsie teria adorado o que você está fazendo aqui, teria apoiado e se voluntariado com as fêmeas e as crianças, teria se envolvido realmente. Então, você sabe, não existe um lugar melhor para eles estarem.

Marissa começou a piscar muito rápido – era isso ou deixar as lágrimas caírem. Era só que… Ele estava sendo tão corajoso…

– Você tem certeza... – ela disse asperamente. – Você tem certeza que quer fazer tudo isso?

– Sim. Está na hora. Manter suas coisas não a trouxe de volta e nunca trará. Mas pelo menos elas poderão ajudar as fêmeas desta casa, então nada será desperdiçado. É importante para mim que as coisas que nós compramos juntos, tivemos juntos, usamos juntos… Não serão, você sabe, desperdiçadas.

Com isso Tohr se inclinou e lhe deu um abraço rápido.

– Fique bem, Marissa.

E então ele fechou o furgão, ajudou o mordomo a se acomodar no banco do motorista e com um aceno final, desmaterializou-se na noite que estava chegando ao fim.

Marissa baixou o olhar para a fortuna em suas mãos, então se voltou para Fritz no furgão que estava cautelosamente manobrando para fora da calçada. Quando o doggen foi embora então o seguiu, caminhando via abaixo, colocando as pedras de volta em sua bolsinha. Enquanto ele contornava, ela ergueu o braço e acenou. Ele fez o mesmo.

Envolvendo os braços ao redor de si mesma para afastar o frio, ela assistiu as luzes traseiras desaparecerem.

Com o peso das joias ainda em suas mãos, ela se virou em direção a casa e imaginou a expansão que poderia fazer no pátio traseiro, criando mais quartos para as fêmeas e seus filhos – especialmente no subsolo, onde estariam a salvo durante o dia.

Seus olhos lacrimejaram de novo e desta vez não havia como impedir as lágrimas de correr pela sua face. Conforme a instalação na frente dela ondulava, o futuro ficou claro: Ela sabia exatamente que nome daria a nova ala depois.

Wellesandra soava bem.

 

Layla nunca estivera lá fora tão perto do amanhecer, e ela achou interessante notar que havia uma mudança real no ar, uma vitalização que conseguia sentir, mas não ver: o sol era realmente poderoso, capaz de iluminar o mundo inteiro, e a iluminação crescente fazia sua pele aguilhoar em alerta, algum instinto arraigado profundamente em sua carne dizendo-lhe que agora era hora de voltar para casa. Ainda que ela não quisesse ir.

– Como estão as coisas? – Xhex perguntou, por trás dela.

Na verdade, tinha sido uma noite longa. Elas tinham estado nos arredores de Caldwell por horas, circulando na escuridão, rastreando Xcor e seus guerreiros – o que se provara fácil demais de ser feito. Seu sentido do macho era claro como uma locação iluminada por faróis, seu laço com ele proveniente da alimentação meses atrás ainda não tinha desvanecido. E por sua vez... Xcor parecia estar tão preso em sua guerra que não sabia que ela estava por perto; certamente se estivesse consciente da sua proximidade, ele não teria se aproximado dela, e nem o outro soldado.

– Layla?

Ela olhou de relance para a fêmea. – Eu sei exatamente onde ele está. Ele não se moveu.

– Não é sobre isto que estou perguntando.

Layla teve de sorrir um pouco. Uma das grandes surpresas da noite tinha sido a sympath - a quem ela realmente não se sentia mais confortável em chamar desta forma. Xhex tinha uma mentalidade afiada, e era tão forte quanto um macho fisicamente, mas havia um calor nela que, apesar de tudo era parte de sua característica pessoal. Ela jamais saíra do lado de Layla, rodeando-a como uma mahmen em cima de sua cria, sempre solícita e cuidadosa, como se ela soubesse que era custoso para ela tal tarefa e circunstâncias problemáticas.

– Estou bem.

– Não, não está.

Quando Layla voltou a se concentrar no sinal em seu sangue a alguns blocos de distância, ela ficou quieta.

– Tenho certeza que você já sabe disto, – Xhex murmurou. – Mas você realmente está fazendo a coisa certa.

– Eu sei. Ele está mudando de posição.

– É, eu consigo sentir isto.

De repente, Layla se voltou para um imenso e brilhante farol a oeste: o arranha-céu mais alto da cidade. Enquanto ela se concentrava nas luzes que piscavam branca e vermelha em seu telhado, ela o imaginou parado no frio cortante em cima do edifício, reivindicando a cidade.

– Você acha que ele é mau? – ela perguntou roucamente. – Digo, você pode sentir suas emoções, né?

– Até certo ponto, eu posso.

– Então... Ele é mau?

A outra fêmea exalou longa e lentamente, como se arrependendo de algo que iria compartilhar. – Ele não seria uma boa aposta, Layla. Não para você, não para ninguém mais... E não só por causa do caso com Wrath. Xcor traz algo sinistro dentro de si.

– Então ele tem uma alma sombria.

– Você não precisa lê-lo para saber isto. Só pense no que ele fez ao seu rei.

– É. É, mesmo.

De Qhuinn a Xcor. Histórico fabuloso para escolher machos...

– Ele está se movendo rapidamente, – Layla disse com urgência. – Está se desmaterializando.

– É isto, é agora que você entra.

Layla fechou os olhos e apagou todos os seus sentidos exceto o instinto de encontrar seu próprio sangue. – Está se movendo ao norte.

Como previamente acordado, as duas viajaram uma milha e se reuniram; viajaram outras cinco milhas e se reuniram; viajaram outras dez, e outras dez... Com os sentidos de Layla agindo como um compasso, guiando seu caminho.

E neste tempo todo, o tempo era essencial, o amanhecer se aproximava, um brilho perigoso se alojando no assento do céu e ficando mais forte.

A reta final de sua corrida desencabou em uma floresta de árvores, a uma ou uma milha e meia de onde ele tinha parado – e até então, não ido adiante.

– Eu posso lhe deixar mais perto, – Layla murmurou.

– Ele não está se movendo?

– Não, não está.

– Então agora você vai. Agora!

Layla deu mais uma olhada para a direção onde ele estava. Ela sabia que tinha de partir – pois se ela podia senti-lo, ele poderia talvez senti-la também. A expectativa, é claro, era que se ele pudesse, ele não pudesse reagir rápido o suficiente, então ela desapareceria para o ambiente protegido pelo mhis ao norte que o impediria de rastreá-la e o frustraria completamente, não apenas deixando-o sem nenhuma ideia de seu paradeiro, mas bagunçando seu sentido de sangue tão totalmente, que ele seria enviado para uma direção totalmente diferente, como se tivesse batido num espelho que o refletisse pra longe.

Medo fez seu coração falhar uma batida, e ela se apegou à sensação, reconhecendo-a como mais real do que sua recordação do tempo que estiveram juntos quando ele se alimentara dela.

– Layla? Vá!

Querida Virgem Escriba, ela o tinha condenado a morte esta noite...

Não, ela se corrigiu. Ele tinha feito isto a si mesmo. Assumindo que o rifle fosse encontrado no covil do Bando de Bastardos, e que ficasse provado o que os Irmãos desconfiavam, Xcor tinha iniciado as engrenagens de sua condenação há meses atrás.

Ela podia ser o canal, mas as ações dele eram a corrente elétrica que no final iriam parar seu coração.

– Obrigada por me dar a oportunidade de fazer a coisa certa, – ela disse a Xhex. – Eu vou para casa agora.

Com isto, ela se desmaterializou para longe do vale cheio de árvores, indo para a mansão, readquirindo forma no vestíbulo bem na hora que as luzes tinham começado a picar seus olhos.

Não eram as lágrimas fazendo aquilo. Não, aquilo não eram lágrimas – era o amanhecer próximo.

Lágrimas derramadas por aquele macho seria... Errado da parte dela, em tantos níveis que seria impossível de enumerar.

 

– Precisamos partir, camarada.

John anuiu enquanto Qhuinn falava para ele, mas não se moveu. Parado no meio da cozinha de Wellsie, ele sofria de um tipo de choque cultural.

As cristaleiras estavam vazias. A despensa estava vazia. Assim como as gavetas e os armários. As prateleiras de livros acima da mesa. A própria mesa.

Andando em volta, ele circulou a mesa que estava no cômodo, relembrando os jantares que Wellsie tinha servido nela. Então ele caminhou lentamente pela extensão do tampo de granito, imaginando as tigelas de pães cobertas por panos de prato, as tábuas de cortar com pilhas de cebolas picadas ou cogumelos fatiados, a caixa de farinha, a lata de arroz. No forno, ele quase se curvou para respirar o aroma de ensopado e molho de espaguete.

– John?

Voltando-se, ele caminhou até seu melhor amigo... E continuou andando, se dirigindo a sala de estar. Merda, era como se o lugar tivesse sido bombardeado. As pinturas tinham sido tiradas das paredes, nada restara além dos suportes em forma de garras no qual antes tinham sido penduradas. Tudo em moldura tinha sido movido para o canto oposto, as peças de arte alinhadas, umas contra as outras, separadas por toalhas de tecido grosso.

O mobiliário tinham sido afastados da mesma forma, arrumados em montes de cadeiras, mesinhas de canto, luminárias – Deus, as luminárias. Wellsie não gostava de iluminação superior, então havia um sem número de luminárias de formatos e tamanhos diferentes na casa.

O mesmo com tapetes. Ela odiava aqueles tapetes grandes que cobriam o cômodo inteiro, então havia tapetes orientais – houvera tapetes – espalhados por todos os cantos do assoalho ao mármore. Agora, no entanto, como em todos os lugares, eles tinham sido enrolados com suas almofadas e organizados em montes encordoados contra a longa parede na sala de estar.

Os melhores móveis e todos os objetos de arte iam ser levados ao norte para a mansão, a equipe alugaria um caminhão para a mudança. O que sobrasse seria oferecido ao Lugar Seguro, e, se recusado, repassado a caridade ou Exército da Salvação.

Cara... Mesmo depois dos quatro terem trabalhado por dez horas sem interrupção, havia muito o que fazer. Este primeiro empurrão, no entanto, parecera ser a parte mais crítica.

Do nada, Tohr entrou em seu caminho cambaleante, parando-o brevemente. – Ei, filho.

Oh, ei.

Então eles se cumprimentavam palma com palma e então ombro com ombro, foi um alívio estar no mesmo passo novamente após tantos meses de estranhamento. O fato do Irmão tê-lo trazido aqui para ajudá-lo com tudo isto tinha sido uma medida de respeito que o surpreendera e o tocara profundamente.

Mas novamente, como Tohr dissera no caminho para cá, Wellsie tinha sido tanto de John quanto era dele.

– Eu mandei Qhuinn voltar, a propósito. Imaginei que era uma situação extenuante... E vim lhe buscar.

John concordou. Por mais que amasse seu amigo, parecia certo que ele e Tohr estivessem sozinhos na casa, mesmo que por apenas alguns momentos.

Como foram as coisas lá no Lugar Seguro? Ele expressou.

– Realmente bem. Marissa ficou, – Tohr limpou a garganta. – Você sabe, ela é uma fêmea adorável.

Ela realmente é.

– Ela ficou realmente feliz com as doações.

Você deu a ela os rubis?

– Sim.

John concordou de novo. Ele e Tohr tinham repassado juntos a pequena coleção de joias de Wellsie. Aquele colar, bracelete, e brincos tinham sido as únicas coisas de algum valor. O resto era mais pessoal: pequenos mimos, poucos pares de argolas, um conjunto de tachinhas de diamantes. Eles iam manter a todos.

– Eu realmente falava sério, John. Eu quero que você fique com os móveis que quiser. Os quadros também.

Há um Picasso que eu realmente gosto, na verdade.

– É seu, então. Todos eles, qualquer um deles. Seus.

Nossos.

Tohr inclinou a cabeça. – Certo. Nosso.

John caminhou em volta da sala de estar de novo, seus passos ecoando. O que lhe fez decidir que esta noite era a noite, ele expressou.

– Não foi uma coisa só. Mais como a culminação de muitas coisas.

Eu sinto muito não ter sido melhor sobre Autumn.

– Oh, não, está certo, filho. Eu sei que é difícil.

Você vai se emparelhar com ela?

– Não.

As sobrancelhas de John se ergueram. Por que não?

– É complicado – na verdade, não. É bem simples. Eu estraguei o nosso relacionamento duas noites atrás. Não há retorno.

Oh... Merda.

– É. – Tohr balançou a cabeça e olhou em volta. – É...

Os dois só ficaram ali, lado a lado, os olhos encarando a bagunça que criaram da ordem que uma vez reinara ali. O estado da casa estava agora, John supunha, bem como suas vidas tinham estado após a morte de Wellsie: explodida, vazia, tudo no lugar errado.

Era mais exato do que tinha sido antes, no entanto. Ordem falsa, advinda da recusa de seguir adiante, era um tipo de vida perigoso.

Você vai mesmo vender a propriedade? Ele expressou.

– Sim. Fritz vai ligar para o corretor tão logo possa. A menos... Bem, se você e Xhex quiser ficar com ela. É só dizer...

Não, eu concordo com você. É hora de desapegar.

– Ouça, eu queria saber se você pode tirar folga nas próximas noites? Ainda há bastantes coisas para fazer, e eu gosto de tê-lo comigo.

É claro. Não perderia isto por nada.

– Bom. Está bem.

Os dois olharam um para o outro. Acho que é hora de ir.

Tohr concordou lentamente. – Sim, filho. Realmente é hora.

Sem outra palavra, os dois cruzaram a porta dianteira, trancaram... E se desmaterializaram de volta à mansão.

Enquanto suas moléculas se separavam, John sentiu como se devesse haver um tipo de declaração ou troca entre eles que fosse marcante, uma bandeira conversação na areia, uma séria recitação de epitáfio de... Algo.

Mas novamente, ele achava que o processo de cura, ao contrário do trauma, era gentil e lento...

O suave fechar de uma porta, ao invés de uma batida.

 

Várias noites após Autumn chegar à cabana de Xhex, uma toalha mudou tudo.

Era apenas uma toalha de mão branca recém-saída do secador, destinada a ser pendurada no suporte do banheiro e usada por qualquer uma das duas. Nada especial. Nada com que Autumn não tivesse lidado ou na mansão da Irmandade ou lá em cima no Santuário, por décadas e mais décadas.

Mas esse era o ponto.

Enquanto segurava aquilo em suas mãos sentindo o calor e a maciez suave, começou a pensar em toda a roupa que tinha lavado. E as bandejas de comida que entregou para as Escolhidas. E as camas que fez. E as pilhas de batas de hospital, esponjas e toalhas…

Anos e anos de serviço de criada que ela esteve orgulhosa de fazer…

Você mesma vem se fazendo de mártir por séculos.

– Eu não fiz. – Ela dobrou a toalha. E desdobrou novamente.

Suas mãos faziam o trabalho sozinha, a voz zangada de Tohr se recusava a ceder. De fato, ficou ainda mais alta em sua cabeça enquanto saía e via os pisos brilhando polidos pelas suas mãos, as janelas cintilantes e a cozinha limpa como um brinco.

Aquele symphath foi sua culpa. Eu sou culpado. O peso do mundo é tudo culpa sua...

– Pare com isso! – Ela silvou, apertando as mãos nos ouvidos. – Só pare com isso!

Ai, o desejo de se tornar surda foi frustrado. Enquanto mancava pela pequena casa, ela estava presa, não pelos limites do telhado e das paredes, mas pela voz de Tohrment.

O problema era que não importava para onde ia ou para onde olhava, havia algo que esfregou, esticou ou poliu bem na frente dela. E seus planos para a noite incluíam mais daquilo, apesar de não haver mais necessidade de demonstrar limpeza.

Afinal se forçou a sentar numa das duas cadeiras que ficavam de frente para o rio. Estendendo sua perna, ela olhou para sua panturrilha que não parecia bem ou trabalhou direito por muito tempo.

Você gosta de ser a vítima – tudo gira em torno disso.

Três noites, ela pensou. Levou três noites para se mudar para este lugar e escorregar direto no papel de criada...

Na verdade não, ela começou assim que acordou depois daquele primeiro pôr do sol.

Sentada sozinha, aspirou a fragrância perfumada de limão do lustra móveis e sentiu uma necessidade enorme de se levantar, achar um pano e começar a limpar o tampo das mesas e balcões. Isso era parte de sua rotina, não era?

Com uma maldição, obrigou-se a ficar sentada enquanto um replay daquela conversa horrível com Tohrment agitava seu cérebro repetidamente…

Imediatamente depois que ele saiu ela ficara em choque. Em seguida vieram grandes ondas de raiva.

Naquela noite, porém, ela realmente ouviu suas palavras. E considerando que estava cercada pela evidência de seu comportamento, foi difícil contestar o que ele disse.

Ele estava certo. Apesar da expressão da verdade ter sido cruel, Tohrment estava certo.

Embora ela tivesse expressado tudo em termos de serviço para os outros, seus “deveres” foram mais um castigo que uma penitência. Toda vez que ia atrás dos outros limpando, ou curvava sua cabeça debaixo daquele capuz, ou se esquivava para passar despercebida, havia uma lambida gratificante de dor em seu coração, um pequeno corte que curaria quase tão depressa quanto foi infligido…

Dez mil cortes, ao longo dos muitos anos para contar.

De fato, nenhuma das Escolhidas dissera que ela limpasse para elas. Nem a Virgem Escriba. Ela fez por que quis, lançando sua própria existência nos moldes de uma serva desprezível, curvando-se e rastejando ao longo dos milênios.

E tudo por causa de…

Uma imagem daquele symphath voltou para ela e por um breve momento lembrou-se do cheiro dele, a sensação de sua pele muito lisa e a visão de suas mãos com seis dedos em sua carne.

Mesmo enquanto a bílis subia pela sua garganta, recusou-se a ceder a isso. Ela dera a ele e aquelas memórias um peso demasiado por muitos anos…

De repente ela se imaginou em seu quarto na mansão de seu pai pouco antes de ser raptada, dando ordens ao doggen, insatisfeita com tudo ao seu redor.

Ela foi de senhora a criada por escolha própria, lançando-se entre dois extremos de superioridade incondicional e inferioridade autoimposta. Aquele symphath foi o elo, sua violência ligando as extremidades do espectro de tal forma que em sua mente uma fluiu para a outra, a tragédia ultrapassando o direito e deixando em seu rastro uma fêmea arruinada, que fez do sofrimento o seu novo modo de viver.

Tohrment estava certo: ela se puniu desde então… E negar as drogas durante sua necessidade foi parte integrante disso: escolheu aquela dor, da mesma forma que escolheu seu baixo status na sociedade, assim como se entregou a um macho que nunca, jamais poderia ser seu.

Estive lhe usando e a única pessoa para quem isto está funcionando é você – isso não vai a lugar nenhum. O bom é que esta coisa toda está lhe dando uma ótima desculpa para se torturar ainda mais...

A vontade de atacar de algum modo a sujeira, esfregar com suas palmas até que o suor brotasse de sua testa, de trabalhar até que suas costas doessem e sua perna gritasse era tão forte que teve que agarrar os braços da cadeira para se manter onde estava.

– Mahmen?

Ela se virou e tentou não cair.

– Minha filha, como se saiu?

– Lamento por chegar em casa tão tarde. Hoje foi… Movimentado.

– Oh, isso é bom. Posso pegar algo para... – Ela se interrompeu. – Eu...

A força do hábito era tão forte que se viu se segurando na cadeira novamente.

– Está tudo bem, Mahmen. – Xhex murmurou. – Você não precisa esperar por mim. Não quero que faça isso, de verdade.

Autumn trouxe uma mão trêmula até a ponta da sua trança.

– Sinto muito por não ter me arrumado hoje a noite.

– Estou vendo. – Xhex avançou, seu corpo vestido de couro, forte e segura. – E sei por que, então, não tem que se explicar. É bom deixar as coisas correrem. Você tem que fazer isso, se quiser seguir em frente com sua vida.

Autumn se focou nas janelas escuras, retratando o rio mais além.

– Eu não sei o que fazer comigo mesma se não for uma criada.

– É isso o que precisa descobrir, o que gosta, aonde quer ir, como deseja preencher suas noites. Isso é a vida, se você tiver sorte.

– Em vez de possibilidade, só vejo o vazio.

Especialmente sem...

Não, não pensaria nele. Tohrment deixou mais do que claro em que pé estava sua relação.

– Há algo que você provavelmente deveria saber. – sua filha disse. –Sobre ele.

– Eu falei seu nome?

– Você não precisa. Escute, ele...

– Não, não, não me diga. Não há nada entre nós. – Querida Virgem Escriba, doía dizer isso. – Nunca houve, então não há nada que eu precise saber sobre ele...

– Ele está fechando sua casa, aquela em que ele e Wellsie viveram. Ele passou a noite anterior toda empacotando suas coisas, doando-as, deixando os móveis prontos para serem movidos... Ele está vendendo o lugar.

– Bem… Bom pra ele.

– Ele está vindo ver você.

Autumn se levantou da cadeira num rompante e foi para as janelas, seu coração retumbando no peito.

– Como você sabe?

– Ele me disse agora a pouco, quando fui fazer um relatório para o rei. Ele me disse que vem se desculpar.

Autumn pôs suas mãos no vidro frio, as pontas dos seus dedos ficaram dormentes rapidamente.

– Para que isso, eu me pergunto. E a percepção de que estava certo? Ou seria a honestidade quando disse que não sentia nada por mim, que eu era somente um veículo para libertar sua amada? Ambos são verdade, e portanto, fora o seu tom de voz, não há nada para se desculpar.

– Ele te machucou.

– Não mais do que eu fiz antes. – Ela recolheu suas mãos e começou a esfregá-las uma na outra para se aquecer. – Ele e eu cruzamos nossos caminhos duas vezes agora em nossas vidas, e não posso dizer que desejo continuar a associação. Embora sua análise do meu caráter e das minhas falhas estejam corretos, não preciso que seja esclarecido novamente, mesmo pelas sílabas pintadas de ouro “sinto muito”. Esse tipo de coisa apunhala uma pessoa o suficiente na primeira vez.

Houve um longo silêncio.

– Como você sabe – Xhex disse em voz baixa –, John e eu tivemos problemas. Dos grandes, o tipo de merda com que eu não poderia viver embora o amasse. Eu realmente pensei que estava tudo acabado, o que me convenceu do contrário não foi o que ele disse, mas o que fez.

A voz de Tohrment voltou: Você sabe muito bem que a única razão pela qual estou com você é para conseguir trazer Wellsie do Limbo.

– Existe uma diferença, minha filha. Seu companheiro é apaixonado por você, e no fim das contas, isso significa tudo. Mesmo se Tohrment deixasse sua shellan ir, ele nunca vai me amar.

O bom é que esta coisa toda vai lhe dar uma ótima desculpa para se torturar ainda mais.

Não, ela pensou. Ela acabou com isso.

Hora de um novo paradigma.

E embora Autumn não tivesse nenhuma ideia do que era, estava absolutamente certa que descobriria.

– Escute, tenho que me apressar. – disse Xhex. – Mas espero que não vá demorar muito, voltarei assim que puder.

Autumn deu uma olhada por cima do ombro.

– Não se apresse por minha causa. Preciso me acostumar a estar sozinha, e posso muito bem começar hoje à noite.

 

Quando Xhex deixou a cabana teve o cuidado de trancar depois que saiu – desejando que pudesse fazer mais pela sua mãe do que simplesmente trancar uma fechadura: a nova orientação emocional de Autumn era extrema, o interior da fêmea virou de cabeça pra baixo.

Entretanto, era isso que acontecia com as pessoas quando finalmente conseguiam uma imagem clara de si mesmas depois de eras de sublimação.

Não era um lugar feliz. E era duro de testemunhar. Difícil deixar para trás – mas Autumn estava certa. Chega um momento na vida de todo mundo quando se percebe que apesar do quanto era difícil correr deles mesmos, para onde quer que fosse, lá estavam eles: os vícios e compulsões não eram nada além de uma distração, mascarando verdades que eram desagradáveis, mas em última análise, inegáveis.

A fêmea precisava de algum tempo para si mesma. Tempo para pensar. Tempo para descobrir. Tempo para perdoar… e seguir em frente.

E quanto a Tohrment? Havia uma parte de Xhex que realmente quis tomar o que quer que foi dito para sua mãe. Só que ela esteve ao redor dele e ele estava sofrendo de uma forma que um maxilar machucado não poderia competir. Difícil era saber quanto dessa merda era com Autumn e o quanto era com Wellsie – seu instinto lhe disse que eles descobririam tudo em breve, porém: o Irmão tinha apenas começado a desmantelar aquela casa e doar as roupas da Wellsie.

Seu jogo final estava malditamente claro.

Então veriam o quanto ele se importava com Autumn.

Com isso Xhex se desmaterializou e se dirigiu para o leste. Ela passou o dia inteiro diante no terreno da casa de Xcor, nunca se aproximando demais do que quatrocentos metros de distância: a mente do macho ficou clara para ela assim que conseguiu ficar dentro do alcance e teve o cuidado de mirar naqueles seus soldados, bem antes dela rumar para norte até a mansão e se reportar ao rei.

E agora estava de volta sob o véu da noite, movendo-se lentamente pela floresta, lançando seus sentidos symphath.

Aproximando-se da área onde as mentes estiveram concentradas durante o dia, ela se desmaterializou a uns noventa metros, esperando com calma, usando os galhos de pinheiro como cobertura. Cara, merdas como esta a faziam realmente apreciar as florestas de pinheiros, seus galhos fofos não só a escondiam, mas forneciam uma cobertura do solo sem neve, o que escondia suas pegadas enquanto ela ia de um tronco até outro.

A casa da fazenda vazia com que ela finalmente se deparou era exatamente o que tinha esperado. Feita de pedra velha e grossa, era resistente e tinha poucas janelas – o abrigo perfeito. E claro, a ironia era que com o seu telhado coberto de neve e suas alegres chaminés, o lugar parecia com algo tirado de um cartão de Natal.

Ho-ho-ho, a Estação dos Espancamentos.

Enquanto se infiltrava nos arredores, o furgão que estava estacionado do lado de fora parecia pertencer a outro lugar, um arremesso indesejado de moderno no que parecia ser uma pintura decididamente antiquada. E o mesmo era verdade para os fios elétricos que entravam e estavam ancorados na esquina de trás.

Xhex foi que nem um fantasma para aquele flanco de trás. Era impossível saber ou não se o poder estava ao vivo: nenhuma luz foi deixada acesa, a casa escura como o interior de um crânio.

A última coisa que queria fazer era ativar um alarme.

Exceto que um rápido olhar para o vidro de uma janela a fez franzir a testa. Sem persianas – a menos que eles estejam do lado de dentro? Mais importante, sem barras de aço. Então novamente, o subterrâneo seria a prioridade, não isso.

Circulando, olhou em cada janela, então se desmaterializou até o telhado para verificar as janelas das cornijas no terceiro andar.

Totalmente vazia, ela pensou com outro franzir de testa. E não bem fortificada.

De volta ao chão, puxou suas duas armas, respirou profundamente e…

Tomou forma dentro da casa, estava totalmente em modo de ataque, suas costas voltadas para o canto da sala de estar vazia e empoeirada, os carregadores automáticos diante dela.

A primeira coisa que notou foi que o ar era tão frio dentro quanto fora. Eles não tinham calor?

A segunda coisa foi… Não havia nenhum som de alarme.

Terceira: Ninguém apareceu do nada, pronto para defender o território.

Não significava que isto era um ponto de entrar e sair rapidamente, porém. O mais provável era que eles não davam a mínima para este andar ou o de cima.

Com cuidado ela se desmaterializou até a porta do quarto ao lado. E no próximo. O local lógico das escadas do porão seria a cozinha – e quer saber? Ela achou que estavam exatamente onde esperava que estivessem.

E porra, uau, a porta que a mantinha de fora exibia uma novíssima fechadura sólida feita de cobre.

Levou uns bons cinco minutos para pegar a cadela, e até lá seus nervos estavam inquietos. A cada sessenta segundos parava e escutava bem, apesar do seu lado symphath não estar em força total o tempo inteiro, seus cilícios foram deixados para trás, na cabana.

Quando finalmente conseguiu destrancar a fechadura, ela abriu a porta, mas um crack – e teve que deixar escapar uma risada seca: as dobradiças guincharam alto o suficiente para acordar os mortos.

Era um velho truque confiável – e ela apostava que todas as portas e janelas do lugar também estavam sem óleo; os degraus provavelmente rangeriam como uma mulher velha se você pusesse qualquer peso neles também. Sim, exatamente como as pessoas fizeram antes da eletricidade ter sido inventada – um bom ouvido e uma falta de WD-40 era um alarme que jamais precisaria de bateria ou uma fonte de energia.

Colocando sua lanterna entre os dentes para que pudesse manter uma arma em cada mão, ela procurou o que podia ver da escadaria de madeira irregular. Lá embaixo havia um chão de terra e riscou para lá, girando rapidamente em uma postura defensiva.

Montes de beliches: Três conjuntos de altos e baixos com um único de solteiro ao lado.

Roupas de tamanhos grandes. Velas para iluminar. Jogos. Materiais de leitura.

Telefone celular carregando. Assim como um laptop.

E era isso.

Sem armas. Sem eletrônicos. Nada que oferecesse nenhuma identificação verdadeira.

Por outro lado, o Bando de Bastardos começara como nômades, então é claro que seus bens pessoais eram poucos e muito portáteis – e isso era parte da razão por que eles eram tão perigosos: podiam se mudar num piscar de olhos e não deixavam nenhuma pegada significativa para trás.

Esse, no entanto, definitivamente era o seu santuário, o local onde estavam relativamente vulneráveis durante o dia – e eles se protegiam adequadamente: as paredes, o teto e a parte de trás da porta eram revestidos com chapa de aço. Não tendo como entrar ou sair daqui, exceto através daquela abertura acima.

Ela andou ao redor lentamente, procurando por alçapões, uma entrada de túnel, qualquer coisa.

Eles precisavam de um local para armazenar a munição em algum lugar aqui: mesmo tão móveis quanto gostavam de ser, não havia nenhuma maneira que eles pudessem sair noite após noite comprando balas suficientes apenas para trabalharem até o amanhecer.

Eles precisavam de um esconderijo.

Concentrando-se novamente naquele catre de solteiro, ela achou que era do Xcor como seu líder, e não precisava ser um gênio para descobrir que se houvesse qualquer esconderijo estaria em sua área – ele tinha justamente o tipo de mente suspeita para não confiar completamente nem em seus próprios soldados.

Investigando a cama com sua luz ela procurou por mecanismos ou por um alarme, ou uma bomba ou um alçapão. Não encontrando nada, embainhou suas armas por um momento e ergueu a estrutura de metal, movendo de lado. Tirando um detector de metal em miniatura, esquadrinhou o chão de terra e…

– Olá, rapazes. – ela murmurou.

Seu elegante e prático equipamento de mão pegou um esboço quase quadrado que media mais ou menos dois por um e meio metro de altura. Ajoelhando-se ela usou uma de suas facas para deslocar a terra ao redor das bordas. O que quer que fosse estava enterrado profundamente...

Xhex congelou quando sua audição aguçada a informou que um carro parou lá em cima.

Porém não era um dos Bastardos ou seus cúmplices. A grade emocional era extremamente descomplicada.

Um doggen chegando com mantimentos?

Riscando até o topo da escada, ela fechou a porta o máximo que podia sem reengatar a trava e então voltou para a caixa enterrada. Movendo-se em três tempos agora, manteve um ouvido ligado nos passos rangendo pelo primeiro andar…

No lado comprido do retângulo delineado usou a ponta da faca para investigar no chão batido por uma alça. Não achando nada ela repetiu a investigação no lado menor...

Bingo. Escovando a terra para longe, ela segurou um anel circular, colocou a lanterna de volta entre os dentes e levantou com toda a força que tinha. A tampa pesava tanto quanto o capô de um carro e ela teve que engolir o seu grunhido...

Uau. Falando sobre arsenal.

Na grande caixa ali embaixo havia pistolas, espingardas, facas, munição, carregadores automáticos, material de limpeza das armas… Tudo muito bem arrumado, obviamente num ambiente à prova d’água.

Dentre eles estava por acaso um rifle longo de plástico preto e rígido.

Ela tirou a coisa e a colocou no chão de terra ao seu lado. Uma olhada para a fechadura e ela xingou. Impressão digital ativada.

O que quer que seja. A maldita coisa era grande o suficiente para abrigar um ou talvez dois caras narigudos. Então isso viria com ela.

Com mãos rápidas e seguras fechou a tampa, chutou a terra de volta sobre ela e bateu levemente na superfície, assim estava compactada mais uma vez. Cobrir seus rastros levou menos tempo do que pensou, e antes de perceber estava movendo o catre para o seu lugar novamente.

Levantando o estojo com o rifle com sua mão esquerda, ela escutou. O doggen estava se movendo lá por cima, a mente da fêmea tão inexpressiva quanto estava quando chegou: ela não ouviu nada, não sabia de nada.

Olhando ao redor, Xhex pensou que era improvável que a empregada tivesse a chave para descer até aqui. Xcor seria muito cauteloso para isso. Mas mesmo assim, não era seguro simplesmente sair. Mesmo se eles dessem ao doggen ordens só para o andar de cima, um dos Bastardos podia ser ferido em campo a qualquer hora, e embora não hesitasse em lutar com qualquer um deles, ou a porra de um de cada vez, se o rifle estava de fato neste estojo, ela precisava retirar a arma imediatamente.

Hora de uma conferência.

Quando se desmaterializou até o topo dos degraus, seu peso no último degrau fez a madeira ranger.

Do outro lado, a doggen gritou.

– Senhor? – Houve uma pausa. – Espere, vou tomar posição.

Que. Porra?

– Estou pronta.

Xhex segurou a maçaneta, abriu e saiu, esperando encontrar algum tipo de pesadelo do Kama Sutra acontecendo.

Em vez disso a mulher idosa estava de pé no canto da cozinha de cara para o canto da parede, com seus olhos cobertos pelas mãos.

Eles não queriam que ela fosse capaz de identificá-los, Xhex pensou. Esperto. Muito esperto.

Oportuno também, senão teria que desperdiçar minutos preciosos se enroscando na cabeça da fêmea. Além do mais, aquela “posição” como estava salvaria a vida da doggen mais tarde, quando Xcor descobrisse que seu covil foi infiltrado enquanto estavam fora.

Se você jamais visse alguém não haveria nenhuma maneira que estivesse protegendo um intruso.

Xhex fechou a porta e a fechadura ativou de maneira correta, travando novamente. Então se desmaterializou direto de lá, levando a arma do caso contra o peito.

Ainda bem que aquilo não era tão pesado.

E se Deus quiser, Vishous estaria fora da ronda essa noite.

 

De volta ao complexo da Irmandade, Tohr segurou a porta do porão aberta e saiu do caminho enquanto John passava por ele e chegava às escadas.

Descendo atrás do outro macho, o corpo de Tohr estava rígido, especialmente suas costas e ombros. Contudo, seus treinamentos noturnos enquanto movia os móveis estava acabado. Depois de passar três horas empurrando esta noite, sua casa e de Wellsie estava oficialmente vazia e a caminho de ser inserida no sistema MLS[38] de Caldwell. Fritz se encontrou com o corretor de imóveis durante o dia e o preço que fixaram era agressivo, mas não louco. Se Tohr tivesse que arcar com os custos do lugar por mais alguns meses, ou inclusive até a primavera, estaria tudo bem.

Enquanto isso a mobília e os tapetes foram transferidos para a garagem da mansão; as pinturas, gravuras e desenhos de nanquim subiram para o sótão climatizado; e a caixa de joias estava no closet de Tohr em cima do vestido de emparelhamento.

Então estava… Feito.

Na base da escada ele e John partiram num passo decidido que os levou por um quarto cavernoso e pela enorme caldeira, que não só enviava calor suficiente para manter a parte principal da casa aquecida, mas ameaçava fritar seu rosto e corpo enquanto ele orbitava a sua volta.

Seguindo adiante, seus passos soavam alto, o ar esfriando rápido enquanto saíam do alcance da caldeira e batiam na segunda metade do porão. Esta parte era dividida em quartos de armazenamento, um dos quais logo guardaria sua mobília e de Wellsie, o outro era o espaço privado de trabalho do V.

Não, não aquele tipo de trabalho.

Ele usava a sua cobertura para aquela merda.

A forja de Vishous estava aqui embaixo.

O som do monstro cuspidor de fogo do Irmão começou como um zumbido baixo; até que eles dobrassem a esquina final o rugido surdo era alto o suficiente para abafar o som de seus shitkickers[39]. Na verdade, a única coisa que cortava através daquele barulho era o tink-tink-tink de V batendo um martelo no metal preto e incandescente.

Quando pisaram na porta de entrada do quarto de pedra apertado, V estava trabalhando duro, seu peito e ombros nus cintilando na luz alaranjada das chamas, seu braço musculoso se levantando para atacar repetidamente. Sua concentração era feroz – e deveria ser. A lâmina que aquela tira de metal estava se tornando seria responsável por manter seu dono vivo, como também conseguir o inimigo bem morto.

O Irmão levantou o olhar conforme eles apareceram e acenou com a cabeça. Depois de mais dois golpes, ele largou seu martelo e cortou o oxigênio que alimentava seu fogo.

– O que estão fazendo? – disse ele enquanto o grande rugido se tornou um ronronar.

Tohr olhou de soslaio para John Matthew. O garoto foi uma estrela ao longo do processo inteiro, nunca recuando no trabalho sombrio de desmantelar uma vida inteira de recordações, lembranças e coleções.

Isso foi tão duro. Para ambos.

Depois de um instante, Tohr olhou de volta para o seu Irmão… E se viu sem palavras – exceto que V já estava balançando a cabeça e se levantando. Removendo as luvas de couro pesado que chegavam até os cotovelos, ele se afastou de sua estação.

– Sim, eu os tenho. – disse o Irmão. – De volta ao Pit. Vamos.

Tohr assentiu, porque isso era tudo que tinha para compartilhar com alguém. Ainda assim, enquanto os três saíam e caminhavam em um silêncio triste de volta para as escadas, ele deu um tapinha com sua mão na nuca de John e a manteve lá.

O contato consolou a ambos.

Quando emergiram dentro da cozinha, lá havia um caos da Última Refeição para qualquer um do pessoal que realmente as notasse – assim felizmente não havia questionamentos, nenhuma indagação do tipo amável, nenhum palpite sobre por que estavam parecendo tão sérios.

Fora da despensa do mordomo. Atravessando a porta escondida embaixo da escada. Desceram pelo túnel para evitar o frio do inverno.

Enquanto viravam à direita e foram na direção oposta do centro de treinamento, ele não podia acreditar em algum nível que isto estava acontecendo. Seus shitkickers ainda vacilaram algumas vezes, como se talvez estivessem tentando puxá-lo pra longe desta última parte.

Porém ele estava decidido.

Na porta que dava para o Pit, V socou o código e abriu o caminho pra cima, indicando que eles deveriam ir primeiro.

O lugar onde Butch e V se escondiam com suas shellans era o mesmo de sempre – exceto mais limpo agora que havia fêmeas morando lá: as Sports Illustrateds[40] estavam em uma pilha ordenada na mesa de café; a cozinha não tinha garrafas vazias e esquecidas de Goose por toda parte das bancadas; e não havia mais sacolas de ginásio ou jaquetas de motoqueiro pendurado em qualquer coisa.

No entanto, os quatro brinquedos de V ainda estavam por cima em todo canto e a enorme TV de plasma permanecia a maior coisa no lugar.

Algumas coisas nunca mudariam.

– Ela está no meu quarto.

Tohr normalmente não acompanharia o sujeito em seu espaço privado, mas isso não era comum.

O quarto de V e da Dra. Jane era pequeno e tinha mais livros que cama nele, pilhas de volumes de física e química se aglomerando no tapete até que você mal podia andar sobre ele. Porém a boa doutora garantia que o lugar não fosse um chiqueiro total, com o edredom todo puxado pra cima limpo e arrumado e os travesseiros cuidadosamente ajeitados contra a cabeceira.

Lá no canto, Vishous abriu o closet e alcançou a estante superior, esticando-se para…

O pacote de veludo negro enrolado que ele trouxe para fora era grande e pesado o suficiente para exigir ambas as mãos, e ele grunhiu enquanto recuava e levava isto pra cima da cama.

Conforme ele abaixava a coisa, Tohr teve que se forçar para continuar respirando.

Lá estava ela. Sua Wellsie. Tudo o que restava dela na Terra.

Ajoelhando-se diante dela, ele estendeu a mão e desfez o laço de cetim na parte superior. Com as mãos tremendo ele abriu o saco de veludo e o desceu, revelando uma urna de prata que tinha gravuras em Art Déco[41] em seus quatro lados.

– Onde conseguiu isso? – disse ele, correndo um dedo indicador abaixo pelo metal resplandecente e brilhante.

– Darius tinha isso em um quarto nos fundos. Acho que é Tiffany, da década de trinta. Fritz o poliu.

A urna não fazia parte de suas tradições.

Cinzas não foram feitas para serem mantidas.

Deveriam ser livres.

– É bonito. – Ele olhou de relance para John. O rosto do garoto estava pálido, seus lábios apertados… E em um rápido e cortante movimento, ele esfregou debaixo de seu olho esquerdo. – Nós estamos prontos para fazer a Cerimônia do Fade dela, não estamos, filho?

John assentiu.

– Quando? – V perguntou.

– Amanhã à noite, eu acho. – Quando John assentiu novamente, Tohr disse. – Sim, amanhã.

– Quer que eu fale com Fritz para tratar disso? – V perguntou.

– Obrigado, mas cuidarei disso. John e eu faremos isso. – Tohr tornou a se focar na adorável urna. – Ele e eu vamos deixá-la ir… Juntos.

De pé acima de Tohr, John estava tendo dificuldades em se conter. Difícil de saber o que era mais duro: o fato de que Wellsie estava realmente no quarto com eles novamente ou que Tohr estava ajoelhado diante daquela urna como se suas pernas não estivessem funcionando direito.

As duas últimas noites foram um exercício brutal de reorientação. Não que ele não soubesse que Wellsie se foi; só que… Desmantelar tudo naquela casa tornou aquele fato tão evidente, ali havia gritos constantes em sua cabeça.

Porra, ela nunca saberia que ele passou pela sua transição ou que era um lutador mais ou menos decente, ou que chegou a se emparelhar. Se ele alguma vez tivesse seu próprio filho ela nunca o seguraria em seus braços, ou veria o primeiro aniversário, ou testemunharia seus primeiros passos ou primeiras palavras.

Sua ausência fazia sua própria vida parecer menos plena e ele tinha a terrível sensação que isso sempre seria verdade.

Enquanto Tohr curvava sua cabeça, John se aproximou cuidadosamente e pôs sua palma no ombro forte do cara, lembrando a si mesmo que por mais duro que isso fosse para ele, o que Tohr estava passando era mil vezes pior. Merda, entretanto o Irmão tinha sido forte tomando todas aquelas seguras decisões sobre tudo, de calças jeans a potes e panelas, trabalhando continuamente, apesar do fato que ele tinha que estar se sentindo rasgado por dentro.

Se John não respeitasse a porra do Irmão antes, com toda a certeza o fazia agora...

– Vishous? – Veio uma voz feminina no fundo do corredor.

John deu meia volta num tranco. Xhex estava aqui?

Tohr pigarreou e empurrou a bolsa de veludo de volta no lugar.

– Obrigado, V. Por cuidar tão bem dela.

– V? Você tem um minuto? – Xhex gritou. – Eu preciso... Oh, merda.

Ela se deteve, como se estivesse ajustada para a vibração no quarto onde estava parada em frente, Tohr se levantou e acenou com a cabeça para John com um sorriso generoso demais para compreender.

– É melhor você ir para sua fêmea, filho.

John hesitou, entretanto V reforçou e pôs seus braços ao redor do seu Irmão, sussurrando bem baixinho.

Dando aos machos um pouco de privacidade, John voltou para a sala de estar.

Xhex não se surpreendeu ao vê-lo.

– Sinto muito, não quis interromper nada.

Está tudo bem. Seus olhos foram para a maleta em sua mão. O que é isso?

Embora ele soubesse… Puta merda, será que ela conseguiu o...

– Isso é o que precisamos descobrir.

Com um pânico repentino ele a olhou de cima abaixo cuidadosamente, procurando por sinais de ferimentos. Porém não havia nenhum. Ela entrou e saiu inteira.

John não queria fazer isso, mas avançou e a agarrou com força, segurando-a contra o seu corpo. Enquanto ela o abraçava de volta ele sentiu o estojo pressionando suas costas, e ele estava apenas… Realmente fodidamente contente que ela estivesse viva. Tão fodidamente contente...

Merda, ele estava se rasgando aos pedaços.

– Shh, John, está tudo bem. Estou segura. Estou bem…

Enquanto ele estremecia, ela o segurou com a força e o poder em seu corpo, mantendo-o junto, cobrindo-o exatamente com o tipo de amor profundo que Tohr havia perdido.

Por que algumas pessoas tinham sorte e outras pareciam ganhar o mais cruel tipo de loteria?

Quando ele finalmente se afastou, esfregou seu rosto e então sinalizou. Você virá para a cerimônia do Fade de Wellsie?

Não houve nenhuma hesitação.

– Absolutamente.

Tohr disse que gostaria que nós dois fizéssemos isso juntos.

– Bom, isso é bom.

Naquele momento Vishous e Tohr saíram e os olhos de ambos os Irmãos imediatamente se fecharam naquele estojo.

– Você é fan-fodidamente-tástica. – V disse numa espécie de reverência.

– Mantenha-se puxando meu saco que eu ainda não abri isso. – Ela segurou a coisa fora do alcance do Irmão. – Fechadura de impressão digital. Preciso da sua ajuda.

V sorriu de um jeito perverso.

– Longe de mim não vir em auxílio de uma dama. Vamos fazer isso.

Enquanto os dois pegavam o estojo da arma e levavam até o balcão da cozinha, John puxou Tohr de lado. Acenando com a cabeça em direção à urna coberta de veludo, ele assinalou. Você precisa de mim para mais alguma coisa hoje à noite?

– Não, filho, fique com sua fêmea, preciso sair um pouco, realmente. – O cara acariciou o veludo. – Mas primeiro vou colocá-la no meu quarto.

Sim, ok. Tá legal.

Tohr o abraçou forte e rápido e então saiu pela porta no túnel.

Lá na cozinha, Xhex disse.  

– Como é que você vai... Bem, sim, isso vai funcionar.

O cheiro de plástico queimado se torceu em volta de John. V removeu sua luva e pôs seu dedo indicador ardendo contra o mecanismo de bloqueio, a fumaça ácida subindo do contato em desagradáveis caracóis de cinza escuro.

– Minhas impressões tendem a fazer o trabalho sobre praticamente qualquer coisa. – o Irmão disse.

– Claramente. – Xhex murmurou com as mãos nos quadris, seu corpo tenso curvado pra frente. – Você já fez churrasco com essa coisa?

– Só de lessers... E eles não são bons para comer.

Ficando atrás, John ficou olhando do outro lado e só… Bem, ele estava apenas pasmo com a fêmea. Que porra de merda era aquela? Entrando no esconderijo seguro do Bando de Bastardos. Vasculhando por ele e procurando pelo rifle, naturalmente. Voltando como se não tivesse feito nada mais incrível que fazer um pedido na Starbucks.

Como se sentisse seus olhos em cima dela, ela deu uma olhada para cima.

Abrindo-se emocionalmente de modo que não houvesse nenhuma barreira absolutamente, ele revelou tudo que estava sentindo...

– Consegui. – V anunciou, retraindo sua mão ardente e adorando isso.

Virando o estojo da arma em direção a Xhex, o Irmão disse.

– Imagino que gostaria de fazer as honras.

Xhex mudou o foco e abriu o que ela trouxe para casa, o mecanismo de trava mutilado caindo aos pedaços.

Dentro havia um par de rifles aninhados em um estofamento de caixa de ovo preto, junto com uma objetiva de longo alcance.

– Bingo. – ela sussurrou.

Ela conseguiu, John pensou. Ele apostava sua bola esquerda que uma daquelas armas provaria ser o rifle que atirou em Wrath.

Ela conseguiu fazer essa porra.

De dentro dele uma enorme onda de orgulho cresceu aquecendo seu corpo inteiro, esticando seus lábios em um sorriso tão largo quanto suas bochechas feridas permitiam. Olhando fixamente para sua fêmea e a evidência de que ela trouxe para o grupo, ele apostava que ele lançava sombras pois estava tão radiante.

Ele estava extremamente… Orgulhoso.

– Malditamente promissor. – V fechou o estojo. – Eu tenho o equipamento que nós vamos precisar na clínica... Junto com aquela bala. Vamos fazer isto.

– Um minuto.

Xhex se virou para John. Caminhou até ele. Tomou seu rosto em suas mãos. Enquanto olhava fixamente para ele, soube que ela estava lendo cada pedacinho dele.

Levantando-se nas pontas dos pés, ela pressionou seus lábios nos dele e falou três palavras que não esperava ouvir tão cedo novamente.

– Eu amo você. – Ela o beijou novamente. – Eu te amo tanto, meu hellren.

 

No outro lado do Hudson ao sul do complexo da Irmandade, Autumn se sentou na escuridão da cabana, ainda ocupando a mesma cadeira em que havia se sentado no início da noite. Passou-se muito tempo desde que as luzes se apagaram, e a falta de iluminação ao redor dela fez com que a paisagem coberta de neve parecesse brilhar como o dia sob o brilho da lua.

De onde ela estava o rio era uma expansão larga e imóvel, apesar de estar congelada apenas nas suas margens.

De onde ela estava, ela vira pouco da vista diante dela, tendo residido ao invés disso nos estágios de sua vida.

Muitas horas se passaram desde que Xhex tinha estado com ela, a posição da lua havia mudado, as sombras pretas lançadas pelas árvores rodopiava sobre o chão branco. Em muitos aspectos o tempo não significava nada, mas tinha um efeito: quanto mais tempo ela passasse remoendo as coisas, mais claramente ela veria a si mesma, suas antigas realizações não mais um choque, ao contrário, algo que ela se conscientizava...

Algo que ela começou a mudar em si mesma com...

A princípio o talho escuro que cortava pela vista invernal parecia ser apenas outra sombra de um tronco de árvore na extremidade da propriedade. Exceto que ele então se moveu.

Estava vivo.

Não era… Um animal.

Era um macho.

Um tiro súbito de medo a fez ficar em pé, mas seus instintos se adiantaram e lhe disseram imediatamente de quem se tratava. Tohrment.

Tohrment estava aqui.

Seu primeiro pensamento foi descer para o subsolo e fingir que não o viu – e considerando como ele esperava no gramado, dando a ela bastante tempo para identificá-lo, ele parecia estar oferecendo essa saída.

No entanto não fugiria. Ela fez variações suficientes que durariam por várias vidas.

Levantando-se da cadeira, ela foi para a porta que abria para o rio e a destrancou, escancarando-a. Cruzando seus braços contra o frio, ela inclinou seu queixo para cima e esperou que ele avançasse.

E ele fez. Com uma expressão de propósito sombrio, o Irmão se aproximou lentamente, suas botas pesadas triturando a camada crocante de cima da neve. Ele ainda parecia o mesmo, ainda alto e de costas largas, com seu espesso cabelo listrado de branco e seu rosto bonito marcado com as linhas de distinção.

Como era estranho ela perceber que ele havia passado por uma espécie de metamorfose, ela pensou.

Claramente ela estava atribuindo sua própria transformação a qualquer coisa ou qualquer um.

Enquanto ele parava em sua frente, ela pigarreou, aliviando o comichão do ar amargamente frio. Porém ela não falou primeiro. Isso era dever dele.

– Obrigado por ter saído. – ele disse.

Ela apenas assentiu, pouco disposta a tornar fácil para ele qualquer desculpa superficial que estava prestes a oferecer. Não, nada mais de aliviar o lado dele – ou de outras pessoas.

– Eu queria conversar um pouco... Se você tiver algum tempo?

Dada a forma que o vento frio atravessava sua roupa, ela acenou com a cabeça e recuou. O interior da cabana não parecia particularmente tão quente quanto antes; agora estava ameno. E apertado.

Sentando-se na sua cadeira, ela o deixou escolher se permanecia de pé ou não. Ele escolheu o primeiro e o fez bem na sua frente.

Após uma profunda e estimulante inspiração ele falou claro e sucintamente, como se tivesse praticado suas palavras:

– Eu não posso me desculpar o suficiente pelo que eu disse a você. Foi totalmente injusto e imperdoável. Não há desculpa para isso, então não vou tentar explicar. Eu só...

– Quer saber? – Ela cortou a conversa sumariamente. – Tem uma parte de mim que quer dizer a você para ir para o inferno… Pegar suas desculpas e seus olhos cansados, e seu coração pesado e não deixar nunca, jamais chegar a algum lugar perto de mim novamente.

Depois de uma longa pausa, ele assentiu.

– Ok. Entendo isso. Posso respeitar totalmente que...

– Mas, – ela o cortou novamente, – Passei a noite toda sentada nesta cadeira pensando sobre aquele seu monólogo sincero. Na verdade eu pouco pensei sobre outra coisa desde que o deixei. – Abruptamente ela olhou de relance para o rio. – Sabe, você deve ter me enterrado em uma noite como esta, não é?

– Sim, enterrei. Exceto que estava nevando.

– Deve ter sido duro conseguir com o chão congelado.

– Foi.

– Teve bolhas para provar, sim, certamente. – Ela voltou o foco pra ele. – Para ser honesta, estive bastante perto da ruína quando você deixou meu quarto de recuperação no centro de treinamento. É importante para mim que você perceba isso. Depois que você partiu não tive nenhum pensamento, nenhum sentimento, nada além de respirar, e só porque meu corpo fez isto sozinho.

Ele emitiu um gemido inarticulado, como se pelo seu remorso não pudesse encontrar voz pra falar.

– Eu sempre soube que você amava apenas Wellsie, e não só porque você mesmo me disse no princípio, mas porque era evidente o tempo inteiro. E você está certo: eu me apaixonei por você, e tentei manter isso escondido de você... Pelo menos conscientemente... Porque sabia que iria feri-lo de uma maneira insuportável... A ideia que você tem de deixar alguma fêmea conseguir chegar perto… – Ela balançou sua cabeça como se imaginasse como isso poderia tê-lo afetado. – Eu realmente queria poupá-lo de mais dor, e sinceramente quero que Wellsie fique livre. Sua disposição era quase tão importante para mim quanto para você... E isso não era sobre eu mesma me punir, mas porque eu realmente amava você.

Querida Virgem Escriba, ele estava tão quieto. Mal respirando.

– Ouvi dizer que você está dispondo da casa que teve com ela. – disse ela. – E fez o mesmo com as coisas dela. Suponho que é porque você está tentando uma nova rota para lançá-la até o Fade e espero que dê certo. Para vocês dois, espero que dê certo.

– Eu vim aqui para falar sobre você, não sobre ela. – ele disse suavemente.

– Isto é típico de você, e saiba que estou virando a conversa para você, não porque me sinta como uma vítima de algum romance não correspondido que acabou mal, mas porque nosso relacionamento sempre foi baseado em você. O qual é minha culpa, mas também a natureza do ciclo que completamos.

– Ciclo?

Ela se levantou, querendo colocá-los em pé de igualdade.

– Assim como as estações completam o círculo, nós também. Quando cruzamos nossos caminhos pela primeira vez, era tudo sobre mim, meu egoísmo, meu foco em uma tragédia que eu vivi. Desta vez era tudo sobre você, seu egoísmo, a tragédia que você viveu.

– Oh, Jesus, Autumn…

– Como você mesmo me apontou, nós não podemos negar a verdade, e não devíamos tentar. Portanto, sugiro que nenhum de nós tente lutar com isto por mais tempo. Temos um acordo a partir de agora, nossas transgressões um contra o outro foram limpas por atos e palavras que nenhum de nós pode tomar de volta. Sempre lamentarei a posição em que eu lhe coloquei com o seu punhal tantos anos atrás, e não tem que me dizer que sente uma profunda tristeza enquanto fica diante de mim agora, posso ver isso escrito no seu rosto. Você e eu… Completamos o círculo e ele foi concluído.

Ele piscou, seu olhar fixo segurando o dela. Então levou seu polegar até a sobrancelha e esfregou sua testa como se estivesse doendo.

– Você está errada sobre a última parte.

– Não vejo como você pode argumentar com a lógica.

– Eu tenho pensado muito, também. Não vou brigar com você sobre isso, mas quero que saiba que eu estava com você não apenas pela Wellsie. Não percebi isso no momento, ou não podia me deixar… eu não sei porra nenhuma. Mas tenha a certeza sólida, como uma rocha, que também era muito sobre você, e depois que você partiu isso ficou claro...

– Você não tem que se desculpar...

– Isto não é um pedido de desculpas. Isso é sobre acordar e estender a mão para lhe alcançar, desejando que estivesse ao meu lado. É sobre pedir comida extra para você e então lembrar que não está por perto para lhe alimentar com ela. É sobre o fato que mesmo quando eu estava arrumando as roupas da minha companheira falecida, eu tinha você em minha mente também. Não era apenas Wellsie, Autumn, e acho que eu soube disso depois de sua necessidade e é por isso que eu me quebrei. Passei um dia e meio com minha bunda sentada, olhando para o escuro, tentando entender tudo isso... E não sei… Acho que finalmente encontrei a coragem para ser realmente bem honesto comigo mesmo. Porque é duro quando você amou uma pessoa com todo o seu ser e ela se ir, e outra pessoa vem e pisa por tudo quanto é lugar no território do seu coração. – Ele pôs sua mão no peito e golpeou o seu esterno. – Isto era dela e só dela. Para sempre. Ou pelo menos assim eu pensava… Mas a merda não funciona desse modo e então você surgiu… E o círculo que se dane, não quero ter terminado com você.

Agora era sua vez de se sentir chocada, seu corpo entorpecido enquanto ela lutava para compreender o que ele estava dizendo.

– Autumn, estou apaixonado por você, é por isso que eu vim aqui esta noite. E nós não temos que estar juntos e você não tem que superar o que eu disse, mas queria que você ouvisse isso de mim. E também quero dizer a você que estou em paz com isso, por que… – Ele respirou fundo. – Quer saber por que Wellsie engravidou? Não foi porque eu queria uma criança. Foi porque ela sabia que toda noite quando eu saía de casa poderia ser morto em campo, e como ela disse, queria algo para continuar a viver. Se tivesse sido eu a ir? Ela teria procurasse uma vida para si mesma, e… O estranho é, eu ia querer que ela fizesse isto. Mesmo se isso incluísse outra pessoa. Acho que percebi que… Ela não ia querer que eu a lamentasse para sempre. Ela ia querer que eu seguisse em frente… E eu tenho seguido.

Autumn abriu sua boca para falar. Nada saiu.

Ela realmente o ouviu dizer tudo aquilo...

– Ale-porra-luia!

Enquanto ela soltava um grito de alarme e Tohr desembainhava uma adaga negra, Lassiter deu um passo no meio da sala.

O anjo bateu algumas palmas e então manteve suas palmas erguidas para os céus como um evangélico.

– Finalmente!

– Jesus! – Tohr silvou enquanto guardava sua arma. – Pensei que você houvesse desistido!

– Ok, ainda com esse cara que nasceu numa manjedoura. E acredite em mim, tentei apresentar minha demissão, mas o Criador não estava interessado no que eu tinha a dizer. Como sempre.

– Eu lhe chamei algumas vezes, mas você não veio.

– Bem, primeiro eu estava extremamente puto com você. E então eu simplesmente não quis entrar no seu caminho. Eu sabia que você estava nos levando para algo grande. – O anjo se aproximou e pôs sua mão no ombro de Autumn. – Você está bem?

Ela assentiu e conseguiu algo próximo de um aham.

– Então isto é bom, não é? – disse Lassiter.

Tohr sacudiu sua cabeça. – Não a force a nada. Ela é livre para escolher seu caminho, como sempre foi.

Com isso ele se virou e foi até a porta. Pouco antes de abrir para sair ele lançou uma olhada por cima do ombro, seus olhos azuis se fecharam nos dela.

– A cerimônia do Fade de Wellsie é amanhã à noite. Eu adoraria que você estivesse lá, e entenderei completamente se não quiser vir. E Lassiter, se você for ficar com ela, e espero que o faça, seja útil e consiga para ela uma xícara de chá e algumas torradas? Ela gosta do pão torrado dos dois lados com manteiga doce, de preferência do tipo batido, e um pouco de geleia de morango. E ela gosta do Earl Grey[42] com uma colher de chá de açúcar.

– O quê? Eu pareço com um mordomo?

Tohrment apenas a encarou por um bom tempo como se estivesse lhe dando uma chance de ver o quanto ele estava seguro, firme e fundamentado – sólido de um modo que não tinha nada a ver com seu peso, e tudo a ver com sua alma.

Ele tinha, de fato, se transformado.

Com um aceno final ele saiu na paisagem coberta de neve… e se desmaterializou em pleno ar.

– Você tem uma TV aqui? – Ela ouviu Lassiter perguntar da cozinha enquanto abria e fechava os armários.

– Você não tem que ficar. – ela murmurou, ainda muito chocada.

– Apenas me diga que você tem uma televisão e sou um cara feliz.

– Temos.

– Bem, você sabe, é meu dia de sorte e não se preocupe, vou nos manter entretidos. Aposto que posso achar para gente uma maratona de Real Housewives[43].

– Uma o quê? – disse ela.

– Estou esperando que seja em Nova Jersey. Mas aceitarei Atlanta. Ou B.H[44].

Sacudindo-se, ela procurou olhar para ele, e só pode piscar quando ficou momentaneamente cega por todas as luzes que ele acendeu.

Oh, espere, isso era apenas ele, brilhando.

– Do que você está falando? – ela perguntou, achando incrível que o macho estivesse falando sobre TV humana em um momento como este.

De cima do fogão o anjo sorriu sombriamente e deu uma piscada pra ela.

– Só pense, se você se permitir acreditar em Tohr e abrir seu coração para ele, pode se livrar de mim para sempre. Tudo o que tem a fazer é se entregar a ele, mente, corpo e alma, garotinha, e eu “fui”, e você não terá que se preocupar sobre o que é ser uma “Real Housewife”.

 

Na noite seguinte, assim que a noite caiu, Assail, filho de Assail, caminhou pela sua casa de vidro rumo à garagem. Quando ele passou pela porta traseira da mansão, ele olhou para o vidro que tinha sido substituído no outono.

O conserto estava tinindo, a ponto de ninguém perceber que algo violento houvesse jamais ocorrido ali.

O mesmo não poderia ser dito sobre os eventos que tinham acontecido naquela noite repugnante. Mesmo com os dias consecutivos agitados e as mudanças de estações, a lua elevando-se e descendo, não havia conserto para o que tinha acontecera, nenhum modo de remendar essa bagunça.

Não que Xcor quisesse, ele supôs.

Realmente, esta noite ele finalmente iria ter a noção exata do tamanho do dano.

A glymera era tão fodidamente lenta, era ridículo.

Inicializando o sistema de alarme com sua impressão digital, ele entrou na garagem, trancou-a e passou pelo Jaguar. O Range Rover do outro lado tinha pneus enormes com banda de rodagem, sua mais nova aquisição, tendo finalmente sido entregue na semana passada. Apesar de amar o XKR,[45] ele estava cansado de sentir como se dirigisse um porco engraxado com gelo.

Uma vez dentro do SUV altamente modificado, ele apertou o botão para abrir o portão da garagem e esperou; então ele saiu de ré e esperou novamente até a porta descer.

Elan, filho de Larex, era um merdinha, o tipo de aristocrata que verdadeiramente deixava Assail rangendo os dentes. Consanguinidade demais e dinheiro demais, os separavam totalmente da realidade da vida. O macho não era nem capaz mais de forjar seu caminho sem a pompa de seu posto, mais do que um bebê sair do frio.

E ainda, pelas exigências do destino, aquele macho estava em uma posição agora, de efetuar mais mudanças do que era digno. Após o ataque, ele era o mais alto escalão não Irmão no Conselho, mas para Rehvenge, que estava tão emaranhado com a Irmandade, ele poderia muito bem ter um punhal preto amarrado em seu peito.

Portanto, Elan era o único a ser chamado está noite, “não oficial,” para ficarem juntos.

O que novamente, não incluiria Rehvenge. E que iria provavelmente ser o tipo de uma insurreição.

Não que alguém tão intelectual quanto Elan fosse chamar isto como tal. Não, traidores que usavam gravata tipo lenço[46] e meias de seda tendiam a ocultar a sua realidade em condições muito mais refinadas, embora o teor não fosse mudar nada…

Quando Assail acelerou, a viagem para a casa de Elan levou uns bons quarenta e cinco minutos, embora as estradas estivessem todas salgadas[47] e as ruas limpas de neve. Naturalmente, ele podia ter economizado tempo desmaterializando-se, mas se as coisas saíssem do controle, se ele fosse ferido e ficasse incapaz de desaparecer, ele precisava ter certeza de que teria uma cobertura e fuga eficazes.

Ele foi pego de surpresa com sua segurança apenas uma vez, há tempos atrás. Nunca mais. E, de fato, a Irmandade era altamente inteligente. Não havia nenhuma informação disponível se esta trama emergente seria concluída hoje à noite ou não, especialmente se Xcor fosse fazer uma aparição.

O refugio de Elan era uma graciosa casa de tijolos, vitoriana por dedução, com madeiramento ornamentado marcando todo o seu cume e cada canto. Localizado em uma vila pacata de apenas trinta mil humanos, era inserida bem atrás do acesso a pista, e tinha um rio que serpenteava abaixo de um lado da propriedade.

Quando ele saiu, ele não prendeu os botões de madrepérola na frente de seu casaco de pelo de camelo ou colocou as luvas. Nem fechou seu blazer transpassado.

Suas armas estavam perto de seu coração, e ele queria ter acesso.

Aproximando-se da porta da frente, suas finas botas pretas sapateavam sobre a passagem escavada e sua respiração deixava sua boca em baforadas brancas. Acima de sua cabeça, a lua estava brilhando como uma luz alógena e gorda como um prato de jantar, a falta de nuvens e umidade eram um verdadeiro poder para impedir um aguaceiro vindo dos céus.

As cortinas em todas as janelas tinham sido puxadas, impossibilitando-o de ver quantos outros chegaram, mas não se surpreenderia se já estivessem reunidos, tendo se desmaterializado para o local.

Imbecis.

Apertando a campainha com sua mão nua, a entrada foi imediatamente escancarada e um formal mordomo doggen curvou-se.

– Mestre Assail. Bem vindo, eu posso pegar seu casaco?

– Não, você não pode.

Houve uma hesitação, pelo menos até Assail levantar uma sobrancelha para o servo. – Ah, mas é claro, meu senhor, por favor venha por aqui.

Vozes, todas elas de machos, inundaram seus ouvidos, assim como o cheiro de canela da sidra quente com especiarias, entrou em seu nariz. Seguindo atrás do mordomo, ele se permitiu ser levado para uma grande sala de estar, que estava cheia de mobília de mogno pesada conforme o período da casa. E em meio às antiguidades, existia uns bons dez machos prestando atenção no anfitrião, suas formas elegantemente vestidas com ternos e gravatas ou lenços no pescoço.

Houve uma notável queda na conversa quando ele fez sua entrada, sugerindo que pelo menos alguns deles não confiavam nele.

Era provavelmente a única coisa sensata sobre o grupo.

Seu anfitrião se afastou e se aproximou com um sorriso presunçoso. – Que bom que você veio, Assail.

– Obrigado por me receber.

Elan franziu a testa. – Onde está meu doggen? Ele deveria ter pegado seu casaco...

– Eu prefiro ficar com ele. E eu devo me sentar ali. – Ele movimentou a cabeça para um canto que forneceria o acesso mais visual. – Creio que começaremos logo.

– De fato. Com sua chegada, nós aguardaremos apenas mais um.

Assail estreitou seus olhos na linha sutil de suor que pontilhava a pele entre o nariz e lábio superior do macho. Xcor tinha escolhido o peão correto, ele pensou quando se sentou suavemente em sua cadeira.

Uma corrente de ar cortante anunciou a chegada do convidado final.

Quando Xcor andou a passos largos para a sala, houve mais do que uma maldita de uma calmaria na conversa. Todos os aristocratas ficaram em silencio, uma reestruturação sutil da multidão sendo feita à medida que cada um deles dava um passo para atrás.

Então novamente, surpresa! Xcor tinha mais do que um com ele.

A totalidade do Bando de Bastardos se alinhava em seu calcanhar, formando um semicírculo atrás de seu líder.

Pessoalmente e de perto, Xcor era justamente como ele sempre tinha sido: áspero e feio, o tipo de macho cujo semblante e posição sugeriam que sua reputação de violência era baseada na realidade, não em conjecturas. Na verdade, em pé no meio destes fracos, em seu ambiente de luxo e civilidade, ele estava pronto e perfeitamente capaz de cortar tudo o que respirava na sala, e os machos em suas costas fariam exatamente o mesmo, cada um vestido para guerra e preparado para dar suporte a ele em um mero aceno de seu soberano.

Em relação a muitos deles, até Assail tinha que admitir que eles eram impressionantes.

Que tolo Elan era, e sua errante glymera não tinham nenhuma pista da caixa de Pandora que eles abriram.

Com uma tosse inoportuna, Elan avançou para enfrentar a tudo e todos por ser ele quem comandava, embora estivesse ofuscado, não só pelo peso dos soldados, mas também pela presença deles.

 

– Eu acredito que não há necessidade de apresentações, e isto fica evidente para qualquer um de vocês... – neste momento, ele olhou para os outros membros do Conselho, – Que quem falar sobre esta reunião, estará trazendo represálias do tipo que fará vocês desejarem as invasões de volta.

Enquanto falava, ele causou um certo impacto, como se assumindo o manto do poder, ainda que fosse fornecido por outra pessoa, era um tipo de masturbação para seu ego.

– Eu pensei que fosse importante juntarmos todos nós esta noite. – Ele começou a compassar, apertando as mãos em suas costas e inclinando-se para enfrentar seus sapatos brilhantes. – Vez ou outra no ano passado, os membros estimados do Conselho vieram até mim e expressaram não apenas suas perdas catastróficas, mas sua frustração com a resposta do regime atual para qualquer recuperação significativa.

As sobrancelhas de Assail levantaram para a palavra atual. Esta revolta tinha progredido mais do que ele havia imaginado...

– Estas discussões aconteceram durante um período de meses, e houve uma consistência resoluta para as reclamações e decepções. Como resultado, e depois de muita deliberação com minha consciência, eu me vi, pela primeira vez em minha vida, evitando o líder atual da raça na medida em que eu sou compelido a agir. Estes machos cavalheiros, – naquele termo absurdo, ele acenou uma mão aberta para a coleção de lutadores, – Expressam preocupações semelhantes, como também certa disposição para, como eu colocarei isto, uma mudança. Como eu sei que todos nós somos unânimes, eu pensei que poderíamos discutir nossos próximos passos.

Neste momento, os dândis reunidos decidiram se irritar pela razão da conversa, reiterando, em suas próprias palavras intermináveis, justamente o que Elan tinha acabado de declarar.

Claramente eles sentiram que era uma oportunidade para provarem para o Bando de Bastardos o quão sério eram, mas ele duvidava que Xcor fosse movido por qualquer ar quente. Estes membros da aristocracia eram frágeis, ferramentas descartáveis, cada um deles com uso limitado e facilmente quebrável, e Xcor tinha que saber disto. Não havia dúvida que fosse usá-los até que não precisasse mais deles, e então iria ajustar seus insignificantes cabos de madeira e lançá-los de lado.

Quando Assail se recostou e escutou, ele não tinha nenhum amor especial ou consideração pela monarquia. Mas ele era evidente o fato de que Wrath era um macho de palavra, o mesmo não podia ser dito destes cafajestes da glymera. Este grupo inteiro, com exceção de Xcor e seus machos, beijariam o rabo do rei até que seus lábios ficasse entorpecido, até o momento de causarem a morte dele. E depois disto? Xcor serviria a si mesmo e sozinho, e para o inferno com qualquer outro.

Wrath tinha declarado que ele permitiria o comércio com os humanos para perdurar sem restrições.

Xcor, porém, era o tipo que não permitiria qualquer outro tipo de poder e com todo o dinheiro decorrente do comércio de droga, mais cedo ou mais tarde Assail teria um alvo em suas costas.

Se ele já não tivesse um.

– …E a propriedade da minha família está inativa em Caldwell...

Quando Assail se levantou de sua cadeira, o olhar de todos os guerreiros se voltou para ele.

Avançando pela multidão, ele teve o cuidado de mostrar as mãos, para que acreditassem que ele não tinha sacado uma arma.

– Por favor, desculpe a interrupção, – ele disse sem querer dizer isto. – Mas eu devo sair agora.

Elan começou a gaguejar quando as pálpebras de Xcor baixaram.

Endereçando ao verdadeiro líder na sala, Assail falou claramente. – Eu não devo fazer nenhuma referência a esta reunião, ou aos indivíduos aqui desta sala ou a qualquer outro, nem sobre as declarações que foram feitas nem quem tenha assistido. Eu não sou um individuo político, nem tenho projetos a qualquer trono, eu sou um empresário buscando apenas continuar a prosperar nos círculos de comércio. Ao deixar esta reunião, e com isto renunciar ao Conselho, eu estou agindo neste sentido, buscando não promover e nem obstruir qualquer um de seus programas.

Xcor sorriu friamente, seus olhos fixos e carregados com intenção mortal. – Eu devo considerar qualquer um que parta desta sala meu inimigo.

Assail assentiu. – Assim seja. E saiba que eu defenderei meus interesses com medidas apropriadas contra intrometidos de qualquer tipo.

– Como você desejar.

Assail partiu sem pressa, pelo menos até que entrou em seu Ranger Rover. Uma vez dentro do SUV, ele eficientemente fechou as portas, ligou o motor, e decolou.

Dirigindo para longe, ele estava alerta, mas não paranoico. Ele acreditava que Xcor quis dizer cada palavra sobre marcá-lo como inimigo, mas ele também estava ciente de que o macho iria ter suas mãos ocupadas. Entre a Irmandade, que não era sem dúvida mais que inimigos formidáveis, e a glymera, que iria ser como pastorear gatos, existia muito para consumir sua atenção.

Mais cedo ou mais tarde, porém, o macho se concentraria em Assail.

Felizmente, ele estava pronto agora, e iria ficar daquele modo.

E esperar nunca havia lhe incomodado.

 

Quando Tohr emergiu nu e gotejando do chuveiro, o golpe na porta de seu quarto era alto e um pouco abafado, como se fosse feito pelo salto de sapato em uma mão, em vez de um conjunto de juntas, e depois de tantos anos sendo um Irmão, ele sabia que podia ter sido feito somente por um macho.

– Rhage? – Ele pôs uma toalha ao redor da cintura e andou para abrir caminho. – Meu Irmão, o que está fazendo?

O cara estava de pé no corredor, seu rosto incrivelmente bonito e solene, seu corpo vestido com um roupão de seda branco que caía de seus ombros largos e amarrado na cintura com um cordão branco simples. Atravessado em seu peito, suas adagas negras estavam no coldre de couro branco.

– Ei, meu Irmão… Eu, ah…

No estranho momento que se seguiu, Tohr foi o único a quebrar a tensão. – Você parece com um doughnut açucarado, Hollywood.

– Obrigado. – O irmão olhava fixamente para o tapete. – Escute, eu trouxe algo para você. É meu e de Mary.

Abrindo sua grande palma, ele segurava adiante um pesado rolex de ouro, o que Mary usava, um que o Irmão deu a ela quando se emparelharam. Era um símbolo de seu amor… E seu apoio.

Tohr pegou a coisa, sentindo o calor que permanecia no metal. – Meu Irmão…

– Olha, nós só queremos que você saiba que nós estamos com você. Eu adicionei de volta os elos assim se ajustará em seu pulso.

Tohr colocou a coisa, e sim, serviu perfeitamente. – Obrigado. Eu devolverei...

Rhage agarrou seus braços e deu o tipo de abraço de urso pelo qual ele era conhecido, do tipo que põe uma pressão sobre sua espinha e faz com que você tenha que encher sua caixa torácica depois, só para ter certeza que você não perfurou um pulmão.

– Eu não tenho palavras, meu Irmão, – Hollywood disse.

Quando Tohr bateu em suas costas, ele sentiu a tatuagem do dragão ferver, como se este, também, estivesse oferecendo condolências. – Está tudo bem. Eu sei que isto é difícil.

Depois que Rhage partiu, ele estava fechando a porta quando houve outra batida.

Perscrutando em torno do batente, ele encontrou Phury e Z alinhados lado a lado. Os gêmeos estavam vestindo o mesmo roupão amarrado que Rhage usava, e seus olhos estavam exatamente da mesma forma como os olhos Bahama azulados de Hollywood: tristes, tão malditamente tristes. – Meu Irmão, – Phury disse, entrando e abraçando-o. Quando o Primale recuou, ele estendeu algo longo e complexo. – Para você. – Em sua mão estava uma fita branca de gorgorão de um metro e meio, em que uma oração por apoio havia sido cuidadosamente e graciosamente bordada em fios de ouro.

– As Escolhidas, Cormia e eu estamos todos com você.

Tohr levou um instante para pegar a tira, e traçar os caracteres no Velho Idioma, recitando as palavras antigas em sua cabeça. Isto deve ter levado horas, ele pensou. E muitas, muitas mãos. – Meu Deus, é lindo… – Quando ele forçou de volta as lágrimas, ele pensou: fantástico pra cacete. Se apenas com o aquecimento para a cerimônia ele já estava desse jeito? Ele estaria uma maldita bagunça quando realmente acontecesse.

Zsadist limpou a garganta. E então o irmão que odiava ser tocado pelos outros se inclinou e colocou seus braços ao redor de Tohr. O abraço era tão gentil que Tohr teve que se perguntar se era por falta de prática. Ou isso ou Tohr parecia tão frágil como ele se sentia.

– Isto é de minha família para você, – vieram as palavras suaves.

O irmão ofereceu-lhe um pequeno pedaço de folha de pergaminho, e os dedos de Tohr agitaram quando ele abriu aquilo. – Oh… Merda…

No centro estava uma minúscula palma da mão em pintura vermelha. De uma jovem. De Nalla…

Não existia qualquer coisa maior ou mais preciosa para um macho que sua descendência, especialmente se fosse uma fêmea. Então, a impressão da palma era o símbolo de tudo que Z tinha e tudo o que ele era, agora e no futuro, era a garantia em apoio de seu Irmão.

– Porra, – Tohr disse simplesmente quando ele tomou fôlego estremecendo.

– Nós o veremos lá em baixo, – Phury declarou.

Eles tiveram que fechar a porta.

Tohr se voltou e se sentou em seu colchão, deitando a tira nas suas coxas e olhando fixamente para a impressão da criança.

Quando outra batida soou, ele não olhou para cima. – Sim? – Era V.

O irmão parecia duro e desajeitado, entretanto, ele provavelmente era o pior de todos eles, quando vinha com essa merda sentimental.

Ele não disse nada. Não tentou qualquer bobagem de abraçar também, o que era bom do mesmo jeito.

Ao invés, ele colocou uma caixa de madeira próximo a Tohr na cama, exalando uma fumaça turca, e voltando para a saída como se ele não pudesse esperar para sair do quarto.

Exceto que ele parou antes de sair. – Eu estou com você, meu Irmão, – ele disse da porta.

– Eu sei V. Você sempre estará.

Quando o macho assentiu e partiu, Tohr virou para o estojo de mogno. Libertando o gancho de aço preto e erguendo a tampa, ele teve que amaldiçoar baixinho.

O conjunto de adagas negras era… de tirar o fôlego. Pegando uma, ele se maravilhou com o ajuste contra sua mão, e então viu que existiam símbolos gravados na lâmina.

Mais orações, quatro delas, uma de cada lado de cada uma das armas. Todas para força.

Estas adagas não eram realmente para lutar, elas eram muito valiosas. Cristo, V devia ter trabalhado nelas por um ano, talvez mais tempo… embora fosse claro, como tudo o que o Irmão fazia naquela sua forja, elas eram mortais como o inferno.

A próxima batida era de Butch. Tinha que ser.

– Si... – Tohr teve que limpar sua garganta. – Sim?

Sim, era o policial. Vestido como todos os outros estavam, naquele roupão branco amarrado com o cordão branco.

Quando o Irmão atravessou o quarto, não havia nada em suas mãos. Mas ele não veio de mãos vazias.

– Em uma noite como esta, – o sujeito disse baixinho, – eu só tenho minha fé. Isto é tudo que eu tenho – porque não existe nenhuma palavra mortal para aliviar o sofrimento e, este eu conheço de perto e pessoalmente.

Ele estendeu a mão para trás de seu pescoço e trabalhou em algo. Quando ele trouxe suas mãos mais uma vez, ele estava segurando o cordão de ouro pesado, com a cruz de ouro mais pesada ainda que ele nunca, jamais havia tocado.

– Eu sei que meu Deus não é o seu, mas eu posso colocar isto em você?

Tohr assentiu e baixou a cabeça. Quando o fecho da impressionante fé católica do macho rodeou seu pescoço, ele estendeu a mão e tocou a cruz.

Tinha um peso incrível, todo aquele ouro. Pareceu bom.

Butch se curvou e deu um aperto no ombro de Tohr. – Eu o verei lá embaixo.

Porra. Ele não tinha nada mais a dizer.

Por um tempo, ele apenas ficou sentado lá, tentando segurar junto ao peito. Até que ele ouviu algo na porta. Um arranhar, como se…

– Meu senhor? – Tohr disse quando ele forçou a ficar em pé e atravessou o caminho.

Você abriria a porta para o rei. Não importa em que estado você estivesse. Wrath e George entraram juntos, e seu Irmão estava caracteristicamente cego. – Eu não vou perguntar como você está aguentando.

– Eu aprecio isto, meu senhor. Porque eu estou fodidamente em pedaços.

– Por que não estaria?

– É quase mais difícil quando as pessoas são amáveis.

– Sim. Bem. Suponho que você vai ter que engolir um pouco mais desta merda. – O rei mexia em alguma coisa em seu dedo. E então lhe mostrou.

– Oh, porra, não.

Tohr lançou suas mãos para o alto e para fora do caminho que o macho cego estava. – Uh-uh. De jeito nenhum. Porra nenhuma.

– Eu ordeno que você pegue isto.

Tohr amaldiçoou. Esperando ver se o rei mudava de ideia. Não chegou a nenhum lugar com aquilo.

Quando Wrath apenas ficou olhando para frente, Tohr soube que ele iria perder este argumento.

Com uma sensação vertiginosa de irrealidade total, ele estendeu a mão e pegou o anel de diamante preto que só tinha sido usado pelo rei.

– Minha shellan e eu estaremos lá por você. Use isto durante a cerimônia para que você saiba que meu sangue, meu corpo e meu coração pulsante são seus.

George fungou e abanou o rabo como se apoiando seu mestre.

– Porra. – Desta vez, foi Tohr que agarrou a mão de seu irmão, e o abraço foi nitidamente devolvido e com força.

Depois que Wrath partiu com seu cachorro, Torh se virou e se debruçou contra a porta.

O golpe final foi suave.

Blindando-se de forma que ele pelo menos parecesse ser um macho, embora ele estivesse sentindo-se como um maricas por dentro, ele encontrou John Matthew fora no corredor.

O garoto não se incomodou de assinalar qualquer coisa. Ele apenas estendeu a mão para Tohr, e pressionou…

O anel de Darius na palma de Tohr.

Ele teria gostado de estar aqui com você, John assinalou. E seu anel é tudo que eu tenho dele. Eu sei que ele iria querer que você usasse isto durante a cerimônia.

Tohr olhou fixamente para a pluma que estava estampada no metal e pensou em seu precioso amigo, seu mentor, o único pai que ele realmente teve. – Isto significa… Mais do que você possa imaginar.

Eu estarei bem ao seu lado, John assinalou. O tempo inteiro.

– Bem atrás de você, filho.

Eles se abraçaram, e então Tohr fechou a porta silenciosamente. Voltando para a cama, ele olhou para todos os símbolos de seus Irmãos… E soube que quando ele enfrentasse esta provação, todos eles estariam com ele, não que isso estivesse em questão alguma vez.

Algo estava faltando, entretanto, em tudo isto.

Autumn.

Ele precisava de seus Irmãos. Ele precisava de seu filho. Mas precisava dela, também.

Ele esperava dizer pra ela que seria o bastante, mas havia coisas que não poderiam voltar, coisas que não tinham cura.

E talvez ela tivesse um ponto sobre a coisa do ciclo.

Ele rezou para que houvesse mais do que isto, porém. Ele verdadeiramente o fez.

Enquanto Lassiter permanecia no canto do quarto de Tohr, ele se mantinha invisível. Boa coisa. Assistir aquele entra e sai de machos tinha sido difícil. Como Tohr tinha conseguido passar por isto era um milagre.

Mas isto finalmente estava retornando, o anjo pensou. Finalmente, após todo este tempo, depois de tudo... Bem, merda, francamente… As coisas estavam finalmente indo na direção certa.

Depois de passar a noite e o dia anterior com uma Autumn muito quieta, ele a deixou no pôr do sol para pensar, pondo sua fé no fato de que ela estaria visitando Tohr repetidas vezes em sua cabeça e não encontrando nada, além da sinceridade do que foi dito para ela.

Se ela aparecesse esta noite, seria fácil. Ele tinha feito isto. Bem, ok, certo, eles tinham feito isto. Na verdade, ele tinha sido um jogador de linha lateral em tudo isso… Com exceção do fato de que ele meio que se importava com os dois. E Wellsie, também.

Do outro lado, Tohr foi até o armário e pareceu se preparar.

Tirando uma túnica branca, o Irmão colocou a coisa e então retornou para a cama para cingir a cintura com a tira magnífica que Phury trouxe. Depois disto, o cara pegou o pedaço dobrado de pergaminho que Z lhe deu, dobrou-o e atou com um laço, e colocou em um estojo branco, no qual ele deslizou as duas espetaculares adagas negras de V. O anel de sinete enfiou em seu dedo médio esquerdo, o diamante preto no dedo polegar de sua mão de combate.

Com a sensação estranha de um trabalho bem feito, Lassiter pensou sobre todos os meses que ele tinha ficado na Terra, recordando o modo como ele, Tohr e Autumn, todos trabalharam juntos para salvar uma fêmea que, por sua vez… Bem, de maneiras diferentes, libertaria cada um deles.

Sim, o Criador sabia o que estava acontecendo, quando esta atribuição tinha sido feita: Tohr não era o mesmo. Autumn não era a mesma.

E mesmo Lassiter não era o mesmo: Era simplesmente impossível ele desconectar-se disto, estar todo satisfeito, agindo como se nada importasse, e a coisa engraçada era, que ele realmente não queria retirar-se porra nenhuma.

Cara, existia um monte de purgatórios sendo expurgados esta noite, ele pensou com tristeza, tanto reais quanto figurativos. Quando Wellsie fizesse a passagem para o Fade, ele estaria saindo finalmente de sua prisão. E com a sua liberação, isso significava que o fardo de Tohr estaria suspenso de forma que os dois estariam livres.

E quanto a Autumn? Bem, com alguma sorte, ela se permitiria amar um macho de valor, e por sua vez ser amada de volta, depois de todos estes anos sofrendo, ela poderia finalmente, começar a viver novamente; ela deveria renascer, ressuscitar, voltar dos mortos…

Lassiter franziu a testa, um estranho alarme começou a tocar em sua cabeça.

Procurando ao redor, ele meio que esperava que alguns lessers estivessem escalando ao lado da mansão ou aterrissando de um helicóptero nos jardins. Mas não…

Renascido, ressuscitado… De volta dos mortos.

Purgatório. O Limbo.

Sim, ele disse a si mesmo. Onde Wellsie estava. Olá?

Com um estranho, desencarnado pânico o agarrando, ele se perguntou qual era a porra do problema...

Tohr congelou e examinou o canto. – Lassiter?

Com um dar de ombros, o anjo imaginou que poderia muito bem tornar-se visível. Não havia razão para esconder-se, sendo assim, quando ele tomou forma, manteve o temor para si mesmo. Deus… Que inferno estava errado com ele? Eles estavam na linha de chegada. Tudo que Autumn tinha que fazer era aparecer na cerimônia do Fade, e passando pelo propósito que ela tinha estabelecido, enquanto ele esteve aqui, estava muito claro que ela não iria apenas esfregar o chão naquela cabana a noite toda.

– Ei, – o Irmão disse. – Eu acho que é isto.

– Sim. – Lassiter forçou um sorriso em seu rosto. – Sim, com certeza é. Eu estou orgulhoso de você, a propósito. Você conseguiu.

– Grande elogio. – O cara abanou seus dedos e olhou para os anéis. – Mas você sabe o que mais? Eu estou realmente pronto para fazer isto. Nunca pensei que diria isto.

Lassiter movimentou a cabeça quando o Irmão se virou e se dirigiu à porta. Pouco antes de Tohr chegar lá, ele parou no armário, enfiou-se na escuridão, e pegou na barra do vestido vermelho.

Enquanto ele esfregava o tecido delicado entre seu dedo polegar e o dedo indicador, sua boca se movia como se ele estivesse conversando com o cetim… Ou sua antiga companheira… Ou, merda, talvez fosse apenas com ele mesmo.

Então, ele soltou o vestido, deixando-o acomodar-se no vazio silêncio que pairava dentro.

Eles saíram juntos, Lassiter fez uma pausa para dar uma última medida de apoio antes de romper e abrir caminho pelo corredor de estátuas abaixo.

A cada passo mais perto dos degraus, aquele sino de alarme ficava mais alto, até que o som reverberou através do corpo do anjo, seu estômago fermentando, enquanto suas pernas amoleciam.

Qual diabo era o seu problema?

Esta era a parte boa, o felizes para sempre. Então por que suas entranhas estavam lhe dizendo que uma tragédia estava a caminho?

 

Quando Tohr pisou no corredor escuro como breu, fora de seu quarto, aceitou um rápido abraço do anjo e então olhou o cara andar em direção ao brilho no balcão do segundo andar.

Maldição, sua respiração soava alto em seus ouvidos. E as batidas de seu coração também.

Ironicamente, tinha sido igual quando ele e Wellsie tinham se emparelhado, seu sistema nervoso inteiro ficara inquieto. Engraçado, o fato de que sua resposta física fosse idêntica neste contexto, provava que o corpo era uma máquina de uma nota só quando se tratava de estresse, a glândula de adrenalina disparando do mesmo jeito, sem levar em consideração se o gatilho era bom ou mau.

Depois de um momento, começou a descer o corredor em direção à grande escadaria, e foi bom saber que os símbolos dos Irmãos estavam consigo. Quando você se emparelhava, você ia sozinho. Chegava até sua fêmea com o coração na garganta e o amor nos olhos, e você não precisava de ninguém ou nada mais, porque o mais importante era ela.

Já na cerimônia do Fade dela, era preciso ter seus Irmãos com você, não apenas no mesmo cômodo, mas tão perto quanto possível. O volume em suas mãos, em volta do pescoço e a faixa na cintura, era tudo o que o manteria em pé. Especialmente quando a dor chegasse.

Enquanto se dirigia aos degraus, sentia o chão sob seus pés como uma onda, crescendo embaixo dele, tirando seu equilíbrio bem quando ele mais precisava de firmeza.

Logo abaixo, o vestíbulo tinha sido decorado com grandes espirais de seda branca que caíam do teto, de forma que tudo, dos detalhes arquitetônicos das colunas aos equipamentos no chão, estava coberto. Todas as luzes elétricas, na mansão, tinham sido desligadas, e enormes velas brancas em suportes, juntamente com o fogo na lareira compensavam sua falta.

Todos os membros da casa estavam rodeando o grande espaço, os doggen, as shellans, os convidados todos vestidos de branco, conforme tradição. A Irmandade formava uma linha reta do centro começando com Phury, que iria oficiar e então John, quem faria parte da cerimônia. Wrath vinha em seguida. Então V, Zsadist, Butch, e Rhage por último.

Wellsie estava no meio de tudo, em sua bonita urna de prata, em cima de uma pequena mesa coberta de seda.

Tanto branco, ele pensou. Como se a neve tivesse furtivamente vindo de fora, se espalhando, apesar do calor.

Fazia sentido: as cores eram para os emparelhamentos. Para a cerimônia do Fade, era o oposto, as nuances monocromáticas simbolizando tanto a luz eterna para a qual o morto seria subsumido, bem como as intenções da comunidade de algum dia juntar-se aos falecidos naquele lugar sagrado.

Tohr deu um passo, e então outro, e então um terceiro...

Enquanto descia, olhou para rostos voltados para cima. Esta era sua gente, e eles tinham sido a gente de Wellsie também. Esta era a comunidade com a qual ele continuaria, e aquela a quem ela teve de deixar.

Mesmo na tristeza, era difícil não se sentir abençoado.

Havia tantos que o acompanhavam nisto, mesmo Rehvenge, que agora também fazia parte da família.

E ainda assim Autumn não estava entre eles; ao menos, não que pudesse ver.

Ao final da escada, firmou-se numa postura tensa diante da urna, as mãos cruzadas na frente dos quadris, cabeça baixa. Enquanto se posicionava, John se juntou a ele, assumindo a mesma posição, embora estivesse pálido, e suas mãos não parassem de tremer.

Tohr tocou o braço de John. – Está tudo bem, filho. Vamos fazer isto juntos. – Instantaneamente, os movimentos descontrolados pararam, e o garoto assentiu enquanto se acalmava um pouco.

Nos momentos que se seguiram, Tohr pensou confusamente que era espantoso que uma multidão deste tamanho pudesse ficar tão quieta. Tudo o que ele ouvia era o crepitar das chamas em ambos os lados do saguão.

Mais à esquerda, Phury pigarreou e inclinou-se para uma mesa sobre a qual um tecido de seda branca tinha sido estendido. Com mãos graciosas, ele levantou a cobertura para revelar uma gigantesca tigela de prata cheia de sal, um jarro de prata de água e um livro antigo.

Erguendo o volume, ele abriu e se dirigiu a eles no Idioma Antigo: – Nesta noite, estamos aqui para registrar o passamento de Wellesandra, companheira do Irmão da Adaga Negra Tohrment, filho de Hharm; filha legítima de Relix; mahmen adotiva do soldado Tehrror, filho de Darius. Nesta noite, estamos aqui para registrar o passamento do nascituro Tohrment, filho do Irmão da Adaga Negra Tohrment, filho de Hharm; filho legítimo da adorada falecida Wellesandra; irmão adotivo do soldado Tehrror, filho de Darius.

Phury virou a página, o pergaminho pesado fez um ruído suave. – Conforme a tradição, e na esperança de que agrade tanto aos ouvidos da Mãe da Raça, como sirva de consolo à família enlutada, peço a todos que se aproximem para orar comigo pelo caminho seguro, até o Fade, destes que se foram...

Muitas vozes se ergueram enquanto Phury comandava as orações e eles repetiam, vozes de fêmeas e machos se misturando tanto, que as palavras pareciam indistintas a Tohr, e tudo o que ele ouvia eram padrões de discurso melancólico.

Olhou de relance para John. Que piscava muito, mas o garoto segurava as lágrimas, como o macho de valor que era.

Tohr voltou os olhos para a urna, e liberou sua mente para transitar por uma sequência de imagens, de todos os pedaços diferentes da vida que eles compartilharam.

Suas reminiscências chegaram ao fim, ao se lembrar que a última coisa que fizera por ela, antes do assassinato, fora colocar aquelas correntes nos pneus do SUV. De forma que ela tivesse tração na neve.

Ok, agora ele estava piscando como um filho da puta...

A cerimônia virou um borrão em certa altura, com ele dizendo as coisas quando adequado, em silêncio o resto do tempo. Encontrou-se feliz de ter esperado este tempo todo para fazê-lo. Não achava que teria sido possível passar por isto antes.

Diante disto, olhou para Lassiter. O anjo brilhava da cabeça aos pés, os piercings dourados absorvendo a luz do recinto, refletindo de volta um brilho dez vezes maior.

Por algum motivo, o cara não parecia feliz. Suas sobrancelhas estavam apertadas juntas, como se tentasse fazer um cálculo de cabeça e o resultado não batesse...

– Eu pediria agora à Irmandade para oferecer suas condolências aos enlutados, começando com Sua Majestade Wrath, filho de Wrath.

Tohr decidiu que estava vendo coisas e voltou a se concentrar nos Irmãos. Enquanto Phury se afastava da mesinha, Wrath foi discretamente guiado por V de forma que ficasse próximo à tigela de sal. Erguendo a manga de seu manto, o rei desembainhou uma de suas adagas negras, e enfiou a lâmina na parte de dentro de seu antebraço. Enquanto o sangue vermelho fluía da superfície do corte, o macho estendeu o braço e deixou as gotas caírem.

Cada um dos Irmãos fez o mesmo, os olhos fixos nos de Tohr, enquanto reafirmavam sem palavras o luto que compartilhavam pela sua perda.

Phury foi o último, com Z segurando o livro enquanto ele completava o ritual. Então, o Primale pegou o jarro e falou palavras sagradas enquanto derramava água que continha, transformando o sal, agora rosado, em salmoura.

– Agora eu peço ao hellren de Wellesandra que se dispa.

Tohr tomou cuidado em tirar a impressão da mãozinha da Nalla antes de desamarrar a faixa das Escolhidas, e colocou ambas em cima do manto, depois de tirá-lo.

– Eu agora peço ao hellren de Wellesandra que se ajoelhe diante dela pela última vez.

Tohr obedeceu, caindo de joelhos em frente à urna. Pela visão periférica, ele viu Phury se aproximar da lareira de mármore à direita. Das chamas, o Irmão tirou um primitivo ferro de marcar, trazido do País Antigo há muito tempo, feito por mãos desconhecidas, muito antes de a raça ter memória coletiva.

A extremidade tinha cerca de quinze centímetros de comprimento e pelo menos cinco centímetros de largura, e os símbolos no Idioma Antigo estavam tão quentes que brilhavam amarelados, ao invés de vermelhos.

Tohr assumiu a posição adequada, fechando as mãos em punhos e inclinando-se para frente de forma que suas juntas estavam plantadas na pesada cobertura branca no chão. Por uma fração de segundos, tudo o que pôde pensar foi naquele mosaico de macieira abaixo de si, aquele símbolo de renascimento que ele estava começando a associar somente com a morte.

Ele tinha enterrado Autumn aos pés de uma.

E agora ele estava se despedindo de Wellsie no topo de uma.

Quando Phury parou ao seu lado, o fôlego de Tohr começou a sair ofegos, suas costelas repuxando e como se estivessem sendo abertas.

Quando você se emparelhava, e tinha o nome de sua shellan entalhado nas suas costas, você devia aguentar a sua dor em silêncio – para provar que você era digno tanto de seu amor quanto do emparelhamento.

Respire. Respire. Respire.

Não era assim na cerimônia do Fade.

Respire. Respire. Respire...

Para a cerimônia do Fade, você tinha que...

Respirerespirerespire...

– Qual é o nome de sua morta? – Phury exigiu.

Nisto, Tohr puxou uma gigante quantidade de oxigênio.

Enquanto o ferro de marcar era encostado na sua pele bem onde o nome tinha sido entalhado, há tantos anos atrás, Tohr berrou o nome dela, cada grama de dor em seu coração, sua mente e sua alma sendo expresso de uma vez, o som quebrando pelo vestíbulo.

O grito era seu adeus final, seu pedido para encontrá-la do outro lado, seu amor sendo manifestado pela última vez.

E durou uma eternidade.

Então ele estava tão terrivelmente encurvado, sua testa no chão, enquanto em toda a volta do alto de seus ombros, sua pele ardia como que em chamas.

Mas isto era só o começo.

Ele tentou se levantar, mas seu filho teve de ajudá-lo, porque perdera toda a força muscular. Com a ajuda de John, voltou à posição inicial.

Sua respiração se alterou novamente, aquele rítmico e superficial arquejo enchendo-o, restaurando sua energia.

A voz de Phury era tensa a ponto da rouquidão. – Qual o nome de seu morto?

Tohr respirou outro quilômetro de oxigênio e se preparou novamente.

Desta vez, o nome que ele gritou foi o seu próprio, a dor de perder seu filho não nascido cortando-o tão fundo, que ele sentiu como se dentro do seu peito ele sangrasse.

Ele gritou por mais tempo na segunda vez.

E então ruiu, caindo em cima de seus braços, seu corpo exausto – mesmo sabendo que ainda não tinha acabado.

Graças a Deus pela presença de John, ele pensou, enquanto se sentia sendo reposicionado.

Do alto, Phury disse, – Para selar sua pele para sempre, e para mesclar nosso sangue ao seu, vamos agora completar o ritual para seus amados.

Não ouve arquejo desta vez. Ele não tinha energia.

O sal aguilhoou tão forte que ele perdeu a visão e seu corpo convulsionou. Seus membros tremeram incontroláveis até que caiu de lado, mesmo com John tentando mantê-lo em pé.

De fato, tudo o que pôde fazer, foi ficar deitado lá na frente de todas aquelas pessoas, muitas das quais chorando abertamente, como se sua dor fosse deles. Traçando seus rostos, ele queria confortá-los de alguma maneira, poupá-los do que ele tinha passado, acalmar sua tristeza...

Autumn estava na extremidade ao fundo, perto da entrada da sala de jogos, em carne e osso.

Estava vestida de branco, o cabelo afastado do rosto, as mãos delicadas cobrindo a boca. Seus olhos estavam arregalados e raiados de vermelho, as bochechas úmidas, a expressão de tanto amor e compaixão, que fez instantaneamente sua dor desaparecer.

Ela tinha vindo.

Ela tinha vindo por ele.

Ela ainda tinha amor... Por ele.

Tohr começou a chorar, os soluços explodindo de seu peito. Buscando por Autumn, manteve as mãos esticadas, gesticulando para ela, porque neste momento de seguir adiante, depois desta aparentemente interminável e dolorosa jornada, na qual ela fora a única a se juntar a ele, ele nunca se sentira tão próximo de alguém...

Nem mesmo de Wellsie.

Renascido, ressuscitado... De volta dos mortos.

Do lado oposto de onde Tohr contorcia-se de dor, por causa do sal que lhe caía nos ferimentos, Lassiter cerrou os dentes, não em solidariedade, mas porque sua cabeça estava deixando-o doido.

Renascido, ressuscitado... De volta dos mortos...

Tohr começou a soluçar, seu pesado braço esticado, as mãos abertas... Buscando por Autumn.

Ah, sim... Lassiter pensou, o fim de tudo. O destino tinha exigido sangue, e suor... E as lágrimas, não por Wellsie, mas por outra. Por Autumn.

Esta era a parte final, estas lágrimas do macho derramadas pela fêmea que ele finalmente permitira-se amar.

Apressadamente, Lassiter olhou para o teto, para os guerreiros pintados com seus cavalos ferozes, para o fundo profundamente azul...

O raio de sol parecia vir de lugar nenhum, perfurando através das rochas, cimento e gesso que havia acima deles, a luz brilhante tão forte, que mesmo Lassiter tinha de piscar, enquanto a luz chegava para tirar a fêmea de valor de um inferno que não merecia...

Sim, sim, lá no centro do domo, com seu filho nos braços, Wellsie apareceu, tão brilhante e vibrante como um arco-íris, aceso por fora e por dentro, a cor retornara a ela, vida renovada porque estava salva, porque estava livre – como também estava seu filho.

E bem antes que ela fosse subsumida, do abrigo das alturas celestiais, ela olhou para Tohr, e olhou para Autumn, apesar de nenhum deles perceberem, nem a multidão. Sua expressão não mostrava nada além de amor pelos dois, pelo hellren que ela tivera de deixar para trás, pela fêmea que o tirara de seu próprio tormento, pelo futuro que os dois teriam juntos.

Então com uma duradoura expressão pacífica, ela ergueu a mão em despedida para Lassiter... E se foi, a luz consumindo a ela e a seu filho, carregando-os para longe, rumo ao lugar onde os mortos estariam em casa, pelo resto da eternidade.

Enquanto a luz se esvanecia, Lassiter esperou pela sua própria explosão luminosa, seu próprio sol reclamando-o, seu próprio retorno pela última vez para junto do Criador.

Só que...

Ele ainda estava... Bem onde estava.

Ressuscitado, renascido... De volta dos mortos...

Ele estava perdendo algo ali, pensou. Wellsie estava livre, mas...

Naquele momento ele focou Autumn, que segurava levantada a barra de seu manto para dar um passo na direção de Tohr.

Do nada, um segundo raio de luz intensa caiu do alto...

Mas não por ele. Veio... Por ela.

A mente de Lassiter fez a conexão com a rapidez e o choque de um relâmpago. Ela tinha morrido há muito tempo. Tirara a própria vida...

No Limbo. Diferente para cada pessoa. Feito sob medida.

Tudo se tornou em câmera lenta enquanto a segunda verdade era revelada: Autumn estivera presa em seu próprio Limbo o tempo inteiro, viajando para o Santuário e servindo às Escolhidas, por todos aqueles anos, então vindo aqui para baixo, completar o ciclo que tinha se iniciado no País Antigo com Tohrment.

E agora que ela tinha ajudado na salvação de sua shellan... Agora que ela tinha se permitido ter sentimentos por ele, e tinha se liberado de sua dor pela sua própria tragédia...

Ela estava livre. Igual à Wellsie.

Maldito inferno! Tohr ia perder mais uma fêmea...

– Não! – Lassiter berrou. – Nãooooooo!

Enquanto quebrava a linha de pessoas e tentava se aproximar, para impedir a conexão entre os dois, pessoas começaram a gritar, e alguém o segurou, como se para mantê-lo longe. Mas não importava.

Era tarde demais.

Porque os dois não precisavam se tocar. O amor estava lá, como também estava lá o perdão pelos atos do passado e do presente, bem como o compromisso em seus corações.

Lassiter ainda tentava se jogar para frente, aos pulos, quando o último feixe de luz o clamou, pegando-o em voo, arrancando-o do presente e puxando-o para cima, mesmo que ele gritasse diante da crueldade do destino.

Seu propósito inteiro tinha resultado na condenação de Tohr a uma nova sequência de tragédia.

 

Para dizer a verdade, Autumn não tinha certeza se deveria ir a mansão... Até que o fez. E ela não tinha certeza de como se sentiria sobre Tohrment... Até que o viu buscando alguém na multidão e  sabendo que ele  estava procurando por ela.  E ela não abriu completamente seu coração para ele... Até que ele estendeu a mão para ela, seu controle quebrando no  momento em que ele travou seus olhos nela.

Ela o amava antes, ou pensava que o amava.

Mas ela não esteve sempre nesse caminho. A parte crítica que estava faltando era um senso de si mesma, não como alguém indigna e que tinha de ser punida, mas como um indivíduo de valor e uma vida para viver, além da tragédia que a tinha definido por tanto tempo.

Quando deu um passo à frente, não era como uma serva ou uma empregada, mas como uma fêmea de valor... Uma que estava indo para seu macho, abraçá-lo e unir-se a ele pelo tempo que a Virgem Escriba considerar.

Só que ela não fez isso.

Ela nem mesmo tinha cruzado metade do hall de entrada, quando seu corpo foi atingido por algum tipo de força.

Ela não conseguia compreender o que a tinha pego: Um momento ela estava caminhando em direção a Tohr, respondendo a seu apelo silencioso para que fosse até ele, atravessando o piso, focalizando em quem ela amava...

E no seguinte, uma grande luz desceu sobre ela de uma fonte desconhecida, suspendendo-a de seu caminho.

Sua vontade ordenou seu corpo para continuar até Tohr, mas uma força maior reivindicou-a, e levou-a dele. Com um puxão que era tão inegável quanto a gravidade, ela foi erguida do chão, para a luz. E quando ela foi levada para cima, ela ouviu Lassiter gritando, e o viu irromper como se quisesse impedí-la de partir...

Isso foi o que a energizou a lutar contra a corrente. Esforçando-se ferozmente, ela lutou com tudo o que tinha, mas não houve como libertar-se do que a havia capturado. Não importava o quanto ela lutasse, ela não poderia alterar a sua subida.

Lá embaixo, o caos reinava, as pessoas avançavam enquanto Tohr se arrastava no chão. Quando ele a encarou, seu rosto era uma máscara de confusão e descrença, e então ele começou a saltar como se estivesse tentando pegá-la, como se ela fosse um balão, e ele buscando desesperadamente pela corda. Alguém o agarrou quando ele perdeu o equilíbrio  John. E o Primale correu para seu lado. E seus irmãos...

Sua última imagem não foi de nenhum deles, nem mesmo de Tohrment, mas de Lassiter.

O anjo estava ao seu lado, elevando-se também, a luz os consumindo até que ele desapareceu e ela também, até que ela não fosse mais nada, nem mesmo consciente...

Quando Autumn surgiu mais uma vez, ela estava em uma vasta paisagem branca, tão ampla e tão longa que não tinha horizontes.

Diante dela estava uma porta. Uma porta branca com uma maçaneta branca e um brilho em torno dos seus batentes como se houvesse uma luz brilhante à sua espera do outro lado.

Isso não estava lá recebendo-a quando morreu antes.

Anos  e anos atrás, quando sua consciência voltou  depois de ter se infligido com uma adaga em seu próprio estômago, ela se encontrou em uma diferente paisagem branca, uma que  tinha árvores, templos e gramados ondulantes, uma que era habitada pelas fêmeas Escolhidas da Virgem Escriba, uma que se tornou seu lar sem questionar, aceitando seu destino não como uma escolha, mas o resultado inevitável de suas escolhas anteriores.

Este, no entanto, não era o Santuário. Esta era a entrada para o Fade.

O que aconteceu?

Por que ela...

A explicação veio para ela em uma arremetida, quando ela percebeu que ela tinha finalmente deixado seu passado ir, e aberto seu coração para abraçar tudo que a vida tinha a lhe oferecer... Libertando-se de seu próprio Limbo, mesmo que ela não tivesse consciência de que ela tinha estado dentro disto.

Ela estava fora do Limbo. Ela estava... Livre.

Mas Tohrment estava abaixo.

Seu corpo começou a tremer, a raiva disparando através dela, uma raiva tão profunda e permanente que ela queria rasgar através da porta e ter umas duras palavras  com a Virgem Escriba ou o Criador de Lassiter, ou quem quer que fosse o filho da puta doente que negociava seus destinos.

Depois de ter atravessado a grande distância de onde ela começou, apenas para descobrir que o prêmio não era nada, mas outro sacrifício, ela ficou furiosa à ponto da violência.

Não retendo nada, ela se deixou ir, atirando-se na porta, batendo nela com os punhos, arranhando com suas unhas, chutando-a com os pés. Ela proferiu maldições que eram vis e chamando o nome das sagradas forças que eram os vilões...

Quando braços dispararam em volta de sua cintura e começou a arrastá-la de volta, ela atacou quem quer que fosse, arreganhando os dentes e mordendo o grosso antebraço.

Porra! Ai!

A voz indignada de Lassiter cortou seu temperamento, acalmando seu corpo até que ela simplesmente arfou para recuperar o fôlego.

A maldita porta estava completamente ilesa. Indiferente. Sem se abalar.

Desgraçados, ela gritou. Seus desgraçados!

O anjo virou-a e sacudiu-a. Ouça-me, você não está ajudando aqui. Você precisa se acalmar, porra.

Com força de vontade, ela se recompôs. E, então, prontamente soluçou. Por quê? Por que eles estão fazendo isso conosco?

Ele a balançou novamente. Ouça-me. Eu não quero que você abra essa porta, apenas fique aqui. Vou fazer o que puder, ok? Eu não tenho muito arranque, talvez eu não tenha nenhum de qualquer modo, mas eu vou dar a porra de um chute. Você fica exatamente onde você está, e pelo amor de Deus, não abra aquela coisa. Uma vez que você o fizer, você estará no Fade e eu não posso fazer merda nenhuma. Está claro?

O que você vai fazer?

Ele olhou para ela por um longo momento. Talvez eu finalmente esteja indo ser um anjo esta noite.

O que. Eu não entendo...?

Lassiter estendeu a mão e segurou o rosto dela. Vocês dois têm feito muito por mim, inferno, nós estávamos todos em nosso próprio Limbo, de certa forma. Então eu vou oferecer tudo o que tenho para salvar vocês dois: vamos ver se é suficiente.

Ela fez uma presão em sua mão. Lassiter...

Ele recuou e acenou para ela. Você fica aqui e não tenha muitas esperanças. O Criador e eu não tivemos a melhor das relações, eu posso muito bem ser incinerado na hora. Nesse caso, sem ofensa, mas você estará ferrada. Lassiter se virou e entrou na claridade, seu grande corpo desaparecendo.

Fechando seus olhos, Autumn pôs os braços ao redor dela e rezou para o anjo fazer um milagre.

Rogou com tudo o que tinha...

 

Lá em baixo na Terra, Tohr sentiu como se estivesse perdendo a sua devotada mente. Lassiter tinha ido embora. Autumn se foi.

E um terrível senso lógico foi fazendo com que se perguntasse por que não tinha adivinhado os mecanismos que eles tinham trabalhando no ano passado.

Wellsie ficara presa no Limbo por ele.

E Autumn... Estivera presa no Limbo por si mesma.

Então, por amá-lo, e perdoar não apenas a ele, mas a si própria, ela havia sido liberada, assim como Lassiter, havia sido concedido a ela o que ela nem sabia que estava em busca. Tinham finalmente dado entrada para o Fade, que lhe foi negado quando tirou a própria vida em um ataque de terror e agonia.

Agora ela estava livre.

– Ah... Jesus... – ele disse quando se deixou cair nos braços fortes de John. – Ah... Porra...

Agora, como sua Wellsie, ela fora tirada dele, também.

Trazendo a mão até seu rosto, ele esfregou forte, imaginando que, talvez acordasse... Que talvez este fosse apenas o pior pesadelo que seu subconsciente pudesse sonhar... Sim, quando ele acordasse a qualquer momento, e se arrastasse para fora da cama para se preparar para a cerimônia do Fade, onde no mundo real isso não seria o resultado...

Havia apenas um problema com essa teoria. Suas costas ainda estavam ardendo pelo sal e pela marca. E seus Irmãos ainda estavam se movendo ao redor, falando um acima do outro em pânico. E em algum lugar, alguém estava gritando. E tudo ao redor, o brilho das velas fornecendo a abundância da luz dizendo quem estava no hall de entrada e que já não estava mais...

– Oh, porra... – ele disse de novo, seu peito de repente tão vazio que ele se perguntou se não tivera seu coração removido e não percebeu.

O tempo passou, e afundou na merda, e ele foi levado para a sala de bilhar. Uma bebida foi pressionada em suas mãos, mas ele simplesmente a deixou apoiada em sua coxa, com a cabeça caindo de volta, enquanto John Matthew consolava Xhex e Phury conversava com Wrath e um plano era feito pelo rei para ir enfrentar a Virgem Escriba.

Nesse ponto, V entrou em cena e se ofereceu para enfrentar sua mãe.

O que foi prontamente derrubado. Exceto quando Payne ofereceu-se para ir e o rei aceitou.

Blá, blá, blá...

Ele não tinha coragem de lhes dizer que tudo isso era um desfecho inevitável. E, além disso, ele já havia passado pelo processo de luto uma vez, então... Ele tinha uma competência essencial na recuperação, certo?

Oba.

Pelo amor de Deus, o que diabos ele tinha feito em uma vida anterior para merecer isso? Que infernos ele tinha...

O som da campainha soou atrás dele. De repente, todo mundo congelou.

Todas as pessoas que sabiam sobre a mansão já estavam aqui.

Os seres humanos não poderiam encontrá-los.

Lessers não deveriam ser capazes de fazê-lo.

E o último também era verdade para Xcor...

Essa campainha soltou sua demanda gutural, mais uma vez.

Em uníssono, todos os Irmãos, assim como Payne, Xhex, Qhuinn, John e Blay, pegaram suas armas.

Fritz foi impedido de ir até o vestíbulo; Vishous e Butch ficaram com o dever de verificar a tela.

E apesar dele não dar a mínima se era a Virgem Escriba do outro lado,  Tohr  focou-se no hall de entrada.

Um grito saiu, um grito animado com um sotaque de Boston. E então havia um monte de gritos, uma legião deles, demasiados para decifrar.

Alguém com uma túnica branca chegou com V e seu garoto.

Seja quem for...

Tohr se levantou, como se alguém tivesse ligado o seu rabo em uma bateria de carro.

Autumn estava sob os arcos da sala, os olhos atordoados e seus cabelos uma bagunça esvoaçante, como se ela tivesse passado por um túnel de vento.

Tohr passou através dos grandes corpos dos machos, empurrando as pessoas para fora do caminho para chegar até ela. E quando o fez, ele derrapou  até parar. Agarrou seus ombros. Olhou para ela da cabeça até os pés. Sacudindo-a forte para ter uma noção do quanto ela era corpórea.

– É... Realmente você?

Em resposta, ela jogou os braços ao redor dele e segurou-o tão forte, que ele não conseguia respirar- e agradecer essa porra. Porque isso significava que ela era real, certo? Tinha que ser... Certo?

– Lassiter... Lassiter fez isto. Lassiter... Me salvou...

Ele tentou seguir o que ela estava dizendo. – O que... O que você está... Eu não estou entendo nada.

A história saiu várias vezes em diferentes conversas, porque sua mente não estava seguindo nada. Algo sobre ela ter ido até o Fade, e esse anjo  chegando e dizendo a ela...

– Ele disse que daria tudo o que tinha para nos salvar. Tudo... – Tohr a puxou para si e tocou o rosto de Autumn, sua garganta, seus ombros. Ela era tão real como ele era. Ela estava tão viva como ele estava. Ela tinha sido salva por... Esse anjo?

Exceto que Lassiter dissera que ele estaria livre se isso funcionasse.

A única explicação possível era que ele havia negociado o seu futuro... Pelo deles.

– Aquele anjo, – ele sussurrou. – Aquele maldito anjo...

Tohr se abaixou e beijou tão profundamente Autumn, durante o tempo que pôde. E enquanto ele o fazia, ele resolveu homenagear Lassiter, e ele próprio, e sua fêmea o melhor que pudesse, por quantos anos ele tivesse sobre a Terra. – Eu te amo, – ele disse a ela. – E, assim como Lassiter, eu vou dar tudo o que tenho para dar, por nós dois.

Quando Autumn afirmou e beijou-o de volta, ele se sentiu,  mais do que a ouviu dizer: – Eu te amo, – de volta.

Reunindo-a em seus braços, ele a abraçou e fechou os olhos, seu corpo  tremendo muito para descrever. Mas ele sabia o resultado, e ele estava bem com isto.

A vida era curta, não importa quantos dias lhes foram concedidos. E as pessoas eram preciosas, cada uma, não importa quantas você tivesse suficiente sorte para ter em sua vida. E amor... O amor valia a pena morrer por ele.

Valia a pena viver por ele, também.

 

Com a aurora se aproximando do final da noite escura, e a lua afundando abaixo no céu, Xcor deixava o centro de Caldwell.  Após essa reunião com a  ridícula glymera, ele e seus bastardos tinham se reunido no topo de seu arranha-céu, mas ele não tinha sido capaz de digerir qualquer elaboração de estratégias ou falar dos aristocratas.

Ao ordenar a seus soldados para retornar à sua mais recente base de origem, ele fugiu para o ar frio da noite sozinho, sabendo exatamente onde ele tinha que ir.

Para o prado, o prado lavado pela lua com a grande árvore.

Quando ele reapareceu na paisagem, viu que não estava coberta de neve, mas vibrante, com cores do outono, ramos de carvalho descobertos, mas  exuberantes, com folhas vermelhas e douradas.

Marchando através da neve, ele subiu a ondeante terra, parando quando chegou ao local onde tinha visto a Escolhida pela primeira vez... E tomado o sangue dela.

Lembrou-se de cada pedacinho dela, seu rosto, seu cheiro, seu cabelo. A forma como ela se movia e o som de sua voz. A estrutura delicada de seu corpo e a fragilidade  assustadora de sua pele lisa.

Ele ansiava por ela, seu coração frio clamando em oração por algo que ele sabia que o destino nunca poderia proporcionar.

Fechando os olhos, ele plantou as mãos nos quadris e baixou a cabeça.

A Irmandade os tinha encontrado naquela fazenda.

O estojo de rifle que Syphon usava para manter os meios de seu comércio  assassino estava perdido.

Quem o tinha levado tinha ido e vindo durante a noite anterior. O que significava que ao pôr do sol, eles tinham empacotado suas poucas coisas e dispersado  para um novo local.

Ele sabia que a Escolhida tinha sido a causa disto. Não conseguia pensar em  outra maneira de que seu covil pudesse ter sido localizado. E outra coisa estava clara: a Irmandade iria usar o rifle para provar com certeza que a bala  que perfurou Wrath meses atrás tinha sido de uma arma deles.

Quanta minúcia deles.

Na verdade, Wrath era um bom reizinho. Então cuidado para não se comportar  de forma precipitada e sem causa, e ele ainda seria, obviamente, capaz de usar qualquer arma à sua disposição.

Não que Xcor fosse culpar a Escolhida de todo modo. Ele, no entanto, tinha que  descobrir se ela estava segura. Ele simplesmente tinha que ter certeza de que, apesar de seus inimigos terem lhe ordenado, eles não a tinham maltratado.

Oh, como seu coração perverso agitava com a ideia de que ela pudesse ter se machucado de qualquer forma...

Enquanto ele considerava suas opções, um vento frio soprava do norte, tentando cortá-lo no centro. Era tarde demais, no entanto. Ele já estava fatiado no coração.

Essa mulher tinha lhe cortado de forma que nenhuma guerra jamais poderia  ferir, e assim como ela, ele nunca iria se curar.

Boa coisa ele nunca se permitir mostrar suas emoções, porque era melhor  que ninguém soubesse que o seu calcanhar de Aquiles finalmente, após todos esses anos, veio para encontrá-lo.

E agora... Ele teria que encontrá-la.

Fosse apenas para colocar a sua consciência, caso ele tivesse uma, à vontade,  ele iria ter que vê-la novamente.

 

Qhuinn não sabia o que diabos estava acontecendo. Pessoas fazendo puff dentro e fora da porra do hall de entrada, a merda estava solta... Até  Autumn voltar.

Se houvesse um momento para foder tudo, seria esta a noite.

Mas pelo menos tudo acabou bem, com todos sendo recuperados, e a cerimônia  completa. Com Autumn em pé ao lado de Tohr, John foi marcado duas vezes, uma por Wellsie, e uma pelo Irmão perdido que nunca conheceu. E então, depois o sal havia selado as feridas, a multidão subiu ao ponto mais alto da casa onde a urna de Wellsie fora aberta e revelou para o ar, suas cinzas  amorosamente carregadas para cima e para fora para os céus pelas rajadas de um raro vento do leste.

Agora, todo mundo estava voltando para a sala de jantar para comer e recarregar, depois, cada um deles, sem dúvida, iria para a porra de seus quartos, logo que pudessem sair educadamente.

Todo mundo tinha terminado, ele próprio incluído, e com esta certeza ele se voltou para Layla quando chegaram ao hall de entrada. – Como você está?

Cara, ele vinha perguntando isto a ela sem parar por três dias seguidos, e toda vez, ela lhe dizia que estava bem, e não tinha começado a sangrar ainda.

Ela não iria sangrar. Ele estava certo disso, mesmo que ela ainda não acreditasse nisso.

– Eu estou bem, – ela disse com um sorriso, como se apreciasse sua bondade.

A boa notícia era que eles estavam realmente indo muito bem. Ele estava preocupado se após sua necessidade, as coisas ficariam estranhas ou alguma merda, mas eles eram como uma equipe que tinha corrido uma maratona, chegado a um objetivo, e estavam prontos para o próximo desafio.

– Posso lhe trazer um pouco de comida?

– Quer saber? Eu estou com fome.

– Por que você não sobe, e se deita, e eu lhe levarei algo.

– Isto seria ótimo, obrigada.

Sim, isto era bom, o modo que ela sorria para ele, desta forma descomplicada e quente, que o fazia amá-la como família. E quando ele a acompanhou de volta para a base das escadas, era bom sorrir para ela da mesma maneira.

Tudo tão simples e fácil terminou quando ele se virou. Na biblioteca, através das portas abertas, viu Blay e Saxton conversando. E de repente seu primo entrou e puxou Blay para seus braços. Quando o par se juntou, corpo a corpo, Qhuinn respirou fundo e sentiu morrer por dentro.

Ele imaginou que esse seria o fim para eles.

Vidas separadas, futuros separados.

Difícil pensar que eles tinham começado inseparável...

De repente, o olhar azul de Blay encontrou o seu.

E o que Qhuinn viu o fez vacilar: amor brilhando por toda a face do cara, um amor puro temperado pela timidez que era uma parte muito importante de seu jeito.

Blay não desviou o olhar.

E pela primeira vez... Qhuinn também não.

Ele não sabia se a emoção era por causa de seu primo – provavelmente era, mas iria pegá-la. Ele olhou de volta para Blaylock e demonstrou tudo o que tinha em seu coração em seu rosto.

Ele simplesmente deixou essa merda voar.

Porque havia uma lição na Cerimônia do Fade esta noite: Você pode perder quem você ama em um piscar de olhos e ele estava disposto a apostar que quando isso acontece, você não pensa em todas as razões que o mantiveram separados. Você pensa em todas as razões que o mantiveram juntos.

E, sem dúvida, como você desejou ter tido mais tempo. Mesmo se você tivesse séculos...

Quando você é jovem, você pensa que o tempo é um fardo, algo a ser liberado o mais rápido possível para que você possa crescer. Mas isto é como uma propaganda enganosa, quando você é um adulto, você percebe que os minutos e as horas são as coisas mais preciosas que você tem.

Ninguém vive para sempre. E era um puta de um crime desperdiçar o que lhe foi dado.

Chega, Qhuinn pensou. Chega de desculpas, de evitar, e de tentar ser alguém, alguém diferente.

Mesmo que ele fosse rejeitado, mesmo que o seu precioso pequeno ego e seu estúpido coraçãozinho se quebrassem em mil pedaços, era hora de parar de besteira.

Era hora de ser um macho.

Quando Blay começou a se endireitar, como se tivesse recebido uma mensagem, Qhuinn pensou, Isso mesmo, amigo.

O nosso futuro chegou.

 

Na noite seguinte, Tohrment rolou para o lado e achou o corpo de Autumn nos lençóis. Ela estava morna e desejosa quando ele a montou, suas coxas se separando por ele, seu centro o recebendo enquanto se afundava e se movia dentro dela.

Eles tinham adormecido juntos, caindo no tipo de descanso que você tem quando uma jornada terminava e o lar finalmente aparecia no horizonte.

– Me dê sua boca, minha fêmea, – ele disse suavemente no escuro.

Enquanto os lábios dela se abriram para ele, ele deixou seu corpo tomar o controle, a liberação, não um terremoto, mas mais como uma onda, um relaxamento da tensão ao invés de uma caótica explosão estelar. E enquanto ele continuava a montá-la naquele ritmo gentil, fazendo amor com a sua Autumn, ele se certificava de que ela era real – que eles eram reais.

Quando terminaram, ele acendeu uma única luz no criado-mudo e traçou o rosto dela com a ponta dos dedos. O jeito que ela sorria para ele o fazia acreditar totalmente na benevolência do Criador.

Eles iam se emparelhar, ele pensou. E ele ia adicionar o nome dela, o nome que ele lhe dera, em suas costas, bem abaixo do nome de Wellsie. E ela seria inteiramente sua shellan por fosse lá quanto tempo lhes restassem.

– Quer algo para comer? – ele suspirou.

Ela sorriu mais. – Por favor.

– Já volto então.

– Espere, eu quero ir com você. Eu não sei o que quero.

– Então vamos descer juntos.

Levou algum tempo para efetivamente saírem da cama, vestirem os pijamas, e caminharem pelo corredor de estátuas em direção à escadaria.

Autumn parou no topo, como se estivesse se lembrando da noite anterior, e temesse se aproximar daquele espaço – como se pudesse ser sugada para o Fade de novo.

Com um gesto de compreensão, ele a pegou no colo. – Eu te levo.

Enquanto ela o olhava nos olhos, colocou a mão na sua bochecha, e não precisou falar. Ele sabia exatamente no que ela estava pensando.

– Também não acredito que Lassiter nos salvou. – Ele disse.

– Eu não quero que ele sofra.

– Nem eu. Ele era um cara bom. Um verdadeiro... Anjo, no final das contas.

Tohr começou a descer, com passos cautelosos porque ele carregava uma carga preciosa. No final da escada, parou por um momento para olhar para a macieira retratada no chão. Ele tinha perdido duas fêmeas aos pés de uma... E agora ele estava carregando uma delas em cima de uma macieira – graças ao anjo que de algum modo fizera um milagre. Ele ia sentir falta daquele filho da puta; ele realmente ia. E ele ia ser eternamente grato por...

A campainha soou, alto e claramente.

Franzindo o cenho, Tohr olhou de relance para o relógio ancestral próximo a porta da despensa. Duas da tarde? Quem diabos iria...

A campainha soou de novo.

Cruzando o mosaico no chão, preparou-se para chamar os Irmãos se fosse preciso, olhou para o monitor...

– Puta... Merda.

– Quem é?

Tohr colocou Autumn no chão, destrancou a porta e colocou-se na frente da fêmea para protegê-la de qualquer luz do sol que pudesse entrar.

Lassiter entrou como se o lugar fosse dele, aquela atitude orgulhosa de volta a toda força, seu sorriso mais largo e travesso do que nunca, seu cabelo loiro e preto marcado com flocos de neve.

Enquanto Tohr e Autumn o encaravam de boca aberta, ele mostrou dois sacos grandes do McDonalds.

– Eu trouxe Big Macs para a gente, – ele disse alegremente. – Eu sei que você os devora, lembra?

– Que dia... – Tohr apertou seu abraço em sua shellan, só em caso... Bem, merda, do jeito que as coisas andavam, qualquer coisa poderia acontecer. – O que está fazendo aqui?

– É seu dia de sorte, filho da puta. – O anjo deu um pequeno giro, os piercings brilhando, os sacos do McDonalds ampliando. – Acontece que havia três de nós sendo testados, e eu passei também. No instante em que eu me sacrifiquei por vocês dois, eu fui liberto... E depois de pensar um pouco no assunto, eu decidi que preferia estar na Terra fazendo um trabalho bom do que lá em cima nas nuvens. Pois você sabe, eu meio que tenho assuntos inacabados, e esta merda de compaixão me cai bem. Além disto, não tem Maury[48] no céu.

– Que é o que distingue o lugar do inferno, – Tohr indicou.

– Verdade. – O anjo apontou para os suprimentos que trazia, cheios de caloria e gordura. – Então, o que me diz? Trouxe batatas também. Mas não sundaes. Não sabia quanto tempo demoraria para alguém abrir a porta para mim, e eu não queria que derretessem.

Tohr olhou para Autumn. Então ambos olharam para o anjo.

Ao mesmo tempo, ambos se aproximaram e abraçaram o sujeito, e não é que o filho da puta retribuiu o abraço?

– Estou realmente feliz que isto tenha funcionado, – Lassiter suspirou com toda seriedade. – Para vocês dois.

– Obrigado, cara, – Tohr respondeu. – Eu te devo uma... Merda, eu te devo tudo.

– Você conseguiu muita coisa sozinho.

– Exceto aquela última parte, – Autumn indicou. – Aquilo foi você, Lassiter.

– Nah. Quem quer saber? Entre amigos, você sabe.

Os três se afastaram, e então, depois de um momento desconfortável, eles caminharam para a sala de jantar. Quando se sentaram e Lassiter começou a distribuir os lanches, Tohr teve que rir. Ele e este anjo tinham começado com os arcos dourados[49]... E aqui estavam de novo.

– Muito melhor do que aquela caverna, né? – Lassiter murmurou enquanto estendia as batatas.

Tohr olhou para Autumn e mal conseguia acreditar como tinham chegado longe. – É. Realmente, totalmente... Completamente muito melhor.

– Ainda mais que este lugar tem TV a cabo.

Enquanto Lassiter piscava para os dois, Tohr e Autumn começaram a rir.

– Tem mesmo, anjo. Tem mesmo... E toda vez que você quiser o controle remoto, é só pegar.

Lassiter deu uma risada. – Cacete, vocês estão mesmo agradecidos.

Tohr encarou Autumn e viu-se concordando. – Pode apostar seu traseiro que estou. Eternamente agradecido... Eu estou... Eternamente. Agradecido.

Com isto, ele beijou sua fêmea... E abocanhou seu Big Mac.

 

 

[1] Twinkies são bolinhos recheados com creme, muito populares nos EUA, equivalentes às nossas “Ana Maria”, da Pulmann.

[2] Hallmark é a maior empresa fabricante de cartões postais dos Estados Unidos.

[3] “Amigas para sempre”, filme dramático de 1988, estrelado por Bette Middler.

[4] Uva passas cobertas com chocolate, da Nestlé.

[5] Marca de cerveja.

[6] Caramelos cobertos com chocolate, da Hershey’s.

[7] MILF sigla comum no mundo pornô que significa “mothers I’d like to fuck”, onde garotos tarados transam com supostas ‘mães’ de seus amigos. Mais especificamente, sexo entre mulheres maduras e experientes com garotos mais novos.

Suponho que a expressão usada pela autora no original, “Adventures in the MILFy way”, é um trocadilho com “Adventures in the Milky way” (algo como aventuras na via láctea), intraduzível.

[8] Nome da personagem principal do filme “Duro de Matar”, interpretado por Bruce Willis.

[9] Marca de refrigeradores.

[10]Marca Registrada de material usado na fabricação de coletes à prova de balas. Trata-se de um polímero resistente ao calor e sete vezes mais resistente que o aço por unidade de peso.

[11] Referência à atriz de filmes estadunidenses, Greta Garbo, nascida na Suécia, conhecida pela sua reclusão.

[12] Sons of Anarchy é uma série dramática de televisão americana criada por Kurt Sutter sobre a vida de um clube de Motociclistas ou Motoclube que se passa em Charming, uma cidade fictícia no norte da Califórnia.

[13] No original o rei cita: “Waiting for Godot?”. A expressão "Esperando Godot" era bastante utilizada em tempos passados para indicar algo impossível, ou uma espera infrutífera.

[14] Cerveja.

[15] No original, you wouldn’t be getting your panties in a wad, perde o sentido na tradução. A expressão teve que ser adaptada para o português.

[16] Bando de Bastardos.

[17] Rapid Eye Movement: movimentos rápidos dos olhos que caracterizam o estágio de sono pesado, onde ocorrem os sonhos.

[18] Referência a John caminhar para lá e para cá fora do quarto de Qhuinn, como se fosse uma enceradeira.

[19] Outono em inglês.

[20] Fogo de Artifício cilíndrico que projeta uma série de bolas de fogo coloridas.

[21] Bordo é a árvore cuja seiva dá origem ao famoso xarope de bordo que os americanos tanto apreciam comer com panquecas.

[22] Ramo de oliveira é uma citação como símbolo da paz.

[23] Ônibus 19 se refere a um trágico atentado terrorista em Jerusalém.

[24] Uma árvore que cresce, principalmente, no norte do país tem grandes folhas que se tornam vermelhas e amarelas no Outono.

[25] Bando de Bastardos.

[26] Marca de biscoito do tipo cookie.

[27] Warhol cineasta, empresário e pintor norte-americano, conhecido por reinventar a pop art, introduzindo a serigrafia pintando rostos famosos como de Marilyn Monroe em anúncios publicitários.

[28] Tupperware é o nome de uma empresa estadunidense da indústria dos plásticos e, simultaneamente, o nome do produto plástico produzido e vendido pela empresa, especialmente recipientes para utilização na conservação e preparação de alimentos.

[29] 1000 maneiras de morrer é uma série-documentário feita para TV onde recriam e desmascaram mortes aparentemente incomuns e lendas urbanas.

[30] Joe Shmoe é um dos nomes fictícios mais usados pelos norte americanos. Aqui no Brasil chamaríamos João da Silva ou José da Silva. Nomes comuns usados para quem não quer se identificar. O Shmoe também é usado como babaca.

[31] Black e tan é uma mistura de duas cervejas, uma clara e uma escura, na maioria das vezes uma Guiness e uma Harp.

[32] Moon pie - é uma massa que consiste de dois redondos biscoito, com recheio de marshmallow, mergulhado em chocolate. Vulgo Alfajor.

[33] Wrath significa ira.

[34] Tipo de refrigerante bem popular nos EUA.

[35] Uma expressão que quer dizer fazer algo ao invés de apenas falar sobre isto.

[36] Lewis e Clark foram exploradores do início do século XIX.

[37] Van Cleef e Arpels é uma empresa francesa de fabricação de joias e relógios fundada em 1896 por Alfred Van Cleef e seu sogro Salomon Arpels.

[38] Sistema MLS ou Serviço de Listagem Múltipla é um conjunto de serviços que permite ao corretor de imóveis de estabelecer ofertas contratuais e funciona como uma base de dados do mercado imobiliário.

[39] Shitkickers literalmente é bota de chutar traseiros, no caso, botas de combate.

[40] Sports Illustrateds também conhecida como SI é uma das principais revistas esportivas dos EUA.

[41] Art déco refere-se a um estilo decorativo que afetou as artes decorativas, artes aplicadas, a arquitetura, design de interiores e desenho industrial, assim como as artes visuais, a moda, a pintura, as artes gráficas e cinema. É uma mistura de vários estilos e movimentos do início do século XX, incluindo construtivismo, cubismo, modernismo, bauhaus, art nouveau e futurismo. Predominam as linhas retas ou circulares estilizadas, as formas geométricas e o design abstrato. Entre os motivos mais explorados estão os animais e as formas femininas.

[42] Earl Grey é uma famosa marca de chá.

[43] Real housewives é um reality show da TV americana que mostra o dia a dia das mulheres ricas. A tradução é Dona de casas reais. Será importante essa tradução para compreender a tirada final de Lassiter mais adiante.

[44] Beverly Hills.

[45]Jaguar

[46] Um tipo de gravata parecida com um lenço.

[47] O sal é jogado nas estradas para facilitar no derretimento da neve e facilitar o tráfego.

[48] Programa de TV com assuntos engraçados e dramáticos como testes de DNA, apresentado por Maury Povich - Nos moldes de nosso “Casos de Família’ .

[49] Referência ao arredondado – M – amarelo do logotipo do Mcdonalds.

 

 

                                                                                J. R. Ward  

 

                      

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