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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMANTE SOMBRIO / Brenda Joyce
AMANTE SOMBRIO / Brenda Joyce

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

Por trás da arrogância de Ian Maclean se esconde um terrível segredo: durante décadas ele foi mantido prisioneiro por demônios. Não há um só dia em que ele não se veja atormentado por medos obscuros sobre a perda de sua vontade. Agora, está prestes a vender a quem pagar mais por uma página que roubou do Livro do Poder, se uma mulher não o impedir.

A última missão da guerreira Samantha Rose é recuperar a página roubada e vingar-se do único homem que a rejeitou. O que ela não contava era com a imensa atração que existia entre eles… ou a crescente compreensão ao que Maclean teve que sobreviver. Quando as forças do mal do passado encontram Ian, Sam fará tudo para ajudá-lo… mesmo que isso signifique segui-lo através do tempo e enfrentar ao seu lado seus piores pesadelos…

 

 

 

 

            Nova Iorque, 18 de julho de 2009.

            Sam Rose estava de péssimo humor até que viu a nota sobre sua mesa. “Festa esta noite, as sete na casa de Rupert Hemmer. Se vista de vermelho e use sapatos de salto agulha”.

Ela sorriu lentamente. Ótimo, respondeu ao seu chefe por e-mail. Há séculos que não vou a uma boa festa.

Eram três horas e acabava de chegar ao trabalho, mas não estava atrasada. O mal agia à noite, o que significava que ela trabalhava de noite, porque seu trabalho consistia em caçar os bandidos. De fato, combatia o mal desde os doze anos: desde o dia em que sua mãe foi assassinada.

           Aquilo eram águas passadas. Sam podia pensar em Laura da maneira como a viu pela última vez, e inclusive recordar sua cara pálida e sem vida, sem sentir uma pontada de tristeza ou dor. Aprendeu, havia tempos, a defender-se de qualquer iminente compaixão. Nenhum Matador conseguia fazer seu trabalho se começava a sentir pena das vítimas do mal. A morte de Laura estava predestinada. Todas as Rose tinham seu destino, e o de Sam era ser uma Matadora.

           O dia do assassinato de sua mãe gravou em sua alma a necessidade de vencer o mal. Agora, Sam esperava com ânsia que caísse a noite. Outros temiam as sombras, com toda razão. Ela, ao contrário, alegrava-se quando a lua saía. Outros temiam o som de uma respiração pesada em suas costas, ela apreciava quando o mal ousava procurá-la. Que ele tentasse! Sam o caçava com fúria... Literalmente.

           Nick Forrester a recrutou para a Unidade de Crimes Históricos do CDA havia quase um ano, colocando assim um fim aos seus muitos anos de patrulhamento das ruas como vigilante. O Centro de Atividades Demoníacas era um organismo secreto do governo fundado por Thomas Jefferson, que criou a agência pouco depois de tomar posse como presidente. Jefferson acreditava então, como se acreditava agora, que o público não podia confrontar a realidade.

           Sam estava de acordo. Se as pessoas alguma vez soubessem que o mal era formado por uma raça governada pelo grande Satã, empenhada em destruir a humanidade, o caos se instalaria. Já era bastante difícil manter a ordem sem que houvesse uma histeria coletiva. Era muito melhor que as pessoas acreditassem simplesmente que a delinquência estava fora de controle do que ter sociedade em um estado de anarquia iminente. Às vezes, ao escutar os repórteres ou os comentaristas da atualidade, suas politicamente corretas teorias faziam Sam rir.

           Agora, enquanto lembrava o bilhete de seu chefe, ficou pensativa. Rupert Hemmer era um promotor de meia-idade que já estava no quarto ou quinto casamento. Era o multimilionário mais famoso da cidade. Sam se lembrava de ler ou ouvir em alguma parte que ele estava organizando uma grande festa para celebrar o aniversário de sua esposa. Mas Nick não frequentava esses círculos, nem ia a festas. Aquilo não era um compromisso social. E isso significava que a festa de Hemmer tinha más vibrações. Possivelmente Hemmer, com todo seu dinheiro e seu poder, fosse um dos maus. De qualquer maneira, não era um cara comum, e seus convidados também não seriam. Sam estava entusiasmada. A noite prometia ser divertida.

           Cometeu o erro de olhar o calendário sobre sua mesa e sua alegria se dissipou. Sorriu amargamente ao ver a data, dentro de quatro dias era seu aniversário.

           No ano anterior estavam todas juntas. Nesse ano faltavam sua irmã, Tabby, e sua prima, Brie.

           Ligou bruscamente seu computador. Não queria sentir aquela pontada de tristeza. Sentia falta de Tabby e de Brie, claro. E também de Allie, sua melhor amiga. Allie era uma Curandeira, Tabby era uma bruxa, e Brie tinha seus próprios dons. Durante anos lutaram juntas para proteger e defender às pessoas comuns, porque isso era o que faziam as Rose há gerações. Agora, ela trabalhava sozinha. E não se importava. Tabby e Brie acharam seu destino no passado, da mesma forma que Allie. Para falar a verdade, apesar de ser muito esperta, Brie era um pouco desajeitada, e os feitiços de Tabby às vezes eram erráticos. Sam sempre tinha que manter um olho sobre elas quando enfrentavam seus inimigos, especialmente depois do desaparecimento de Allie. Agora podia concentrar-se no mal e nos Inocentes. Era muito mais simples.

           Uma Matadora, no fim das contas, significava viver sozinha, lutar sozinha e, chegado o momento, morrer sozinha. Assim devia ser.

           Então, passaria seu aniversário sozinha. Mas quem se importava? Ficaria com algum gostoso e o dia passaria sem que se desse conta. Colocou de barriga para baixo o calendário e viu a foto de Tabby. Era a fotografia de sua irmã que mais gostava. As pérolas que usava lembravam o quanto elegante e clássica era Tabby.

           E que continua sendo, recordou-se... Só que em outra época.

           Ela virou a foto e começou a pesquisar dados sobre Rupert Hemmer na imensa base de dados da HCU. Alguém bateu na porta aberta. Sam sentiu seu poder sem que houvesse necessidade de ver quem era e levantou o olhar, contrariada.

           MacGregor sorriu.

O que aconteceu com você ontem à noite? Só matou um e escaparam dois?

Desaparece — respondeu. Ele matou oito demônios na noite anterior.

Seu garoto de brinquedo deve ter te deixado esgotada.

           — É claro que sim — mentiu Sam. Todo mundo sabia que era uma mulher muito liberal. Usava os homens como um playboy usava as mulheres, e por que não? Gostava de sexo, e precisava dele. Mas já estava alguns meses desinteressada. Faltava-lhe apetite sexual. E estava quase a ponto de se preocupar com isso. — E você não pode suportar isso, não é?

           — Logo mudará de ideia — respondeu MacGregor com sua arrogância habitual. Tentou ficar com ela desde que Sam começou a trabalhar na HCU — cedo ou tarde vai descobrir o que está perdendo.

           — Você é muito velho para mim — Sam deu de ombros. MacGregor devia ter quase trinta anos, e ela vinte e oito.

           Ele se afastou, rindo, quando uma moça morena apareceu na porta do escritório.

           — Tem um minuto?

           Sam se recostou em sua cadeira.

           — Claro — agora que Tabby, Allie e Brie se foram, Sam considerava Kit Mares uma amiga. Kit era de sua idade e estava tão envolvida quanto ela na luta contra o mal. A recrutaram quando fazia parte da brigada antidrogas da polícia de Nova Iorque, e embora continuasse sendo oficialmente uma novata na agência, era dura e muito esperta, e convinha tê-la perto quando chegava à noite, de vez em quando até tomavam uma bebida juntas.

           Kit entrou com um jornal na mão. Estava sem maquiagem, como de costume. Não fazia falta: era muito bonita. Deixou o New York Times sobre a mesa e olhou a fotografia e o calendário virados para baixo. Sam se sentiu como se a tivessem pego em flagrante.

           Kit titubeou.

           — Não há nenhum problema que sinta falta de sua irmã.

           Sam fez uma careta e voltou a colocar a foto em seu lugar.

           — O que houve? Agora é telepata? — disse com calma.

           — Eu não tenho que ler mentes para saber como é duro perder ma irmã.

           — Eu não perdi a minha irmã. Tabby está vivinha e bem, embora esteja na Escócia medieval, fazendo magia com seu Highlander. — Sam se arrependeu em seguida de ter falado com tanta aspereza. A irmã gêmea de Kit tinha morrido em seus braços, em Jerusalém, quando tinha apenas dezoito anos.

           — Sim, ela está viva — disse Kit, muito séria. — Mas não está aqui, não é?

           Sam enrijeceu.

           — Você realmente quer se meter nos meus assuntos?

           Kit fez uma careta.

           — Não, mas eu sei que eram muito unidas. Eu ainda sinto falta de Kelly. Só estava tentando ser amável.

            Sam respirou fundo.

            — Está bem. Seja amável. Mas acredite em mim: nem a amabilidade nem a compaixão matam demônios. É mais provável que acabem matando você.

           Kit fez uma careta.

           — Faço o que posso — respondeu por fim.

           Sam não podia ler mentes, mas sabia que Kit estava pensando que ela era uma imbecil.

           — Bom. Papai Nick ficará orgulhoso de você. Enfim, o que está acontecendo? — Sam aproximou o jornal. Seus olhos dilataram quando viram a fotografia de Rupert Hemmer na capa e o título: “Hemmer compra um estranho manuscrito celta por 212 milhões de dólares”.

           Ela animou-se imediatamente. Na noite anterior houve um leilão na Sotheby’s, e Hemmer havia adquirido uma página de um manuscrito considerado o texto escrito em língua celta mais antigo jamais descoberto. Sam deixou escapar uma exclamação de surpresa ao continuar lendo. Os historiadores afirmavam que a página era parte do Duisean, um livro sagrado muito antigo que em tempos medievais se guardava em um mosteiro da ilha de Iona. Alguns historiadores acreditavam que o santuário estava sob a custódia de uma irmandade secreta de cavaleiros pagãos e que o livro era a chave de seu poder nos tempos medievais.

           Sam levantou o olhar com o pulso acelerado. Sabia que o Duisean existia. De fato, acreditava-se que algumas de suas páginas circulavam ainda no presente. Quanto àquela irmandade secreta, ela também existia. Sam sorriu.

           — Você recebeu um convite para a festa de Hemmer esta noite?

           Kit assentiu.

           — Sim. Agora começa a fazer sentido. Sam, ontem à noite, Hemmer mandou transportar a página para o seu apartamento de cobertura em um veículo blindado. Ali existe uma grande coleção de arte, e aparentemente ele a guarda em um cofre impenetrável.

           Então era por isso iriam à casa de Hemmer. Poder localizar o que pudessem daquele livro antigo era uma das prioridades da HCU. Sam olhou para Kit.

           Nick provavelmente sabia muito mais sobre a irmandade secreta que qualquer outra pessoa na atualidade. No ano anterior, Brie foi sequestrada por um highlander medieval convertido ao mal. Brie também trabalhava no CAD e Nick era notoriamente obcecado por não “perder” seus agentes no tempo. Ele escolheu Sam para viajar ao passado para encontrar Brie. Depois de retornar com eles a Nova Iorque, sua prima fez um interrogatório completo. Os guerreiros chamavam a si mesmos Mestres. Na HCU eram chamados Mestres do Tempo.

           Brie, naturalmente, voltou para Aidan de Awe, por quem já estava apaixonada antes de ajudá-lo a voltar para o seio da Irmandade. Mas a HCU conseguiu grande quantidade de informação nova para agir, incluindo a possibilidade de que o Duisean estivesse em Nova Iorque e nas mãos de um grande demônio.

           A euforia de Sam aumentou. Acreditava no Duisean. As Rose também tinham seu livro, o Livro das Rose, que continha toda a magia e a sabedoria que lhes concederam os deuses e que era transmitida de geração em geração. O Livro, que se confiava sempre a uma bruxa da família Rose, estava agora em poder de Tabby. Um dos Highlanders foi buscá-lo para levá-lo de volta para ela. Por que os Mestres do Tempo não teriam também um livro de poder? Eram uma sociedade de guerreiros que jurou proteger a Inocência, e para isso precisavam de poderes de guerreiros. Era o mais lógico.

           — Hemmer é mau? — perguntou Sam categoricamente. Encontrar o Duisean, e ter certeza de que não caísse em mãos erradas, era prioritário.

           — Eu também me pergunto isso. Há um arquivo sobre ele, já verifiquei. É possível que tenha contatos entre os demônios.

           — Isso poderia fazer dele qualquer coisa: um demônio autêntico, um mestiço ou um possuído — Sam molhou os lábios. — Mas não importa. Ele não pode ter qualquer parte do Duisean. Merda! — começava a entender quão perigoso podia ser um demônio ou um meio demônio quando armado com o poder destinado aos bons.

           — Pode ser que a página não seja autêntica, Sam — assinalou Kit.

           — Sim. Temos que vê-la de perto. Onde estão os imortais mais próximos quando precisamos deles? — perguntou com ironia. Kit ignorou isso. — Entrar nesse cofre é quase impossível e não poderá ser esta noite — disse. — Ninguém entra nesse cofre sem Hemmer, ele é muito exigente na hora de escolher a quem mostrar.

           Sam cruzou os braços e as longas e esculturais pernas. Sua noção de passar um dia fantástico era competir em um triatlo. Corria maratonas, fazia kickboxing, pedalava e esquiava. Usava, como sempre, uma minissaia jeans, dessa vez de cor cinza e desgastada, com um cinturão com rebites e botas de cano alto e salto alto, apesar do calor que fazia.

           — Estou de acordo — disse Kit, sorrindo. — Você é quem tem mais possibilidades de persuadi-lo a deixá-la entrar no cofre.

           Baseado em seu histórico, estava claro que Nick pensava o mesmo. Apesar de sua nova esposa, Hemmer era célebre por suas infidelidades. Nessa noite, estava frito.

           — Ninguém vai persuadir Hemmer de nada esta noite — disse Nick Forrester entrando no escritório. Era um homem alto e bonito e uma autêntica lenda na agência por suas conquistas, demoníacas e de outro tipo, e porque corria o rumor de que estava há décadas trabalhando ali, apesar de parecer ter apenas trinta e tantos anos. Era muito controlador, o qual era uma chatice, mas também muito bom na hora de organizar e dirigir a guerra contra o mal. E estava disposto a morrer por qualquer de seus agentes. Sam detestava reconhecer, mas gostava disso. E ela o respeitava imensamente.

           Mas Nick era também incrivelmente machista. Olhou para as pernas de Sam, algo ao que ela estava acostumada. Esperava que os homens a olhassem.

           — Esta noite é estritamente para vigilância — disse Nick. — Ainda não sei se essa página é autêntica e ainda não estamos seguros de até que ponto Hemmer está contaminado. Quero fotos, senhoras, muitas e muitas fotos, para que Big Mama possa riscar planos arquitetônicos e mecânicos. E, já que vocês estão nisso, podem me trazer uma amostra do DNA de Hemmer — sorriu para Sam. — Limite-se a provocar sua curiosidade, por enquanto.

           — Sem problemas — respondeu Sam ficando de pé. Às vezes, os seres humanos contaminados tinham uma percentagem mínima de sangue demoníaco, mas isso bastava para que sua maldade ficasse assustadora. — Você também vai?

           — Não é boa ideia. Hemmer e eu não nos conhecemos, assim digamos que não é o momento adequado.

            Assim seria mais fácil para ele apanhar Hemmer de surpresa, pensou Sam.

           — Quero falar com você — Nick disse a Sam.

           Kit recolheu seu jornal e saiu.

           Nick cravou em Sam seus penetrantes olhos azuis.

           — Maclean está na lista de convidados.

           Sam teve que se esforçar para congelar seus músculos faciais.

           — Esqueça isso — disse ele. — Você deseja esse Don Juan e nós dois sabemos disso.

           Não apenas não desejava Maclean, mas também não o suportava. Sam seguiu Nick pelo corredor e entrou em seu escritório, consciente de que uma nova tensão perfurava seu corpo. Percebeu que fechou os punhos e imediatamente os abriu. A única coisa que queria de Maclean era vingança. Porque ele era um canalha.

           — Tire o vestido — ele disse.

           Ela fervia de raiva, a sós com ele em um elegante salão de sua mansão escocesa.

           — Você é um bastardo inacreditável.

           Ele riu.

           — Eu ouvi isso milhares de vezes. O que está acontecendo? A luz te dá medo?

           Sam não tinha nenhuma gota de celulite em todo o corpo. Levantou as finas alças do vestido de seda, deixando-o cair a seus pés.

           — Olhe bem, porque esta vez será a última.

           E, oh! Ele olhou.

           Em dezembro passado, Sam foi a Loch Awe para negociar com Ian Maclean. Ele era o filho de Aidan de Awe, e, como ele, tinha todo tipo de poderes extraordinários, incluindo saltar no tempo. Ela precisava encontrar sua irmã Tabby, aquela que pouco antes foi raptada por um Highlander em Nova Iorque. Mas desde que entrou na antiga mansão de Maclean, ele não deixou de fazer insinuações sexuais. Sam, entretanto, esperava por isso.

           A primeira vez que viu Maclean ele estava com Brie, que precisava de sua ajuda. Na época já lhe parecia um playboy cheio de arrogância e de sexualidade transbordante. Não se enganou. Maclean era rico, poderoso e incrivelmente sexy... E ele sabia disso. Nesse dia viram-se apenas cinco minutos, mas ele a olhou como se estivesse desejando arrancar sua roupa e fazer de tudo.

           Então ele a deixou ali, parada, sozinha, em uma esquina e levou Brie ao passado sem ela. Sam ficou furiosa: quando havia ação, não gostava que a deixassem de fora.

           Quando Tabby desapareceu no tempo com Guy Macleod, Sam foi atrás dela, então viajou para a Escócia decidida a oferecer um trato com Maclean. Um trato que não incluiria seu corpo. Não ia transformar-se em uma das centenas de mulheres usadas por Maclean. Ela seria a única a dizer “sim” ou “não”. Ele, entretanto, transformou seu encontro em outra competição sexual. Quando Sam aceitou a provocação e tirou o vestido, ele contemplou cada centímetro de seu corpo com uma certeza carregada de arrogância, como se soubesse que algum dia, seria dele. Como se ele pudesse esperar. E ela não. Então ele saiu do quarto.

           Ele foi embora.

           E não apenas isso: ele a deixou ali sozinha, completamente nua em seu salão, com as portas totalmente abertas para que seus convidados pudessem vê-la.

           Era difícil não cuspir de raiva, mesmo agora. Os homens não a deixavam. Os homens babavam por seu corpo, a maior parte músculos. Ficavam boquiabertos quando viam seu rosto, seus olhos azuis de longos cílios, seu nariz pequeno e reto, suas altas maçãs do rosto e sua mandíbula forte. Maclean, ao contrário, zombou dela. Quem ele acreditava que era?

           Sam acreditava em vingança. Seus rancores eram para toda a vida. Aquilo era uma guerra, embora ele fosse um dos mocinhos, ela iria ganhar.

           Embora seu poder fosse enorme e branco e ele fosse filho de Aidan de Awe, a sua lealdade não era clara. Sam sabia de uma coisa. Ele, definitivamente, era leal a si mesmo. Duvidava muito de que tomasse parte da Irmandade. Era muito egoísta.

           — Porque ele está na lista de convidados de Hemmer?

           Nick deu-lhe uma pasta.

           — Boa leitura.

           Sam se surpreendeu.

           — Temos um arquivo sobre ele.

           — Já conhece Big Mama — respondeu Nick, referindo-se ao supercomputador da agência. — Maclean é um ADR.

       O que queria dizer que ele estava na lista de recuperação automática de dados. Quando Big Mama encontrava uma pessoa que considerava corruptível, abria automaticamente um arquivo sobre ela, extraindo dados de todas as fontes possíveis, em um horário definido, todos os dias. Devido ao fato de que Ian era filho de Aidan de Awe e ele se converteu ao mal antes de redimir-se, o computador o marcou imediatamente. Só um administrador podia mudar seu status de corruptível.

           — Por que você não reconhece que está tentando puxar essa pequena e incômoda espinha pela raiz? — Nick parecia divertido.

           — Eu não vou arrancar os cabelos e você sabe disso. Estou pensando em usar meu Frisbee — respondeu ela. O disco tinha dentes que podiam separar a cabeça do corpo de uma pessoa apenas atirando-o suavemente, quanto mais outras partes do corpo.

           — Tome cuidado com o que pensa — comentou Nick enquanto se sentava na beirada de sua mesa. — Sinto dizer isso garota, mas ele não vai tremer de medo porque você coloca a mão entre suas pernas — Nick começou a rir.

           Sam ficou tensa, torcendo que Nick não tivesse visto a cena dela nua em meio aquele elegante salão escocês.

           — Se alguma vez eu colocar a mão entre suas pernas, ele lamentará muito, muito mesmo — replicou ela.

           Nick ficou sério e cruzou os braços. Seus bíceps se esticaram sob as mangas da camiseta escura.

           — Nunca vi você tão zangada.

           — Acho que na maioria das vezes eu sou humana — respondeu ela.

           Ele ignorou a resposta.

           — Maclean não faz parte dos mocinhos. Não é um Mestre, Sam, ele é um informante — advertiu-lhe.

           — Não sei por que, mas não penso assim — disse ela com ironia. Mas seu coração pulsava um pouco mais depressa, assim como antes de uma batalha... Ou durante o sexo.

           — Ele não joga conforme as regras. Mas isso você já sabe, não é?

           Sam pensou que certamente Nick sabia tudo.

           — Eu também não me ajusto às regras.

           Ele sorriu.

           — Por isso estou tão orgulhoso de você — voltou a ficar sério. — Não tenho provas de que ele se converteu. Estou desejando conhecê-lo. Mas você está quase fora de controle, Sam. E a raiva te enfraquece. Ele fará picadinho de você, se não se controlar.

           Ela estava furiosa.

           — Não estou zangada. Eu simplesmente não aguento esse filho de uma cadela. É insuportável. Ele faz você parecer um santo. Reconheço que o subestimei. Pensei que seria fácil de manipular. Mas não voltarei a subestimá-lo, nem voltarei a tentar negociar com ele. E eu não vou perder — acrescentou.

           Nick concordou com um brilho no olhar.

           — Me pergunto por que de repente ele comprou uma casa aqui.

       Sam ficou imóvel.

       — O quê?

       — Você me ouviu.

       — Ele está morando aqui?

       — Comprou uma casa de dezoito milhões de dólares em Park Avenue — Nick sorriu.

           Sam ficou chocada. O que fazia Maclean em Nova Iorque? Aproximou-se de uma janela e ficou olhando o tráfego e as pessoas que passavam pela rua Hudson.

     — Quando foi isso?

       — Em janeiro passado. Um mês depois de sua viagem a Loch Awe, mais ou menos.

       — Sua decisão em viver aqui não tem nada que ver comigo — disse Sam sem pensar.

       — Eu não disse o contrário — Nick olhou para pasta. — É uma leitura muito interessante, por sinal.

           Sam cruzou os braços. Seus instintos entraram em alerta. Ao chegar à casa de Ian em Loch Awe, ele estava esperando. Como era possível? Recordou a conversa entre ambos.

           — Me perguntava quanto tempo demoraria para me encontrar — ele parecia divertido.

           Ela sorriu com frieza.

           — Em seus sonhos.

           Ele serviu seu champanhe, ignorando seus outros convidados e sua noiva, que parecia tirada de um pôster da Playboy.

           — Bem-vinda ao meu lar.

           — Seu pai era o lobo.

           — Tal pai, tal filho — murmurou ele, cravando o olhar em seu decote. — Com vontade de me fazer alguma proposta?

       — Eu tive vontade de fazer isso desde a primeira vez que nos vimos.

           Era impossível que ele fosse para Nova Iorque por causa dela. Estava certa de que para Ian Maclean nenhuma mulher valia a pena esse tipo de esforço. Estava na cidade por outros motivos. Pelo Duisean? Não seria de estranhar.

           — Você é uma mulher extremamente atraente e sedutora. — disse Nick, pensativo. — E você sabe. E, além disso, é uma Matadora com muitos poderes.

           Sam ficou olhando seu chefe.

           — Continue me adulando e vou começar a me assustar.

           Ele sorriu.

           — Nada assusta você, Sam.

           Ele tinha razão.

           Nick acrescentou:

           — Não acredito que ele se instalou em Nova Iorque por pura coincidência. É perigoso e implacável — recolheu a pasta. — Mas você também é.

           Aquilo instigou o interesse de Sam.

           — Então, ele é o meu objetivo?

           — Se ele tiver más intenções, conto com você para que o neutralize.

            — Perfeito — ela tocou a pasta. — O que tem aqui?

     — Algumas coincidências interessantes.

     — Sou uma Rose. Segundo nossos ensinamentos, as coincidências não existem.

           Nick sorriu.

           — Eu sei. Maclean também está na lista de observação da Scotland Yard. Lembra-se do roubo do Van Gogh, em Melam, há dois anos?

           — Não, não lembro.

           — A pintura desapareceu de repente, no meio de um dia de trabalho. Segundo o zelador, não havia ninguém dentro da galeria naquela manhã, nem soaram os alarmes. Mas Maclean visitou a galeria uns dias antes.

           Sam passeou pelo escritório pensativamente.

           — Saltou no tempo, apareceu na galeria e levou o quadro. Pergunto-me se o quadro sobreviveu à viagem à velocidade da luz.

           — Adivinha quem espalha rumores de que o tem agora? — Sam aguardou e Nick disse: — Hemmer.

Sam teve um sobressalto.

— Muito bem. Isso explica a lista de convidados. Maclean roubou a pintura, vendeu a Hemmer e agora são amigos íntimos.

           — Ele é amigo íntimo de uns quantos colecionadores de arte de todo o mundo — Nick falava com ironia. — E está vinculado a cinco comerciantes de arte internacionais que, no total, perderam oito obras primas na última década. Conforme se crê, vários de seus amigos se achavam em posse dessas obras roubadas.

Sam ficou olhando para ele. Maclean estava utilizando seus poderes para roubar. Então foi assim que fez sua fortuna... E como comprou sua nova casa em Park Avenue, de repente compreendeu tudo.

           — Não acha que esta aqui simplesmente para cumprimentar Hemmer.

           — Não, não acredito.

           — Vai roubar a página — disse Sam em voz baixa.

           Nick se levantou.

           — E aposto que você fará todo o possível para impedir não é? Sam sorriu devagar.

       — Oh, sim — disse com prazer.

       O olhar de Nick endureceu.

       — Não o perca de vista esta noite. — Sam fez uma saudação militar. — Não há nada melhor que uma mulher rejeitada — Nick sorriu de repente. — De certo modo, me alegro que esteja zangada.

           — Não estou zangada. E lamento te dizer isso, mas tampouco fui rejeitada. Mas quando fico com raiva... eu me vingo.

           — Eu conto com isso.

 

            Maclean não estava em nenhuma parte.

           Sam e Kit se olharam, em pé no vestíbulo de mármore, em frente às portas douradas do elevador que as levou ao apartamento de cobertura. Hemmer construiu o edifício no seu estilo habitual: a elegância da Quinta Avenida, combinada com o esplendor de Las Vegas. Havia chão de mármore, espelhos dourados e colunas Coríntias[1]. Tudo cheirava a dinheiro, diante delas havia uma fila de convidados, e por toda parte se viam guardas de segurança vestidos de negro.

           Sam usava um vestido de jersey vermelho, sem alças, que se colava a todas as suas curvas, e sandálias douradas de salto agulha, colocou um dos braceletes de ouro de sua mãe no pulso direito, apesar dos serem um estorvo quando se lutava corpo a corpo. Os anéis, pelo contrário, eram muito úteis: podiam infligir dolorosas feridas no inimigo. Sam usava vários. A maioria das mulheres usava bolsinhas de mão, mas ela escolheu uma bolsa do tamanho de uma carteira, pendurada no ombro. Quase não pesava: continha apenas um cartão de crédito, seu telefone celular e seu batom vermelho, e não a atrapalharia. Usava também as argolas de diamante que sua irmã lhe deu no ano passado. Só as tirava para limpeza.

     Distinguiu Rupert Hemmer do outro lado da porta de sua casa, acompanhado de sua loira esposa. Foram saudando os convidados à medida que entravam. Mais à frente, o salão já estava lotado de gente. Sam, entretanto, não via Maclean entre os convidados. Seu coração pulsava estranhamente, em ritmo lento e firme, como antes de entrar em uma batalha. Maclean estava ali. Estava certa disso, e não porque Nick disse que estava na lista de convidados. Sentia sua presença em alguma parte do apartamento de cobertura.

           Percebia o poder branco, e o de Maclean era evidente.

           Sua aura exalava um cheiro forte de sexualidade e a tensão de seu corpo a convenceu de que Maclean estava perto. Estava desejando arruinar sua diversão. Deu uma cotovelada em Kit e mostrou com um gesto as minúsculas câmeras que havia nos cantos da sala. Kit seguiu seu olhar. Depois apontou seus anfitriões.

           — Ela não é menor de idade?

           Sam riu e olhou seu anfitrião, que estava muito bonito e bronzeado, com seu smoking negro, a plástica no rosto, óbvia, e o cabelo tingido de um curioso tom de castanho médio com o que os homens mais velhos tentam disfarçar o cinza. Devia ter perto de sessenta anos e embora tivesse passado pela sala de cirurgia e estivesse em plena forma, sua esposa aparentava vinte... se muito. Usava um vestido de noite rosa chiclete que, mais que um traje, parecia uma segunda pele. Sam reconheceu como um Versace. À distância Rupert emanava riqueza e arrogância, mas não o mal. Sam era capaz de perceber o mal com a mesma facilidade que o poder branco, e suspeitava que Hemmer fosse humano, embora tivesse umas poucas gotas de sangue demoníaco.

           Por fim chegou à vez de cumprimentá-las. Ao olhar para ela, os olhos do Rupert dilataram, cheios de interesse. Olhou com cautela seus exuberantes seios, que, diferentes dos de sua mulher, pareciam naturais, e logo contemplou suas longas e firmes pernas. Depois fixou o olhar em Kit, que colocou um vestido clássico, justo e negro, e batom. Sorriu-lhes lentamente.

           — Vocês devem ser Sam Rose e Kit Mares, do World Media.

           Sam notou que Becca Hemmer não se importava que seu marido olhasse com desejo para outras mulheres. E por que se importaria? Sam leu algo sobre os Hemmer enquanto se vestia. Ela era jovem, linda e bastante inteligente para ter assinado um acordo pré-nupcial que a transformava em uma das mulheres mais ricas da cidade, acabasse como acabasse seu matrimônio. E, ao que parecia, Becca gostava de se divertir tanto quanto seu marido.

           Sam a considerou irrelevante e sorriu para Hemmer, olhando-o com desafio. — As mesmas — estendeu-lhe a mão. — Sou Sam Rose. Perguntava-me quando nos conheceríamos por fim, senhor Hemmer.

           Ele estreitou sua mão calorosamente.

           — Todos meus convidados tem ordem de me chamar de Rupert.

           — Rupert — murmurou ela. — Faz muito tempo que não me dão ordens.

       Ele sorriu levemente ao captar a insinuação.

       — Que interessante — disse, e acrescentou:

       — Se eu soubesse que no World Media havia publicitários iguais a vocês, acho que deixaria me convencerem antes com mais facilidade a entregar-lhe meu negócio.

           Sam se perguntou se ele as teria descoberto.

           — O resto da equipe está aqui?

           — Acredito que sim — murmurou ele. — John Ensign e Charles Dupre foram os dois primeiros a chegar.

       Sam sentiu a tensão de Kit.

       — Jack Ensign — ela corrigiu casualmente. — Nós o chamamos de Jack.

           — Ah, sim, claro, me enganei. Bom, entrem e sirvam-se de champanhe. Possivelmente logo possamos conversar um momento sobre o projeto. Estou desejando ouvir suas propostas.

                          — Estou ansiosa por compartilhar. — Sam sorriu amavelmente para Becca antes que Kit e ela entrassem na enorme sala de estar enfeitada com lustres de cristal e ouro, e modernas cadeiras estofadas em diversos tons de branco. Nick disse que haveria quase duzentos convidados, e Sam calculou que não se enganara. Os homens foram de smoking e as mulheres, algumas delas com vestidos de noite, como Becca, ostentavam joias chamativas. Os garçons vestidos de branco passeavam de um lado a outro levando bandejas de prata reluzente, carregadas com refinadas taças de champanhe e aperitivos. Sam demorou só um momento para chegar à conclusão de que Maclean não estava no salão. Já estaria dentro do cofre? Estremeceu. Estava desejando investigar isso. Seu pulso acelerou.

 

           — Acha que ele engoliu? —murmurou Kit.

           — Parece que suspeita de algo — mas na realidade ele não dava a mínima para seu anfitrião.

       — Teve tempo de ler algo sobre esse projeto?

       — Não, e, além disso, pretendo evitar Hemmer. De qualquer maneira, com tanta gente não acho que seja difícil livrar-se de um tête-à-tête. Você está bem? Vou explorar um pouco por aí.

           — Sim, estou bem. Tome cuidado. Hemmer fede.

           Sam sorriu e se perdeu na multidão. De repente, um brilho rosado chamou sua atenção, voltou-se e viu que Becca avançava sozinha entre os convidados, o que não era fácil, levando-se em conta que constantemente a paravam para saudá-la e felicitá-la. Sam virou para tentar localizar Hemmer. Finalmente o viu: estava ainda na porta, conversando com o prefeito e com uma famosa jornalista de televisão, voltou-se para Becca bem a tempo de vê-la escapulir do salão, passando junto a dois enormes guardas de segurança.

           Aonde estava indo? Não parecia das que fugiam das festas. Sam conseguiu encontrar Kit.

     — Preciso que distraia os guardas para que eu possa vasculhar o resto da casa.

     — Com esse vestido, você poderia distrair muito melhor que eu.

       — Deixa de se subestimar — respondeu Sam sinceramente.

           Um momento depois, Sam se colocou não muito distante da porta por onde Becca saiu, onde continuavam os dois guardas. De repente, uma mulher gritou perto da porta:

           — Roubaram minha bolsa! Alguém acaba de puxar minha bolsa das mãos!

           Os dois guardas da segurança se precipitaram para ela e Sam aproveitou a ocasião para escapulir pelo corredor. Ali reinava a calma e a iluminação era muito fraca. Em frente a ela havia um elevador que sem dúvida levava aos aposentos privados de Hemmer. Passou rapidamente adiante, com o batom na mão. Na verdade, era uma câmera fotográfica. Começou a fazer fotos enquanto passava por uma biblioteca e uma sala multimídia. Não temia se deparar com Becca. Tinha quase certeza que foi para o andar de cima.

           Passou em frente a um escritório e chegou ao final do corredor. Em frente a ela havia uma piscina olímpica coberta, rodeada de janelões. A sua esquerda havia uma enorme porta de aço.

           Encontrou o cofre.

           O poder de Maclean parecia chamá-la, ardente e tangível. Mas não vinha daquele cofre. Sam fez algumas fotografias, consciente de que a estavam gravando: havia micro câmeras de vídeo por toda parte. Tomou cuidado de não se aproximar muito, para o caso de existir sensores de movimento e algum alarme ser acionado.

           Quando acabou, guardou a câmera. Maclean estava perto, mas onde? E onde estava Becca? Estava claro que subiu. Mas Sam não acreditava que tivesse ido mudar de sapatos.

           — Que menina malvada — murmurou. Não seria surpresa encontrá-los juntos, pensou. Certamente Maclean se divertia trepando com a mulher de seu anfitrião.

           Sam voltou sem fazer ruído pelo mesmo caminho que seguiu, com os sentidos alerta. Não se apressou: cedo ou tarde o encontraria. O elevador estava o bastante longe do salão para que pudesse entrar facilmente nele sem que a vissem. Era, além disso, muito silencioso. Entrou nele com o olhar fixo nas costas dos guardas, mas nenhum deles se virou. Tocou o único botão que havia. O elevador subiu para o último andar do edifício.

           Sam percebeu o sexo quente antes de vê-lo. Ela o sentiu. O ar parecia mais denso e mais úmido. Estava impregnado de desejo e de testosterona. Muitas mulheres deixariam tudo para estar com Maclean e Sam podia ouvir Becca agora no auge. Parou. A porta de um dos quartos estava entreaberta. Os gemidos de Becca se transformaram em soluços incontroláveis. O coração de Sam pulsava com violência. Seu corpo ficou rígido. Ela empurrou a porta.

           Esqueceu como ele era bonito. E como era incrivelmente sexy. Becca soluçava, presa no prazer, tombada de barriga para baixo sobre a cama, com a saia levantada. Maclean estava atrás dela, completamente vestido. Penetrava-a com força, ritmicamente, a cara crispada, ao mesmo tempo dura, fria e quase cruel. Estava absorto em seu próprio prazer.

           Becca perdeu o controle. Ian Maclean não.

           Sam molhou os lábios, impelida a olhá-los. Como era possível que esquecesse aquele rosto tão bonito? A maioria dos homens belos pareciam efeminados. Maclean não. Apesar de seus olhos cinza, de longas pestanas, e de seu nariz quase perfeito, tinha a mandíbula robusta e as maçãs do rosto altas. Mas não era apenas um rosto bonito. Sam nunca o havia visto nu, mas sabia que seu corpo era musculoso e duro. E, além disso, seu potente impulso sexual. Nesse sentido, Sam reconhecia nele uma alma gêmea. Maclean tinha uma sexualidade poderosa, possivelmente insaciável.

           Seria difícil de agradar.

           Os soluços da Becca enchiam o quarto. Maclean continuava penetrando-a em silêncio. Sam sabia que foi fácil seduzir Becca. Ela apostava qualquer coisa que Maclean nunca deu valor ao seu dinheiro.

           Ela respirava com dificuldade. Uma espantosa tensão a consumia. Mas, mesmo assim, havia uma mulher que Maclean não poderia seduzir.

           Ela deixou escapar um som rouco, único. Ele olhou para ela.

           Assim que seus olhares se encontraram, Sam compreendeu que ele não ficou surpreso ao vê-la. Um instante depois viu que a luxúria não o havia cegado. Seu olhar continuava cinza e claro. Enquanto o olhava fixamente, ele começou a sorrir como se fosse dono de um delicioso segredo.

           O coração de Sam deu um salto.

           — Você teve seu tempo — murmurou ele, afastando-se de sua amante, que continuava ofegando e finalmente desmaiou sobre a cama.

           Sam tentava assimilar o fato de que, assim como em Loch Awe, Maclean estava esperando por ela. Mas seus pensamentos coerentes se dissolveram quando ele levou as mãos às calças desabotoadas. Sam olhou para lá. Seu coração bateu trovejando. Esqueceu de respirar.

       Ele sorriu lentamente enquanto subia por completo a braguilha.

           Usava um anel de prata ali.

           Sam viu muitos piercings, é claro. Mas não ali... Nem assim.

     — Alguma coisa comeu sua língua? — perguntou ele, zombador.

     Ela tragou saliva e saiu de seu estupor.

     — Está se divertindo? Porque eu lamentaria ser o motivo de ter arruinado sua festinha.

           Mas ela desejava limpar o suor do decote e da testa. Seu corpo se rebelou. Pelo visto, não havia nada para se preocupar: seu instinto sexual continuava ali.

           — Com calor? — Maclean seguiu com o olhar seus dedos enquanto ela enxugava o suor. — Estou certo que não é a primeira vez que vê um piercing em um pênis.

           Sam sentiu que seu débil sorriso se evaporava.

           — Grandes boas-vindas, Maclean. Pena que eu não goste de voyeurismo. — Ela tentava mostrar-se arrogante e despreocupada. — Bonita joia.

           Ele levantou as sobrancelhas enquanto se aproximava.

           — Reconheça. Eu a excitei Sam, e você adora olhar.

           Sam percebeu que Becca se levantava precipitadamente da cama e corria para a porta. Tragou saliva. A fuga de Becca lhe deu o tempo que necessitava para recuperar-se.

           — Foi um show decente — respondeu quando recuperou a compostura. — Não vai atrás dela?

           — Não, para que, se você está aqui? — respondeu ele, em pé ao lado dela.

           — Bem, não sei. Para irritar Hemmer? Para continuar tendo uma pessoa íntima nesta casa? — “Porque tem o costume de me deixar paralisada?”.

           Ele riu.

           — Não me importa o que Hemmer pensa, e não preciso de Becca. Sei que você gosta de meu anel, mas e o resto da mercadoria?

           “Mostre-me a mercadoria”. E ela baixou o vestido. Tentava fazer ele recordar aquele momento: sua posição de poder e a humilhação que se seguiu.

     — Sempre gostei muito de homens com olhos doces, Maclean.

           — Mas nunca viu, ou verá, olhos doces como os meus.

           Infelizmente, Sam ficou completamente sem fôlego.

       — Está muito seguro de você mesmo, não é?

       — Muito. — Seus olhos cinza continuavam com uma expressão zombadora. Inclinou-se e murmurou: — Pode tirar o anel quando quiser, Sam, diga-me quando e onde.

           Já a abandonou antes, mas dessa vez ele estava correndo atrás dela. Sam tinha dificuldade para pensar com clareza e não podia perguntar o por quê? E, maldição, era difícil afastar os olhos de seu olhar quente. Suas palavras intensificavam as correntes elétricas que chispavam na habitação.

           — Puxa! uma cantada. Na última vez não parecia muito interessado, porque não concede essa honra à sua amiguinha?

     — Porque prefiro conceder isso a você — ele parecia divertido. — Para compensar pelo meu mau comportamento em Loch Awe.

           Sam tentou não pensar em tirar aquele anel e tocar seu membro. Esqueceu a atração que se agitava violentamente entre eles, contra sua vontade. Mas não esqueceu seu último encontro. Oh, não. Ela nunca esqueceria.

           Sabia que, no fundo, Maclean estava rindo dela. Ele não se arrependia absolutamente.

           — Eu não gosto que os homens tentem dar em cima de mim — respondeu, cortante. — Sou eu quem toma a iniciativa.

           Ele torceu a boca.

           — Claro. Você gosta de seduzir garotos. Ou devo dizer bonecos?

           Ele estava certo.

     — Você tem algum problema com as mulheres fortes, Maclean?

           — Tenho sim. Eu gosto das mulheres suaves e ardentes. E nós dois sabemos que você tem um problema com os homens fortes.

           Sam sorriu devagar.

           — Meu problema é que nunca conheci um tão forte quanto eu. Sobretudo, na cama.

            Ele sorriu amplamente.

     — Quem é o arrogante agora? Quando estiver preparada, descobrirá o quanto esta equivocada.

            Sam tinha a inquietante sensação de que Maclean seria a viagem de sua vida.

     — Eu sempre estou preparada... Exceto com descarados com um ego tão descomunal quanto o seu.

     — Ora — respondeu ele. — Então você não me perdoou por Loch Awe. Está ofendida.

   — A verdade é que não lembro o que aconteceu em Awe — ela retrucou.

           Maclean riu.

     — Claro que lembra. Eu a deixei nua no meu salão, em vez de suplicar seus favores, como esses seus menininhos. Não me arrastei. Não ofeguei, nem babei. E não concedi o que você queria. Estava furiosa comigo. Vamos, Sam, nós dois sabemos que tipo de mulher você é. Nunca esquece, nem perdoa. E nós dois sabemos que você não me esqueceu.

           Sam se enfureceu.

   — Francamente, não te dediquei um pensamento nenhuma só vez desde dezembro — mentiu. — Seu enorme ego poderá lidar com isso?

   — Meu enorme ego pode lidar com qualquer coisa... De qualquer maneira, eu quero você.

   — Eu vou passar... como na última vez.

   — Então você recorda da última vez — disse ele com suavidade. — Quando não te dei a oportunidade de dizer não.

            Ela tremeu de fúria.

           — Tem certeza que não me pareço com um troféu? — acrescentou Maclean. — Assim não haveria perigo de que esquecesse esta noite.

           — Não. — Não sentiu satisfação ao dizer que não. Por mais zangada que estivesse, sabia que passaria muito tempo sem que esquecesse que o viu com Becca. — No que me diz respeito, você não é nenhum prêmio, Maclean, não importa o que pense.

           Ele encolheu os ombros com indiferença e murmurou:

          — Como sabe, se não provar a mercadoria?

           Sam virou para ir embora.

          — Sim, claro, você é o melhor que existe. Eu nunca conheci um homem que acreditasse ser um autêntico presente divino — replicou por cima do ombro.

            Maclean a agarrou pelo braço. Sam se viu obrigada a parar e seus olhares se chocaram, o de Maclean não vacilou.

            — Eu sou o melhor.

            Suas palavras a fizeram desfalecer um momento. Queria replicar, mas ficou ali, recordando sua expressão de um momento antes. Becca parecia estar tendo um orgasmo sobrenatural enquanto ele procurava sua própria satisfação quase com esforço. Sam ouviu dizer que o sexo com os quase imortais era totalmente distinto: que o prazer era infinito. Não acreditava nisso, na realidade, mas estava certa de que Maclean era muito bom na cama... quando estava inspirado.

           Com ela, entretanto, nunca teria oportunidade de demonstrar isso.

            — Você não voltará a desejar um desses bonecos — acrescentou ele em voz baixa.

            — Você está equivocado — respondeu ela no mesmo tom. — Pode ser que algumas mulheres encontrem atração em seu ego, mas eu não. Diminui qualquer outro atributo que você possa ter.

           Ele sorriu.

           — Meu ego não pode diminuir isso em que está pensando.

       Ela escapou do seu alcance.

           — Você é bem dotado. Grande coisa.

            — Está com água na boca.

            Era hora de ir embora. Sam virou de novo, disposta a sair, mas então lembrou que não devia perdê-lo de vista. Recordou também o que havia no cofre de Hemmer, e o que queria a HCU. Olhou lentamente para Maclean.

           — Vamos falar de negócios. Como é cofre?

           Ele levantou as sobrancelhas.

           — Eu não sei.

           — Por que não?

           Ele mostrou a cama.

           — Estive ocupado. Você estava demorando muito e eu decidi começar a noite com um aperitivo. Estava esperando você.

            — Você viu a lista de convidados?

     Maclean encolheu de ombros.

    — Nossos caminhos estavam destinados a cruzar cedo ou tarde.

 — Eu não frequento os mesmos círculos que Hemmer.

— Agora sim — respondeu ele tranquilamente. — É uma Rose. Sua prima se casou com meu pai. Era natural que fosse atrás de Hemmer.

   Sam ficou olhando para ele. Finalmente esqueceu seu atrativo viril. Ele estaria em contato com Brie?

— A página é autêntica?

— A página? — Maclean ergueu suas sobrancelhas morenas. — Não sei. Rupert parece acreditar que sim.

   Deve ser, para gastar duzentos milhões de dólares nela, pensou Sam.

— Tem certeza de que não quer tomar uma bebida comigo? Poderíamos falar de nossos interesses comuns — seus olhos brilhavam, divertidos.

Sam olhou para a cama.

— Tenho certeza.

— Você mudará de ideia.

— Se você diz... — sorriu pra ele, zombadora. — Ouça Maclean... Eu serei a primeira que entrará nesse cofre hoje... Quando Rupert me oferecer uma visita privada, nesta mesma noite.

Ele parecia se divertir.

— Sério? E se eu ofereço uma visão, agora mesmo?

Ela ficou quieta.

— Está de brincadeira?

Ele baixou um momento suas longas pestanas.

— Quero compensá-la.

Sam quase acreditou por um momento. Sabia, entretanto, que ele tentava jogar com ela. Esse jogo, não entanto, podiam jogar dois.

— Me leve para dentro do cofre e provavelmente eu te perdoe.

Maclean levantou as pálpebras e a olhou nos olhos. Ao ver que não se movia, nem dizia nada, Sam passou ao seu lado, empurrando-o, e ele entrou atrás dela no elevador.

— Uma advertência — disse tranquilamente, enquanto começavam a descer. — Eu sempre consigo o que quero.

— Muito bem. Isso faz com que nós dois tenhamos algo em comum! — O elevador era muito pequeno para os dois. Seu corpo grande e masculino enchia o pequeno espaço. Mas Maclean ia introduzir Sam no cofre, e ela devia se concentrar nisso.

   — A propósito, que tal sua nova casa?

— Porque não passa lá e vê com seus próprios olhos?

Sam pensou que aquilo valia uma viagem à parte alta da cidade.

— Alguma peça de arte interessante que possa me mostrar? Possivelmente uma ou duas obras roubadas?

Ele voltou a sorrir.

— Então, esteve pensando em mim.

— Isso se chama fazer o dever de casa.

Maclean sorriu, satisfeito. Quando as portas do elevador se abriram, Sam passou a seu lado, irritada novamente. Talvez o problema fosse o físico de Maclean, parecia muito com seu pai, Aidan de Awe, o que o deixava quase irresistível. Se não tivesse o cabelo escuro e abundante, os olhos cinza claros e faiscantes, as profundas covinhas que apareciam quando sorria e as feições de um Adonis, sua sexualidade não seria tão avassaladora. Seria simplesmente um cara bom.

Mas parecia um dos Deuses dos quais descendia. Sam seria uma mentirosa se dissesse que não era um dos homens mais belos que viu... E nem sequer o viu nu.

Bem, ela viu a parte que contava mais, pelo menos para ela. Pensou no anel de prata e de novo ficou sem ar. Aquele piercing devia ter doído uma barbaridade.

— É de aço — disse ele em voz baixa. — Não de prata.

Sam o olhou bruscamente. Ele leu seu pensamento, demonstrando que tinha poderes telepáticos.

Sam se dirigiu para o cofre. Queria se concentrar na tarefa que tinham nas mãos, mas mesmo assim estava muito consciente de sua proximidade. A parte de trás do apartamento de cobertura de Hemmer continuava tão deserta como antes. Sam parou e mostrou a porta de aço que havia diante deles.

— Posso sentir o bem e o mal. E agora não sinto nada.

Maclean lançou um olhar que ela não conseguiu decifrar; depois tocou o trinco metálico da porta. Sam esperava que saltasse no tempo e aparecesse no interior do cofre, com ela.

— O que está fazendo? — perguntou com aspereza, temendo que soassem os alarmes. Mas não se ouvia nada. Ele sorriu e girou a alavanca. A porta de aço abriu. Maclean se virou para ela.

— Vamos.

— Como fez isso? — perguntou Sam, surpresa.

Ele sorriu devagar.

— É tão fácil como saltar no tempo.

Estava claro que usou seus poderes mentais para abrir a porta e desativar os sensores e os alarmes. Era um truque incrivelmente útil. Sobretudo, para um ladrão.

— Então, foi assim que roubou o Van Gogh?

Ele lançou um sorriso modesto e indicou educadamente que passasse primeiro.

As luzes internas do cofre acenderam ao abrir a porta. Sam passou ao seu lado e observou surpresa as filas e filas de obras primas deslumbrantes que havia nas duas paredes. O cofre era uma espécie de túnel comprido.

— Por que ele ia querer ter sua coleção fechada aqui? — embora não fosse muito ligada à pintura, reconheceu obras de diferentes artistas que viu no Metropolitan, no Whitby e no Guggenheim. Se não estava equivocada, Hemmer tinha uma coleção de incalculável valor.

Maclean não respondeu e ela olhou para ele, que afrouxou a gravata e estava desabotoando o colarinho da camisa como se estivesse desconfortável, dentro do cofre, cuja temperatura era cuidadosamente controlada.

— Hemmer sente a mesma paixão pela arte que os demônios pelo sexo e a destruição.

— Ele é maligno?

Lançou a ela um olhar que parecia dizer que sim.

— Quanto ele pagou a você pelo Van Gogh? — perguntou ela, fingindo despreocupação.

Sua resposta foi imediata.

— Trinta milhões de dólares — sorriu e voltou a puxar o colarinho da camisa. — Uma pechincha.

Sam bufou. Olhou de novo ao seu redor com cautela.

— Alguma coisa está errada — disse ela, sem saber o que sentia exatamente. Aguçou seus sentidos e percebeu um leve sopro de maldade que avançava para eles.

— Você sentiu isso?

Ele concordou com a cabeça.

— É aqui dentro.

Sam o ignorou e tentou isolar o resto de suas sensações. Sentia um torvelinho de poder sagrado. Parecia chamá-la. Estava a sua esquerda, virou-se, tentando segui-lo, e se encontrou cara a cara com uma frondosa paisagem do campo na europa, certamente do século XVIII. Começou a removê-la.

           Maclean se aproximou para ajudá-la. Assim que levantaram o quadro, apareceu a página do Duisean.

           Estava emoldurada e sob um vidro, mas o velho e descolorido pergaminho brilhava ainda, cheio de poder e de luz. Algumas das palavras escritas nele pareciam tridimensionais.

           — É autêntica — disse Sam com voz rouca. — Mas seu poder está distante de alguma forma.

           — É um poder contido — comentou Maclean pensativamente. — Acho que vocês precisam de um feitiço para libertá-lo.

           Olharam um para o outro. Sam estava pensando em Tabby quando Ian disse:

            — Hemmer.

           — Você tem certeza? — Sam não ouviu a aproximação de ninguém, nem pressentiu o perigo. Enquanto colocavam rapidamente o quadro no lugar, Maclean disse:

           — Meus sentidos são maiores que os seus.

           — Então talvez devamos nos apressar — Sam saiu rapidamente do cofre, seguida por Ian, consciente agora das vozes no corredor.

           Maclean fechou a porta de aço e ela ouviu o estalo do fechamento automático. As vozes ficaram mais altas e Sam ouviu um ruído de passos que se aproximavam.

           Ela não pensou duas vezes: agarrou Maclean pela gravata e a usou de correia para puxá-lo pelo corredor, afastando-se do cofre. Empurrou-o contra a parede, com a gravata ainda na mão. Ele compreendeu o que ela estava prestes a fazer e sorriu, presunçoso. Sam apertou-se contra ele e seus olhares se encontraram. Os olhos de Maclean cintilavam.

           Sua maciça ereção penetrou entre eles.

           Sam o apertou mais ainda contra a parede, consciente da dureza de aço de seu corpo. Ficou nas pontas dos pés até que seus olhos ficaram na mesma altura. Ele esperou, esboçando um sorriso triunfal.

           Sam o beijou.

           Abriu a boca e se apoderou da sua. Assim que seus lábios se fundiram, seu coração deu um salto e pareceu alojar-se em sua garganta. Hemmer e seus acompanhantes dobraram a esquina. Sam continuou atenta a eles com uma parte de sua mente, mas com a outra se concentrou em Maclean. Seu corpo, pelo contrário, estava absolutamente entregue a ele.

           Ele tinha um gosto tão bom... E tocar seu corpo duro e rígido era ainda melhor. O desejo era tão brutal, tão avassalador, que se sentia em estado de choque. Depois, não pôde suportar mais. Fechou os olhos, esqueceu Hemmer e o obrigou a abrir a boca. Ele riu. Sam introduziu sua língua. Seu corpo ameaçava explodir.

           Ele a agarrou pelos quadris, girou em torno dela, empurrou-a contra a parede e assumiu o beijo. Apertando-se contra ela, colocou uma de suas enormes coxas entre suas pernas até que Sam montou sobre ele. Ela agarrou seus largos ombros e continuou beijando-o ansiosamente. Era tão delicioso que não queria parar.

           — Me perdoem — disse Rupert Hemmer.

           Enquanto suas línguas se entrelaçavam e ele subia mais ainda a coxa, cravando-a contra a parede, Sam compreendeu que tinham que parar. Mas nenhum homem a imobilizou assim, contra a parede, nem foi tão dominante. Enquanto o beijava, notou um sabor de sangue. Ele deixou escapar um som triunfal e depois se separou dela.

           Com as costas ainda coladas à parede, Sam abriu os olhos e ele a deixou deslizar por sua perna. Olhou seus olhos ferozes. Maclean se afastou dela.

           — Eu sempre consigo o que quero — murmurou.

       Ele estava rindo dela. Sam estava chocada. Que demônios aconteceu?

           Maclean virou para Rupert, afrouxando de novo a gravata. Atrás dele havia dois homens e uma mulher que os olhavam com curiosidade.

           Sam respirou fundo e se ergueu, afastando-se da parede.

           — Minha casa é isso: minha casa. Os convidados devem permanecer nos salões de recepção — o desagrado de Hemmer era óbvio.

           Sam se adiantou. Hemmer a olhou em seguida com interesse. Ele não era imune a ela ou o que ela estava fazendo. Sam usaria isso.

           — Lamentamos, senhor Hemmer. Não sabíamos que o resto da casa estava fora dos limites.

           Hemmer devolveu um sorriso tenso. Voltou a olhar seu vestido curto.

           — Os seguranças os acompanharão de volta à festa, senhorita Rose.

           Outro paspalho rico e luxurioso pensou Sam.

           Enquanto Hemmer falava, dois enormes guardas de segurança vestidos de negro dobraram a esquina. Sam assentiu com a cabeça, consciente de que Ian estava atrás dela. Enquanto seguiam aos guardas, começou a pensar de novo racionalmente.

           Se deixou levar e perdeu o controle. Aquele beijo devia ser apenas um truque. A atração que sentia por Ian era perigosa.

           Tinha que encontrar uma maneira de assumir o comando.

 

Sam se aproximou do garçom mais próximo, pegou uma taça de champanhe e bebeu. Depois pegou outra.

Maclean esticou o braço por cima de seu ombro para pegar uma taça. Então a olhou e levantou a taça com entusiasmo.

           — Você não ganhou ainda.

           — Se você deixar que eu faça do meu jeito, você é que sairá ganhando, Sam.

Como eu já disse, todos os homens se acham os melhores.

           — E como já disse a você, eu sou o melhor.

           Ela bebeu sua segunda taça e a devolveu à bandeja.

           — Você vai roubar a página.

           Ian sorriu.

Cuidando para me deter?

Eu mal posso esperar — respondeu Sam, sorrindo de volta.

 

O que você vai fazer com isso? — perguntou Kit em voz baixa.

           Era tarde. A festa estava chegando ao fim. Sam passou várias horas observando Maclean, que, embora bebesse e olhasse algumas mulheres atraentes, estava quase sempre sozinho. Ele estava claramente solitário, mas isso não a surpreendia.

           Nick ordenou que o vigiasse de perto e, sabendo que Ian se propunha a roubar a página mais cedo ou mais tarde, Sam não pensava perdê-lo de vista. Acabava de segui-lo até o saguão do edifício.

           Sam pegou a bolsa, carregada com seus brinquedos preferidos, que Kit lhe entregava.

Obrigada.

            — Eu não gosto disto — disse Kit, olhando para Maclean.

           Ele tinha uma mulher em cada braço. Duas mulheres altas, jovens e chamativas. Estava claro que pensava em levá-las para sua casa para celebrar uma festa muito íntima.

           Sam não se importava com quem ele dormiria. A única coisa que importava para ela era impedi-lo de roubar o pergaminho. Ela pretendia grudar nele como cola. Ele não iria entrar naquele cofre sem ela.

           Sam e Kit continuavam ainda sob o toldo do edifício. Ele olhou para trás como se convidasse Sam. Ela sacudiu a cabeça e sorriu com frieza. Ian pareceu suspirar e se aproximou do meio fio para parar um táxi.

Está zangada? O que aconteceu esta noite?

                     — Nada. Ele é apenas um idiota, mas está a ponto de cair com toda a equipe. Amanhã nos vemos. Se eu chegar tarde será porque estou no Maclean, sem trocadilhos.    

— Acho que é perigoso, embora seu poder seja branco.

           Sam riu.

Sem brincadeira. O que você vai fazer?

           — Ainda ficaram alguns convidados, vou voltar a subir. Talvez Hemmer me note e mostre o cofre. Vou tentar puxar conversa com ele.

           — Ouça Kit... Para que se fixe em você, é necessário apenas que se esforce um pouco — nunca deixava de se assombrar como quanto modesta era Kit. Sam suspeitava que nunca dormiu com alguém, embora nunca falassem sobre isso. Kit voltou a entrar no lobby. Sam a saudou com uma inclinação de cabeça e olhou depois para Central Park West.

           Toneladas de táxis circulavam para a parte alta da cidade, mas todos iam cheios. Nenhum se dirigia à parte baixa. Era estranho, àquela hora. Deveriam estar quase todos vazios.

           Enquanto as duas garotas que foram com Maclean cochichavam e riam, bêbadas, Sam sentiu um calafrio, esticou-se e esquadrinhou imediatamente a área em busca de algum sinal de violência. Maclean também pareceu sentir, porque baixou o braço e olhou para além do tráfego.

           Sam viu então um casal do outro lado da rua, ao lado do parque. Corriam, seguidos por cinco figuras cobertas com mantos.

           As queimadas estavam em ascensão entre os crimes que se cometiam tanto na cidade quanto no mundo. Um estudo recente publicado pela Interpol mostrava que quase vinte por cento dos assassinatos cometidos no ano anterior foram por queimadas. Queimar vivos os inocentes se transformou em um dos passatempos preferidos das “gangs”. Os assassinos não eram inteiramente humanos: estavam possuídos pelo mal, e se conheciam popularmente como “subs”. A imprensa havia dado o nome de “caça às bruxas” aos crimes, porque os subs vestiam mantos e as queimadas pareciam coisa da Idade Média.

           Cinco jovens vestidos com mantos perseguindo um casal só podia significar uma coisa. Sam já corria pela rua, empunhando um estilete curto que escondeu no salto direito.

       Correr com saltos era uma droga, mas não ia parar por isso. Agarrou um dos meninos por trás, e ele gritou ao ser apanhado. Tentou apunhalá-la com sua faca e Sam lhe cortou o pescoço no instante em que dois de seus companheiros saltaram sobre ela.

           Sam soltou sua bolsa e lançou um golpe fatal na garganta de outro dos meninos. O menino caiu como uma pedra. Ao mesmo tempo, seu companheiro a apunhalou: a ponta de sua faca lhe roçou o braço e penetrou depois entre as costelas.

           Aquilo doeu. E ela não gostava de sentir dor. Furiosa, lançou um chute frontal e o menino saiu voando para o outro lado da rua. Sam se ajoelhou e tirou sua pistola de calibre 38 da bolsa. Ela vislumbrou Ian em pé na esquina. Ele estava observando tranquilamente ela dominar um bando de garotos demônios.

           Sua fúria transbordou. Não podia livrá-la de um dos demônios, ao menos?

           Sam sentiu alguém em suas costas, virou-se e disparou no momento em que a garota se jogava sobre ela. Tinha o rosto peludo. Garras de lobo cravaram em seu corpo. Sam disparou uma e outra vez. Demorou um pouco para matar a garota metamorfoseada. A mulher lobo caiu por fim a seus pés, morta.

Agh!

           Sam virou, mas antes que pudesse disparar contra o quarto adolescente possesso, ele arrancou a pistola da mão com um chute. A ira e o mal o faziam terrivelmente poderoso. Desequilibrada, Sam caiu de costas no momento em que o subs colocava as mãos em sua garganta. Ele começou a sufocá-la com intenção de estrangulá-la até a morte.

           Aquele seria um grande momento para a intervenção de Maclean, pensou Sam. Mas ele não fez isso. Sam descarregou um golpe com os nódulos na artéria carótida do menino; quando o menino engasgou, ela tirou a adaga que levava na liga em sua coxa e a afundou no peito dele. O subs desabou no ato sobre ela. Sam separou-se dele com um empurrão e se ajoelhou ao seu lado para ver se ainda estava vivo.

           Ele estava. Sam tirou seu celular de sua bolsa pequena e discou o número de emergências do CAD. Seu centro médico era tão clandestino como o resto da agência. Conhecido como Five, estava sempre de guarda. Levar um subs a uma emergência normal não era boa ideia. Os nãos comuns (e muitos no CAD o eram) também não podiam ser tratados em um hospital público. A imprensa começaria a especular. Os demônios puros-sangues se desintegravam poucos segundos depois de morrer, se os deixava intactos, raramente tinha que se preocupar com eles.

           Depois de ligar, Sam fechou seu telefone e olhou os corpos espalhados pela rua. Quatro crianças mortas, todas elas antes normais. Aquilo já era rotina. Os meninos possessos quase sempre fugiam de suas casas, e eram presas fáceis do mal.

           Sam olhou o menino que continuava vivo.

       — Tente não morrer. Com um pouco de ajuda dos deuses, talvez possamos devolvê-lo à sua família — falava sem emoção. Sabia desde fazia muito tempo que não convinha a ela sentir compaixão. Se começasse a se preocupar com quem vivia e quem morria, seria ela quem acabaria morta, e sem demorar muito.

           Ele lançou cuspe ensanguentado.

           — Ele está bem? —era a mulher que estava fugindo dos subs.

           O homem que estava com ela se ajoelhou junto a Sam.

           — Meu Deus, você é da polícia? Nunca havia visto nada igual! Você salvou nossas vidas!

           Sam sorriu com amargura. Olhou para Maclean, além do casal.

           Ele estava em pé na esquina, com as mãos metidas nos bolsos do smoking, e a olhava pensativo. Seus olhares se encontraram. Não tinha movido nem um dedo para ajudá-la. A ira de Sam se inflamou de novo.

           — Devemos chamar a emergência? — perguntou a mulher, preocupada.

       — Estou bem — respondeu Sam.

Quando começou a levantar, o marido a agarrou pelo braço para sustentá-la.

           — Você está ferida — ele disse, preocupado.

           Sam olhou seu braço ensanguentado e os rasgos no bojo de seu vestido vermelho. Tinha uma ferida no bíceps e outra nas costelas. Ardiam, mas estava quase certa de que eram superficiais.

           — Por que não vão pra casa? Tomem um conhaque por minha saúde. Sou policial federal — o FBI era seu disfarce. — Eu me ocupo disto.

           — Mas não podemos deixá-la aqui — disse o homem com firmeza.

           Sua mulher concordou energicamente, e começou a chorar.

           — Ela é tão corajosa — disse para seu marido. — Eu estava tão assustada...

           Ele a rodeou com o braço e se virou, sussurrando algo. Tinham quarenta e poucos anos, calculou Sam, e passou por sua cabeça que pareciam se amar de verdade. Que lindo! Voltou a olhar Maclean. Maldito idiota egoísta.

           As sirenes da ambulância sem identificação do CAD já podiam ser ouvidas. Maclean aproximou-se dela sem pressa. Sam olhou para a casa de Hemmer e viu que as duas garotas haviam desaparecido. Naturalmente. Aquelas bonequinhas estavam acostumadas a serem umas covardes.

           — Impressionante — disse ele, olhando seu vestido em farrapos.

           — Puxa! Como me alegro que tenha gostado do show — deu-lhe as costas e se ajoelhou para recolher suas armas e guardá-las em sua bolsa. Estava machucada, coberta de sangue, suja e ferida, e ele não tinha um só cabelo fora de seu lugar, limitando-se a olhar enquanto ela lutava. Que tipo de herói com superpoderes era aquele? Era inacreditável. Até um vilão teria intervindo.

           Levantou-se.

           — Obrigada por sua ajuda.

           Ele encolheu de ombros.

           — Você é uma garota resistente. Não precisava de minha ajuda.

           — Como se você tivesse se incomodado, de qualquer forma.

           — Quero você na cama, mas não morta.

           — Você sabe apaixonar uma garota — bufou ela.

           Maclean sorriu.

           — Qualquer homem gosta de ver uma boa briga. Pode ser que na próxima vez a ajude. Ou pode ser que eu seja seu próximo alvo — seus olhos brilharam.

       Sam teve a sensação imediata de que ele adoraria que ela lutasse com ele com todas as forças.

           — Não se preocupe, esse dia está chegando rapidamente.

           Sua resposta foi tocá-la.

       Sam ficou tensa quando o dorso de sua mão roçou a parte de abaixo de seu peito. Maclean levantou os pedaços do vestido vermelho. Ela conteve a respiração. Apesar da dor, um intenso desejo tomou conta dela. Sabia que ele deixou a mão sobre seu peito de propósito.

           Seu olhar era quase prateado quando baixou as pestanas e deixou cair os farrapos de seda.

           — Terá que cuidar desses cortes.

           — Isto não é a Idade Média. Ninguém morre por uns arranhões — replicou ela, mas estava tremendo e rígida pela tensão. Maldita tensão sexual.

           Ele esboçou um sorriso sarcástico.

           — Sei muito bem, Samantha. Eu vivo aqui, lembra? Não naqueles tempos bárbaros.

       Ela se irritou.

       — Meu nome é Sam. E não se preocupe, ninguém o tomará como um bárbaro medieval, Maclean. Só por um idiota egoísta. — Ele estava na defensiva? Ela pensou. Tinha a impressão que sim e não entendia por que.

           A ambulância branca do Five dobrou a esquina no cruzamento. Usava distintivos do hospital presbiteriano de Cornell. Sam deixou de pensar em Maclean e viu saltar da ambulância os paramédicos. Depois voltou a olhar para Maclean.

           Ele pareceu notar que suas conquistas dessa noite escaparam.

           — Você não precisa delas — disse Sam. Saiu para o meio-fio, consciente de que perdeu um dos sapatos. Amaldiçoando, parou um táxi. Segurou a maçaneta da porta e, enquanto a abria, olhou para Ian. — Entra Maclean.

           Ele arregalou os olhos.

           Sam manteve sua mente em branco.

           — Quero ver sua casa.

           Um lento e sedutor sorriso se desenhou nos lábios de Maclean. Ele deslizou para dentro do táxi e Sam subiu atrás dele. Ela fechou a porta. Quando ele se inclinou para dar a direção ao motorista, ela colocou a mão em sua bolsa.

           — 1101 da Park Avenue — disse Maclean.

           Sam fechou as algemas sobre um de seus pulsos. Ele se sobressaltou e cravou o olhar nela enquanto Sam fechava o outro lado das algemas sobre seu próprio pulso. Ela sorriu.

           — Isto vai ser divertido.

           Acabava de se algemar a ele.

           Maclean começou a rir, divertido. Ela pretendia desanimá-lo? Ele a desejava desde a primeira vez que a viu. Jamais esqueceria seu rosto. Aquelas características marcantes, aqueles olhos surpreendentes e aquele cabelo curto e loiro platinado. Esperava com expectativa o dia em que ela esfregaria seu rosto contra cada palmo de seu corpo...

           Levantou o pulso e disse:

           — Só tinha que me dizer isso Sam. Eu mesmo teria trazido às algemas.

           — Vamos ficar juntos esta noite — respondeu ela tranquilamente.

           Mas ele não a ouviu. Ao puxar suavemente as algemas, seu estômago se agitou e ele se sentiu enjoado. Circulavam a toda velocidade por Central Park West, e os majestosos edifícios começaram a rabiscar-se diante seus olhos, transformaram-se em sombras ameaçadoras...

           Ele não podia ter um flashback agora...

           Mas ele reconhecia aquelas sombras: as paredes estreitas e cansativas de um porão. O ferro em seu pulso estava fixado a uma parede. Ficou meses ali. Sua única companhia eram os ratos. Tinha nove anos.

           — O que está acontecendo, Maclean? — O está ocorrendo, Ian? Está com medo da escuridão? Dos ratos? De mim?

           Olhava para o demônio que o capturou. O demônio que o matou e depois o devolveu à vida para poder torturá-lo. E usá-lo.

           Ouviu uma risada suave e maligna.

           E embora não houvesse usado sua voz por vários meses, desde que gritou e gritou pedindo ajuda, suplicou: — Me deixe sair, por favor. Por favor. Farei o que desejar.

     — Bom, porque me ocorrem muitas coisas para fazer com um menino tão bonito quanto você — disse seu avô.

           — Maclean?

           Viveu horrorizado e torturado, preso em um medo infame, durante sessenta e seis anos. Mas ouviu Sam Rose e de algum modo conseguiu olhar para ela.

           Estava suando.

           — O que está acontecendo com você? — seus olhos azuis se moviam sobre ele. — Está tão excitado que ficou mudo?

           Seu tom zombador o fez voltar para o presente. Olhou-a e sacudiu o pulso de modo que as algemas se retorceram entre eles.

           — Claro que estou excitado. Estamos algemados.

           Ela ficou olhando para ele por um momento. Maclean estava quase certo de que ela não acreditava naquela desculpa. Mas não importava no que ela acreditasse. Sabia que o considerava egoísta e manipulador, e tinha razão. Só tinha interesse por uma coisa dela.

           O prazer era uma fuga. Nunca revivia o passado enquanto praticava o ato sexual.

           A primeira vez que viu Sam Rose, ela estava cruzando uma rua em Oban, Escócia, e os homens que passavam por ali tropeçavam em si mesmos ao olhá-la. O tráfego parou. Ele ficou com água na boca e seu pênis ficou duro como uma rocha. Soube em seguida que a faria dele. Nenhuma mulher resistia. Foi sincero ao dizer que sempre conseguia o que queria.

           Sentiu imediatamente seu poder de guerreira e a desejou ainda mais por isso. Quase todas as mulheres das que se servia eram ricas e entediantes: o mais emocionante que faziam era passear por Cartier. Agora sabia ainda mais dela. Era uma poderosa Matadora. Para ela, o dia chegava a seu apogeu quando lutava pela vida ou morte com o mal. Jamais esqueceria como a viu lutar com os adolescentes possessos, com seu vestido vermelho curto e seus saltos de agulha. Nunca viu uma mulher lutar assim. Sam teria derrubado sem esforço algum os cincos meninos possessos. E não teve medo. Maclean sentiria isso. O mal não a assustava.

           Assustava todo mundo.

           Ele se assustava.

           As lembranças voltaram.

Escondia-se debaixo de um montão de toalhas, tentando ficar tão pequeno quanto podia. Seu avô havia retornado e tinha convidados... e estava chamando por ele. O medo o deixava doente. Ele perdeu o controle de sua bexiga. Estava vomitando. Sabia o que iriam fazer com ele. Eles estavam entediados e ele seria seu entretenimento, até que saíssem para caçar Inocentes. Não havia onde se esconder, e eles não o permitiriam morrer. Ele ouviu Moray dizer aos seus captores que deviam mantê-lo vivo, a todo custo.

           Rezava por seu pai, suplicava que ele o ouvisse, que fosse resgatá-lo.

           A porta do banheiro abriu e as luzes se acenderam.

           Maclean estava suando e se sentia enjoado. Tinha o estômago tão tenso que parecia a ponto de explodir, lembrou-se que já não era um menino num cativeiro e que Sam Rose não era má. Ele já não estava encarcerado, nem indefeso. Não havia monstros esperando para devorá-lo; os convidados de seu pai não o esperavam para rasgar seu corpo. Aquilo era um jogo. E Sam Rose ia acabar em sua cama, debaixo dele, e seria ele quem iria cavalgá-la. Já não era prisioneiro. Era um homem livre. Rico, poderoso e dono de sua vida.

           Ela puxou com força as algemas.

       — Se saltar para esse cofre, terá que me levar com você.

           Maclean não sabia se as algemas a arrastariam com ele, se saltasse. Não precisava desse poder para entrar no cofre de Hemmer. Podia abrir as fechaduras e desativar os alarmes com a mente, mas isso Sam já sabia. Se ele tinha que saltar para entrar, não acreditava que tivesse coragem para fazer isso. A dor ainda o aterrorizava.

           Ian se virou para olhar pela janela do táxi, negava-se a voltar ao passado.

           — O que acha que é isso? Acontece que eu sei que uma pessoa que tem o poder de saltar pode levar outra com ela. Algumas algemas podem fazer o truque.

           Ele conseguiu sorrir.

           — Sério? E com quem você vai saltar?

           Os olhos de Sam se arregalaram, fixos nele. Seu olhar era muito escrutinador, muito direto. Ian não era bom em ler pensamentos. Aquele poder ia e vinha. Às vezes era impreciso, como se houvesse interferências nas ondas telepáticas. Às vezes era perfeito. Mas em todo caso não precisava disso para saber que Sam estava decidida a impedi-lo de roubar o manuscrito.

           — Nick me levou ao passado com ele, fomos procurar Brie quando seu pai a sequestrou — disse ela por fim.

           Ian olhava o Central Park pela janela. Então Sam viajou ao passado e sabia, portanto, como era doloroso saltar através do tempo.

           — Está fazendo planos de saltar para entrar no cofre, não é?

           Ian desejou dizer que ela calasse a boca.

           Mas se virou para olhá-la.

           — Para que eu vou saltar se posso entrar normalmente?

           Ela sorriu.

           — Você tem razão.

           Jamais deixaria que ela soubesse que temia a dor e o mal que o causava. Sabia o que significava o mal no momento em que seu maléfico avô o sequestrou quando tinha nove anos e o levou da Escócia medieval ao mundo moderno. O mal gostava do medo e da dor, e infligia ambos ao seu desejo. O mal ansiava por sexo, poder e morte. Ele foi prisioneiro por sessenta e seis anos. E o mal não teve piedade dele.

           No princípio pensou em escapar. No início pensou que o resgatariam. Meses depois, passado um ano possivelmente, perdeu a esperança e desejou morrer.

           — Tem um pingo de coragem, Ian? Ah, esqueci que seu pai também é um covarde.

           Maclean recordou como lutou para se libertar, sem êxito. Lágrimas de raiva e de impotência escorreram por seu rosto.

           — Meu pai é um herói. É bom e não mau como você.

           — Agora é mau, tão mau como eu. Sim, seu pai caiu na escuridão, Ian — seu avô começou a rir. — Você é o meio pelo qual destruirei seu pai. Lembra disso não é? Só por isso me incomodo em mantê-lo com vida.

           Soltou-o.

           — Meu pai o matará! — gritou ele.

           — Não, eu vou destruí-lo. E então você ficará livre e autorizado a crescer. E viverá com essa culpa, com a dor de todas estas lembranças... até que os Deuses consintam sua morte.

           Ele se encolheu ao sentir-se acariciado...

            Ian não sabia como alguém sobreviveria, e, sobretudo um menino, ao que lhe fizeram: aos estupros, à tortura, ao sadismo.

           Virou-se para olhar pela janela, longe de Sam, que tentava adivinhar seus pensamentos. Ele havia se sentido impotente quando estava cativo, mas agora era dono de si mesmo. Era rico. Fazia o que queria, quando queria, e nada nem ninguém podia detê-lo. Qualquer um que tentasse colocar-se em seu caminho pagaria por isso.

           O controle era tudo para ele. Era questão de vida ou morte: uma questão de sobrevivência. Inclusive de sanidade.

           Passou grande parte de sua vida submisso. Agora, faria o que quisesse.

           Ele passou grande parte de sua vida com dor. Pretendia passar o resto de seus dias com prazer.

           Olhou para a mulher sentada ao seu lado, no táxi. Sam Rose era justamente o contrário dele: não conhecia o medo. Se soubesse seus segredos, talvez não o desejasse tanto. Mas nunca saberia a verdade. Ninguém saberia.

           — Por que está tão carrancudo? Fale sobre essa mudança de humor.

           — Leia minha mente — ele conseguiu esboçar um sorriso que parecia desagradável. Sabia, entretanto, o que precisava para tirar aquele sabor amargo da boca e da alma.

           — Você não me ensinou.

           — Então venha aqui — ele bateu no seu colo.

           — Nada feito — Sam sorriu friamente pra ele.

           Ele colocou sua mão sobre a coxa dura dela, com as pontas dos dedos apoiadas sobre seu sexo. Começou a movê-la suavemente, apertando seu abdômen com a argola metálica das algemas.

           — Alguma vez já ocorreu a você me pedir amavelmente que a leve ao cofre? — Ela afastou sua mão, mas Ian já sentiu a forte palpitação de seu sexo sob o fino vestido.

       — Vejo que está se divertindo com as algemas, mas veremos quem ri por último — disse Sam.

       — Você pode rir por último — murmurou ele, olhando seu perfil clássico. — Eu, inclusive, estou disposto a ceder essa honra.

         — Isto é um acordo comercial, mas estou disposta a ajudá-lo a tomar um banho de água fria — replicou ela.

           Ele esqueceu finalmente o que o preocupava.

           — Estou desejando isso — disse imediatamente. — Você esfregará minhas costas? Ou vai me algemar na cama e olhar enquanto durmo?

           Seus olhos se encontraram um momento e ele se convenceu de que Sam imaginava perfeitamente o que ele faria enquanto ela o olhava.

           — É um obcecado. Que surpresa. Mas ficarei do outro lado do vidro enquanto você toma banho e sabe o quê? Não me interessa vê-lo fazer qualquer coisa.

           — Mentirosa — respondeu ele.

           Ele achou que ela corou.

       — Estamos algemados — acrescentou Ian suavemente. — O que quer que eu pense?

           — Pague ao taxista — disse Sam secamente quando o táxi parou diante da nova casa de Ian. — A propósito, por que se decidiu por Nova Iorque?

           Ian entregou uma nota ao motorista e disse que ele ficasse com o troco. Sam estava sentada do lado da calçada e ele se inclinou sobre ela para abrir a porta, apertando-a contra o assento.

           — Eu mudei para cá para poder foder com você.

           — Sim, certo. Boa sorte — ela respondeu enquanto saía do carro e para longe do seu corpo — Porque, se por acaso não notou isso, Maclean, você não me impressiona nem um pouco.

           — Isso terá que mudar, então.

           O táxi se afastou e ela respondeu lentamente:

           — Não posso imaginar você com uma dessas vagabundas por mais de dois minutos. Exceto pelo sexo, claro.

       Ela parecia entendê-lo e ele sorriu.

     — Até as vadias têm sua utilidade.

     Sam sacudiu a cabeça.

     — Você não usa seus meninos de brinquedo? — perguntou Ian com suavidade, de repente passou-lhe pela cabeça que, em questão de sexo, eles eram iguais.

           Já tarde era o suficiente para que não houvesse ninguém na rua quando ele se aproximou da porta do edifício centenário e digitou o código que abria a porta. Sam ia atrás dele, muito perto, devido as algemas. Ian deixou acesas as luzes do saguão, que tinha teto duplo. Ao fechar a porta deu uma olhada no braço manchado de sangue de Sam e no seu vestido rasgado. Ela parecia não sentir o corte em suas costelas.

           Ian se perguntou se ela teria gritado de dor na única vez que saltou no tempo.

           Sam observava as câmeras quase microscópicas que focavam a porta de entrada e as que ficavam no hall. Ela não perdeu também as que estavam fora. Ian esperou. Ela olhou para ele e disse:

           — Tecnologia de ponta, hein?

           Seu sistema de segurança era de última geração. Mas não era dirigido a assaltantes. Ian, entretanto, não lhe devia nenhuma explicação. Sam estava olhando seus móveis, que eram quase todos antigos. Deixou sua bolsa sobre uma mesa irlandesa do século XVII. Até o lustre que havia sobre eles era francês, do século XV. Só os tapetes eram novos... ou quase. Sobre a porta principal havia um par de autênticas espadas do século XVI.

           — Uma decoração interessante para um playboy moderno — comentou Sam. Seu olhar era afiado. — Embora, pensando bem, sua mansão em Loch Awe é igualmente antiga.

           — Eu gosto das coisas antigas — disse Ian. Era verdade. Ele odiava sua época, o século XVI, e decidiu não viver nela, mas sentia a estranha compulsão de colecionar antiguidades e peças arqueológicas, o que não fazia sentido. Seu pai disse uma vez que uma parte de seu ser tinha saudades do passado. Mas isso eram tolices. E agora não queria pensar em Aidan e em sua esposa, Brie. — Está manchando de sangue meu tapete de vinte e cinco mil dólares.

           — Sinto muito. Comprarei um novo para você... no século XXII, quando for rica e famosa.

     Ian puxou o pulso e ela se aproximou, tropeçando com suas sandálias quebradas. Ele a agarrou pelos quadris, que notou serem duros e musculosos sob suas mãos. Ele já estava excitado. O sexo dissiparia suas últimas lembranças. Para que esperar?

           — Você quer curar essa ferida? — perguntou ele suavemente.

            — Não, se para isso tiver que perder você de vista — agarrou-o pelos pulsos, mas não recuou. — O que está acontecendo? Não há um mordomo para nos servir?

           — A estas horas, Gerard está dormindo, — ele a atraiu para si e ela o olhou com calma ao entrar em contato com sua enorme ereção — com medo ficar sozinha com isto?

           Ela tomou fôlego.

           — Eu nunca tenho medo de nada. Ei, tenho uma ótima ideia. Chame o Gerard e diga-lhe que traga um entretenimento para esta noite, antes que você exploda.

           Ian sorriu.

           — Você quer assistir?

           — Eu não vou embora — respondeu ela com petulância.

           Ian pensou em voltar a atuar para ela. Mas não era isso o que seu corpo pedia aos gritos. Ele a apertou com mais força, empurrando-a contra uma mesa.

           — Nem pense nisso — murmurou Sam.

           — Não penso em outra coisa. Especialmente com seu corpo algemado ao meu e estremecendo de desejo.

       — Você não pensa em outra coisa, se estamos algemados ou não.

     Ian decidiu não responder. Deslizou a mão por seu quadril. Sam ficou muito quieta e conteve o fôlego.

Se prosseguir, assuma as consequências. Ele sorriu. Era difícil conter-se. Queria colocar a mão entre suas coxas, dar-lhe a volta, incliná-la sobre a mesa e apenas fazer, por fim. Ela sabia. E não colocaria muitas objeções. Falava com aspereza, sarcasticamente, mas sua voz soava densa, e seus olhos, de um azul violeta, pareciam arder em fogo lento. Ian sentia o seu pulso batendo sob a pele. Sentia seu desejo crescendo. Percebia sua urgência e sua necessidade.

           Eram quase tão grandes como a sua.

           — Porque é tão forte, tão corajosa? — tocou os farrapos do vestido, roçou com a mão seu peito esquerdo e a sentiu estremecer.

           — Sou uma Matadora, Maclean.

           — Alguma vez teve medo?

           Sam o olhou nos olhos.

           — Medo por mim, não.

           Por um instante, Ian esqueceu o quanto a desejava. Possivelmente pela primeira vez, uma onda de admiração o embargou por completo.

           — Então, por quem tem medo?

           Sam umedeceu os lábios.

           — Por minha irmã, Brie, Allie...

           Ian sentia sobre o dorso da mão o peso de seu seio. Empurrou para cima. Ela deixou escapar um gemido.

           — Dói em você? — sussurrou ele, deslizando a mão para posá-la sobre seu peito.

           — O que você é? Uma Florence Nightingale[2] em versão masculina, com excesso de testosterona? Ian pegou o bojo do vestido e o puxou abaixo de seus seios.

           Sam conteve a respiração.

           E ele ficou de boca seca. Olhou-a nos olhos muito devagar.

           — Podemos curar essas feridas, se você realmente desejar, ou você pode dar a volta e deixar que a tome em cima da mesa, por trás, como eu gosto.

           Apertou-a com mais força nos pulsos.

           Ian se moveu e apertou seu membro ereto contra sua coxa.

           — Vire-se, Sam.

           Ela olhou o que havia entre eles.

           — Por mais bonito que seja, não, obrigada.

           Continuava resistindo a ele. Ian afastou relutantemente o olhar de seus seios nus e seus mamilos endurecidos e olhou a ferida aberta a faca. Sam não era imortal. Tinha que curar aquela ferida. Ian levantou o olhar.

           — Está certa disso? Porque posso fazer você gozar muito mais do que jamais gozou, Sam.

           — Prefiro dar prazer a mim mesma.

           — Nossa! — ele disse, mas sorriu, ia desfrutar da caçada. Sustentaram o olhar, o dela era quente e feroz. Ian sentia formigar o desejo em suas mãos, mas por fim conseguiu soltar o vestido. Sabia que pagaria por isso, mas de todos os modos tocou em seus seios nus.

           Ela cravou no pé dele o salto agulha do sapato que restava. Ian a soltou amaldiçoando.

           — Tire as suas mãos — ela alertou e subiu o vestido.

           — Possivelmente deveria ter pensado melhor, antes de se algemar a mim.

           — Se você não pudesse saltar no tempo, o teria algemado à parede — replicou ela. — Não, à cama. Mas sozinho. Estou certa de que isso sim é uma tortura para você.

           Ian ficou tenso, mas disfarçou. Voltou a ver imagens em flash.

       Estava escondido sob a cama. E depois estava em cima, acorrentado...

     Ele forçou um sorriso.

           — Sabe que teremos que dormir juntos? Tomar banho juntos? Usar o banheiro juntos? — seu tom era instável.

           Ela notou.

           — Eu posso lidar com isso Maclean. Então vamos lá. É quase uma e meia. Tenho que me limpar um pouco. Depois o colocarei na cama.

         Ele ficou olhando para ela. Sua necessidade era cada vez mais intensa. Tinha que escapar do passado.

           — Eu não sou um cavalheiro.

           — Não me diga. Mas também não é nenhum estuprador.

           Ian se afastou bruscamente dela.

           — Você não sabe nada sobre mim.

           Sam o olhou fixamente. Agora tinha sua bolsa na mão.

           — Isso é um aviso? Porque estou certa de que sua arma letal é a sedução. Vamos — acrescentou energicamente. — É tarde e eu preciso dormir um par de horas. Afinal de contas, eu sou mortal. E só para lembrar: se saltar para o cofre, irei com você. Tenho o sono muito leve.

           As imagens de seu passado haviam desaparecido. Ele começou a andar pelo corredor, para o elevador.

       — Realmente se propõe dormir ao meu lado como uma irmã?

           — Na verdade meu plano é dormir no chão.

           — Como vou permitir que durma no frio e duro chão quando podemos compartilhar uma cama grande e quente? — Ian bateu suas pestanas e, passando ao lado em frente ao elevador, dirigiu-se à escada que havia no fundo do corredor. Usava frequentemente o elevador, mas agora não gostaria. Ele tinha medo do que podia acontecer em um espaço tão reduzido, depois de sofrer tantos flashbacks. Ao chegar ao pé da escada parou, tenso e subitamente perturbado, mas não por seu passado.

           Sentia o mal. Estava perto: dentro de sua casa. Não tinha verificado os alertas de segurança ao entrar.

           Olhou para Sam. Ela também sentiu e estava quieta e alerta. Não demonstrava medo, só a tensão de guerreira. Ian experimentou de novo, fugazmente, aquela estranha admiração por ela.

           Sam o agarrou pelo ombro.

           — Você tem companhia, e não do tipo de boas-vindas.

           O estômago de Ian girou de medo, um reflexo que não podia controlar. Mas não importava. Começou a subir a escada quase correndo.

           — Maclean?

           Ele lutou contra o medo, a respiração difícil. Já não tinha nove anos. Ansiava o encontro iminente com o mal. E então só havia raiva, uma raiva tão intensa que não ouviu Sam.

           Ele estava esperando aquele predador, mas esteve tão concentrado em Sam Rose que baixou a guarda. Agora estava preparado.

           — Fique aqui — lhe disse em voz baixa. Era uma ordem. E, enquanto falava, usou seus poderes para abrir as algemas, que imediatamente se desprenderam de seu pulso.

           — Eu desconfiava que você pudesse fazer isso — comentou Sam.

           A fúria começava a apoderar-se de Ian. Era um homem quase imortal, dotado de poderes que só deviam ter quem seguia os deuses. Odiava os demônios, a todos e cada um deles, assim como odiava os mestiços e todo tipo de maldade. Começou a andar com decisão. Sam o seguiu, com o mortífero disco de dentes de aço na mão.

           — Deixe-me com ele — alertou a ela.

           — Uau, que grande mudança.

           No próximo patamar apareceu frente a eles a biblioteca. O demônio, sentado em um sofá de brocado, levantou-se de um salto. Seu belo rosto refletia surpresa. Depois, lentamente, sorriu.

           — Isto deve ser um engano. Estou esperando um aluno meu. Ele disse que precisava me ver. Você é o pai do Liam? — perguntou suavemente.

           — Não há nenhum engano — respondeu Ian com voz calma. —Você fez bem em me esperar.

           O demônio o olhou fixamente.

           — Pode-se saber o que significa isto? — perguntou com olhar ardente. — É algum tipo de jogo?

           — Sim, é um jogo — murmurou Ian, tremendo de raiva reprimida. As lembranças o embargavam. Havia tanta dor e tanto medo... — Não há nenhum Liam, John. Há apenas eu.

       — Você tem poder. O que é? Um vigilante? De acordo, jogarei. — O demônio riu dele.

           Sam deixou escapar um som.

           Ian esqueceu de sua presença. Sentiu que sua boca se curvava ao avançar para o demônio.

     — Venha para que eu te dê seu castigo, John — murmurou. Já não sentia nada, nem sequer raiva, só determinação. O sorriso do demônio vacilou quando Ian parou diante dele.

     — Você compartilha nossos desejos, não é verdade? De alguma forma você está contaminado. Eu posso sentir isso.

     — Compartilhemos isto — respondeu Ian com suavidade. Levava uma adaga presa ao pulso, sob a manga. Empurrou-a profundamente no coração de John.

           Mas John viu o gesto e enquanto a adaga penetrava em seu peito, sua energia vermelha e negra cintilou. Ian sabia que ele lançaria uma descarga e resistiu a ela, tirando a adaga e voltando a apunhalá-lo. Ouviu Sam gritar quando o poder negro a lançou no corredor, mas não podia preocupar-se com ela nesse momento.

           Aquela era a sua vingança.

           Vivo e furioso, John lançou nele outra descarga.

           E isso doeu. A dor se apoderou dele e o enfureceu ainda mais, e agarrando o demônio, jogou-o no chão. Agarrou a adaga, livrou-a da carne e do osso e voltou a afundá-la no coração. Os olhos vermelhos do demônio brilharam e rolaram para trás, inertes, sem vida.

           Ian sabia que ele estava morto, mas não se importou. Continuou apunhalando-o novamente e novamente. Não voltaria a se esconder sob a cama, nem no armário, não voltaria a sentir dor, medo, nem vergonha. John merecia morrer por tudo o que fez, por todos aqueles dias, semanas, meses e anos de choques, torturas, de rasgões e humilhações. Ian lembrava agora de cada um de seus atos atrozes. Lembrava o medo e a dor, apenas reprimidos e enterrados no mais profundo de seu ser. Porque o medo e a dor o tinham forjado. Lembrava, também, a perda de sua humanidade e de sua sanidade, que ele jamais teria novamente. O suor e as lágrimas o cegavam quando levantou de novo a adaga.

           — Ele está morto.

           Ele a ouviu, mas não pôde parar, mesmo sabendo que o demônio havia morrido: seus olhos já não viam e seu corpo ensanguentado permanecia imóvel. Afundou a adaga até o punho no peito do John.

           — Ian, ele está morto — ela o agarrou pelos ombros por trás, mas não tentou afastá-lo.

           Ian ficou vagamente consciente de que o segurava com força. Soltou a faca. Cheia de sangue, ela ficou cravada no peito de John.

           — Ian? — ela perguntou com cautela.

           Ele ofegava incontrolavelmente, inclinado sobre o cadáver, limpando a umidade do rosto, e compreendeu tarde demais que eram lágrimas, e não suor, e que tinha as mãos cobertas de sangue. Ele se lembrou de tudo.

           A dor ameaçava matá-lo.

           Virou-se e vomitou violentamente.

           Não sabia quanto tempo permaneceu ali, sob suas mãos e joelhos, enquanto as lágrimas corriam por seu rosto. Mas quando se sentou, o demônio rapidamente se desintegrava, deixando unicamente uma fulgurante esteira do que pareciam ser brasas. Um terrível silêncio enchia a biblioteca.

           Começou a compreender. Sam Rose acabou de testemunhar sua loucura. Respirou fundo, tentando recuperar-se. Aturdido, ficou em pé. E viu com surpresa e alívio que ela foi embora.

           Cambaleou e teve que apoiar-se em uma estante. Seu alívio desapareceu. Sam viu o que ninguém devia ver, exceto Gerard. E talvez ela fosse inteligente o suficiente para deduzir a verdade...

           Lavou as mãos na pia do bar, limpou as últimas gotas de umidade da face e secou as mãos. Enquanto se servia um grande copo de uísque, ouviu que ela voltava para a sala. Tenso, ele esperava que ela tivesse ido para casa, ele olhou para cima.

           Ela estava na porta, com seu vestido vermelho ensanguentado e uma expressão sombria. Seus grandes olhos azuis estavam sobre ele. Ian não viu pena, nem compaixão em seu rosto, e se sentiu agradecido por isso. Ele a mataria, se ela se atrevesse a ter pena dele. Ele estava tão cansado... Odiava aquela vida maldita e miserável.

           — Vá embora.

           Ela continuou olhando para ele.

           Ian sorriu devagar, esperando que ela ficasse para poder descarregar sua ira nela. Faria com ela o que fizeram a ele, e se divertiria.

     — Você realmente deveria ter cuidado. Estou de péssimo humor.

           Sam não se moveu.

           — Não me diga.

           Ela não tinha medo. Falava com sarcasmo. Ian experimentou um momento de surpresa. Ela olhou o cadáver quase desintegrado.

   — Lembre-me de não irritá-lo muito.

       Ian já estava mais calmo. Não muito, mas um pouco mais.

       Ele não queria machucá-la, nem torturá-la: desejava tê-la em sua cama e saciar todos seus desejos. Mas não confiava em si mesmo. Quando se sentia assim, procurava manter-se afastado das mulheres, dos humanos, dos inocentes.

           — Vá embora antes que eu faça o que desejo fazer.

           — Se acha que esse acesso de raiva me assustou, engana-se — ela já não zombava. Parecia pensativa. — Poderia dar lições de vingança. — Ela aproximou-se lentamente.

           Ian pulou em sua mente. Sam queria compreendê-lo. Queria saber por que ele agiu assim, por que atacou aquele demônio. Queria saber se estava bem.

           E ele estava. Podia estar louco, mas tinha suas contas bancárias, seus carros e suas casas para demonstrar que estava bem. Aquela era sua vida! E não era assunto de Sam, nem de ninguém mais. Seus segredos eram deles. E sua vida era isso: um segredo sujo e escuro.

           A sua raiva retornou. Ian cruzou a sala e agarrou Sam pelo pulso com força. Qualquer mulher teria protestado. Ela, não. Olhou para ele fixamente.

           — Nem pense em me fazer mal. Eu mato você — ela alertou.

           — Experimente — Ian gostava da luta.

           Ela percebeu e recuou.

           — Seja o que for que esse demônio fez a você, eu não tenho nada que ver com isso.

       A raiva cegou Ian.

     — Ele não fez nada comigo!

     — Sim e foi por isso que você fez picadinho dele quando já estava morto.

           Ian a apertou contra seu corpo duro e explosivo.

           — E como você vai me impedir que eu te faça mal? — apesar de Sam dominar as artes marciais e ser poderosa, ele era mais forte. Ela não tinha nem a metade do seu poder. Para ter certeza de que ela havia entendido, ele a girou e a empurrou contra uma estante. Depois se inclinou sobre ela, em posição agressiva, dominante, ameaçadora.

           — Pode me parar agora? — perguntou, esfregando-se contra suas nádegas.

           Sam ficou muito quieta. Ian mergulhou profundamente em sua mente e não encontrou nem um indício de medo. Apesar de sua raiva, ele estava surpreso. Sam pensava calmamente no pior dos cenários: em que ele a estuprava e ela tendo que matá-lo, de uma forma ou de outra. Nesse momento, Ian sabia que ele teria sucesso ou morreria tentando.

           E ele não a queria morta.

           Sua raiva diminuiu em parte. Ele tinha seu corpo pressionado por completo contra o dela, do joelho ao ombro, e a boca contra a sua orelha e as mechas de seu cabelo. Enquanto estavam assim, separados unicamente por duas camadas de tecidos entre eles, sua raiva se intensificou de novo, convertendo-se desta vez em uma aguda consciência do corpo de Sam.

           — Sam... — murmurou com aspereza, esticando os braços ao redor de sua cintura. Enquanto o desejo e a luxúria se apoderavam dele, sentiu que ela começava a estremecer e a respirar com dificuldade.

           Fechou os olhos, envergonhado. Envergonhado por tê-la ameaçado, como o ameaçaram seus torturadores, e porque ela tivesse presenciado aquele acesso de loucura. Era difícil respirar. Sentia tanta pressão... E um instante depois podia haver tanto prazer, tanto alívio...

           — Sam...

           As costelas de Sam se moviam rapidamente sob suas mãos. Levantou os braços e sentiu o peso de seus seios.

           — Não se mova — ele disse, baixando as mãos. Liberou seu membro e o introduziu entre suas pernas.

           Ela ofegou ao sentir seu contato e o agarrou pelas mãos.

           — Maldito seja.

           Ele moveu a boca sobre sua orelha, usando a língua. Sam estremeceu violentamente.

           — Eu não sou um deles, me dê permissão. Eu quero você, Sam.

           Por um instante, ao ver que ela não se movia, nem respondia, pensou que ia submeter-se. Mas depois ela virou... e cravou o joelho em sua virilha.

           Aturdido, Ian conteve um gemido de dor e levou a mão à seu púbis, cheio de dor.

           — Quando digo “nunca”, quero dizer “nunca” — gritou ela. — Eu não quero ser apenas um corpo quente para que você se sinta melhor.

 

           Sam falava sério.

       Ian conseguiu levantar, ruborizado.

           — Quer quebrar seu joelho? — perguntou, zombando.

           — Sim — replicou ela. Mas se arrependeu imediatamente. Foi um gesto desesperado. Estava tão excitada, desejava tanto Ian, que esteve a ponto de ceder. Aquela atração furiosa estava cada vez pior, depois do que acabava de ver, deveria ter desaparecido.

           Sam nunca viu tanta raiva. Estava impressionada, apesar de ter visto inúmeros assassinatos, mortes, violações e torturas. O que aquele demônio fez a Ian Maclean? Tinha que ser algo terrível.

           E ele chorou depois. Ian Maclean derramou lágrimas. Ela tentou esconder sua surpresa e agir como se não tivesse acontecido nada. Curiosamente, parecia-lhe muito importante fingir que não havia nada de estranho naquilo.

           Por puro instinto, ela o deixou sozinho com sua dor quando ele acabou com o demônio. Nenhum homem, imortal ou não, iria querer que outra pessoa fosse testemunha de tanta fúria, e muito menos da surpreendente explosão de emoção posterior.

           Sam ficou chocada.

           Ian respirava com dificuldade.

           — Eu disse que não sou um deles.

           Ela ofegava também. Ouviu Ian, e embora não acreditasse que fosse um estuprador, certamente teria tentando seduzi-la se não tivesse dificultado.

           E esse era o problema. Era tão tentador sentir aquele corpo duro e excitado colado ao dela... Era como se entre eles houvesse uma atração sobrenatural.

           — Está bem. Eu posso ter exagerado. Sinto ter dado uma joelhada. Mas estou certa de que esse golpe não te fará nenhum dano.

           Ele lançou um olhar sombrio.

           — Porque não vai? — aproximou-se do carrinho do bar e se serviu um uísque que bebeu de um gole. Logo serviu outro. — Suponho que compreenderá por que não estou sendo um pouco mais hospitaleiro.

           — Não vou partir até que a página esteja em poder de Nick — respondeu Sam sem rodeios.

           Ian olhou para ela com incredulidade.

           — Esta noite não vou saltar a nenhum lugar. Nem ao cofre, nem ao passado, nem para nenhuma outra época — ele bebeu metade do segundo scotch. Estava impaciente. Seu olhar era frio e duro.

           Sam blindou cuidadosamente seus pensamentos. Pensaria em tudo aquilo depois.

           — E eu deveria confiar em você por que...?

           — Confia em mim porque sou São Cuthbert[3] — replicou ele. — Faça o que quiser. Divirta-se, Sam. — Voltou a encher seu copo e saiu da biblioteca.

           Sam se aproximou da porta da sala e o viu percorrer o corredor, passando por impressionantes obras de arte, e entrando no que parecia ser a suíte master. Quando desapareceu dentro, deixando aberta a porta, Sam respirou fundo.

           Merda. O que exatamente acabou de acontecer?

                        Ela se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de um drink. Enquanto bebia, entrou no banheiro dos hóspedes. Bebeu sua bebida e abriu o armário, onde encontrou algumas coisas úteis, incluindo um enxaguante bucal.

           Enquanto tirava o vestido, notou que estava com o corpo dolorido. Suas feridas pareciam arder, mas já teve dores piores. O tornozelo direito também estava dolorido, e ela esperava que não houvesse torcido: não podia se permitir o luxo de mancar. Colocou o vestido rasgado no lixo e pensou nas poucas coisas que Brie e ela conseguiram sobre Ian Maclean no outono passado.

           Brie e ela tentaram salvar a vida de Aidan. Como todo mundo, elas acreditavam que Ian estava morto. Aidan viu impotente, como seu pai assassinava o menino. Sam lembrava que isso foi em 1436.

           Pegou uma barra do sabonete branco perfumando e lavou o braço e o corte do na costela direita. Agora que pensava sobre isso, se Ian havia nascido no século XV, então ele era realmente velho, a não ser que tivesse chegado a Nova Iorque procedente de outro século. Mas isso não parecia provável: comportava-se como um homem moderno. O importante, entretanto, era que seu avô Moray, o célebre demônio, não o matou, na realidade.

           Ian passou muito tempo cativo pelo mal quando era menino. Sam lembrava agora que Aidan passou para o lado escuro por acreditar que Ian foi assassinado. Aidan de Awe tinha uma história de atividades quase demoníacas que durava décadas. Sam sabia muito bem. Ela mesma entregou a ele o arquivo sobre Brie.

           Durante décadas Ian foi dado como morto. Isso significava que, ao longo desse tempo, foi prisioneiro de um demônio.

           Um calafrio percorreu o corpo de Sam.

           Os demônios prosperavam na tortura, no abuso, estupro e assassinato. Era um milagre que Ian ainda estivesse vivo. Mas aquilo explicava muitas coisas. Não era de estranhar que ele fosse tão duro, tivesse sido tão desagradável, tão frio e insensível... até aquele colapso.

           O que fizeram com ele?

           Ela nunca esqueceria a visão dele de quatro, tremendo violentamente enquanto as lágrimas corriam por seu rosto.

           O coração parecia agitar-se dentro do peito. Sobressaltou-se, em estado de choque, e olhou no reflexo do espelho e se viu ali, nua e ferida, e por um instante seus olhos pareceram estranhamente suaves e angustiados.

           Pareciam os olhos de Tabby, se não fosse pela cor.

           Sua irmã era a mulher mais bondosa que conheceu. Tabby se preocupava com todo mundo. Sua compaixão não tinha limites. E frequentemente tinha aquele olhar.

           Droga. Sam nunca se preocupava, levava a vida na esportiva. Lutava pelos Inocentes, estava disposta a morrer por eles, mas nunca derramava uma lágrima quando morriam. Nem sequer chorou ao compreender que sua mãe estava morta. Ao invés disso, ela foi caçar. Agora também não havia perdido a compostura. O assassinato de sua mãe estava gravado em sua mente, e ela queria que assim fosse.

Ela tinha então doze anos. Estava a caminho de casa depois da escola, sozinha, porque faltou a aula de espanhol para jogar hóquei com os meninos. Mas se zangou com eles, meteu-se numa briga e, no final, foi para casa sozinha.

Ao entrar no jardim, viu um homem levantando-se e sua mãe tombada no chão, sem vida. Sam correu para sua mãe e em seguida compreendeu que Laura estava morta. Lágrimas queimaram seus olhos, mas a dor foi amortecida pela raiva. Ela aceitou de bom grado aquela fúria, aquela necessidade de devolver o golpe, aquele ardente desejo de vingança, levantou-se de um salto e pôs-se a correr. O demônio estava a meio quarteirão dali. Mas, em lugar de confrontá-la, desapareceu, saltando no tempo.

Sam pretendia matá-lo com suas próprias mãos, apesar de ser uma menina magrela.

           — Covarde! — ela gritou.

Ela passou um ano caçando-o, mas ele não voltou.

Agora, dezesseis anos depois, sabia que nunca o encontraria. Mas cada vez que eliminava um demônio, sentia uma profunda satisfação. Laura estaria orgulhosa dela.

Sua frieza era muito mais que uma forma de sobrevivência. Era o único modo de vencer. Ela era uma Matadora. E isso a transformava em um soldado. Nenhum soldado sucumbiria à compaixão, e muito menos à pena. Em sua vida não havia lugar para arrependimentos. Pegou o enxaguante bucal e o derramou sobre a ferida das costelas. Doeu. A compaixão não era parte de seu modus operandi. E compadecer-se de Ian Maclean era uma péssima ideia.

           Se ele achava que ela poderia ser simpática com ele, tentaria se aproveitar disso.

           Contrariada, Sam encharcou a ferida com o resto do scotch. Era uma sorte que ainda considerasse Ian um perfeito canalha. Não havia por que simpatizar com ele. Já não era um menino cativo. Havia sobrevivido e as pessoas sobreviviam constantemente a coisas terríveis e feias. Ela pegou uma toalha verde esmeralda e se envolveu nela enquanto se olhava no espelho. Então fez um pacto consigo mesma.

           Não importava o que fizeram a ele, não era assunto dela: ela tinha sua própria guerra para travar. Procurou seu telefone celular e discou o número de Kit, que estava no escritório.

           — Como foi o resto da festa?

            — Aborrecido. Mas o caviar era bom.

           — Hemmer levou você para fazer um passeio VIP pela casa?

           — Não, mas me fez um montão de perguntas sobre você. Ou está apaixonado, ou suspeita. Onde você esta? Estou prestes a sair.

           — Na casa de Maclean. No nº 1101 da Park Avenue. Foi uma noite bem interessante. Você pode passar por aqui e me trazer alguma roupa? Meu vestido está no lixo.

           — Tenho medo de perguntar.

           — Foram uns subs, Kit.

           — Sim, eu ouvi sobre o tumulto. Dentro de meia hora estarei aí — disse Kit, e desligou.

           Sam pegou sua bolsa, ir ver Maclean envolta em uma toalha era procurar problemas, mas tinha uma missão atribuída e o computador de Maclean estava na mesa da biblioteca quase acenando com uma bandeira vermelha para ela. Ela sorriu, aproximou-se da mesa e sentou. Ao descobrir que não era necessário uma senha para acessá-lo, sacudiu a cabeça com incredulidade. Logo ficou séria. Não fazia falta uma senha porque Maclean não se preocupava que alguém pudesse invadir sua intimidade. As garotas com as quais se deitava não incomodavam, e ele era tão difícil, tão antissocial e solitário que Sam estava quase certa de que não tinha amigos. Nenhum.

           Ela também era uma solitária, mas de vez em quando se divertia tomando uma bebida ocasional com Kit, com seu chefe ou com algum colega de trabalho. Inclusive com o idiota do MacGregor. Maclean, ao contrário, era intratável.

           Tinha a impressão de que começaria a sentir pena por ele se não tomasse cuidado. Notava outra vez aquela estranha sensação no estômago. Era desconcertante. O que lhe interessava se Ian levava uma vida de completo isolamento? Pelo que sabia, ele só se relacionava com um monte de idiotas assim como ele.

           Era hora de trabalhar. Deixando de lado suas reflexões, entrou na imensa base de dados da HCU. Era hora de se familiarizar com o arquivo de Ian Maclean.

           Mas para entrar na base de dados eram necessárias três senhas diferentes. Enquanto esperava, olhou área de trabalho do computador e a pasta de documentos. Talvez não voltasse a ter aquela oportunidade. Saiu da HCU e decidiu bisbilhotar o disco rígido. Mas só continha coisas sem importância. Ian tinha numerosos investimentos, uma coleção de arte catalogada e segurada, e uma lista de despesas de suas duas casas. Tinha seis carros potentes segurados, e um seguro da casa. Era tudo tão rotineiro que tornava-se chato, apesar de que nada em Maclean era aborrecido.

           De repente, entretanto, algo chamou sua atenção. A bandeira vermelha que subiu, começou a acenar.

           Um arquivo com o título “Viajem”, continha diversos itinerários pertencentes aos dois anos anteriores. Maclean viajou de avião por todo mundo, tanto em primeira classe como em aviões privados. Para alguém que podia saltar no tempo, aquilo era realmente chocante.

           Sam se perguntou se mantinha um perfil discreto devido a Scotland Yard. Mas chamaria ainda menos a atenção se chegasse a Paris saltando no tempo e partisse do mesmo modo, ao invés de voar até lá na primeira classe.

Kit ligou e disse que estaria lá em cinco minutos. Ao desligar, Sam decidiu verificar seu histórico na internet, conectou-se e olhou sua caixa de correio.

           Demorou dois segundos para perceber que ele estava mantendo conversas eróticas com um homem, e outros dez para descobrir que se fazia passar por um menino de treze anos, Liam.

           O homem em questão se chamava John.

           Sam compreendeu de repente.

           Maclean estaria disfarçado? Seria policial?

            De novo ela ficou chocada. Nenhuma corporação policial estaria disposta a contratá-lo, estava certa disso, principalmente se a Scotland Yard andava atrás dele. Abriu a última mensagem, na qual Maclean dava seu endereço em Park Avenue ao seu amigo, alegando que seus pais não estavam. “John” prometeu procurá-lo assim que possível.

           Sam se recostou na cadeira, rígida, enquanto sua mente trabalhava vertiginosamente. Ele foi à isca e a armadilha.

           Ian atraiu até sua casa um pedófilo demoníaco para matá-lo.

           Estava agindo como um vigilante.

           Apesar de si mesmo, Sam começou a sentir respeito por ele.

           — Divertindo-se?

           Ela levantou o olhar. Ele a surpreendeu bisbilhotando em seus arquivos e em sua vida.

           Maclean estava na porta vestindo apenas uma calça de moletom solta e de cintura baixa. Instantaneamente Sam desviou a atenção de suas descobertas. Maclean tinha um peito largo e enorme, os braços musculosos e os abdominais esculpidos e duros. Ele treinava... e muito. Podia ser um idiota, mas era impossível não admirar seu corpo. Sam olhou o caminho de pelos embaixo do seu umbigo e o volume muito sugestivo que ficava embaixo da calça. Ficou com a boca seca. Desviou o olhar.

           Ele claramente ficou bravo porque seus olhos tinham uma expressão dura e ardiam, cheios de raiva ainda que controlada.

           — Suas calças estão caindo, Maclean. Perdeu o cordão?

           Ele caminhou até ela e olhou o e-mail que estava lendo, depois esticou o braço para sair de sua caixa de correio.

           — Existem leis contra o que você está fazendo — seu peito musculoso arfava. Surpreendeu-a olhando-o fixamente e Sam sentiu que quase ruborizava.

           — Puxa, nenhum anel no mamilo? — afastou-se lentamente da mesa, segurando a toalha com a mão. Ele a impediu de levantar dando uma palmada sobre a mesa.

           Ele olhou para ela por fim como se acabasse de perceber que ela estava quase nua. Mas não esboçou aquele sorriso provocador, nem a olhou com desejo. Estava furioso.

           Ela afundou na cadeira.

           — Bem, possivelmente deveria considerar colocar uma senha.

           Maclean agarrou a borda da toalha.

           — Está feliz agora?

           Sam meio que desejou ter o vestido de volta.

           — Você encontrou John pela Internet, se fazendo passar por um adolescente. Atraiu-o aqui para matá-lo.

       — Estou cansado deste jogo. Quero sexo. Agora. Ou aceita, ou vai embora — puxou a toalha, mas não a tirou. — O que decide Sam?

       Sam sabia que ele não ia responder a suas perguntas, mas mesmo assim continuou insistindo.

— Isso diz respeito ao que fizeram a você, não é verdade? O que aconteceu com você quando esteve prisioneiro, quando era uma criança?

           Os olhos de Maclean se arregalaram.

           — Eu sei. Eu ajudei a Brie a encontrar Aidan, lembra?

           Ele respirou fundo.

           — Me dê o que quero ou vá embora — ele rosnou.

           — Então estamos de volta ao tigre enjaulado? — Porque ele estava ainda mais zangado?

           Por um momento ele ficou calado. Depois se inclinou para ela.

           — Que mulher tão valente e destemida. Você deveria ter medo, Sam. Ou esqueceu que meu avô era um demônio?

           Ela sabia que esse era um bom momento para recuar porque era quase certo que ele ia arrancar-lhe a toalha. Não que ela não pudesse lidar com isso.

           — Eu sei que Moray era seu avô. E também sei que seu poder é branco, Maclean. Acredito que não tem seus genes. Então, o que está escondendo?

           Maclean a olhou desconcertado, então afastou de repente os papéis e as pastas que havia sobre a mesa e atirou o monitor ao chão. Sam se levantou de um salto, mas ele a agarrou e a atraiu para si.

           — A campainha me acordou. Sua amiga está lá embaixo. Eu vou roubar a página, mas não esta noite. Agora, vá embora. — Ele a empurrou com força.

           Ela cambaleou sem soltar a toalha.

           Maclean passou ao seu lado como um redemoinho, em fúria.

           Sam conseguiu sufocar um grito.

           Maclean tinha as costas cheias de cicatrizes. Era como um mosaico.

 

           Sam despertou com dor no pescoço. Demorou um momento para lembrar que estava deitada no sofá da biblioteca de Maclean, vestida com os jeans e a regata que Kit havia levado. Sentou-se, grunhindo. As janelas do lugar davam para o norte e mostravam os bancos do jardim de um edifício próximo. Havia tanta luz que ela entendeu que havia dormido mais que um par de horas.

     Resmungou uma maldição, levantou-se e calçou suas botas de motoqueiro desgastadas. Saiu da biblioteca apressadamente, passando uma mão pelo cabelo desgrenhado.

           Um homem saía do dormitório principal, mas não era Maclean. Sam reconheceu ao mordomo de cabelo grisalho que conheceu em Loch Awe.

           — Onde está Maclean?

       — Bom dia, madame — ele respondeu com frieza. — Vai tomar o café da manhã?

           Sam passou a seu lado e entrou em uma sala opulenta. À sua esquerda, uma porta dava para um ginásio com máquinas de exercícios e pesos. Isso explicava a sua boa forma. Seu quarto era em frente; as paredes eram de cor azul clara e o teto de cor marfim, e a enorme cama de dossel parecia saída de um castelo antigo.

           — Os quartos de lorde Maclean são privados, senhorita Rose — disse Gerard. — Ele deixou muito claro que você não é bem-vinda em seus aposentos e que depois do café da manhã devia pedir-lhe que partisse.

           Sam entrou no quarto.

           Havia ali tanta testosterona que se sentiu confusa, desfocada, ficou olhando a cama, com sua colcha azul escura e suas almofadas. Depois se virou.

           — Quando ele se foi?

           — Alguns momentos atrás — Gerard a olhava friamente.

           Sam poderia precisar dele como aliado.

           — Sinto muito se começamos com o pé errado na primeira vez — disse.

       Gerard não amoleceu.

         — É de péssima educação irromper desse modo na casa alheia. Mas isso parece ser seu costume.

           — Sim, preciso que me deem lições de boas maneiras — riu. — Alguma vez lhe ocorreu pensar que talvez Maclean também precise?

           Ele enrijeceu visivelmente ofendido.

           — Sua Excelência faz o melhor que pode.

           — Puxa! Eu também — esqueceu que Maclean tinha um título nobre: o barão de Awe.

     — Houve circunstâncias excepcionais, em seu caso — Ele não ia ceder.

           Sam ficou em alerta.

           — Sério? Eu adoraria saber quais foram essas circunstâncias. Quanto tempo está a serviço de Sua Excelência? — Perguntou, tentando não ficar muito sarcástica.

           — Duas décadas, e eu não sou um fofoqueiro.

            Sam suspirou. Melhor assim. Maclean estava levando vantagem sobre ela e sabia pra onde ele foi. Deu uns tapinhas no braço de Gerard, que se afastou como se tivesse batido nele.

           — Eu realmente não mordo. A menos que me peça isso. E teria que me pedir isso muito, muito amavelmente.

           O mordomo a olhou, enrugando o cenho.

           Sam estacionou seu Lexus preto em fila dupla, diante da casa de Hemmer, e colocou a sirene em cima do teto. Vestida com jeans e botas de motoqueiro, usando óculos escuros, saiu do carro e se aproximou do porteiro. Ele admirou seu jeans apertado e sua camiseta branca. Sam exibiu sua identidade falsa.

           — Ian Maclean subiu?

           — Não, senhora, mas já disse isso a seu parceiro.

           Sam se surpreendeu. Então ela olhou para o saguão. MacGregor estava sentado em um luxuoso sofá bege, lendo um jornal e bebendo café. Lançou-lhe um olhar cheio de curiosidade.

           O que significava aquilo? Desconcertada, Sam entrou sem pedir permissão ao porteiro.

           — O que você faz aqui?

           — Uau! Vejo que você está de bom humor. Devo achar que passar a noite com o Maclean não foi tão espetacular como esperava?

           — Vou matar Kit.

           MacGregor se levantou.

           — A verdade é que temos o apartamento grampeado, então não foi ela quem te delatou — ele tinha um olhar muito macho. — Você é tão dura no seu trabalho, Rose — disse suavemente.

           Ela corou. MacGregor estava brincando? Havia microfones no apartamento de Maclean? Eles os observaram diante das câmeras?

           — Agora vai atrás de Maclean?

           — Acho que Nick vai deixar isso para você — ele começou a sorrir.

           — É quase tão idiota quanto ele.

           — Está com ciúmes.

           — Do quê? Do desfile de bunda perfeita?

           MacGregor se inclinou para ela.

           — Ninguém tem bunda mais perfeita que você.

           — Eu não sei nada sobre isso — Ela voltou para a rua.

           — Estou atrás de Hemmer — gritou ele.

           Sam o ignorou, mas estava lívida. Nick poderia ter dito que estavam vigiando a casa de Maclean. Maldição. Eles provavelmente estiveram comendo pipocas e bebendo cerveja na HCU na noite anterior... às suas custas.

           Aquilo estava fugindo ao controle. Maclean poderia não ter saltado no cofre ainda, mas podia fazer isso a qualquer momento e escapar com a página para qualquer época. Seria quase impossível encontrá-lo. Ela ficou tensa ao pensar nisso. Por isso estava tão decidida a não perdê-lo de vista na noite anterior. Agora, sua ausência era uma má notícia.

           Viu Hemmer antes que ele a visse e mergulhou em seu sedan.

           Ele parecia muito feliz quando saiu do edifício com um papel na mão e uma maleta na outra. Um chofer abriu para ele a porta de um carro negro e Hemmer entrou.

           Sam viu quando MacGregor entrou em seu Toyota cinza, estacionado um pouco mais acima, e o seguiu.

           — Divirta-se — resmungou. — Espero que o perca no tráfego — isso era mesquinho, mas ainda estava fervendo de raiva, imaginando que possivelmente a tivessem gravado em vídeo.

           Ela estava pensando nisso quando viu Maclean sair de um táxi poucos momentos depois. Ficou rígida. Ele usava um blazer cinza, uma camiseta escura e jeans, e parecia em plena forma. Passou junto ao porteiro e o saudou como se fizesse isso todos os dias. Estava claro que continuava envolvido com Becca Hemmer.

       Sam olhou seu relógio.           Eram onze e meia da manhã.

           Ela girou a ignição, ligou o rádio, estranhamente irritada e começou a girar os canais. Ela finalmente decidiu-se por uma estação de música country, que rapidamente tornou-se irritante. Ela mudou para jazz e voltou a olhar seu relógio. Passaram apenas sete minutos. A Fox News sempre foi uma boa aposta. Ela recostou no assento ouvindo Sean Hannity defender a América, concordando com a maioria das coisas que ele dizia. Os minutos passavam lentamente e isso era insuportável. Claro, ela sabia o que eles estavam fazendo. Estava deixando Becca esgotada, o bastardo, e se ela não caísse no sono depois ele a drogaria ou a esmurraria. Não que ela se importasse com o que ele fizesse. Maclean era um sociopata com um passado muito confuso, o tipo de cara que toda mulher devia evitar. Alguém deveria avisar Becca.

           Já era meio-dia e quinze.

           Sam mudou de emissora.

           Maclean saiu vinte minutos depois com um pacote sob o braço. Estava sorrindo. E foi direito para o Lexus.

           Sam ficou quieta.

           Ainda sorrindo, Maclean bateu na janela. Usava óculos de sol de aviador.

           Ela baixou o vidro.

           — Acho que você me pegou.

           Ele tirou os óculos e olhou sua camiseta.

           — Você nunca poderia passar despercebida a um homem.

           — Puxa! Um elogio. Estou sentada em um carro relativamente discreto, com os vidros escuros.

— Mas o porteiro acha que você parece Sharon Stone em “Instinto Selvagem”.

           — Lembre-se de não voltar a falar com o serviço de apoio — Sam abriu a porta, obrigando-o a recuar e saiu. Desligou o motor, mas deixando a chave no contato.

           Ele olhou seu jeans apertado.

           — Espero em não tê-la feito esperar muito.

           — Eu adoro música country.

           — Tentei correr.

           — Não se incomode em me contar os detalhes.

           — Por quê? Está com ciúmes? — ele começou a rir.

           — De uma bonequinha sem cérebro que tem uma selvagem aventura sexual com um sociopata obstinado? Você está brincando?

       — É assim que você gosta do sexo, não é mesmo? Selvagem? Mesmo com um sociopata? Mesmo comigo?

           Sam sentiu um vazio por dentro. Disse lentamente:

           — É melhor selvagem que o contrário, disso não há dúvida.

           Sam afastou o olhar de seus olhos cinza e duros, que tinha uma expressão especulativa, e olhou o pacote que tinha debaixo do braço. Sabia o que continha.

           — Ele provavelmente está se desintegrando enquanto falamos. Essa página precisa de controle de temperatura. Quer compartilhá-la comigo?

           Ele quase sorriu.

           — Compartilhar é contra minha natureza.

           — Claro que é. Então, qual é o plano? — ela estendeu a mão e arrastou as unhas pela sua bochecha. Aquele gesto intensificou as vibrações de seu corpo. — O que vai fazer com a página? Ou já tem comprador, como o Van Gogh?

           Maclean a agarrou pela mão e puxou-a.

           — Estou vendendo a quem pagar mais.

           Sam se apertou contra seu corpo musculoso.

           — De alguma forma, não me surpreende. Não o tinha por um patriota. Não poderia levá-lo a agir como os mocinhos?

       — Convença-me — disse ele.

       Ele já estava excitado. Evidentemente não demorou muito. Não que ela devesse criticá-lo por isso: Maclean surtia o mesmo efeito sobre ela.

           — Eu adoraria — respondeu com suavidade.

           Ela se moveu. Ele a agarrou pela mão e ela abaixou-se por debaixo do seu braço e o torceu à velocidade da luz. Executou aquela manobra centenas de vezes, sempre com o mesmo resultado: incapacitar seu adversário. Porque, se ela não parasse, podia quebrar o seu braço. Maclean, entretanto, moveu-se ao mesmo tempo em que ela. Como se adivinhasse o que ela pretendia fazer, ele impediu que ela retorcesse todo o seu braço e acabaram na mesma posição do princípio, cara a cara, com as mãos unidas, ofegantes.

           Maclean sorriu.

           — Eu esperava outro tipo de persuasão, Sam.

           Ela deu-lhe um golpe em seu plexo solar. Maclean se esquivou e descarregou uma leve onda de poder que a lançou para o seu carro.

           — Desculpe-me — disse.

           Sam o amaldiçoou.

           Maclean correu pela rua e levantou a mão para parar um táxi. Freios guincharam. Sam ergueu-se no momento em que ele abria e acenava com a pasta que continha a página abrindo a porta do lado do motorista, tirando o taxista com um puxão e depois se sentando ao volante.

           Sam pulou no seu carro com um pulo, ligou o motor, engatou a marcha e saiu atrás dele a toda velocidade. Buzinas soaram para ela. Ignorou a indignação geral. Um Honda colidiu contra um carro estacionado ao evitar a batida, quando ela se meteu entre o tráfego.

           Ela pisou no acelerador. Não ia perder Maclean, mas havia meia dúzia de táxis diante dela, todos idênticos àquela distância. Procurou não perder de vista o de Maclean.

           Seu taxi, de repente se afastou do grupo, virando bruscamente em uma rua lateral.

           Sam amaldiçoou, trancando os dois últimos táxis ao segui-lo, mas teve que pisar no freio ao ver que uma mulher e um menino já estavam cruzando a rua. Maclean estava quase ao final do quarteirão e Sam viu que ia passar o semáforo.

           — Merda!

           Ela inclinou-se para fora da janela.

           — Anda! — gritou para a mulher e ligou a sirene.

           A mulher pulou para o outro lado da rua com o garoto a tiracolo. Sam pisou no acelerador. Maclean estava entrando no próximo cruzamento e o semáforo que os separava ficou vermelho. Ela amaldiçoou, pisou a fundo no acelerador e começou a buzinar. Milagrosamente os nova-iorquinos que queriam cruzar a rua pararam e ela passou a toda velocidade pela faixa de pedestres e se meteu entre o tráfego do centro da cidade.

           Buzinas soaram e pneus guincharam. Um SUV bateu em sua porta do lado do passageiro. Sam não parou. O Lexus entrou na rua ao lado. Apenas meio quarteirão os separava.

           Maclean estava rindo e ela sabia disso. Ela viu que o táxi virava à esquerda, voltando para o centro da cidade.

           Sam acelerou ainda mais, diante dela, o semáforo continuava aberto. Embora pouco importasse... Estava na Broadway e havia dúzias de pedestres cruzando por onde não deviam. Começou a buzinar várias vezes, o barulho incessante, sua sirene ainda gritava, mas os pedestres a ignoravam. Freou forte para evitar um atropelamento em massa.

           Uma multidão cruzou a rua, bloqueando sua visão.

           — Saiam do meu caminho!

           Os homens e mulheres que passavam do seu lado correram para refugiar-se na calçada.

           Sam passou pelo cruzamento a toda velocidade.

           Diante dela havia uns vinte táxis amarelos.

           Diminuiu a marcha com o coração acelerado enquanto olhava os táxis. Por trás, todos pareciam iguais.

           — Merda.

O semáforo mudou. O tráfego seguiu em frente. Sam seguiu os táxis, tentando sentir Maclean.

           — Onde está você, safado? Em qual deles está você?

           Ela não esperava uma resposta. Mas se concentrou como nunca. E sentiu seu intenso poder masculino. Oh, sim, ela sentia. Cravou o olhar em um táxi situado à direita.

— Eu tenho você! — grunhiu. Dando uma guinada na direção, ultrapassou uma van de entregas ignorando o motorista, que pisou forte nos freios, xingando-a pela janela. Pisou no acelerador e bateu no táxi por trás, no paralama traseiro. O táxi sacudiu com força, o para-choque ficou amassado. Maclean virou e a olhou por cima do ombro.

           Estava rindo.

           — Serei eu quem vai rir por último, Maclean — disse Sam. — E vou ficar aqui, colada no seu traseiro amarelo brilhante — sorriu, perguntando-se o que ele faria em seguida.

           Descobriu dois quarteirões depois. Ele deu uma guinada de repente para a calçada e Sam o seguiu, decidida a não perdê-lo. Maclean parecia a ponto de bater nos clientes de um café sobre a calçada. As pessoas começaram a gritar e a se jogarem de suas cadeiras. Maclean deu outra virada brusca. Sam o seguiu enquanto dirigia a toda velocidade pela rampa de saída de um estacionamento.

           Ele a estava testando, pensou Sam, sombria agarrando com força o volante. Mas ela não tinha vontade de morrer. A rampa de saída em espiral ascendia bruscamente: era impossível ver se vinha algum carro.

           Sam freou um pouco.

           Ao dobrar uma esquina, ela viu que um carro dava uma travada brusca para não se chocar de frente com Maclean.

           Maclean se meteu entre dois pilares para se esquivar do carro seguinte. Sam teve que dar uma guinada para desviar e roçou a parede do estacionamento, ouviu um chiado metálico. O Volkswagen que ia na direção contrária se chocou de frente com a parede.

           Ofegante, Sam dobrou a próxima esquina. Maclean não estava mais à vista. Deu várias guinadas para evitar os carros que desciam pela rampa e desviar dos veículos estacionados. Travou em seco para não bater de frente com um carro que vinha em direção contrária. Ela dirigiu forte seu Lexus até a rampa e se colou à parede de concreto. Faíscas saltavam de seu carro. Ouviu quando o carro que acabava de passar se chocava com uma coluna ou com a parede.

           Ao virar na esquina seguinte estava no piso superior da garagem. Maclean conduzia a toda velocidade entre as filas de carros estacionados.

           Sam freou bruscamente. Aquele piso do estacionamento estava quase vazio e ela pode ver que o telhado da garagem era um retângulo. Os edifícios que o rodeavam por três lados eram maiores. Sam não sabia o que havia pelo quarto lado.

           Onde ele estava indo? O único lugar para onde ele podia ir era para baixo, mas ele acelerou para a rampa de entrada, e ela estava junto à de saída.

           Compreendeu então que ele se dirigia à área descoberta do estacionamento. Colocou o carro em marcha e se dirigiu para ele.

           Maclean não parou.

           Sam estava perto o bastante para ver que o terraço do edifício ao lado ficava a uns dois andares debaixo do teto do estacionamento. E compreendeu o que ele estava a ponto de fazer.

           Pisou fundo no freio.

           — Você está louco? — ela gritou.

           Enquanto ela falava, o carro dele se equilibrou contra a mureta, atravessou-a e ficou suspenso no ar por um momento.

           Depois começou a cair.

           E aterrissou violentamente no telhado inferior.

           Sam desceu do Lexus e correu para a mureta. Viu o táxi sobre o terraço asfaltado. Parecia destroçado. A porta do condutor se abriu e Ian Maclean saiu, ele acenou para ela e, com o pacote sob o braço, começou a cruzar o terraço. Um momento depois entrou no edifício e desapareceu.

           Sam discou para 911.

           Maclean estava louco. Ou era isso, ou ele não se importava em morrer.

 

           Ian queria despertar.

           Tinha tanto medo que não podia respirar.

           Mas a cena era tão inofensiva que sua reação não tinha sentido. A não ser porque sabia que ia acontecer algo terrível.

           Via de longe os meninos na escada de entrada de um colégio do Brooklyn. Riam, conversavam e seus pais e cuidadores se aproximavam para buscá-los. Ian não queria olhar, mas fixava sua atenção neles como se seu olhar fosse um zoom. Um dos meninos não ria, nem falava. Seu coração se apertou ao reconhecer aquele menino magro e mal-humorado, de cabelo escuro.

           Era ele mesmo.

           Mudou o foco e de repente ele era o menino. Seu coração pulsava violentamente, cheio de medo. Gostava do colégio, mas detestava voltar para casa. Procurava não pensar no que aconteceria quando voltasse... Até que soava a campainha, ao final da manhã, e não havia outra escolha.

           Uma sombra escura pôs-se a andar a seu lado.

           Seu medo aumentou. Ignorou os dedos que deslizavam por sua bochecha. Percorreram os três quarteirões em silêncio, até o prédio.

           Na porta, o homem disse:

           — Seu avô voltou Ian. E ele tem planos para você.

           Ian engasgava, fechava os olhos. Às vezes levava meses, inclusive um ano inteiro, sem que Moray voltasse. Ian sabia que ele preferia à Escócia a Nova Iorque. Sonhava com que não voltasse nunca, com o dia em que finalmente pudesse ser autorizado a ir para casa.

           Ficou na soleira da casa escura, estreita e centenária.

           Dentro daquela casa estava seu pior pesadelo. Sabia que, se entrasse, esperavam-lhe a dor, o medo e a vergonha. Sabia que encontraria ali dentro a seus carcereiros, demônios que foram mudando com os anos, e também Moray.

           No porão, os Inocentes choravam e suplicavam piedade.

           Deus, ele se esqueceu deles. Havia tentado levar comida e água, mas bateram e o torturaram até deixá-lo quase sem vida.

           Começou a sentir-se doente. Não podia entrar.

           A porta abriu devagar. Uma onda negra de maldade saiu por ela, envolvendo-o. Ficou rígido, consciente de que o mal começava a abrir caminho dentro dele.

           — Não seja covarde e entre de uma vez — seu avô sorriu. — Quero que faça uma coisa, meu filho.

           Ian sentou ofegante. O medo e a angústia o seguravam com suas garras afiadas como facas. Demorou um momento em perceber que foi um sonho. Ele amaldiçoou.

           Os sonhos eram tão maus quanto os flashbacks.

           No primeiro momento, quando despertava, só sentia medo. Levantou-se de um salto do divã no qual ficou adormecido. Continuava tremendo e estava empapado em suor, resistia a pensar no sonho. Não queria voltar para aquela época, nem agora nem nunca. Respirou fundo e viu que era quase de noite. Chegou em casa fazia umas horas e se sentou para saborear seu triunfo sobre Sam Rose. Pensou em sua valentia, cheio de admiração. Tomou três ou quatro drinks. E dever caído no sono.

           Olhou o copo meio vazio e o sanduíche que estava junto ao divã. Ele temia dormir quase tanto quanto temia a dor e a maldade. Por isso evitava isso a todo custo. O sonho sempre lhe provocava pesadelos, e o despertar trazia lembranças horrendas, vívidas e memórias recicladas.

           Às vezes passava dias sem dormir. Mas, no final, o passado sempre vencia. Eventualmente ficava adormecido uns instantes, como acabou de fazer.

            Seu avô, Moray, foi um dos maiores demônios que povoaram a Terra. Havia rumores de que governou seu maléfico império durante quase mil anos. Seu único fracasso foi sua incapacidade para arrastar por completo a seu filho Aidan, o pai de Ian, para o lado escuro. Moray não só estava acostumado a exercer o poder: estava obcecado por ele. Todos os demônios ansiavam poder; daí a razão por seus crimes pelo prazer. Mas Moray queria governar o mundo. Aidan era seu pior inimigo: seu próprio filho resistia aos seus desejos, às suas ordens. Moray sequestrou Ian em 1436, quando ele tinha nove anos, para utilizá-lo contra Aidan.

           Não conseguiu, entretanto, destruir Aidan. No final, Aidan venceu Moray e Ian foi libertado.

           O libertaram a exatamente vinte e cinco anos, pouco antes de Aidan e Brie destruírem Moray de uma vez por todas. Embora tivesse nascido no século XV, passou quase toda sua vida em tempos modernos, na cidade de Nova Iorque, onde foi mantido em cativeiro. Ian jamais esqueceria o dia de sua libertação. Seu pai o encontrou, e ele sentiu um alívio indescritível. Seu grande sonho havia se tornado realidade. Ele sentiu tanta alegria, mas sua alegria foi muito breve.

           Porque Moray o havia devolvido à Escócia e ao ano de 1502. No momento em que ele saiu da torre de Elgin, encontrou-se na Idade Média. Deveria ter sido familiar para ele, mas, ao contrário, era estranho, confuso e desconcertante. Ele mal conseguia se lembrar dos anos de sua infância, passados ali. Começou a se perguntar por que seu pai não foi antes resgatá-lo. Olhava constantemente para trás, esperando ver Moray ou algum de seus carcereiros aguardando para machucá-lo. E ele não podia dormir. Quando dormia, sonhava.

           E ele ainda tinha nove anos de idade.

           Seu avô o privou de uma infância normal ao lançar sobre ele um feitiço que o manteve com essa idade durante todo seu cativeiro, tanto física quanto emocionalmente. Mas, ao ser libertado, amadureceu rapidamente, e em questão de meses se converteu em um homem. Biologicamente tinha cem anos, mas só fazia vinte e sete que era um adulto. Isso, entretanto, não importava, sentia-se como se tivesse mil anos.

           Bebeu seu uísque escocês. Ninguém melhor que Ian sabia o quão sádico, cruel e malvado foi aquele filho de uma cadela. Embora tivesse sido derrotado, continuava temendo-o. Não lhe ocorria nada pior que sonhar com seu avô... além de voltar a encontrar-se cara a cara com ele.

           Moray disse uma vez que era Satã.

           Ian acreditou.

           Moray disse rindo:

Você não entendeu a verdade ainda? Eu sou Satã.

           Seu coração explodiu de medo e incredulidade. Engasgou, agarrou-se às barras da jaula em que o colocaram como castigo.

Você não pode ser Satã. Satã é o pai de todo o mal.

           Moray colocou a mão na porta, sorrindo com crueldade.

     — Mas tenho muitos rostos, meu filho. Agora, fará o que eu disser?

            Ian pegou de novo seu drink e percebeu que estava vazio. Resmungou uma maldição. Satanás havia imbuído a sua existência em Moray e em tudo o que ele fazia. Sem dúvida tinha mil faces. Moray era uma delas.

           De que forma Moray podia ter sobrevivido mais de mil anos? A Irmandade e outros grandes homens o caçaram através dos tempos. E todos fracassaram, até que Aidan e Brie o destruíram.

           E seu pai, que o havia deixado sozinho com o mal durante tanto tempo, passou à história como um grande Mestre. Ian pôs-se a rir. Sabia que sua risada soava amarga. Não se importava. Longa vida ao grande Lobo de Awe, pensou sarcástico.

           Tinha quase tantos poderes quanto seu pai e uns quantos que Aidan não passuía. Mas sabia que nunca o pediriam que se unisse à Irmandade. Os deuses conheciam a verdade a respeito de seus anos de cativeiro. Sabiam o quanto contaminado ele estava, conheciam sua loucura, seu desequilíbrio. A ele, em todo caso, pouco importava. Se alguma vez cometessem a estupidez de pedir-lhe que se unisse a eles, se recusaria porque era muito diferente deles. Como poderia ser confiável para proteger a Inocência?

           Pendurado na gaiola o Inocente soluçava de medo.

           — Faça isso.

           Ian segurou a faca começando a chorar.

           — Faça isso, Ian, ou sofrerá como eles sofrem.

           Ele sabia o que tinha que fazer. Mas não pôde fazer. Não pôde fazer isso à garotinha e à sua mãe. Olhou o monge, que estava junto a ele, ao lado de seu avô.

           — Castiga-o — havia grunhido Moray.

           De repente Ian gemeu de dor. Viu que agarrou o copo com tanta força que quebrou. Tinha sangue na mão. Amaldiçoou e deixou cair os vidros quebrados. Às vezes odiava todo mundo: os deuses, o seu pai, o mundo inteiro.

           Ao final, quando souberam que ele não tentaria escapar, quando ele mesmo compreendeu que jamais seria liberado, Moray tentou convertê-lo. Foi outro estratagema idealizado para destruir seu pai. Mas, apesar do medo que sentia, Ian nunca foi capaz de fazer mal a um Inocente. O garoto foi um herói, o homem flertava com a dor. Às vezes ele tinha uma vontade intensa de fazer mal a outros, inclusive às mulheres com quem se deitava. Mas isso não era nada comparado ao impulso de fazer mal a si mesmo que tão frequentemente se apoderava dele.

           Essa tarde, quando esteve no último andar da garagem, havia olhado pela borda e se perguntou se ele finalmente iria morrer. Quando chegasse o dia, acolheria a morte com entusiasmo. Outros podiam temê-la. Ele sabia, pelo contrário, que morrer era achar a paz.

           Tocou em seu ombro. Havia sofrido alguns machucados e contusões durante a perseguição de carro.

           A impressionante imagem de Sam Rose encheu sua mente.

           Não esperava que ela o seguisse essa tarde, como não esperava que na noite anterior ficasse com ele. Mas ela fez. Aquela mulher tinha um caráter excelente. E dirigia do mesmo modo que lutava, e certamente da mesma forma que fodia.

           Sua intenção sempre foi que mostrasse suas garras na cama, com ele. Queria manter com ela um relacionamento puramente sexual. Mas de repente imaginou-a sorrindo com ternura e acariciando-o, doce e carinhosa, sob seu corpo.

           E riu de si mesmo. Se fizesse amor como uma gatinha melosa, ele ficaria entediado. O que estava acontecendo com ele? Quando essa fantasia começou?

           Sacudiu a cabeça. Sam era muito poderosa, muito esperta e possivelmente tão sexual quanto ele. E tão bela que deixava a respiração difícil. Ian sorriu. Estaria à sua altura na cama. Seria incansável, insaciável, e muito exigente.

           Compreendeu que estava satisfeito por sair ilesa e, enquanto chamava Gerard para lhe pedir algo de comer, essa ideia o surpreendeu. Ele só se preocupava consigo mesmo. Só se importava que Sam estivesse ilesa unicamente porque queria que ela estivesse inteira em seu próximo encontro.

           Começava a ficar sem paciência.

           Não mentiu ao dizer que se mudou para Nova Iorque para poder transar com ela. Caçá-la desde a Escócia requeria mais paciência do que tinha.

           Ele olhou para frente, para o seu próximo encontro. Estava encantado com o início daquela pequena guerra.

           Então, lembrou-se da noite anterior e começou a andar pela sala. Procurou esquecer o que aconteceu com John, vingou-se, embora Sam o tenha visto em seu maior momento de debilidade. Não tinha por que lhe dar explicações. Não lhe devia nada, além de uma ou duas noites de prazer extremo. Seus segredos continuariam sendo isso: segredos. Se alguma vez fosse revelada a verdade sobre seu cativeiro, ficaria louco.

           O som do intercomunicador interrompeu suas reflexões. Cruzou o salão e entrou em seu quarto.

           — Gerard?

           — Chegou o senhor Hemmer, senhor. Espero para lhe levar o jantar?

           — Sim, por favor. E obrigado, Gerard — soltou o botão, satisfeito. Seu velho amigo não demorou muito em somar dois mais dois.

           Entrou sem pressa em seu enorme closet e tirou a roupa, vestiu un jeans gasto e um pulôver de cachemira azul, fino como o papel. Embora fosse pleno verão, mantinha a casa sempre fresca. Olhou seu relógio Cartier de dezoito quilates. Eram sete e quarenta e cinco. Desceu para receber seu convidado.

           Gerard serviu a Hemmer um Cabernet Philips Insígnia de dez anos que ele não tocou. Rupert Hemmer estava contemplando seu Motherwell recém-adquirido. Não era muito valioso (foi vendido originalmente por quarenta e cinco mil dólares), mas Ian gostava das graciosas pinceladas vermelhas e negras que o pintor distribuiu pela tela branquíssima. Para ele, Motherwell simbolizava a luta de vida e morte entre o bem e o mal. Inclusive havia efetivamente pago pela pintura acrílica.

           Hemmer se virou. Tinha o cenho franzido e parecia excitado.

           — Teve um mau dia? —perguntou Ian, tentando não parecer que se alegrava com isso. Manteve seu olhar o mais inocente possível. Ele realmente não gostava de Hemmer. Embora tecnicamente humano, ele era malvado até a medula. Roubar o Van Gogh para ele foi uma questão puramente profissional.

     — Provavelmente seria bom que medisse a pressão arterial.

           — Conheço apenas uma única pessoa capaz de desativar meu sistema de segurança e sair com a página do Duisean sem disparar um único alarme — replicou Hemmer.

Ian sorriu.

           — Sem dúvida há outros ladrões tão habilidosos quanto eu no mundo.

— Eu o convidei à minha casa como amigo.

           Ian apagou seu sorriso.

— Nunca fomos amigos. Você me pediu para conseguir o Van Gogh e me pagou regiamente por isso.

— Isso nos transforma em sócios, Maclean.

                 — Sim. E o que conta é possuir as coisas, não é isso? Você sabe melhor que ninguém — Ian se aproximou do aparador do século XVII e se serviu de uma taça de bom vinho.

           Hemmer o seguiu.

                 — Então foi você! Bastardo! Foi à minha festa só para me roubar.

                   Ian conservou a calma.

           — É preciso ser um ladrão para reconhecer um — bebeu um gole e impressionou-se com a qualidade do vinho.

           Hemmer tremia de raiva.

           — Te ocorreu pensar que não sou homem que se convenha ter como inimigo?

            Ian encolheu os ombros.

            — Olhe como tremo.

            Hemmer fez uma careta. Seus olhos ardiam.

            — Quanto? Quanto vai extorquir de mim? Quanto vai me custar reaver essa página?

            Ian tentou entrar em sua mente, mas não conseguiu. Só sentia a fúria de Hemmer e sua intenção de lhe fazer pagar pelo que fez. Mas para isso não necessitava de telepatia. Hemmer tinha que saber que a página possuía poderes sobrenaturais. Ian não acreditava que, de outro modo, pagasse mais de duzentos milhões por ela. Hemmer nem sequer era irlandês.

           Mas havia algo mais. Uma sombra negra nublava os pensamentos de Hemmer: uma presença nítida, mas indefinida. Havia mais alguém que desejava possuir a página, além de Hemmer? Ian tentou de novo, mas não conseguiu ver com clareza essa outra pessoa... Se é que havia. Não conseguia encontrar um nome. Só vislumbrava uma sombra negra. Se fosse um demônio, o jogo se complicaria.

           — Aceitarei ofertas até sexta-feira à meia-noite. Faça a sua.

           Hemmer engasgou de ira.

           — Está aceitando ofertas? A página é minha! Quanto quer por ela?

           — Faça sua melhor oferta — repetiu, sem rodeios. — Vou vendê-la ao melhor lance — sorriu e acrescentou suavemente. — Boa sorte.

           Hemmer respirou fundo.

           — Você vai se arrepender, Maclean. Eu não sou realmente o tipo de homem que você desejaria desafiar.

           Ian parecia divertido. Ele temia os demônios... Não demônios bilionários malvados como Rupert Hemmer. Mas se Hemmer estava brincando com demônios, possivelmente deveria temê-lo. Mesmo assim, não daria para trás porque estavam em jogo centenas de milhões de dólares. E a riqueza era poder.

           — Realmente? Boa sorte em sua vingança, então.

           Hemmer sorriu lentamente. Demorou um momento para responder.

           — Na primeira vez que nos vimos, desconfiei de você. Eu deveria saber. Então, gozou com minha mulher ontem à noite? E aproveitou hoje?

           Ian sabia que estavam gravando, encolheu os ombros.

           — É bastante habilidosa.

           Hemmer ficou imóvel.

           — Eu sei que você se considera acima de todos nós. Mas você deveria me temer, Maclean. Ninguém tem tanto poder quanto eu entre os mortais. E tenho aliados. Aliados que fariam você se sentir fraco e patético.

           Uma pontada de desconfiança percorreu Ian. Ele tinha razão. Hemmer tinha aliados entre os demônios. Ele tinha intenção de vender a quem pagasse mais, mas não queria complicar-se com grandes poderes maléficos.

                      

                        Por outro lado, havia passado vinte e cinco anos preservando-se o tanto quanto possível e cem milhões de dólares seriam a cereja do bolo. Sentir-se seguro — fazer seu mundo inexpugnável — era o impulso essencial de sua existência. As pessoas o consideravam um bastardo ganancioso. Como estavam equivocadas!

           E ele não gostava das ameaças. Ele sofreu milhares delas durante seus anos de cativeiro.

           — Não gosto que me ameacem, Rupert — Ian balançou a cabeça com desdém.

           — Nem eu que riam de mim, e menos ainda gosto que me enganem — se dirigiu para a porta e logo se voltou. — Ensinei a Becca todos os truques que sabe. Me pergunto quantos truques sabe Sam Rose.

           Ian enrijeceu incrédulo.

           — Quando eu descobrir, você será o primeiro à saber.

           Ian o viu partir, de repente estava lívido.

          

            Sam fechou devagar a porta de seu loft e se apoiou contra ela.

           Seu carro ficou mais ou menos imprestável. O deixou ali mesmo, no estacionamento, e pegou um táxi para voltar para a HCU, onde foi diretamente para a Cinco. Suas costas sangravam e o médico deu-lhe uma bronca por não cuidar da ferida como devia a noite anterior. Deu-lhe três pontos e refez o curativo. Sam também tinha uma entorse, e o médico a enfaixou. Em um dos choques devia ter batido com a cabeça, porque também tinha um olho roxo. O médico deu a ela uma bolsa de gelo... e logo a convidou para sair. Ela negou educadamente.

           Seu tornozelo estava machucado, seu tórax queimando e seu olho esquerdo latejava. Ela conseguiu escapar do edifício sem ser abordada por ninguém, e menos ainda por seu chefe. Nick tinha que saber que a página foi roubada, e que um de seus principais agentes causou inúmeras colisões.

           Maldito Maclean. O que havia de errado com ele?

           Sam tirou uma bota e teve que sentar em um banquinho da cozinha para tirar a outra. Estava esgotada. Passou vinte e quatro horas infernais. No trabalho a consideravam uma superagente, mas era humana, coisa que todo mundo parecia esquecer. Entrou na cozinha mancando, procurou uma garrafa de vinho e a tirou a rolha, serviu-se uma taça e a levou, coxeando, ao dormitório.

           A imagem de Maclean continuava gravada em sua mente tal e como o viu na última vez: em pé no terraço, ao lado do táxi esmagado, acenando para ela. Ficou parada um momento ao recordar as horríveis cicatrizes de suas costas. Nunca esqueceria aquela imagem. Nem quando teve um colapso depois de destruir John.

           O que estava errado com ele era que foi prisioneiro do mal quando era um menino. Era um milagre que ainda estivesse vivo para contar.

           Para chegar ao seu quarto, Sam tinha que passar pelo de Tabby. A porta estava fechada. Sam sempre a mantinha assim. A primeira vez que Tabby voltou ao passado, sequestrada por Macleod, Sam esperava que voltasse. Cada vez que passava por seu quarto, olhava para dentro. Mas Tabby nunca estava. E não era próprio dela partir sem dizer adeus. Ninguém, entretanto, podia resistir ao seu destino, e Tabby estava no passado. Um dia Sam fechou a sua porta, decidida a não voltar a abri-la. Sabia, no fundo, que cedo ou tarde voltaria a ver a Tabby. Simplesmente não havia outra possibilidade.

           Nesse momento desejava que fosse o quanto antes. Apoiou o ombro na porta, abriu-a e acendeu a luz. O quarto de Tabby era clássico e elegante, igual à Tabby. Era tão puro quanto sua irmã. Estava decorado em azul e branco. Dessas cores eram inclusive as cortinas e a colcha, estampadas com estrelas. Por um momento, pareceu ver sua irmã lendo na cama e sorrindo-lhe com carinho. Sentiu uma aguda pontada.

           — Sim, sinto tua falta, irmãzinha — disse Sam, sentindo-se tola. — E me viria bem que me desse um conselho. Pode acreditar nisso? Eu preciso de um conselho! Então... Onde está você? Como posso chegar até você? Estou começando a me angustiar, Tabby. Esperava que nossos caminhos se cruzassem logo. Faz apenas sete meses que você se foi, claro, mas tenho a sensação de que passaram anos. E sei que é feliz. É absurdo, mas dentro de uns dias faço vinte e oito anos, e você nunca faltou ao meu aniversário.

           Entre elas sempre houve uma telepatia incrível, desde que eram crianças, apenas um ano e meio de diferença. Mas Tabby não lhe respondeu, e Sam tampouco esperava que o fizesse. Sua irmã estava a séculos de distância. Entretanto, o que ela dizia era sério. Se tivesse capacidade de viajar no tempo, iria ver sua irmã para lhe contar suas preocupações. E ela faria isso amanhã. Já era o bastante. Mas a que época deveria ir?

           Maclean a levou para fins do século XIII. Quando ela, Sam, viajou ao passado com Nick para procurar Brie, viram Tabby em 1502 e sua irmã era duzentos anos mais velha.

           As viagens no tempo trocavam a realidade de princípio a fim.

           Embora Sam se considerasse perfeitamente humana, como sua irmã, nenhuma das duas era uma mulher comum. Tabby possuía poderes mágicos e Sam era muito consciente de que sua fortaleza tampouco era proporcional, não em tudo. Sempre teve, além disso, habilidades cinéticas[4] na manga, também. Podia ordenar ao DVD com a borda afiada como navalha que levava colado ao braço que deslizasse até sua mão. Podia fazer com que sua adaga saísse de suas ligas e podia mover pequenos objetos, como garfos sobre a mesa. Inclusive podia abrir de vez em quando uma porta ou uma grade. Seus companheiros a consideravam muito hábil no manejo das armas. Mas certamente Nick era o único que sabia que contava com um pouco de ajuda sobrenatural. O interessante, entretanto, era que Tabby viveu mais de duzentos anos. Sam se perguntava se, como afirmava o velho ditado familiar, as Rose melhoravam com o tempo. Essa brincadeira sempre foi pronunciada com uma piscada.

           Sabia muito bem como sua irmã reagiria a Ian Maclean se alguma vez se conhecessem. Tabby teria pena dele. Ela desculparia seu comportamento de racionalizar tudo. Prepararia para ele um jantar delicioso, serviria um vinho excelente, daria um sermão sobre a vida e, para arrematar, um forte abraço. E ele não seria imune a sua bondade. Tabby agradava a todo mundo. Com ela Ian se comportaria provavelmente como um ser humano, para variar.

           Sam não conseguia imaginar isso. Não se imaginava mantendo com ele uma conversa normal. Inclusive pensar nisso era uma ideia ruim. Além disso, ela não tinha nada que falar com Maclean. Fechou a porta e se recordou o quanto egoísta e deturpado ele era. E o maldito devia-lhe um carro. Não que ela fosse cobrar.

           Entrou mancando em seu próprio quarto, pintado de bege e marrom, e tão rigidamente moderno quanto clássico era o de Tabby. Despiu-se, tomou banho e vestiu um short cinza de lã e uma camiseta branca. Enquanto isso, não deixou de pensar em como Maclean tinha insanamente dirigido o taxi durante a perseguição. Ela estava certa de que ele não se importava em morrer.

           Claro que também nada parecia lhe importar, nem ninguém, não é? Sabia que não devia pensar nisso, mas era bastante triste.

           Era o filho de Aidan de Awe. Herdou muito poder branco de seu pai, mas não usava. Ou, melhor dizendo, não o usava como devia. Utilizava seus poderes para roubar obras de arte e acumular riqueza. Não tinha vestígio de maldade, embora seu avô fosse um demônio, mas mostrava, pelo contrário, muita indiferença e um egoísmo surpreendente.

           E então lá estava sua dor.

           Sam não queria pensar nele, recordá-lo de joelhos, chorando. Mas jamais esqueceria como venceu aquele demônio. Tinha aquela cena gravada em sua mente, infelizmente.

           Gostaria de pensar que Maclean venceu o demônio simplesmente porque lutava contra o mal, mas não era isso. Ele venceu John por vingança pessoal. A guerra contra o mal não lhe interessava. Ele praticamente provou isso.

           Sam estava com o estômago embrulhado, e não por estar bebendo sem ter comido. Ela desejava ter alguém com quem falar. Maclean continuava sendo um enigma. Tabby a animaria a mostrar-se amável e gentil, o que não era boa ideia. Disso estava segura. Especialmente agora que Maclean tinha a página e ela estava decidida a recuperá-la.

           Mal o pensamento se formou em sua mente quando soou o porteiro automático. Entrou na cozinha, curiosa. Nunca recebia visitas inesperadas. Todo mundo sabia o quanto protegia sua privacidade.

           — Olá, Sam, sou eu — disse Kit. — Posso subir?

           Kit nunca passava por ali, mas Sam se alegrou ao ouvir sua voz. Kit era inteligente, adorava investigar. Era muito racional. Talvez ela pudesse ajudá-la a entender Maclean.

           — Sim, suba.

           Kit apareceu com uma bolsa de supermercado e uma garrafa de vinho.

           — Ouvi sobre ontem à noite e hoje — disse enquanto deixava a bolsa sobre balcão. Tirou a garrafa de vinho tinto, um saco de aperitivos de soja e molho de iogurte e abacate. Acrescentou umas mini salsichas de soja e as colocou no microondas. Estava obcecada com a saúde.

           — Ontem à noite, você se refere a quando me viram por vídeo tentando tirar Maclean de cima de mim?

           Kit a olhou com preocupação.

           — A isso também. Mas isso não é tão estranho... Ele é um cara, ouvi dizer que ficou louco com um demônio.

           — Sim, ele ficou. — Sam serviu-se de uma taça de vinho e Kit pôs os aperitivos em uma tigela. Entraram na sala de estar.

           — Você está muito ruim — disse Kit. — O que aconteceu hoje?

           — Decidi persegui-lo sem me dar conta de que quer se matar. A perseguição acabou quando se lançou de um telhado com o carro.

           Kit sentou e disse:

           — Não deixe ele te levar para o túmulo com ele. Poderia ter te matado, pelo amor de Deus.

           Sam teve que sorrir. Ela pretendia morrer matando demônios, não assim. Então disse com culpa:

           — Ele venceu esta rodada. Eu me sinto muito responsável por ele ter roubado a página do Duisean. Tenho que recuperá-la.

           — Não é sua culpa. Mas imagino que ele não vai te entregar isso.           

           Sam riu sem vontade.

           — Não, ele não vai. Vai vendê-la pelo melhor lance. E é muito possível que essa pessoa seja alguém ainda mais malvado que Hemmer. Nós não temos orçamento para lhe fazer uma oferta decente. Nick está muito zangado?

           — Fez bem em ter escapado.

           Sam suspirou.

           — Maclean não se importa com quem é bom e quem é mau. Não lhe importa nada, exceto ele mesmo e seu ímpeto sexual.

           Kit piscou. Depois ruborizou.

           Sam a olhou com curiosidade. Acabava de envergonhá-la. Embora tivesse na casa dos vinte anos, Kit se comportava às vezes como se fosse virgem.

           — Ele está obcecado com sexo, Kit. E pretende utilizá-lo como arma contra mim, se puder.

           — Ele é realmente atraente — comentou Kit.

           Sam fez uma careta.

           — Até você conhecê-lo melhor.

           — E você o conhece bem?

           Sam ficou séria.

           — Não. Na verdade eu aposto que ninguém o conhece. E ele quer que seja assim. Mas está no jogo. Um jogo que temos que ganhar.

            — É só isso? Não te interessa nem um pouquinho todo esse apelo sexual?

           — Maclean é quente, mas não me interessa — Kit a olhava com ceticismo. — Eu não deveria saber o que faz, exceto como um agente, mas Kit a verdade é que o que vi ontem à noite e me deixou um pouco chocada. Ele perdeu a cabeça com esse demônio. Estava fora de controle, enlouquecido. E depois desabou. Acho que nunca vi ninguém assim.

           Kit a olhava com os olhos arregalados.

     — Nada nem ninguém a afeta. Está me dizendo que se sentiu triste pelo Maclean?

           Era difícil não comover-se ao ver um homem como Maclean perder o controle até o ponto de chorar, pensou Sam.

           — Sou uma profissional, lembra? Jamais me permitiria sentir pena por ele. Mas é o jogador principal desta partida, e as apostas são muito altas. Quanto mais soubermos dele, melhor.

           Sam teve a sensação estranha de estar mentindo. Seu trabalho consistia em entender a personalidade de Maclean, mas ele a excitou e comoveu. De fato, sentia-se quase confusa. Olhou para Kit.

           — Como é possível que não sinta pena dele como ser humano? — perguntou Kit.

            — Kit, estamos treinadas para manter a objetividade em nosso trabalho.

           — Eu li seu arquivo.

           Sam ficou calada. Precisava saber o que Kit descobriu, mas de repente desejava não perguntar sobre esse assunto.

           — Sam? — Por que tem esse ar engraçado no rosto?

           Secamente, desejando poder confiar em Kit, Sam respondeu com ironia:

     — O suspense está me matando.

           — O que há entre vocês dois?

           Sam ficou tensa.

           — Nada. Quer dizer, ele quer transar comigo e eu disse que não. Está apreciando a perseguição. Não é assim com todos?

           — Porque diria que não? — Kit parecia intrigada. — É um garanhão, como você gosta. Nunca vi você rejeitar um cara quente.

           Sam começava a se sentir incomodada, de repente imaginou-se na cama com Maclean. Fariam-se em pedaços. Usariam um ao outro até ficarem exaustos, pensou. Seria uma paixão descontrolada. Sabia.

           — Ele está sob investigação Kit. Por que estamos falando de meus hábitos sexuais?

           — Não estamos falando sobre isso. Estamos falando de Ian Maclean e de você. De um quase imortal com um arquivo de duas polegadas de grossura na agência, cheio de incógnitas. Um quase imortal que, devo acrescentar, é suspeito do roubo de obras de arte por valor de várias centenas de milhões de dólares. Um quase imortal que passou décadas em um cativeiro demoníaco. Deveria ser um dos nossos, mas não é. Mas também não é um deles. Acredito que vale a pena falar dessa pessoa, e sobre como você está lidando com ele. E, se sentir algo por ele, acho que também vale a pena falar disso. Por isso vim. — Ela corou. — Estava preocupada com você.

A primeira reação de Sam foi rir. Kit era uma novata e, comparada a ela, tão inocente quanto um civil, sem experiência na luta contra o mal. Lembrou-se então como Maclean havia atacado John e sua reação posterior.

           — Você não tem por que se preocupar comigo — mas ela hesitou e a olhou nos olhos. — Vou procurar não pensar nele, não me preocupar, nem sentir compaixão.

           — Mas sente isso?

           — Eu não sei! — Sam levantou e começou a passear pela sala. Continuava com dor no tornozelo e parou, fazendo uma careta. — Eu nunca me envolveria com Maclean. Seria um suicídio.

           Kit também levantou.

           — Uau, isso sim que é uma resposta radical. Como pode comparar essas duas coisas: envolver-se com um homem e suicidar-se?

           Sam não podia acreditar que disse aquilo.

     — Pode ser que alguma vez eu transe com ele, mas nos meus termos. E não haverá nada mais.

           — Não pode dizer a Forrester que você quer sair e que outra pessoa se encarregue de procurar a página? Provavelmente seja o melhor, Sam. Porque essa perseguição de carro foi uma loucura. O que você teria feito, se o pegasse? Ele tem mais poder que você. Pode saltar no tempo. Como você iria recuperar a página?

           Várias imagens de Maclean nas últimas vinte e quatro horas se amontoavam na cabeça de Sam. E na maioria delas, ela aparecia em seus braços.

           O que Kit acabava de dizer estava certo. Persegui-lo foi um erro de cálculo. A menos que ele morresse na perseguição, ela não tinha como cumprir sua missão e recuperar a página.

           Kit tinha razão. Devia deixar o caso. Maclean era um desafio que não necessitava. Mas ela nunca resistia a um desafio, e Maclean despertava sua curiosidade como ninguém que conheceu.

           — Não vou deixar o caso — afirmou. — Continuarei nisso até que acabe. O que está em seu arquivo? O que fizeram a ele? — O coração dela bateu mais forte enquanto falava.

           Kit suspirou.

           — Eu não achava que você fosse recuar. Não sei o que fizeram a ele. O arquivo não diz. Ninguém sabe. O que sei é que foi sequestrado em 1436 e libertado em 1502. Faz a conta. Ficou sessenta e seis anos prisioneiro.

           O estômago de Sam revirou violentamente.

           — Só um quase imortal poderia sobreviver a isso. Não é à toa que tenha tantas cicatrizes. E não só físicas. Não admira que seja tão pouco sociável.

           — Então, você está sentindo pena dele — os olhos do Kit se arregalaram.

           Sam a olhou fixamente. Estava a caminho do desastre?

           — Sinto-me tentada a sentir pena dele. Como não poderia sentir? Certamente o torturaram até quase matá-lo. Os demônios adoram a dor. E ele não era mais que um menino quando o fizeram prisioneiro, não é? — sua dor de estômago aumentou.

           — Ele tinha nove anos. O mantiveram sob feitiço, Sam. Continuou tendo essa idade durante todos os sessenta e seis anos de seu cativeiro.

           Deus, era pior do que pensava. Sam esfregou a testa. A cabeça doía. Ou seria o coração?

           — Se me permito sentir pena dele, estou perdida. Ele vai descobrir e usará isso contra mim, e então vai rir na minha cara — tinha, entretanto, a impressão de que era já muito tarde.

           Kit levantou e rodeou a mesa do café para ficar do seu lado.

           — Você enfrenta o mal com uma calma e uma distância que parecem admiráveis. Mas como não vai sentir pena dele? Tive vontade de chorar apenas lendo os dados sobre ele. Está confuso. Ele sofreu maus bocados.

           Sam fez uma careta. Kit tinha razão. Ninguém deveria passar por uma coisa assim.

           — Que mais dizia o arquivo?

           — É muito estranho. Big Mama abriu o arquivo assim que ela começou a funcionar, em 2002. Seu arquivo se remonta a vinte e cinco anos. E então não há absolutamente nada, zero. É como se tivesse aparecido do nada.

           — Talvez tenha sido quando o libertaram.

           — Talvez. Se for assim, acredito que ele deveria estar vivendo em 1527, não em 2009. Isso faria dele um homem medieval, não um moderno.

           — Ele pode viajar no tempo. E viver na época que preferir — Sam começou a dar voltas em torno daquela ideia. Maclean se comportava como um homem contemporâneo.

           — Existem regras, Sam, supõe-se que os Mestres devem viver em sua época, não em outra. Podem saltar no tempo para salvar Inocentes, mas logo têm que voltar para sua época. É o mais lógico. Caso contrário, poderiam encontrar-se consigo mesmo no futuro, não é?

Sam já havia chegado a essa conclusão. Isso explicava por que Brie não achou Aidan no século XXI e porque Tabby também decidiu ficar no passado.

           — Mas ele não é um Mestre. Está claro que não joga pelas suas regras.

           Sam mal acabou falar, quando sentiu sua presença. Surpresa, ficou tensa. O calor e a energia próprias de Maclean estavam perto. A sua campainha soou e Sam compreendeu que ele estava embaixo.

           Assustada, ela foi atender. O que ele queria?

           — Posso subir? — perguntou Ian Maclean.

           Sam recuperou a compostura, apesar do coração bater a mil por hora.

           — Só se você estiver me trazendo um cheque de cinquenta mil dólares.

 

           Sam olhou para Kit, que disse:

           — O que ele quer?

           — Não tenho nem ideia. Nem sequer sei como ele sabe onde vivo.

           — Você vai se trocar?

           Sam sorriu. Sabia que seu short minúsculo e sua camiseta eram muito provocantes. Mas não se importava. Iria se divertir vendo-o sofrer.

           — Estou certa de que ele pode lidar com isso.

           — Quer que ele te seduza?

           Passou pela cabeça que, apesar de suas constantes insinuações, Maclean nunca se propôs seriamente a seduzi-la. O que podia ser bom, porque não tinha certeza de poder resistir a um ataque em larga escala. E isso a inquietava.

           A campainha soou antes que houvesse tempo de analisar aquela ideia. Sam abriu a porta. Maclean sorriu pra ela com sua arrogância de costume. Estava muito bonito e muito elegante com seu jeans justo e desgastado, seus sapatos Gucci e um pulôver que custou centenas de dólares.

           Era impossível que pertencesse ao ano 1529, pensou Sam. Ele parecia o que era: um playboy rico, vaidoso e acostumado aos círculos da alta sociedade. Mas isso não diminuía seu atrativo.

           Sam descobriu perplexa, que ele não sofreu nem um único arranhão na perseguição.

           — Parece que você acabou de almoçar no Soho.

           Maclean não respondeu. Seus olhos se arregalaram ao ver seu olho arroxeado e seu tornozelo enfaixado. Logo voltou a cravar o olhar em seu corpo, desta vez, cheio de interesse sexual.

           — O que aconteceu com você? — entrou tranquilamente no loft.

           — Você já deveria saber disso — respondeu ela enquanto fechava a porta. — É o responsável.

       — Não lembro de ter dado um murro no seu olho, e estou acostumado a ter boa memória.

     Sam se perguntou se ele acreditava que na noite anterior havia perdido o controle a ponto de bater nela e não se lembrava disso.

           — Eu me fiz isto perseguindo você pela rampa de saída — respondeu com secura. — E a torção eu fiz lutando na última noite com o salto quebrado, enquanto você olhava.

           Ele deslizou o olhar por sua camiseta e seus seios, visivelmente nus sob o tecido.

           — Você foi ao médico.

           Sam sentiu que a temperatura de Maclean aumentava uns graus, porque seu próprio corpo reagiu do mesmo modo. Procurou responder com calma:

           — E o que importa? Onde aprendeu a dirigir, afinal?

           Ele levantou lentamente o olhar.

           — Aprendi sozinho.

           — Os carros não voam.

           Maclean esboçou um sorriso.

           — Tentarei lembrar disso da próxima vez que estivermos para-choque contra para-choque. Suas palavras acariciaram Sam como uma onda, suave como seu pulôver de caxemira.

           — Sempre será um cachorro lascivo completo?

           — Você gosta assim.

           Sam arregalou os olhos. O olhar de Maclean era intenso e ofuscante. Talvez ele tivesse razão. Esperava, disso não havia dúvida, que se comportasse como um vândalo. Mas pensou em suas cicatrizes e nos sessenta e seis anos de cativeiro que ele suportou. Depois disso, ninguém seria normal.

           Talvez sua obsessão pelo sexo não fosse mais que um grande disfarce.

           — Acho que vou embora — disse Kit.

           Sam esqueceu dela.

           — Não tem porque ir. Maclean não ficará muito tempo.

           Ele sorriu.

           — Não tenho nenhuma pressa, Sam. Quero ver sua casa.

           Sam se lembrou dele em pé sobre Becca, sem nenhuma pressa. Depois, lembrou dele pressionando ela contra a mesa da entrada, na noite anterior. Havia muita ânsia naquele momento. E, agora, essa mesma ânsia começava a crescer de novo.

           — Kit — disse com aspereza, — este é Ian Maclean. Esta é minha melhor amiga, Kit.

           Ian sorriu como se esperasse que ela também caísse rendida aos seus pés.

           Kit ficou corada.

           — Acho que falarão com mais tranquilidade se eu não estiver aqui — recolheu sua bolsa. — Eu acho que uma trégua seria uma ótima ideia — Estamos todos no mesmo lado, na realidade.

           Sam não sabia se ela se dirigia a ela ou a Ian. Quando Kit foi embora, ela entrou na cozinha para servir uma taça de vinho a Ian, consciente de que ele admirava seu traseiro e suas pernas enquanto a seguia. Deu-lhe a taça.

           — Não sou boa anfitriã, — disse — não como minha irmã, que o receberia de braços abertos. Eu me limito a aproveitar o momento, embora não como você queria.

           — Eu gosto — respondeu ele com suavidade — de seu short.

           — Com certeza que sim. E Maclean... Não estamos do mesmo lado. É incrível que Kit seja tão otimista depois de tudo o que passou. Se estivéssemos no mesmo lado, agora mesmo você teria a página no bolso da calça.

           Seus olhos cinza brilharam.

           — Quer checar você mesma?

           Será que ele tinha que fazer de tudo uma insinuação sexual?

           — Ou poderia mudar de ideia e entregar a página às autoridades — estava brincando, mas queria saber onde a guardou.

           Ele sorriu, divertido.

           — E o que eu ganharia com isso?

           — Respeito por você mesmo?

           Ian bebeu um gole de vinho.

           — Eu não me importo com auto respeito.

           Queria dizer que não respeitava a si mesmo? Sam não podia imaginar que alguém pudesse viver assim.

         — Sinto muito que esta tarde você tenha se machucado — acrescentou com voz suave. — Não acreditava que você fosse me perseguir. Ele baixou o tom da voz, num murmúrio acariciador.

         Sam respirou fundo, desconcertada, e sorriu para ele. — Raramente sou subestimada duas vezes. Aposto que você não voltará a fazer isso.

           — Não, nunca — respondeu.

           Se ele fosse um pouco menos sexy, um pouco menos sedutor, sua vida seria muito mais simples, disse Sam para si mesma. E se não tivesse estado em cativeiro por todas essas décadas, também seria útil, porque seu comportamento antissocial e egoísta não teria desculpa. Observou-o atentamente enquanto ele entrava na sala de estar e se sentava em seu sofá. Estava muito bonito. E parecia satisfeito, como um leão de tocaia, pronto para se alimentar.

           Sua carismática presença enchia quase por completo a habitação. Sam sentou na poltrona em frente e cruzou as pernas quase como Sharon Stone. Ele sentou-se reto.

       — Você tem certeza de que não posso persuadi-lo para que faça o correto?

           Ian sorriu devagar.

           — Pode tentar Samantha. A qualquer momento... de qualquer maneira.

           Sam lhe devolveu o sorriso e deixou que se fizesse o silêncio.

           — Consideraria a hipótese de fazer o correto se eu te der o que deseja?

           Ele esboçou um sorriso divertido.

           — Você se renderia com tanta facilidade? Eu ficaria desapontado.

           — Sou muito boa nisso — ela disse convencida de que ele jamais entregaria uma obra no valor de duzentos milhões de dólares em troca de qualquer transa.

           — E o que faria se eu aceitasse?

           Sam ficou sem fôlego. Uma onda de desejo a percorreu, e o olhou com perplexidade.

         — É muito tentador. Mas duzentos milhões de dólares também são.

           Sam respirou de novo.

           — Se me der à página e se checamos sua autenticidade, farei amor com você, mais de uma vez. E como quiser.

         Ian cravou os olhos nela. Sam tentou não pensar no que ele exigiria. Sustentou seu olhar, tentando fazer com que ele não notasse sua confusão.

           Foi ele quem rompeu o silêncio.

           — Você é uma mulher de palavra.

           — Uau, você confia em mim — ele não respondeu, e Sam compreendeu que estava pensando em mil maneiras diferentes de tirar partido para aquele trato. — Eu, ao contrário, não confio em você.

           Ian apontou o sofá, ao seu lado.

           — Você tem medo de sentar comigo?

           — Isto não é um encontro, é? Ou será que temos que dar as mãos? Porque, que eu saiba, não chegamos a nenhum acordo.

       — Não, não temos um acordo — ele sorriu lentamente. — Eu quero você e também quero o dinheiro. E pretendo conseguir ambos.

           Sam levantou.

           — Isso não me surpreende.

           Ian também ficou de pé.

           — Eu achava que ontem à noite tínhamos quebrado o gelo.

           Ela não podia acreditar que estivesse se referindo a noite anterior, levando em conta o colapso que sofreu. Depois disse a si mesma que devia deixar de subestimá-lo. Sua forma de agir foi se tornando óbvia. Gostava manter a vantagem e deixá-la fora de equilíbrio. Ele usava constantemente o sexo como arma de batalha. Mas os dois poderiam jogar esse jogo.

           — Achou que nós...? — perguntou. Pensou em como se serviu da Internet para seus fins. — Você fez uma armadilha para John.

           — Eu fiz.

           — Por quê?

           — O que importa isso? Eu perguntei por que você sai todas as noites para caçar demônios? — encolheu os ombros com indiferença.

           — Eu sou uma Rose. E as Rose se dedicam há gerações a proteger a humanidade. Todas nós temos um destino. E o meu é matar.

           — Você acredita em tudo o que diz. Fizeram uma lavagem cerebral em você?

           Estava zombando dela. Sam começou a irritar-se.

           — Qual é o seu destino, Maclean? Roubar obras de arte e seduzir mulheres ricas?

           Quando cravou seus olhos frios nela, Sam sentiu uma pontada de arrependimento. Como disse Kit, a vida lhe deu experiências ruins. Comparada com a sua, a vida de Sam parecia um passeio de verão por um mundo sem maldade.

           Ian passou por um inferno porque esse era seu destino. Sua sobrevivência também não estava escrita.

           — Sinto muito. Não deveria ter dito isso. Seu destino não foi tolerável.

           Ele não pareceu suavizar-se.

           — Agora sente pena de mim?

           — Estou resistindo a sentir.

           — Da mesma forma que resiste a mim? — perguntou com ceticismo. — Você pode se compadecer de mim quando quiser.

       Sam compreendeu que ele queria que ela sentisse pena dele. Se sentisse, avançaria sobre ela sem escrúpulos. Era hora de virar a mesa.

     — É tão idiota que dificilmente poderia sentir pena de você. Então como sobreviveu a sessenta e seis anos nas mãos de demônios?

           Seus olhos viraram gelo. Sam percebeu que ele ficou perplexo, porque ele não disse nada.

           — Essas cicatrizes...

           — Não vou falar disso — parecia furioso.

           Sam esteve a ponto de recuar, mas continuou falando com cautela:

           — Está em seu arquivo.

           Ele a olhou com aparente surpresa. Respirou fundo.

           — Há um arquivo... sobre isso?

           Sam quase lamentou ter falado.

           — Nosso trabalho consiste em seguir a pista de gente suspeita, como você — Ian parecia horrorizado. — Sabemos que você esteve prisioneiro de seu avô por sessenta e seis anos e que durante todo esse tempo ele não te deixou crescer. E tudo porque odiava seu pai.

           Ian estava incrédulo e furioso, aproximou-se dela. Sam não se moveu.

       — Minha vida é assunto meu — gritou ele. — Não vou falar dela.

           Sam notou que seu acento irlandês se intensificava quando estava zangado ou excitado. Agora estava zangado. E ela não podia reprová-lo. Não queria compartilhar os detalhes de sua vida, e de seu pior pesadelo, nem com ela nem com ninguém. E estava no seu direito. Mas o CDA se ocupava de perseguir e derrotar o mal para proteger os cidadãos. Era a típica contradição entre a necessidade de segurança nacional e o direito individual à intimidade. E ela, que pertencia às forças da ordem, estava convencida de que o interesse nacional se sobrepunha.

           Ela umedeceu os lábios.

           — Eu trabalho para uma organização que persegue o mal, Maclean. Certamente você sabe por que tem faculdades telepáticas. Temos arquivos muito extensos e detalhados. A agência se remonta aos tempos de Thomas Jefferson. Temos arquivos sobre demônios e crimes demoníacos com séculos de antiguidade. E, por causa de seu pai e sua propensão de levar obras de arte alheia, também temos um arquivo sobre você.

           Ele a olhou horrorizado.

           — Quero esse arquivo.

           — É material classificado — sua mente, entretanto, trabalhava a toda velocidade. Talvez eles pudessem utilizar o arquivo para chegar a um acordo.

           — Quero conhecer seu chefe. Imediatamente.

           — Nick Forrester dirige a HCU, uma seção da agência, não a própria agência. Não vai te dar uma cópia desse arquivo, mas tenho certeza de ele que adoraria conhecê-lo. Vocês têm muitas coisas em comum — perguntava-se se ele entregaria a página em troca do arquivo.

           — Arranje-me um encontro com ele — ordenou Ian.

           Sam não gostava de receber ordens, mas concordou.

           — Falarei com ele manhã na primeira hora — observou-o atentamente. — A página está em um lugar seguro, não é? Porque ninguém quer que ela acabe reduzida a pó.

     — Está em um lugar muito seguro — Ian deu meia volta e começou a passear pela sala. Sam o olhava, tentando não ter piedade dele. Ian virou para olhá-la. — Você devia ter me contado sobre esse arquivo antes. Quem mais o viu?

       — Não tenho certeza. Certamente qualquer um que esteja tentando recuperar a página.

           — E quantos são? — perguntou ele. — Dez? Vinte? Cem?

           Parecia muito aborrecido que outras pessoas pudessem saber do seu calvário.

           — Provavelmente menos do que cinco ou seis pessoas. Nick gosta de controlar tudo. Se ele pudesse, seríamos todos marionetes com os fios muito curtos.

           Ian concordou com a cabeça. Seus olhos continuavam cintilando.

           Sam quis lhe dizer que no dossiê não aparecia nenhum detalhe a respeito de seu cativeiro. Custou a ela controlar esse impulso. Essa informação o acalmaria, indubitavelmente. Mas, se descobrisse, perderiam a vantagem que tinham sobre ele.

           — Quero ver Nick amanhã — disse em tom de alerta. Ele já estava na porta.

           — Não se preocupe. Estou certa de que ele também quer vê-lo.

           Ian parou com a mão na maçaneta da porta. Não se virou.

           — Vocês precisam tomar cuidado com Hemmer, vim para avisá-la.

           Sam se sobressaltou, surpresa. Maclean foi avisá-la de um perigo? E por que ele faria isso? E como podia Hemmer ser um perigo para ela?

           — Por quê? Ele sabe que foi você quem roubou seu brinquedo preferido, a não ser que desmontasse seu sistema de vigilância.

           — Ele sabe que fui eu. Mas ele se referiu a você, Sam. Ele acha que pode utilizar você em nossa pequena guerra — seus olhos prateados brilharam de novo.

           Sam não se inquietou.

           — E como poderia me usar, Maclean? Para que? Além disso, eu não me deixo usar — não sorriu. — Mas isso você já sabe.

           Seu rosto endureceu.

           — Ele vai usar você contra mim.

           Aquela afirmação fez que uma onda de desejo percorresse Sam. Mas ela se negou a admitir isso. Ninguém podia usá-la contra Maclean: ele não se importava com o que acontecia com ela.

           — Você deve ter rido dele como um louco.

           Sua expressão não mudou.

           — Hemmer é mau — ele alertou. — Talvez seja humano, mas tem poder e amigos entre os demônios. Fará todo o possível por vingar-se de mim. Mantenha-se afastada dele.

         — Como se você se importasse — respondeu ela lentamente. — Você mesmo acaba de dizer: ele está atrás de você, não de mim.

         — Não quero ver ninguém machucado ou usado — respondeu ele com firmeza.

              — Bem, então você me enganou — ao ver que ele não respondia, acrescentou — Está tentando me convencer de que é um cara bom, afinal de contas? Porque eu o vi em ação e temos seu arquivo. Até nosso supercomputador tem sérias dúvidas a respeito.

           Ian encolheu os ombros.

           — Será que é mesmo remotamente possível que você herdou de seu pai alguma predisposição ao heroísmo?

           — Eu não me pareço em nada com meu pai.

           Sam colocou o dedo na ferida.

           — Que pena. Eu gostava dele, Redimido, claro.

           Ian a olhou fixamente e Sam percebeu que ele estava tremendo.

           — Porque está tão zangado? Não podemos falar de você, nem de seu pai? Por quê? Aidan é um herói. Francamente, eu adoraria ver aflorar em você um pouco de seu afã por destruir o mal.

           — Eu não ligo para o que vocês querem ou esperam, vim te avisar que Hemmer é mau e planeja usar você contra mim — replicou Ian.

           Outro assunto que ele não gostava.

           — Hemmer não me preocupa.

           — Claro que não, porque não conhece o medo.

           Era quase uma acusação.

           — Ter medo não é o ponto. Algum dia morrerei. Nós dois sabemos que morrerei lutando. E que minha morte será coisa do destino. Seu rosto tinha uma expressão tão dura que Sam se surpreendeu que não rachasse. — No que está pensando? — perguntou. — Por que essa cara? Sei que não se importa que eu viva ou morra.

           Ian a agarrou pelo queixo e levantou seu rosto, Sam ficou quieta. Ele a agarrava brutalmente, mas ela não se alterou. Seus olhares se encontraram.

           — Às vezes, o destino não é como pensamos que vai ser — baixou a mão bruscamente.

           Sam começava a compreender.

           — Você esperava crescer no castelo de Awe, no século XV, não em Nova Iorque, nos tempos modernos.

         Ele torceu a boca.

— Você é uma idiota por dirigir como fez, por não ter medo, por acreditar que morrerá como quer.

           — Você também! E não eu não sou a única que tem desejo de morrer! — Ela parou. Por fim entendia tudo. — Espere. Você não se importa em morrer. Essa perseguição demonstrou isso. E já sei o por quê.

           Ian virou e se dirigiu para a porta.

           Sam não o seguiu.

           — Viveu no inferno por sessenta e seis anos. E isso faz que a morte te pareça aceitável — gritou nas suas costas.

           Ian bateu a porta sem olhar para trás.

            Sam ficou olhando a porta. Acabava de descobrir a chave de sua personalidade. Ian não sentia desejo de morrer. Mas a morte não era o que de pior podia acontecer a uma pessoa. E ninguém sabia disso melhor que ele.

           Sam acabava de sair da ducha e estava secando o cabelo quando seu telefone tocou.

           — Olá, Samantha — disse Rupert Hemmer.

           Sam ficou rígida e deixou cair a toalha. O que Hemmer queria? Eram dez da noite. — Olá, senhor Hemmer — ficou alerta. — Estou aqui embaixo — disse ele. — Posso subir? Sam pensou apressadamente. A última vez que viu Hemmer foi esta manhã, quando estava a caminho de seu escritório. Mas ele não a viu. Antes disso, esteve na festa de aniversário de sua mulher, e ele não se mostrou muito contente ao vê-la com Maclean. Entretanto, antes de deixar a festa na noite anterior, ela havia se desculpado. Ele tinha se mostrado amável e meloso e um pouco interessado nela, como se soubesse que cedo ou tarde Sam acabaria por ceder e se deixaria levar a cama. Ela também flertou ligeiramente com ele.

           Estava quase certa, por outro lado, de que Hemmer acreditava que era ela agente do FBI, não do CDA. Agora pretendia descobrir isso.

           Além disso, em seu cofre havia algo maligno. Sam não havia esquecido. E tinha que provar isso.

           Sorriu lentamente.

           — Claro, por que não? — estava desejando descobrir o que Hemmer queria, e não acreditava que o sexo estivesse no topo de sua lista. Ele queria recuperar a página. Mas por que a procuraria? — Não achava que você fosse resistir — murmurou ele antes de desligar.

           — Está jogando, maldito filho de cadela, pensou ela. Podia controlar Hemmer e o que tivesse planejado. Desligou e vestiu um jeans, um pulôver provocante e um pouco de perfume Black Orchid. A campainha tocou. Carregando um brilho labial e umas sandálias de salto alto nas mãos, Sam cruzou correndo o loft para abrir a portaria. Calçou as sandálias, ignorando a torsão, pintou os lábios, penteou-se com os dedos e, quando ouviu a campainha, abriu com um sorriso.

           Maclean disse que Hemmer era humano, mas malvado. Maclean queria que ela o temesse. Se Hemmer era um humano comum, ela não poderia detectar sua maldade. Mas Hemmer não era um homem comum: era multimilionário. Sam chegou à conclusão de que devia agir como se Maclean tivesse razão.

           — Entre — murmurou. — Que surpresa tão agradável.

           Hemmer entrou e a olhou de cima a baixo com deleite.

           — Quanto me alegra que você fique feliz em me ver.

           — Que mulher não ficaria? — Sam fechou a porta.

           — Ao seu lado, minha mulher parece uma animadora de torcida boba — disse ele com suavidade.

       — Uma forma interessante de iniciar uma conversa, pensou ela.

       — A experiência não se compra com dinheiro, não é? Nem a inteligência.

           — Não, certamente — ele lhe deu uma garrafa de vinho. Era um Borgoña Rothschild e devia custar centenas de dólares. Sam não se alterou. Hemmer sabia que ela tinha um fraco por um bom vinho? Isso significaria que se informou sobre ela, ou que tinha habilidades telepáticas. Ambos eram pensamentos interessantes.

           — Assim como não se compra a resistência — disse Hemmer.

           Sam o olhou com surpresa. O que ele queria dizer com isso?

           — É da minha adega — acrescentou ele, satisfeito, e passou o olhar pelo loft enquanto ela o agradecia. — Outra parte de minha casa que eu adoraria mostrar-lhe pessoalmente. Você a admiraria tanto quanto à minha coleção de arte.

           Sim, ele tentava conectar-se com ela.

           — Eu adoraria vê-la. Assim como a qualquer outra coisa que você queira me mostrar — respondeu ela com a mesma suavidade, olhando para sua cintura. Hemmer sabia que havia algo em sua coleção de arte que a interessava. E isso não era bom.

           Porém, Maclean não havia avisado?

           Ele sorriu.

           — Uma mulher feita à medida de meus mais obscuros desejos — disse. — Eu Espero.

         Essa foi uma escolha interessante de palavras, pensou Sam, quase um desafio para que ela exigisse saber o que significava. Será que Hemmer se referia ao fato se fazer parte do lado escuro? Sam se preparou quando ele estendeu os braços. Sentiu um calafrio de repugnância, mas Hemmer se limitou a tocar seu cabelo curto.

           — Os desejos obscuros são muito mais interessantes que os puros — murmurou ela.

           Hemmer riu.

           — Sim, eles são. Não imaginava que você pensasse com essa ousadia, Samantha.   

            Ela sorriu, pensando rapidamente.

            — Alegra-me que tenhamos deixado para trás meu pequeno deslize — disse. — Sou uma mulher de sangue quente e às vezes me deixo levar pelo momento. Desejo é desejo.

           — Uma mulher de sangue quente e apaixonada que tinha encontros amorosos em minha casa com um de meus convidados... como eu realmente poderia me opor? — murmurou Hemmer. — Além disso, prometi a você uma visita privada.

           Sam sentia sua luxúria, escura e densa e lembrou que devia tomar cuidado; não queria ter que matá-lo. Mas não pensava em dormir com ele, não importasse quão longe a levasse aquele jogo.

           — Prometo que isso não voltará a acontecer... Não com o Maclean, ao menos.

           Os olhos do Hemmer brilharam.

           — Não tenho certeza de que me importo com isso, Samantha.

           Sam ficou olhando pra ele, se perguntando o que ele queria dizer com isso.

           — Você desperta as paixões de tantas maneiras... mas está em sua natureza, não é verdade? Ter amantes, gozar deles e deixá-los abandonados com a insensibilidade de um homem.

           Hemmer estava lhe dando a entender que fez investigações sobre ela.

            Para colocá-lo a prova, Sam murmurou:

           — Você faz com que eu pareça uma femme fatale, Rupert. A garota quer apenas se divertir.

           Ele sorriu.

           — Você é a definição de femme fatale e sabe disso.

           Sam decidiu dar-se por vencida.

           — Sim, eu sei. E é divertido...

           — Então, que comece a diversão. Terá sua visita privada, mas eu também quero um show particular.

Sam ficou em silêncio. As coisas começavam a se complicar. Hemmer tocou sua bochecha.

            — Não me importou vê-la passar a língua pelo pescoço de Maclean, mas estou desejando vê-la em outra parte.

           Sam decidiu distraí-lo.

           — E se eu disser que sim? O que ganho com o espetáculo?

           Ele começou a rir.

           — Além da visita privada à minha coleção? Diversão.

           Sam se negou a deixar que seu sorriso se apagasse. Hemmer sabia que ela queria entrar naquele cofre e pretendia fazê-la pagar para entrar... com seu corpo.

           — Então, nos convide Rupert.

           — Você trará o Maclean e proporcionará o entretenimento?

           — Por que não? Talvez eu lhe dê de presente uma caixa do Rothschild, se isso o fizer feliz.

            — Se me fizer feliz, te darei de presente um quadro.

            Hemmer sabia que ela não se venderia por dinheiro. Sam já não tinha dúvidas a respeito. Esta foi à isca e a armadilha. E ela era a presa.

           — Parece surpresa. Na festa de Becca você deixou isso claro. Percebi imediatamente que você é aficionada por arte, como eu. Certamente preferirá um quadro a uma joia. Embora as mulheres adorem as quinquilharias que lhes compro.

           Era absurdo tentar convencê-lo de que aceitaria um colar Bulgari em troca de que a usasse.

           — Eu realmente falava sério quando disse que algumas garotas só querem se divertir. E sexo quente funciona para mim.

           Hemmer parecia divertido. Tocou seu queixo com o dedo e começou a deslizá-lo por seu pescoço. Sam ficou tensa, mas não se afastou.

           — E Maclean? Também funciona assim? Não acho que se mostre tão receptivo como você. Como é seu namorado, a propósito?

           A tensão de Sam aumentou.

           — Namorados são para adolescentes. Essa palavra nem sequer figura em meu vocabulário.

           — Que mulher inteligente — disse ele, desenhando uma linha invisível sobre seu peito, parando quando seu dedo estava entre seus seios. — Esperta, sexy e tão misteriosa... Tenho algo para você.

           Sam sabia que ele não falava de sexo, do mesmo modo que sabia que Maclean tinha razão: Hemmer era perigoso. Ignorava até que ponto, entretanto.

           — Como todos, não? — perguntou com ironia.

           — Não tenha medo de mim.

           — Eu deveria ter?

           — Você é uma das mulheres mais belas que eu já vi. E eu vi várias.

            — Eu adoro uma bajulação. São tão excitantes para uma garota...

           — Você não é uma garota qualquer Samantha. Leva uma vida perigosa. Há câmeras diante de meu edifício — sorriu. — Há câmeras por toda parte. Mas isso você já sabe, não é?

           Sam não pôde evitar olhar para o teto. Hemmer a viu destruir os sub-demônios com suas próprias mãos e sem ajuda. Ela teve um relance de surpresa e em seguida sentiu um calafrio. Hemmer não ganhou milhares de milhões por ser estúpido. Sem dúvida se informou bem sobre ela.

           Teria que continuar com o jogo.

           — Sim, o Big Brother está acostumado a observar.

           Os olhos de Hemmer brilharam.

           — Vou ajudá-la, minha pequena e perigosa Samantha. Vi o quanto precisa gozar. E eu posso te dar mais prazer. Mais do que jamais sonhou. Mais ainda que Ian Maclean.

           — Essa é uma afirmação diabólica — o que ele quis dizer agora?

           — Amanhã descobrirá exatamente a que me refiro — respondeu ele.

           Sam sentiu impulso de se afastar dele. Hemmer não afastou a mão de seu peito. Mas, sem saber o porquê, Sam não se moveu.

           — Então sou uma mulher afortunada.

           Ele parecia divertido de novo e Sam não gostou de sua expressão. Então, Hemmer colocou a mão no bolso de sua jaqueta e tirou um DVD.

           — Acredito que estou a ponto de mudar sua vida. Tenho a impressão de que nossa relação vai ser muito satisfatória — disse ao dar-lhe o disco. — Espero que isso seja mutuamente agradável para os dois... Muito mesmo.

           Sam não sabia o que continha aquele DVD, mas não restava nenhuma dúvida de que não ia gostar.

           — O mesmo digo eu — respondeu.

           Ele se dirigiu para a porta.

           — Espero os dois amanhã, às sete.

           Ele estava indo embora. Ao que parecia, já tinha o que queria. Mas o que era exatamente? Tinha colocado muita ênfase em que queria ver os dois.

           — Aprecie o vinho — disse Hemmer da porta.

           Sam ficou olhando a porta quando ele partiu. Logo correu a seu computador e colocou o DVD no leitor.

           Hemmer era perigoso, Maclean tinha razão. Sabia muito a respeito dela, não havia dúvida. Mas aquilo também tinha a ver com Maclean. Era uma espécie de armadilha. Hemmer tinha que saber que foi Maclean quem roubou a página. Queria recuperar o manuscrito e certamente também queria matar Maclean.

           Os gemidos orgásticos de uma mulher interromperam seus pensamentos.

           Quando ela se virou para a tela do computador, a primeira coisa que pensou foi que Hemmer deixou um filme pornô. Mas isso era absurdo.

           Então ela viu a si mesma.

           Sam ficou rígida imediatamente. Ela estava no auge do êxtase, agarrando-se a um homem como a um salva-vidas, completamente perdida no vendaval de seu clímax.

           E as costas do homem era um mosaico de cicatrizes...

 

            Nick Forrester estava zangado.

           Teve um dia péssimo.

           Olhava fixamente para a tela de seu computador. O hall da casa de Maclean em Park Avenue estava vazio. Nick foi passando de uma sala à outra, todas vazias, até que encontrou ao mordomo na cozinha. Um sujeito interessante, o mordomo. Maclean havia saído. Nick sabia por informações de seus agentes.

           Ele tinha uma casa enorme e repleta de aparelhos de última geração. A página roubada podia estar ali, mas Nick tinha o pressentimento de que ele a guardou em outra parte.

           Ele sorriu friamente para sim mesmo. Maclean estava na merda. Ele tinha a página. Nick a queria. Maclean, portanto, estava sendo vigiado as vinte e quatro horas do dia.

           E Nick sempre se dava bem.

           Bem, quase sempre.

           — Nick, está trabalhando?

           Ele estava discando o número de um dos dois agentes que tinha atribuído a Maclean. Mas esqueceu que tinha companhia e se surpreendeu por um instante.

           Virou-se. Nem sequer tentou recordar o nome da garota. Todo mundo sabia que gostava dos casos passageiros, mas todos se equivocavam em uma coisa: preferia que durassem três, quatro ou cinco noites, e não apenas uma. Era muito mais prático. Podia manter o interesse por uma semana inteira. Seu problema era que não podia permitir-se nenhum vínculo mental ou sentimental, porque seria fatal. Isso ele descobriu há muito tempo.

           Beleza sem cérebro, esse era seu lema. Mas a beleza só conseguia interessá-lo por uns dias. E assim que ele perdia o interesse, acabava.

           Nick olhou para a mulher que conheceu na noite anterior em um bar e de repente esqueceu seu mau humor. Ela era uma garota de programa e vestia unicamente um fio dental brilhante, saltos muito altos e uma camiseta muito pequena e justa, obviamente sem sutiã por baixo. Nick sentiu seu motor incendiar. Só havia passado uma noite com ela, então, em uma escala de um a dez, seu interesse continuava entre sete e oito. Assim que acabasse de trabalhar, certamente subiria até nove ou dez.

           — Só um momento, baby — disse. O trabalho sempre estava em primeiro lugar. Não que ele não gostasse de sexo. O sexo o enchia de energia. Seus sentidos sempre pareciam mais afiados depois, e se sentia mais forte, mais rápido, mais telepático. Fazia tempo que chegou à conclusão de que era uma espécie de dom dos deuses antigos.

           Ela se aproximou.

           — O que você disse que faz?

           — Eu dirijo um fundo de investimentos — ele tocou seu sedoso traseiro e pegou seu celular. Quando seu agente respondeu, disse asperamente:

     — Onde diabos esta Maclean?

           — Acaba de sair da casa de Rose. Estamos no tráfego, no centro da cidade.

           — Não o percam — disse Nick. Terminou a chamada bruscamente. Não gostava da ideia, mas teria que pôr microfones no loft de Sam, e possivelmente uma ou duas câmeras.

           A mulher parecia surpresa.

           — Tem certeza que não é um policial ou algo assim? — perguntou.

           Ele deu-lhe um sorriso.

           — Claro que sim, baby. O meu negócio é dinheiro — embora seu apartamento fosse um desastre. — Eu vou em seguida. Pode ir esquentando os lençóis?

Ela o rodeou com seus braços e passou os dedos por sua virilha. — Depressa — murmurou. — E, enquanto espero, estarei esquentando outra coisa, além dos lençóis.

           Antes que ela o soltasse, uma ideia ocorreu-lhe e ele começou a procurar na imensa base de dados da HCU. Suas entranhas diziam que ultimamente viu algo que podia ajudá-los a encontrar a página desaparecida. Deu algumas pistas a Big Mama: Rupert Hemmer, Ian Maclean, Aidan de Awe, o Duisean e Manhattan. Logo, de sobra, acrescentou Highlands (Terras Altas na Escócia) e Mestres do Tempo. Às vezes, o supercomputador encontrava por si só a peça perdida de um quebra-cabeças muito complexo. Então ele tinha a impressão de estar sendo jogado no escuro, mas e daí?

           Ele mandou instalar microfones na casa de Maclean em Park Avenue uma hora depois de descobrir que ele estava na lista de convidados do Rupert Hemmer; ou seja, no dia anterior pela manhã. Como diretor da HCU, nada nem ninguém escapava à sua atenção. Sua vida foi uma guerra contra o mal, seus agentes (que considerava como seus filhos) e a HCU, nessa ordem. Procurava revisar os dados que Big Mama o enviava constantemente e considerar todas as suas sinalizações, que chegavam a centenas diariamente, assim como se manter em dia com os informes de seus agentes e dos do resto do CDA, do Bureau (FBI), a polícia de Nova Iorque (NYPD) e a CIA quando as agências se propunham a cooperar com eles. Em qualquer caso, dormir era uma perda de tempo.

           Nick sabia que tinha certa fama dentro da agência. Seus agentes o temiam e o respeitavam, e isso era uma coisa boa. Ele era Deus e rei da HCU, e ali sua palavra era lei. Os agentes que o entendiam se aposentariam algum dia com um bom plano de pensão.

           No caso de chegarem à idade da aposentadoria, claro.

           Nick imediatamente sentiu uma dor de cabeça chegando. Ele esfregou as têmporas. Não podia permitir uma enxaqueca agora. Ou, pior ainda, uma daquelas malditas visões do passado.

           Haviam começado há seis meses, quando Macleod chegou à cidade. As primeiras eram boas, e tão claras como décadas atrás. Não era nada bom recordar o passado. Nick enterrou tudo (e todos) havia muito, muito tempo.

           Mas alguma coisa era bom recordar. Havia lembranças que queimavam suas vísceras e proporcionavam uma energia que nenhum mortal deveria ter. Nas várias décadas dirigindo a HCU, mais de cinquenta e três agentes morreram em serviço, outros cem ficaram gravemente feridos e doze se perderam no tempo.

           E não queria pensar nos danos colaterais: nas famílias que sofreram direta ou indiretamente por causa da guerra.

           Considerava culpa sua cada morte, cada ferido grave, cada desaparecimento. Por isso assistia a todos os funerais, visitava cada quarto de hospital e sempre ia, em pessoa, em busca dos desaparecidos em serviço.

           Odiava e temia os hospitais e os enterros. Mas não havia nada pior que perder um agente em uma época passada. Aquela incerteza.         

     Começou a ver rostos de homens e mulheres que o olhavam com recriminação e teve que fazer um esforço para controlar sua respiração. A última agente que desapareceu foi Brie Rose. Mas ele a encontrou. Embora seu arquivo continuasse levando o selo de “desaparecida em serviço” no MIT, Nick sabia que estava bem e que vivia com Aidan de Awe.

           Ele não tinha que se esforçar muito para chegar à conclusão de que convinha encarregar Sam Rose de vigiar Maclean, o filho de Aidan. Maclean podia ser filho de um poderoso Mestre, mas não era um Mestre. Seu arquivo tinha cinco centímetros de espessura e estava cheio de alertas relativos à sua conduta suspeita e ambígua. Maclean agia por conta própria. Não foi à casa de Rupert Hemmer para tomar chá.

           Nick procurava respeitar a intimidade alheia, mas não era fácil fazer isso, tendo tanta facilidade e fluência para ler a mente de outros, não importasse o idioma. No trabalho, entretanto, era diferente. Na HCU ele lia mentes a seu desejo e quando gostava, porque em primeiro lugar estava ganhar a guerra. Na HCU ninguém tinha direito à intimidade, do mesmo modo que ninguém tinha direito a uma vida privada.

           Porque estavam perdendo a guerra, era o grande momento.

           Nick, entretanto, não queria pensar nas estatísticas. Não queria pensar que aquilo era de verdade uma guerra. O mal se infiltrou em todas as organizações terroristas do planeta. Os terroristas que não eram demônios, estavam possessos ou tinham sangue mestiço.

           Mas não se tratava só disso e Nick sabia. O mal se infiltrou também nos governos. Alguns dos ditadores mais implacáveis do mundo eram demônios ou sub-demônios. Irã utilizaria realmente a bomba atômica quando a tivesse. O mal tinha como único propósito destruir o mundo gradativamente. Havia demônios nos organismos de espionagem, nos ministérios de Defesa, nas forças policiais, nos níveis mais baixos e nos mais altos. Nick sabia que o Pentágono tinha uma investigação aberta porque o CDA chegou à conclusão de que havia um demônio entre os pesos pesados do Departamento de Estado. O problema era descobrir quem era. Estava claro que ocupava um posto tão alto que contava com a confiança do presidente.

           Chegaria o dia em que o próprio presidente dos Estados Unidos seria um deles, e Nick sabia. Essa era uma ideia aterrorizante.

           A guerra era de tal envergadura que parecia absurdo dedicar-se a esses joguinhos dia após dia, matando um demônio aqui e outro acolá, ou eliminando um ou outro bando de sub-demônios. Mas o mal tinha que ser contido em todas as frentes. E Nick sabia que o poder da poderosa página do Duisean não podia cair nas mãos de seus inimigos.

           Por isso Maclean ia perder.

           Sam Rose era uma de suas melhores agentes. Ele não a treinou. Inferno ele nem sequer esteve com ela por muito tempo. Mas seu destino era matar. Nick sabia. No momento em que a viu sabia que tinha que tê-la. E não se arrependeu.

           Lamentava, entretanto, tê-la colocado no caso Maclean.

           Sabia, graças à sua telepatia, que ela se sentia atraída por ele. Mas também sabia que Maclean a deixava furiosa... e sabia o porquê.  Estava a par de sua visita à Escócia uns meses antes. Sam queria que Maclean a ajudasse a viajar ao passado para encontrar sua irmã, ele se negou, e Sam ficou furiosa com ele.

           Mas Sam Rose não só era a melhor agente que havia tido; também era dessas mulheres capazes de fazer enlouquecer um homem de desejo. Nick tinha encarregado Sam Rose de vigiar Maclean porque estava 110% seguro de que podia derrotá-lo. Agora, entretanto, começava a ter suas dúvidas. Maclean estava brincando com ela. Parecia ser ele quem controlava a situação. E Nick não queria que uma de suas garotas acabasse morta.

           Foi um dia horrível porque seu melhor agente fez besteira e Maclean roubou a maldita página diante de seus narizes. Ele entrou tranquilamente na casa de Hemmer nesta manhã e desativou não só os alarmes e as fechaduras, como também driblou a equipe de vigilância, aparentemente num abrir e fechar de olhos. Depois, Sam o perdeu naquela ridícula perseguição de carro e agora não sabiam onde diabos estava a página.

           Seus agentes haviam sondado todos os negociantes e galerias de arte entre Montauk e Allentown. Então era hora de ampliar a busca. A página precisava de cuidados sistemáticos. Não podia estar em qualquer parte. Ou podia?

           E esse era um dos problemas. Segundo os peritos da Sotheby’s, era necessário uma atmosfera cuidadosamente controlada. Mas Nick não estava tão seguro. Afinal de contas, a página sobreviveu durante séculos... ou poderia ter sobrevivido, possivelmente, a uma viagem no tempo à velocidade da luz. Nick não sabia. E, se podia sobreviver ao salto no tempo, Maclean poderia havê-la guardado em qualquer lugar e em qualquer época.

           Nick decidiu que era hora de Ian e ele terem uma conversa séria.

           Seu computador apitou três vezes.

           Nick se inclinou para ele. O alerta indicava que ele recebeu um e-mail de Big Mama. Ele não podia acreditar, mas o supercomputador respondeu sua pergunta. A mensagem dizia: Coincidência entre Aidan de Awe e Rupert Hemmer. Trazia um documento anexo. Nick não conseguia imaginar que relação podia haver entre o Mestre e o multimilionário. Abriu o arquivo.

           Era um artigo de jornal com uma fotografia, datado vinte e oito anos atrás. Rupert Hemmer aparecia em uma tribuna, apertando a mão de um homem que parecia extraordinariamente familiar. Nick estava certo de conhecê-lo, embora nunca tivessem se visto. A legenda identificava ambos: o desconhecido era o magnata internacional Robert Moran, que residia em Nova Iorque.

           Começaram a soar sinos de alarme. Nick procurou Moran na base de dados da HCU. A resposta foi imediata.

           Robert Moran era nada menos que o demônio que havia aterrorizado o mundo durante séculos, o demônio a quem antigamente se acreditava imortal: o terrível e legendário Moray.

          

            Ela estava na cama com Ian Maclean. Sam estava tão chocada que não se moveu. Aquilo era impossível.

           Ian a agarrava pela cintura, a sujeitava e a beijava cada vez mais embaixo, sem pressa. Ela gemia, retorcia-se sensualmente. Ele deslizava o joelho entre suas coxas, empurrava para cima com força e parava para olhá-la. E ele sorria...

           — Você é um bastardo — dizia ela, mas também sorria.

           Sam apertou o botão de pausa.

           Que demônios era aquilo?

           Respirou fundo, agarrou-se na borda da mesa, tremendo. Estava na cama com Maclean. Deixou escapar o ar. Não. Aquilo era falso. Tinha que ser. Ela nunca esteve na cama com Maclean. Nunca esteve naquele quarto.

                       Mas ela não podia respirar normalmente. Estava com a boca seca. Não deixava de vê-lo ali, aos pés da cama, entre suas pernas, excitado. E tampouco conseguia esquecer aquele anel.

           Maclean nunca sorriu assim para ela.

           Sam olhou para a tela e molhou os lábios.

           Aquele era Maclean, não havia dúvida disso. Ela disse a si mesma que não devia apertar o botão play do vídeo, mas mesmo assim o fez.

           De repente, Maclean deslizava sobre ela e a penetrava lentamente, sem deixar de olhá-la. Ela sustentava o seu olhar, ofegante, até que ela explodiu. Enquanto ela começava a gemer e a soluçar, e parava e murmurava algo.

           Sam queria apertar o botão de parar. Queria de verdade. Tentava respirar, olhando indefesa o seu corpo magro, musculoso, duro, esculpido e delineado, úmido e escorregadio. Maclean estava brincando com ela e provocando-a, e ela estava indefesa. Ele dava e ela tomava. Ele mandava. Ela não.

           Sam se levantou de um salto, dando as costas para a tela. Seus gemidos guturais a seguiram, de repente ouviu Maclean ofegar. Virou-se. Agora estava em cima dele e sorria, triunfante. Mas em seu sorriso havia algo mais. Sam não sabia o que significava aquele sorriso. E o que era pior ainda: ele a olhava, ofegando de prazer, e seus olhos sustentavam o olhar.

           — Venha — sussurrava ela.

           Ele fechava as pálpebras com um gemido...

           Sam pulsou com força o botão de parar.

           Continuava sem conseguir respirar. E, para cúmulo, ardia de desejo. Se Maclean tivesse entrado nesse momento em seu loft, ela estaria sobre ele. Entrou na cozinha e jogou água no rosto. Quando conseguiu respirar com mais calma, começou a pensar. Como era possível que fossem eles? Eles não dormiram juntos. Ainda não. Se alguma vez se deitassem, o sexo seria violento e áspero. Não pareceriam dois amantes apaixonados.

           Sua mente clareou por fim. Aquela mulher era um dublê dela? Não acreditava nisso. Mas com a maquiagem e o corte de cabelo adequado, não seria tão difícil encontrar um bom dublê.

       Especialmente porque a câmera não a enfocava de perto, em nenhum momento, embora os planos mudassem continuamente. Sam calculou que havia várias câmeras no quarto, e que alguém havia editado as fitas.

           De repente se sentiu doente. Aquela mulher não era sua dublê. Aquele era seu rosto, sua voz. E aquele homem também era Maclean. Sua boca ficou seca de novo ao recordar aquele rosto e aquele corpo muito belo... e aquele reluzente anel de aço.

           Fechou os olhos, trêmula. As imagens, carregadas de erotismo, repetiam-se uma e outra vez dentro de sua cabeça. Tinha que pensar! Sam aproximou-se do balcão da cozinha para servir-se de uma vodca dupla.

           — Bom trabalho, Rose — disse a si mesma com amargura. — É a segunda vez que ele ganha. Idiota! — referindo-se a si mesma.

           Maclean a excitou estando com outra mulher, o que era quase inexplicável. E também a excitava quando discutiam, quando se comportava com exasperada petulância. Ele a excitou durante aquela perseguição suicida, e depois ao vê-lo chorar de joelhos. Aquela maldita atração estava presente inclusive quando ele ficou furioso com ela por bisbilhotar em seu PC e intrometer-se em sua vida. E, agora, maldita seja, ele a excitava em uma gravação de vídeo.

           — Mantenha a objetividade, maldição — disse a si mesma. A gravação tinha que vir do futuro, disse a si mesma. E foi Hemmer quem a entregou.

           Ficou muito quieta. Aquela ideia quase conseguiu sufocar o desejo que palpitava dentro dela. Sabia que Hemmer os tinha observou e que apreciou fazer isso.

           Agora ela entendeu o que ele pretendia. Estava claro que pretendia usá-la contra Ian. Pretendia chantageá-la. Por fim conseguiu dominar sua ansiedade. A guerra, como sempre, estava em primeiro lugar. — Você procurou isso — rosnou.

          

   Sua vida era uma luta constante por sobrevivência. Não tinha família, amigos, nem aliados. Todos eram seus inimigos... e agora seus inimigos conheciam seus segredos mais íntimos.

           Sentia raiva, mas, sobre tudo, ele estava horrorizado.

           Gerard foi ao seu encontro quando entrou no vestíbulo de sua casa em Park Avenue.

           — Quer que lhe traga algo, senhor?

           Ian estava tão atordoado que mal o ouviu. Ele estava tão enojado. Eles tinham um arquivo sobre ele. Sabiam que ele passou anos em cativeiro.

           Que mais sabiam?

           Os policiais de Park Avenue estariam rindo dele naquele mesmo instante? Ela estaria rindo dele? Estava com dificuldade de respirar. Será que eles sabiam o que sofreu aquele menino? O que dizia aquele dossiê?

           — Abra as janelas e ligue o ar — disse secamente, puxando o decote em V do pulôver de caxemira, como se ele estivesse comprimindo a passagem de ar para os seus pulmões. Suava como se tivesse corrido pelas ruas da cidade.

                   

     Gerard hesitou.

           — Sir, lá fora são quase 32° Celsius.

           Ian não podia respirar. Ofegava como um animal assustado.

           — Ponha os ventiladores no máximo — replicou.

           Gerard compreendeu finalmente.

           — Sim, Sir. E também vou abrir as janelas.

           Maclean correu para o elevador, mas sabia que não poderia entrar enquanto aquelas imagens continuassem tumultuando sua cabeça. “Você viveu sessenta e seis anos no inferno. E isso faz com que a morte seja aceitável”.

           Ela havia descoberto a verdade tão depressa! Fechou os olhos e apoiou a cabeça na parede, junto ao elevador, os joelhos, tremendo como uma folha. Maldita Sam por atrever-se a compreendê-lo, por ousar desvendar seus segredos! O que mais ela sabia? De repente, lembrou-se do labirinto.

           Ele corria e corria, ansioso por ver-se livre. Corria até se chocar com os muros e os becos sem saída do labirinto, infinito e traiçoeiro. E ao dobrar uma curva havia um demônio aguardando-o, um demônio loiro e belo, humano na aparência... ou um monstro com presas e garras que babava de antecipação...

           Ian levou as mãos à cabeça, gemendo. O monge desenhou o labirinto no primeiro ano novo que passaram juntos e aquilo se transformou em uma tradição. Prometiam-lhe a liberdade se conseguisse encontrar a saída. Era o jogo mais cruel de todos, porque Ian nunca encontrava a saída. Só encontrava demônios e bestas ansiosos por colocar as mãos nele. O jogo durava dias, até semanas. E quando acabava ele estava tão doente que o monge levava um Curandeiro branco para que o curasse.

           Fazia muito tempo que não pensava no labirinto, e desejava não lembrar. Era uma de suas piores recordações, a mais aterradora de todas. Mesmo agora o fazia adoecer de medo. Tinha a impressão de voltar a achar-se nele, só que agora o prêmio não era sua liberdade. Se conseguisse deixar para trás seus corredores e cantos, conseguiria preservar seus segredos.

           Como era possível que tivessem um arquivo sobre ele?

           Ela o viu?

           Ele explodiria, se não conseguia dominar-se. E ele sabia o que o esperava do outro lado, se explodisse. Suas expressões ficariam em pedaços e só restariam as lembranças, abertos como feridas sangrentas, feridas que nenhum cirurgião podia estancar e que o levariam à loucura.

           Tentou respirar e não conseguiu. Não havia ar! O medo se apoderou dele. Há cinco anos e meio que não sofria um autêntico ataque de ansiedade.

           — Acalme-se — disse a si mesmo em voz alta. — Acalme-se e pense.

           Será que eles sabiam sobre a jaula? Sabiam do labirinto? E dos outros Inocentes? Será que sabiam das visitas de Moray?

           Será que eles sabiam que nos primeiros meses foi um covarde total? Que ele chorou de terror e soluçou por misericórdia? Eles sabiam que ele foi transformado em um escravo condescendente no final?

           O que eles sabiam?

           O que ela sabia?

           Ele ainda não conseguia respirar. Não podia entrar no elevador porque estava tremendo e tinha os olhos úmidos. Mas havia escadas em todos os andares, assegurou-se disso. Se conseguisse que seus olhos clareassem, a única coisa que tinha que fazer era percorrer o corredor e encontraria a escada. Mas então o que?

                       — Sir...

           Sentiu uma toalha gelada na testa. Gerard sabia. Sabia porque seu pai o havia enviado para cuidar dele, embora na época não soubesse disso. Seu maldito pai queria que ao seu lado houvesse alguém que conhecesse seus segredos, alguém que poderia e iria cuidar dele.

           Gerard falou como se nada estivesse acontecendo. Colocou o pano sobre a testa como se fosse uma enfermeira, não um mordomo. Ian viu de repente Sam com seu vestido apertado e manchado de sangue, fingindo que não o viu apunhalar John repetidamente, como um louco.

           “Lembre-me de não te deixar zangado”.

           Ian quase sorriu. Sam deveria ter fugido apavorada. Mas não demonstrou o menor medo. Claro que ela não tinha medo de nada nem de ninguém. Era descuidada e corajosa.

           Eles foram rivais desde o início. Tinha que se lembrar disso. Respirou fundo e abriu os olhos, segurando a toalha contra a testa agora. Estranhamente ficou mais calmo. Continuava vendo Sam com aquele vestido e seu rosto inexpressivo. Continuava ouvindo aquela voz tranquila e irônica. Sam deveria estar horrível, um desastre depois daquela sangrenta confusão... entretanto, estava fantástica.

           Gerard sustentava na mão o frasco pequeno com sua medicação prescrita. Ian balançou a cabeça tristemente e Gerard deu-lhe duas pequenas pílulas brancas. Quando estava assim, tão mal, era melhor que um golpe ou uma panelada. Engoliu os calmantes sem água. Gerard era indispensável e discreto.

           — Obrigado.

            — Vai se sentir melhor em breve, sir, vou trazer-lhe uma bandeja com um bom vinho tinto e algo de lanche.

           Ian não tinha fome. A comida não o interessava, mas Gerard sempre insistia em que comesse algo. Mas o vinho e o Ativan eram uma grande combinação. Quando estivesse suficientemente relaxado, sentaria e se forçaria a comer. Talvez inclusive conseguisse desfrutar da comida de Louis.

           Quando Gerard saiu, olhou para a porta do elevador. Seu controle era tênue, mas se agarrava à lembrança de Sam com seu vestido ensanguentado, fingindo indiferença à sua avaria. Admirava sua força, tinha que reconhecer isso.

           Continuava suando. Sentia os nervos à flor de pele, tirou o pulôver e pressionou o botão. A porta se abriu em seguida e ele olhou o seu interior forrado de madeira. Respirou fundo. Cada vez que entrava em um elevador, tinha que fazer um esforço mental para sobrepor-se às suas lembranças. Mas ele havia aprendido vinte e cinco anos atrás como forçar-se a entrar e a agir como todo mundo em um elevador. Era um teste fazer isso agora.

           Amaldiçoou a si mesmo. Não queria ser um covarde que sofria ataques de ansiedade e claustrofobia. Amaldiçoou Sam por conhecer seus segredos e por ser tão condenadamente atraente ele iria embora e nunca olharia para trás. Ela descobriria que ele sofria de claustrofobia em pouco tempo, e acrescentaria aquilo a sua lista de debilidades.

           Apertando os dentes, ele entrou no elevador e olhou para o botão que fechava a porta. Na noite anterior, no andar de cima foi fácil evitar o elevador. Sam não suspeitou de nada. Ninguém saberia, se ele saísse e subisse pelas escadas. Mas ele saberia.

           Era apenas um elevador, lembrou-se com firmeza, não uma torre pequena, escura e sem janelas, nenhuma cela ainda menor e nem um fosso cavado na terra. Odiava os espaços pequenos e fechados. Tinha medo deles.

           Apertou o maldito botão.

           A porta se fechou.

           Ian se esforçou para respirar. O suor escorria pelo rosto e o corpo, agarrou-se à barra do elevador e apertou os dentes com força. Sam podia ser sua nova conquista, mas também era sua inimiga, disse a si mesmo. Aquilo o fazia querer sobreviver. Sam o fazia querer sobreviver, para poder tê-la em sua cama, para que ele pudesse finalmente ser forte, dominante, o que controlava a situação.

           O elevador parou suavemente. A porta se abriu.

           Ian saiu, fazendo um esforço para não virar e correr. Entrou na grande biblioteca cheia de livros, de obras de arte e de antiguidades. O pior já passou. Superou o ataque de ansiedade e superou suas lembranças e ao conhecimento daquele maldito dossiê sobre sua vida.

           Fechou as portas e se virou. Em algum canto de sua mente persistia ainda a imagem imprecisa de um menino pequeno em um labirinto. Ele segurou firme o pano frio sobre a testa. Já não estava furioso, nem assustado. Pensou de novo em Sam, primeiro com seu vestido manchado de sangue e em seguida como ele a viu uma hora antes, com seus short minúsculo e sua camiseta, ao contar-lhe sobre o arquivo. Respirou fundo enquanto o remédio começava a fazer efeito. Trataria do assunto do arquivo quando falasse com Forrester, o chefe de Sam. Agora seu corpo vibrava. À medida que o impulso sexual crescia, ele relaxou ainda mais, agarrou-se à imagem de Sam com seus short minúsculos e sua camiseta, sem nada por baixo.

           As outras memórias desapareceram também. Gerard bateu na porta e lançou- lhe um olhar ao entrar. Levava uma bandeja com um prato coberto e uma taça de vinho.

           — Precisa de algo mais? — perguntou como se nada fora do comum tivesse acontecido. Deixou a bandeja sobre a mesa do século XVIII.

           Ian balançou a cabeça.

           — Obrigado — disse sem olhá-lo.

           Depois que Gerard saiu, sentou-se no sofá e tomou a taça de vinho. Os jeans apertavam de repente. Sam continuava ocupando sua mente. E o sexo era sempre a melhor saída.

           Não se sentiu culpado ao usar sua telepatia para encontrá-la. Aquele poder começou a manifestar-se quando o capturaram. Pensava em seu pai e imediatamente o via em pleno dia, entregue aos seus afazeres. Tinha tentado comunicar-se com ele com todas suas forças e de vez em quando Aidan o via, mas ele acreditava que Ian era uma aparição.

           Naquele tempo era um menino e seus poderes telepáticos iam e vinham. Agora, ao contrário, dominava-os por completo. Inclusive o utilizou várias vezes na Escócia para espiar Sam. A espiou com seus amantes algumas vezes, e desfrutou de cada instante.

          

       Ela estava sentada no sofá de seu loft, ainda com seus short curto, mas com outra camiseta. O coração de Ian acelerou um pouco. Sorriu devagar e pegou seu celular.

           Fazia tempo que tinha seus números de telefone. Discou para sua casa. Assim que ela respondeu, notou sua voz tensa, quase sem fôlego. Sua própria tensão, já impossível, aumentou.

           — Não pode dormir?

           — Maclean.

           Falava com voz pastosa, como a dele.

           — Eu também não posso dormir Sam.

           Ela parecia surpresa.

           — Vamos ter sexo por telefone?

           Ele esboçou um sorriso.

           — Eu não me incomodaria. Porque está tão quente?

           Ela vacilou.

           — Hemmer esteve aqui. Acaba de sair.

           Por um momento Ian ficou perplexo. Logo se levantou furioso.

— E agora também ele fica para brincar?

— Hemmer é um filho de cadela muito perigoso — respondeu ela. — Você tinha razão, ele vai ser um problema.

           Ian pensava rapidamente. Sam não tinha dormiu com Hemmer, estava certo disso. Tentou ler seu pensamento e só sentiu sua raiva. Hemmer a havia deixado furiosa.

           — O que Hemmer queria? Além de sexo?

           Houve outra pausa.

           — Você já sabe o que ele quer. A mim... a página e, talvez, vingança contra você. Já pensou nisso, Maclean?

       Ele entreabriu os olhos, cada vez mais zangado.

            — E o que isso importa para você?

            — Importa-me porque você tem a página e nós a queremos — replicou ela.— Puxa, esta chamada está muito excitante.

           — Por que trocou de roupa?

           Houve um momento de surpreso silêncio do outro lado da linha.

            — Como você sabe que eu troquei de roupa?

            — Porque antes você usava uma camiseta branca e agora a está com uma vermelha — grunhiu ele.

           — Tem câmeras em minha casa?

           — Eu não preciso de câmeras, nem microfones, Sam — respondeu ele suavemente.

           Sam respirou fundo.

           — Certo, eu esqueci. Você tem um cérebro impressionante, capaz de desativar sistemas de segurança e pode me ver do outro extremo de Manhattan?

           — Eu posso vê-la da Escócia, se quiser.

           Ela ficou calada.

           Ian sorriu, desfrutando daquela pequena vitória.

           — Eu disse que você se mantivesse afastada dele. Devia ter me chamado. Será que você quer jogar com ele, Sam?

           — Aqui está uma notícia rápida... Eu não aceito ordens suas. E o que acha? Claro que joguei Maclean. O que mais eu faria?

           Será que ela escutou uma só palavra do que ele disse?

            — A partir de agora, eu me encarrego do Hemmer — não pôde conter-se. — Ele a beijou?

— Oh, sim, é óbvio. Hemmer é o amante ideal, tão romântico e sexy... Eu não podia esperar para ter sua língua na minha garganta.

           Ian compreendeu então que Hemmer não tocou nela, sentiu-se aliviado, e isso o surpreendeu.

           — Você está brincando com fogo, Maclean. Você roubou uma propriedade dele. Ele quer recuperá-la. E nós também queremos a página. Acredito que você deveria considerar alguma saída estratégica. Como entregar a página, por exemplo.

           Ian sorriu lentamente.

           — Sexo em troca de duzentos milhões de dólares?

           Ela deixou escapar o ar.

           — Você disse que não.

           — Começo a gostar da ideia.

           Sam engasgou.

           — Está de brincadeira?

           Se ele lhe desse a página, poderia passar uns dias com ela e depois poderia afastar-se de tudo aquilo. Na realidade, não precisava de dinheiro. Haviam outras obras de arte que podia roubar e vender. E não queria ter entendimentos com o mal e, principalmente não queria recordar tão vivamente seu passado. Por alguma razão, desde o dia anterior se sentia a beira de um precipício, prestes a se ver empurrado de volta ao passado.

           E isso era inaceitável.

           Mas havia um problema. Ele não tinha aonde ir, além de sua mansão em Loch Awe.

           — Você está bem?

           Ian se sobressaltou. Ele ficou perdido em seus pensamentos e o que estava pensando era desanimador. Claro que tinha outros lugares aonde ir. Ele venderia a casa de Park Avenue, compraria casas em Nice, em Sidney, em Mônaco.

           — Vem tomar uma taça de vinho comigo — disse de repente.

           — Vou para cama... sozinha.

           —Só está atrasando o inevitável. Além disso, o que vai fazer quando sonhar comigo?

            — Você disse que não faríamos sexo por telefone.

            Ele sorriu.

            — E se eu for à sua casa? Você pode ir para a cama sozinha. Eu me limitarei a olhar.

            Sam ficou calada. Ian sabia o que ela estava pensando.

            Depois ela disse:

     — Não acredito que você possa manter suas mãos quietas se eu fizer o que os dois sabemos que quero fazer.

           — Nada de sexo por telefone — respondeu ele suavemente.

           — E se disser que nos convidaram para uma festa amanhã? É uma festa especial. Na casa de Hemmer.

            Ian ficou alerta.

     — Não há razão para voltar ali, Sam.

            — Sim, há. Há algo maligno nesse cofre. Se não quiser ir comigo, levarei alguém da agência.

            — Isso é uma ameaça? — Ian estava muito sério. Não permitiria que Sam fosse sem ele.

            — Não, é um fato. Hemmer quer que lhe ofereçamos um espetáculo só para adultos.

            Ian não teve que lhe ler a mente. Seu interesse foi despertado imediatamente e uma nova tensão começou.

           — Você concordou?

           — Você se importa?

           — Nunca me incomodou ter público — mentiu. Odiava isso. Teve tantas vezes...

            — Eu achei que seria louco. Você vai me ter na cama. Hemmer nos espera às sete. — Vou te pegar às seis e meia.

            — O que está acontecendo, Maclean? — perguntou ela, muito séria. —   Sério. Você está estranho.

           — Não há nada de errado. Passei uma tarde muito agradável, boa noite, Sam — ficou olhando seu Blackberry severamente.

           Sam Rose era muito astuta. Ian sabia que devia livrar-se da página e esquecer tudo aquilo enquanto ainda havia tempo. Antes que seu segredo viesse a público.

           E ele também devia se livrar dela. Mas ele sabia que não faria isso. Ainda não. Não, até que tivesse acabado o que começou naquele dia em Oban, na Escócia.

 

           Na tarde seguinte, Sam estava entrando em seu escritório quando a ajudante de Nick barrou sua passagem. Chegava com uma hora de atraso: eram quase quatro da tarde. Mas ela passou quase toda a noite pensando em Maclean, em Hemmer, na página perdida e no DVD, e depois passou metade do dia discutindo com sua companhia de seguros sobre sua reclamação por causa do sinistro do carro. Estava de mau humor e, ao ver Jan, piorou. Não suportava aquela mulher e o sentimento era mútuo.

           Todos achavam que elas se odiavam porque ambas eram muito belas, embora tão diferentes como a noite e o dia. Jan era uma versão moderna de Marilyn Monroe, toda sorrisos suaves e curvas exuberantes, com o cabelo loiro e cabelos nos ombros, grandes olhos castanhos, boca arqueada e um olhar sedutor que nela era tão natural como respirar. Sua aparência de gatinha sexy escondia, entretanto, um intelecto afiado como uma navalha e uma biografia incomum. Ela foi agente secreto, uma das melhores que Nick já teve. Sam ouviu Nick contar isso muitas vezes e a irritava, ainda mais que a atitude de Jan de bater as pestanas cada vez que um homem passava por seu lado.

           Além disso, Jan e Nick eram muito amigos, ninguém sabia há quanto tempo. Nick era uma lenda na agência, diziam que esteve a ponto de dar a vida por seus agentes muitas vezes e que matou alguns dos piores demônios da história, inclusive na época dos romanos. Jan também tinha um ponto de lenda. Esteve ao lado do Nick nos piores momentos e corria o rumor de que seu prometido morreu lutando com um gladiador no Coliseu de Roma.

           Dizia-se que Jan podia responder a Nick sem que isso tivesse consequências, opinasse ou oferecesse conselho sem que ele pedisse, não importando quem estivesse presente. E, o que era mais importante, parecia saber tudo o que Nick sabia. Estava claro que, além de ser sua secretária, era sua amiga e confidente. Em relação à verdadeira índole de sua relação, havia opiniões para todos os gostos.

           Em qualquer caso, Jan tinha um relacionamento particular com o chefe, e recebia um tratamento especial por causa disso. Sam a odiou instantaneamente. E o mesmo podia se dizer de Jan.

           No ano anterior, Nick levou Jan ao passado para procurar uma bruxa demoníaca que perseguia Tabby. Nick sabia quanto Sam desejava ir. Aquilo foi à gota d’água. Jan poderia deitar-se na Hudson Street, na frente de um rolo compressor e morrer por ela, mas Sam nunca iria deixar o ano passado no passado. Sam jamais perdoaria Jan.

           Agora Jan estava diante da porta de seu escritório, com um colante vestido azul claro sem mangas e saltos altos, e nem sequer se incomodava em sorrir. Sam, a encarou, vestindo sua minissaia de vaqueira de costume, camiseta de alcinhas e botas de cano alto.

           — Você está no meu caminho — disse.

           — Deitou tarde ontem à noite? —perguntou Jan com excessiva inocência.

           — Eu sempre me deito tarde — Sam lhe sorriu. Depois acrescentou: — Eu sou uma Matadora, não uma secretária, lembra?

           Jan ignorou.

           — Esteve doente ontem? — perguntou, zombando. — Você não chamou, mas sabemos que esteve no Five (Cinco) — sorriu. — Muita diversão e jogos na metade de Manhattan com Senhor Limpo[5]? Ops, quero dizer, Sr. baixo e sujo[6].

Ela sorriu. Sam compreendeu que ela viu o vídeo da outra noite.

           — Está com ciúmes?

           Jan riu verdadeiramente.

           — Eu não gosto dos meninos maus, Sam.

           — Eu esqueci. Você vive como uma freira.

           — Algumas de nós podem controlar a libido. Algumas preferem sentir respeito por si mesmas, a deitarem com qualquer um que esteja disponível.

           — E algumas de nós só querem se divertir — Sam passou do seu lado dando-lhe um empurrão. Seu perfume era suave e doce, como sua aparência. Sam sentiu vontade de vomitar.

           — Também se divertiu ontem à noite?

           Sam deduziu que Jan sabia que Maclean foi ao seu loft. Mas era lógico que sabia, Maclean estava sendo vigiado. Sua mente desviou instantaneamente para aquele encontro para o DVD e seu telefonema em seguida.

           — O que foi? Chateada porque Maclean fugiu da Super Sam?

           — Puxa, você se rebaixou à área pessoal? — Sam se aproximou de sua mesa. Ela nunca entenderia por que os homens ficavam loucos por Jan. Certamente porque parecia uma garota de página central de revista masculina, mas era uma dissimulada e jamais se envolvia com alguém. Jan era uma espécie de fantasia masculina moralmente correta. Corria o rumor de que ainda chorava a morte de seu noivo.

           Jan continuou rebolando os quadris.

           — Nick está muito irritado — parecia satisfeita.

           Sam lançou sua bolsa e sua maleta no pequeno sofá que havia junto à parede, sob várias estantes.

— Nick sempre está irritado.

— Está zangado com você — Jan sorriu. — Por várias questões. Você não relatou nada para ele. Ontem deixou uma esteira de destruição pelo centro da cidade, que a CDA terá que pagar. Maclean fugiu e... ops! Te roubou a página. Nick quer vê-la imediatamente — saiu balançando o traseiro.

           Sam teria batido a porta, mas Kit se aproximou. Parecia desconfortável. Sam olhou para ela.

           — Uma das duas tem que ir embora.

           — Na realidade, é boa pessoa.

           — Não se atreva a se tornar amiga dela. Tomaria isso como uma traição pessoal.

            — Ok, era só um comentário. Você está bem? Sobreviveu ao Maclean? —perguntou Kit, entrando no escritório.

            — Pior. Sobrevivi a Rupert Hemmer, que passou na minha casa. Foi me oferecer aliança contra Maclean.

           Kit se sobressaltou.

           — E você vai fazer esse jogo?

           — Sim, vou jogar — Sam se aproximou de sua bolsa e entregou-lhe o DVD. — Sei que posso confiar em você. Descubra se isto é autêntico ou uma montagem. Mas não deixe que ninguém o veja. Eu não poderia suportar isso, principalmente depois dos vídeos da casa de Maclean em Park Avenue.

           — O que é?

                       — Um filme pornô. De Maclean e eu — falava com despreocupação, mas estava tensa. Seu corpo se alterava apenas pensando nele e na gravação.

           Kit a olhou com surpresa e corou.

           — Não dormi com ele, Kit. Mas Hemmer pretende me chantagear com isso, então me ajudaria saber se isso é uma farsa ou se tem origem no futuro.

           — Está bem. Procurarei um consultor para que o analise — Kit parecia preocupada.

           Sam a agarrou pelos ombros.

           — Não se preocupe. Qual a pior coisa que ele pode fazer? Colocá-lo no YouTube? Isso eu posso suportar — ela falava sério. Preferia deixar que Hemmer fizesse o que quisesse com a gravação antes de ceder à sua chantagem. Naturalmente, o melhor seria que a gravação desaparecesse. Sam se virou para sair, mas Kit a agarrou pelo braço.

           — A propósito, ligou um vendedor da Mercedes. Pode buscar seu carro novo hoje mesmo, a qualquer hora, na concessionária de Lower East Side.

           — O que? — perguntou Sam.

           Kit encolheu os ombros.

           — Eu sou apenas a mensageira. Ele disse que havia mandado um e-mail, conforme as instruções do senhor Maclean.

           Sam se aproximou rapidamente de sua mesa, bateu em algumas teclas e abriu seu e-mail. Estava atônita.

           — Ele me comprou um carro — disse. — O desgraçado me comprou um SL 500 conversível todo equipado!

           — Uau! — disse Kit.

           Maclean devia isso a ela, mas Sam não acreditava que fosse cumprir com sua obrigação. E, além disso, devia-lhe um Lexus, não um Mercedes de cem mil dólares. Seu seguro pagaria quase por completo o carro novo, ou a agência pagaria. Mas Ian comprou o conversível para ela de boa. E o carro estava à sua disposição.

           — Maclean é louco.

           — Você não deveria aceitá-lo. Há um conflito de interesses. Mas que presente! Talvez ele esteja arrependido pelo que aconteceu ontem. Talvez ele goste de você de verdade, Sam.

           — Você está brincando? — perguntou Sam, surpresa. — Isso não é mais que outra provocação. Maclean não tem culpa, nem sentimentos. Tenho que ir ver o chefe — saiu depressa, abalada ainda.

           Maclean não gostava dela; simplesmente, desejava-a. Eram coisas diferentes. Os homens gostavam de Jan. Ou gostavam de Tabby. Mas ela era muito forte, muito capaz, poderosa e independente para gostarem dela.

           Nick estava ao telefone quando entrou em seu amplo escritório. Lançou-lhe um olhar e disse:

           — Eu te ligo mais tarde — desligou e se levantou. — Nossa! A senhorita teve sono da beleza suficiente? — perguntou, referindo-se ao seu atraso, e apontou a cadeira que havia diante de sua mesa.

           Sam sentou-se. Nick permaneceu em pé.

           — Sinto muito por ele escapado com a página — disse ela. — Eu assumo total responsabilidade.

           — Eu sei que você sente. Eu também sinto. E então o que fazemos? Devemos nos dar as mãos e chorar enquanto ele ri de nós e vende a página a Hemmer ou algo pior? — antes que ela pudesse responder, acrescentou. — Na noite da festa de Becca você perdeu a cabeça. Eu achava que podia contar com você para cuidar de Maclean, mas não pôde, você perdeu a objetividade. Quantos anos você tem, dezesseis? Quando você está com ele, comporta-se como uma virgem.

           — Isso não é justo — replicou Sam, levantando-se. — E também não é certo. Suponho que você se refere à gravação das câmeras de vigilância de sua casa. Bem, Maclean é um cretino. A maioria das mulheres teria cedido, mas eu não penso em dormir com ele, Nick.

           Nick bufou.

           — Se dormir com ele, você está fora.

           Sam respirou fundo.

           — Eu estraguei tudo. Maclean é forte e é louco. Não se importa em morrer. Caso contrário, ontem eu o teria apanhado. Mas conseguirei a página. Só preciso de um pouco de tempo.

           — Ele está jogando com você e eu não gosto que joguem com meus garotos — o olhar azul de Nick era duro. — Eu não gosto que meus meninos se machuquem. Nem que acabem mortos.

           — Maclean não é mau. Não irá tão longe. Se eu morrer, será um acidente.

           — Ele ficou louco com aquele demônio. Ele perdeu o controle.

           Sam tinha uma expressão amarga. Nick estava certo neste ponto.

           — Aquilo era pessoal, Nick. Foi uma armadilha — contou-lhe o que descobriu no e-mail de Maclean. — O que você sabe sobre seu cativeiro?    

— Seu arquivo não dá detalhes, mas posso imaginar. Sabemos que Moray aterrorizou a Escócia durante quase mil anos. Ele era tão poderoso que convivia com reis e rainhas, com generais e papas. Quer saber por quê? — ao ver que Sam aguardava, acrescentou: — Ele fez um pacto diretamente com Satanás. Ele confessou isso a um de nossos agentes no século VI. Na Antiguidade foi Mestre, um dos primeiros da Irmandade. E, em troca de sua aliança com o diabo, recebeu imensos poderes e desfrutou de dez séculos de mutilação e assassinato.

           — Caramba — disse Sam. — Sorte que está morto e enterrado.

           — Se eu aprendi algo trabalhando na HCU é que os demônios mais perigosos vendem diretamente sua alma a Satanás. É quando o mal não tem limites. Moray usou Ian para controlar seu pai, Aidan de Awe. Manteve-o com vida, sem importar-se com o que fizesse passar. Imagino que foi um autêntico inferno.

     O olhar do Nick ficou aguçado.

     — Começo a ter sensações de que não gosto. Você não pode ter pena dele. Você nunca tem pena de ninguém.

           — Claro que não! — respondeu ela energicamente. — O que pareço, uma voluntária da Cruz Vermelha? Oprah? Nick, Maclean sabe que temos um arquivo sobre ele. Ele o quer. Quer reunir-se com você. Pelo que parece ele não suporta a ideia de que alguém conheça seu passado. Temos algo com o que pressioná-lo.

           — Não existe “nós”.

           Sam se sobressaltou.

           — O que?

           — Você está fora deste caso.

           Ela se zangou.

           — Você está brincando?

           — Tenho cara de ser o palhaço do escritório? Você já me ouviu. Ele está jogando com você e eu não vejo sinais de que seja capaz de responder na mesma moeda — Nick lhe deu as costas, aproximou-se de sua mesa e acionou o interfone.

           Sam o seguiu perplexa.

           — Ninguém da HCU, ninguém na CDA, poderia ter impedido que ele levasse a página ontem.

           — Certamente não. Mas você poderia ter morrido naquela perseguição de carros ontem. Teve sorte de não matar ninguém. Cometeu um erro de cálculo. Equivocou-se ao algemá-lo e erra agora. Quero que afaste-se de Maclean antes que te aconteça algo mau, a você ou a algum civil.

           Sam lutou contra seu desânimo.

           — Posso ajudá-lo a chegar a um acordo com ele, Nick. O arquivo em troca da página. Eu conheço o Maclean melhor que ninguém. Você precisa de mim.

           Nick não respondeu.

           — Então quem você vai colocar em meu lugar? — insistiu Sam. — MacGregor? Eles vão se dar muito bem! Necessita uma mulher agente, Nick. Kit? Ela estaria fora de seu alcance. Eu, ao menos, posso jogar com ele enquanto ele joga comigo. Eu, ao menos, tenho algo que ele quer.

           — Estou colocando Jan no caso — disse Nick com calma. — Tem razão. Convém que seja uma agente, é menos problemático. E estou certo de que Jan se dará tão bem como qualquer mulher... Se não melhor.

           Sam ficou quieta.

           — O inferno.

           — Como disse?

           Sam respirou fundo. Ela mal podia pensar com clareza. Só sabia que não queria que Maclean se aproximasse de Jan. A ideia a deixava furiosa. Ela o conhecia melhor que ninguém!

            — Sente algo por esse criminoso, Sam? — perguntou Nick suavemente.

           — Ele é meu. É minha missão, meu objetivo, meu. E você sabe que eu não a suporto — Sam disse secamente, recusando a considerar por que estava com tanta raiva agora. — Sabe que eu não me dou por vencida. Eu sempre ganho! Vou admitir que ele seja um grande desafio. Eu até admito que esteja tentando não sentir pena dele. Então o que? Desse modo, ganhar é um desafio e isso é tudo. E eu vencerei. Mas não vou ficar de braços cruzados enquanto ela mexe o traseiro diante dele, sente pena e tenta consolá-lo. Estou falando sério. Faça isso e eu vou embora.

           — Então acho que terá que ir embora. Porque Jan vai encarregar-se dele e você foi designada para outro caso — pegou uma pasta e passou para ela. — Você ligou para 911 ontem, às 14h03. Foi quando Maclean entrou no edifício ao lado, não foi?

           Sam tremia de ira, lembrou-se que era uma profissional e que devia responder a suas perguntas antes de mandá-lo ao inferno. Lembrou a si mesma que Jan era uma dissimulada, e em seguida descartou a ideia. Maclean a seduziria, tinha certeza disso. Deus... quase sentiu ciúmes.

           — Sim, isso mesmo.

           — Às 3h37 ele foi visto saindo de um táxi e entrando em sua casa em Park Avenue. Estava carregando o pacote com que saiu da casa de Hemmer, que depositou alegremente no cesto de papeis do canto antes de entrar na casa.

           Sam estava tão zangada que não podia concentrar-se. Ela estava doente de desânimo.

           — Essa é maneira de Maclean dizer “que se fodam”. Está claro que guardou a página em algum lugar antes de chegar em casa. Eu posso saber onde está, Nick. Eu, e não Jan. Estou fazendo progressos com ele.

           Nick bufou.

           — Sim, cada vez está mais perto de sua cama.

           — Somos adversários, não amantes. Mas Maclean me deseja e estou me aproveitando disso. E não só isso: estou começando a conhecê-lo a fundo, o que é incrivelmente difícil, por certo, tendo em conta pelo que passou, quanto mais souber de seu cativeiro, melhor. Eu posso conseguir essa página e posso descobrir quais são suas motivações. Esta noite fomos convidados a ir à casa de Hemmer. Ele e eu, juntos.

           Nick cruzou os braços e ficou olhando-a.

     — O mal no cofre... — disse pensativo.

           — Ele precisa ser investigado. Pode ser perigoso. O ano passado, quando sequestraram Brie, aceitei assim que você me propôs trabalhar aqui. Eu trabalhado mais do que ninguém e você sabe. Estou pedindo um favor. Estou cada vez mais perto de Maclean, e não porque esteja mais perto de sua cama, me deixe continuar.

           Nick pensou. Nick normalmente tomava decisões com um piscar de olhos.

            — Você acha que poderá trabalhar com a Jan sem que arranquem os olhos?

                       — Oh, não vou arrancar os olhos dela, não se preocupe com isso. Mas eu poderia colocar uma bala naquele traseiro gordo que tanto balança — sorriu friamente. Se Jan se atrevesse a olhar para Maclean com olhar pudico, ela atiraria. — Posso lidar com Maclean. Não me transfira e não me faça trabalhar com essa secretária, falsa loura e com as pestanas e todo o resto postiço.

           — Jan conhece muito bem este ofício — respondeu Nick. — E minha intuição me diz que você está em dificuldades — Sam bufou. — Já falamos com todos os comerciantes de arte da cidade e seus arredores, em Long Island, New Jersey e o norte da Pensilvânia. Não temos nada. Começo a acreditar que ele mandou a página a alguma parte, talvez até mesmo a outra época, ou que está em mãos de particulares. Maclean não tem amigos, claro, isso o expunha a certos problemas. E a página é autêntica. As fotos que você fez quando estava dentro foram analisadas ontem, enquanto vocês brincavam de Bonnie e Clyde.

           Embora não tivesse ido trabalhar no dia anterior, Sam mandou por e-mail as fotos que fez enquanto estava no cofre. Cruzou os braços e ficou olhando para Nick.

           — Você vai me dizer que poderes tem a página?

           Nick sorriu.

           — Achei que nunca fosse perguntar.

           Sam sentiu um calafrio correndo pelas costas.

           — É tão terrível assim?

           — Digamos que não queremos que nossos inimigos tenham esse poder. Sam esperou. — É o poder da ilusão — disse Nick. — Ou, em inglês simples, é o poder de controlar a realidade virtual.

          

            — Ele esta aqui — disse Jan pelo intercomunicador.

           O coração de Sam deu um pulo. Mas isso porque Jan era agora sua parceira, não porque Ian Maclean estava a caminho do escritório de Nick. Maclean não surtia esse efeito sobre ela. Ninguém surtia esse efeito sobre ela.

           — Genial — disse. — Ouça, não esqueça de colocar os seios postiços antes de conhecer o grande homem. É para isso que foi ao banheiro, não?

           Jan cortou a comunicação.

           Sam se levantou. O pulso estava acelerado, e isso a inquietava. Tinha que ser profissional e isso não era uma tarefa tão fácil como antes. Ela abriu a gaveta de sua mesa e ficou olhando o DVD que havia dentro. Fez uma cópia.

           Fechou lentamente a gaveta. Jan estaria pulverizando o nariz de porcelana, pintando os lábios e subindo as meias. Mas nem mesmo seus seios postiços conseguiriam distrair o homem daquele DVD.

           Não que ela houvesse decidido mostrar a Maclean.

           Nick afirmou que ela havia perdido o controle. Se ela mostrasse a Ian a gravação, voltaria a estar no controle da situação. Não havia nenhuma dúvida. A não ser, claro, que ele já o tivesse visto. O pensamento a deixou sem fôlego.

           Ela tomaria a decisão de mostrar-lhe ou não o DVD no caminho, disse a si mesma. Desse modo, se ele não o viu, teria um ás na manga. Ele estaria abanando o rabo como um cachorro quando ela o mostrasse e não seria uma cauda. Sam sorriu.

           Agora tinha que pensar na negociação que viria. Ficou pensativa desde que, duas horas antes, Nick lhe falou do poder de ilusão da página. Eles queriam e precisavam desse poder e deviam impedir que caísse nas mãos de seus inimigos. Ian queria seu arquivo. Seria perfeito trocar ambas as coisas. Exceto porque Ian também queria duzentos milhões de dólares.

           Ian conhecia o poder da página? Sam esperava em que não. Se conhecesse, venderia a página e se transformaria em um egoísta desumano, sem preocupação alguma com o bem-estar dos inocentes. Talvez fosse certo que começava a sentir algo por ele, porque resistia a acreditar que pudesse ser tão cruel. Ou não queria acreditar nisso.

           O poder da ilusão era verdadeiramente terrível.

           Uma pessoa iria acreditar e sentir o que o intermediário desse poder quisesse que acreditasse e sentisse. Se fosse vítima desse poder, Sam poderia estar no escritório do Nick e, entretanto, achar que estava perdida em uma tempestade de neve no Ártico a ponto de morrer por congelamento. Não veria as paredes do escritório. Nem sequer veria Nick. Estaria vagando em uma tempestade de neve, cega pela neve e congelada até os ossos.

           Sam se perguntava se uma pessoa salva pelos efeitos de um poder semelhante sofreria hipotermia e queimaduras, por causa do frio. Nick não sabia. E nenhum dos dois queria investigá-lo.

           Custava acreditar que existisse esse tipo de poder. A questão era: esse poder teria sobrevivido através dos séculos?

           Os Mestres do Tempo acreditavam no Duisean, e ela também. De fato, o Livro mencionava outros grandes livros, outras dinastias e seitas secretas, todas elas dedicadas a proteger a humanidade em diferentes partes do mundo e em outras épocas, e todas dotadas de poderes mágicos e sobrenaturais. O conflito entre o bem e o mal era tão antigo quanto o tempo. Os deuses celtas entregaram o Duisean aos Mestres havia séculos, muito antes do nascimento de Cristo, quando seus poderes estavam em seu apogeu. Naquele tempo, a magia era abundante e os deuses se mostravam com frequência para a humanidade.

           Nos tempos medievais não apenas os Mestres eram muito poderosos, os deuses se mantinham ainda muito ativos, embora a maioria das pessoas não soubesse. Sem dúvida a página tinha um poder imenso naquela época. Mas os quase imortais, como os Mestres, eram cada vez mais escassos, enquanto que o mal continuava multiplicando sua população e seu poder. Agora havia menos magia no mundo do que antigamente. A questão era: a página conservava ainda seu poder de ilusão. Sam tinha perguntado isso a Nick.

           — Quem sabe? Podemos nos arriscar a que não seja assim?

           Tinha razão, pensou Sam enquanto avançava pelo corredor. Se o poder da miragem existia, o governo dos Estados Unidos tinha que consegui-lo e mantê-lo afastado das mãos de seus inimigos. Enquanto pensava nisso a porta do elevador se abriu e Sam sentiu a energia de Maclean antes que ele saísse. Seus olhares se encontraram quando ele parou no corredor. Sorriu lentamente.

Vestia uma camisa polo preta, seu relógio de ouro, uns jeans quase apertados e uma cruz celta pendurada de um cordão de couro. Parecia muito seguro de si, rico à moda antiga e um inferno de muito sexy. Ela pensou no DVD, onde ele parecia mais sexy e confiante no que estava fazendo.

Na noite passada, ele ficou furioso quando soube sobre o arquivo. Quando ligou mais tarde, depois que, de alguma forma estava espionando-a do outro lado da cidade, com sua mente, estava de bom humor, sexy, sedutor. Sam demorou um segundo e meio para dar-se conta de que ele estava de bom humor. Estava despreocupado, cheio de curiosidade e tão sensual como sempre.

Sam sentiu um intenso desejo de mostrar-lhe o DVD. Não podia imaginar qual seria sua reação.

           — Cumpri minha palavra — murmurou.

           — Eu nunca duvidei que você fosse arrumar essa reunião — replicou ele. — Conseguiu descansar ontem à noite?

           — Estive assistindo um filme — disse ela com significado.

           O olhar de Ian ficou aguçado.

           Sam percebeu de repente que ele não se introduziu em sua mente. Parecia estar tentando descobrir no que ela estava pensando.

           — O que está acontecendo? Não está funcionando com carga total hoje?

           — Estou distraído — respondeu ele, e apontou sua muito curta minissaia desfiada.

           — Você sempre está distraído. E isso nunca foi um impedimento — enquanto falava, pensou que talvez Ian estivesse fingindo. Um momento depois ele estaria enfrentando Nick pelo arquivo. E o arquivo era tudo para ele, estava se escondendo atrás de sua sexualidade, utilizando-a como distração.

           — Nada me detém quando vou atrás de algo que realmente quero — murmurou ele, parando ao seu lado. — Seu olho está melhor — acariciou sua maçã do rosto.

           Sam se limitou a olhá-lo. Estava ardendo. Todo seu corpo parecia ter acelerado. Notava o calor do dedo de Ian sobre sua pele. Essa noite iriam para a casa do Hemmer. Ela podia utilizar o distorcido convite do Hemmer como desculpa para conseguir o que realmente queria: Maclean.

           Ele tinha que saber o que estava pensando, porque seus olhos cintilaram.

           Então Sam ouviu o ruído de uns saltos, ficou tensa. Aquele ruído era familiar. Jan se aproximava. Sam ameaçou virar-se e viu que os olhos de Ian se dilatavam. Depois ele sorriu, satisfeito, e olhou para Jan de cima a baixo.

           — Ian Maclean? — perguntou ela suavemente. — Sou Jan Bentley, a assistente de Nick — estendeu-lhe a mão. — Se houver algum assunto a resolver na HCU, eu sou sua garota.

           — Que sorte a minha.

           — Sim, que sorte — respondeu Sam secamente. — Outro idiota ofegando na larga fila abaixo de seu pedestal, esperando um convite para a cama da Santa Jan.

           Ele estava olhando as longas pernas de Jan. Olhou nos olhos de Sam e parecia estar rindo dela.

           — Como diz?

           — Recomponha-se — disse ela com nojo. O interesse de Ian era inconfundível.

           — Às vezes acho que você tem treze anos, não trinta — disse Jan. — O que é isto? O ensino médio?

           — Não pode ser. Você tem quarenta anos — replicou Sam. — Hoje é seu dia de sorte, Maclean. Jan é minha nova parceira. Esta noite podemos fazer um trio na casa de Hemmer.

           Ian engasgou, possivelmente de risada.

           Jan perguntou rispidamente:

           — Do que você está falando?

           — Vamos a uma festa. Mas você pode recusar, sinta-se livre. Estava ciente de que não deveria estar mostrando o quanto estava chateada e também o quanto estava lívida. Sam se dirigiu à frente deles em direção ao escritório de Nick. Parecia estar ciumenta, embora soubesse que isso era impossível. O ciúme também não figurava em seu vocabulário. Parou e virou para olhá-los. — Jan não gosta das festas, Maclean. É uma boa garota.

           Ian pôs-se a rir.

— Lorde Maclean, agora trabalho com Sam, mesmo que ela não esteja muito feliz com isso.

           Sam a viu bater as pestanas, atenta e sorridente, como se ela estivesse realmente interessada por Maclean. Mas Jan se comportava sempre assim, com homens e com mulheres. Por isso todo mundo a adorava. Os homens pensavam que os desejava, as mulheres achavam que ela era sua melhor amiga. Era boa atriz: todo mundo acreditava nela.

           Ian sorriu e olhou para Sam.

           — E por que se incomoda que trabalhe conosco? Quanto mais, melhor. E me chame Ian, senhorita Bentley.

            Sam não tentou dissimular seu aborrecimento.

   — Já imaginava daria saltos de alegria. Então, está pronta para atuar, Jan? Acha que terá coragem? Alerto de que se trata de uma sessão obscena. Teremos que nos conformar com que faça o papel de donzela virginal. Ou isso, ou pode ficar em casa.

           — Mas Hemmer quer diversão — respondeu Ian. — E acho que gostará da senhorita Bentley.

           Sam sentiu vontade de lhe dar um chute onde mais doía.

           — Fecha a boca, Ian. Barbie não se rebaixa a essas coisas. É tudo uma farsa — sorriu triunfalmente a Jan. — Você sempre dando falsas esperanças, não é Barbie?

           — Está bem, o que estou perdendo? — perguntou Jan. — O que tem planejado para esta noite exatamente, Sam?

           — Ian e eu temos uma entrevista com o diabo — respondeu Sam tranquilamente. — Hemmer quer que nós tenhamos relações sexuais enquanto ele olha. Se você vier, terá que vir. Se me entende.

           — Sam, está tentando me fazer odiá-la? — perguntou Jan asperamente. — Costumo conceder a todo mundo o benefício da dúvida, mas com você está cada vez mais difícil. E sabe o que? Nick não vai te deixar sozinha neste caso. Assim, se eu disser que não posso trabalhar com você, adivinha o que fará? — seus olhos brilharam.

           Sam respirou fundo.

           — Isso é chantagem.

           — Ou trabalhamos juntas ou acabou. Pode zombar de mim a cada passo e se divertir de minha moral, mas por acaso tenho fortes convicções éticas. E isso não vai mudar, nem por você, nem por Hemmer, nem por ninguém.

           Sam se sentiu um pouco envergonhada.

           — Bem. Então, fique em casa esta noite.

           Jan sacudiu a cabeça, zangada.

           — Por que diabos você aceitou ir à casa do Hemmer com suas condições?

            — Acho que não leu meu relatório. Há algo maligno nesse cofre.

           Jan a olhou com surpresa.

           — Rupert gosta de mim — acrescentou Sam. — Me ofereceu uma visita privada, assim poderei entrar no cofre. E me pediu que levasse Ian para que fizéssemos uma festa.

           Jan assimilou a notícia.

           — Recebemos os resultados do laboratório. Hemmer é cem por cem humano. Não há nada anormal em seu DNA.

           Sam olhou para Maclean, que de repente parecia muito interessado em sua conversa.

           — Eu poderia ter dito isso a vocês e — disse ele — e lhes teria economizado tempo e provas. Mas, mesmo assim, Hemmer é perigoso.

           — Eu não tenho nenhuma dúvida — Jan sorriu. — Nick está esperando.

           Sam se perguntou se Jan poderia manipular Ian. Enquanto se dirigiam ao escritório de Nick, disse:

           — A propósito, obrigado por aquele carro excelente.

           — Então você gostou — ele parecia satisfeito.

           — Claro que gostei. Talvez eu deixe que você dê uma voltinha nele.

           Jan parou na porta de Nick para deixá-los passar. Nick os estava esperando com o quadril apoiado na beirada da mesa. Sam compreendeu por sua calma e sua expressão que sua atitude era: Eu Vou Vencer a Qualquer Custo e de Qualquer Modo.

           Esqueceu do interesse de Ian por Jan, ficou tensa e olhou para Ian. Maclean estava com a mesma fisionomia inexpressiva, mas seus olhos eram frios como o gelo. A energia da sala era quente, masculina, carregada e tensa. Dois touros estavam a ponto de investir um contra o outro. E o pior era que ambos tinham poderes sobrenaturais.

           — Diga às mulheres para saírem — disse Ian.

           — Prazer em conhecê-lo, também — respondeu Nick. — Mas as senhoritas podem ficar.

     — Tenho uma oferta a fazer.

     — Nada do que se diga nesta sala sairá daqui.

O semblante de Ian endureceu.

   — Conheço seu pai e esperava que esse dia chegasse — Nick sorriu.

   — Claro que esperava que as circunstâncias fossem mais agradáveis. Como está Aidan, a propósito? E Lady Brianna?

           Ian sorriu com frieza.

     — Não sei. Não estou em contato com eles. Claro que isso já sabe, não? Está no meu arquivo.

     — Claro que não sabe. Vive fora de sua época. Completamente sozinho, convivendo com o mal, roubando o que quer, quando quer... Não se sente sozinho, vivendo assim?

           — Estou aqui pelo meu arquivo — respondeu Ian. — Não para discutir como vivo.

           — Mas eu quero falar de como você vive e das escolhas que fez. Porque, verá, essas decisões me afetam. Aidan deve estar muito decepcionado com você — acrescentou.

           Ian estava ficando irritado a cada minuto. Sam sentiu desejo de intervir. Por que Nick tocava na ferida?

           — Na verdade, seu coração deve estar partido.

           Ian não conseguia acreditar.

           — Se ele tiver o coração partido, é problema dele, não meu! Estou aqui por meu arquivo. Ele me pertence. E o quero — Ian estava furioso.

           — Os deuses antigos também devem estar muito zangados. E não é boa ideia contrariar aos deuses, embora sejam antigos.

           Ian riu.

           — Os antigos deuses não se importam com o que eu faça e, se acha o contrário, é por que é um tolo.

           — A única coisa que não sou, Maclean, é um tolo.

            — Se você tiver um arquivo sobre mim, então você é muito tolo — respondeu Ian suavemente. — Porque não vou permitir isso.

           Nick sorriu.

           — Aqui, na HCU, eu sou o rei. Todos os arquivos aqui me pertencem.

           — Deixa de provocá-lo — disse Sam. — Uma guerra não vai resolver nada.

           Nick olhou para ela com frieza. Ian se virou. Seus olhos brilhavam de fúria.

           — Com um pouco de tato se conseguem muito mais progresso — acrescentou ela.

           Ian não pareceu tranquilizar-se, mas Nick suspirou.

           — Ela tem razão, Maclean. Comecemos de zero. Acredito que podemos nos ajudar mutuamente.

           — Sério? — perguntou Ian, zombador, e estremeceu. Algumas fotografias e quadros caíram das paredes e alguns livros das estantes.

           — Muito adulto — disse Nick. — Sei que tem poder, Maclean.

           — Então não me faça usá-lo.

           Jan se aproximou de Ian e colocou a mão sobre seu braço. Sam piscou incrédula, quando Ian encolheu os ombros.

           — Ian, dê-lhe uma oportunidade — disse Jan. — E, Nick, por favor... Ian não é mau. Ele simplesmente perdeu o rumo.

           Ian a olhou com frieza.

           Sam engasgou.

           — Maldição, Nick, dê-lhe um tempo — acrescentou Jan com suavidade.

           Ian olhou atentamente para ela. É claro que ela tinha a sua atenção. Jan era incrível.

           — Você está brincando? — perguntou Nick. — Ele roubou a página do poder da ilusão. E pretende vendê-la ao melhor lance, por dinheiro. Não vou lhe dar nenhum tempo. Façamos um trato, Maclean. Um trato que beneficie a ambos.

           Jan apontou o sofá de pele e as poltronas que havia do outro lado do escritório. Suas unhas vermelhas descansavam ainda sobre o braço nu de Ian.

           — Porque não nos sentamos? Gostaria de uma bebida, Ian?

           Ele a olhou e depois olhou para Sam.

           — Não.

           Jan baixou a mão. Cruzou um olhar rápido com Nick. Sam lamentou não poder ler seu pensamento. Nick fez uma careta.

           — Está bem, Maclean, vamos começar de novo. Jan tem razão, como sempre. É minha culpa, mas afinal de contas não sou um diplomático. Mas estou certo de que você me entende. Só estou um pouco nervoso porque essa página possa cair em mãos erradas. Nas piores mãos. Isso para não mencionar que estive a ponto de perder uma das minhas melhores agentes nessa estúpida perseguição de carro de ontem.

           Ian cruzou os braços firmemente sobre o peito.

           — Sam não morreu.

           Nick sorriu amavelmente.

           — Vamos mantê-la dessa maneira. Porque eu gosto de verdade de minha pequena Frisbee, bancando a mulher fatal. Se morrer por sua culpa, você morre.

           Ian sorriu para ele com desagrado.

           — A única coisa que não quero — disse muito suavemente. — É nossa Sam morta.

            — Tenha cuidado, Maclean. O caçador pode ser caçado.

           — Estou ansioso por isso.

           Sam se colocou entre eles.

           — Tempo esgotado, íamos fazer um trato, lembram?

           — Como ia esquecer isso? — perguntou Nick com excessiva suavidade.

           Sam perdeu a paciência.

           — Pois façamos isso de uma vez, então. Maldito seja, Nick, Maclean é um dos mocinhos.

           Nick finalmente lhe deu atenção.

           — Não, ele não é. Poderia ser, mas, em vez disso, ele se relaciona com demônios e vira-latas, criminosos e corruptos. É capaz de vender à página a qualquer um, bom ou mau, desde que paguem o que quer. Pode até vender para o mal só para dizer: “te peguei”. Estou certo, Maclean? — seu olhar azul ficou cravado em Ian.

           — Sim, está certo — respondeu Ian. — De fato, se vocês não me derem o arquivo e destruírem todas as cópias diante de mim, eu a venderei ao primeiro demônio que der um lance por ela... com prazer.

           Aquilo estava indo de mal a pior.

           Nick sacudiu a cabeça.

           — Eu sabia. Ele brincou com você, Sam, te fez de tola. Não precisa de um tempo. Precisa ser quebrado.

            — Pode tentar lembrar o que ele viveu? — gritou. Ele está quebrado!

           Ian girou bruscamente.

           — Cale a boca! — disse ele, lívido. — Eu não preciso de sua ajuda, nem a quero.

           Ela enrijeceu. Droga! pensou, realmente abalada. Estava sofrendo por ele. Ian não deveria ter aquele passado para esconder.

           — Eu imaginava isso. Sente pena dele — disse Nick em tom de recriminação.

           Sam tentou bloquear seus pensamentos dele.

           — Eu estou tentando mediar um acordo aqui. E não é tarefa fácil, com esta overdose de hormônios. Talvez devêssemos extrair um pouco de testosterona dos dois, como os biólogos fazem quando tiram o veneno de cascavel, antes que isto se transforme na 4ª Guerra Mundial.

           Nick ignorou.

           — Está bem, Maclean. O trato é este: eu te dou o arquivo original e te permito ver como destruímos todas as cópias, quando você me entregar à página e minha gente comprovar sua autenticidade.

           Ian riu, zombando, e, excitado ainda, respondeu em voz baixa:

           — Eu vou considerar a possibilidade de vender a página ao governo dos Estados Unidos. E, em sinal de boa vontade, adiar o leilão mais uma semana, para que procurem o dinheiro que vocês vão necessitar para me fazer uma oferta adequada. Até farei um desconto a vocês. Mas, em troca, você me dará o arquivo original agora mesmo. Se chegarmos a um acordo, eu destruirei as cópias e depois entregarei a página.

           Nick ficou olhando-o.

           — Você sabe que não dispomos de tanto dinheiro como Hemmer e essa gente. Nosso orçamento é muito limitado. E não confio em você.

           Ian encolheu os ombros.

           — Estou disposto a vender a página a vocês por vinte e cinco milhões de dólares — disse. — Hemmer pagou mais de duzentos milhões por ela — acrescentou desnecessariamente.

           Nick o olhou com fúria.

           — Jamais conseguirei esse orçamento aprovado.

           — Então, você está fora.

           — Então, você nunca saberá o que está nesse arquivo de cinco centímetros de espessura, não acha? Dê-nos a página e poderá ficar com seu arquivo imediatamente. Eu mesmo destruirei as cópias na sua frente.

           Ian olhou para Sam brevemente, e disse:

           — Cinco milhões de dólares e eu saio daqui com o arquivo. Quando eu receber o dinheiro, faremos a transação.

           Nick se apressou em dizer:

           — Eu vou precisar fazer alguns telefonemas. Não tenho autoridade para aprovar essa soma, que ainda está fora do meu orçamento.

           — Muito bem. Faça suas chamadas. Mas estou saindo daqui hoje com meu arquivo.

           Nick sacudiu a cabeça.

           — Impossível.

           Nick tentava ganhar tempo, pensou Sam. Quando Ian visse seu arquivo, perceberia que não havia nele nenhum detalhe horripilante e deixaria de se importar que a CDA o tivesse em seu poder. Depois, seguiria adiante com seu leilão. Ou não?                     

                        Ian olhou para ela e, apesar de sua expressão séria, Sam viu uma dúvida em seu olhar. Ficou tensa. Desejou poder dizer-lhe que não tinha por que se preocupar com o arquivo. Ian tinha todo o direito de esconder seu terrível passado. Ela umedeceu os lábios.

           — Eu já lhe disse isso. Não o li.

           Ian olhou para Nick.

           — Está cansado de conduzir um Ford, Forrester?

           Nick ergueu as sobrancelhas.

           — Dou-lhe cem mil dólares por uma cópia — Ian sorriu.

           — Só cem mil? Você não pode me comprar Maclean. E eu gosto de carros usados, por sinal. Eu gosto dos Ford. É o mais patriótico. Nunca desejei uma Ferrari.

            — Todos os homens querem Ferraris. Duzentos mil dólares por uma cópia.

           Nick sacudiu a cabeça.

           — Precisamos da página, Maclean. Precisamos dela para que nossos inimigos não possam ter acesso a esse poder.

           Sam queria dizer a Nick que lhe desse uma cópia do maldito arquivo, mas isso não teria sido muito profissional por sua parte.

           — Coloque seu preço — grunhiu Ian.

           — A página — respondeu Nick.

           Ian riu dele.

           — A página vale centenas de milhões de dólares... para determinado demônio — olhou para Sam com frieza, como se ela o tivesse traído em certo modo e, depois de dar meia volta, saiu batendo a porta.

           Sam demorou um momento para recuperar o controle sobre si mesma.

           — Você foi muito bem — disse com sarcasmo. Mas o que ela queria era correr atrás de Ian e dizer-lhe que seus segredos estavam a salvo. Ele ansiava uma cópia de seu arquivo. Estava desesperado para saber o que os outros sabiam dele. E Sam sofria por ele. O que estava acontecendo com ela?

           Provavelmente depois daquilo Ian venderia a página do poder da ilusão a seus inimigos.

           Nick se aproximou da janela, olhou a rua Hudson e resmungou uma fileira de maldições. Jan tocou o braço dele.

           — Eu posso convencê-lo, Nick. Sem dormir com ele. Ele não tem nenhum pingo de maldade. Seu pai é um Mestre do Tempo, me deixe tentar.

           Sam ficou imóvel.

           — Vá atrás dele — disse Nick a Jan laconicamente. — Faça o que achar melhor.

           Sam tremeu de raiva. Respirou fundo e conseguiu não mudar de expressão. Jan saiu rapidamente, mas não sem antes olhá-la e dizer:

           — É só trabalho.

            — Certo — respondeu Sam, voltou-se para o Nick, tentando não explodir.

           — O que foi? Está apaixonada por ele? — perguntou ele. — Maclean tem feridas que não curarão nunca. E isso faz dele um renegado.

           Sam sacudiu a cabeça, muito furiosa para responder, e saiu do escritório. Jan estava com Ian junto ao elevador. Ele continuava excitado. A tensão fazia tremer seu corpo, separou-se de Jan ao ver Sam, aproximou-se dela com olhos cintilantes.

           — Não volte a sair em minha defesa. Não preciso da sua ajuda.

           — Tudo bem — disse ela para aplacá-lo.

           — E tampouco necessito da sua compaixão. O passado é o passado — grunhiu. — Eu o esqueci há muito tempo.

            Uma ova! pensou ela.

            — Não tenho pena de você, Maclean. Acontece que eu sinto muito e acho que você não devia ter passado por tudo isso, mas o que se vai fazer: eu sou humana. A partir de agora, entretanto, eu vou cuidar do meu próprio negócio. Exceto no que se refere à página, claro. Porque é culpa minha que você a tenha e sou eu quem deve recuperá-la.

           Atrás deles a porta do elevador se abriu. Ele puxou o colarinho da camisa com tanta força que o tecido rasgou.

           — Então agora somos inimigos — disse.

 

            Gerard abriu a porta e ergueu as sobrancelhas, surpreso, ao vê-la.

           Sam sorriu para ele. Eram as seis e meia e ela tinha que estar na casa de Hemmer às sete, mas não teve notícias de Ian desde que partiu furioso do escritório de Nick na HCU. Estava considerando que seu encontro com Rupert Hemmer estava ameaçado e não podia deixar isso acontecer. E não era só pelo DVD.

           Estava quase certa de que Ian estava com Jan, ou fazendo planos com ela, porque, quando Jan cravava os dentes em uma presa, era como um cão com um osso. E Sam não podia permitir que manipulasse Ian.

           A reunião dessa tarde na HCU deixou um sentimento de angústia. Imaginava que era simples inquietação. Droga! Detestava o seu envolvimento com Jan naquele assunto, mas detestava mais ainda a angústia dele. Nick devia dar-lhe o maldito arquivo, embora Sam soubesse que não era muito racional de sua parte pensar assim.

           — Olá, Gerard, como você está hoje? — lamentava ter sido tão grosseira com ele quando se conheceram na Escócia. Se Gerard estava com Maclean há anos, como ele dizia, devia ter apego ao seu trabalho e possivelmente também ao seu chefe.

           Sam sabia que Maclean não tinha amigos e se alegrava de que tivesse seu mordomo. Era melhor que nada. Claro, tinha a seu pai, mas Ian se afastou de sua família, assim como de todo o mundo, por quê?

           Aparentemente, Ian pertencia ao passado, não à atualidade, nem a Nova Iorque, nem à Escócia. Essa ideia inquietava Sam. Se isso fosse verdade, possivelmente Ian retornasse ao passado algum dia, quando caísse em si. Seu pai estaria lá, como também Brie, e inclusive Tabby. Sam estava ciente da falta que sentia de sua irmã mais do que nunca. Sabia que tinha que superar isso. Voltaria a ver Tabby algum dia, mais cedo ou mais tarde.

           Suspirou. Ultimamente parecia incapaz de controlar-se, e não gostava nada disso. Mas isso não importava. Seu trabalho atual era resgatar Maclean das garras de Jan, levá-lo para a casa do Hemmer para descobrir o ele escondia e voltar a entrar no cofre. Além disso, recuperar a página continuava sendo sua prioridade absoluta. Não sabia, entretanto, como iria conseguir isso, depois do encontro entre Ian e Nick.

           — Sua Excelência não me disse que estava vindo — disse Gerard com as sobrancelhas ainda levantadas.

            — Sua Excelência provavelmente esqueceu que temos um encontro quente com o lado escuro.

           Gerard fez uma cara estranha. Sam se perguntou se sua menção do mal o perturbou. Estava claro que o mordomo sabia muito mais da sua vida que um mortal comum.

           Mas provavelmente estivesse desconcertado porque Ian estava com Jan.

           — Não se preocupe — disse ela sem deixar de sorrir. — Já sabe como é difícil livrar-se dos maus hábitos. E eu sou uma desmancha-prazeres, lembra? E confie em mim. Depois desta noite, ele não voltará a se incomodar se o interrompem.

O DVD podia tornar-se sua arma predileta. Nunca se sabe quando ele pode ser útil. Provavelmente nem sequer se importasse que Ian já o tivesse visto. Embora começasse a pensar que, se ele o tivesse visto, já teria jogado em sua cara.

           — Não entre, senhorita Rose — disse Gerard laconicamente.

           — Vamos, Gerard. Estou certa de que não é a primeira vez que Maclean se entretém com mais de uma garota. Já devia estar acostumado a seus hábitos de sedutor. — Mas seu sarcasmo soava forçado. Os homens que passavam a maior parte de sua vida em cativeiro não sabiam ter relacionamentos. Só conheciam o básico (o sexo, por exemplo), e esse parecia ser o caso de Maclean.

           — Sua Excelência não está de muito bom humor esta noite — disse Gerard. — E ao contrário de você, essa outra visita estava prevista. Ele não mencionou que tivesse intenção de sair esta noite.

           Jan conseguiu enganá-lo, e isso doía. Sam tentou ignorar isso.

            — Deixe-me adivinhar. Essa outra visita é loira, tem seios grandes e é quarentona. E se chama Jan Bentley, aliás, Barbie.

           — Uma senhorita Bentley está presente, senhorita Rose. Faça o favor de esperar no salão verde — disse Gerard. — Direi ao senhor que está aqui.

           Gerard saiu. Sam respirou fundo, quase desanimada. Lembrou-se que não se importava se Maclean estivesse tentando seduzir a Barbie, sem mencionar que ela não o colocaria para fora. De qualquer maneira, Jan não ia permitir que a deixassem de fora. E ao diabo com Nick. Ela é que iria aquele encontro, ela era quem iria recuperar a página.

           Mesmo que pesasse tanto quanto Sam odiava admitir, subestimar Jan, foi má ideia. Aquilo não era uma competição de escola. Era um assunto profissional, embora quase parecesse uma rivalidade absurda.

Pela primeira vez em anos, Sam sentiu que sua segurança vacilava. De certa maneira, Jan era como Tabby: uma pessoa boa por natureza. Sam podia fingir que não era assim, mas era mentira. Por isso os homens ficavam loucos por ela. O sorriso suave e seu olhar amável eram autênticos. Jan era um sonho para muitos homens, e, além disso, pretendia ser a melhor amiga de todas as mulheres. Era odioso, mas era verdade. Ian certamente estaria babando por ela. Não seria imune ao seu tipo exuberante e a seu caráter amável e super feminino.

Sam se orgulhava de ser uma lutadora. Seu dever como Matadora definia sua personalidade, assim como definia sua vida. Poucas mulheres podiam fazer o mesmo que ela. Mesmo assim, odiava pensar que Ian caísse no feitiço de Jan. Isso ainda a preocupava.

Sam sacudiu suas dúvidas repentinas. Ela cuidaria de Jan o mais rápido possível, de um modo ou de outro. Olhou-se no espelho dourado que havia na parede. Usava um minivestido verde azulado com alças finas. Mal chegava ao meio das coxas e era de jersey, desse modo se agarrava aos seus seios, tronco, quadris e coxas. Havia substituído à volumosa bandagem que rodeava suas costelas por um curativo largo. Não era o que recomendou seu médico, mas ao diabo com isso. Usava sandálias de salto agulha e, diferente de Jan, colocou apenas um pouco de brilho nos lábios e rímel: ela não precisava se maquiar para ficar mais bonita. Um momento antes parou o trânsito ao pegar um táxi. Três executivos de Wall Street disputaram o privilégio de conseguir para ela um táxi na hora do rush. Um homem gordinho e casado cedeu o seu, corado como um Papai Noel. Mas poderia ter havido um aumento da sua pressão arterial.

Mais segura de si mesma, ela se colocou a andar pelo corredor, seguindo Gerard.

Gerard estava parado diante da porta de uma sala de estar grande, decorada em branco e ouro, e estava anunciando sua presença. Sam passou ao seu lado. Ian estava ali, impecável e sexy. Olhou-a com frieza.

Ok, ele continuava zangado porque ela teve pena dele em público. Sam viu Jan sentada em um sofá de brocado de cor marfim, com um vestido laranja. Tinha as pernas cruzadas e um olhar alerta. Ao seu lado havia uma taça de vinho branco intacta.

— Quanta animação para um encontro — disse Sam, zombadora.

           Jan girou os olhos.

— Ian me convidou para um drinque. Deixei-lhe claro que só queria continuar nossa conversa anterior.

— Puxa, e que conversa é essa? A de “eu sou sua garota”? Espero não interromper — se virou para Ian e surpreendeu ele olhando suas pernas. Sua expressão não se suavizou.

           Jan disse:

— Estava tentando explicar nossa posição para ele.

           Sam olhou Ian nos olhos, mas não se virou para Jan.

— E que posição é essa? A do missionário número um?

Jan suspirou. Era horrível que o laranja caísse tão bem nela.

— Nós estamos metidos em uma guerra muito perigosa. Ian não é mau. Nick foi muito duro com ele. Estou preocupada. Quero ajudar.

— Sim, é obvio — Sam olhou para Ian. — Por favor, não me diga que está se deixando enganar pelo número repetitivo do policial bom e do policial mau.

— Por que iria me incomodar em falar com uma mulher bonita? — ele a olhava com frieza.

— Porque você não gosta de falar?

— Vocês falam o tempo todo.

— Sim, e isso irrita você — Sam olhou para Jan. — Ele já se irritou com você, ou você tem carta branca?

— Eu não sou tão abrasiva ao contrário de algumas pessoas. Eu acredito em conversas. E, a propósito, se chama “negociar”, não “preliminares”.

— Eu fico com as preliminares. E também Ian, por certo. Então, boa sorte. Vai precisar — disse Sam secamente. Depois deu as costas a Jan. — Estou certa, Maclean?

O semblante de Ian se contraiu. Voltou a olhar seu muito curto vestido.

— Você ainda pensa em ir à casa de Hemmer? Ou se vestiu assim para mim?

— Vou à residência de Hemmer. Como ia recusar esse convite?

Ele pareceu zangar-se.

— O que há de errado? Minha colega de trabalho aborrece você? Eu realmente não queria interromper seu sexo livre de discussão. Talvez eu deva ir. Não sabia que nosso encontro estava cancelado — mentiu.

           Ian a agarrou pelo braço.

— Você não vai sozinha para a casa de Hemmer.

— Por que não? Eu posso proporcionar entretenimento suficiente sem você. Estou certa de que vai gravar isso. Se você for gentil com ele, pode ser que até te faça uma cópia — Ian continuava zangado, pensou. Não podia acreditar nisso, mas se alegrava de voltar a vê-lo como sempre: transbordante de arrogância e de sexualidade.

— Por que se importa tanto com o diabo desse cofre? Por que não esquece esse assunto?

— É a minha natureza, Maclean, como é sua natureza convidar Jan para tomar uma bebida. Mas ela não te fará feliz esta noite.

Ele a atraiu bruscamente para si.

— E você fará?

Sam olhou seus olhos intensos e duros. Seu corpo musculoso vibrava sob o seu.

— Estive pensando nisso — disse suavemente. — Estive pensando em sexo pelo valor de duzentos milhões de dólares.

Ian sorriu lentamente.

— Talvez eu tenha lhe dado muito tempo para pensar nisso.

— Talvez sim — murmurou ela.

O desejo de Ian estava misturado com raiva e medo, de alguma forma Sam sabia e sabia também que essa raiva era muito, muito profunda.

— Venha para a casa do Hemmer comigo para que possamos jogar — murmurou.

— Esta noite não estou de humor para provocações — alertou ele.

Sam não desviou o olhar.

— Então, o que ela faz em seu sofá?

— Desafios — Ian encolheu os ombros. — Não vou permitir que vá sozinha a casa de Hemmer. Sam sentiu que seu coração disparou. Sentia o corpo duro de Ian apertado contra o seu, palpitando.

— Eu não penso assim.

O olhar de Ian tornou-se escrutinador. Soltou-a.

— Seria apropriado ter um pouco de medo, Sam. E um pouco de cautela.

Sam riu suavemente.

— De uma alma imprudente para outra — sorriu para Jan. — Então, vocês chegaram a um acordo? Ficou clara a... posição? Quero dizer, ficou tudo estabelecido? — Ela estava consciente do quadril de Ian e sua mão ainda apoiada em sua cintura.

Jan levantou, visivelmente zangada.

— De certo modo, sim. Vamos terminar nossas bebidas Sam. Em particular. Ian estava muito mais calmo e mais razoável até que você apareceu. Sua noite na casa de Hemmer pode ser adiada.

Uma ova! Pensou Sam. Ela abriu sua bolsa. Ian a olhou como um falcão quando lhe deu o DVD.

— Acho que ela esta me chutando para fora.

— O que é isto? — ele perguntou, desconfiado, olhando o DVD, antes de olhar para ela.

Ela compreendeu nesse momento que ele não viu a gravação, sentiu-se eufórica.

— Algo que provavelmente você goste... e muito. Eu o veria antes de ir para a cama. Talvez você possa assistir com ela, enquanto tomam o vinho. Entretanto, estou muito atrasada, porque não vem quando acabar com ela? — virou-se para sair.

Mas Ian a agarrou pelo braço de novo e a apertou contra seu corpo. Seu olhar se estreitou, desconfiado.

Atrás deles, Jan disse:

— O que está tramando, Sam?

— Eu sou boa em proporcionar entretenimento aos outros. Isso se chama “negociar”, “jogos preliminares”, “selar o trato” ou como você quiser.

— O que há nesse DVD? — perguntou Jan, cuidadosa.

— Foi um presente — disse Sam tranquilamente. Olhou para Ian. O desejo crispava entre eles. — De nosso rival favorito.

Os olhos deles arregalaram. Então ele a soltou e cruzou a sala de estar com o DVD na mão. Sam viu um laptop em cima de uma mesa antiga. Seu corpo vibrava ardente. O desejo começou a manifestar-se havia algum tempo, possivelmente quando se conheceram em Oban, e agora era explosivo.

Jan seguiu Ian. Tinha uma expressão de desgosto. Lançou um olhar sombrio para Sam ao passar a seu lado. Claramente não confiava nela.

Sam tentou não rir.

— O que foi sombra dele?

— Se eu entendi você, esse DVD é do Hemmer — disse Jan. — Você contou ao Nick?

— Não — Sam murmurou enquanto Ian sentou-se à mesa.

Jan se aproximou dele e disse:

— Deveria tomar cuidado — olhou para Sam. — Por que tenho a sensação de que é uma armadilha?

— O DVD me foi dado de presente, Jan. Não foi ideia minha.

Ian deslizou o DVD na unidade.

— Ela pode me pegar em uma armadilha a qualquer momento.

Jan disse:

— Espero que o ciúme não tenha arruinado por completo seu bom julgamento.

Sam não pôde evitar sorrir.

— Sim, e os porcos podem voar como voava ontem seu táxi. Não estou tão ciumenta — ela não sabia como reagiria Jan ao ver a gravação, mas esperava que se sentisse envergonhada. Não, mortificada.

Ian, por sua vez, ia morder o anzol, se contorcendo e ia perder todo o controle.

Jan olhou a ambos e voltou a olhar o computador.

— Sabe? — disse por fim — Você pode ser uma cadela, mas não te odeio, embora você me odeie. Você só me odeia porque sou atraente e estou mais perto do Nick que você. A verdade é que te respeito, Sam, embora esteja pendurada de uma centena de maneiras diferentes.

— Nossa, estou comovida — respondeu Sam, e então começou a ouvir seus próprios gemidos de prazer.

Ian ficou imóvel, com o olhar fixo na tela. Jan olhou para o monitor e ficou vermelha.

Sam se esqueceu dela. Olhava fixamente Ian. Ele parecia estar em transe. Sua expressão era dura, seu olhar fascinado. Sam sabia o que ele estava assistindo. Viu várias vezes aquela primeira cena, e algumas outras.

Jan saiu. Sam mal notou. O ar da sala havia mudado. Agora estava carregado, parecia arder. Ian continuava com o olhar cravado no monitor. Seus olhos escureceram inacreditavelmente. Sam via seu peito subir e baixar sob a camiseta.

— Venha aqui — ele disse suavemente.

Chegou a hora da verdade, pensou ela.

— Só se pedir, por favor.

Ele ergueu os ombros e afastou o olhar do monitor. Seu olhar era ofuscante, brilhava como um relâmpago.

— Você realmente acha que pode me provocar com uma gravação?

— Eu, vagamente, pensava isso — respondeu ela com ironia. — Você não preferiria vir comigo para a casa do Hemmer a ficar aqui com essa virgem renascida?

           Ele voltou a olhar a tela. Respirou fundo.

           — Venha aqui.

           Sam odiava receber ordens, mas não dessa vez. O desejo se apoderou dela ao ouvir a voz áspera de Ian. Aproximou-se dele lentamente, lembrando que aquela era a reação que procurou. Mas Ian teria ter que se contorcer... e muito. E não porque ela quisesse escapar, mas sim porque queria vê-lo suplicar.

           Parou junto à cadeira onde ele se sentou, antes que pudesse olhar para a tela, Ian a agarrou pelo pulso.

           — Quantas vezes você assistiu isso?

           Sam molhou os lábios e tentou falar, mas não conseguiu. A mão de Ian ardia sobre sua pele. Seu rosto estava tenso, crispado. Sam olhou o monitor e respirou fundo, seu coração pulsava com violência, suas coxas inacreditavelmente apertadas.

           Ian estava esfregando seu anel de aço contra seu corpo, por toda parte, com seu membro largo e enorme.

           Ele apertou a tecla de pausa.

           Sam olhou sua mão. Tinha os nódulos brancos. Olhou mais embaixo, para a enorme protuberância na calça jeans. Aquilo estava doendo. Mas isso era bom porque ela estava se machucando também. E ela estava sofrendo por algum tempo... então olhou para a tela.

           — É uma pena que as câmeras fossem fixas. Um zoom teria sido ótimo — disse ela com voz pastosa.

           Ele levantou lentamente o olhar.

           — Oh! Eu posso dar um close.

           Ela molhou os lábios.

           — Estamos indo a uma festa.

           — A festa está bem aqui.

           Sam custava lembrar por que queria vê-lo ofegar por ela. Ian a agarrou pelos quadris e a atraiu para si, então sorriu para ela. Por um momento, Sam pensou que ia esfregar o rosto contra seu vestido, entre suas coxas, contra seu sexo.

           — Pode vir comigo, ou vou sozinha.

           — Ameaças — Ian a soltou, se levantou e levou a mão ao zíper do jeans. O coração de Sam cambaleou. Ele deslizou a mão por seu enorme vulto enquanto a olhava, depois baixou o zíper lentamente, com os olhos fixos em seu rosto.

           Sam sabia que parecia hipnotizada. Ouvia o batimento selvagem de seu próprio coração. Deveria fingir indiferença, mas não podia afastar o olhar. Sentiu que Ian esboçava um sorriso divertido. Seu membro ereto ficou livre. O anel de aço reluzia, perfurado à parte baixa da glande. Sam sentiu as coxas apertando, os joelhos falhando.

           — O que está errado? Vai desmaiar? — brincou ele.

           Estou tonta, pensou Sam, aspirando fortemente. Ele deixou escapar um som suave, tomou sua mão e a fez deslizar por seu eixo. Sam tentou respirar e não conseguiu. O anel estava agora na extremidade do seu polegar. Ele agarrou a barra do seu vestido.

           — Eu não vou sair desta sala — disse ele. — Nem você, até eu mandar.

           Era tão difícil falar. E era ainda mais difícil pensar.

           — Eu não quero ir a lugar nenhum — ouviu-se dizer espessamente. Ela passou a mão ao longo de seu membro. Ele estava latejante, em silêncio. Seu próprio corpo estava à beira da implosão. Ela se perguntava se o anel doeria. Havia uma linha muito tênue entre o prazer e a dor.

           Tarde demais, quando ela tocou o anel e o ouviu ofegar, ela percebeu que não estava no controle. Estava louca de desejo por ele.

           — Não pare — disse ele, subindo o vestido pelas coxas.

           De algum modo Sam conseguiu olhar para cima. Ian sorriu com arrogância. Seus olhos refletiam uma expressão triunfal.

           — Bastardo — ela conseguiu dizer. Ian ganhou.

           — Será que você realmente acreditava que iria me enganar com esse vídeo de sexo? —murmurou ele. — Quem está mandando agora?

           Sam afastou o olhar de seus lindos e ardentes olhos e olhou sua boca entreaberta. Amaldiçoou, agachou-se, agarrou com mais firmeza seu membro e aproximou a língua do anel. Ele deixou escapar um grito. Então ela começou a saboreá-lo, o anel contra sua língua. Ian tremeu violentamente.

           — Quantas vezes viu a gravação?

           Ela chupava forte, incapaz de falar. O anel roçava sua língua. Ian a agarrou com mais força.

            — Quantas vezes?

            Sam sufocou um gemido. A pressão era cada vez mais intensa. Ela começou a tremer, com a bochecha apertada contra seu membro e o anel cravando-se em sua pele. — Realmente quer que responda e que pare? — conseguiu dizer com voz rouca.

           Ele baixou a mão até seu queixo e a obrigou a olhá-lo.

           — Nunca mais voltará a desejar um desses brinquedinhos jovens.

           Olharam-se nos olhos. O olhar de Ian era feroz, triunfal, cheio de uma luxúria deslumbrante. Depois, a fez voltar à posição vertical. Sam agarrou seus ombros instintivamente.

           — Maldito seja, Maclean — disse ela asperamente, inclinando-se totalmente para ele.

           — Você está pronta para mim.

           Ele estava certo. Sam rodeou-lhe a cintura com uma perna. Ele a apoiou contra mesa do escritório. Sam o rodeou com a outra perna.

            — Espere — sussurrou ele.

            — Bastardo — respondeu ela. Ian a penetrou. Seu enorme membro a encheu por completo, deixando-a deslumbrante, quase inconsciente. Um instante depois, o prazer começou a intensificar-se. Sam deixou escapar um grito. Havia tanto calor... A pressão era insuportável. Ele riu e a empurrou sobre a mesa, para que ela ficasse na horizontal, jogando objetos e fazendo papéis voar.

           — Eu disse a você que era o melhor.

           Meu Deus, pensou ela, ele estava certo. Sua mente foi nublando a medida que as ondas de prazer rompiam dentro dela. Ian a agarrou pelos ombros e começou a mover-se com urgência, penetrando-a com força, profundamente. Sam sentiu o anel. Ele lançou-a para outro precipício, e também gritou.

           Ian se movia agora mais depressa, com mais urgência. Seu sêmen ardia. Sam queria ainda mais. Aquele prazer era tão intenso, tão cru, que parecia sobrenatural. Sentindo que voava, arranhou-lhe as costas. Ele agarrou suas mãos para contê-la, rosnando, ainda empurrando repetidamente. Ele perdeu o equilíbrio ao tentar segurá-la e Sam bateu com a coxa, o joelho, na cavidade entre as suas costelas. Ao ver que ele engasgava uma exclamação de surpresa, ela o levou para fora da mesa. Chocaram-se contra a parede mais próxima e caíram ao chão.

           Maclean tentou amortecer a queda para não machucá-la. Quando seu ombro bateu no chão, ele a apertou contra seu corpo, colocando-a em cima dele. Sam colocou um joelho de cada lado de seus quadris. Ele arregalou os olhos com surpresa e sorriu. Sam olhou seu membro ereto, entre eles, e conteve a respiração.

           — Isso tem que doer.

           Ele a agarrou brutalmente pelo pulso.

           — Eu gosto de sentir dor. Foda-me, Sam.

           Ela esqueceu do anel e da dor que isso poderia causar. Desceu com força sobre seu eixo. Dessa vez, foi Maclean quem quebrou primeiro.

          

            Ela nunca adormecia depois do sexo. Mas dormiu. Abriu lentamente os olhos.

           Estava no chão da sala de estar, sozinha. A luz do amanhecer começava a penetrar pelas janelas que davam para o Park Avenue. Ao sentar-se, notou uma ligeira dor de cabeça e viu que tinha as unhas quebradas. Recobrou as forças. Tinha recuperado a coerência. E estava assombrada.

           Fizeram amor como se fosse questão de vida ou morte. Se ele a queria de joelhos, ela queria ficar por cima dele, se ele se mostrava dominante, ela tentava submetê-lo. Tocou seu queixo, que notava dolorido. Em algum momento bateu contra a mesa de café. Também doía a parte de trás de sua cabeça, que bateu contra a parede. Quanto à parte inferior das costas, bem, ela esteve em suas mãos e joelhos e gostou muito. No momento em que compreendeu isso, ela empinou. Cara, isso machuca, pensou.

           Insaciáveis, fizeram um amor louco, selvagem e violento quase toda a noite. Ela era extremamente forte, ele tinha superpoderes que o faziam ainda mais forte, e haviam esgotado um ao outro ao tentar dominar-se mutuamente. Ao sentar-se agora, completamente nua, Sam não soube o que pensar.

           Nem sequer haviam se beijado.

           Foi o encontro sexual mais brutal, primitivo e ansioso que jamais teve. Ou foi apenas sexo? Ele era sombrio. Nunca desejou alguém como desejava Maclean e isso não tinha explicação, sendo ele como era. O desejo era impressionante, a urgência mais ainda. Mais tarde tentaria descobrir por que o desejava tanto, estando ele tão cheio de cicatrizes, tendo tantos defeitos, sendo tão incapaz de comportar-se como uma pessoa normal. E, maldição, ele venceu. Não foi como ela imaginava que seria. Estava fora de si com aquele desejo, como nunca antes. Ele havia dominado a situação quase toda a noite.

           Por outro lado, ele a havia desejado desesperadamente.

           Em certo momento, durante uma breve pausa, ele a olhou de uma forma muito estranha, colocando-a sob seu corpo, como se temesse voltar para a realidade.

            Sam abraçou a si mesma, um gesto estranho nela. Estava realmente abalada. Porque desespero era o melhor modo de descrever a paixão de Maclean, seu impulso sexual, sua ânsia aconchegante. O prazer e a dor se fundiram até formar uma coisa só, horrível e retorcida, e aquilo começou durante seu cativeiro. Ela não tinha dúvida.

           Seu coração ficou agitado. Sentia compaixão por ele. Sentia preocupação.

           Lembrou a expressão que viu em seu rosto tantas vezes essa noite. Quando estava a ponto de alcançar o êxtase, seu semblante perdia sua máscara zombadora e seu verdadeiro rosto era revelado. E as emoções que o rondavam tornavam-se óbvias. Sam viu angústia, confusão e alívio.

           Sam começou a amaldiçoar, inquieta.

           E o que dizer do êxtase incrível que ela experimentou? Pareceu-lhe que se ruborizava. Aquele safado tinha razão. Ele foi capaz de dar a ela mais prazer do que jamais teve. Aquele também era um dom concedido pelos deuses? Os mortais não podiam alcançar o clímax dezenas de vezes em uma única noite, sem parar.

           De repente ela puxou as pernas para o peito. Porque estava analisando o que acabava de acontecer? Era apenas sexo! Ela evitava as relações íntimas como se fossem a peste, e nunca se incomodava em pensar em suas conquistas. Para que? Eram simples entretimentos. Chegavam e iam.

           Maclean, entretanto, não era um de seus garotos-brinquedos. O sexo com ele foi selvagem e impressionante. Sam não podia compará-lo com nenhuma outra experiência. Eles não tiveram diversão. Não se beijaram. Eles, inclusive, fizeram mal um ao outro. Ela gozou mais que nunca. Mas sentia um estranho desconforto, quase como decepção ou desânimo. Tinha a impressão de que faltava algo na experiência.

           Mas devia estar enganada: não podia estar decepcionada, já que ela queria apenas sexo.

           Ambos obtiveram o que queriam. Não?

           Havia uma coisa mais. O que acabaram de fazer não era nada parecido com o que havia naquele DVD.

           Sam levantou lentamente, incapaz de sacudir aquela sensação de incômodo. O DVD tinha que ser uma montagem, no fim das contas, porque os protagonistas da gravação pareciam se amar. Quanto ao ocorrido essa noite, não havia razão para pensar nisso. Se ela se permitiu sentir pena dele, logo ele estaria na sua mão.

           Olhou ao seu redor e viu seu vestido no chão, não muito longe da mesa. Recordou que Ian o arrancou e o atirou no chão. Ficou em pé. Sabia desde o começo que Maclean não podia lhe trazer nada bom. E isso significava que devia manter-se afastada dele.

           Aquilo não devia se repetir. O DVD não podia vir do futuro.

           Hemmer... Eles o deixaram plantado. Certamente estaria furioso e fazendo todo tipo de planos para eles.

           Sam se aproximou e pegou seu vestido. Estava rasgado ao meio, inútil. Não se sentiu melhor. Sua determinação era frágil. Manter-se afastada de Maclean era impossível: ele tinha a página. Começou a procurar sua bolsa, que estava no console, não muito longe do sofá onde se sentou Jan a noite anterior. Então ela quase sorriu. Jan não teria conseguido moldar Maclean: ele teria se aborrecido mortalmente com ela.

           Ela encontrou seu telefone celular, mas decidiu que não podia chamar Kit novamente. Não queria ter que lhe explicar o que aconteceu, não que ela realmente pudesse.

           Maclean era um desastre e ela estava confusa. Ela, Sam Rose, uma Matadora temida em todas as ruas da cidade, estava confusa. Era a primeira vez que acontecia. Sempre sabia que caminho seguir e era capaz de escalar qualquer obstáculo que se colocasse em seu caminho. Se alguma vez precisou de uma amiga, era agora. Talvez fosse a hora de colocar à prova sua amizade com Kit.

           Estremeceu. Não tinha roupa e Maclean manteve o ar condicionado muito frio. Olhou a hora em seu celular. Eram cinco e meia da manhã. Duvidava de que encontrasse com Gerard se subisse ao terceiro andar e procurasse algumas roupas.

           Então ela sentiu seu olhar. Voltou-se lentamente, notando um formigamento na nuca, e olhou para a porta.

           Maclean estava ali, em pé entre as sombras do amanhecer, vestido só com um jeans que nem mesmo abotoou, e a cruz que tinha pendurada do cordão de couro. Olhava para ela como um falcão. Era impossível saber o que estava pensando, porque seu rosto era inexpressivo.

           O coração de Sam deu um baque. O desejo e a tristeza se fundiram.

           Nem sequer tentou tirar algo de importante daquele momento. Ian se aproximou cos músculos tensos. Sam viu que ele carregava algumas roupas nas mãos, ficou tensa. Quase esperava que lhe atirasse a roupa. Mas Ian a entregou.

           — Pedi um táxi para você — disse. Tinha um arranhão na mandíbula e outro no ombro. Eram profundos e um ainda sangrava.

           Sam aceitou a roupa. Sentindo-se tímida de repente, fechou o corpo com o pacote de roupa. Antes da noite anterior ela teria feito um comentário debochado sobre ele ter pressa para ela ir embora, mas em vez disso, disse:

           — Obrigada.

           Ele encolheu os ombros e saiu.

           Quando ela foi embora, Ian se deitou em sua cama, vestido ainda com os jeans, e olhou o teto com expressão séria. O que havia acontecido?

           Seu coração estava disparado. Em sua mente se repetiam imagens carregadas de paixão, apesar de que ele nunca pensava em suas conquistas depois de transar com elas. Ele não tinha certeza de que Sam Rose fosse uma conquista. Ele desconhecia o que tinha exatamente acontecido nessa noite. Nunca teve um encontro sexual tão físico e violento. Nunca desejou uma mulher como a desejou.

           Tocou-se, ainda excitado. Sam lutou para dominá-lo. E ele tinha respondido do mesmo modo. Não sabia quem havia ganhado. Talvez ele. Agora, Sam sabia como ele era bom na cama. Mas lamentava havê-la deixado partir. Ele poderia facilmente tomá-la de novo.

           Por que ele a fez sua com tanta ferocidade? Por que se mostrou tão insaciável? Tão desesperado?

           Sentia-se inquieto, inseguro. Ele havia se sentido extremamente atraído por ela desde seu primeiro encontro. Ele ainda vagou ao longo do tempo uma ou duas vezes depois daquele dia no Oban, apesar de que evitava saltar no tempo como um homem medieval procurava fugir da peste. Agora, aquela atração era ainda pior: era constante, arrebatadora. E não gostava de sentir uma atração que não podia controlar ou ficar longe.

           Pensou no DVD e se perguntou como esses dois amantes tão selvagens podiam chegar aquele outro lugar. Suas entranhas apertaram tanto que doeu. Ele nunca permitia que as mulheres o tocassem como ela o tocava no DVD: com ternura ou afeto. Se uma mulher sorria para ele enquanto praticavam o sexo, como acontecia com Sam na gravação, ele fingia não ver.

           Compreendeu o quanto a desejava de novo pelo modo como seus jeans apertavam. Pensar nela estava piorando as coisas. Estava incrédulo e confuso. Sam devia tê-lo impressionado enormemente, porque ele sempre se esquecia das mulheres depois de possuí-las. Nunca queria repetir. Quando voltava para uma amante, era porque não tinha nenhuma outra conquista no horizonte, ou porque a mulher na verdade, era um meio para alcançar um fim, como no caso da Becca. Frequentemente utilizava as mulheres simplesmente para escapar de si mesmo. Ansiava por sexo dia e noite, e sabia que isso se devia a seus sessenta e seis anos de cativeiro. Quando gozava, não havia lembranças, nem passado.

           Era um amante egoísta, e disseram isso a ele um milhão de vezes. Mas não se importava. Não se preocupava com o que sentiam as mulheres quando estavam com ele. Os deuses, sempre tão vaidosos, o dotaram de uma virilidade tal que era capaz de satisfazer suas amantes sem esforço. Ele teve a sorte de herdar essa capacidade genética de seu bisavô, ou ele acreditava nisso. Nunca se incomodava em fazer gozar suas amantes: simplesmente, acontecia, quase sempre quando ele se entregava a seu próprio prazer.

           Sam Rose possuía, entretanto, um corpo e um rosto que fazia os homens quererem tocá-la. Ian não lembrava ter acariciado jamais uma mulher. Quando beijava suas amantes, fazia isso com brutalidade. E evitou beijar Sam.

           Ian ficou olhando o teto até que as molduras começaram a ficar turvas aos seus olhos. Não a acariciou, nenhuma só vez. Não a beijou, mas sentiu intensamente sua pele e sua boca. Agora ele tremia ao recordar o único beijo que compartilharam em frente ao cofre. Foi feroz, e ela provocou.

           De repente lamentou não havê-la beijado, brutalmente ou não, e não havê-la acariciado. Não ter passado, talvez, sua mão por aquelas incríveis pernas. Ele estava ficando mais excitado apenas pensando nisso.

           O que estava errado com ele? Por que ele estava deitado na cama, excitado, depois de ter feito sexo?

           Nunca conheceu uma mulher como ela. Ele podia admitir isso. Não era só por seu rosto ou corpo. Nem por sua habilidade como Matadora. Era por sua coragem. Tinha mais valor no dedo mindinho que ele tinha em todo o seu corpo. Sua valentia o surpreendeu e o encantou. Talvez por isso a sua obsessão.

           De repente desejou não tê-la magoado.

           Sentou-se bruscamente. Era um homem sem sentimentos, um egoísta, e ele sabia disso. Era tudo parte de seu caráter defeituoso. Quando se é mantido prisioneiro por mais de seis décadas, se aprende a preocupar-se apenas consigo mesmo. Não acreditava que pudesse mudar, não queria mudar, porque o melhor modo de sobreviver era não ser cruel. Sabia por experiência. Mas não queria machucar Sam Rose. Que demônios significava isso?

           Lembrou-se dela em pé, nua, na sala de estar, segurando a roupa que lhe deu contra o corpo, como se fosse tímida ou pudica. Parecia vulnerável. Mas Sam Rose não era vulnerável. Ian não conseguia decifrar esse instante. Foi simplesmente embaraçoso para ambos. E isso também não fazia qualquer sentido.

           Ele não tentou ler seu pensamento, deliberadamente. Não queria saber o que ela estava pensando.

           — Isso tem que doer.

           — Eu gosto da dor.

           Ian ruborizou. Acabaria por revelar todos seus segredos, se não tomasse cuidado. Odiava a dor, mas as pontadas de dor que lhe causava aquele anel eram tão necessárias quanto respirar.

           As lembranças do menino começaram, nebulosas e dolorosas, mas fechou os olhos e procurou afugentar aquelas imagens. Em vez disso viu seu avô, cruel e satisfeito. Viu as caras de seus guardas. Viu o monge, o último grande demônio com o qual esteve, um carcereiro que brincou com sua mente, algumas vezes seu melhor amigo, outras, seu pior inimigo.

           Seu estômago se revolveu. O desejo começou a retroceder. Temendo reviver de novo aquelas lembranças, levantou-se e começou a vestir-se. Mas estava pensativo.

           Usou Sam Rose por sexo e ela o usou em troca. Estava acostumado a servir-se das mulheres. Ainda não conheceu nenhuma que não estivesse disposta a fazer o que ele quisesse em troca de sexo. Não era consciente. Era o poder concedido pelos deuses: a persuasão sexual era nele uma espécie de capacidade hipnótica que o fazia irresistível. Usou Becca impiedosamente para entrar no cofre e roubar a página.

           Sam Rose era muito poderosa. E era inteligente, mas começou a sentir pena dele. E teve acesso ao arquivo.

           Ian vestiu uma camiseta. Ele detestava que ela suspeitasse de seus segredos. Odiava sua compaixão. Estava quase certo de ter visto piedade em seus olhos um momento atrás, igual ao que ocorreu no escritório de Nick. E também viu preocupação.

           Sam tentou manipulá-lo ao lhe mostrar aquele DVD a noite passada. Ian sorriu. Não se deixou manipular.

           Porque não deixá-la sentir pena dele? Ele poderia manipulá-la, por sua vez, para que lhe desse o arquivo?

           Ficou tenso. A última coisa que ele queria era um envolvimento de qualquer espécie. Além disso, era incapaz de travar os relacionamentos mais básicos e passageiros. Ele não tinha amigos.

           Devia manter-se afastado dela, mas sabia que isso era impossível. Inclusive agora estava muito excitado. E estava acostumado a obter o que queria e quando queria, especialmente quando se tratava de sexo.

           Não estava seguro de poder manipular Sam unicamente com sexo. Mas podia tentar.

 

            — Não me convida para subir e tomar um drink? — Sam saiu das sombras que projetava o crepúsculo enquanto falava.

           Rupert Hemmer acabava de sair de seu Sedan e se preparava para entrar no edifício. Sam estava esperando por ele. Eram seis da tarde.

           Ele se virou lentamente e sorriu, satisfeito, sem tentar fingir surpresa.

            — Bem, mas se é a misteriosa Samantha. Ontem à noite nos deixou plantados. Eu estava muito desapontado.

           Sam devolveu-lhe o sorriso, apesar do estômago encolher. Percebia subitamente a maldade de Hemmer, como se antes ele a tivesse disfarçado. Isso podia ser feito com poder ou com magia negra.

           — Tive um imprevisto — ela procurou esvaziar a mente, para o caso dele poder ler.

           Hemmer a olhou, notando sua saia jeans curta, sua camiseta de alças e suas botas de motorista.

           — Um traje interessante para tomar um coquetel. Claro que pode subir. Onde está sua última conquista?

           — Talvez com sua mulher.

           O sorriso do Hemmer não vacilou, mas sua expressão escureceu. Sam havia colocado o dedo na ferida.

           — Seu descaramento não me surpreende Samantha. Dificilmente você vai desequilibrar-me com seus comentários.

            — Meu nome é Sam. E a chantagem também não me surpreende, vinda de você, Rupert.

            Ele sorriu com frieza e a conduziu para os elevadores que havia no fundo do lobby.

           — Pode ser que Becca esteja com Maclean. Ela me disse que esta noite ia sair com umas amigas. Tem muita energia, se me entende.

           — Que bonito é o amor verdadeiro — mas seu coração apertou, com a ideia de Ian com Becca Hemmer.

           Não que pudesse se importar com o que fizesse, nem com quem o fizesse. A noite anterior foi um encontro passageiro, sem repercussões, para ambos. Mas pensava muito nele e aquela sensação de compaixão não desapareceu. Pelo contrário, parecia ter enraizado junto com a uma semente de preocupação.

           Hemmer lançou-lhe um olhar.

           — Casei-me com ela por seu incrível corpo e pela forma como usa a boca. Isso para não falar que meus rivais perdem a cabeça quando ela está presente — encolheu os ombros. — Você também tem energia suficiente, não é, Samantha?

           — A verdade é que estou esgotada, não é incrível?

            — Deve ter sido uma noite gloriosa — seus olhos brilharam quando entrou no elevador. — Você sabe o que significa se eles estiverem juntos?

           — Se estiverem juntos, temos sua casa para nós sozinhos. Que sorte a minha. Bom, de onde você conseguiu esse DVD? — Hemmer continuava sendo uma de suas prioridades. Havia falado com Kit e o DVD não era falso. O que significava que, algum dia, Maclean e ela fariam amor. Seu coração acelerou.

           Hemmer apertou o botão do apartamento de cobertura.

           — Coleciono vídeos pornôs, Samantha. E decidi dedicar uma série só a você.

           Ela ficou tensa.

           — Que amável.

           — Eu acho que sim.

           — Então, você teve um monte de problemas para conseguir essa gravação.

           — Na verdade, não.

           — O vídeo veio do futuro.

           — Garota inteligente.

           — Os mortais não podem viajar no tempo. Então, quem fez o trabalho sujo para você?

            — A verdade é que, embora seja humano, possuo esse poder.

            Sam o olhou nos olhos. Já não sorria. Não era uma coisa boa que Hemmer pudesse saltar no tempo a vontade.

           — Uau! E o que isso te custou? Sua alma?

           Hemmer a conduziu para fora do elevador.

           — Algo assim — sorriu, satisfeito.

           Sam estremeceu.

           — Tem frio?

           — Algumas entidades malignas vão acompanhadas de uma grande sensação de frio.

            — Sim, algumas.

            — O que espera que faça por você, Hemmer? Além de transar, coisa que não penso fazer, certamente. Eu sou uma boa garota.

           Hemmer riu. Entraram no grande hall de mármore onde realizou a festa na noite anterior e em seguida apareceram um punhado de serventes uniformizados.

           — Eu espero que você mude de ideia. Sou um homem muito paciente e posso esperar Samantha.

           — Meu nome é Sam.

           — Eu não gosto dos diminutivos.

           — E eu não gosto dos demônios nem seus descendentes, sejam de sangue ou não. Na verdade eu não gosto do mal, e ponto, seja qual for sua forma e seu gênero.

           Hemmer enfrentou seu olhar.

           — Você não tem medo de mim, mas isso vai mudar.

           Sam encolheu os ombros.

           — A esperança é uma coisa maravilhosa.

           — Incomoda-me a falta de respeito, reconheço isso. Estou desejando te fazer mudar de atitude... esta noite.

           Sam se perguntou que truques guardava na manga. Ela não tinha medo. Hemmer era repulsivo. O mundo estaria melhor sem ele. Decidiu naquele instante fazer esse favor ao universo, quando chegasse o momento. Agora tinha que descobrir como ele pretendia usar o DVD e quem era seu contato no sobrenatural.

           — Bom, vamos cortar todas as baboseiras, Hemmer. O que você quer?

           — Você já sabe o que quero — conduziu-a através da sala. Ela o seguiu. — Quero recuperar o que é meu.

            Sam riu.

   — Maclean não vai querer me dar a página e, embora quisesse, eu a entregaria ao meu chefe.

           — Ah, sim, o lendário Nick Forrester.

           Sam o seguiu até o fundo do apartamento, onde estavam os elevadores e o cofre. Hemmer entrou na sala dos computadores.

           — Como sabe de Nick? — Sam estava surpresa. Hemmer não apenas não deveria conhecer Nick, mas também não deveria estar a par da existência da CDA.

           Ele lançou-lhe um olhar de desprezo.

           — Não sou tolo. Forrester está há décadas lutando contra o lado escuro. Temos alguns interesses em comum.

            — A página, por exemplo?

            — Na verdade sim, embora não estava pensando nisso.

            — Então, quais são suas intenções? Pensa entregar uma cópia da gravação ao Nick? Não se importará. Nem eu me importo.

           Hemmer parou e sorriu.

           — Eu faço minha lição de casa antes de começar uma negociação, Samantha. Como acha que ganhei milhões de dólares?

           — O que quer dizer?

           — Quero dizer que sei que você não se importaria que essa gravação fosse vista em todas as telas de cinema do país.

           Aquilo não estava indo bem, pensou Sam.

           — Então a chantagem está descartada.

           — Na verdade a chantagem pode ser muito eficaz, se for bem feita.

           Ela estremeceu.

           — E como pretende me chantagear?

           — Traga-me a página ou torturarei Maclean. E apreciarei cada segundo — seus olhos cintilaram.

           Sam ficou paralisada. Hemmer a enganou. O DVD não era mais que uma distração. Hemmer sabia demais sobre ela e sobre seus sentimentos e pretendia usar Maclean para ameaçá-la. Mas era lógico. Maclean e ela faziam amor naquela gravação, e ele viu isso. Tentou sacudir o desânimo que a invadiu de repente. Ian não poderia suportar a tortura. Sam sabia. Havia sofrido muito.

           Mas Maclean tinha poder branco, embora não o usasse muito frequentemente. Ela sabia que ele era poderoso e o sentia cada vez mais presente. Então a questão era quanta maldade adquiriu Hemmer? O que podia fazer, exatamente? E, teria Ian poder suficiente para opor-se a ele?

           — Tenho a sensação de que, se as coisas ficarem feias, Maclean o comerá inteiro e o cuspirá feito mingau.

           — E você vai ver — acrescentou ele suavemente. — Eu o torturarei até que chore como um menino e suplique piedade, como um covarde que é. E, quando ele estiver derrubado outra vez, me ocorrem muitas formas de humilhá-lo ao mesmo tempo em que aumento meus poderes.

           Sam sentiu um calafrio.

           — Então, planeja nos submeter os dois?

           — Certamente que sim. Bom, o que prefere? Tenho a impressão de que você gosta de Martini seco.

            — Um virgin Mary — respondeu ela.

Hemmer sorriu.

     — É um encanto, Samantha. Alguma vez você aborreceu um homem?

           — Não, que eu saiba.

           — Decidi perdoá-la por me deixar plantado ontem à noite. Na verdade, decidi ser eu quem te entretenha esta noite. Se já não tiver feito isso.

           Sam ficou tensa. Chegou o momento da verdade.

           Uma das paredes da sala abrigava um bar embutido e uma área de entretenimento. Hemmer se virou e as grandes portas de madeira de cerejeira se abriram revelando uma tela de cinema.

           — Eu gosto da tecnologia moderna — disse.

   Sam não gostava de surpresas.

           — Bom, o que há de graça para ver? — Hemmer teria mais vídeos dela? Com Maclean? Com seus amantes anteriores? Sam disse a si mesma que não se importava, mas sabia que não ia gostar do que estava a ponto de aparecer na tela.

           Hemmer lançou a ela um turvo sorriso e inseriu um DVD. Era de noite e havia lua cheia. Sam esperava que um lobo uivasse. Mas viu o perfil de uma cidade. Os telhados pareciam antigos. Ouviu uma buzina e depois uns ruídos estranhos, como de garras ou dentes de roedores, ouvia um ofego assustado. Uma respiração humana.

           Era hora de partir.

           Hemmer a agarrou pelo pulso.

           — Não tão depressa.

           Sam estava a ponto de soltar-se quando apareceram dois demônios e se aproximaram dela, antes que ela pudesse mover-se para eliminar os guardas, Hemmer disse:

           — Está tão preocupada com seu amante...

           Sam ficou quieta e voltou a olhar a tela.

           Uma gaiola pendurava no ar. E dentro havia algo. Não, alguém. A câmera enfocava a gaiola. Sam viu o rosto pálido de um menino, seus olhos vidrados. Ele agarrava as grades, claramente querendo sair. Mas não havia nenhuma expressão em seu rosto. Estava tão quieto que parecia de cera. Tinha oito ou nove anos, mas Sam soube quem era sem necessidade de que ninguém o dissesse.

           Respirou fundo.

           Uma mão apareceu no plano. A câmera voltou a enfocar. Era uma mão de homem e levava um anel com selo de ouro muito grande e antigo. Quando aquela mão começava a abrir a porta da jaula, o menino a agarrava. O coração de Sam deu um tombo. O menino começou a beijá-la...

           — Agora ele não parece tão sexy, não é? — Hemmer riu.

           Sam sentiu vontade de vomitar. Destroçaram Ian. Sentiu sua ira agitar-se. Nem sequer tentou controlá-la, girou e cravou sua adaga em um dos guardas. Os olhos do demônio dilataram enquanto começava a desmoronar. Antes que o outro guarda a agarrasse, Sam agarrou o pequeno disco afiado como uma faca e o lançou a sua garganta. Atravessou pele, cartilagem, carne e osso, separando a cabeça do tronco. Então Sam se virou para cuidar de Hemmer com suas próprias mãos.

           — Você deveria escolher seus parceiros com mais cuidado. Realmente quer ter um envolvimento com esse bastardo patético? — antes que acabasse de falar, Hemmer desapareceu.

           Sam gritou de frustração. Então se aproximou do vídeo e parou o disco, ficou ali, tremendo de ira. Hemmer havia se aliado a uma entidade maligna que lhe deu poder demoníaco.

           E esse vídeo... Sam teria desejado não vê-lo. Ela lembrou a si mesma que foi apenas um menino em uma gaiola, mas a lembrança não funcionou.

           Quanto tempo Ian ficou prisioneiro quando gravaram aquele vídeo? Meses? Anos? Ou décadas? Quanto tempo o mantiveram ali? Aquela mão era de Moray?

           Naquele instante compreendeu que, se Hemmer a pressionava, conseguiria a página do poder da miragem para ele. Ela não permitiria que Maclean voltasse a sofrer.

           Mas ainda não chegaram a esse extremo.

           Sam se aproximou dos demônios mortos. Estavam começando a desintegrar-se e recolheu suas armas, guardou a adaga na capa que levava na altura da coxa, sob a saia, e o disco em outra que tinha atada ao redor da cintura, sob a camiseta.

           O escritório do Hemmer estava junto ao cofre. Talvez pudesse encontrar o código para entrar, se tivesse sorte. Duvidava de que tivesse muito tempo.

           — Eu disse que não se aproximasse de Hemmer.

           Sam não sentiu sua presença. Levantou o olhar, sobressaltada. Maclean estava na porta da sala, quieto como uma estátua e estranhamente pálido.

           — Quanto tempo está aí?

           — Um momento — respondeu com aspereza.

           Ela ficou olhando-o. Não conseguiu adivinhar se ele sabia o que acabava de passar no vídeo. Rezou porque não soubesse.

           — Já sabe o que se costuma dizer: não se consegue ensinar truques novos a um cachorro velho. O que faz aqui?

           — Hemmer é perigoso. Te disse isso antes e digo isso agora.

           Ela se ergueu.

           — Não brinca. A verdade é que ele tem alguns amigos super maus que lhe deram superpoderes. O que o traz aqui, Maclean?

           — Eu sabia que estava aqui.

           Ela o olhou fixamente.

           — Estava me espionando?

           Ian encolheu os ombros.

            Sam fechou a cara. Se Ian tinha telepatia visual, poderia espioná-la a qualquer momento. E isso era enervante.

           — Eu sei que você não veio me resgatar.

           — Você é uma garota valente. Não precisa de mim para resgatá-la.

           — Até as garotas valentes podem precisar de um pouco de ajuda de vez em quando — replicou ela. — De qualquer forma, você chega em bom momento. Hemmer acaba de desaparecer... no tempo. Sim, ele tem esse poder. Não é ótimo? — começou a aproximar-se dele. Ian não se moveu. Sam parou diante dele. — Vou pedir um enorme favor. Quero entrar no cofre antes que ele retorne.

           Ian sustentou seu olhar.

           — É uma armadilha.

           — Hemmer sabia que ia torcer sua garganta, foi embora porque teve medo.

           — Ele não tem medo de você. É uma armadilha — seu olhar era inabalável agora.

           Ela o agarrou pelo pulso e disse:

           — Abra o cofre — mas só de tocá-lo lembrou cada instante da noite quente anterior, muito forte, para seu desânimo.

           Ian olhou para ela fixamente. Seus olhos também haviam mudado, tornaram-se mais escuros, mais quentes. Sam baixou a mão.

           — Vamos. O tempo corre.

           Ian a agarrou pela mão.

           — Quem tem medo... de quem?

           Sam sentiu que suas entranhas encolhiam.

           — A noite de ontem foi má ideia.

           Ian sorriu devagar.

           — Sério? Esqueça o cofre.

           Ela sentiu a tentação de fazer isso, molhou os lábios e sacudiu a cabeça. — O cofre, Maclean. Do nosso encontro de ontem à noite podemos falar em outro momento. Ele a soltou deu meia volta e se dirigiu para o cofre. Sam apertou o passo para alcançá-lo.

           Ian estendeu a mão para a alavanca e parou. Sam olhou seu rosto. Tinha uma expressão dura e decidida. Estava com raiva, mas Sam não sabia o por quê. Perguntou-se de novo se sabia sobre o vídeo de Hemmer.

           Sam não notou se ele teve que fazer esforço para desativar o sistema de segurança e as fechaduras. Ian empurrou para baixo a alavanca e a porta de aço se abriu. Depois, deu um passo para trás.

           — Vá em frente, Sam — disse com desaprovação.

           Sam ignorou o tom de sua voz. Passou ao seu lado rapidamente ansiosa para encontrar o mal que espreitava dentro do cofre. Uma vez dentro, parou. Maclean ficou na porta. Sam não percebeu nada. Suavemente, ela amaldiçoou.

           — Não o estou sentindo. Pode me ajudar aqui, Maclean?

           Ele entrou no cofre com relutância, levou a mão ao colarinho de sua camisa polo como se tivesse calor. Passou por sua mente que muitas vezes ele agia como se os colarinhos o comprimissem. Ele acenou com a cabeça atrás dela.

           — Está ali.

           Sam se virou. Ao fazer isso, sentiu que um dedo de negra maligna a tocava e estremeceu. Compreendeu de repente que isso estava esperando por ela, antes mesmo de fazer sentir sua presença. Mas Sam continuava sem saber o que era.

           Maclean andou até uma pintura escura de uma família reunida ao redor de uma pequena mesa, em uma casa de campo. Levantou-a de seu gancho. Sam se aproximou. Atrás do quadro, na parede de cimento, havia uma inscrição formada por hieróglifos que reluziam como brasas.

           — O que é isso?

           Ian não respondeu. Sam percebeu que empalideceu.

           — Ian?

           — Eu já vi isto antes — disse ele, carrancudo.

           Ouviu-se uma risada.

           Sam e Ian se voltaram ao mesmo tempo. Hemmer estava na porta do cofre e sorria para eles. Fechou a porta, ouviu-se o estalo das fechaduras.

           Ian inalou fortemente. Sam olhou e viu que ele estava muito pálido. Sam não conseguia entender. Ian podia saltar para fora dali. Ou isso, pelo menos, era o que ele disse. Não tinha por que ficar encerrado dentro da câmara couraçada.

           — Ian? Hemmer obviamente quer brincar conosco.

           Ele puxou a gola da camisa polo, respirando com dificuldade. Sam demorou uma fração de segundo para perceber que ela estava sofrendo uma espécie de ataque.

           — Você tem asma? — ela perguntou.

           Ele não respondeu, asfixiado. Estava ficando vermelho agora.

           — Ian! — rodeou-o com o braço, alarmada. — É asma?

           — Não... Não posso respirar! — ele caiu de joelhos. O suor descia pela testa e têmporas. Ele ofegou, tentando tomar ar. Ou tinha claustrofobia ou estava sofrendo um ataque de ansiedade.

Sam se ajoelhou ao seu lado, rodeando-o ainda com o braço.

— Ian, aqui há ar de sobra. E nós não estamos trancados. Você pode saltar.

Ele olhou para ela. Os olhos arregalados de pânico. Sam ficou atônita. Ele realmente estava assustado.

           De repente, ele simplesmente desapareceu no ar.

           Mas ela ouviu seus gritos.

 

           No chão, de costas, olhava para o teto de sua biblioteca, gemendo descontroladamente. As lágrimas corriam por seu rosto. Sentia tanta dor... Não podia suportar. Teve que lembrar que já não era um menino, nem estava prisioneiro. Teve que fazer um esforço por convencer-se de que a dor passaria. Tinha a sensação de ter sido quebrado em mil pedaços. Parecia estar morrendo. Havia saltado outras vezes, quando não havia outro remédio. Ou quando estava desesperado e sua urgência superou o medo do salto. Mas nesse momento desejava morrer. Rezou, como de outras vezes, para encontrar alívio finalmente.

           — Sir! —Gerard tinha se ajoelhado ao seu lado.

           Ian sentiu um leve alívio. Enquanto gemia e estremecia, sacudido pela dor de seus ossos quebrados e seus membros feitos pedacinhos, estava vagamente consciente de que Gerard estava ali; de que colocava uma compressa fresca sobre a testa e empurrava uns comprimidos na boca.

           Fechou os olhos com força. O salto através do tempo e do espaço foi horrível. Viajar a essa velocidade podia destroçar um homem. Era como se lhe arrancassem cada membro do corpo, como se arrancassem a pele, como se os músculos fossem triturados e rachassem os ossos, estilhaçando-se em mil pedaços. Seus órgãos pareciam balões, a ponto de explodir.

           Havia suplicado piedade aos deuses.

           Mas ninguém o ouviu, é obvio. Muito tempo atrás ele também havia suplicado misericórdia, mas em silêncio, para que seus torturadores não o ouvissem.

           Os deuses tinham ignorado esse apelo também. Porque queriam que ele vivesse. Para esse dia. Ian ainda não entendia o por quê.

           A dor finalmente aliviou.

            — Sente-se melhor, senhor? — perguntou Gerard suavemente. As lágrimas umedeciam seu rosto. Podia enxugá-las. Ele odiava-se a si mesmo.

           Mas a dor tinha diminuído até transformar-se em tremores. Não o açoitaram até deixá-lo meio morto, ou eletrocutado, ou torturado. Não estava em uma masmorra, em um porão, ou uma jaula. Estava em sua casa de vinte milhões de dólares em Park Avenue. Estava deitado sobre um formoso tapete oriental, rodeado de obras de arte e antiguidades, e seu mordomo estava ajoelhado a seu lado.

           — Estou melhor — ofegou. Então virou-se sobre seu estômago e vomitou.

           Depois conseguiu sentar-se com ajuda de Gerard. Sempre se surpreendia que seu corpo não estivesse destruído, afinal de contas, que ainda funcionasse. Gerard aproximou um copo dos seus lábios. Ian tomou um gole de uísque escocês envelhecido. O medo e a angústia começaram por fim a refluir, como refluía a maré no oceano. Respirou fundo.

           Sam.

           Ian enrijeceu, incrédulo. Deixou-a sozinha no cofre. — Gerard! — lutou para levantar-se. Gerard o ajudou.

            — Senhor, deveria descansar. O que o possuiu para saltar? Não pode suportar as lembranças!

           Ian encontrou o olhar preocupado de Gerard.

           — Traga meu carro. Agora.

           Deveria saltar para ir procurá-la. Demoraria menos de um segundo. Mas não tinha coragem.

          

       Sam estava incrédula.

           Ian saltou no tempo, deixando-a trancada no cofre! E Hemmer podia voltar em qualquer momento, e teria rido, porque era absurdo, incrível, que ele a deixasse abandonada dessa maneira. Mas o que acabava de ocorrer não tinha nenhuma graça. Ian entrou em pânico.

           Nesse momento, Sam compreendeu tudo. Ian Maclean surgiu como um idiota, egocêntrico, arrogante e ao mesmo tempo rico, sedutor e poderoso. A maioria das pessoas achava que ele tinha o mundo a seus pés. Ian andava pela cidade como se não tivesse preocupações. Mas era uma fachada.

           Ele acabara de ficar emocionalmente descontrolado ao encontrar-se fechado no cofre, apesar do poder que tinha de viajar através do tempo e do espaço e libertar-se. Mas era lógico. Haviam-no trancado em uma jaula. Certamente o fecharam de cem maneiras diferentes. Ver-se fechado no cofre havia disparado nele uma reação que não podia controlar.

           Também não pôde dominar-se ao destruir John. Enfrentar aquele demônio disparou nele uma reação de outro tipo, tornou-se louco ao matá-lo, e depois desabou. Havia derramado lágrimas. E Sam não se deu conta do que significavam essas lágrimas.

           Ela nunca esqueceria o que acabava de ver, nem o que viu naquela outra noite, em seu apartamento.

           Mas havia muito mais. Maclean era incrivelmente complexo. Não se mostrou despreocupado, nem indiferente, ao negociar com Nick a respeito de seu arquivo. Ele estava furioso e desesperado. Sua máscara também foi destruída nesse momento.

           Ian Maclean foi ferido gravemente. Sob sua aparente arrogância, sob sua despreocupação, havia outra coisa que Sam não conseguia imaginar. Só via relances dela. Havia medo, dor e raiva. E possivelmente vergonha. Ian parecia decidido a ocultar seu passado a todo custo, e Sam não podia reprová-lo. A imagem de bad boy era só a ponta do iceberg.

           Sam disse a si mesma que se começava a dar-lhe o benefício da dúvida, estava perdida. A compaixão era ruim o suficiente, mas tentar transformá-lo no que não era, não era bom. Ian não era amável, nem carinhoso. Não de todo. Era, ao contrário, egoísta e cruel. Sam, entretanto, não se sentiu melhor ao pensar nisso. Porque agora sabia o por quê.

           Ela também seria cruel e egoísta se tivesse passado sessenta e seis anos prisioneira de um dos maiores demônios da história.

           Ian foi até casa de Hemmer porque acreditava que ela estava lá e em apuros.

           — Voltou por você, Rose — disse a si mesma. A velha Sam sempre estaria furiosa porque ele a abandou daquele modo tão covarde. Não tinha nenhum respeito por uma pessoa que saía fugindo. Mas não estava zangada absolutamente. Estava impressionada pelo que viu e pelo que começava compreender. Muito poucos seres humanos, mortais ou não, teriam sobrevivido com certo grau de sanidade ao que ele sobreviveu.

           E se ele não era nem a metade de ruim do que aparentava ser? E se debaixo daquela fachada de bad boy houvesse uma pessoa autêntica?

           Sam não podia acreditar em si mesma. Não deveria estar pensando nele. Aquilo não era assunto seu. O seu assunto era recuperar a página.

           Mas estava pensando nele. E, o que era ainda pior, queria saber mais. E ela estava definitivamente sentindo pena dele, não havia dúvida. Já não havia modo de evitar seus sentimentos.

           Resmungou uma maldição.

           E se ele não era um idiota total, se dentro daquele peito musculoso e sexy pulsasse um coração? E daí? No dia em que a página estivesse em boas mãos, seria o dia em que teria terminado. Cada um iria para um lado, não importa essa gravação procedente do futuro. Havia algo estranho naquela gravação. Ela não era capaz de sorrir daquela maneira para um amante, e Maclean não era capaz de fazer amor com uma mulher.

           Disse a si mesma que devia esquecê-lo. E ela ficaria encantada quando acabassem. Sua vida voltaria ao normal, e voltaria a ser Sam a Matadora, sozinha, contra a maldade do mundo.

           Pensou em sua irmã, em Brie e em Allie. Suspirou e se sentou no chão. Já nem sequer sabia o que era normal, pensou.

           Estava de frente para a porta do cofre. Tinha que pensar nisso. Evidentemente, só havia um modo de entrar e sair do cofre. Ian se recuperaria do salto em algum momento. Talvez voltasse para liberá-la. Estava quase certa de que não a deixaria apodrecer ali. Mas, por outro lado, não gostava de depender dos outros, nem confiar em milagres. Ela devia se preparar para a batalha. Se Hemmer voltasse, teria que eliminá-lo para sair dali.

           Ansiava destruí-lo. O bastardo ameaçou Ian. Ele merecia morrer lentamente, na forca, à moda antiga.

           Sam voltou-se para revisar suas armas. E foi então quando começou a entender.

            Hemmer sem dúvida sabia que Ian podia saltar se tivesse que fazer isso, porque foi assim que roubou o Van Gogh para ele. E isso significava que ele não queria capturá-lo. Ela era o alvo.

           Quando percebeu isso, sentiu o peso enorme do mal reunindo-se do outro lado da porta do cofre, enrijeceu. Hemmer não teria tantas trevas assim. Ali fora havia um imenso poder negro.

           Ouviu o estalo das fechaduras.

           Sam deslizou o disco em sua mão.

           A porta se abriu revelando um homem com vestes escuras. Sam levou um momento para perceber que aquele ser maligno não era um monge moderno. Suas roupas procediam de uma época anterior. A lã estava grosseiramente tecida, e ele usava sapatos pontudos. Usava um cinturão de couro e uma corda onde penduravam chaves enormes e toscas. Era um homem da Idade Média.

           O cérebro de Sam trabalhava furiosamente. Você está fora do seu tempo. Nick acusou Ian. E ela estava agora em frente a um homem medieval.

           — Allo[7], Samantha Rose — disse o clérigo, sorrindo. Tinha um forte acento francês, levantou o capuz e deixou revelados traços perfeitos, os olhos azuis e o cabelo loiro próprios dos demônios mais puros. Aquele monge poderia rivalizar com Brad Pitt pelo coração da Angelina Jolie.

           O círculo estava se fechando sobre ela, pensou Sam, sem medo. Primeiro Allie, depois Brie e finalmente Tabby. Agora, um demônio de tempos medievais se encontrava em frente a ela. E talvez Ian também pertencesse à Idade Média.

           — Prazer em conhecê-lo — disse, zombadora. — De que ano você vem?

           Ele riu.

           — Eu sou de 1527.

           Ian foi libertado de seu cativeiro em 1502.

           — Ei, você deve conhecer Maclean.

           Ele levantou as sobrancelhas.

           — Gosto muito de Ian.

           Ela ficou tensa. Captava cada uma das insinuações de seu suave tom de voz.

           — Seu filho de puta — ela cuspiu.

           — Eu já atingi um nervo?

           Sam disse a si mesma que não podia alterar-se. Mas desejava matar aquele demônio. Ele levantou a mão, rindo.

            — Mate-me e nunca terá as respostas que tanto deseja.

            Ele podia ler a mente. Sam perdeu o controle. A paciência foi consumida.

           — Então me diga o que eu quero saber.

           — Sim, eu o conheci quando ele era prisioneiro do grande Moray.

           Sam tremeu de raiva.

           — Eu achei que sim. Você terá uma surpresa. Ian não é mais um menino, já não está indefeso. Nem sozinho.

           — Sério? E quem está do seu lado? Você? — sacudiu a cabeça, divertido. — Caso não tenha notado, você é minha prisioneira e neste momento não pode ajudar ninguém.

           — Isso demonstra o quanto você sabe.

           — Você é tão diferente de lady Tabitha.

           Sam respirou fundo. Tabby estava em 1527.

           — Então conhece Tabby. É sua melhor amiga, também?

           — Eu prefiro me manter afastado dela, na verdade. Poderia derrotá-los, Macleod e a ela, mas não tenho compromisso com isso — sorriu. — O temperamento dela é pior que o seu.

           Ha, pensou Sam furiosa. Claro que procurava manter distância. No início do século XVI, Tabby era uma bruxa extremamente poderosa. E seu marido era um Mestre superpoderoso.

           Isso começou com Maclean. Agora, Sam não sabia se se tratava dele ou dela, de Tabby ou de todos de uma vez.

           — O que você quer? — perguntou. — Estou cansada de jogos de palavras. Não é meu estilo. Claro que não sei se um filho de Satã da Idade Média, como você, entende o que digo.

           — Você sabe o que quero Sam, assim como Ian. De fato, ele sabe exatamente o que quero.

           A página do poder da miragem. Sam não achava que o monge estivesse trabalhando com Hemmer: não acreditava que Hemmer gostasse de compartilhar, nem vice versa. Mas Hemmer a trancou no cofre, e agora o monge estava ali, então nunca saberia. Desejava matar aquele demônio no ato. Estava fora de si e era a segunda vez que ela perdia o controle em poucos instantes. Os Matadores que se deixavam levar pela ira acabavam mortos; não era necessário que ninguém dissesse isso.

           Mas já era muito tarde. Estava completamente furiosa. Maclean precisava de justiça. E ela também.

     — Sabe o que acho? Acho que você precisa de uma lição de humildade e de limites.

           Ele sorriu com prazer.

           — Quando acabarmos, você conhecerá seus limites, se você ainda estiver viva.

            — Humm. Uma ameaça. Eu não gosto das ameaças — sorriu e lançou o disco em sua garganta.

           Ele ergueu a mão. Num piscar de olhos Sam compreendeu o que ele pretendia. Abaixou a cabeça. O poder negro que brotava da mão do demônio fez ricochetear o disco e o lançou de novo para ela, tão velozmente que ele assobiava. Cortou o ar por cima de seu cabelo e cravou em um quadro.

           — Uau — disse Sam, olhando para trás. — Não é um John Singer Sargent? Hemmer vai ficar puto — mas estava atônita. O monge tinha muito poder negro. Quase tanto, possivelmente, como o lendário Moray.

           Alguns demônios eram quase invencíveis e viviam milhares de anos para demonstrar isso, como Moray. Mas Sam resistia a considerá-los imortais, e aquele não ia viver mil anos.

           — Deseja viajar ao passado para ver sua irmã, Samantha. Se cooperar, estou seguro de que poderemos arranjar um encontro.

           Ele podia levá-la a Tabby.

           — Posso levá-la e a levarei. Quando me der à página.

           Ela se recuperou.

           — Imbecil! — Sam lançou sua adaga através do cofre.

           Ela tinha uma pontaria infalível. A adaga deveria ter atingido o negro coração do demônio. Mas ele estalou os dedos e a lâmina fez um giro de cento e oitenta graus. Dessa vez, a arma cravou no chão, a seus pés.

           Ok, pensou Sam, estou enrascada.

           De alguma maneira se armou contra ele com uma navalha entre os dedos.

           Ele lançou uma descarga de poder negro contra ela.

           Como se levantada por um ciclone, Sam voou pelo cofre e se estatelou violentamente contra a parede do fundo. Ouviu rachar seus ossos. Ficou deitada no chão, atordoada. Depois, uma dor cega percorreu seu ombro direito e sua clavícula.

           — Levante-se — ordenou ele. — Não vou matá-la. Tenho uma mensagem para Maclean.

           Em um momento como aquele, faziam falta todas as Rose. No passado, quando elas se deparavam com esse tipo de demônio, Allie estaria ali para curar, Brie teria visto o que viria e Tabby faria trabalhar a sua magia. Mas Samantha estava completamente sozinha.

           — Diga a Ian que tenho um novo labirinto só para ele — disse o monge com suavidade.

           Sam agarrou a mortífera navalha e tentou levantar-se, mas soltou um grito, paralisada pela dor que a atravessou.

           O monge demoníaco riu enquanto se aproximava dela.

           Sam ficou tensa, pronta para o ataque, pronta para voltar a lutar.

           — Ria de mim — disse Ian.

 

            O monge ainda estava de pé sobre ela. Sam levantou a vista e viu Ian na porta. Ele parecia a imagem do inferno. Estava furioso. Sua mão tremeu quando a levantou. Sam se perguntou o que aconteceu com ele e se teria forças para salvá-la. Ele lançou uma descarga de energia branca contínua para o interior do cofre.

           Enquanto a descarga de energia voava por ele como uma onda, o demônio desapareceu. Sam cobriu a cabeça com os braços quando o poder de Maclean bateu na parede atrás dela. O gesso se quebrou. Os quadros caíram. Uma parte de teto caiu sobre Sam. Quando tudo voltou a ficar em silêncio, ela respirou fundo. Ian estava ajoelhado ao seu lado.

           — Você está ferida? — ele perguntou.

           Sam levantou os olhos. Ela deslocou o ombro direito, mas era a intensa dor em sua clavícula o que a preocupava. Sentia uma dor muito aguda, mas estava decidida a não desmaiar.

           — Eu vou ficar bem — disse. Tentou sentar-se e em seguida se sentiu fraca.

           Ian rodeou a cintura com seu braço.

           — Não pode reconhecer que está ferida?

           — Está bem, Dane-se. Estou ferida. E dói — apertou os dentes, tentando não enjoar. Ian estava preocupado?

     — Quem era ele?

           Ele desviou o olhar e pareceu hesitar.

           — Não vi seu rosto — Sam o ouviu respirar asperamente. — Estava de costas para mim.

            Algo estava errado, pensou Sam.

     — Ele veio de 1527 — conseguiu dizer com voz rouca. — Conhece você. É do seu passado.

           A expressão de Ian se contraiu quando seus olhares se encontraram.

     — Deite-se — disse ele.

     — Tem certeza de que não o reconhece? — mas ela afundou e viu-se em seus braços. A vertigem desapareceu imediatamente. Seus braços eram fortes e incrivelmente familiares. Quase reconfortantes.

           Desconcertada, Sam tentou incorporar-se e afastar-se dele.

           — Temos que sair daqui. Hemmer poderá voltar. Ou o monge. Estou certa que voltará. Eu posso conseguir atendimento médico em Five.

            Ele a ignorou. Tinha uma expressão dura e decidida.

     — Para de se mexer — disse, apertando seu ombro. Sam sufocou um gemido quando ele a tocou, se recusava a chorar.

            — O que está fazendo? — disse entre dentes. — Tentando me matar?

            — Cale a boca — retrucou ele.

            Sam se virou para olhá-lo. Ele esquivou seu olhar. Seu rosto refletia uma intensa concentração. Sam se deixou cair contra ele, ciente do seu duro e amplo peito. Era difícil pensar. Ia desmaiar.

           De repente sentiu que um calor reconfortante atravessava seu ombro e sua clavícula. O calor aliviou a dor. Em seguida compreendeu o que Ian estava fazendo.

           — Você pode curar? — perguntou. E viu a chuva branca que emanava de suas mãos.

           Ele contraiu a boca. Era evidente que não ia responder.

           Aidan curou Brie uma vez, mesmo antes de sua redenção. Sam se apoiou nele, fechou os olhos e deixou escapar um gemido de alívio enquanto o poder curativo de Ian fluía por seu corpo. À medida que retrocedia a dor de sua clavícula, a neblina de sua mente foi dissipando-se. Maclean podia curar.

           Recostada contra suas fortes coxas, olhou para cima e observou seu semblante determinado. Maclean odiava fazer aquilo, pensou. Será que ele odiava ser bom?

            — Por que voltou para me buscar?

           Ele a olhou por fim, chateado.

           — Para que possamos voltar para a minha cama.

           — Mentiroso — disse ela. Aquilo não o transformava em um bom menino? Ela não deveria importar-se, mas sentia uma estranha euforia. — Acho que se preocupa um pouquinho — disse. — Se preocupa com a guerra contra o mal não comigo. Sua indiferença é parte dessa fachada.

           — Não pode ficar quieta? — perguntou severo.

           Ela o olhou atentamente.

           — Começo a compreendê-lo, Maclean, porque o incomoda?

            — Sério? — Ele baixou as mãos. — Pense o que quiser. É o melhor que posso fazer.

Ela se sentou. Maclean continuava ajoelhado e seus olhos ficaram quase ao mesmo nível.

           — Obrigada por me curar.

           Ele encolheu os ombros.

           — Deveríamos ir a um hospital para que vejam esse seu ombro.

           — Você realmente se importa. Estou comovida — seus olhares se encontraram. Ao ver que ele não dizia nada, Sam deslizou os dedos por dentro da gola de sua camisa. — Não sabia se voltaria para me buscar.

           — Eu tive que pensar sobre isso.

           Sam não sabia se acreditava nele ou não.

           Ele a agarrou pelos ombros.

           — Sou o que acha que sou: um bastardo, um arrogante, um, egoísta que usa os outros. Mas te desejo. Volte comigo para minha casa. Quero usar você esta noite.

           Estava se escondendo de novo detrás daquela fachada de menino mau.

           — Pensarei nisso.

           — Sério? — Ian colocou seu ombro na articulação.

           Sam afogou um grito, mas a dor desapareceu em seguida.

     — Obrigado pelo aviso — ela disse.

           Ian se levantou e estava olhando para ela. Sam se levantou devagar. Seu parecia estar bem com seu corpo. Tomou um momento e respirou fundo. Depois o olhou. Era hora de começar a trabalhar.

           — O monge conhece você, Ian.

           Ele encolheu os ombros, mas baixou os longos cílios para esconder os olhos.

     — O que ele queria?

           Sua voz tremia?

     — Não me disse isso. Disse que você sabe o que ele quer.

            Ian virou bruscamente e afastou-se dela. Tinha os ombros rígidos. Sam o seguiu, recordando as horríveis insinuações nos insultos do monge.

           — Certamente está envolvido com Hemmer, embora não entendo como pode funcionar essa aliança. O monge me ameaçou, a propósito — Ian estava na porta da cofre, fez uma pausa para olhar para ela. — E Hemmer ameaçou você. Acabo de me lembrar de que o monge mandou uma mensagem para você — Sam hesitou. Ela não sabia o que significava a mensagem do monge, mas tinha o pressentimento de que isso perturbaria Ian.

           Ele a olhou fixamente.

           — O que ele disse?

           — Ele disse algo sobre um labirinto. Um labirinto só para você.

           Ian empalideceu.

           Ele estava com medo.

           — Estamos com uma dupla unida. O monge tem muito poder e Hemmer também. É hora de falar com franqueza. Quem é ele? —perguntou Sam. — O que queria dizer? Porque 1527?

           Ele respirou fundo. Quando meteu as mãos nos bolsos do blazer que usava, Sam viu que tremia.

     — Eu pertenço ao ano 1527 — disse Ian com dureza. — Você ouviu Nick dizer que estou fora de meu tempo.

           — Sim — disse Sam lentamente. — Eu ouvi.

           — Libertaram-me em 1502. Vinte e cinco anos antes.

           — Então Nick tinha razão — disse Sam. — Você não é um homem moderno, afinal de contas, não importa as calças jeans, que dirija um carro e tenha obras de arte e uma casa elegante. Deveria estar vivendo em tempos medievais.

           — Uma ova! — grunhiu ele.

           Seus dias no mundo moderno estavam contados. Ninguém podia desafiar aos deuses e o destino. Ele não devia estar vivendo em Nova Iorque. Sam se sentiu consternada. Ela não deveria sentir-se assim. Quando aquilo acabasse, cada um seguiria seu caminho. Não eram apenas os seus ideais e seus costumes que os separavam. Vários séculos se interpunham entre eles.

           — Vamos — disse Ian de repente, e saiu do cofre.

           Sam correu atrás dele, consciente de que não queria ficar presa de novo.

           — Sabe quem é esse monge, não é?

           Ele não parou.

           — Sim, eu sei.

           — Por que não diz a que enfrentamos? Por que o teme?

            — Está bem — explodiu, de frente para ela. — Ele foi meu carcereiro nos últimos dez anos! Está feliz agora?

           Sam o estudou.

           — Até que ponto é perigoso?

           Ian seguiu adiante.

           — Ele é um demônio. Um Deamhan[8].

           — Se foi seu carcereiro durante uma década, deve conhecê-lo bem.

            Ele não respondeu. A repulsa estava gravada em seu rosto. Sam apertou o passo para alcançá-lo.

           — Maclean, eu sinto muito pelo que você passou — disse ela.

           — Basta! — gritou ele, virando-se. — Você não sabe nada do meu passado! Você não sabe nada de mim!

            Ela queria tocá-lo, mas não se atreveu.

            — Conheço o mal. Eu tenho lutado contra o mal durante toda a minha vida, em todas suas formas. E lutarei contra esse demônio com você, Ian.

           — Por quê? Porque você tem pena de mim?

           Ela sacudiu a cabeça.

           — Porque eu nunca fujo e porque eu gosto de cobrar vingança. Esse demônio acaba de me desafiar.

           Ele, entretanto, compreendeu que estava mentindo.

           — Sam, a destemida, corajosa como sempre — disse em tom zombador.

            — Faz que pareça algo ruim.

            Ian meneou a cabeça, com o rosto ainda crispado.

     — Não. Admiro sua coragem. Sempre a admirei.

            Ela ficou atônita.

     — Acaba de me dizer algo bonito?

            Ian a olhou um momento com desconfiança. Depois deu de ombros.

           — É a verdade. Mas agora é você a que parece ter vontade de morrer. Às vezes é melhor ser um covarde e fugir. Deveria fugir do monge.

           — É isso que você planeja?

           Ele continuou andando.

           — Eu não disse isso.

           — Bem, então nos encarregaremos juntos desse filho da puta.

            Ian afrouxou o passo e pôs-se a rir.

     — Isso pode ser seu plano, mas não é o meu, Sam. Meu único plano é desfrutar de seu corpo esta noite e seguir com meu leilão na sexta-feira.

           — Sabe o que mais? Eu não acredito, coração frio, que o sexo seja tudo. Você está abalado e, francamente, eu também. Temos que começar a trabalhar juntos.

           Ele a olhou intensamente.

           — Fala sério? Você nunca fica abalada.

           — Você não estava aí, nesse cofre, um momento atrás. Ele usou meu poder contra mim. Estive a ponto de perder a cabeça graças a minhas próprias armas. Nunca vi tanto poder, exceto, claro, os de seus amigos, os Mestres. Mas sabe o quê? Até os poderosos caem.

           Sam não conseguia decifrar o olhar que ele lhe deu. O que estava pensando? Até que ponto estava zangado?

           — Alguma vez você já havia se encontrado cara a cara com um de seus carcereiros? — Ela pensou que isso devia ter ocorrido com John.

           Ele esboçou um sorriso.

           — Não.

           Sam preferiu não fazer piada sobre haver uma primeira vez para tudo.

           — Devo-lhe uma, Maclean. Não há dúvida.

           — Não me deve nada — inclinou-se e disse duro: — Tenho a página da ilusão, pretendo vendê-la e ir embora com os milhões. Para o inferno com o monge e Hemmer. Eu não sou um Matador — passou ao lado da sala de mídia.

           Sam respirou fundo enquanto o via afastar-se. Ele era muito bom em criar cortinas de fumaça. Ele estava no limite e ela não podia reprová-lo. Não importava o que Ian dissesse: não ia permitir que ele enfrentasse seus carcereiros sozinho. Desse modo, no que se referia à página, eles eram rivais, mas no que se tratava de Hemmer e o monge, eles eram aliados. Se Ian não acreditava nisso, pior para ele. Se ele pretendia vender a página e ir embora estava bem também. Ela derrotaria os caras maus por si mesma.

           Ele quase chegou aos elevadores. Sam olhou para a sala de mídia. Não podia deixar aquele vídeo nas mãos de Hemmer. Não queria que ele o usasse contra Ian. Mas também não queria que Ian conhecesse sua existência. Ele parou bruscamente e olhou para ela.

           — Não vou deixá-la aqui. Vamos — ordenou.

           Para dissimular sua preocupação, ela respondeu em tom zombador:

           — Mas você não se importa com o que acontece comigo.

           Os olhos de Ian brilharam.

           — Vamos, Sam.

           Ela conseguiu sorrir.

           — Tenho um assunto inacabado. Nos vemos dentro de algumas horas. Talvez eu me meta na cama com você. Cara de sorte.

           O olhar dele se estreitou.

           Sam bloqueou seus pensamentos, embora começasse a pensar que Ian não era muito bom em ler mentes.

           — Trabalho à noite, lembra?

           Ele olhou para a sala que havia atrás dela.

           — O que você vai fazer?

           Sam molhou os lábios.

           — Hemmer tem uma coleção de vídeos pornográficos.         Tem o que viu e pode ser que tenha outros comigo.

           Ian olhou para ela com surpresa. Sam sentiu mudar seu interesse.

           — Nem venha! — disse suavemente. — Vá dar uma caminhada. Isso é assunto meu. Logo irei vê-lo. Prometo.

            Ao invés de ir embora, Ian se aproximou.

     — Está mentindo. Eu sinto isso. Embora você se incomode que Hemmer a tenha visto com seus outros amantes, não ficaria aqui para recolher essas gravações. O que há nessa sala?

           Uma horrível imagem da jaula balançando assaltou Sam sem que ela pudesse evitar. A imagem continuou com aquela mão com o selo de ouro, estendendo-se para o cadeado da jaula.

           A imagem era tão poderosa que Ian também a viu. Empalideceu de novo, ficou mudo um momento.

     — Você viu um menino em uma jaula? — perguntou com voz engasgada.

           — Não, não vi nenhuma jaula. Do que está falando?

           Ian a agarrou.

           — O que você viu?

           — Foi Hemmer — gritou ela. — Sinto muito! Era um vídeo velho, dos anos sessenta ou setenta. Era só uma jaula pendurada em meio da escuridão, nada mais. Está tudo bem, Ian.

           Ele estava quase verde quando a soltou. Sam o agarrou.

           — Você vai desmaiar?

           Ian olhou para ela com horror.

           — Hemmer tem um vídeo de mim... na jaula.

           Sam o agarrou com força. Ela não tinha certeza se já viu alguém tão chocado.

           — Estava desfocado, Ian, e era apenas uma jaula e...

           Ele se soltou bruscamente.

           — O que você viu? — rugiu.

           Sam encolheu interiormente.

           — Apenas um menino.

           — Você me viu!

           Ela sentiu vontade de chorar. Pareceu que seus olhos ficavam úmidos. Assentiu lentamente.

           — Ninguém seria capaz de dizer que era você — disse ela.

           — Você poderia dizer!

           Sam puxou sua mão. Ele se afastou.

           — Vamos lá, por favor. Você teve um passado terrível. Eu sei. E você sabe. Ninguém mais deveria saber disso. Nisso concordo com você. Mas isto é a vida real. E a vida não é justa. Outras pessoas sabem disso também. Hemmer me mostrou esse vídeo. Sinto muito.

           Ian entrou na sala.

           — Quantas gravações minhas ele tem?

           Ela o seguiu.

           — Eu não tenho ideia. Você sabia que estavam gravando?

           Ele parou a poucos centímetros da tela. Estava tremendo.

           — Não posso mais com isso — disse de repente, sem voltar-se. Sam não gostou do som daquilo. Ian não olhou para ela. — Vou vender a página hoje mesmo.

           Sam contraiu o estômago de medo. Ela sentiu para onde ele estava indo.

           — Ian...

           — Não. Eu não tenho sua coragem. Nunca tive.

           Ela molhou os lábios.

           — Isso é tão injusto. O que você passou...

           — Deixa estar, Sam — ele a interrompeu. — Vou vender a página e ir embora.

           Sam respirou fundo. Ian ia fugir. E, embora ela nunca tivesse fugido de uma luta, entendia de coração por que seu primeiro impulso era escapar. Aquele não era momento de ficar discutindo, nem de apontar os muitos exemplos de valentia que viu nele. Ficou calada.

           Ele tirou o DVD e a olhou. Seus olhos brilhavam, cheios de ódio e medo agora.

           — Portanto isto é um adeus — sua boca se curvou. — A não ser que queira vir para casa comigo porque você me deve um agradecimento. Neste caso, espero sexo. Não quero falar, nem quero que me interrogue nem me demonstre sua compaixão. Só quero foder.

           Sam teve dificuldades mostrar entusiasmo.

           — Uau! Você tem jeito com as palavras. Mal posso esperar para ir para casa com você.

           Ian passou a seu lado, empurrando-a.

           Foi um dos piores instintos que ela já teve, mas Sam não queria que ele voltasse sozinho para a sua mansão em Park Avenue, sobretudo com aquele vídeo na mão. Tentou se conter. Ela não era Tabby. Não sabia como cuidar e confortar. Sabia lutar, sabia o que fazer na cama com um homem. Mas talvez fosse a hora de aprender a consolar os outros. Porque Ian Maclean estava sofrendo.

           Saiu atrás dele.

 

           Assim que entraram na casa de Maclean em Park Avenue, o silêncio perturbou Sam imediatamente. Embora Ian vivesse sozinho com o mordomo, na casa deveria reinar outra atmosfera. Parecia, entretanto, escura e vazia, inóspita. Como um buraco aberto no universo.

           Ian esteve muito pensativo durante o trajeto de carro pelas ruas da cidade. Tinha conduzido seu Escalade de forma imprudente, como se não se importasse em se chocar com outro veículo.

           Usou o código de segurança para entrar. A enorme porta se fechou atrás deles. Sam sentiu que seu estômago encolhia, cheio de inquietação.

           — Há muito silêncio. Algo está errado — disse ela. — O ambiente mudou.

           — Não há nada de errado — respondeu ele. Lançou-lhe um olhar despreocupado — Já sabe onde é meu quarto, por que não sobe e fica confortável?

           Se ela não soubesse como ele estava alterado por causa daquele vídeo acharia aquela observação inacreditável.

           — Você precisa de uma bebida, assim como eu. E, Maclean? Talvez te convenha ser amável, embora por um segundo, porque não vim aqui por você. Os jurados ainda estão lá fora.

           Ele começou a caminhar pelo corredor, deixando-a sozinha junto à porta. Estava de muito mau humor, pensou Sam. Ela, provavelmente não precisaria se preocupar em se ele deveria ir para cama com ela, ou não. Aquele vídeo apagou seu desejo, e sua reação apagou o dela.

           Sam não queria saber o que mais havia na gravação.

           A casa tinha três andares. Maclean ignorou o elevador e estava subindo pela escada. Agora que ela sabia que ele sofria claustrofobia, Sam não achou estranho. Seguiu-o lentamente.

           — Talvez possamos pedir a Gerard que nos suba algo para comer — disse na escada.

           Ele desapareceu no segundo patamar.

           Sam olhou ao seu redor, perguntando-se onde estava o mordomo. Sentiu que um calafrio de inquietação corria por suas costas. Viu um intercomunicador no topo da escada e apertou o botão que tinha uma estrela.

           — Gerard?

           Ao não obter resposta, apertou o resto dos botões. Mas Gerard não respondeu. Seu mal-estar aumentou. Talvez Ian tivesse dado a noite livre a ele.

           Avançou pelo corredor em penumbra e encontrou Maclean em uma sala de cinema, com o DVD na mão, parou na soleira da sala Borgonha[9].

           — Você não precisa ver isso.

           Ele enfrentou seu olhar.

           — Me espere lá em cima.

           — Não vamos fazer nada, vamos tomar uma bebida, comer algo e pensar em como vamos enfrentar Hemmer e o monge — respondeu com firmeza. Logo reparou no que acabava de dizer. Falava como sua irmã!

           — Eu a convidei aqui para fazer sexo. Se não quiser subir, vá embora — se aproximou do armário e pôs a mão sobre o leitor de DVD. A bandeja se abriu.

           — Porque você faz isto? — perguntou Sam.

           — Que se foda — rosnou. — Você o viu, não foi? — ele colocou o DVD na bandeja.

           Ele estava fora de si. Será que queria infligir-se mais dor? Sam estava decidida a detê-lo.

           A tela se iluminou.

           Sam resmungou uma maldição, aproximou-se e tirou o controle remoto da mão dele. Ele a olhou com surpresa.

           — O que vais conseguir revivendo seu passado? Aí fora há dois seres malvados e muito poderosos, e ameaçaram nós dois. Ficar aqui sentando, chafurdando sobre o que fizeram a você, não nos ajudará a combatê-los. Temos que nos preparar, e precisamos de reforços.

           Ian a agarrou pelo pulso tão brutalmente que Sam ficou chocada. Por um momento pensou que ia quebrar-lhe o osso. Mas não fez isso.

           — Saia daqui — disse asperamente. — Saia imediatamente. Não fale “nós”, Sam. Não existe “nós”. Então basta sair e me deixar em paz.

           Sam respirou fundo, quase cega pela dor que saía de sua mão. Ou seria pela dor que via de repente em seus olhos? Concordou com a cabeça. Ele a soltou. Sam não titubeou. Devolveu-lhe o controle remoto.      

            — Você está certo. Não há “nós”. Eu sentia pena de você e esqueci que é um idiota egoísta. Porque embora tenha ido à casa de Hemmer para me ajudar hoje, nada disto estaria acontecendo se você não fosse um bastardo ganancioso. Se você desse a página ao Nick, tudo acabaria. O monge e Hemmer teriam que atacar a CDA e a todo o governo dos Estados Unidos para consegui-la, e isto não nos afetaria.

           Ele apertou o play.

           — Vá em frente e se autoflagele — disse ela.

           Ian a ignorou.

           Sam esteve a ponto de ficar para observá-lo, como ele via a si mesmo, torturado no passado. Mas o que ia conseguir com isso? Ela não era Tabby. E, de qualquer maneira, Ian não queria que o reconfortasse. Parecia querer sofrer. Era um tigre ferido em uma jaula, e nesse momento era perigoso. Seu pulso ainda doía pela forma como ele lidou com ela. Sam ignorava se ele iria explodir ou implodir, mas intuía que o cataclismo era iminente.

           Saiu apressadamente da sala ao ouvir aqueles ruídos de unhas. Parou no corredor, tão rígida que se sentia doente. Odiava que Ian fizesse aquilo a si mesmo.

           Hemmer podia ser humano, mas era maligno, e tinha que desaparecer. Isso provavelmente não seria problema. O monge, ao contrário, era preocupante.

           Sam ouviu aquela respiração assustada, virou-se. Passou-lhe pela cabeça que, embora não pudesse reconfortá-lo, podia distraí-lo, talvez. Mas antes que pudesse voltar e começar uma sedução, ela o ouviu rugir de raiva e de angústia. Depois ouviu que o aparelho de DVD caía ao chão com estrépito.

           Entrou correndo na sala. Ian estava entre os restos do aparelho de vídeo, que parecia ter destruído com seus poderes. Ele segurou a cabeça com as duas mãos, arfando e seus ombros se agitavam. Sam mordeu o lábio e recuou.

           Ian estava chorando.

           Maldição, onde estava Gerard?

           Sam desceu correndo as escadas e se dirigiu ao fundo da casa, onde estava a cozinha. Maclean não ia querer que ela o visse chorar pela segunda vez. As luzes acesas iluminavam uma cozinha muito moderna, quase toda ela negra e de aço inoxidável.

           No momento em que viu a porta da geladeira aberta, sem ninguém à vista ela compreendeu que tinha acontecido algo terrivelmente errado. Passou correndo junto à ilha central, em granito. Gerard estava imóvel no chão, de barriga para cima, com os olhos fechados, seu rosto de cera, coberto de sangue. Sam viu suficientes vítimas de violência para saber que o tinham apunhalado repetidas vezes e que o sangue era dele.

           — Maclean! — gritou. Quando ela gritou percebeu que ele não podia ouvi-la do segundo andar, ajoelhou-se e procurou o pulso do Gerard. Mas suas artérias não pulsavam, e havia muito sangue.

           Maclean apareceu na cozinha.

           Sam levantou o olhar.

           — Não consigo encontrar o pulso.

           Ele ficou paralisado ao ver Gerard. Seus olhos arregalaram. Então ele engasgou com horror. Sam continuava segurando o pulso de Gerard, de repente, o braço de Gerard se sacudiu.

           — Merda, Maclean, acho que ele está vivo.

           Ian ajoelhou-se, respirando com dificuldade. Enquanto procurava seu telefone celular, passou pela mente que Ian se preocupava muito com seu servente.

           — Não desmaie — disse-lhe e o agarrou pelo braço. Ele a olhou. Seus olhos estavam cheios de pânico. — Pode curá-lo, Ian?

           Ele pareceu voltar em si. Respirou fundo.

           — Nunca tinha curado ninguém, até poucos minutos.

           Sam analisaria depois aquela surpreendente notícia.

           — Talvez seja melhor tentar — disse enquanto discava o número da Five.

           Ian pôs as mãos sobre o peito ensanguentado de Gerard. Enquanto falava com o operador, Sam viu que Ian ia recuperando a cor, o que significava que ele estava tendo controle de si mesmo. Sam viu então que uma corrente de luz branca saía de suas mãos e se misturando com o sangue.

           — Diga-lhes para se apressar — disse antes de desligar.

           Ian fechou os olhos com força, concentrando-se. Seu rosto mudou. As rugas de tensão pareceram gravar-se nele. Uma chuva branca emanava de suas mãos e começava a brotar de seus ombros, de seu pescoço e seu peito. Sam o observou, atordoada. Embora sentisse seu desespero, também sentia seu ímpeto. Gerard era a única pessoa que importava. Aterrorizava-se com sua morte.

           Sam começou a rezar.

           Rezar não era o seu costume. Mas as Rose veneravam aos deuses antigos e, enquanto rezava, estava ciente de que, sem Gerard, Ian estaria sozinho no mundo.

           A chuva branca continuava emanando.

           O rosto de Gerard relaxou, como se fosse antecipadamente prevenido contra a dor. Suas pálpebras se moveram.

           — Está conseguindo, Ian — sussurrou ela. — Você está bem?

           Ian não respondeu. Tremia como uma folha.

           Ela tomou o pulso de Gerard e dessa vez o encontrou firme e constante, cada vez mais forte. Seu peito parecia menos mutilado, as feridas já não eram vermelhas: foram adquirindo um tom rosado e cinza. Ian deixou escapar um gemido. Gerard abriu os olhos. Ele a viu e sufocou um gemido ao recordar. As feridas ficaram mais rosas. O princípio de infecção começava a retroceder.

           — Não se mova — disse-lhe Sam. — Maclean está curando você — e está fazendo um trabalho danado de bom, acrescentou para si mesma. Mas estava preocupada com ele. — Ian, talvez você devesse parar.

           Ele não pareceu tê-la ouvido.

           Gerard olhou para ele.

           — Um monge veio aqui — conseguiu dizer. — Não há mais tempo — respirou fundo. — Acho que estou bem, sir — disse ele.

            — Não, não está. Não fale — disse Sam severamente. Aquilo era responsabilidade do monge. Tinha decidido descarregar sua ira contra Gerard, depois que Ian o frustrou no cofre? Ele sabia exatamente onde Ian vivia e iria atrás para chegar a ele. Aquilo era uma vingança ou uma advertência? De repente, Ian começou a tremer. Abriu os olhos e olhou para ela, ofegante.

           — Você precisa parar! — gritou ela, rodeando-o com o braço.

           Ele fechou os olhos e desabou, inconsciente.

          

            Sam andava de um lado pro outro quando chegaram os médicos auxiliares da Five. Nick e Jan chegaram pouco depois.

           Gerard estava ajoelhado ao lado de Ian. Quando os médicos entraram com sua equipe, Sam se precipitou para eles.

   — Ele estava curando — disse a eles. — Começou a tremer e a gemer e depois desmaiou.

            — Um Curador, hein? — perguntou o médico ao ajoelhar-se, colocando em Maclean um aparelho para medir a pressão. — Já não se veem muitos por aqui.

Sam se sentia impotente. Ian estava mortalmente pálido e havia quinze minutos não se mexia.

           — Ele tem pulso, mas muito fraco.

           Uma médica estava escutando seu coração. Nick pôs a mão sobre o ombro de Sam e ela se assustou. Ele a escrutinou com o olhar.

           — Desde quando não confia em mim?

           Ela vacilou e olhou para Jan.

           — Eu disse a ele sobre o DVD — disse Jan.

           — Obrigado — disse Sam, furiosa.

           — É meu trabalho.

           — Não, não é — replicou Sam.

           — O que diabos aconteceu? — perguntou Nick.

           — Gerard, o mordomo, teve um encontro com um inimigo. Estava virtualmente morto. Maclean o reanimou e em seguida desmaiou — respondeu Sam asperamente.

           Ele continuava olhando para ela com atenção.

           — Você sabia que ele podia curar?

           Ela negou com a cabeça.

           — É a segunda vez que ele usa esse poder. Ele também não conhecia. Nick, esse demônio veio de 1527. Era um dos carcereiros de Ian — os médicos estavam aplicando oxigênio e lhe injetando algo.

           Nick se ajoelhou junto a eles.

           — Ele sairá desta?

           — Pode esperar um momento? — respondeu o médico.

           Nick se levantou e olhou as mãos de Sam. Ela se deu conta de que as estava torcendo freneticamente e parou. Nick balançou a cabeça lentamente.

           — Vamos para o hall.

           Sam amaldiçoou em voz baixa. Não queria deixar Ian, mas também não queria revelar seus sentimentos mais do que já fez. Olhou para Jan.

     — Eu fico com ele — ela disse.

            — Ótimo — Sam saiu, seguida por Nick. Então ela colocou as mãos nos quadris e olhou para ele. — Tenho todo o direito de proteger minha intimidade.

           — Tolices — respondeu ele. — Quem lhe deu essa gravação foi Hemmer. Isso a torna assunto da CDA. Maclean roubou a página. Hemmer a quer e nós também. Isto é uma investigação, Rose. E você se envolveu pessoalmente até os olhos.

           Ela queria voltar para a cozinha.

           — Muito bem! Sabe o que? Sinto pena dele. Está feliz agora?

            — Na verdade, não. Então, explique — ordenou Nick.

            — Hemmer disse que a gravação não era mais que uma manobra de distração. Está furioso. Quer a página e ameaçou torturar Ian se não a der para ele — tomou ar. — Mas é fácil adivinhar o que pretende. Ele tem algum poder. Pode viajar no tempo, por exemplo. Mas eu posso derrotá-lo. Já falei do monge. O que não disse é que ele é muito, muito poderoso. Me deu uma surra, mas não parecia querer enfrentar Maclean diretamente. Quando Ian apareceu para me ajudar, fugiu e depois veio aqui e atacou o mordomo — olhou para o interior da cozinha. Só via as pernas de Maclean atrás da ilha central. Não tinha mudado de posição.

           — Por que o mordomo?

           Sam molhou os lábios.

           — Ele trabalha para ele há décadas. Maclean se preocupa com ele.

           — Deve ser a primeira vez.

           — Você não vai lhe dar um tempo?

           — Para que? Você já dá por nós dois. Escute-me, Sam — acrescentou Nick. — Moray costumava viver aqui antes, em Nova Iorque, sob o nome do Robert Moram. E Hemmer era amigo dele.

           Sam o olhou com surpresa.

           — Que diabos...?

           — Temos duas pistas que conduzem diretamente a Moray, um dos seres mais malvados que tem notícia o CAD.

           Sam tentou assimilar a notícia. O monge foi um dos guardas de Moray. E Hemmer foi seu amigo.

           — Brie disse que Moray tinha partes do Duisean e que as guardou aqui, na cidade. Quanto quer apostar que o poder do monge procede do livro?

           — Eu estava pensando a mesma coisa. Mas, se o monge recebeu poderes de Moray depois de que foi derrotado e procede de 1527, nós podemos pensar que o que ele tem está no século XVI.

           — Eu seguirei o monge! Vou voltar ao passado, Nick — disse Sam.

           — E deixar a seu pobre herói trágico sofrendo aqui, sozinho? Está trabalhando em uma investigação, Rose.

           Ela estava furiosa.

           — Você me negou isso há seis meses, quando a vida de minha irmã estava em jogo. Deixe-me viajar no passado e procurar as partes perdidas do Duisean. Tem agentes suficientes aqui para procurar a página do poder da miragem. Se não aceitar, renunciarei e viajarei ao passado por meus próprios meios.

           Ele não se alterou.

           — O fato de haver partes do Duisean no século XVI é somente uma teoria, sabia?

           — Eu conheço você. Mandará outro para que verificar!

           Nick quase sorriu.

           — Vou pensar sobre isso.

           Isso era melhor que um não, pensou Sam, e começou a se excitar. Tabby estaria lá.

           — Mas, enquanto isso, esta em uma missão — Nick parou e disse pensativamente: — Dois de seus contemporâneos se apresentaram aqui em busca da página. Não acha estranho que não tenham vindo alguns Highlanders seguindo também sua pista.

           — Talvez vieram e não permitiram serem notados. Ou talvez estejam procurando as páginas em poder do monge em 1527.

           Nick a estudou.

           — Ele disse onde escondeu a página?

           Sam se sobressaltou.

           — Não. Nem sequer perguntei ainda.

           — Quando voltar em si, use suas artimanhas e tente descobrir.

           Sam lembrou-se que Nick sabia do vídeo de sexo e quase ruborizou.

     — Ele não é um homem fácil, Nick. Se fosse, já teríamos a maldita página.

           — Eles são todos fáceis para você, Sam. Além disso, é uma ordem. E não acredito que você terá uma desculpa para trabalhar pouco nisso — Nick a olhou com recriminação.

           — Vai me demitir?

            — Provavelmente. Mas não até que a página esteja segura e nas mãos de quem deva estar.

           Ele meteu a mão no bolso e ofereceu a ela um pedaço de papel. Sam ficou surpresa. Nick nunca usava papel. Tudo estava em seu Blackberry, seu laptop ou seu PC.

           — Queria te dar isto desde que tivemos nossa pequena conversa com Maclean.

           Sam viu uma série de números. Em seguida compreendeu que era um número de telefone internacional. Se estômago encolheu.

           — O que é isto?

           — Eu não sou tão canalha como todo mundo pensa — deu de ombros. — É o número de telefone da Brie.

           Sam ficou olhando a parte de papel, atônita. Do que ele estava falando?

           — Sim, Sam. Ela está viva e bem em Edimburgo. E tem centenas de anos.

           Sam engasgou uma exclamação. Então ela percebeu que Jan saiu da cozinha e estava ali, olhando-os com expressão sombria. Nesse instante, Sam compreendeu que Ian estava não estava bem.

           — O que há de errado?

           — Sua pressão sanguínea está baixando. Não parece nada bem.

           Sam ficou paralisada um momento.

           — O que quer dizer? — perguntou, furiosa. — Ele é quase imortal! Não pode morrer!

           — Os quase imortais podem morrer e você sabe — respondeu Nick, voltando a entrar na cozinha.

           Sam olhou para Jan com incredulidade. Agora ela estava com medo.

           — Ele deu muito poder branco — disse Jan suavemente. — Suponho que isso faz dele um dos mocinhos, afinal de contas.

           Sam deixou escapar um grito e passou a seu lado.

 

 

           Quando entrou na cozinha, estavam reanimando ao Ian com um desfibrilador. Nick a agarrou e puxou-a para trás impedindo que ela se aproximasse. Incapaz de respirar, Sam olhava os dois médicos inclinados sobre ele. Ian convulsionava.

           — Temos pulso — disse a médica.

           Sam pensou ter visto que a cor voltava para rosto mortalmente pálido de Ian e que suas pálpebras se moviam.

            — Ele está bem, Rose — disse Nick.

            Ela percebeu que ele ainda tinha a mão em seu ombro. Em circunstâncias normais ela seria arrancada para longe. Sam não se moveu. Não podia. Viu os médicos regularem o oxigênio e olhou o pequeno monitor de seu carrinho portátil. O pulso de Ian parecia perfeito. Ele quase morreu para salvar Gerard.

           — Seus sinais vitais estão voltando ao normal — disse a médica.

           Sam sentiu que os joelhos falhavam. Ian estava fora de perigo. Ao dar a volta, surpreendeu o olhar intenso de Nick.

           Nick a seguiu para fora da cozinha.

           Ela se sentou nos degraus do corredor e olhou para cima.

           — Vá em frente, me detone.

           — Sabe de uma coisa? Depois disto, Maclean se redimiu em parte, então não vou dizer uma palavra mais — Nick passou a seu lado.

           Um momento depois, Sam ouviu bater a porta da rua.

          

            Sam continuou sentada nos degraus enquanto ligava para Edimburgo. Inacreditavelmente ela estava nervosa. Brie e ela eram muito unidas. Mais que primas, pareciam irmãs e, mesmo sendo radicalmente diferentes, eram muito amigas, enfrentaram muitas vezes o mal juntas e sobreviveram. Sam compreendeu que estava nervosa porque não sabia o que podia esperar quando Brie respondesse à ligação.

           Na verdade, não era tão surpreendente que Aidan e Brie vivessem em Edimburgo naquele mesmo instante. Sua prima tinha, portanto, centenas de anos. O qual devia confirmar a velha piada da família... As Rose ficavam melhores e mais sábias com a idade.

           Sam, naturalmente, refletiu sobre as viagens no tempo e a nova realidade que produziam. Ao voltar no tempo, Allie mudou por completo sua vida. Até esse dia foi Allie Monroe. Depois de seu desaparecimento, os arquivos públicos mudaram. Era como se Allie Monroe nunca tivesse existido. Não nasceu, não foi à escola, nunca teve carteira de motorista...

           Mas isso foi porque o destino foi interrompido e corrigido. Sam conhecia muito bem aqueles versículos do Livro da Sabedoria das Rose: o destino sempre estava escrito, mas, quando mudava, o que raramente aconteceu antes, ou continuava errado ou o universo o corrigia.

           Allie foi concebida, na realidade, no século XIII. Seu nascimento em tempos modernos foi um engano do destino. Seu destino era o passado, não o presente. Sam estava consciente de que a Allie centenária vivia no castelo de Carrick com o conde do Morvern, um Mestre do Tempo. Nunca sentiu a necessidade de visitá-la. Para Allie, que retrocedeu ao século XV, centenas de séculos haviam se passado desde que eram amigas e lutavam juntas contra o mal. Para ela, ao contrário, só haviam passados dois anos. Não conseguia imaginar como seria seu reencontro com a Allie atual.

           Mas aquilo a fazia perguntar-se se Brie também estaria ali, em algum lugar.

           Aparentemente Brie estava do outro lado do oceano nesse mesmo instante. Podia entender por que não tentou entrar em contato com ela. Havia todo tipo de regra. Mas sem dúvida sua irmã faria contato, a não ser que algo muito grave a impedisse ou que não vivesse no século XXI. Naturalmente, o destino de Tabby era diferente do de Allie ou de Brie. Ela nasceu em 1979 e todos os seus dados continuavam figurando nos arquivos públicos, inclusive depois de seu desaparecimento. Oficialmente, foi considerada desaparecida, mas o certo era que, seguindo seu destino, voltou no tempo para lutar contra o mal junto a um guerreiro medieval.

           Sam queria sua irmã de volta, não encontrar-se com uma mulher de quinhentos anos que já seria tataravó, no mínimo. Seria muito estranho sentar com sua irmã se elas estavam separadas por séculos. Mas valia a pena saber o que aconteceu.

           Nick, entretanto, deu o número de Brie, não o de Tabby.

            — Residência dos Maclean — respondeu uma voz com forte acento escocês. Sam conteve a respiração. Nem sequer sabia como devia se referir a Brie.

            — Lady Maclean, por favor — disse depois de um momento de hesitação. Seu coração pulsava com força.

           — De parte de quem?

           — Sam Rose.

           Um momento interminável passou. Sam não sabia se foram sessenta segundos ou vários minutos, mas pareceu-lhe uma hora. Em seguida, uma mulher mais velha disse:

           — Sam? É você mesma?

           Sam respirou fundo. Brie parecia de meia idade. Uns meses atrás ela tinha vinte e seis anos.

           — Sim, Brie, sou eu — seus olhos encheram de lágrimas.

           — Há quanto tempo! — exclamou Brie. — Havia séculos que ninguém me chamava Brie.

           Quando Aidan sequestrou Brie, a levou para 1502. Sam estava certa de que sua vida no passado começou então. Se Brie viveu cinco séculos, ela tinha mais de quinhentos anos.

           — Estou meio abalada porque estamos nos falando de verdade... assim. Como você está?

           Sentiu que ela sorriu.

           — Sabia que Allie está em Carrick, com Royce, há séculos?

           — Sim, sei. Nunca a chamei por causa dos anos que se passaram. Me parecia que seria muito constrangedor.

           — Isto te parece constrangedor? — perguntou Brie baixinho.

           — Sim... e não. Brie, você saiu daqui em setembro passado. Não faz tanto tempo. Mas por sua voz parece uma avó. Eu ainda tenho vinte e sete anos.

           Brie riu.

           — Sou avó. E tataravó. E estou bem. Sou feliz. Tive uma vida maravilhosa. E amo Aidan tanto quanto é possível. Loucamente.

           Sam pensou na última vez que viu Aidan, quando ele era sombrio e perigoso e estava furioso com os deuses.

           — Como vai Aidan, afinal?

           — Muito bem. Perfeito. Minha outra metade. Minha melhor metade.

           Sam não soube o que responder. Ela não podia sequer imaginar o sombrio Highlander como a melhor metade de Brie.

           — Passou estes últimos séculos defendendo os meninos, Sam. Foi o que lhe pediram os deuses.

           Sam ficou tensa. Aidan não foi capaz de proteger a seu próprio filho, mas seu destino era, pelo que parecia, defender todas as crianças inocentes do mundo.

           — Fico feliz — disse. Perguntou-se se Ian sabia qual era o dever de seu pai.

           Brie disse suavemente:

           — Naturalmente, a ferida que Ian deixou continua aberta. Nunca superamos que ele nos deixasse justamente depois de encontrá-lo, em 1502. Nos o amamos muitíssimo, Sam. Aidan tentou dizer-lhe muitas vezes, mas ele continua empenhado em nos dar as costas. Há quinhentos anos não temos notícias dele.

           — Ele está aqui — disse Sam laconicamente. — E vive fora de seu tempo.

           — Eu sei — respondeu Brie. — Minha Visão é mais forte do que nunca, apesar da idade.

           Sam pensava a toda velocidade. Ian deveria estar em 1527, o ano de que o monge veio. Se voltasse, como exigiam as leis do universo, envelheceria no século XVI e nos séculos seguintes. Mas, com certeza não estaria em 2009, não por muito tempo.

           — Sabemos que Ian culpa Aidan por tudo o que aconteceu. E o entendemos. Aidan ainda culpa a si mesmo. E vive com esse pesar. É a única mancha de nossa vida.

           Sam se sentou mais ereta.

           — Por que está me contando tudo isso?

           Brie hesitou.

           — Porque Ian está com você, não está?

           Sam estava perplexa. As coincidências não existiam. Se Ian estava com ela era por alguma razão...

           — O que você viu?

           Brie sorriu. Sam sentiu.

           — Sam, você está a ponto de cumprir seu destino.

           — Que demônios você quer dizer com isso? — estava confusa. — Cumpri meu destino há muito tempo. Sou uma Matadora.

           — Seu destino é algo maior que isso, Sam.

           Sam ficou olhando a mesa do corredor, pensando em Maclean.

           — Não poderia ser mais clara?

           — Eu não posso revelar o seu futuro. Não é permitido e você sabe.

            Sam suspirou.

           — Porque não entrou em contato comigo?

           — Porque tenho meu destino e estive muito ocupada cumprindo-o — Sam percebeu outro sorriso. Brie mudou tanto... Parecia tão serena e profunda, tão segura, estável e feminina. — E você está a ponto de cumprir o seu. É assim que tem que ser. Sei que tem sido duro ficar sozinha.

           — Estou bem — Sam ficou calada um momento, convencida de que Brie tinha algo mais para dizer a ela. Mas Brie não disse nada. — Estou trabalhando em um caso, Brie. Agora trabalho para o Nick. Lembra-se do Moray?

           Brie emitiu um som.

           — A verdade é que procurei me esquecer dele. Ele foi um autêntico pesadelo. Tentou destruir seu próprio filho e, de passagem, a mim também.

           — Ele tem capangas rondando pela cidade, procurando a página do poder da ilusão. Uma página do Duisean. Maclean e eu estamos até o pescoço com ele.

           — Graças aos deuses que Moray está morto. Mas eu não gosto da ideia de que seus comparsas tenham retomado as coisas de onde ele as deixou. — Brie parecia inquieta. — Você poderá lidar com isto, Sam?

           — Não sei. Acho que vamos ter que esperar para ver. O que sabe de um monge do início do século XVI? É um demônio muito poderoso e maligno, com sotaque francês.

           Afinal de contas, Brie viveu na época do monge.

           — Deve estar se referindo ao monge de Carlisle — respondeu Brie com a voz tensa. — Eu me lembro muito bem. É um desses demônios que não se esquecem facilmente.

           — Ele está aqui, em Nova Iorque, e tem muito poder.

           — Moray possuía alguns poderes que pertenciam à Irmandade, Sam. Ele mesmo me confessou isso. Alardeou disso, de fato. Como sabe, os Antigos entregaram o Duisean, o Livro do Poder, aos Mestres há muitas eras para que protegessem a humanidade da destruição. Todo poder conhecido pela humanidade está nesse livro. Mas foi roubado há muito tempo. Moray se gabou de ter algumas páginas escondidas em seu tempo. Em Nova Iorque.

           — Eu sei, Brie. Você nos fez um relatório completo, lembra? Para mim só passaram sete meses — estremeceu ao pensar em que um poder semelhante pudesse cair em mãos erradas.

           — O monge era terrivelmente poderoso em sua época. No século XVI era ele quem controlava o mal, Sam.

           — Grande — resmungou Sam.

           — Houve batalhas terríveis entre vários Mestres e ele, incluindo Aidan. Ele deixou uma esteira de devastação por onde passou. Governou Carlisle e as Terras Baixas muitos anos. Muitos Highlanders, como Aidan, ficaram feridos. Alguns morreram — fez uma pausa. — Não me lembro o que aconteceu ao monge ao final — disse com certa perplexidade. — Mas tem que estar registrado nos livros de história.

           Sam se levantou. Embora Brie soubesse o que foi feito do monge, iria contra as normas se o dissesse.

           — Ele disse que vinha de 1527. Imagino que estava então estava no auge do seu poder. Ele ainda está vivo em 2011 ou veio do passado?

           — Eu não sei — respondeu Brie. — Oxalá pudesse te ajudar mais.

           — Talvez possa.

           — Sam, agora sou mais velha. E não me cabe interferir. É proibido. Esta é sua época.

            — Que sorte a minha — murmurou Sam, mas ela estava pensando em Ian agora.

            — Quase me dá medo perguntar, mas como está Ian?

            — Ele tem a página do poder da ilusão. Esta pensando em vendê-la pelo maior preço, em vez de nos entregar. Sua vida é um desastre.

           Brie ficou calada um momento.

           — Ninguém deveria sofrer o que ele sofreu, Sam. Espero que possa compreendê-lo.

            Sam hesitou.

     — Não tema. Não estou apenas confiando nele, também o estou apoiando.

           Sentiu o quanto Brie ficava satisfeita.

           — Obrigada — disse Brie por fim. — Ele tem um bom coração.

           — Está certa disso? Porque eu ainda não sei se ele tem coração ou não. Suas mudanças de humor são incríveis.

           — Eu sei que é bom. Não se afaste dele, Sam. Ele precisa de você. Precisa de toda a ajuda e toda a bondade que possa conseguir. Exatamente como seu pai, há muito tempo.

           Brie sempre foi gentil. E tímida e retraída, como se não fosse óbvio. Ian era, além disso, seu enteado e, naturalmente, acreditava nele. Sam pensou em Tabby. Sua irmã também a teria animado a apoiar Maclean. Mas Brie não disse uma só palavra sobre Tabby. O medo encheu Sam.

           — Eu tenho que perguntar isso: Tabby está por aí?

           — Pensei que nunca fosse perguntar — reclamou Brie. — Tabby está viva e bem. Eles vivem em uma linda propriedade que construíram há uns duzentos anos, não muito longe das ruínas de Blayde. E estão constantemente rodeados de diferentes gerações de Macleod e Rose.

           Sam se sobressaltou. Havia mais Rose para continuar a luta. Estava entusiasmada.

           — Então, por que não me chamou, Brie?

           — Todas as Rose tem seu destino, Sam. Tabby está vivendo o dela. Estamos esperando que você viva o seu.Para que você possa se unir a nós.

           Sam diminuiu o passo ao aproximar-se da suíte de Ian. Estava pensativa agora.

           A conversa com Brie a reconfortou, mas também a encheu de desânimo. Antes suspeitava que Brie e Tabby podiam estar por ali, em algum lugar, mas tentava não pensar nisso. Agora, já não podia evitar os fatos. Sua irmã e sua prima eram mulheres mais velhas e felizes, que viveram uma vida longa e plena. Sam ainda sentia falta delas como as viu pela última vez, quando Brie e Tabby eram jovens. Passou-lhe pela cabeça que dois dias depois, quando fosse seu aniversário, elas poderiam estar todas juntas. Mas sua irmã e sua prima eram agora senhoras mais velhas. Que tipo de reencontro poderia ser esse? Ela tomaria martinis Bellini enquanto Tabby e Brie tomavam chá? Ela contaria histórias de sexo e anedotas da rua enquanto elas mostravam seus álbuns de fotos? Deus, que estranho... e injusto.

           Sam sabia que era impossível voltar aos tempos em que lutavam juntas contra o mal, quando formavam um trio de mulheres jovens e temerárias e sem medo de serem poderosas. Seu sonho era passar uma noite louca nos Hamptons, não cuidar de seus netos. Sam entristeceu. Mas não devia lamentar. Ela estava feliz por elas. Brie e Tabby eram felizes e se achavam na reta final de suas vidas. Sua vida, pelo contrário, estava começando. A não ser que o monge do Carlisle ganhasse a partida.

           Agora, entretanto, desejava voltar no tempo mais do que nunca. E não apenas para encontrar o Duisean ou o que restasse dele.

           Parou diante do quarto de Ian. Se viajasse ao passado, encontraria sua irmã como na última vez em que a viu. Embora fosse apenas um momento, seria um reencontro maravilhoso. E elas não mereciam passar um último momento juntas, como nos velhos tempos? Tabby partiu tão repentinamente...

           Maldição, de repente ela se sentia solitária.

           Olhou em volta da luxuosa casa de Ian. Como era possível que se sentisse sozinha? Estava trabalhando em um caso. Ela sempre estava de serviço! Dessa vez, entretanto, era diferente. Sabia que o destino lançou sua rede. Brie previu isso. E era por causa de Maclean e a tragédia que foi sua vida.

           Ian se machucou durante a tentativa de curar Gerard. E ela não podia abandoná-lo agora.

           Nick já sabia o que ela ainda não havia admitido a si mesma. Sentiu muito medo quando Ian desmaiou. Parecia mais morto que vivo. E o pânico se apoderou dela ao ver os médicos reanimando-o.

           Pensou no que o monge fez a Ian e se surpreendeu com a extensão de sua raiva. Tinha que eliminar aquele canalha. Tinha que haver justiça dessa vez. Sabia por experiência o quanto evasiva podia ser a justiça, mas ela ardia pelo desejo de destruí-lo. Estava consciente de que desejava vingar Ian.

           E não queria reconhecer o que isso podia significar.

           Sam amaldiçoou. A sensação de solidão desapareceu. Estava muito atarefada para sentir-se sozinha, muito envolvida naquele assunto.

           Mas se negava a pensar nisso. Sua prioridade era recuperar a página para Nick e a CDA. E agora tinha uma desculpa para viajar ao século XVI: recuperar as demais páginas do Duisean.

           Ia voltar no tempo, custasse o que custasse, e não só para recuperar os poderes perdidos do Duisean.

           Agora, entretanto, tinha um dilema urgente para enfrentar. Ian, aparentemente, recuperou a consciência e foi transferido para o seu quarto. Seus sinais vitais eram normais ou assim ela entendia e estava se recuperando como somente podia fazer um quase imortal. Segundo os doutores, esgotou-se ao curar Gerard. Os Curadores que não dominavam seus poderes podiam destruir a si mesmos ao transferir muito poder branco à pessoa ferida. Era uma coisa a mais a se preocupar. O bom era que Ian não gostava de curar. Sam não achava que ele fosse utilizar esse poder novamente. Ele a curou. Foi sua primeira vez, e ela nem sequer estava às portas da morte.

           Sam cruzou a sala de estar da suíte tentando não reconhecer o formigamento de excitação que carregava. Lembrou-se que Ian era um homem muito complexo. Seus motivos para curá-la podiam ser múltiplos, entre eles, seu ódio pelo mal e sua necessidade de contar com ela como reforço. Não se importava que a tivesse curado. Para Maclean não importava nenhuma mulher. Ela tinha que ter cuidado.

           Parou na soleira de seu quarto.

           Ian estava sentado na cama, apoiado em vários almofadões, com as mantas à altura da cintura. Tinha o peito nu. Seus músculos peitorais estavam cobertos por um fino pêlo e a cruz que pendurava do cordão de couro continuava aninhada no oco de sua clavícula. Cada vez que respirava esticavam seus abdominais. Estava tão sexy que Sam ficou com água na boca.

           De repente sentiu um desejo irrefreável de juntar-se a ele na cama.

           Mas Jan estava ali, sentada na cama, junto ao quadril de Ian, sorrindo e conversando em voz baixa. Ian levantou o olhar e o cravou em Sam.

           Sam já estava acostumada a suas súbitas mudanças de humor. Uma hora antes, Ian estava furioso e frenético e depois, o horror se apoderou dele ao ver o Gerard à beira da morte. Agora, ele estava fervendo.

           Mas ela também.

           Ian recostou nos almofadões.

           — Ainda aqui?

           — Pode apostar que sim. Caramba, espero não estar interrompendo — Sam olhou para Jan. — E você o que faz você aqui?

           Jan não se afastou da cama.

           — Nick me pediu que interrogasse Ian sobre o ocorrido. Mas Ian não parece muito disposto a cooperar... ainda — sorriu para ele. — Então, o que aconteceu quando voltou da casa do Hemmer esta noite, Ian?

           Sam estava perplexa.

           — Eu achava que tínhamos câmeras instaladas em toda a casa.

           Jan olhou para ela.

           — Alguém as desconectou.

           Sam escondeu um sorriso e olhou para Ian. Ele esboçou um sorriso.

           — Queremos ajudar, Ian. Não queremos ver civis feridos ou mortos nesta guerra. Seria muito útil se você preenchesse algumas lacunas para nós.

           — Pergunte a ela — Ian olhou para Sam.

           Jan também a olhou.

           — Sam apresentará seu relatório amanhã na primeira hora, ou talvez nesta noite. Podemos te ajudar a combater o monge, Ian. Por que não aceita nossa ajuda?

           — Não preciso de sua ajuda. E não vou entregar a vocês a página em troca — de repente ele afastou as mantas e se levantou.

           Sam conteve a respiração. Estava completamente nu. Ele lançou um sorriso arrogante.

           — Me perdoem.

           Jan deixou escapar um som. Sam a olhou. Jan se levantou. Não havia se ruborizado, mas estava admirando o corpo de Ian. Só uma mulher cega podia deixar de admirar tanta beleza e tanta virilidade. Ian passou a seu lado, indiferente à sua própria nudez, e entrou no closet.

           Sam cruzou os braços. Jan a olhou.

           — Não se preocupe. Não é meu tipo — mas ela estava pálida agora. Viu as costas de Ian.

           Jan estava sentindo pena dele. Sam tinha certeza disso. Jan se dispôs a sair do quarto.

            — Enquanto ele se veste, eu continuarei interrogando-o, Sam. Você pode ficar se quiser. Mas conseguirei mais se você for embora.

           Sam decidiu ignorá-la. Passou ao seu lado e entrou atrás de Maclean no closet. Ele havia colocado uns jeans, e Sam notou que não se incomodou em vestir cueca. Ian lhe lançou um olhar provocador enquanto subia o zíper.

           Ela tragou saliva. Tudo foi esquecido. O vídeo e sua reação a ele, a destruição da sala de mídia, sua maldade e a raiva.

— Aonde vai?

— Lá embaixo.

Jan estaria esperando por ele.

— Por que não lhe dá o que quer? Ou seja, informação.

Ele ficou olhando pra ela. Não havia dúvida do que ele queria.

— Não sinto vontade de falar com Jan. Preciso de uma bebida.

Sam também. Foi uma noite muito longa. Ela molhou lentamente os lábios. Sabia o que aconteceria se ficasse. E queria que acontecesse.

— De acordo.

— Eu pedi que você se juntasse a mim? — perguntou ele com ironia.

— Sim, com esses olhos cinza tão incríveis.

— Acaba de me fazer um elogio?

— Você sabe o quanto é quente. Ian sustentou seu olhar.

— Mas esse é o ponto. Não sou um menino — murmurou.

Jan apareceu na porta do closet e olhou a ambos.

— Preciso que me concedam meia-hora.

Ian pareceu divertido. A máscara estava de volta.

— No caso de ter esquecido, eu não sou um de seus agentes. Não vou responder a nenhuma pergunta — vestiu uma camiseta.

Jan enrijeceu.

— Sam, interrogue ele você então — e ela se foi.

Sam fez uma saudação militar. Não recebia ordens de Jan, e adorava que Ian se livrasse dela daquela maneira.

           Saíram do closet e da suíte. Sam sentia em suas costas o calor de Ian. Havia tanto poder e tanta virilidade... Mas ela ficou surpresa que ele parasse diante do elevador como se tivesse a intenção de usá-lo. Quando a porta se abriu e entraram, tentou não olhar para ele. Observou suas mãos pela extremidade do olho. Ian não estava puxando a gola da camiseta. Ele manteve suas mãos nos bolsos da calça.

           Ele estava no controle de si mesmo, pensou Sam, depois de tudo o que aconteceu, não sabia como conseguiu isso, mas recuperou por completo o controle. Sam estava espantada.

           Ian a conduziu a um salão que ela não viu antes e se deteve diante de um intercomunicador. — Gerard, pode trazer para a senhorita Rose e eu algo leve para comer?

           — Sim, senhor — respondeu Gerard.

           Ian lançou a Sam um olhar sexy e se aproximou do bar de mármore vermelho molhado.

            — Posso abrir uma boa garrafa de vinho. Ou prefere outra coisa?

            Sam se aproximou do bar e se sentou em uma poltrona de pele com pés de bronze antigos.

           — Esse scotch parece ser bom.

           Ele sorriu.

           — É bom.

           Ian nunca sorriu assim, sem dor, raiva ou sarcasmo debochado. Como se percebesse que cometeu um deslize, separou-se dela e começou a servir as bebidas. Abalada, Sam disse:

           — Acabo de falar com Brie. Como pode constatar ela está em Edimburgo, com seu pai.

           Ian entregou-lhe um copo.

           — Eu sei.

           Ela hesitou.

           — Você vai visitá-los?

           — Não — Ele deu um gole aparentemente imperturbável.

           Sam vacilou. Aquela seria uma noite boa. Não queria arruiná-la. Tinha muitas perguntas a fazer sobre o monge, mas talvez causasse com isso algum desconforto.

            — Tabby está em Blayde com Macleod, sua alma gêmea. Um Mestre.

           Ele esvaziou sua bebida.

           — Você vai visitá-los?

           — Não sei. Ela agora é mais velha e grisalha — Sam hesitou. — Isso poderia me deixar triste.

            Ele a olhou com surpresa. Sam se sentiu como uma idiota. De onde veio vindo aquele absurdo comentário?

            — Ela teve uma vida incrível. Tem filhos e netos. É feliz e eu fico feliz por ela.

            Ian se serviu outra taça.

     — Mas você a visitaria, se pudesse voltar tempo.

            Sam olhou seu uísque.

     — Sim — ela ergueu os olhos. Seus olhares se encontraram.

            — Diga ao Nick que a envie — disse Ian bruscamente.

            Nick queria que ela persuadisse Ian e que localizasse a página. Sam acabou sua bebida e lhe deu o copo para que voltasse a enchê-lo. Seus dedos roçaram. Ela estremeceu. Aquela ia ser uma noite fora de série, disse a si mesma, e se alegrou de não ter deixado transparecer o tema do monge para explodi-lo. Sorriu lentamente pra ele. Ele sorriu de volta.

           — Tenho que fazer uma pergunta — disse Sam. — Por que você não tentou usar o poder da página do poder da ilusão para combater os nossos inimigos?

           Ele já não sorria.

           — Você gosta de lutar contra o mal. Eu, não.

           — Você atraiu esse demônio através de Internet numa armadilha para poder matá-lo por caçar crianças. Acho que foi uma vingança. Que foi pelo que fizeram a você — ela se arrependeu em seguida de dizer aquilo. Estavam tomando uma bebida tranquilamente. Foi um dia horrível. Ele estava excitado e ela também. O sexo era iminente. Sam não queria despertar o tigre.

            Mas Ian não mordeu a isca. Bebeu um gole.

           — Pode pensar o que quiser, Sam. Eu só quero sexo. É a única que quero desde aquele dia em Oban.

           A tensão de Sam era diferente agora, como se fosse desânimo. Mas isso era absurdo. Não era isso também que ela queria de um cara: sexo. Não era?

           — E agora você tem o que queria, não é?

            — Eu tenho tudo o que quero — respondeu, apontando com a cabeça a sala luxuosamente decorada.

            Sam bebeu o uísque, de repente se sentia vazia e desanimada. Desejar mais de Maclean era uma loucura.

           — A página está segura, Ian?

           — Pareço um tolo?

           — Vai seguir adiante com o leilão de sexta-feira?

           Ele olhou para ela.

           — Eu quis dizer o que disse antes. Vou fazer algumas chamadas mais tarde para procurar comprador. A página será história ao amanhecer.

           Ela tremeu. Ian pretendia sair correndo.

           — Poderia, por favor, me dizer onde está e reconsiderar esta insanidade?

            — Para que você possa dizer ao Nick? — ele riu e voltou a encher os copos.

           Sam já tinha tomado suficiente uísque. Empurrou seu copo de volta.

           — Eu não entendo. Você não é mau, então não se trata de poder. E também não precisa de dinheiro. Tem riqueza suficiente para várias vidas.

            — Ninguém nunca tem poder suficiente, nem riqueza suficiente — ele respondeu categoricamente.

           Que demônios significava aquilo?

           — Você nunca deixa de me surpreender, Maclean. Com você, nunca sei o que vou encontrar. Quanta riqueza e quanto poder ambiciona?

           — Ele acha que, com dinheiro suficiente, poderá comprar sua liberdade — disse Rupert Hemmer.

           Sam virou e de repente seu coração parou. Rupert Hemmer estava ali, e não estava sozinho. O monge de Carlisle estava com ele.

           Sam se levantou com um salto e olhou para Ian. Ele estava pálido, mas seus olhos cintilavam, cheios de fúria. Sam não tinha sua bolsa ali. Tinha um minidisco amarrado ao pulso e uma pequena adaga na bota. E uma navalha no sutiã. Nada mais.

           Olhou de novo para Ian. Ele estava furioso, mas seu olhar refletia medo.

           Ian, pensou, nós podemos fazer isso.

           Ele não olhou para ela, mas se sobressaltou como se a tivesse ouvido. Hemmer foi o primeiro a entrar.

           — Realmente achava que ia fugir com tudo o que tem? — ele perguntou a Ian e a Sam. — Eu avisei sobre meus amigos especiais. Mas esqueci de acrescentar que a mim ninguém desafia.

           Ian tremia visivelmente. Seu rosto estava tão tenso que parecia a ponto de rachar. Sam se aproximou dele. Ela olhou para os dois, entre Hemmer tão suave e cortês em seu terno, e o monge, com suas vestes escuras.

            — Não me lembro de ter te desafiado, Rupert. Que eu me recorde, foi você quem me ameaçou.

           Hemmer parecia encantado.

           — Na verdade, eu o ameacei — apontou para Ian. — E, para cumprir minha ameaça, pedi ao Carlisle que nos acompanhasse.

           Sam se virou. Ian olhava fixamente ao monge, que sustentava seu olhar com os olhos cheios de malicioso prazer. Ian resmungou baixinho:

           — Vocês cometeram um erro vindo me procurar aqui, em minha casa.

           — Você nunca foi um menino valente, Ian, porque tenta ser corajoso agora? E, antes que use seu poder, me permita lembrá-lo que agora tenho muitos dos poderes de seu avô.

           Ian molhou os lábios.

           — Onde está Gerard?

           — Está intacto — o monge sorriu.

     — Essa briga anterior foi meu último aviso para você. Mas já sabia que era eu, não é verdade? Reconheceu minha obra. Você reconheceria.

           Sam olhou para ambos, cheia de fúria. Ian tremeu involuntariamente. Respirando com dificuldade disse:

           — Vou matar você pelo que fez a Gerard, pelo que tentou fazer a Sam... e a todos os outros.

           — E não pelo que fiz a você? — perguntou o monge com voz suave.

           Sam estava com medo de tentar compreender ao que se referia. Notou que o monge falava como um homem moderno. Talvez vivesse na Idade Média, mas parecia tão familiarizado com o mundo moderno quanto ela. Ele foi guarda de Ian durante uma década. Estar no presente não lhe dava nenhuma vantagem

           — Você sempre gostou de fazer ameaças — disse Ian duramente. — Foi fácil ameaçar um menino prisioneiro. Agora, suas ameaças não significam nada.

          

                        O monge olhou para Sam com interesse.

           — Rupert me disse que você se aliou a esta mulher. Você sabe como sou bom em ler mentes. Ela quer voltar no tempo para procurar sua irmã, assim vou dar o que ela quer. O que você acha disso, Ian? Vou levá-la para longe. Como levei você.

           Ian estava tão furioso que não podia falar. Faíscas brilhavam de seu rosto, braços e mãos. Sam tocou o braço dele avisando-o para permanecer no controle. Queria evitar uma batalha sobrenatural, porque não estava segura de que pudessem ganhar.

           — Talvez eu faça um labirinto só para ela — o monge riu.

            Sam notou que Ian estava a ponto de explodir, preparou-se para a batalha.

           Hemmer disse baixinho:

           — Cuidado com a mulher, Carlisle. É muito mais perigosa do que ele. É uma Matadora e é inteligente. O monge sacudiu lentamente a cabeça e deu um passo adiante.

            — Deixarei em paz sua amada se me entregar a página, Ian.

            Sam se colocou instintivamente diante de Ian, mas ele a agarrou e a empurrou para trás de si.

           — Não se aproxime — retrucou.

           O monge parou. Já não sorria.

           — Me dê isso Ian, e você nunca mais me verá de novo.

           Sam olhou para Ian e se perguntou se o medo que sentia por aquele homem e suas lembranças do passado podiam fazer com que ele entregasse a página.

           — Você já me conhece. Sabe do que sou capaz.

           Sam ficou tensa. O medo começava a apoderar-se dela. Olhou de novo para Ian, mas ele tinha o olhar cravado em Carlisle.

           — Eu não a tenho — disse.

           O monge se surpreendeu. Hemmer parecia incrédulo.

           — Sim ele a tem. Roubou-a de mim. Ele mesmo reconheceu isso.

           Sam não moveu nem um músculo.

           Hemmer acrescentou:

           — Está mentindo.

           Ian sorriu lentamente.

           — Eu a dei ao Forrester. A CDA a tem.

           Sam quase reagiu, mas conseguiu refrear sua surpresa ao perceber a tática genial. Imediatamente esperou que o monge não tivesse lido sua mente.

            — Então terá que recuperá-la para nós — grunhiu Carlisle.

           Sam sentiu sua intenção quando viu seus olhos mudarem para vermelhos brilhando diabolicamente. Seu poder negro refulgia. Um raio caiu sobre eles, mas Ian contra-atacou. O raio negro e o raio branco se chocaram, fazendo tremer as paredes e o teto. O gesso rachou e começou a cair.

           Sam lançou seu disco contra Hemmer enquanto Ian e o monge lançavam mutuamente uma nova descarga. O disco se dirigiu para Hemmer e logo virou como desviado por uma força invisível. Que diabos era isso?

           Hemmer correu em sua direção com um sorriso triunfal. Sam esperou com a adaga na mão. Ian, enquanto isso, lançava uma descarga de poder em Carlisle. Depois olhou para ela. Quando ele virou, o monge enviou os poderes de Ian de volta para ele.

           — Não! — gritou Sam.

           Golpeado por seu próprio poder, Ian foi arremessado para trás contra a parede. Nesse momento, Hemmer agarrou Sam. Distraída, ela demorou para reagir e cravou a adaga em seu ombro, não em seu coração.

           — Cadela — resmungou ele, agarrando-a. — Vai pagar por isso — ele apertou-a entre seus braços e Sam compreendeu o que ele pretendia fazer.

           Olhou para Ian. Ele estava de pé e estava preparado para usar seu poder novamente. Carlisle também estava preparado para a batalha. Então o monge olhou para ela, apertou os olhos e desapareceu.

           Ian gritou, em desespero e fúria.

           Sam respirou fundo. Não queria deixá-lo, mas...

           Quando ela foi arremessada para cima com Hemmer, esperava a incrível explosão quando sua cabeça batesse no teto, em vez disso o teto desapareceu à medida que rodopiava, passando sobre os telhados da cidade, perderam-se entre as nuvens do céu noturno. À velocidade da luz, passaram entre estrelas e luas e mais à frente do sol. Uma dor cega começou a rasgar Sam, a fazê-la pedaços. Mas Sam não gritou.

           Nenhuma única vez.

 

           Escócia. No passado

           Densas sombras cinza a oprimiam. Tentou afastá-las, mas estava fraca e grogue. Onde ela estava? O que aconteceu? Todo o seu corpo estava em chamas sofrendo o diabo. A tormenta do naufrágio tornava difícil respirar. Talvez não houvesse ar suficiente. Não podia afastar aquelas densas teias de aranha cinza. Com um ímpeto repentino, tentou nadar por elas para a luz.

           Ela se perguntou se estava se afogando.

           Abriu então os olhos e viu uma escuridão quase total. Sob as mãos e as pernas nuas notou pedra dura e áspera. Ela estava deitada em um atoleiro.

           Seu primeiro pensamento foi que estava deitada numa poça de seu próprio sangue.

           Sentou-se imediatamente, rangendo os dentes para resistir à dor. Sentiu então o grilhão no pulso direito. A névoa de seu cérebro se dissipou. Acabava de saltar no tempo com Rupert Hemmer.

           Agora se lembrava de tudo.

           Estava ficando mais fácil respirar. Será que Hemmer a levou para 1527? Ele poderia tê-la levado a qualquer lugar, a qualquer época. De repente teve a sensação de que Hemmer não era o que aparentava ser.

           Seus olhos estavam se ajustando à escuridão. Ela aguçou a vista. E compreendeu que não estava sozinha. Não se importava com os roedores, cujo saltitar e correr era audível. Mas ouvia, além disso, uma respiração humana. Começou a distinguir as formas de outras pessoas amontoadas não muito longe dela. Demorou um momento mais em compreender que eram também prisioneiros, e que se achavam detrás de grades.

           Prendeu a respiração ao encontrar olhares pálidos. Em algum lugar acima dela foi aceso um fogo ou uma tocha. Sam viu que estava em uma masmorra.

           A prisão era uma câmara de rocha bruta, grande e tosca. Não tinha janelas, e era claramente subterrânea. Diante dela estavam as celas com grades de ferro. Os homens e as mulheres com os quais compartilhava cativeiro eram esqueletos gastos e vestidos com farrapos. Parecia que estavam no calabouço durante anos.

            Sam olhou para o grilhão no seu pulso. Estava acorrentada à parede. Ela testou aquilo, sem conseguir fazer muita força. Parecia bastante sólido.

           — Você não pode se libertar — disse Rupert Hemmer.

           Sam olhou quando ele parou diante ela. Apresentava um aspecto absolutamente incongruente, estava sobre ela com seu costume feito a mão, um terno risca-de-giz acompanhado de dois enormes valentões de aspecto bárbaro. Sam sentiu a maldade daqueles dois homens e sabia que eles estavam contaminados. Usavam jaquetas curtas, meias escuras e botas de bico fino e cano alto, na altura do joelho. Cada um usava uma espada longa e uma punhal amarrado na cintura, e carregavam tochas nas mãos.

           A primeira coisa a fazer era descobrir onde estava exatamente e em que época.

           — Obrigada pela viagem — disse — Mas eu não gosto de esfolar os joelhos.

           Hemmer riu.

           — Tenho que reconhecer isso, Sam, você é corajosa. Nem sequer gritou durante o salto, não derramou nem uma lágrima. Quase me deu pena ter que deixá-la inconsciente.

           — Aposto que sim. E Hemmer... lamento dizer isso mas não pode me usar contra Maclean. Para isso, eu teria que ter alguma importância para ele, e eu não tenho.

           — Então, nós vamos usá-los — respondeu ele, encolhendo os ombros. Seu sorriso era arrepiante. — Tenho por costume livrar-me de pessoas como você sempre que posso.

           Além de alguns arranhões e machucados, Sam estava ilesa. A umidade no chão não era sangue, e Sam tinha consciência do odor ocre e rançoso que reinava na masmorra. Preferia não pensar no que podia conter aquele líquido.

           — Não tenho medo de morrer — sorriu. — Mas prometo que vou te levar comigo, quando eu for.

           Hemmer respondeu suavemente:

           — Acho que dentro de um momento você não estará tão contente.

           Ele ia tentar machucá-la. Não para castigar Maclean, nem para conseguir a página e seu poder, mas sim por simples diversão. Sam olhou para ele. Aquele homem escondia sua maldade, então a pergunta mais importante era: até onde chegava sua perversidade?

           Hemmer reconhecia que vendeu sua alma. Todo mundo sabia que era um hábil negociador. Quem sabia o que ele negociou com Satã.

           — Onde estou?

           — Não é evidente? — ele estremeceu com desgosto — Na Idade Média. Não compreendo como alguém podia suportar esta época tão primitiva.

           — Poderia ser mais específico?

           — Está esperando um cavalheiro de armadura brilhante? — riu. — Maclean não se incomodará em vir, embora soubesse onde te encontrar, de qualquer maneira.

           — Você se aliou ao célebre monge Carlisle. Provavelmente estou em um de seus castelos, a menos que você também tenha propriedades nesta época, claro. E, como não é boa ideia ficar sozinho em outra época, eu apostaria o colar de pérolas de minha avó que estou em 1527. Uma época segura para o monge, porque é a que pertence.

           — Que garota inteligente. Mas o ano tem trezentos e sessenta e cinco dias. Para encontrá-la, Maclean terá que vir aqui, e contamos com isso — disse Hemmer.

           Sam ficou tensa quando os valentões se aproximaram para agarrá-la. Se Maclean fosse procurá-la, estariam esperando por ele. E estava certa de que ele viria atrás dela. Não a deixaria perdida no tempo, prisioneira do mal.

           Sam não queria que ele caísse em uma armadilha. Não queria que voltasse a enfrentar o monge, especialmente sozinho. Ela não podia se preocupar no quão protetora era naquele momento. Em vez disso, tinha que escapar dali. Se escapasse, Hemmer e o monge perderiam sua vantagem sobre ele e a armadilha ficaria desfeita.

           Hemmer sacudiu a cabeça.

           — Vocês, humanos... Está apaixonada por ele. Não acreditava que fosse tão tola.

            Sam se sobressaltou. Hemmer podia ler mentes.

            — O que exatamente você ofereceu a Satã quando vendeu sua alma? Além do poder de saltar no tempo e de ler o pensamento.

           Hemmer sorriu.

           — Não nega seus sentimentos?

           Ela sacudiu a cabeça lentamente.

           — Não sou romântica por natureza, então não, não estou apaixonada. Mas decidi que o caso de Ian é meu. Foi vítima do mal e pretendo vingá-lo, isso se chama justiça.

           — O que mais gosto em você é que verdadeiramente não tem medo — disse Hemmer em tom suave. — Tenho planos enormes para você.

           Sam sabia o que ele pretendia. A única coisa que ele não se incomodava em esconder era seu desejo. Mas Sam não sabia qual seria o primeiro movimento. A tortura ou a violação. Provavelmente tentaria ambas de uma vez.

           Sam não tinha medo, exatamente. Sabia que podia suportar o que acontecesse. Mas sabia também que haveria muita dor.

           Pensou em sua irmã. Sempre tiveram uma telepatia incrível. Mas essa telepatia dependia de diversos fatores, como a localização geográfica e o tempo. Para que Tabby a ouvisse, teria que estar perto e no mesmo ano. Mas apenas para o caso de que ela estivesse por perto, Sam mandou pra ela um sinal de socorro. Um feitiço mágico seria muito útil naquele momento.

           — Soltem-na — ordenou Hemmer aos selvagens que estavam com ele.

           Um dos valentões abriu o grilhão e a obrigou a se levantar. Sam decidiu não resistir... ainda. Estava consciente de que tiraram todas as suas armas e só contava com suas mãos.

           — Então, você gosta de ser o lacaio do monge? A propósito, onde ele está? Certamente não vai querer perder a festa.

           — Eu não sou lacaio de ninguém.

           — Ah, então pensam em compartilhar o poder da página? — perguntou ela, zombadora.

            — Eu nunca compartilho o poder.

            Sam sorriu. Uma guerra se aproximava. Dividir para conquistar. Começou a trabalhar por ali

     — Aposto que é exatamente o pensamento de Carlisle.

            — Alguma coisa te assusta? — perguntou Hemmer em voz baixa.

           — Você não, certamente.

           Ele sorriu.

           — Eu ficaria desapontado se fizesse isso.

           Os guardas empurraram Sam para um alçapão muito pequeno. Ao precipitar-se para frente, Sam ouviu o pranto de uma mulher. Ela olhou para os outros prisioneiros. Enquanto seguiam empurrando-a, disse:

           — Porque eles estão aqui?

           — Não tenho nem ideia. Nem me importa.

           O alçapão foi aberto. Sam viu uma escadinha que subia ao andar de cima das masmorras e distinguiu uns sapatos negros e bicudos que lhe eram familiares. Hemmer a empurrou com força para a escada. Sam a agarrou instintivamente. O monge Carlisle ficou de joelhos e sorriu para ela.

           — Olá, Sam. Vou cumprir todas as minhas ameaças.

           — Que sorte a minha — respondeu ela.

           Ele acrescentou:

           — Quanto aos outros prisioneiros, estão aqui para alimentar meus cães.

          

            — Nick, Maclean está subindo. — Nick estava ao telefone, falando com seu contato na CIA, que dirigia a unidade de luta contra o mal, uma brigada tão clandestina como o CDA. Ele combatia todo o mal dirigido por governos estrangeiros. Como a HCU, contava com pouco pessoal e com subfinanciamento, apesar de ter centenas de investigações abertas. Seu colega da CIA o chamou para pedir sua opinião sobre certo assunto relacionado a nova onda de queima de bruxas em Madrid.

           Quando desligou, Nick se sentiu repentinamente inquieto e não foi porque eles concordaram que o culto demoníaco era o responsável pela violência em todo o mundo. Tinha o estômago revirado, e conhecia bem aquela sensação. Era um mau pressentimento.

           — Onde está Rose? — ele perguntou. Estava preocupado com ela, apesar de saber que Sam podia se cuidar sozinha.

            — Não sei — respondeu Jan. — Nick, Maclean estava estranho. Muito tenso. Intenso.

           — Mande-o entrar — disse Nick, ficando de pé. Tinha uma grande intuição. Elas foram lapidadas nas nove ou dez décadas que ele vinha lutando contra o mal em todas as suas formas e encarnações. Algo estava errado. E não se tratava de Maclean, porque não dava a mínima para ele. Assim que tivessem a página do poder da miragem, ele poderia ir aonde quisesse. A Interpol e a Scotland Yard que o pegassem. Possivelmente ele mesmo se encarregasse de fazer as apresentações.

           Não, seu instinto lhe dizia que alguém com quem ele se importava ou de quem se sentia responsável estava em perigo.

           — Encontre a Sam — gritou para Jan. — Quero que apareça — olhou seu relógio. Era uma e meia da madrugada. Porque Sam não estava com Maclean? Ela deveria estar vigiando-o.

           Nick decidiu não esperar por Jan e discou o número do loft de Sam. Não houve resposta e seu mau pressentimento aumentou. Era uma Rose, pensou. Estava em apuros.

           Maclean entrou em seu escritório sem bater. Os olhos em chamas.

           — Onde está Sam? — disparou Nick.

           — Hemmer viajou com ela no tempo. Certamente a levou ao monge.

           Nick estava furioso e atônito ao mesmo tempo. Soltou uma maldição. Sam não podia se perder no tempo.

           — E você ficou ali parado e deixou que a levassem?

           — Estava ocupado com o monge — replicou Maclean. — Vai fazer alguma coisa para encontrá-la? Ou vai ficar com sua bunda sentada aí e deixá-la morrer?

           — Eu nunca fico sentado na minha bunda, Maclean. E antes de começar a me acusar, por que você não os seguiu? Ah, me esqueci-me. Você tem medo de saltar.

           Maclean tremia de fúria.

      — Eles desapareceram tão rapidamente que não sei aonde foram!

           Nick sabia que foi muito duro com ele. Maclean não estava acostumado a seus poderes e só conheceu um punhado de homens, todos highlanders, que pudessem seguir um demônio através do tempo. Nick lembrou a si mesmo que devia manter a calma. Havia oito anos que não perdia um agente no tempo. Chamou Kit Mares pelo intercomunicador.

           — Venha aqui, por favor.

            Maclean se aproximou dele até que seus narizes quase se tocaram.

           — O monge e Hemmer nos fizeram uma visita depois que vocês se foram. Estão trabalhando juntos. Como você vai encontrá-la? Está no passado. Poderia estar em qualquer parte!

           Nick ficou olhando para ele, entrou em sua mente e ficou perplexo. Maclean estava aterrorizado que Sam pudesse ser torturada. Por sua mente cruzavam imagens espantosas, tão vertiginosamente que se rabiscavam. Mas não importava. Nick via tudo e, o que não via, poderia supor, suspeitar e adivinhar. Viu instrumentos de tortura. Viu cadeias, barras, jaulas, destruição. Viu demônios assistindo. Viu bestas e monstros. Viu um labirinto. Viu sangue, viu violações.

           — Me diga o que pretende fazer! — gritou-lhe Maclean.

           Nick recuou. Por um instante inacreditável teve pena de Ian Maclean. Então voltou em si.

           — Sam é muito resistente — mas, enquanto falava, calculava as probabilidades. Ele tinha fé nela, mas nunca contou unicamente com a fé. Sam não era imortal. Poderia morrer.

           E ele preferia morrer a perder a outro agente nas areias movediças do tempo. Rose era responsabilidade dele. Tinha que retroceder no tempo, ajudá-la a escapar dos demônios e retornar ao presente. Sam não ia se tornar um dos Doze ou, melhor dizendo, um dos Treze. Nick nunca se perdoaria pelo desaparecimento de seus agentes.

           Ela sabia que estava indo de volta ao passado. Era como se uma faca atravessasse suas têmporas. Tentou resistir e respirou fundo. E ao ver que Maclean continuava em pé diante dele e que a sala não se movia, ao perceber que aquelas explosões não se repetiam, compreendeu que venceu.

           No momento.

           Maclean não sabia nada dos agentes que morreram em tempos remotos, estando sob sua responsabilidade. Não sabia nada dos que viajaram ao passado e que nunca voltaram a ter notícia, apesar dos anos de busca. Ignorava que Nick se sentia responsável pelos desaparecidos, dos mortos e dos feridos. Ignorava que tinha pesadelos sobre todos e cada um deles. Não sabia sobre seus flashbacks.

           E, sobretudo, não sabia que sua culpa era merecida. Era seu castigo por ter falhado com Katie e os meninos e, mais tarde, por ter falhado com Jan.

           Maclean não sabia nada disso. Nick sorriu para ele.

           — Farei um trato com você, Maclean. Talvez eu possa ajudá-lo a encontrá-la, mas você terá que cooperar.

            Maclean pareceu surpreso.

     — Você quer negociar quando a vida dela está em jogo?

            — Trabalho para o Tio Sam. Sou como um robô sem consciência. Recebo ordens. E as cumpro. E agora tenho ordem de recuperar essa página, entregue-me e daremos o que temos sobre Hemmer e Carlisle.

           O poder de Maclean explodiu. Nick não esperava uma reação tão imediata, nem tão violenta. Ele foi arremessado para trás e se chocou contra a parede, atrás de sua mesa.

           — Que se foda — grunhiu Maclean. — Eu a encontrarei sozinho — virou-se, mas Kit Mares estava na porta, bloqueando seu caminho, com os olhos arregalados.

           — Espere Maclean — disse Nick, esfregando as costas. Ele não esperava mesmo que Maclean se submetesse.

     — O que você tem, Kit?

           Kit os olhou para ambos.

           — Não muito. Ao que parece, o monge governou Carlisle com mão de ferro entre 1502 e 1527. Ele era temido onde passava. Até o rei da Escócia oferecia-lhe seus melhores aposentos. Dominou o bispo de Carlisle. Cada vez que se zangava, morria gente. Aldeias inteiras, Nick. A última referência que tenho sobre ele é de 27 de agosto de 1527. Nesse dia estava na catedral de Carlisle. Depois, não voltou a ser visto.

           — Alguém deve ter feito um favor ao mundo — comentou Nick. — Talvez tenha sido nossa Sammie.

           — Nick — sussurrou Kit, muito pálida, — Sam está lá?

           Maclean se virou para olhá-la.

           — O monge a levou — ele confrontou Nick, furioso. — Isso não me serve de nada. Vocês sabem que ele pode se mudar para outra época e adotar outro nome. Os demônios do passado saltam continuamente ao futuro. Você sabe. A metade dos demônios desta cidade procedem do passado! O que vocês sabem sobre Hemmer? — perguntou. — Por que se aliou ao monge?

           Ele estava certo. O monge podia, simplesmente, ter fugido de Carlisle em 1527 e viver em outro lugar havia muito tempo.

           — Sabemos que era amigo do Robert Moran. Fizeram negócios nos anos sessenta, os setenta e os noventa. Sabe quem é Moran, não é? Também conhecido por seu avô?

           Maclean lançou a ele um olhar furioso.

           — Antes de conhecer Moran — disse Kit com gravidade. — Hemmer era um empresário mediano. Tinha alguns investidores, mas foi criado no Bronx, em uma família de classe operária, mal terminou o ensino médio. Mas tinha lábia, e assim conseguiu fazer os primeiros negócios. Foi um caminho difícil, entretanto, e muitos de seus negócios foram para o sul. Quando começou a relacionar-se com Moram, ele teve abundância de investidores. Hemmer começou a subir e se fez milionário. Quase da noite para o dia estava na boca de todos. Foi como se tivesse o toque de midas. Nunca falhava. Cada acordo que fazia acrescentava milhões aos seus cofres. O resto, vocês já sabem.

           Maclean olhava para ela fixamente.

           — Não é um demônio. Ele é humano e muito, muito mal.

           — Então, como é que ele pode saltar no tempo? — perguntou Kit.

           — Vendeu sua alma em troca de dinheiro — comentou Nick. — E ele provavelmente conheceu Carlisle através de Moran. Carlisle era um de seus carcereiros.

           Maclean estremeceu.

           — Isso está em meu arquivo?

           — Não vou te dizer isso — respondeu Nick com suavidade. Por um instante desejou que Maclean pagasse por não querer lhes entregar a página, mas logo pensou em Sam. — Não recorda ter visto Hemmer enquanto esteve prisioneiro?

           — Não. Se recordasse, não teria roubado o Van Gogh para ele — Maclean provocou.

           — O que quer dizer com isso? — perguntou Nick.

           Maclean disse lentamente:

           — Foi ele quem ficou em contato comigo e não ao contrário.

           Nick olhou fixamente para ele.

           — Que interessante — disse por fim. — Você não é o único ladrão de arte do mundo. Claro que talvez seja o único com certos poderes.

           Maclean não disse nada. A ideia de que talvez fosse o alvo de Hemmer e Carlisle desde o começo parecia havê-lo impressionado.

           — Nick — disse Kit, — lembra-se daquela bruxa, Kristin Lafarge, que derrotaram? Em outubro passado se reuniu com um demônio que não conseguimos identificar no hotel Carlisle, aqui, na cidade. Sei que certamente é uma coincidência, mas me ocorreu mencionar isso.

           — Do que você está falando? — perguntou Maclean.

           — Lafarge, uma bruxa, perseguiu Tabitha Rose no tempo. Lafarge recebia ordens de um superior na atualidade e utilizavam o hotel Carlisle como ponto de reunião — ele se perguntava se era ou não uma coincidência. Lafarge morreu antes de conseguirem tirar dela essa informação, mas Nick sabia que uma permissão superior foi dada por um demônio para sair à caça de Tabby Rose.

           — O monge está confortável nesta época e fala inglês tão bem quanto eu — disse Maclean de repente — mas é francês. Olhou para Nick. — Estamos perdendo tempo. Hemmer é perverso. Eu sabia quando roubei o Van Gogh para ele. E se aliou ao monge, que tem um imenso poder negro. Agora eles têm Sam. Hemmer a levou aos tempos medievais, lá onde está o monge. Tenho certeza disso.

           Nick voltou a entrar em seus pensamentos. Maclean estava mais calmo, mas sua preocupação por Sam continuava enorme. Era o tipo de preocupação sentida por um amante, um amigo, um membro da família.

           Talvez tenha subestimado Maclean. Não era um cretino indiferente a tudo, como supunha. Mas continuaria considerando-o um egoísta até que entregasse a página.

           — Ouça Maclean. Não sabemos se Hemmer levou Sam de volta ao monge. Ele poderia tê-la levado para sua ilha particular, fora de Mônaco.

           — Eu sei. Eu a vi. Está prisioneira em um calabouço, acorrentada.

           — O que quer dizer com viu?

           — Tenho telepatia visual — respondeu Maclean. — Mas não posso ver a data, nem o nome do lugar. Você tem agentes por toda parte, inclusive no passado.

           — Sim, nós temos — disse Nick, perguntando-se o que exatamente Maclean sabia da HCU. — Tenho agentes por todo o globo, em muitas épocas diferentes. E depois, há Big Mama. Podemos alimentar-lhe com detalhes do caso enquanto eu espalho a notícia. Às vezes, quando um agente se perde no tempo, como Sam, podemos encontrar uma pista em algum arquivo histórico. Possivelmente algum de nossos agentes escutou alguma coisa, uma referência passada para um historiador que não significa nada, para nós é tudo.

           Kit disse:

           — Isso Nick, é como procurar uma agulha em um palheiro e você sabe disso. Poderíamos demorar uma semana para encontrar alguma pista que provavelmente não leve a nada. Ou inclusive anos.

           Maclean balançou a cabeça.

           — Sam não dispõe de dias, e muito menos de anos. Eles irão torturá-la. Ela não tem medo, mas quando acabarem, tenho certeza que terá — seu rosto endureceu. — Só há um modo de encontrá-la — disse severamente. E desapareceu.

            Nick se assustou quando seus gritos começaram.

 

            Loch Awe, 11 de agosto de 1527.

            Ian nunca tentou seguir ninguém ao passado. Mas, enquanto se recuperava do salto, se convenceu de que chegou à época certa e estava perto de Sam.

           Hesitou e levantou lentamente, na soleira do grande salão do castelo de Awe. Estava tão tenso que não podia se mover. Esqueceu tudo deliberadamente. Agora, as lembranças vieram à tona.

           O salão era enorme, com tetos sustentados por pilares e paredes e chão de pedra. Deus, era tudo tão familiar, ainda que tivessem trocado os móveis. A chaminé continuava a mesma, e também as duas poltronas de veludo que havia em frente a ela. E a mesa sobre cavaletes continuava ali, com dois longos bancos e uma poltrona em cada extremidade. Em uma parede, entretanto, havia espadas cruzadas e um escudo com um brasão, e em outra uma grande tapeçaria de ricas cores. Foram acrescentadas pequenas janelas com grades de ferro, para o caso de sofrerem um ataque ou cerco. Havia mais poltronas distribuídas pela sala e várias mesas e lindos baús, assim como um par de refinados tapetes persa.

           Lembrava daquela sala de quando era um menino pequeno e inocente. O chão estava coberto de juncos, não de tapetes, e a mesa de cavalete, os bancos e as duas poltronas da chaminé eram o único mobiliário do salão. Naquela época, era feliz. Havia uma cadela com seus cachorrinhos. Um cavalinho. E viagens de caça. De repente lembrou seu bonito pai entrando no salão e chamando-o, recém-chegado de uma batalha. Recordou como corria para ele e como Aidan o levantava enquanto ria às gargalhadas.

           Maclean respirou fundo. Ele Não queria recordar essas coisas, embora fossem boas lembranças. Pior ainda, entretanto, era recordar Aidan sentado à mesa, envolto em uma nuvem de escuridão, com os serventes acovardados diante dele, jantando com seus soldados, demoníacos ou possessos. Ian não estava então ali porque era prisioneiro do Moray, mas ele usou sua telepatia visual para ver seu pai, para suplicar que o escutasse, que fosse buscá-lo e o resgatasse. Aidan, entretanto, não podia vê-lo, nem ouvi-lo. Era tão irônico... Seu pai não pôde resgatá-lo, entretanto, agora se dedicava a proteger os meninos do mal que os caçava.

           Ele já estava angustiado, e estar naquele salão só aumentava seu desconforto. Não deveria ir ali.

           Mas Brianna tinha a Visão. Sem dúvida ela poderia encontrar a Sam.

           Pensar em Sam fazia seu estômago se contorcer de maneira insuportável. Ele inclinou, segurando sua barriga, respirando com dificuldade, através da dor. Eles iam fazer com ela o que fizeram com ele...

           Obrigou-se a olhar e permaneceu imóvel, horrorizado.

           Sam estava acorrentada a uma enorme mesa, em uma sala escura. Em frente a ela, sob uma luz, havia um cirurgião medieval empunhando uma faca de açougueiro. Então ouviu vozes.

           Ergueu-se, alarmado. Suando, reconheceu as vozes de seu pai, apesar de fazer vinte e cinco anos que não o via, e a de sua madrasta, Brianna. Não sabia se podia enfrentá-los. Parecia uma façanha impossível. No entanto, ele precisava da ajuda de Brianna.

           O tempo estava se esgotando para Sam.

           Aidan apareceu do outro lado do salão com sua esposa. Era um homem extremamente bonito, alto e forte, com o cabelo escuro e ondulado. Vestia o traje típico dos Higlanders: uma túnica com cinto que ia até a metade da coxa, botas altas até o joelho e manto azul e preto, preso ao ombro com um alfinete. Entrou no salão desabotoando o cinturão da espada, que um pajem recolheu. Brianna vestia um vestido comprido de veludo azul, com bordados dourados e cordão de ouro. Levava a escura cabeleira recolhida em uma trança e enroscada ao redor da cabeça.

           Ao vê-lo, Aidan parou e empalideceu. Brianna o viu em seguida.

           — Ian!

           Ele fez a expressão mais fria e indiferente que foi capaz, apesar de seu estômago revolver ainda mais violentamente que antes. Não se moveu quando se precipitaram para ele. Em vez disso, ele preparou-se.

           Olhou Aidan nos olhos. Seu pai o esquadrinhava com expressão insegura. Ian sabia que seu pai estava desesperado por um sinal de que gostava dele. Ian não podia se entregar a ele. Nem sequer queria fazer isso. Jamais poderia amá-lo da maneira que amou quando pequeno. Porque, olhando pra ele agora, recordou cada instante de seu cativeiro. Lembrava das torturas, as humilhações, a vergonha. Via o sorriso cruel de seu avô e o olhar luxurioso e lascivo do belo monge.

           E agora Carlisle tinha Sam.

           Mas antes que ele pudesse evitar, Brianna aproximou-se e o abraçou com força.

           — Que alegria vê-lo! — exclamou. Depois tomou seu rosto entre as mãos. — Você está tão bonito! Olhe para você. Nós sentimos a sua falta! — ela olhou-o com mais atenção. — Ian, o que está acontecendo?

           Ele conseguiu controlar sua náusea e recuou.

     — Brianna. Pai — disse, cortante — Vim pedir ajuda.

            A expressão de Aidan ficou tensa. Uma comoção cruzou seus olhos.

            — Claro que nós vamos ajudar — estendeu a mão e apertou o ombro rígido de Ian.

            Ian sabia quanto Aidan o amava, mas não pôde suportar aquele gesto de intimidade e de afeto. Afastou-se, tenso.

           — Eu estava com Sam em Nova Iorque. Um humano, um tal Rupert Hemmer, capturou-a e saltou com ela. Hemmer está aliado com o monge de Carlisle. Tentei segui-la. Acho que ela está aqui, em alguma parte — olhou para Brianna. — Está em uma masmorra, prestes a ser torturada.

           Aidan respirou fundo.

           — O monge costuma estar na catedral de Carlisle, Ian, de onde governa grande parte das Terras Baixas. Todo mundo o teme: o bispo, o prefeito, os nobres, inclusive nosso soberano. Tem grandes poderes. Poderes muito perigosos.

— Eu vi o quão poderoso ele é — respondeu Ian. Olhou para Brianna. — Por favor, me ajude a encontrar Sam.

           — Claro que vou ajudar — disse Brie, muito pálida. Estendeu a mão para Aidan e ele agarrou sua mão e a apertou. — Sam é minha prima e minha melhor amiga.

           — Brianna não pode ver por demanda, Ian — disse Aidan calmamente.

           — Eu sei.

           Brie soltou a mão de seu marido e se aproximou do fogo. Ficou ali, olhando para ele. Ian deu-lhe as costas ignorando seu pai também. Concentrou-se em Sam. Sua tensão aumentou ao perceber que Hemmer e o monge estavam atrás do cirurgião, que estava afiando a faca.

           Sam, você não está sozinha. Eu estou chegando.

           Ela estava imóvel, mas disse algo a Hemmer e Carlisle. O rosto do Hemmer adotou uma expressão feia. Sam não o ouviu. Mas por que iria ouvi-lo? Seu pai também não o ouviu, anos atrás.

           Tentou de novo.

           Sam! Já estou chegando!

           Ela não reagiu. Ian não queria ver mais, mas tinha que ajudá-la. Não achava que pudesse abrir os grilhões com a mente através do espaço e do tempo, mas decidiu tentar, concentrou-se nas fechaduras, mas a imagem desapareceu de repente.

           Ian amaldiçoou a si mesmo e olhou para Brianna, que continuava olhando o fogo, como se estivesse em transe. Deus, eles não tinham mais tempo!

           Voltou a ver Sam. Agora viu uma pequena janela no alto da parede, atrás de Hemmer e Carlisle. O sol entrava por ela, concentrou-se nas fechaduras mais uma vez. E ouviu soar uma corneta, fixou-se na janela que havia atrás dos dois homens, porque o som vinha de fora da masmorra. O som da corneta anunciava a chegada de alguém.

           Ian compreendeu que podia investigar algo mais sobre o lugar onde estava Sam se mudasse seu foco saindo da sala de pedra. Respirou fundo. O suor corria por seu corpo quando olhou para a pequena janela. O som da corneta ficou mais forte, de repente viu a escadaria de pedra branca de uma catedral magnífica, em que um par de músicos uniformizados fazia ressoar suas trombetas. Havia chegado uma carruagem puxada por quatro cavalos. Um clérigo ornamentado com roupa vermelha e dourada aproximou-se da escadaria. Sua enorme cruz de ouro reluzia ao sol. O bispo virou para seu secretário, que levava um cilindro de pergaminho e uma pluma. Dois serventes uniformizados abriram as portas da carruagem.

           Não! Ian queria ver aquele pergaminho.

           De repente viu o nariz torto e vermelho do secretário. Viu os ombros encurvados do bispo por trás. Focou seu olhar. O secretário estava escrevendo. E viu o que estava escrito na página, em latim. Não! Ele amaldiçoou. Tentou novamente. No alto do pergaminho, ao lado direito, ele viu a data. 9 de agosto de 1527.

           Ian olhou fixamente a data, hipnotizado, de repente parecia arder.

           — Ian?

           Sentiu a mão de seu pai sobre o ombro.

           — Você a encontrou! Nós iremos com você! — exclamou Aidan.

           Ian não o ouviu. Imediatamente partiu.

 

           — Pergunto-me até que ponto você é capaz de suportar a dor — disse o monge baixinho.

            Sam não sabia o que pretendiam fazer com aquela faca, mas podia imaginar. De algum modo conseguiu sorrir.

           — Fui baleada, esfaqueada, cortada com navalha e atropelada. Inclusive, me fizeram voar a distância equivalente a um campo de futebol. E depois teve o salto no tempo. Eu posso lidar com algumas punhaladas.

           — Meus cães estão com fome — disse o monge. — E gostam de carne crua.

           Ela deixou escapar um gemido, sem poder se conter. Isso era o que pensavam fazer com ela?

           — Acho que vou começar pelos dedos, você está finalmente com medo?

            Havia finalmente algum horror.

           Se ela perdesse os dedos, nem mesmo uma verdadeira Curadora como Allie poderia ajudá-la.

           Olhou a mesa de madeira, com seus grilhões nos cantos.

           Depois olhou para Hemmer, que permanecia impassível. Ela não acreditava que a tortura fosse muito de seu agrado, mas também não parecia disposto a ajudá-la. Lembrou que aquilo não era nada comparado ao que fizeram com Ian. Ao pensar nele, a imagem de Ian apareceu no centro da sala.

           Sam ficou imóvel.

           Ian estava tão transparente como um fantasma, mas estava vestido como o viu da última vez, com jeans e camiseta. Sua imagem tremia. Estava dizendo-lhe algo.

           Mas ela não o ouvia. O cirurgião disse alguma coisa. Sam não precisava entender sua língua, o alemão, para saber que estava preparado para começar. A imagem de Ian continuava ali. Estava falando urgentemente agora.

           Não te ouço! Pensou desesperadamente.

           — Não a solte, mas a mantenha em cima da mesa — ordenou o monge. Virou-se para Hemmer. — Isso vai ser interessante.

            — Quero ser o primeiro — disse Hemmer com suavidade. — Antes que ela esteja em pedaços sangrentos.

           Sam olhou para Ian. Sua imagem começava a desaparecer.

           — Não!

           O assassino a empurrou com força contra a mesa.

           Sam não pensou duas vezes. Deu-lhe um joelhada na virilha e usou os nós dos dedos nas suas têmporas. Para sua surpresa, enquanto ela se movia com velocidade relâmpago viu o grilhão se desprender de seu pulso e o guarda soltar apenas um grunhido e parar. Sam o cegou usando seus dedos. Ele gritou.

           Sam abaixou quando ele pulou para sua garganta. Foi fácil meter-se por debaixo de seu braço. Olhou para Hemmer e o monge do outro lado da mesa, sorrindo.

           — Olá, rapazes. Querem se divertir?

           Hemmer ficou em silêncio, mas seus olhos cintilavam. Sam sabia que ele gostava de desafios. Mas era o monge quem a preocupava. Carlisle levantou lentamente a mão. Ela se abaixou ao ver brotar de sua mão uma descarga de poder negro. O raio de energia se dirigiu para ela como um míssil capaz de detectar o calor, mudando de rumo para encontrá-la. Então, justo antes de bater nela, explodiu e o poder negro ricocheteou pelas paredes e pelo teto. As paredes da masmorra começaram a tremer e a rachar enquanto caíam pedaços do teto.

            — Ela está usando um feitiço de proteção de algum tipo — disse Hemmer com calma.

            — Ela é uma Matadora, não usa feitiços — rosnou o monge. Lançou nela outra descarga.

           Sam não podia acreditar no que estava acontecendo. Um muro invisível parecia protegê-la. A energia do monge chocou-se de novo contra aquele escudo invisível e ricocheteou contra as paredes e o teto. Caíram mais pedras. Um fragmento de rocha atingiu o monge no ombro, mas Hemmer continuava ileso. Enquanto a poeira levantava grossa como fumaça, Sam correu para a porta. Sentia o poder do monge atrás dela, perseguindo-a. Ao cruzar a porta, ouviu estalar uma nova descarga contra as paredes, de ambos os lados.

           Estava em um longo corredor, iluminado por tochas. Estava vazio. Sam correu com todas as suas forças enquanto os raios de energia do monge batiam no chão e nas paredes ao seu redor. No meio de uma chuva de pedras, ela entrou em uma galeria com elegantes janelões e um tapete no chão. Por ela passeavam nobres e damas. O poder do monge a seguiu quando recomeçou a correr. Os vidros das janelas se espatifaram, atingidos por seus raios. As mulheres começaram a gritar e correram para esconderem-se junto dos cavalheiros.

           Sam olhou por uma janela e viu o enorme pátio interior do palácio. Era um jardim maravilhoso com caminhos pavimentados, área para sentar e estava cheio de elegantes pedestres. Parecia uma cena de um filme histórico de Hollywood. Todos fugiram da galeria pelas escadas do canto. Esperavam que descesse para o pátio e saísse pelo térreo. Nem o monge e nem Hemmer haviam chegado ainda à galeria. Então Sam subiu pelas escadas correndo.

           Quando chegou nos parapeitos, que estavam desertos, ela tombou no chão de pedra, atordoada.

           Então começou a sorrir. Sua irmã a ajudou.

           E talvez, apenas talvez, Maclean também.

 

 

            Catedral de Carlisle, Escócia.

           9 de agosto de 1527.

           Ele levantou devagar, ainda abalado pelo salto e a ansiedade que ia crescendo dentro dele. Olhou ao seu redor. A catedral era construída em pedra vermelha. Era um imenso monumento a Deus, com muitos telhados altos, torres ainda mais altas e picos estreitos com cruzes fixadas. De ambos os lados da fachada principal da Catedral, franqueada por arcos de pedra pontiagudos que ostentavam cruzes negras, haviam torres mais baixas e quadradas. Uma dúzia de vitrais reluziam das janelas do edifício principal. Diante dos arcos de pedra havia um par de guardas uniformizados e armados com lanças e espadas.

           Os guardas, entretanto, pareciam ignorar os nobres e clérigos que entravam e saíam. Nunca se moviam ou levantavam suas armas.

            Bom, pensou Ian. Os guardas eram apenas para enfeite, embora estivessem possessos. Ian sacudiu o jeans enquanto olhava a entrada da catedral. Sam estava lá dentro. As masmorras estavam no subsolo.

           Ele começou a andar para a entrada principal. Quando subiu correndo a escadaria, os guardas o olharam com atenção. Dois nobres vestidos com capas curtas e meias coloridas também o olharam estranho quando saíram do interior da catedral. Ian ignorou todos eles e continuou a passar entre os guardas, sabendo que, vestido assim, chamava a atenção.

           — Você — disse um guarda rispidamente.

           Ian sabia o que ele queria dizer, mas não parou. Seu humor era muito ruim agora e ele ansiava usar seus poderes em quem se atravesse a impedi-lo de encontrar Sam. Ouviu que o guarda corria atrás dele.

           — Camponês! Pare!

           Ian virou e lançou nele uma descarga de poder. O guarda desabou inconsciente. Seu amigo lançou mão de sua espada. Ian sorriu selvagemente.

           — Tente isso e será um homem morto — disse com bastante significado.

           O guarda ficou paralisado.

           — Nós temos assuntos a tratar com o bispo — disse com calma uma voz às suas costas.

           Ian se voltou e viu Aidan e Brianna.

           O guarda olhou para Aidan, que sorria amavelmente, com a mão apoiada no punho de sua espada. Ian compreendeu que não era isso que parava o guarda. Seu pai usava um anel com selo de ouro maciço, adornado com uma enorme granada. O broche que prendia seu manto era igualmente caro. Suas roupas, embora simples, tinham ricos bordados de cima a baixo. E, ao seu lado, Brianna usava um lindo vestido de veludo azul e diversas joias. Compreendendo que pertenciam à nobreza, o guarda concordou com a cabeça.

           — Está bem. Podem passar — ele se ajoelhou junto ao seu colega, que gemia no chão.

           Aidan fez um gesto. Ian passou ao seu lado, lamentando ter recorrido a ele.

           — Não preciso de sua ajuda.

           Aidan e Brie o seguiram. O hall de entrada estava às escuras. O chão era de mármore e o teto muito alto.

           — Você veio até nós em busca de ajuda e nós estamos aqui para ajudá-lo Ian, quer queira ou não.

           — O que há de errado, pai? — perguntou mal-humorado. — Não tem nenhum pobre menino hoje para resgatar?

           Aidan fez uma careta.

           — Isso não é justo.

           — Muito bem — rosnou Ian. — Agora que é um Mestre tão poderoso, pode me ajudar a resgatar Sam.

           Aidan respirou fundo.

           — Eu o teria resgatado, Ian, se soubesse que você estava vivo. Achava que era um fantasma.

            Ian invadiu a porta de entrada da igreja. Aidan agarrou seu braço por trás.

            — Devemos esperar. Pode tentar senti-la, em vez de correr de forma imprudente?

           Seu pai tinha razão, demônios. Ele parou e tentou sentir o poder de Sam. Mas só sentiu uma presença escura e intensa do mal. O mal morava ali, em Carlisle, em cada pedra, em cada viga. Mas também sentiu a presença de Deus.

           Ele ficou tenso e levantou o rosto para o afresco do teto, onde bestas e querubins travavam uma violenta batalha diante dos portões resplandecentes do céu, acima das chamas vermelhas do Inferno.

           Os Anciãos também estavam presentes. Ian estremeceu surpreso ao senti-los, e mais surpreso ainda por reconhecer sua presença. Nunca os sentiu assim. O mal reinava em Carlisle, mas os deuses não se deram por vencidos.

           — Talvez devêssemos fazer isto ao velho estilo, Aidan — disse Brie, muito séria. — Sala por sala. Não podem existir tantas. Começaremos por baixo, pelas masmorras, porque é onde você viu Sam.

           Ian olhou para esposa de seu pai. Sempre gostou dela. Era suave, doce e gentil, mas seu bom caráter escondia uma lealdade feroz ao seu marido e suas primas. Agora ela sorriu, encorajando-o.

           — Sam é a mulher mais forte que conheço — ela acrescentou.

           — Me deem um momento — respondeu ele. Concentrou-se em Sam, mas não a viu. Só via sombras escuras...

           Piscou, cheio de frustração, e olhou para Brianna e Aidan.

           — Vamos embora, antes que seja muito tarde.

           Brianna pegou sua mão e a apertou. Ele afastou a vista de seus olhos escuros e penetrantes. Brianna sabia o quanto sofria? Estava fazendo todo o possível para esconder isso.

           De repente, a sala escureceu. A temperatura baixou drasticamente causando-lhe calafrios. Rajadas negras varreram a enorme entrada da igreja.

           Ian ficou paralisado.

           O monge tinha muito mais poder agora. Ian soube imediatamente, a partir do momento em que o viu abatendo-se sobre Sam no cofre. Seu estômago revirou.

           Mas não tinha medo apenas por Sam. Tinha medo por si mesmo.

           Respirou fundo e olhou para o outro lado do hall. As negras rajadas circularam pela sala e desapareceram e o monge de Carlisle apareceu no limiar. Alto, loiro, musculoso e bonito, trocou suas roupas negras por um hábito vermelho e dourado. Ele estava sorrindo.

           — Porque demorou tanto, Ian? Estava esperando — disse com seu acento francês. — E trouxe companhia. O famoso Lobo de Awe — riu, satisfeito. — Eu estava me perguntando quando conheceria o Mestre que cantam os bardos[10].

           Aidan começou a andar para ele, os olhos em chamas. Ian não pensou duas vezes. Conteve seu pai agarrando-o pelo braço e sustentou seu olhar quando Aidan cravou nele seus olhos cheios de fúria. Se perguntou se seu pai sabia que aquele homem foi um de seus carcereiros.

           — Esta é minha guerra.

           Aidan hesitou.

           — Deixe que Ian faça o que tem que fazer, Aidan — disse Brianna.

           Aidan recuou relutante. A repulsa que sentia se refletia em seu rosto. Ian virou lentamente para olhar Carlisle.

           — Onde ela está?

           — Você trouxe a página da ilusão?

           — Se você tocou em um só cabelo de sua cabeça, não a entregarei.

           — Se quer recuperá-la com vida, me dê à página agora.

           Ian tremeu e compreendeu que não tinha escolha. Ele não tinha poder, não enquanto o monge estivesse com Sam. No final ele teria que fazer o que o monge quisesse, inclusive entregar-lhe a página, para que a libertasse.

     — Me leve até ela. Primeiro quero saber que está viva e ilesa.

           O monge sorriu devagar.

           — Me mostre a página da ilusão, doce Ian. Depois poderá recuperar sua amante.

            — Não até que veja Sam.

            — Desde quando é tão valente? Ou talvez ela não seja tão importante?

            — Leve-me até ela — gritou Ian. Aidan tocou seu braço. Ian o sacudiu.

           — Temo que nos encontremos diante de um impasse — respondeu o monge. — Eu quero a página e você quer ver Sam. Se pensar sobre isso, você vai perceber que tem que trazer a página.

           — Não tenho que pensar sobre isso. O que vocês fizeram com ela ? Leve-me até ela!

            O sorriso do monge desapareceu e seus olhos brilharam vermelhos.

     — Você não pode me dar ordens. Aqui eu sou o mais poderoso!

            — Sério? — Ian lançou nele uma descarga forte antes que pudesse conter sua fúria.

           — Não, Ian! — gritou Brianna.

           O monge riu e, desviando o raio, o fez voltar para Ian, antes de desaparecer.

           Ian ofegou com o próprio poder e saiu voando, chocando-se contra a parede, deixando escapar um gemido. Ele viu estrelas explodindo. Sentiu um estalo de dor na cabeça, no pescoço, nas costas. Mas a dor fez seus órgãos chiarem.

           Aidan se ajoelhou ao seu lado e pôs as mãos sobre ele. Ian abriu os olhos e se encontrou com o olhar azul de seu pai, cujo poderoso calor curativo começava a se espalhar por seu corpo.

           — Não permitirei que morra — disse Aidan.

           Um momento depois, a dor desapareceu quase por completo. Ian afastou seu pai.

           — Perder a cabeça não nos trará Sam de volta — disse Aidan, estreitando o olhar. — Você realmente tem a página da ilusão?

            Ian se levantou. Ainda estava furioso, mas parecia mais dono de si.

           — E se eu a tiver?

           Aidan também se levantou.

           — Está disposto a usá-la para salvar Sam?

           — O que você acha pai? — perguntou irônico.

           — Acho que não podemos dar mais poder ao monge.

 

           Ele fechou a porta de outro quarto vazio, triste e decepcionado. Seu pai e ele se separaram. Ian foi às masmorras e Aidan começou no piso térreo. Mas Sam não estava nas masmorras subterrâneas, onde não havia janelas. Em vez disso, Ian, topou com numerosos prisioneiros de Carlisle, quase todos eles homens, mulheres e meninos inocentes, e libertou a todos.

           Estava agora na andar superior, decidido a percorrer as diversas salas de convidados. Onde estava Sam? Onde estava a masmorra com a pequena janela que viu? Parou várias vezes para tentar visualizá-la por telepatia. Não entendia por que não conseguia encontrá-la. Sam estava na catedral um momento atrás. Será que a titaram às escondidas para levá-la a outro lugar, em outra época?

           Estava demorando muito.

           Enquanto estava parado no longo corredor, teve um estranho pressentimento. Sam...

           Acabava de perceber sua presença. Sam estava perto. Tentou vê-la e vislumbrou repentinamente seu rosto pálido e determinado, envolvida pelo cabelo curto e espetado. Uma coisa escura bloqueava sua vista. Ian percebeu que era parte de um muro. Sam? Onde está?

           A imagem permaneceu paralisada. Ian compreendeu então que estava lembrando dela, e não vendo-a em algum lugar. Ela não respondeu. Seu sentimento de decepção aumentou.

           — Ian?

            Se assustou ao ouvir a voz de Brianna. Ela e Aidan correram para ele. Com eles estava uma criada.

           — Meg tem uma coisa para nos mostrar.

           Ian olhou para a moça magra e sardenta, que olhava para seu pai e para ele com olhos arregalados. Ela corou e passou por eles. Ian começou a andar junto de Aidan e Brianna. A moça correu até o final do corredor e em seguida entrou pela porta de um armário. Lá ela ficou esperando por eles.

           Ian ficou na soleira de outro corredor muito estreito e escuro. A moça mostrou o fundo do corredor, meteu-se por debaixo do braço de Ian e correu.

           Ian começou a correr, seguido de Aidan e Brianna. No fundo do corredor havia uma única porta. Enquanto a abria, Ian tentou ver Sam. Continuava sentindo sua presença, mas não tão forte quanto antes. Mesmo antes de ver a sala de tortura soube que ela não estava ali.

           Reconheceu o lugar imediatamente.

           Havia uma janela pequena no alto da parede e o aposento, escuro e úmido, continha duas mesas. A do centro tinha grilhões. Na outra se via uma coleção incontável de instrumentos e ferramentas.

           — Este é o lugar onde a vi — disse asperamente.

           Brianna tocou seu braço.

           — Meg ouviu o monge discutir com um estrangeiro muito estranho. Não entendia o estrangeiro, mas o monge estava furioso porque a mulher escapou.

           Ian exalou um suspiro.

           — Ela ainda pode estar na catedral — disse Aidan. — A melhor maneira de sair é esperar o anoitecer. É o melhor.

            — Eu não vou embora sem ela — afirmou Ian.

 

           Sam abriu a porta cuidadosamente, mas mesmo assim as dobradiças rangeram. Levou mais de uma hora atravessando a catedral. Avançava muito devagar. A catedral de Carlisle era um lugar movimentado, cheio de nobres, clérigos e serviçais de todos os tipos. O monge deu ordem para procurá-la. Os soldados iam de sala em sala e Sam tinha que ir recuando constantemente para se esconder deles. Sabia que, se alguém a visse com aquelas roupas contemporâneas e seu cabelo curto e platinado, estava perdida.

           Ela não podia imaginar o que tantas pessoas estavam fazendo em um lugar sagrado. A maioria dos que perambulavam por Carlisle eram humanos normais. Mas pareciam indiferentes ao peso opressivo que reinava nos escuros corredores e nos longos corredores da catedral. Enquanto percorria pacientemente o palácio, Sam estava consciente da densa escuridão que dominava aquelas salas, e do que significava. Em Carlisle aconteciam coisas horríveis o tempo todo. Ela não era a primeira vítima que via aquela sala de tortura.

           Ela sentiu pena dos homens e mulheres medievais que via. Estava claro que foram à casa de Deus procurando o bem, talvez até mesmo a salvação. Mas ali não a encontrariam.

           Definitivamente estou ficando mole, pensou tristemente, com uma estranha pontada de dor. E era culpa de Maclean. Ian foi em seu socorro quando Hemmer estava atrás dela. Se não tomasse cuidado, acabaria transformado em herói.

           Sam sorriu com a ideia ridícula. Mas aquela ideia a reconfortou. Não se preocupava muito com sua situação. Escapou daqueles demônios e sabia que podia encontrar uma maneira de sair dali. Só devia tomar cuidado. Minimizar os riscos.

           Estava pronta para começar a descer por um lance de escadas quando de repente parou tensa.

           Sam?

           Por um instante, estava certa de ter ouvido Ian chamando-a. Olhou para o corredor abaixo, mas estava vazio, voltou-se para a escada e fez um esforço para ouvi-lo de novo. Sobressaltou-se ao ouvir passos atrás dela. Percebeu que baixou a guarda. Mas então sentiu que era envolvida por um poder branco, suave e reconfortante.

           Ao virar, encontrou-se de frente à sua irmã.

           Tabby estava exatamente igual como a viu pela última vez, uns meses antes. Em 1502. Usava um lindo vestido de veludo vermelho e muitas joias. Seu cabelo estava preso com um acessório medieval. Ela estava radiante. Atrás dela, com a mão apoiada no punho de sua espada, estava seu marido, Guy Macleod, um homem enorme, musculoso e surpreendentemente moreno.

           O coração de Sam explodiu de alegria.

           — My lady... — Sam sorriu. Ela estava muito emocionada para completar a piada sobre a reverência. Em vez disso, ela a abraçou com todas as suas forças.

           — Senti tanto a sua falta — sussurrou Tabby, abraçando-a por sua vez. Sam continuou estreitando-a entre os seus braços por mais um momento. Então se afastou.

           — Sim, porque está há séculos sem passar um sermão em mim.

           Tabby corou.

           — Eu estava proibida de ir até você, Sam. Os Mestres têm o poder de viajar no tempo unicamente para proteger a Inocência, não para levar suas companheiras para visitar a família — Tabby sorriu. — Supliquei a MacNeil, o abade da Iona, que pedisse uma dispensa aos Antigos, mas ele me disse que você estava bem e que logo nos reuniríamos. Suponho que, a seus olhos, alguns séculos não é tanto tempo.

           — Eu pensei que você voltaria para procurar o Livro — disse Sam. — Seria a desculpa perfeita. Mas alguns highlanders vieram em seu lugar.

           — Eu sei. Também tentei com esse argumento, mas MacNeil respondeu que minha guerra contra o mal devia ser travada aqui. E ele tinha razão — disse Tabby alegremente. Logo seu sorriso desapareceu. — Você está bem? O que aconteceu? Estava em casa, na cozinha, ajudando à cozinheira, quando ouvi você. Quase desmaiei!

           Sam riu.

           — Então a senhora da casa se permite sujar os dedos de farinha para ajudar a cozinheira?

           Ela finalmente olhou para Macleod. Era um homem enorme, transbordando selvageria e testosterona, e Sam o detestou a primeira vista. Mas Tabby o amava e, aparentemente, ele também a amava. Sam olhou para ele.

           — Ele está lhe dando um duro? Sem trocadilhos, é claro.

           Tabby puxou sua mão.

           — É machista. Mas seu machismo não me incomoda, Sam. Eu amo meu marido em todos os sentidos. Ele pode ser muito protetor, mas posso lidar com isso.

           Sam fez uma careta.

           — É melhor você se comportar, amigo — ela o alertou. — Se algum dia souber que tratou minha irmã como a besta que parece, vai se arrepender.

           Macleod pareceu divertido.

           — Ela ainda é desagradável comigo — disse para Tabby, encolhendo os ombros. — Os Mestres estão aqui. Estão procurando você. E também o mal.

           Sam ficou quieta. Ela não devia, mas estava decepcionada. Ian não era um Mestre. Ela se esforçou um instante para perceber sua presença... e se assustou, porque achou que a sentiu. Tabby a agarrou pela mão.

           — Não é justo! Tenho a sensação de que outra vez vamos ficar juntas por cinco minutos. O que está acontecendo?

           Sam sentia exatamente o mesmo.

           — Não, não vou voltar para Nova Iorque tão rapidamente. Estou metida em uma belA confusão, Tabby. O monge do Carlisle anda me procurando, e também um cara de nossa época, ou da minha, um humano terrivelmente mal: Rupert Hemmer. Estavam a ponto de me torturar quando apareceu seu feitiço. a propósito, obrigada irmãzinha — acrescentou com um sorriso.

           Tabby a tocou e disse algo em gaélico.

     — Um pouco mais de proteção — disse, preocupada. Virou-se para o seu marido. — Temos que sair daqui. O rosto de Macleod ficou tenso. Um brilho selvagem apareceu em seus olhos. — Vamos ajudá-la a escapar de Carlisle e vou me assegurar de que passem algum tempo juntas.

           Tabby deu-lhe um sorriso suave.

           Sam sorriu para si mesma. Apesar de sua aparência bruta, estava claro que Macleod protegia e amava Tabby loucamente, mesmo depois de dois séculos.

           Sam? Onde você está?

           Sam se sobressaltou. Ouviu a voz de Ian claramente, até a frustração e preocupação em sua voz.

           — Ian — sussurrou. — Estou na catedral de Carlisle, no piso inferior, no lado norte do edifício.

           Sam!

           — Sam? — perguntou Tabby.

           Sam ergueu a mão. Se esforçou para sentir Ian, percebeu seu poder branco, fogoso e viril, aproximando-se. Virou-se para o sul. Um casal bem vestido, seguido por um secretário e um lacaio, dobraram a esquina. Sam exalou um suspiro de frustração. Os três homens a olharam. Tabby sorriu educadamente ao casal quando passaram e inclinou a cabeça olhando para os criados. O nobre esticou o pescoço para olhar as pernas de Sam e a dama lhe deu uma cotovelada no abdômen.

           — Você deveria trocar de roupa se está pensando em ficar no século XVI por um tempo — disse Tabby, olhando sua minissaia.

O poder de Maclean está crescendo, Sam pensou ouvindo sua irmã. Era impetuoso, abrasador e extremamente familiar. Maclean dobrou a esquina correndo. O coração de Sam deu um pulo. Ian correu para ela.

           — Você está bem?

           Sam encolheu os ombros.

           — Como se você se importasse — respondeu com petulância, o que não era tarefa fácil quando seu coração trovejava loucamente. — O que o traz por aqui? — perguntou. E então viu que Aidan e Brie apareciam pela mesma esquina.

           — Você achou que fosse te deixar a mercê de meus inimigos? — Ian parecia incrédulo.

           Sam voltou a olhá-lo nos olhos. O olhar de Ian era estranhamente intenso. Não parecia brincar. Era como se estivesse preocupado realmente.

           — Achei que provavelmente tentaria me ajudar — ela disse cautelosamente. — E você tentou. Obrigada por me ajudar com os grilhões.

           Ele se surpreendeu.

           — Eu consegui abri-los?

           — Sim — depois acrescentou muito séria: — Só para que saiba, começo a me preocupar com Hemmer.

            Ian lhe sustentou o olhar. Sam soube que a compreendeu. Hemmer não era o que aparentava ser.

           — Posso interromper? — perguntou Brie com um sorriso.

           — Quase não a reconheço sem os óculos. E com um vestido! — exclamou Sam, rindo. Brie se transformou em uma mulher muito bonita e segura de si. Sam desejou abraçá-la. Mas foi Brie quem a abraçou.

           Sam olhou para Aidan e seu coração quase parou. Era tão estranho... Ian e ele poderiam ser sido gêmeos, exceto por Ian ter 25 anos e Aidan parecer ser alguns anos mais velho. Mas a verdadeira diferença eram seus olhos. Os olhos de Aidan não estavam cheios de ira, de frustração, nem de desesperança; refletiam, pelo contrário, uma paz profunda e fundamental que só podia vir de sua alma.

           Mas nem sempre foi assim.

           Ian a agarrou pelo braço de repente.

           — Nós temos que ir — disse asperamente.

           Sam já estava gelada. Olhou atrás dela. O mal estava perto.

            Tabby a agarrou pela mão.

     — O que está acontecendo?

            — Não há tempo para explicações — disse Sam. — Mas não é boa ideia que Ian e eu estejamos aqui.

           Ian parecia muito infeliz. Sam sabia o por quê.

           — Ei, — disse — eu estou muito machucada para suportar outro salto. Vamos ter que sair daqui a pé.

            Ele a olhou, cheio de suspeitas. O que ele fizeram com você? Sua boca não se moveu, mas Sam o ouviu com a mesma clareza de quando ele usou antes a telepatia. Virou-se, abalada.

            — Talvez um de vocês possa armar um pouco de diversão para que possamos sair pela porta principal.

            — Eu farei isso — disse Macleod rispidamente. — Aidan pode cobrir o flanco. Aidan estava olhando Ian como se conhecesse os dolorosos segredos de seu filho e esses segredos doessem nele também.

           Macleod se afastou deles rugindo.

           Sam piscou ao compreender que ele pretendia se enfrentar com o monge cara a cara. Olhou Tabby, que estava pálida e parecia resignada. Sua irmã encolheu os ombros e correu atrás dele.

           Por um momento Sam ficou olhando sua irmã que estava agora com o seu marido determinado. Em seguida Ian a puxou para o seu lado. Sam encontrou seu olhar feroz e enquanto concordava, ouviu rachar as paredes. Macleod entrou em combate. Sam olhou para Brie, que estava chorando.

           — Vão! — gritou Brie. — Vão com os Deuses. Cuide dela, Ian!

           Aidan puxou sua espada, ouviam os passos apressados de dúzias de homens.

           — Vá agora! — disse, torcendo a boca. Ele também tinha os olhos vermelhos.

            Ian e Sam viraram e começaram a correr para o portal da igreja. Atrás deles se ouviu o som das espadas.

          

            Sam não conseguia lembrar a última vez que ficou sem fôlego. Correndo com todas as suas forças, com Maclean a seu lado, subiram num muro de pedra e conseguiram saltar do outro lado. Choveu recentemente e os campos estavam úmidos e escorregadios. Continuaram correndo e escorregando colina abaixo, entre as ovelhas que pastavam. Sam olhou para trás. Ainda via as torres da catedral de Carlisle cravando-se no céu nublado de verão, a um quilômetro e meio dali.

           De repente o chão tremeu, vibrando sob seus pés.

           Um exército. Sam parou, ofegando e olhou para Ian. Ele a puxou com seu braço, direcionando-a para o norte, onde ela viu que começava um bosque aparentemente infinito.

           Apertaram o passo enquanto a vibração dos cascos dos cavalos se intensificava. As árvores ainda estavam longe. Sam olhou por cima do ombro.

           Doze cavaleiros vestidos com armaduras cavalgavam para eles, com as viseiras baixas, ouviam seus gritos de guerra, alaridos selvagens e incompreensíveis. Sam compreendeu que não eram humanos.

           O bosque já estava mais perto. De mãos dadas, correram com todas suas forças.

           Sam sentiu a respiração dos cavalos na nuca. Maclean e ela mergulharam no escudo das árvores ao mesmo tempo, ainda de mãos dadas, como se estivessem um no pensamento do outro. Sam ouviu o zunir de algum tipo de arma logo atrás do seu pescoço.

           Caiu violentamente, apoiando-se nas mãos, e bateu a mandíbula contra o chão. Ao rodar, viu passar um cavaleiro trovejando sua bola cravada de pontas com a mão na manopla. A armadura o cobria da cabeça aos pés, mas as pequenas ranhuras da viseira permitiam vê-lo. Freou seus arreios tão bruscamente que o animal empinou. O cavaleiro o obrigou a voltar e galopou de novo para eles. Sam olhou para Ian.

           — Vamos? — perguntou esperançosa.

            Os olhos de Ian ardiam. Levantou e lançou uma descarga no cavaleiro e seu cavalo, incinerando a ambos.

            — Assim é que se faz — ela ofegou, dobrando-se. Doía respirar.

           Ouviram cavalos se aproximando. Sam se incorporou.

           — Merda — o exército estava voltando. Havia uma dúzia de cavaleiros. Ela sabia que Ian não queria saltar. E entendia isso. Saltar era muito doloroso. E ele saltou um monte de vezes ultimamente, quase sempre por ela. — Realmente... vai fazer isso... um por um? — perguntou ofegante.

            Ian puxou sua mão e empurrou-a para o interior do bosque. A uns cem metros dali, o bosque era tão denso que parecia negro como breu. Correram para as profundezas impenetráveis. Atrás deles ouviam ressoar os cascos dos cavalos.

           Sam olhou para trás e viu que um cavaleiro cavalgava como um louco esquivando das árvores. Não sabia se podia correr mais. Seus pulmões pareciam a ponto de explodir.

           A espada do cavaleiro cortou o ar a pouca distância de sua cabeça e seus ombros. Maclean a rodeou com o braço e entrou na escuridão repentina. Avançaram a tropeções. Sam não via nada e ela esperava que ele pudesse ver. Eles colidiram com um tronco e os ramos arranharam seus braços e seus rostos. Os olhos de Sam começavam a se ajustar à escuridão. Eles desaceleraram abruptamente a corrida e seguiram andando. A única coisa que se ouvia era som agitado de sua respiração.

           Sam deslizou a mão pelo braço de Ian, até sua mão, e se deixou cair no chão, que parecia suave e coberto de musgo sob seu traseiro e coxas nuas. Soltou Ian e, jogando a cabeça para trás, respirou fundo. Ian se deixou cair ao seu lado, ficaram assim alguns instantes, na penumbra, tentando recuperar o fôlego.

           Nas copas das árvores, ao seu redor, os pássaros começaram a cantar. Sam se recostou contra um tronco e logo percebeu que era o ombro de Ian. Ela hesitou.

           Nos últimos minutos estiveram em um impreciso e frenético torvelinho. Mas eles conseguiram. Deixaram para trás aqueles monstros. E o corpo de Ian parecia deliciosamente forte e quente, francamente masculino, atrás de seu ombro.

           — Grande corrida — disse por fim.

           Ele soltou um som parecido com uma risada.

           Sam via agora que o bosque não era negro como um breu. Estava em sombras, mas se distinguiam os troncos e os ramos que havia perto. Podia até mesmo ver o esquilo listrado que parou ao pé de uma árvore, não muito longe de onde estavam sentados. Ele piscou os olhos redondos para ela.

           Ela sorriu e deixou escapar um suspiro. Ian não a abandonou.

           Ele saltou no tempo para encontrá-la.

           O coração de Sam pareceu tremer estranhamente ao pensar nisso. Sentia-se quase eufórica. Atreveu-se a olhar o belo perfil de Ian. Ele baixou o olhar para ela. Seu olhar continuava sério e escrutinador.

           — Estou bem.

           — Eles não a machucaram?

           — Eles pensavam em fazer isso. Mas os grilhões abriram e em seguida Tabby me protegeu com um feitiço maravilhoso. Então eu escapei. — Ela ficou séria. — Se Tabby não tivesse ouvido meu grito de socorro, eu estaria morta agora.

           Ele ficou olhando o bosque com expressão amarga.

           Sam o olhou. Queria tocá-lo, acariciar sua bochecha, sua mandíbula e o resto de seu incrível corpo. Queria sexo, ardente e delicioso. Não, queria sexo e amizade, e também carinho. Ela meio que gostava de Maclean.

           E queria agradecer por sua ajuda. Mas isso era uma loucura.

           Foi direito ao assunto.

           — Onde está a maldita página, Ian?

           Ele olhou para ela.

           — Em Loch Awe.

           Sam só demorou um momento para compreender. Ele nunca iria pular no tempo se não precisasse.

           — Como a levou lá?

           Ian deu de ombros.

           — Um avião alugado, um mensageiro, um piloto.

           Havia um problema, pensou Sam. Estavam em 1527. E ela tinha que dizer isso a Nick, que estava em 2009. Ian olhou para ela.

           — Está lendo minha mente?

            — Já deveria saber que não posso ler mentes. Quase nunca, ao menos — respondeu ele.

           Sam se perguntou seriamente se iria traí-lo. Mas como não iria? Passaram por um inferno só porque ele roubou a página e se negava a entregá-la. Ela quase perdeu o cabelo curto para um cavaleiro com uma bola com pontas agudas porque ele tinha a página! Já era o suficiente.

           Sabia o que tinha que fazer, mas não se sentia bem com isso. Ficou olhando o esquilo, triste e pensativa. Não tinha muitas alternativas.

           — Bem, como vamos voltar para 2009? — perguntou, mas, dane-se, ainda não estava pronta para partir. Desejava passar algum tempo com Brie e com sua irmã.

           — Para que possa ir correndo procurar Nick e me trair?

           — Sim, Ian. Para ir correndo procurar o Nick e traí-lo — olhou-o com intensidade e ele não desviou o olhar. Depois tocou sua bochecha. — Eu não quero discutir, nem brigar. Estou em dívida com você. Quero te agradecer. Mas é hora de entregar a página, antes que nos façam algo terrível, antes que acabe se enrolando com seu poder. Isto é muito sério, Ian. Não enfrentamos demônios de pouco calibre e você sabe.

           Ele afastou o rosto. Sam pensou que ele estava zangado, mas logo percebeu que ficou alerta e estava escutando. Ela também aguçou o ouvido, alarmada, percebeu que os pássaros deixaram de cantar. O bosque estava tão silencioso que outra vez ouvia sua respiração.

           Então pensou ouvir que algo se movia no breu espesso, diante deles.

           Maclean puxou-a pela mão e retrocederam mais profundamente, no bosque. Sam ouvia uma respiração pesada. Não era humana. Sentiu então que uma rajada de ar deslizava entre as árvores e roçava seus braços e suas pernas nuas.

           Seus olhares se encontraram e, ao dar a volta ao mesmo tempo, viram atrás de uma árvore as sombras de um homem e uma besta.

           O demônio era grande e tosco. Assim também era seu cão. Da altura de um pônei Shetland[11], pesava em torno de cem quilos e, enquanto farejava o chão, sua pelagem cinza parecia reluzir.

           A criatura deveria ter sete ou oito metros de altura. Ele parou e os olhou fixamente. Quando sorriu, seus dentes brilharam na escuridão.

           Sam olhou para Ian e puxou com força sua mão. Ele a rodeou com seus braços.

           O cão diabólico uivou e a criatura o soltou. Enquanto corria para eles, Sam disse:

           — Não há mais tempo, Maclean.

           O cão galopava para eles com olhos cintilantes, preparado para despedaçá-los.

           Ian resmungou uma maldição. Havia perdido seu poder?

           — Maclean! — gritou Sam.

           Ele grunhiu e estreitou-a mais firmemente em seus braços. No instante em que o cão saltava para eles, girou descontroladamente entre as árvores, passando por galhos grossos e as agulhas dos pinheiros, arranhando e agarrando seus braços, seus rostos. Em seguida eles estavam sendo empurrados através do céu azul, atravessando as nuvens e deixando para trás o brilhante, incandescente sol.

 

 

           Frankie, o porteiro, parecia ter mais medo de Rupert Hemmer que do governo dos Estados Unidos. Nick começou a perder a paciência quando ele olhou fixamente sua insígnia do FBI e sua ordem de registro, ambas falsas, claramente relutante a deixá-los passar. Nick suspirou.

           — Vamos — disse a sua equipe.

           Enquanto Nick se aproximava do elevador com sua equipe, Frankie correu ao telefone. Nick voltou a suspirar, até que ponto um porteiro podia ser idiota?

           — Segurem o elevador — disse a Kit. Um segundo depois voltou a cruzar o hall. Sorriu para Frankie, que segurava o telefone da recepção, e em seguida tirou o aparelho das suas mãos e arrancou o cabo da parede.

           — Isso se chama obstrução da autoridade.. — disse, e começou a revistar ao porteiro.

           O latino, de trinta e dois anos, empalideceu.

           — Ei! O que você está fazendo? Pelo que sei, esse mandado é uma farsa. Você é um farsante!

           Nick encontrou seu celular, atirou-o ao chão e o pisoteou para garantir que o leal porteiro não chamasse seu chefe.

           — Prometo reembolsá-lo Frankie, mas você vai ter que me prometer que não vai correr para a cabine telefônica mais próxima. Caso contrário, vou amordaçá-lo, amarrá-lo e enfiá-lo no armário do zelador.

— Meu nome é Freddie — respondeu com os olhos esbugalhados. — Está bem! Mas ele vai me demitir, sabe disso, não?

— Acredito que poderemos falar com o sindicato e encontrar outro trabalho para você muito, muito rápido.

           Frankie se acalmou.

           — De acordo — disse.

           Satisfeito, Nick correu para reunir-se com sua equipe. Estavam retendo o elevador, imperturbáveis diante de seu pequeno ataque de violência. Nick olhou com impaciência o indicador dos andares enquanto o elevador privado subia diretamente para o apartamento da cobertura. O tempo corria e ele sabia disso. Não tinha sentido dar saltos em tono de 1527 quando nem sequer sabia se Sam estava lá. Hemmer a levou, mas teria que voltar para casa cedo ou tarde, e ele sem dúvida saberia onde estava Sam. Nick estava desejando conseguir respostas. Ele coçava por uma luta suja. Hemmer ia pagar por atrever-se a tocar em uma de suas agentes. Oh, sim.

           Ele não parava de pensar em Jan, que já o perdoou por Alex, e em Katie e os filhos, que estavam mortos e não podiam perdoá-lo de qualquer forma. Continuava vendo o rosto dos Doze.

           Kit Mares foi a primeira a sair do elevador.

           Depois de ler sua mente, sem sequer tentar, Nick sabia que ela estava preocupada com Sam. Será que Sam sabia que sua colega de trabalho era uma amiga leal? Kit era muito determinada, por isso a recrutou. Tinha pouca experiência, mas era valente e implacável.

           Cardozza, um dos meninos, tentou primeiro a maçaneta.

           — Está fechada com chave.

           Nick procurou não levantar os olhos ao céu.

           — Toca a campainha. A senhora Hemmer está em casa. E também os empregados.

           Kit já estava chamando.

           — Então, qual é o plano, Nick? — perguntou. — Porque Hemmer não está aqui e, quando voltar, não acredito que irá nos dizer o que queremos saber.

           — Você nunca me viu no meu momento mais persuasivo — Nick sorriu para ela.

           Kit não devolveu o sorriso.

           Nick esperava que um mordomo ou uma governanta abrisse a porta, mas não Becca Hemmer em sutiã e calcinhas La Perla[12]. Seus olhos se arregalaram. Viu fotos dela, é claro, em capas de revistas, no Enquirer, em notícias de celebridades. Sabia que era um nocaute, mas em carne e osso era ainda mais. Com seus sapatos de salto de agulha, era quase tão alta quanto ele.

           — Estávamos imaginando quanto tempo demoraria para vir Nick — ronronou.

           Ele voltou a se concentrar.

           — Puxa, não me lembro de termos sido apresentados, senhora Hemmer.

           — Não nos apresentaram — ela sorriu. — Mas Rupert sabia que viria e você é mais que bem-vindo para esperar até que volte. Podemos nos divertir se quiser.

           Nick disse a si mesmo que não devia se distrair. Sua visita surpresa não parecia ser muito surpresa, aparentemente. Becca se aproximou dele até que suas bonitas calcinhas roçaram a virilha de Nick.

           — Vai entrar e esperar, não vai?

           Cardozza sorriu. Nick deslizou um braço em volta da cintura de Becca e apalpou seu traseiro. Olhou para a Cardozza e Putney. — Já sabem o que fazer — disse. Passaram junto à Becca e cruzaram a entrada em direção ao escritório privado de Hemmer. Cardozza tirou uma furadeira de sua mochila. Kit os seguiu.

           — O que você está fazendo? — gritou Becca.

           — Bem, já que esta não é uma visita oficial, vamos invadir o escritório do querido Rupert e apreender todos os seus computadores e seus arquivos.

           — Ele não vai gostar — disse ela por fim.

           — Mas ele não se importa que seu pequeno troféu se atire ao policial? — perguntou Nick.

            Ela deu de ombros.

   — O que vai fazer Nick? — seu sorriso voltou.

           Nick sorriu e lançou uma descarga no abajur que havia sobre suas cabeças. Becca soltou um grito e deu um salto quando o abajur se estatelou contra o chão, fazendo-se em pedacinhos. O piso de mármore não parecia tão bom, também.

           — Eu não gosto de surpresas — disse Nick tranquilamente. — E aposto que Rupert também não.

            Ela molhou os lábios e o olhou com novo respeito. A chama da luxúria brilhou em seus olhos. — Os homens com poder branco são sempre os melhores — disse com voz rouca.

           — Rupert tem um de meus agentes — respondeu Nick secamente. Destruiu as paredes da sala e então chutou um pedaço do candelabro do seu caminho. — E eu não estou feliz.

          

            Quando a dor parou, Sam sentou. Ela encontrava-se em um grande salão medieval que reconheceu imediatamente, apesar dos móveis novos. Olhou para Ian com surpresa. Ele estava de pé acima dela, carrancudo e de braços cruzados. Aparentemente se recuperou do salto um pouco mais depressa do que ela.

           — Estamos no castelo de Awe — disse Sam. — Em 1527, ainda?

           Ele a olhava com frieza.

           — Sim. É o dia seguinte. Dez de agosto de 1527.

           Sam se levantou. Ian olhou para as suas pernas e ela olhou para baixo. Tinha alguns arranhões e uma enorme ferida na panturrilha, de repente notou a dor.

           — O cão mordeu você — ele disse asperamente.

           Ian estava se culpando, pensou Sam, por não ter saltado a tempo. Ela soltou uma maldição, aproximou-se mancando da mesa de cavalete e se deixou cair no banco.

           — Pode fazer alguma coisa?

           A última vez que ela esteve no castelo de Awe, estava com Nick, procurando Brie. Era 1502. Também viu Tabby. Ela esperava que sua irmã ainda estivesse por ali. Era o mais provável, pensou.

           Ian se aproximou dela, ajoelhou-se e pôs as mãos sobre sua perna ensanguentada. Sam percebeu que ele não queria curá-la. Talvez fosse porque, se fizesse, teria que reconhecer para si mesmo que os meninos maus não curam e isso fazia dele um menino bom, depois de tudo. Quando deixaria de dar uma de rebelde? Sam deixou escapar um gemido ao sentir que seu calor curativo a inundava. A dor foi esmaecendo. O calor se intensificou e subiu de sua perna até sua coxa. Sam olhou fixamente para Ian, quase sem fôlego.

           Ele tinha os olhos fixos em seu joelho e rodeava com suas mãos enormes a panturrilha de Sam. A dor era como uma dor de cabeça sem graça, agora. Ela não pôde evitar: o contato de suas mãos tornou-se sensual. Perguntou-se o que sentiria se aquelas mãos tocassem outras partes de seu corpo, inundando-a de calor branco. Não se importaria se ele movesse suas mãos para cima.

           Ian olhou lentamente para ela.

            — Não lembro — disse Sam com suavidade — se cheguei a agradecer por me resgatar.

           Os olhos de Ian também mudaram enquanto a curava. Sam compreendeu que ele também se excitou. Sua expressão, entretanto, continuava dura. Estava zangado, mas se dominava. Sam não sabia o por quê.

           — Esqueça isso.

           O que estava acontecendo com Maclean?

            — Não, não vou esquecer. Você veio em meu socorro algumas vezes. Não estou acostumada a ser a donzela em apuros, a não ser a heroína — ao ver que ele não respondia, acrescentou muito séria: — Eu devo a você, Ian, e eu sempre pago minhas dívidas.

           — O monge te sequestrou para usá-la contra mim — respondeu ele bruscamente, e deslizou as mãos por sua coxa.

           Ela conteve o fôlego. Seu coração batia com violência, mas se concentrou no que Ian disse. Ele estava culpando a si mesmo.

           — Foi Hemmer quem me sequestrou — disse. — E não é sua culpa. Estamos nisto juntos. O que está fazendo?

           Ian agarrou seu braço.

           — Tirando os arranhões e os cortes.

            — Puxa, obrigado — respondeu ela com voz rouca. A que distância estaria a cama mais próxima? Se perguntava. Estaria ele realmente se sentindo culpado pelo que aconteceu com ela? — Eu já passei por coisas piores. São ossos do ofício.

           Ele passou para sua outra perna, deslizando uma mão para cima e para baixo ignorando seu comentário.

           — Você está ficando muito bom nisso — brincou ela, apesar de arder de desejo.

           — Eu quero vê-lo morto — disse Ian, finalmente olhando para ela.

            Ok, ela pensou, as duas pernas e os braços agora estão limpos.

           — É por isso que estamos aqui? Para podermos voltar para Carlisle e nos encarregarmos do monge? Porque eu também quero participar.

            Ian levantou.

     — Ele tem que pagar — disse bruscamente. — E, pela última vez: não existe “nós”.

           Sam levantou e o agarrou pelo pulso.

           — Ele tem que pagar pelo que esteve a ponto de fazer a mim, ou pelo que fez a você durante uma década?

            Ele deu um puxão violento no braço. Nesse momento, Tabby e Brie entraram correndo na sala.

           — Esperávamos que vocês estivessem aqui! — exclamou Tabby.

           Maclean se afastou dela e cruzou os braços. Sam estava preocupada. Não seria fácil encontrar-se cara a cara com um de seus raptores. Ian enfrentaria o monge e ela não podia reprová-lo. A vingança era uma ótima ideia, mas ir sozinho não era. Sam sabia que Ian temia aquela batalha. E ela queria, precisava, saber o por quê. E isso significava que precisava conhecer os detalhes de sua relação com Carlisle, embora tivesse medo disso.

           Sorriu para sua irmã e sua prima quando se aproximaram dela. — Muito bem — disse Brie — Já podemos colocar a conversa em dia!

          

            — Então, o que vem depois? — perguntou Brie.

           Duas garrafas de vinho estavam vazias. Sam estava sentada com Brie e Tabby à mesa de cavalete enquanto um pequeno fogo ardia preguiçosamente, lambendo a madeira na lareira. Os homens as deixaram sozinhas. Sam sabia que Ian foi para um dos quartos de hóspedes e ela esperava que ele estivesse mais calmo. Ela passou mais de uma hora colocando sua prima e sua irmã a par de tudo. Tabby e Brie conheciam cada detalhe relevante dos últimos dias. Elas já sabiam que Ian havia roubado a página da ilusão e que esse não era seu primeiro roubo. Sam falou sobre Hemmer e o monge, e elas sabiam que o monge foi o carcereiro de Ian durante os últimos dez anos de seu cativeiro. Sam lhes revelou, além disso, que a página estava escondida no castelo de Awe, no presente. Agora, Tabby segurava a mão de sua irmã.

           Era fantástico voltar a estar juntas pensou Sam. Olhou para Brie.

     — Tenho que recuperar a página e entregá-la a Nick. Assim colocaremos um fim nisto, ao menos em parte.

            — Você pode realmente trair Ian? — perguntou Tabby suavemente.

           Sam ficou tensa.

           — Você pode ler a mente agora ou ainda me conhece por dentro e por fora?

           Tabby sorriu.

           — Não Sam, não posso, exceto a do Guy. Mas conheço você tão bem como sempre. Não nos contou tudo, não é verdade?

            Sam hesitou. Tabby suspeitava a verdade. Sam olhou para Brie e suspirou.

           — Está bem. Maclean é sexy. E eu cedi. Transei com ele.

           — Sam! — Tabby olhou para ela com sua expressão de professora de escola.

            Sam sorriu.

     — Você acha que sou louca?

            — Está claro que Ian e você formam uma equipe. Ele te protege e você a ele. Você costumava nos proteger dessa forma. Agora, você está lutando por ele desta forma — disse Tabby.

            — E ele estava muito preocupado com você — Brie interveio. — Sem mencionar que ainda está muito chateado com o que aconteceu na Catedral.

           Ele estava preocupado com ela. Ele saltou no tempo para resgatá-la. Eles fugiram juntos e ele a curou duas vezes. O que significava tudo aquilo? Sam pegou o vinho e percebeu que as duas garrafas estavam vazias.

           Tabby acariciou sua mão.

           — Debaixo de toda essa raiva e desespero, existe um bom homem — disse.

           Sam olhou para ela. Isso foi o que Brie disse um dia ou dois antes.

           — Eu sei. Ele surge como um perfeito idiota-rico total: rico, arrogante e incrivelmente egocêntrico. Mas eu vi como é de verdade — falava lentamente, escolhendo cuidadosamente suas palavras. — Ele esteve num cativeiro demoníaco por sessenta e seis anos. Ele sofreu indescritivelmente. Me dá medo pensar no que fizeram a ele. E essas feridas continuam abertas. Acho que às vezes ele revive seu passado e sofre pesadelos. Você tem razão: ele sente desespero — acrescentou repugnada. — Mas sua arrogância, seu desdém, sua indiferença e até seu egoísmo são pura fachada, uma máscara para que nunca saibamos o quanto destroçado está por dentro, assustado e quão ferido está.

           Tabby a olhava com surpresa.

           — Você se preocupa com ele — disse suavemente.

           — Eu espero que não! — respondeu Sam, desconfortável. — Pelo menos, não do jeito que você quer dizer. — Sua irmã e sua prima a olhavam. — Está bem, eu me importo com ele, mas não dessa maneira. Droga! Tudo começou quando percebi que ele passou por um inferno. Eu lutei para não me compadecer, sério! Mas ninguém deveria passar por algo assim. E ainda não acabou! Esse monge maldito voltou!

           Tabby e Brie trocaram olhares sorrindo.

           — Isto não tem nem um pingo de graça, garotas. Esse monge tem que pagar pelo que fez. Ian precisa se vingar e quem pode reprová-lo? Acho que depois se sentirá melhor e poderá se recuperar. Naturalmente, roubar a página da ilusão e negar-se a entregá-la a Nick não serão as bases de uma vida pacífica. Mas acho que é aí onde entro.

           Sam ficou calada.

           — Talvez você esteja destinada a ser a única a lhe dar paz — disse Brie — do mesmo modo que eu consegui que Aidan se salvasse. Ele, certamente, saiu do seu caminho por você.

           Ian fez muitas coisas por ela, mas Brie estava errada.

           — Isto não é uma espécie de conexão amorosa cármica!

           Brie sorriu.

           — Tem certeza que você vai agir pelas suas costas e entregar a página ao Nick? —perguntou Tabby.

           — Detesto a ideia, mas não há outra escolha — respondeu Sam. — Isso salvará nossas vidas.

           — E o que fazer com o seu relacionamento? — Tabby parecia preocupada.

           Sam se sobressaltou.

           — Uau! Você não ouviu nada do que eu disse? Nós não temos uma “relação”. Somos aliados, mas também continuamos sendo rivais. Nós podemos ser amantes, mas isso não é um relacionamento, Tab, como você e Macleod. Não chega nem perto. Ele ficará furioso como o inferno comigo. E nos reconciliaremos com um sexo apoteótico. Venceremos Hemmer e o monge. E depois cada um seguirá seu caminho.

           Tabby não respondeu.

           Sam corou desconfortável.

           — Para mim, isto é apenas um caso. Haverá outras missões e a guerra continuará. No fim, isto não será mais que uma lembrança interessante.

           — Uau — disse Brie — você tem sua vida bem planejada.

           Sam olhou para ela.

           Brie deu de ombros.

           — Você nunca teve compaixão por ninguém, a não ser pela Tabby ou por mim, e pela Allie, claro. Não acredito que vá ser tão fácil quanto pensa. Ian me lembra muito Aidan quando me sequestrou. Ele está destinado a grandes coisas, eu sei disso. Mas não pode cumprir seu destino enquanto não se recuperar. Não acredito que seja fácil se afastar dele, Sam, sabendo que ele precisa de você.

           — É sua natureza romântica que fala ou você viu algo que eu deva saber?

           — Ian tem o poder branco — explicou Brie. — Os deuses vão querer que ele o use para proteger os Inocentes!

           Sam ficou olhando para ela.

           — Você tem certeza disso?

           — Estou convencida disso, mas não porque tive uma visão — respondeu Brie. — Simplesmente, sei.

           Sam tentou imaginar Ian como um Mestre. Era difícil. Sabia que, se alguma vez fizesse os votos, lutaria contra o mal a seu modo. Num voo solo e fingindo indiferença.

           Tabby a tocou no ombro.

           — Sam, já te ocorreu pensar que, se ele conseguir superar seu passado, talvez tenha um futuro muito diferente? Acho que vocês têm muitas coisas em comum. De certa maneira, não são almas gêmeas?

           — O quê?

           — Você parece arrogante, indiferente e dura até não poder ser mais. Mas é tudo fachada. Uma fachada que adotou quando mamãe foi assassinada.

           — Está louca? Está tentando me irritar?

           — Por que quando digo que fechou seu coração no dia em que ela morreu você se enfurece? — Tabby não se alterou. — Sempre me perguntei se de verdade assimilou seu assassinato.

           — Eu vim para enfrentá-lo. Aprendi que ser suave é para idiotas e para vítimas. Mamãe era uma bruxa estupenda, mas no fim foi mais uma vítima — Sam respirou fundo. — A vida é um saco, não é? Eu com certeza aprendi a ser forte naquele dia e não me arrependo disso.

           — Eu acho que você pode ser forte e compassiva sem ser uma idiota ou uma vítima — Tabby a rodeou com o braço. — Eu te amo. Estou contente que se preocupe com Ian. Ele precisa de você... e você dele.

           Sam se afastou e levantou. Ela estava louca?

           — Você não entendeu Tabby. Vamos recapitular. Não, comecemos desde o começo. Entre Ian e eu só existe sexo. Isto não é amor. Nem sequer é amizade — sentiu uma estranha pontada, como se quisesse o que estava negando. Mas isso era ridículo. — Nem sequer estamos do mesmo lado. E certamente não somos almas gêmeas e eu sou uma agente da HCU. Para nós, este é um momento no tempo. Um momento que passará — parou para respirar. — Eu amo vocês, garotas. Minha natureza romântica não chega mais do que isso.

           Tabby também se levantou.

           — Muito bem, Sam, se você diz.

           Sam odiava que Tabby adotasse aquele tom de professora sabichona e falasse como se ela fosse uma menina ignorante.

           — Eu acho que ela protestou demais — murmurou Brie.

           Sam compreendeu que esqueceu o quão exasperantes podiam ser sua prima e sua irmã. Ela suspirou. Mesmo assim, era fantástico tê-las ali a irritando.

           — Façamos uma aposta. Dentro de cinco anos, não, de um ano. Não, de seis meses, não só não estarei com Ian, como também nem sequer me lembrarei do seu nome.

           — Aceito a aposta — disse Brie rapidamente. — Aquela que perder paga um jantar no melhor restaurante de Los Angeles. Ou, melhor ainda, no hotel Beverly Hills.

           Tabby e Brie não entendiam o que ela tentava dizer-lhes: que ela e Ian não tinham uma relação. Nem agora, nem nunca.

           — Bem, o que fazemos agora? — perguntou Brie, muito séria. — Para roubar a página e entregar ao Nick teremos que voltar para 2009. Mas se nós formamos uma imagem mental de onde Ian guarda a página, é provável que Hemmer também saiba. E há também Carlisle.

           Antes que Sam pudesse falar, Tabby respondeu:

           — Não quero que faça isto sozinha, Sam. Brie tem razão. Meus poderes agora são muito fortes e eu posso ajudá-la. Hemmer parece ser perigoso, e o monge ainda mais.

           Sam começou a sorrir. Estava entusiasmada.

           — Vamos com você — acrescentou Tabby com firmeza.

           — Excelente ideia — respondeu Sam alegremente.

           — Posso apontar algo logístico antes de saltarmos ao futuro? — perguntou Brie. — Por acaso é aqui, agora mesmo, que o monge está a umas centenas de quilômetros ao sul.

           — Estou quase certa de que Ian quis que continuássemos nesta época para poder enfrentar-se com Carlisle. Para ele é algo pessoal. E, embora eu gostasse de dar a página para Nick imediatamente, Brie tem razão. Temos que nos livrar do monge antes de mais nada. Será menos um bandido para nos preocupar.

            Talvez a vingança de Ian abriria o caminho para sua cura, Sam pensou.

           — Desde quando você se preocupa com os maus? — brincou Tabby.

           Sam estava pensando na necessidade de Ian em vingar-se do monge. Ela não respondeu, porque a resposta seria: Desde que conheço Ian.

           Tabby disse muito séria:

           — Se temos a intenção de voltar a Carlisle, enfrentar o monge e destruí-lo, temos que trazer os homens.

            Ian gostaria de ir sozinho. Ele odiaria trabalhar ao lado de seu pai, mas teria que ceder, pensou Sam.

           — Um pouco de poder branco extra nunca é demais — ela pensou no selvagem Macleod. — Eu adoraria instigar Macleod contra Carlisle.

           — Quanto mais, mais seguros — disse Brie. Ela estava sóbria agora. — Mas alguns Mestres morreram lutando contra o monge. Precisamos saber o que vamos enfrentar. Eu gostaria de saber que poderes ele tem exatamente.

           — Ninguém vai morrer — disse Sam com firmeza, olhando para Tabby. Sua irmã não parecia preocupada com Guy. — Podemos fazer isso. Um pouco de clarividência, um pouco de matança e muita magia. Será a vitória. — Neste momento parecia tão fácil, estando todas juntas.

           De repente todas elas deram as mãos.

           — Como nos velhos tempos — sussurrou Brie.

           — Sim — disse Sam sorrindo. — Como nos velhos tempos.

          

            Uma criada que não falava inglês mostrou a Sam o quarto de Ian. Mas quando Sam chegou lá, o aposento estava vazio. Um pequeno fogo ardia na lareira. Ninguém dormiu na cama, mas sobre a mesa havia uma garrafa de vinho e duas taças, sob uma janela com painéis de vidro. Lá fora, a noite era azul, quase negra, e as estrelas brilhavam.

           Sam voltou a descer. Ao aproximar-se do grande salão onde passou as horas anteriores com sua irmã e com Brie, ouviu um homem falando. Por um momento pensou que era Ian, mas em seguida percebeu que era seu pai.

           Estava a ponto de entrar quando viu que Ian também estava ali. Notando a tensão que reinava entre eles, vacilou na soleira.

           Aidan estava oferecendo uma taça de vinho ao seu filho, com uma expressão tão sombria que parecia estar junto ao leito de um moribundo. Ian parecia a ponto de explodir de raiva. Sacudiu a cabeça bruscamente.

           — Não, obrigado. Prefiro beber sozinho — se afastou de seu pai e parou em frente à chaminé.

            Sam viu Brie sentada no banco, em um extremo da mesa. Sua prima parecia angustiada, levantou e, aproximando-se de Aidan, colocou a mão sobre o ombro dele com um gesto tranquilizador. Aidan tremia visivelmente. Deixou a taça e se aproximou de seu filho.

           — Faz vinte e cinco anos que não te vejo. Não pode se sentar comigo, ao menos?

           — Para que? — replicou Ian. — O que tem para falar? De minhas lembranças dos anos que passei no cativeiro?

           Aidan respirou fundo.

           — Se você quer falar do passado, faremos isso.

           — Não tenho nada sobre o que falar — grunhiu Ian.

           — Você voltou para Awe não uma vez, mas duas — disse Aidan.

           — Vim para pedir ajuda para resgatar Sam — respondeu seu filho com aspereza. — Não porque precisasse de um favor, mas sim porque me deve algo que nunca poderá pagar.

           Sam conteve a respiração, impressionada por sua crueldade.

           — Devo-lhe toda uma infância — respondeu Aidan lacrimejando. — E nós dois sabemos que jamais poderei devolver isso. Então pretende me castigar até que eu morra.

           Ian encolheu os ombros com indiferença.

           — Ele chorou por você durante sessenta e seis anos — exclamou Brie. — Ian, seu pai te ama muito. Durante esses sessenta e seis anos ele odiou a si mesmo por ter falhado com você. Ainda se odeia às vezes por esse fracasso.

           — Muito bem, então somos dois — respondeu Ian sarcasticamente. Virou-se e, ao ver a Sam, enrijeceu. — Está pronta para ir para a cama?

           Sam concordou com a cabeça, aflita pela compaixão.

            Brie abraçou Aidan, que não afastou o olhar úmido de seu filho.

           — Nós amamos você, Ian — sussurrou Brie.

           Ian saiu do salão furioso. Sam o seguiu rapidamente. Quando estavam no terceiro andar, no quarto que iam compartilhar, ela debateu sobre se devia ou não intrometer-se em sua vida. Sabia que qualquer comentário que fizesse sobre a relação de Ian com seu pai não seria bem recebido.

           Ele bateu a porta e fechou o ferrolho.

           — Não comece.

           — Alguém tem que começar por você.

           Ian olhou para ela com raiva.

           Ela hesitou.

           — Ian, ele é seu pai e te ama.

           — Eu não tenho pai — ele rasgou a camiseta e arremessou-a do outro lado do quarto.

           — Eu entendo que esteja tão irritado. Aidan não foi salvá-lo e isso é horrível. Mas ele acreditava que você estivesse morto. Moray fez com que ele acreditasse Ian. Alguma vez você tentou jogar a culpa em Moray, em vez de jogar nele?

           Ele a olhou fixamente.

           — Odeio os dois.

           Sam sacudiu a cabeça.

           — Aidan é um bom homem, Ian. E é seu pai. Não pode dizer isso.

           — Eu era apenas um menino pequeno! E ele me salvou? — ele vociferou.

            Sam sabia que não esperava resposta e não tentou falar.

            — Eu esperei, chorei, supliquei, rezei. Tinha esperanças! E depois, um dia, a esperança desapareceu. Um dia eu sabia que iria viver ali para sempre!

           — Sinto muito — murmurou ela.

           — Eu não me importo! Sabia que os deuses encomendaram a ele a tarefa de proteger crianças? Ele passa a vida salvando meninos inocentes, quando não pôde salvar seu próprio filho.

           — É horrível — disse ela. — É realmente horrível. Mas a vida é terrivelmente injusta.

           — Injusta? — exclamou incrédulo. — Eu fui o sacrificado para que ele aprendesse uma grande lição e assumisse seu maldito destino.

           — Graças a Deus, você sobreviveu.

            Ian lançou a ela um olhar que deixava claro que lamentava não ter morrido. Ela tremeu.

            — Você sobreviveu, Ian. Está vivo. E tem que seguir em frente, porque tem muita coisa que viver.

           Ele começou a rir dela.

           — Ah, sim, minhas casas elegantes, meus carros luxuosos, o dinheiro, a arte, o sexo...

            — Talvez você gostasse muito mais da vida se tivesse uma família.

            — Pois não tenho e nunca terei — gotas de suor brotavam em suas têmporas.

           — Odeio discutir com você, mas sabe uma coisa? Brie é sua madrasta, Aidan é seu pai e seus filhos serão seus irmãos e irmãs — ele se sobressaltou. — Então, você tem família. Uma família que está desejando que você lhes permita amá-lo.

           Ian se aproximou da janela do quarto, abriu e ficou olhando o céu estrelado.

            Sam aspirou o aroma da noite nas Terras Altas. Sentiu o aroma do lago e dos pinheiros, aproximou-se dele.

           — Eu não vim aqui discutir.

           Ele continuava olhando pra fora. Uma sombra cruzou a lua. Sam aproveitou o silêncio para contemplar seu perfil perfeito. Depois olhou seus ombros largos e nus, seu peito. Sentia claramente seu calor.

            Ian disse lentamente:

           — Eu não deveria ter vindo, nem sequer para pedir a ajuda deles.

            — É para isso que existe a família — disse Sam, apoiando a mão em seu ombro. Sua pele era quente e suave.

            Ian olhou para ela. Seus olhos começavam a perder parte de sua ira e a adquirir o brilho do desejo.

           — Para isso existe a sua família.

           Sam não chegou a sorrir. Foi um dia insano, mas haviam sobrevivido. E a noite estava apenas começando.

           — Gostou de ver sua irmã e Brianna? — perguntou ele com suavidade.

           Sam deslizou a mão por seu bíceps protuberante e seu musculoso antebraço. Os músculos ficaram tensos sob sua carícia.

           — Sim. Foi ótimo. Então, você estava preocupado comigo hein?

           O olhar de Ian era inabalável.

           — Você sabe cuidar de si mesma.

           — Por isso você saltou no tempo para me salvar. Brie diz que estava fora de si — insistiu ela, zombando. Mas estava quase sem fôlego.

           Ele lançou um olhar incrédulo pra ela.

           — Isso é imaginação sua. Além disso, você escapou.

           — Com um pouco de ajuda fora do comum — Sam não podia afastar o olhar. — Eu vi você quando eles me tinham na câmara de tortura. Eu vi você.

           Seu olhar endureceu.

           — Eles tocaram em você, de alguma forma?

           — Não — Sam quase sorriu. — Você realmente apareceu no momento oportuno Ian.

           Ele esboçou um sorriso.

           — E quer voltar a testar meu instinto de oportunidade.

            — Claro que sim. Talvez minha memória seja falha. Provavelmente você não seja tão bom como acredito.

            A curva de seus lábios ficou mais ampla. E o brilho de seus olhos se intensificou.

           — A sua memória não é falha, e você sabe disso.

            — E tem essa dívida que tenho contigo. A que você ainda tem que cobrar — sussurrou ela com um sorriso. Seu coração pulsava a toda pressa.

           Por que tentar resistir? Sam pôs um dedo no cós de suas calças, bem acima do botão, e apertou para baixo.

           — Vem cobrá-la, Maclean — sussurrou.

           O sorriso de Ian apagou. Inclinou-se para ela, seus olhos cintilando. Sam pensou que ainda não haviam se beijado, desde aquela primeira vez na festa de Hemmer.

           Ian olhou para sua boca. Sam quase esqueceu do calor latejante que sentia sob sua calça. Ela ficou olhando seus lábios. Ele esboçou um sorriso. Depois colocou sua mão entre seu cabelo curto atrás da cabeça. Seus olhos se encontraram. O sorriso de Ian desapareceu.

           Parecia que uma eternidade estava passando enquanto Sam estava ali, com o coração acelerado, esperando para sentir sua boca. Ian inclinou e seus lábios roçaram. O coração de Sam parecia explodir ao sentir o roçar leve, indeciso, quase virginal de seus lábios. Ian ficou paralisado. Parecia surpreso, ou inseguro. Ela, curiosamente, se sentia igual.

            — Está tudo bem Ian — murmurou, apoiando as mãos em seus ombros.

           Ian tremeu. Rodeou-a com o outro braço. Então sua boca roçou a dela, desta vez com mais firmeza. Sam abriu os lábios, e Ian a beijou finalmente.

            Com ardor, apaixonadamente, com uma ânsia surpreendente. Um beijo pelo qual valia a pena esperar. Sam o beijou de volta, atordoada pela turbulência que sentia dentro do peito. Havia tanta alegria, tanta emoção...

           A língua de Ian penetrou em sua boca. Sam chocou-se com a parede. Seus lábios continuavam unidos. Ninguém a beijou assim antes.

           E ela nunca quis beijar ninguém assim.

           Deslizou os dedos pelos cabelos de Ian. Ele deixou escapar um grunhido e a levou para a cama. Sam tombou de costas. Ele se colocou entre suas coxas abertas, levantando sua minissaia. Ainda se beijando, Sam estendeu a mão para o zíper de sua calça. Ele devorava sua boca, frenético. Suas línguas se entrelaçavam, saboreando-se. Ian a mordeu. Sam notou o sabor do sangue.

           Ian afastou a boca, ofegando com força, se olharam. Ele colocou a mão entre os dois sem deixar de olhá-la. Ela ouviu o som do zíper quando ele o baixou.

           — Você pode esperar? — perguntou ele.

           Como resposta, Sam rodeou a cintura dele com as pernas e se apertou contra sua enorme ereção. Já estava úmida e escorregadia. Ian sorriu, inclinou, lambeu seus lábios de novo e de novo enquanto seu membro pulsava entre eles. Sam desistiu, se agarrou em seus quadris e, ancorando-se nele, fez com que a penetrasse deixando escapar um gemido.

           Foi o melhor orgasmo — ou série de orgasmos — que jamais teve.

           Várias horas depois, Ian se separou dela ofegando e deitou de costas. Flutuando ainda em um mar de êxtase, Sam apenas ficou ali deitada e deixou que a onda de prazer fosse se dissipando aos poucos.

           Depois de um tempo as ondas diminuíram. Quando pôde pensar, tocou sua a boca e notou que estava machucada e inchada. Ninguém a tinha beijou como Ian a beijou naquela noite. Era como se fosse seu último beijo... ou o primeiro: um beijo do que não podia saciar.

           Sam notou que ele a estava observando, virou e seus olhares se encontraram. Ian não tinha uma expressão de deboche, mas cuidadosamente neutra. Seu olhar parecia preguiçoso e ao mesmo tempo alerta. Ela molhou os lábios.

           — Olá.

           — Eu te machuquei?

           Ela sorriu.

           — Não, Ian. Sou uma grande menina má e posso lidar com material bruto.

            Não sorriu de volta. Virou completamente de costas, olhando o teto de madeira.

           Sam notou que seu sorriso desaparecia. Um momento antes, Ian parecia não se saciar dela e isso foi mútuo. Agora, de repente, cinco centímetros separavam seu corpo e surpreendentemente ela ansiava fechar essa lacuna. Desejava deitar em seus braços e beijar seu peito. Corou. Se tentasse isso, Ian pensaria, talvez, que sentia algo por ele. E talvez a rejeitasse.

            Ela nunca se preocupou que a rejeitassem. Nunca se preocupou se um homem queria mais ou não. E também nunca quis abraçar.

           Não iria se transformar em uma mulherzinha tenra e melosa. Passou as unhas por seu braço.

           — Você está bem, amante sombrio?

           Ele virou para olhá-la.

           — E você?

           Ela deixou de sorrir.

           — Isso foi incrível, na verdade.

           O semblante de Ian se suavizou por fim.

           — Sim — olhou para sua boca. — Eu fui muito bruto.

           — Isso se chama paixão, baby — respondeu ela suavemente, confiando em esconder o quanto se sentia atordoada e feliz. Colocou a mão no grande músculo peitoral e começou a acariciá-lo porque ela tinha que tocá-lo.

           Ele arregalou os olhos de surpresa. Sam sentiu que seus músculos ficaram tensos. Esperava que ele se afastasse e lamentou tê-lo tocado. Mas ele ficou muito quieto e fechou os olhos.

           Ele ia deixar que ela o acariciasse. Sam aproveitou a oportunidade para acariciar seu peito, riscando de grandes círculos para menores, até rodear seu mamilo. Pensou que não se importaria em passar horas o acariciando. O que estava acontecendo?

           Ian suspirou de prazer. Sam sentiu que seu corpo tenso, cheio de calor. Depois suspirou e deixou cair sua mão entre os dois. Sua palma ficou apoiada sobre o quadril de Ian. Ele não parecia querer se afastar daquele gesto de carinho.

           — Você quer dormir?

           Sam piscou ao perceber o que cresceu entre eles. Ela escondeu um sorriso. Respondia... ou simplesmente agia? Se esfregou contra ele e beijou seu umbigo. Ian grunhiu, satisfeito, e voltou a grunhir quando ela tocou seu anel de aço.

           

            No início achou que estava sonhando. Ouvia atrás dela uma respiração áspera e agitada. Não ao seu lado. Alguém a perseguia, pensou, meio grogue, mas era um sonho, não era? Sentia o colchão confortável sob seu corpo e o calor morno do homem a seu lado, na cama. Não, não era um homem qualquer, pensou, e começou a sorrir. Estava na cama com Maclean e passaram uma noite fantástica.

           Ian gritou.

           Seu grito foi horripilante. Um som de dor e de medo. Sam sentou bruscamente. Demorou um instante para compreender que Ian estava ao seu lado, se sacudindo, preso em um pesadelo. A luz da lua caía sobre seu rosto retorcido e seu torso nu. Tinha as mantas enroladas ao redor dos quadris e estava coberto de suor. Ele gritou outra vez.

           Sam o agarrou pelos ombros.

           — Ian, acorda!

           Ele a agarrou pela garganta e começou a estrangulá-la. Seu rosto refletia uma fúria assassina. Ele abriu os olhos e seus olhares se encontraram. Sam o agarrou pelos pulsos, asfixiando. Ian recuperou a lucidez. Soltou-a e se levantou em um salto.

           Sam inalou, sugando o ar.

           Ian cambaleou em tono do quarto, depois se endireitou. Virou-se lentamente.

           — Você está bem? — ele perguntou.

           Sam concordou, recostada contra a cabeceira.

           — Sim, estou bem — Ela não tinha dúvida de que ele sonhou com seu passado. — E você?

           — Sim — respondeu rapidamente, mas ainda estava tremendo, as palavras claramente vacilantes. Ele recolheu seu jeans, que estava no chão, e o colocou. Sam acreditou ver que suas mãos tremiam.

           Viu-o se aproximar da mesa e se servir de uma taça de vinho.

           — Isso foi um grande sonho — ela tentou.

           Ian bebeu sem responder.

           Sam estava certa de que aquele não foi seu primeiro pesadelo.

           — O que fizeram a você? — perguntou por fim.

           Ele virou para olhá-la. Sam pensava que ele não ia responder, e ele não precisava. Ela sabia.

            Mas ele respondeu.

           — Tudo.

 

 

           Sam olhou para ele chocada. Ian se afastou, recolheu sua camiseta e a colocou. Ela mal podia acreditar. Ian estava falando de seu passado.

            — Odeio o que aconteceu com você. Eu também quero que o monge pague por isso.

            Ian não respondeu, virou para a janela. Lá fora o sol estava nascendo e a manhã se tingiu de um cinza pálido.

           — Você sonha muito com isso? — Sam se atreveu a perguntar.

           Ele deu a ela um olhar irônico. Sam desceu da cama. Sentiu frio, mas decidiu não se incomodar em pegar uma manta. Nua, talvez conseguisse reter um pouco mais de sua atenção. Talvez Ian respondesse uma ou duas perguntas. Ela se aproximou dele.

           — Sempre são tão angustiantes os sonhos?

           — O que é isso, um interrogatório?

           — Não, Ian, não é um interrogatório. Sou apenas uma amiga que se preocupa com você — Ela fez bem em não se vestir. Ian a olhava atentamente.

           Sam se serviu de um copo de água e bebeu um gole enquanto o olhar de Ian deslizava por seu corpo.

           — Você está congelando.

           Ela sorriu, baixou o copo e colocou a mão sobre seu ombro.

           — Faz um pouco de frio aqui.

           Ian não se afastou.

           — Vista-se. Embora não me incomode com o espetáculo.

           Sam estava oferecendo um consolo da maneira mais discreta possível, e ele estava permitindo isso. Ela estava em êxtase.

            — Você não vai rejeitar isso, Ian? Não vai rir de mim, ou zombar por dizer que me considero sua amiga?

           O olhar de Ian ficou ilegível. Sua boca torceu, mas Sam não soube se sua careta era de desprezo, de brincadeira ou só de ironia. Mas não se importava. Ian voltou a usar sua máscara. Ele deu de ombros.

           — Se você quer se considerar minha amiga, por que eu iria impedir isso? Pode fazer o que quiser.

           — Obrigada — ela respondeu.

           Ele olhou sua boca e seus seios, e logo mais abaixo. Levantou o olhar lentamente.

            — Não pode brincar comigo, Sam. Não pode me enganar como engana os outros.

           Sam deslizou a mão por sua nuca. Sentiu que ele estava tenso e compreendeu que iria se afastar. Olhou ao seu redor, viu sua calcinha e sua camiseta e as recolheu, vestiu a roupa e disse:

           — Quando mataram minha mãe, eu tinha doze anos. Eu não vi o demônio a assassinando. Mas vi quando se levantou e a deixou ali, morta, despojada de seu poder e de sua vida.

           Ian se assustou.

           — Eu não sabia.

           — Minha mãe era como Tabby. Uma bruxa poderosa com um coração de ouro. Não havia mulher mais bondosa. — Para sua surpresa sentiu que entristecia. Sentia os olhos úmidos. Que inferno era aquilo?

           — Se parecia com você ou com sua irmã? — Ian perguntou com calma.

           — Comigo, exceto que ela usava o cabelo comprido e de cor champanhe, não platinado.

           Ian sorriu.

           — Você tinge o cabelo. Se é que esses tufos podem ser chamados de cabelo.

           — Você gosta do meu cabelo — respondeu ela.

            O sorriso de Ian desapareceu. Ele disse lentamente:

     — Eu gosto do seu cabelo porque a única coisa que vejo quando olho para você é seu rosto e seus olhos.

            Sam ficou quieta. Seu coração explodia de alegria.

       — Uau — disse ela.

            Ian Maclean corou. Ele cruzou bruscamente o quarto.

            — Eu também tinha pesadelos, Ian — ele parou na porta e a olhou. — Comecei a sonhar com sua morte, embora não tivesse visto. Mas sabia. Tinha apenas doze anos, mas eu sabia. — Sentiu que um nó se formava em seu peito. Ela disse a si mesma que era azia. — A vida é um saco, não é? Chegou sua hora, ou era isso que dizia minha avó, mas eu nunca pude aceitar isso.

           — Eu sinto muito — ele disse.

            — E era a minha hora de começar a matar — Sam encolheu os ombros.

            — Você está chorando? — ele perguntou de repente.

            — Não, não estou chorando. Eu não choro.

            Ele deixou escapar um som.

     — Quanto tempo ficou sonhando com sua morte?

            — Muito — Sam fez uma careta e se aproximou dele. — Sei que meus sonhos não eram nada comparados aos seus. Mas entendo como um pesadelo horrível como esse pode ser.

            Ian cruzou os braços.

     — Você não tem mais esses sonhos.

            — Não. Se tornaram menos frequentes a partir dos vinte e poucos anos — respondeu Sam. — Não tive pesadelos nos últimos anos.

            Ian ficou pensando.

     — Fico feliz.

            Disse isso sinceramente.

            Sam sorriu um pouco. Depois disse.

            — Você já passou por mais do que qualquer pessoa jamais deveria ter que passar. Esses sonhos precisam parar.

            Ele riu.

            — Ninguém pode controlar seus sonhos, nem sequer um Deus.

            Sam esperou um segundo.

     — Ian, você já pensou alguma vez em pedir ajuda? — perguntou com cautela.

            — Você quer dizer, psiquiatria? — ele parecia incrédulo.

           — No CDA há todo um departamento cheio de psiquiatras para ajudar os agentes. No ano passado, quando Macleod levou Tabby, Nick me obrigou a me submeter a um exame psiquiátrico. Tive que falar com o psiquiatra uma hora todas as semanas.

           — Eu não sou um agente. Não preciso de um psiquiatra — Sam intuiu o que ele ia dizer, e não se enganou. — Compartilhar minha cama não dá a você o direito de me dizer para ir a um psiquiatra. Você é uma tola se acha que agora tem que se preocupar comigo por causa de um pouco de sexo.

           Ela suspirou.

     — Eu estava esperando o retorno do verdadeiro Maclean. Que alívio!

            Ele pegou a manta que havia aos pés da cama e a arremessou para ela. — Se você pegar uma pneumonia ficará doente demais para saltar de volta para casa, e aqui não temos antibióticos.

           Ela estava feliz por estar envolta no calor da manta.

           — E você se importaria por quê?

           — Ninguém merece ficar preso nesta época miserável — respondeu duramente. — E eu não quero que morra por minha culpa.

            Sam sentiu que seus olhos arregalavam. Ian se culpava pelo que aconteceu a ela.

            — Por que você não reconhece que gosta de mim um pouco, e não só pelo sexo? Afinal, somos amigos.

           Maclean não respondeu. Simplesmente, saiu do quarto.

           Sam encontrou sua saia e a colocou. Enquanto calçava as botas, pensou no que acabava de acontecer e ficou satisfeita. Aquela conversa parecia pra ela uma vitória. Maclean podia ser normal, e foi até certo ponto sincero. Sam sorria quando se dirigiu à porta. Certamente, era a primeira amiga que Ian teve. A vida era deliciosa, e tudo graças a sua crescente relação com Maclean.

           Disse a si mesma que era melhor tomar cuidado, mas ela sabia que iria ignorar seu próprio conselho.

           Tabby e Brie estavam embaixo, tomando algum tipo de chá de ervas. Nem Aidan nem Macleod estavam à vista. Também não via Ian.

           Sam sorriu alegremente para elas. Tabby levantou as sobrancelhas.

     — Alguém teve uma grande noite.

            Sim, foi mais que boa. Mas de repente lembrou de sua conversa no dia anterior e de todas as coisas que negou. Mas ela disse a Ian? Não, ela insistiu... que eram amigos.

           — Eu precisava de uma boa noite de sono — disse muito séria.

            Brie sorriu e empurrou para ela uma caneca fumegante.

            — Onde está todo mundo? — perguntou Sam.

           — Aidan queria mostrar a Macleod uma fortificação que está construindo na margem norte do lago — respondeu Brie. — Mas não vão demorar — fez uma careta.

           Sam compreendeu que ela estava pensando em Ian.

           Brie disse baixinho:

           — Ontem à noite, Aidan perguntou ao Ian se queria acompanhá-lo. Ele disse que não.

            Sam hesitou.

     — Não vou mentir para você, Brie. Não sei se alguma dia ele entrará na razão.

           — Nunca deixarei de rezar por ele, nem perderei a esperança. Mas já se passaram vinte e cinco anos. Quero Aidan completo, Sam.

           De repente, Tabby deixou escapar um gemido de surpresa e ficou branca. Sam ficou tensa. Sentia o peso do mal ali perto. E era familiar.

           Era o monge.

           Foi em sua busca deles, e Sam não achava que quisesse negociar. Pensava atacá-los e os homens haviam saído. De repente compreendeu o quanto era ousado por se atrever a entrar no castelo de Awe. E ela continuava sem ter suas armas! Só tinha uma punhal que tirou do arsenal quando chegou a Awe, no dia anterior.

           Onde estava Ian?

           — É Carlisle — disse concisa ficando de pé, virou para o lugar onde percebia sua presença, mas Tabby já tomou à dianteira e se dirigia à escada.

           — Aidan... — Brie sussurrou.

           Sam estava no encalço de sua irmã, virou-se com o punhal na mão. Brie estava segurando o respaldo de uma cadeira. Ela estava com medo de Aidan também? Brie olhou para ela sacudindo a cabeça.

           — Não é Aidan, é Ian. Seu medo é como uma faca que atravessa o coração.

           Sam correu. Alcançou Tabby e passou por ela pelas escadas de pedra. Ouviu rachar e cair algumas pedras. Correu até o limite das muralhas, ciente de que a terrível batalha começou.

           Talvez fosse a última. Sam parou. Um pequeno exército de gigantes possessos estavam subindo pelas muralhas. Estavam armados até os dentes e seus olhos brilhavam com determinação desumana. Os guardas penduravam, mortos, das janelas da torre. Ian estava sozinho nas muralhas.

           Ninguém notou que estava aterrorizado. Lançava descargas contra os gigantes com expressão selvagem, mas os gigantes continuavam chegando em ondas. Sam não sabia quanto tempo Ian poderia aguentar.

           — Ian! — Sam correu para ele.

           Ele olhou para ela.

           — Para trás! Vá em busca de Aidan e Macleod!

           Sam empunhou a espada de um gigante morto.

           De repente ouviu uma risada suave. Sam levantou a vista. E Ian também.

           O monge de Carlisle estava no nível mais alto da torre e sorria para eles. Seu hábito escuro se agitava com a brisa. Seu cabelo loiro brilhava. Levantou lentamente seu sapato pontudo e jogou um dos vigias de Aidan no vazio. O corpo do homem se estatelou não muito longe de onde estavam Ian e Sam.

           — Olá, Ian. Sam.

           Ian ficou pálido, mas sua expressão continuava feroz.

           — Bastardo.

           Tabby parou detrás deles e começou a entoar um canto, lançando um feitiço.

           — Ian! — gritou Brie.

           Ele rodopiava e lançava uma descarga de poder em outra onda de ataques.

           Ouviram um rugido.

           Havia um cão demônio escondido na fortificação. Sam não tinha ideia de como ele chegou até ali, mas quando rosnou, mostrando as presas gotejantes, não vacilou. Aquela coisa significava morte. Ela arremessou sua adaga em seu coração no momento em que saltava. Sam esperava que ele a atacasse. Mas a besta se lançou para Tabby.

           A adaga atingiu seu peito, mas o animal caiu sobre sua irmã, grunhindo de raiva, e a atirou ao chão. Sam gritou e correu para ele com a espada no alto. Tabby seguia cantando sob a besta. Antes que Sam pudesse cortar a cabeça do cão, Ian lançou uma descarga de poder. Depois, virou para combater contra os gigantes, derrubando-os um a um pelas muralhas.

           Ela não sabia quanto tempo ele conseguiria continuar com isso. Estava ofegante, o suor escorria por seu corpo. Eles precisavam de reforços. O cão demônio ficou quieto e Sam o agarrou pela pele do pescoço e o separou de sua irmã. Depois tirou a adaga do seu peito. Ao virar-se para sua irmã, viu que suas pálpebras se moviam. Tabby estava viva. Sam notou que continuava movendo a boca como se cantasse, em um transe profundo.

           — Sam! — gritou Brie.

           Um pavor novo começou. Sam percebeu que tudo havia se tornado incrivelmente silencioso nas muralhas.

            Ela girou. Ian continuava no mesmo lugar, entre dúzias de gigantes mortos. O monge sorria para ele. Eles iriam se enfrentar. Ian precisava de ajuda.

           Não podia fazer isso sozinho. Sam sabia. Ian lançou um raio de energia em Carlisle. Sam agarrou a espada e subiu pelas escadas que levavam ao alto da torre. Mas, assim como ela esperava, Carlisle levantou a mão e fez ricochetear a descarga de volta contra Ian.

           Ian saiu voando e chocou-se violentamente contra a parede. Sam ouviu o trincar de seus ossos.

           — Ian!

           Cheio de ira, Ian se lançou para frente e descarregou de novo seu poder contra Carlisle. Nas escadas, Sam viu que Carlisle levantava a mão para inverter a trajetória do raio. Desta vez, ela gritou. Ian voltou para estatelar-se contra a mesma parede. Um instante depois, o monge lançou sobre ele outra descarga.

           Seu poder negro se espalhou entre as muralhas e desceu da torre como um raio. Bateu no peito de Ian. Ele entrou em colapso, com os olhos fechados.

           Sam saltou das escadas e correu para ele. Ele não podia morrer.

           — Sam! — gritou de novo Brie.

           Um gigante que de alguma maneira havia sobrevivido a agarrou por trás. Sam virou e lançou-lhe uma estocada no pescoço. Ao fazer isso, viu Brie enfurecida atacá-lo com uma pequena adaga na mão. Enquanto a adaga de Brie cravava em suas costas, Sam sentiu que sua espada atravessava tendões e cartilagens. Ela puxou Brie quando o gigante desabou.

           — Uma mulher feita a minha imagem e semelhança, que vou apreciar verdadeiramente — lhe murmurou o monge no ouvido.

           Sam virou, rígida. O monge de Carlisle sorriu para ela.

           — A única coisa que lamento é que você não nasceu homem.

           Sam cuspiu em sua cara.

           — Vou tomar-lhe o pulso — disse, tremendo. — E se ele estiver morto, prepare-se para morrer.

            O monge sorriu satisfeito.

            Ela deu as costas a ele, passou entre os mortos e se ajoelhou junto a Ian. Não precisou tomar seu pulso. Ela viu que ele respirava.

           — Kennar — ordenou o monge.

           Sam levantou o olhar. Seis gigantes escalaram as muralhas e dois se aproximavam de Ian e dela. Ela se levantou lentamente, empunhando a espada.

            — Me pergunto se alguma vez me defenderá assim — disse o monge. — Prendam-na. E quanto a ele, apunhalem-no.

           Sam sentiu que seu coração parava, em estado de choque. Depois começou a lutar por sua vida e pela de Ian. Lançava estocadas que Kennar esquivava facilmente. Precisava de suas armas, não uma pesada espada a que não estava acostumada. Os gigantes pegaram Brie e Tabby estava inconsciente. Lançou outra estocada, e outra, e pelo canto do olho viu um turbilhão em movimento. Brie gritou. Sam virou e alguém arrancou a espada de suas mãos.

           — Brie!

           Brie estava junto às escadas e agarrava o peito com tanta força que Sam esperava ver jorrar sangue de seu peito, entre suas mãos, cambaleava como se a tivessem apunhalado. Mas não havia sangue...

           Brie tinha uma grande capacidade empática. Algo estava acontecendo com Aidan, pensou Sam, e se virou de novo. Então viu Ian e lançou um grito.

           Uma lança atravessava seu peito e saía pelo outro lado de seu corpo, cravada por um dos gigantes, que sorria. Ian estava consciente agora. Segurava a lança com suas mãos e a olhava com os olhos atordoados. Depois, seus olhos vidraram com a dor. Brie estava sentindo a dor de Ian, não a de Aidan.

           Sam olhou para o monge furiosa.

           — Filho da puta. Ele estava inconsciente!

           — E agora acho que não pode se defender, não é? — respondeu Carlisle, irônico.

           Sam se virou para Ian, que, apesar de estar branco como um cadáver, tentava se manter de pé. Quatro gigantes o rodeavam.

           — Não se mova — disse Sam com voz áspera. Ian precisava de cuidados médicos.

           Ele sacudiu a cabeça, pálido como a morte, e caiu de joelhos. A visão era obscena. Jamais vista. Nunca enojou tanto. Seu poder brilhou fragilmente nos quatro homens possuídos. Os highlanders gigantes pareceram sentir o golpe, apenas um pouco, mas depois perceberam o quanto ele estava fraco. Sorriram e avançaram confiantes.

           — Não use seu poder — disse Sam, rodeando-o com o braço. — Economize forças, por favor.

           Ian cambaleava, apesar de Sam tentar sustentá-lo. Ignorando-a, fez brilhar de novo seu poder, fracamente. Um dos gigantes se lançou para ele com a espada no alto.

           Sam deu um salto e atacou o gigante com sua adaga. Cortou-lhe o pescoço com um grito furioso, mas não serviu de nada. Os outros três gigantes encurralaram Ian. Sam pensou por um momento que fossem despedaçá-lo com suas espadas enquanto ela olhava indefesa. Mas o agarraram pelos braços e pernas. Ian gritou.

           — Basta! — gritou Sam para Carlisle. — Faremos o que quiser!

           O monge sorriu cruelmente e fez um gesto para seus gigantes. Puxaram Ian pelos braçose o levantaram com a espada. Ian desmaiou pendurado entre eles.

           — Que humilhação — disse o monge, rindo.

           Sam sentiu que um gigante a puxava e a acorrentava. Não afastou os olhos do monge, ia matá-lo. Ela mal podia esperar. Talvez ela o apunhalasse primeiro...

           Ele sorriu triunfante. Desceu da torre e murmurou:

           — E como você vai fazer isso, mon amour?

           — Espere e verá — ela sussurrou.

           — Pergunto-me se ele sobreviverá ao salto.

           Sam conteve a respiração.

           — Não faça isso. Eu trarei a página para você. Darei o que você quer. Ian necessita de cura.

            Carlisle a agarrou pelo braço.

     — Diga adeus, Sam.

            — Não! — gritou ela, mas era muito tarde. Foi arremessada para cima, no céu, para o sol, tão velozmente que nem sequer pôde olhar para trás.

          

            Sam notou uma superfície áspera sob a bochecha. Parecia cascalho. Tinha grilhões nos pulsos, estava amarrada de costas. Lembrou-se de Ian transpassado pela lança e tudo o que aconteceu no Awe em 1527. Sentia seu corpo em chamas por causa do salto e sentiu como se tivesse sido torturada, mas abriu os olhos e conseguiu se sentar. Uma proeza que exigia o uso exclusivo de seus músculos abdominais. Viu ao seu redor umas paredes cinza. Piscou embargada pela dor, e viu janelas altas envidraçadas. Seus olhos se arregalaram. As janelas eram modernas, industriais. A luz do dia tingia de cinza pálido a sala, iluminando-a, mas não havia nada sob as janelas, nas paredes. Então ela o ouviu respirar.

           Virou bruscamente e viu Ian estendido no centro da sala vazia, a poucos metros dela. A lança continuava cravada em seu peito. Sua ponta metálica saía por suas costas.

           — Ian — Sam soluçou e se aproximou dele apressadamente, engatinhando.

           Estava curvado de lado. Havia muito sangue. Sam estava aterrorizada.

           — Ian, sou eu, Sam — gemeu ao chegar a seu lado. Furiosa, lutou contra os grilhões. Mas não conseguia rompê-los e se libertar.

           Ele gemeu.

           — Ian — ela não podia usar as mãos, se sentou e apoiou o joelho no quadril de Ian para que ele notasse sua presença.

     — Ian?

           Ele gemeu de novo.

           Sam amaldiçoou. O que aconteceu com a magia de Tabby? Onde estava Aidan e Macleod? Onde exatamente eles estavam? A sala estava completamente nua: chão e paredes de cimento sob um teto metálico. Eles podiam estar em 1950 pelo que ela sabia.

           — Amaldiçoar... não vai...ajudar.

           Sam encontrou seu olhar. Seus olhos, cegos pela dor, tinham uma expressão febril.

           — Vou te prometer uma coisa. Matarei o monge e, se eu não conseguir isso, Tabby o matará. Ele não vai fugir disso — para seu horror tinha os olhos cheios de lágrimas. — E você não se atreva a morrer!

           Ian abriu as pálpebras.

           — Ele não vai me deixar... morrer.

           Sam molhou os lábios para dizer que ele não sabia disso, mas depois recordou que, durante seus anos de cativeiro, o mantiveram com vida. Seu estômago revirou. Ian não podia voltar a passar por isso.

           — Você está sangrando — disse estupidamente.

           — Sou quase... imortal. Posso perder... um pouco de sangue.

           Ela decidiu não contradizê-lo. Ele estava perdendo litros de sangue.

           — Você está ferida? — perguntou Ian, olhando-a nos olhos.

           — Você está preocupado comigo?

           — Por que... ia me preocupar? Você é... uma garota dura.

           Sam sentiu que as lágrimas rolavam por seu rosto.

           Ian a olhava fixamente.

           — Você está chorando.

           — Merda — disse ela. Não podia limpar as lágrimas. — Meus olhos estão ardendo — mentiu. — Talvez haja alguma substância química no ar.

           O olhar de Ian tornou-se estranhamente intenso.

           — Você chora... por mim?

           — É um idiota e um egoísta, porque ia chorar por você? Além disso, eu não choro. Nunca.

            Ele pareceu aceitar isso. Fechou os olhos e seus cílios descansaram sobre suas maçãs do rosto mortalmente pálidas.

           — O que está fazendo? — gritou ela, alarmada. Ele estava tão fraco.

           Ele demorou um momento em responder.

           — Eu não estou morrendo... fique quieta.

           Sam o observou e viu que seu rosto ficava tenso. Ela não aguentava mais. Achava que começava a sentir sua dor. Uma angústia insuportável oprimia seu coração. Se eles não fossem resgatados, Ian morreria.

           — Ian — murmurou, e tombou cuidadosamente de lado, junto a ele, evitando a ponta da lança. Começou a chorar de novo.

           O que estava errado com ela?

           De repente lembrou do monge subindo à torre, rindo deles, e viu Ian apoiado contra a parede, com a lança cravada no peito. Depois viu sua mãe. Viu quando a estupravam claramente, como se estivesse acontecendo naquele momento. Ela começava a bater no demônio com uma vara de madeira, e quando ele a jogava de lado com um empurrão, levantava rindo dela antes de se afastare. Ela viu sua mãe ser estuprada. Ela ficou chocada, paralisada.

           Ian gritou.

           Sam voltou ao presente.

           — O que foi? Estou ferindo você? — E se o empurrou demais por engano?

           — Teste os grilhões — respondeu ele respirando com dificuldade.

           Sam entendeu o que ele queria dizer. Moveu os braços e os grilhões se soltaram. Em seguida se ajoelhou a seu lado, tirou sua camiseta e a rasgou em duas. A ferida de suas costas não sangrava, e ela aplicou a metade da camiseta contra seu peito. Ele gemeu e disse:

           — Puxe a lança.

           Aquele não era um bom momento para discutir, mas Sam disse:

           — Não sei se será boa ideia.

           — Meu pai é um Mestre. Minhas feridas curam rapidamente, remova isso de mim.

            Sam hesitou, tirou o cinto e disse:

     — Não se mova, vou usar o cinto para fazer pressão sobre as feridas.

           — Me dê o cinto — ele disse.

           Sam compreendeu para que ele queria. Ela pressionou uma ponta em seus lábios e ele mordeu com força o couro. Sam se colocou atrás dele e puxou a lança. Sua extraordinária força permitiu que ela a tirasse de um só puxão. Mas aqueles dois segundos pareceram uma eternidade. Ian engasgou, mas não gritou.

           Ela lançou a lança para o lado, apertou as duas partes de sua camiseta nas feridas e rodeou seu peito com o cinto para segurá-las.

           — Deite de costas para que possa fazer mais pressão sobre seu peito — disse com aspereza. Ele obedeceu imediatamente, com os olhos fechados. Já não estava branco. Estava verde. — Este seria um bom momento para desmaiar — disse Sam enquanto exercia pressão sobre a compressa.

           Ian não respondeu, mas Sam não esperava que ele fizesse isso. Olhou seu belo rosto, tenso pela dor e pelo esforço. Mais lágrimas vieram. Ninguém merecia o tipo de vida a que ele foi destinado e nem o que ele estava passando nesse momento. A dor e a agonia tinham que acabar. Ian necessitava e merecia paz. Não a morte, mas uma vida de felicidade.

           — Você merece uma pausa, droga — sussurrou ela. — Eu sempre estarei apoiando você, Ian.

           Suas pálpebras se moveram.

           Ela piscou rapidamente, enquanto as lágrimas fluíam. Não podia perdê-lo. Era muito cedo. Estavam começando a se conhecer. Deus, isso não era justo. Ela o amava.

           Ela estava chocada.

           Então ela o olhou e viu que ele a olhava intensamente. Rezou para que aquela não fosse uma dessas estranhas ocasiões em que Ian podia ler o pensamento. Olhou sua camiseta que era azul claro e ficou aliviada ao ver que não estava empapada de sangue.

            — Acho que a hemorragia está parando. Não se mova, vou continuar fazendo pressão.

           Ele esboçou um sorriso.

           — É bonito, seu sutiã. E... o que tem embaixo... eu gosto ainda mais.

           — Maclean voltou. Deve estar se recuperando — ela o olhou com atenção. Tinha uma cor melhor? Pelo menos já não estava verde. Olhou sua camiseta. A hemorragia parou, estava quase certa, mas continuou apertando.

           — Onde estamos?

           Sam olhou ao seu redor.

           — Não sei. Mas na Idade Média não é. Eu diria que estamos no século XX, ou até mesmo em nossa época — ela olhou para ele. — Ou na minha, melhor dizendo.

           Ele esboçou um sorriso estranho.

           — Seu rímel escorreu por todo o rosto.

           Sam deixou escapar um gemido.

           — E isso por que era resistente à água. Eu te disse. Aqui tem alguma substância química problemática.

            — Deixe-me levantar — ameaçou se sentar.

            — Nem pense nisso! — respondeu, alarmada.

            — Posso me sentar. E também posso tentar nos tirar daqui, se a porta tiver fechaduras.

           Sam ficou quieta.

           — Sim, acho que pode — Ela nunca o deixaria saltar em seu estado.

           Sam afrouxou a pressão sobre seu peito e ele se sentou. Para seu alívio, ele grunhiu, mas não ficou pálido. Os dois olharam seu peito e a camiseta, sob o cinto. Havia sangue, mas a metade da camiseta conservava sua cor original. Sam se colocou atrás dele. O ponto de saída estava ainda melhor.

           Ela começou a ficar de pé. Ian agarrou-a pela mão e puxou-a para que voltasse a ficar de joelhos. Seus olhos e suas bocas ficaram no mesmo nível. Ele a olhou fixamente, sem vacilar.

           — Obrigado.

           Sam molhou os lábios. Ela desejava abraçá-lo, mas não faria isso, é obvio.

           — Pelo que?

           O olhar de Ian se tornou inquisitivo. Passou um momento. No meio do silêncio, Sam ficou ciente do som automóveis lá fora. Pareceu ouvir uma buzina ao longe.

           — Por me ajudar a voltar.

           Ela procurou seus olhos.

           — Não tem importância — mentiu.

           — É a pessoa mais valente que conheci — respondeu ele.

            Sam ficou calada. Aquele não era momento para brincadeiras. Ian falava sério. Ele comentou sobre a sua coragem antes, e ela não tinha certeza onde ele queria chegar com isso agora.

     — Na verdade, não tenho escolha — recordou, de novo, o estupro e o assassinato de sua mãe.

            — Sempre há escolha — ele disse. Tocou subitamente sua bochecha. — E é tão bela, tão quente... Eu te desejo Sam.

           — Agora? — ela parecia incrédula.

           Ele grunhiu de dor, mas sorriu.

           — Eu te desejei em Oban. Naquele dia, decidi encontrá-la e fazê-la minha. Ainda te desejo como naquele dia — ele hesitou.

            — O que foi?

            Ele sacudiu a cabeça, mas não respondeu.

            Ela sorriu, tentando não pensar sobre a revelação chocante que ela acabava de ter sobre seu próprio passado. — Bem, o sentimento é mútuo.

            O semblante de Ian mudou.

     — Eu sou um covarde — disse ele levantando.

            Sam também levantou.

     — Isso não é justo.

            — É a verdade. Vejo um demônio, qualquer um que seja, e fico doente de medo — deu de ombros, esquivando seu olhar. — O monge me aterroriza.

           — Talvez você sinta medo quando enfrenta ao mal, mas mesmo assim luta. E isso faz de você tão valente quanto eu, ou até mais.

           — Não me transforme em seu herói — respondeu ele com suavidade.

           Sam teve a terrível sensação de que ele ouviu sua íntima declaração de amor.

           — Os playboys da alta sociedade que ficam asquerosamente ricos roubando seus amigos, ainda mais ricos que eles, não podem ser heróis, nem mesmo quando têm poder branco.

           Ele sorriu.

           — Então, está tudo esclarecido.

           — Certamente que sim — disse ela.

           Ian ficou olhando para ela. O coração de Sam deu uma cambalhota. Seu olhar era tão intenso, tão pensativo... Ian olhou para sua boca.

           A noite passada ele a beijou como se não houvesse amanhã. Talvez ele tivesse visto o futuro: seu futuro. Sam ficou abalada. Eles tinham futuro? Ele era Ian Maclean, um playboy rico e egoísta, e embora visse a luz e se unisse aos bons, ele pertencia ao século XVI.

           — Vamos sair logo daqui.

           Ian tinha uma expressão divertida. Estendeu a mão para sua bochecha e fez uma careta de dor. Mas levantou seu rosto com dois dedos. O coração de Sam explodiu de emoção.

           Como se adivinhasse isso, ele esboçou um sorriso arrogante e satisfeito. Depois, seu sorriso desapareceu, inclinou-se e suas bocas roçaram. Sam estremeceu.

           Precisava estar com ele de novo. Mas dessa vez seria diferente. Porque seu coração transbordava de amor.

           Ele acariciou sua boca suavemente, afastou-se e seus olhares se encontraram.

           — Preparados para negociar? — perguntou o monge de Carlisle.

 

 

           A expressão de Ian endureceu e seus olhos brilharam.

           Sam se aproximou dele, atrás de Carlisle havia três enormes valentões, vestidos com camisas polo mal ajustadas e jaquetas extravagantes. Sam compreendeu por seus olhos inertes que eram subdemonios, embora parecessem guarda-costas da Máfia com sobrepeso. Suas roupas indicavam que estavam nos anos setenta.

           — Está se sentindo melhor, Ian? — perguntou o monge com um sorriso cruel. — Estou muito aliviado. Embora não achasse que você fosse morrer tão facilmente — ele riu. — Eu o conheço muito bem.

           Ian exalou. Sam olhou para ele e tocou seu braço em advertência. Aquele não era momento de entrar em combate. Mas Ian estava tão furioso que ela sentia sua raiva. Era explosiva.

           — Você sempre foi um covarde — disse Ian suavemente. — Mas eu era jovem demais para perceber isso.

           O rosto do Carlisle ficou feio de repente.

           — Não sou eu quem tem medo. Não fui eu quem se tornou um escravo voluntário e obediente.

            Ian tremeu.

     — Eu era um menino de nove anos nas mãos de um demônio sanguinário.

           Sam pegou sua mão.

           — Ian, não.

           Ele a afastou bruscamente.

           — Você fingia ser meu melhor amigo. Fingia ser como um pai para mim. Mas todas as noites eram iguais. E depois havia seu jogo de véspera de Ano Novo. Agora você é ainda mais covarde. Fez que me cravassem uma lança enquanto eu estava inconsciente — ele cuspiu, tremendo. — Que corajoso!

           Sam se sentiu de novo doente ao pensar no que Ian havia suportado desde pequeno.

         — Ian, não se incomode — disse. — Você não vai ganhar essa discussão!

           — Mas me diverte — o monge sorriu. — Assim como me divertia ser seu amigo quando era pequeno. E brincar com você. Você era tão fácil de manipular, de escravizar, Ian... Esperava por um desafio maior agora.

           Sam olhou para o semblante duro de Ian e a expressão zombadora de Carlisle. Sabia que Ian ardia e queria destruir o monge. Mas temia que ele tentasse fazer isso. Fracassou uma vez, antes acabar ferido. Não poderia ter sucesso agora. E ela odiava o fato de que ele era um prisioneiro novamente, praticamente indefeso.

           — Está brincando com você. Está tentando confundi-lo.

           — Tem razão — disse Ian. — E estou farto de jogos.

           Carlisle riu.

           — Porém novos jogos o esperam. Eu vivo para o prazer e a dor, e você voltou a ser meu prisioneiro.

            Ian respirava agitadamente.

       — Se acha que vou te dar satisfação eternamente, você está errado. Antes disso, me mato.

           Sam sabia que ele falava sério. Eles tinham que fugir de alguma forma. Mas o poder do Carlisle era assustador.

           — Verdade? O pequeno Ian se transformou em um homem muito viril — disse Carlisle suave. — Eu vi a gravação.

           Ian se lançou para ele, mas Sam o puxou para trás. Ele se soltou, mas não voltou para Carlisle.

           — Que fantástico — murmurou Carlisle. — Você está gostando dela. Talvez o melhor caminho para feri-lo seja por ela.

           — Deixe Sam em paz. Isto é entre você e eu — replicou Ian asperamente.

           — Se ferindo ela eu machuco você, está claro que Samantha faz parte disto — respondeu o monge pensativo. — Na catedral, você se esforçou para encontrá-la.

           Sam pensava a toda velocidade.

           — Ele está tentando provocá-lo, Ian. Temos uma coisa que ele quer — Ian estava muito fraco. Se as coisas ficassem feias, sua vida podia correr perigo. Sam olhou para o monge. — Ian tem razão, você é um covarde repugnante — disse, e se colocou perto de Ian. — Deixe-me adivinhar. Você quer a página.

           — Como você é inteligente Sam.

           — Prefiro morrer a te dar mais poder — disse Ian duro.

           Sam lançou um olhar para ele. Ian falava sério. E ela percebeu que a camiseta estava mais vermelha que antes. Ian voltou a sangrar.

           O monge levantou suas loiras sobrancelhas.

           — Mas eu não o deixarei morrer... nunca. Certamente já sabe disso. Ian tremeu. — Estou muito feliz de ter você aqui novamente. Você viverá séculos em meu novo labirinto — acrescentou. — Mas vou deixá-la morrer.

            Enquanto Ian tremia de fúria, Sam tentava refrear sua própria raiva. Carlisle gostava de manipulá-los. Era um sádico.

            — Carlisle, Ian morrerá se continuar sangrando. Imagino que sabe disso.

           — Sam, com certeza, eu não vou permitir que ele morra. Quero que passe o resto de sua vida tentando se esconder de mim em meu novo labirinto, depois de vê-la morrer. A menos que coopere, claro.

           Sam compreendeu que falava sério.

           — Você não sabe que seus dias estão contados? Mesmo que eu morra, que Ian morra, garanto-lhe que Nick acabará com você. Mas você não vai nos matar porque quer a página de controle da ilusão e nós a temos. Você precisa de nós.

           — Sim, vocês têm essa página e eu a quero. E farei tudo o que for necessário para consegui-la.

           Ian tocou a mão de Sam e ela olhou para ele. Seus olhos se encontraram.

           Não vou permitir que ele consiga esse poder.

           Sam ignorou o comentário. Ela estava disposta a fazer o que quer que fosse para salvar Ian, inclusive entregar a página a Carlisle.

            Você está bem, Ian? Está sangrando outra vez.

           Eu estou bem. Eu quero você fora disto.

           Ian a olhava sem vacilar. Sam decidiu não responder. Aquela página era sua chave para a liberdade, e talvez para a felicidade e a paz.

           Sam olhou para Carlisle, que sorriu.

           — Sim, eu ouvi Ian. E a você também. Está ciente de que, se cooperar, poupará uma provação terrível e, depois, a morte? — Carlisle se virou para os valentões e fez um gesto com a cabeça.

           Os três possessos avançaram para eles. Sam compreendeu que iam fazer algo contra Ian.

            — Pare! — ela gritou em pânico. — Pare o que você pretende fazer! Já disse que traremos a página.

           Ian também sabia que eles queriam atacá-lo, porque levantou a mão em sinal de advertência. Sam se perguntou quanto poder ainda tinha.

           — Se tentar usar seu poder, eu usarei o meu e nós dois sabemos quem ganhará — disse Carlisle com calma. — Prendam-no.

           Sam e Ian se olharam enquanto os três homens o agarravam pelos braços. Ian empalideceu quando retorceram seus braços para trás. Então, Sam viu a seringa.

           — Não! — gritou. — Não é necessário. Carlisle solte Ian. Ele tem a página e pode trazer-lhe isso. Pode me manter refém até que volte.

           — Uma proposta interessante — disse Carlisle. Ele fez um gesto de assentimento ao homem calvo que segurava a seringa.

           Sam gritou. Ian tentou se soltar, mas os outros dois valentões o seguraram com força. O terceiro guarda cravou-lhe a agulha no braço.

           — O que é isso? — exigiu Sam, furiosa. Ela estava assustada porque Ian desabou subitamente nos braços dos dois valentões.

           Carlisle viu como o estendiam sobre o chão duro.

           — Um sedativo, é claro. Um sedativo muito potente. Afinal de contas, ele é o filho de Aidan de Awe. Essa droga mataria um mortal, mas ele sobreviverá.

            — Ele perdeu uma tonelada de sangue! — gritou Sam. — Precisa de um médico ou um Curador. Ainda está sangrando, maldito!

           Carlisle riu dela.

           — Traga-me a página do poder da ilusão, Sam, e eu deixarei que Ian viva — parou diante dela e tocou sua bochecha. Sam recuou. — Talvez eu refreie minha libido e meu desejo de infligir dor a alguém... se você voltar logo.

           Ela não podia suportar a ideia de que Ian estivesse em poder do monge nem um segundo mais.

           — Se tocar nele enquanto estiver fora, não entregarei a página a você.

           — Eu já não aceito ordens de ninguém. Quando os efeitos da droga começarem a desaparecer, ele precisará de incentivo para permanecer fraco e indefeso, não acha? Começaria a torturá-lo enquanto ainda estivesse sedado. A dor ficaria amortecida, mas não desapareceria.

            — Está doente, sádico filho de uma cadela. — disse Sam.

           — Eu sou um demônio — Carlisle parecia divertido. — A dor me excita. Me dá poder — cravou o olhar no dela. — E eu gosto mais dos meninos que de garotas.

           Sam agradeceu que Ian estivesse inconsciente e não pudesse ouvir o monge.

           — Está bem, trarei a página para você. Solte-me, eu sei que vou conseguir. Faremos uma troca. A página por Maclean — engoliu em seco. — Trarei uma equipe médica comigo. Eu o quero vivo... e intacto.

            Carlisle zombou.

           — Você não pode me impor condições, Sam. Está apaixonada por ele. Não entende que é por isso que sempre perdem os mortais? Suas emoções são um obstáculo para que vençam nesta guerra. Você me dará a página embora devolva Ian agonizando. Não vai, Sam?

           Por um momento, ela olhou para ele com raiva extrema e impotente, sem palavras. Ele estava certo. Se ela voltasse e encontrasse Ian às portas da morte, ainda assim ela iria entregar a página.

           No chão, aos seus pés, Ian se agitou. Sam se ajoelhou imediatamente.

           — Eu voltarei para você, Ian.

           Suas pálpebras se moveram, mas não abriu os olhos. Ela pôs uma mão sobre sua bochecha. Notou com horror que estava febril. A ferida da lança estava infeccionando. Levantou o olhar.

           — Ele precisa de um médico, maldito! Precisa de antibióticos!

           — Então eu acho que você deveria se apressar. Você não acha?

           Sam baixou o olhar e, ao fazê-lo, ele abriu os olhos.

           Não lhe dê mais poder, Sam.

            — Eu tenho que fazer isso — disse Sam. — Não posso deixá-lo aqui.

            Os olhos vidrados de Ian brilharam.

            Sim, você pode me deixar. Pode sair sem olhar atrás...

           Ele queria que o torturassem? Queria morrer? O monge a agarrou pelo braço e a obrigou a se levantar. Sam se soltou violentamente.

           — Se não me trouxer a página, ele desejará estar morto.

           — Já disse que a trarei.

           — Não se confunda a respeito de minhas intenções. Ian não morrerá Sam. Mas sofrerá.

            Ela olhou para Ian, que se esforçava por manter os olhos abertos.

           — Eu não estou indo embora. Eu voltarei para buscá-lo.

           Ele a olhou de repente fixamente.

           — É verdade — Sam ouviu a si mesma. — É como me sinto. É tudo verdade.

            E, apesar das drogas, Ian a olhou com surpresa. Ao sair escoltada, Sam ouviu Carlisle rindo deles, sentiu-se enojada. E teve medo do que o monge poderia fazer com Ian.

           

            Sam olhou a imponente grade que dividia a avenida da mansão de Ian em Loch Awe. Daquele ângulo, a mansão de pedra parecia flutuar sobre o lago púrpura, apesar de estar construída em sua margem. Sam não se moveu. Algumas estrelas começavam a surgir no céu escuro. Gerard abriu a porta do passageiro. Estava sentado ao seu lado.

           — Vou usar o código, senhorita Rose.

           Ela concordou sem sequer olhar para ele. Pensou no ano passado, quando esteve ali com seu vestido vermelho sexy, esperando chegar a um acordo com Ian na segunda vez em que se viram.

           A memória doía muito.

           Achou engraçado saber que Ian tinha mordomo.

           — Não sabia que Sua Excelência estivesse esperando mais convidados — disse Gerard então com visível desagrado. — Ele não me espera. Abri as portas com meus superpoderes.

           Gerard não sentiu simpatia por ela instantaneamente. Sam havia entrado sem se deixar anunciar apenas para descobrir Ian esperando por ela.

           Ian estava lá, esperando por ela, mais quente, mais lindo e mais arrogante do que nenhum homem deveria ter o direito de ser.

            — Estava me perguntando quanto tempo você demoraria para me encontrar — havia dito a ela.

           — Nos seus sonhos.

           Ian estava sensual e sugestivo desde o começo. Ignorando sua acompanhante e seus demais convidados, ele a comeu com os olhos.

            — Bem-vinda ao meu lar — passou uma taça de champanhe.

           — Seu pai era o lobo.

           — Tal pai, tal filho.

           A tensão entre eles foi instantânea e insuportável. Ian a levou a um salão adjacente para que pudessem falar em particular. Sam tinha intenção de manipulá-lo. Mas foi ele quem jogou com ela.

           — Eu não estou pedindo um favor, Maclean.

           Ele riu.

           — É obvio que não. Você acha que eu sou Papai Noel.

           Gerard voltou a subir no carro enquanto a grade abria. Sam olhou para ele sombria e colocou o carro alugado em marcha. Seu coração batia com violência.

           — Tire o vestido. Eu quero ver o que você tem a oferecer. — Ian nem sequer deu a ela a oportunidade de fazer um trato.

           — Você é um bastardo inacreditável.

           Ele riu.

           — Já ouvi isso mil vezes. O que há de errado? Você tem medo das luzes?

            Sam levantou as alças de seu vestido e o deixou escorregar por seu corpo nu. O sorriso de Ian se apagou.

           — Dê uma boa e longa olhada, porque esta será a última vez.

           Ele levantou as espessas pestanas. Seus olhos cinza brilhavam.

           — Esta é a primeira, Samantha, não a última.

           Sam parou o carro diante da enorme casa de campo. Não fez nenhum gesto de sair do carro, embora estivesse com pressa. Achava que jamais perdoaria Ian, e no entanto o perdoou.

           Aquela lembrança a estava matando. Esperava que, ao cruzar a porta da mansão, Ian estivesse ali, arrogante e debochado. E que a desejasse. Mas Ian não estava ali dentro. Estava em algum lugar do Brooklyn, prisioneiro de um demônio terrível, possivelmente sendo torturado. Permitiram que ela partisse, a deixando na esquina de uma rua. Demorou um momento para perceber onde estava. Viu em um jornal, em um quiosque, que era 22 de julho de 2009. Carlisle os trouxe para o presente, um dia depois da sua última estada na cidade. Era o dia de seu aniversário e o homem a quem amava — sim, o amava — corria perigo de morte.

           Porque, embora não o matasse fisicamente, Carlisle acabaria com o que ficasse de sua alma. Durante a semana que passou, Ian mudou. Seu sarcasmo, sua indiferença desapareceram. Sua máscara começava a cair. E abaixo dela começava a aparecer o homem de carne e osso. Sorriu uma ou duas vezes. Parecia se preocupar com coisas pequenas. E por coisas não tão pequenas. Como o mal. E ela.

           Ele não queria vê-la morrer.

           E ela não queria que ele sofresse nem um segundo mais.

           Sam se sentiu tentada a ir diretamente ver Nick na HCU. Mas Nick queria que a página ficasse em poder da agência. Ele não permitiria que ela a entregasse ao monge.

           Sam pegou um táxi, tirando literalmente o condutor do assento e roubando o carro. Foi diretamente para a casa de Maclean. Se alguém sabia onde estava escondida a página em sua casa em Awe, era Gerard. Gerard, entretanto, não sabia. E não mentiu a respeito. Sam contou em que situação Ian se encontrava. O mordomo aparentava calma, mas ela sabia que ele estava angustiado.

           O seguiu até a porta principal, com sua bolsa cheia de armas. Na última vez que esteve em Awe, estava totalmente focada no confronto com Ian. Ela permaneceu no foco dele agora, mas por razões diferentes. Viu que havia duas pequenas câmeras em cima da porta.

            — Essas câmeras estavam aí no ano passado? — perguntou a Gerard ao entrar.

            — Sim — respondeu o mordomo. — Sua Excelência acredita na maior segurança possível.

            — Mas não se importa que roubem sua coleção de arte, não é verdade?

           Gerard olhou nos olhos dela enquanto acendia as luzes.

           — Não, senhorita Rose, não é isso que o preocupa.

           Aquelas câmeras eram para gravar demônios, a Sam não tinha dúvidas disso. Olhou na entrada do hall e viu mais três câmeras.

           — Dividiremos a casa como acordamos no avião.

           Ele assentiu com a cabeça.

           Sam tinha a intenção de ir ao aeroporto JFK, de Nova Iorque, e pegar o primeiro voo que saísse com destino a Edimburgo, mas Gerard não quis nem ouvir falar do assunto. Ian era cliente de um serviço de aviões particulares, e seu voo estava preparado em poucos minutos. Durante o voo de sete horas, Gerard e ela repassaram com detalhes a planta da mansão. O lugar mais óbvio para procurar a página era o cofre que Ian tinha em sua suíte master.

           Sam já tinha a combinação. Memorizou a planta que Gerard descreveu e correu escada acima. Mas assim que entrou no dormitório principal e acendeu a luz, ela vacilou. A gravação foi feita naquele quarto.

           Ficou parada na soleira, olhando a cama clássica, com seus pilares de madeira escura e sua cabeceira, sua colcha de pesado brocado verde e ouro e suas almofadas. Depois olhou o teto e viu duas câmeras.

           Olhou ao seu redor. Também havia câmeras de ambos os lados da porta. Ela voltou ao corredor. Havia câmeras por toda parte. Ninguém seria capaz de se mover naquela casa sem estar em uma gravação de vídeo. Entrou de novo no quarto. A enorme cama se elevava diante ela. Eles ainda não haviam feito amor ali. Mas, quando fizessem, ela já saberia que havia câmeras. Saberia que, algum dia, alguém do passado entraria naquela casa, levaria a gravação e tentaria usa-la contra ela.

           Mas isso não importava. Ian precisava da segurança que aquelas câmeras proporcionavam. Seu sistema de segurança tinha que lhe dar alguma pequena paz de espírito, para saber que gente como Carlisle não estava dentro de sua casa. As câmeras ficariam onde estavam. E possivelmente, quando chegasse o dia em que estivessem juntos naquela cama, nem sequer passaria pela cabeça dela que eles estavam sendo gravados.

           Ela estava se distraindo, pensou severa. Passou junto à cama e tirou da parede um enorme quadro do século XVIII que representava um cavalo puro-sangue. Em seguida, ela rapidamente abriu o cofre. Tirou algumas joias e pilhas de dinheiro, dólares em sua maioria. E então viu o envelope.

           A página tinha dezenove centímetros de comprimento e doze de largura. O envelope que havia dentro da caixa era um pouco maior e Sam o manipulou com cuidado. Mas no momento em que ela o pegou, se decepcionou: o que quer que estivesse dentro era algo duro.

           Um DVD em uma capa de plástico deslizou por sua mão. Ficou quieta. Que demônios havia naquele disco?

           Não, pensou assustada. Aquela não era a mesma gravação que recebeu de Hemmer. Ela não sabia o porquê de tal pensamento traiçoeiro ter passado por sua mente. Um momento depois, estava vendo o DVD no computador do escritório.

           Não era a mesma gravação. Era outra diferente. Mas seus protagonistas eram Ian e ela, e estavam naquela cama, amando-se apaixonadamente.

           Ian tinha em seu poder outra gravação em que eles faziam amor. Uma gravação que procedia do futuro. Sam não sabia o por quê.

          

            Hemmer entrou em seu cofre e parou diante do quadro que tinha em frente. Parecia tranquilo e dono de si mesmo, como sempre, mas estava furioso.

           Nick Forrester destruiu o hall de entrada e grande parte das valiosas obras de arte. O apartamento podia ser reconstruído, mas o Vlaminck, o Dalí e os Tintorettos eram insubstituíveis.

           Hemmer levou décadas evitando a CDA. E estava farto deles. A agência, entretanto, não era mais que uma mosca que revoava ao redor de seu império, incapaz de fazer algum dano real. Quanto a Forrester, ele destruiu suas apreciadas obras de arte por Sam Rose, sua agente. Hemmer não viu motivo para dizer a verdade: que ele a levou para a catedral do Carlisle, em 1527, e que ela escapou.

           Apesar de sua raiva, Hemmer sempre triunfou. Ele era um homem extremamente ambicioso. E isso era o que o distinguia dos outros, inclusive demônios. Carlisle ansiava por dor e prazer com a mesma intensidade com que ansiava poder, e isso era um erro. O poder vinha sempre em primeiro lugar. Talvez porque fosse humano, mas a dor não o interessava especialmente, exceto como ferramenta ou como arma. Ele gostava do prazer, mas também era mundano e passageiro. O que de verdade o interessava, o que o obcecava, era o poder. Por ele, era capaz de fazer tudo. Já fez de tudo por poder. E seus milhares de milhões de dólares não bastavam para comprar o poder que ambicionava.

           Hemmer aproximou-se da magnífica paisagem de Courbet. Ele ocupava o décimo quinto lugar entre os homens mais ricos do mundo. Todos os príncipes e os xeiques que o superavam em riqueza eram demônios ou mestiços. De fato, era o humano mais rico do planeta. Mais rico inclusive que Bill Gates. Mas não isso não era suficiente.

           Carlisle era um idiota. Certamente estaria gozando, fazendo Maclean sofrer, tão absorto em seu prazer que teria perdido de vista o verdadeiro tesouro. Hemmer, ao contrário, nunca perdia de vista o que queria, nem sequer durante o sexo.

           Removeu cuidadosamente o quadro da parede e sorriu ao ver a inscrição brilhando abaixo dele. Vendeu sua alma por aquela rubrica do diabo. Os hieróglifos, que datavam do princípio do mundo, diziam que aquilo significava que ele já não era dono de sua alma e que ele pertencia aos Escolhidos. Ser um Escolhido significava que ele podia esconder sua maldade como desejasse. Que podia mover-se pelo mundo com total segurança, protegido dos deuses e de seus santos. Significava que era Adorado pelo Grande Pai. E significava também que nenhum Deus podia entrar em seus domínios.

           Hemmer passou as mãos com reverência pelas palavras resplandecentes. Tinha riquezas e tinha todos os poderes elementares que certos Deuses antigos concederam às diferentes irmandades criadas para combater o mal. Mas ambicionava os poderes mais elevados. Ocultava cuidadosamente seus poderes, e conseguiu com isso mais poder e mais riqueza. Ansiava, certamente, possuir o poder da ilusão. Havia décadas que ardia em desejo por consegui-lo e não permitiria que Carlisle se apoderasse dele com exclusividade. O monge, naturalmente, tentaria ficar com ele, nem que, para isso, tivesse que matá-lo. Mas não ia ter sucesso.

           — Me diga o que tenho que fazer — disse em voz baixa. — Você sabe o que pretendo. Preciso desse poder, me dê os meios, Grande Pai da Escuridão.

           Não era fácil invocar Satanás. Só se viram uma vez, no dia em que ele entregou sua alma em troca de poder terrestre. Hemmer não tinha certeza de ele que fosse responder outra vez, mas falava sério. Ele estava determinado. Era um grande negociador. E o Grande Pai sabia.

           Acariciou de novo a inscrição, que ardia sob sua mão. Pensou em como utilizaria o poder de que pensava se apoderar de uma maneira ou de outra. Fantasiou, imaginando que teria centenas de milhões de pessoas sob seu controle, e o sonho do poder absoluto o fez cair em uma espécie de transe. Notou vagamente que a temperatura caía bruscamente dentro do cofre. Sob sua mão, a parede era agora como gelo negro.

           Virou-se.

           Uma sombra negra enchia a soleira do cofre. Ele era o dobro do tamanho de Hemmer e não tinha olhos, nem boca, nem nenhuma outra característica, mas brilhava em algumas partes como brasas queimando. Sua voz era grave e profunda.

           — Tenho uma alma para você.

           Hemmer se assustou. Não era aquilo o que queria. Queria os meios para conseguir a página do poder da ilusão.

           Sentiu Satanás sorrir.

           — Se aceitar essa alma dentro de seu corpo, terá tanto poder que talvez nem sequer queira a página, Rupert. Possivelmente nem sequer precise dela.

           A mente do Hemmer funcionava vertiginosamente. Que alma estava lhe oferecendo? Hitler? Stalin?

           — Isso não importa — a sombra mudou. Agora parecia mais humana. Uma boca emergiu entre os torvelinhos negros e vermelhos que formavam sua figura. — Mas, se você aceitar o que te ofereço, haverá aqueles que não irão parar por nada para te vencer.

           Hemmer tremeu. Sua sede de poder fazia com que seus joelhos fraquejassem.

            — Você terá o poder da possessão — acrescentou Satã, e riu.

           Só alguns demônios tiveram esse poder ao longo da história. Nunca um ser humano. Hemmer ficou tenso mal podia respirar.

           — Sim — disse com voz rouca. — Sim.

           Um raio de energia negra se dirigiu para ele. Por um momento, sentiu que uma lança partia seu corpo físico em dois. Ele engasgou. Quando se ergueu, a sombra desapareceu. Fazia mais calor na sala. A inscrição da parede já não brilhava.

           Sentiu um poder transbordante dentro de si. Agora sabia que podia olhar qualquer um e penetrar em seu ser, possuindo-o e obrigando-o a fazer sua vontade. Sorriu devagar e flexionou os dedos. Sentia também o poder físico da morte dentro de si. Se ele apontasse, poderia matar.

           Havia também um torvelinho de lembranças que pertenciam a outra pessoa. Havia ódio e fúria, mas isso não importava. Não lhe interessavam as lembranças daquela alma, sua vida, nem seus desejos. Ele amava o poder que carregava. Rupert Hemmer continuava sendo mais esperto que todos eles. Ninguém entendia o que podia fazer o poder da ilusão, mas ele sim. E já sabia o que faria quando o tivesse.

           Criando a realidade virtual que escolhesse, poderia se apoderar da cidade, do Estado, do país e do mundo, lentamente, mas com toda segurança. Eempresa por empresa, corporação por corporação, governo por governo.

           Ele riu. Mas em primeiro lugar estava à vingança. Embora a vingança fosse outra.

 

           Sam estava vasculhando o segundo andar da casa quando ouviu vozes subindo pela escada, ficou quieta, cheia de incredulidade.

           — Sam? — gritou Tabby. — É você? Dissemos que a ajudaríamos e aqui estamos!

           Sam saiu correndo do quarto de hóspedes e viu Tabby e Brie subindo pela escada. Demorou um segundo para compreender que vinham do castelo de Awe, de 1527. Estavam vestidas como da última vez que as viu. Correu ao seu encontro pelo corredor.

           Tabby agarrou suas mãos.

           — Graças aos Deuses que a encontramos!

           — Como sabiam em que ano eu estava? — exclamou Sam. Ela lhes disse que Ian escondeu a página em Loch Awe no presente, mas ela não foi específica.

           — Aidan te ouviu pensar em seu aniversário, então nos decidimos por este dia — Brie a abraçou. — Feliz aniversário, Sam.

            — E pensar que eu estava preocupada em passá-lo sem vocês, garotas!

           Tabby colocou a mão no seu ombro.

— É seu primeiro aniversário desde que fui embora com Guy, mas para mim foi tão duro, Sam. Especialmente os primeiros anos. Passei muitos dias do seu aniversário sozinha, me preocupando com você. Cheia de saudades.

           Sam olhou para ela.

           — Para mim ainda é muito estranho que para você tenham passado mais de duzentos anos e para Brie um par de décadas. Mas não deveria se preocupar comigo, Tabby. Já sabe.

           Sua irmã a olhou com olhar de professora.

           — Sempre me preocuparei contigo. E agora, me preocupo com você e Ian.

           Sam exalou um suspiro, disse a si mesma que deveria esquecer a gravação até que Ian estivesse livre.

           — Temos que encontrar a página — disse muito séria. — O monge está com Ian em um armazém no Brooklyn, e tenho medo do que pode estar fazendo com ele — mas enquanto falava pensava na gravação, sentia-se traída, e também perplexa.

           Tabby e Brie trocaram um olhar.

           — Sabe onde está esse armazém? Porque Aidan está disposto a destruir o monge com suas próprias mãos — disse Brie. — É como se estivesse revivendo o passado outra vez.

           — Eu não sei onde ele está exatamente. Aidan deveria procurar ajuda e começar a procurar enquanto nós tentamos encontrar a página.

           — Vou dizer isso a ele — disse Brie, e voltou a descer correndo as escadas.

           Tabby a agarrou pela mão.

           — Eu fiz um feitiço para que a ferida desta lança não fosse tão grave, Sam.

           Sua irmã a olhou.

           — Então foi por isso não gritava e sangrou tão pouco? Foi bastante fácil deter a hemorragia até que Carlisle apareceu.

           — Acredito que sim. Isso espero. O feitiço era geral. Se voltarem a feri-lo, suportará melhor a dor — respondeu Tabby com cautela.

           Sam a abraçou com força. Para sua surpresa seus olhos embaçaram.

           — O que foi? — sussurrou Tabby.

           Sam respirou fundo.

           — Droga... Eu me apaixonei — mas Ian viu essa gravação antes que se encontrassem na festa de Hemmer. Entretanto, não moveu uma só pestana quando ela mostrou a ele o DVD. Ele mentiu para ela por omissão.

           Ela simplesmente não entendia o que significava aquilo. Mas primeiro as coisas mais importantes. Ela não acreditava que Ian pudesse sobreviver a um longo cativeiro nas mãos de Carlisle novamente.

           Tabby sorriu. Ela também tinha os olhos úmidos.

           — Me diga algo que eu não saiba — disse. — Você está muito angustiada.

            Sam não queria dizer a Tabby sobre a gravação, apesar de que entre elas nunca houve segredos. Era quase como se quisesse proteger Ian e não lhe mostrar seu pior lado à sua irmã.

           — Estou aterrorizada. Quero matar Carlisle com minhas próprias mãos pelo que fez com ele quando menino e pelo que está fazendo agora.

           Tabby a rodeou com o braço.

           — Eu acho que é hora de recorrer aos velhos feitiços das Rose — Sam olhou para ela. — Vamos ordenar à página que venha até nós, Sam.

           — Você pode mesmo fazer isso?

           — Acho que sim — Tabby sorriu. — Mas Brie e eu trabalhamos melhor quando estamos com Allie e Claire.

            Sam se surpreendeu.

            — Eu adoraria voltar a ver Allie. Quem é Claire?

            — Uma de nós, Sam. Não é uma Rose, mas conhece alguns truques e seu marido é Malcolm de Dunroch, um grande Mestre. Você vai gostar dela. É uma guerreira. E eles estão lá embaixo, esperando.

            Eles escolheram a biblioteca no térreo para fazer o feitiço de Tabby. As cinco sentaram-se em círculo, no chão, na sala em penumbra, iluminada pelas velas, com as cortinas fechadas. Tabby caiu em um transe profundo e começou a murmurar seu encantamento em gaélico. Sam não entendia o que ela dizia, mas não se importava. Se as circunstâncias não fossem tão horríveis, o fato de estarem juntas de novo seria um sonho virando realidade.

           Passou o olhar ao redor do círculo, ficou emocionada ao voltar a ver Allie, e satisfeita em ver sua intrépida amiga vestida com jeans, uma bonita camiseta e botas de salto alto. Allie Monroe jamais passearia pela Escócia medieval com roupas medievais. Agora era muito mais poderosa que antes: transbordava poder branco.

           Sam também gostou de Claire à primeira vista. Era alta e muito séria. Mas provavelmente foi sua determinação o que a atraiu imediatamente. Não havia dúvida de que Claire sabia lutar: estava bem armada e se comportava como uma autêntica guerreira. Sam achou engraçado que usasse calça jeans sob seu comprido vestido de linho.

           Claire também tinha uma tonelada de poder branco. Quase parecia um Mestre, mas feminina.

 

           Sam teve oportunidade de ver por um breve momento Malcolm e Royce, dois dos homens mais atraentes que conheceu. Apaixonou-se por Ian, mas não era cega, e não pode evitar olhar para eles com atenção. Sobretudo, porque estavam com as pernas nuas.

           Agora estavam todas concentradas na página do poder da ilusão e nos Deuses antigos. Tabby, aparentemente, esperava que a ajudassem. Mas Sam não podia se concentrar. Continuava vendo Ian, sedado e ferido, sobre o chão de cimento do armazém. Depois pensava na maldita gravação e sentia um desânimo infinito.

           Desejava que houvesse uma explicação razoável, uma razão que pudesse aceitar, que não a obrigasse a afastar-se dele quando sua relação estava apenas começando.

           Exceto, entretanto, que era absurdo pensar que entre eles havia uma relação! E se não se concentrasse na página e a encontrasse, não haveria nenhum começo para eles, apenas um terrível fim.

           Percebeu que Tabby ficou calada. Ela abriu os olhos e viu que sua irmã a olhava severamente. Sam ruborizou.

           — Não posso me concentrar se estiver tão distraída — Tabby soltou as mãos de Claire e Allie e se levantou.

           Sam e Brie também se levantaram.

           — Sinto muito.

           Tabby suspirou quando alguém acendeu a luz.

           — Nunca vamos localizá-la desta forma. Você tem que se concentrar Sam.

           Sua irmã tinha razão. Quando Allie alcançou a porta ela se abriu de repente e Gerard apareceu segurando um pergaminho amarelo. O poder da página encheu o quarto.

           — Eu estava descendo a escada quando isto apareceu voando — exclamou o mordomo. — Flutuava no ar.

            O encantamento de Tabby funcionou, pensou Sam assombrada, enquanto sua irmã pegava cuidadosamente a página.

           — Quanto poder há aqui — disse Tabby em voz baixa. Depois se virou para Sam. — Seria terrível que o monge desencadeasse este poder.

           Sam a olhou fixamente.

           — Eu não tenho escolha.

           Tabby olhou para as outras. Allie disse:

           — Faça isso, Sam. Eu faria por Royce. Todas faríamos o mesmo por nossos homens.

           Sam estendeu mão para a página quando ouviram um estrondo abaixo. Parecia que alguém quebrou a porta. Um instante depois se ouviu outro baque, como se alguém, se um homem fosse arremessado contra uma parede. Sam não sentiu indícios de maldade. Ao contrário. A casa de Ian em Loch Awe estava cheia de poder branco desde que as mulheres chegaram com seus maridos. Malcolm e Royce foram ao Brooklyn para ajudar Aidan a procurar Ian, porém, Macleod continuava na parte de baixo da casa, apenas para o caso de receberem alguma visita inesperada.

           Sam teve um pressentimento. Pegou a página e disse:

           — Traga Macleod, Tabby, por favor, e diga-lhe que me leve à casa de Maclean em Park Avenue — Carlisle disse que iria procurá-la ali quando tivesse a página.

           Tabby correu até porta. Mas Sam olhou além dela e viu que Macleod subia as escadas. Nick estava atrás dele. Sam soltou uma maldição.

           — Um amigo de sua irmã invadiu o local — disse Macleod, visivelmente zangado. — Está procurando Sam, decidi não cortar sua a cabeça, mas farei isso em seguida com muito gosto se você achar melhor — sorriu friamente.

           Nick passou ao seu lado.

           — Olá, Sammie. Fiquei muito feliz em vê-la quando apareceu sã e salva na casa de Maclean, mas você decidiu se rebelar contra mim, não é?

           Nick estava vigiando a casa de Ian, e estava claro que viu Gerard e ela.

           — Não. De modo algum. Sei o que quer e a resposta é não! O monge tem Ian, Nick. Ele está ferido. Gravemente ferido, vou fazer uma troca.

           Nick parecia resignado.

           — Não posso permitir que faça isso. Pelo bem comum e tudo mais. Sinto muito, Sam — fez uma careta ao lançar nela uma descarga de poder.

           Sam deixou escapar um grito e caiu de joelhos. Nick a atacou. Ao levantar os olhos, o viu em pé junto a ela, segurando a página com expressão sombria.

           — Nick! — gritou furiosa.

           Ele desapareceu.

           — Vou buscá-lo — disse Macleod e também desapareceu.

           — Guy! — protestou Tabby, mas era muito tarde.

           Sam tentou levantar. Claire e Allie correram para ajudá-la, mas ela as afastou. Estava fora de si.

           Ian estava nas mãos de um monstro e Nick tinha a página.

           Não tinha nada com que negociar.

           Allie pôs as mãos sobre ela, enviando-lhe poder curativo.

           — Está melhor? — perguntou com um sorriso que contradizia seu olhar preocupado.

           — Não — respondeu Sam levantando-se. — Não estou melhor. Alguém me leve a HCU! — então viu Brie.

           Seus olhos se dilataram, mas pareciam cegos, agarrava-se a uma cadeira para não cair. Sam compreendeu que estava tendo uma Visão.

           Ninguém se moveu. Viram que Brie piscava e recuperava a cor. Por fim abriu os olhos. E as olhou com súbito horror.

           — Ele está de volta — disse.

 

            Brie nunca esteve tão abalada. Estava sozinha, na biblioteca, olhando a lareira vazia e pedindo a Aidan que voltasse para ela.

            Há muito tempo não sentia tanto medo. Não após unir-se a Aidan como seu amante, seu marido e seu melhor amigo. Não desde que derrotaram Moray.

          — Estamos saindo — disse ela secamente do seu modo guerreiro. Usava jeans e pesadas botas de motorista e segurava um bastão de aço. — Nos vemos em Nova Iorque. Lembra-se do código para entrar no loft?

           Brie sorriu fracamente.

           — Claro que sim.

           Sam não mudou na superfície. Ela era tão impressionante e tão feroz. E tão corajosa. Mas na realidade estava diferente. Brie sentia. Sam abriu seu coração novamente, depois de quase duas décadas, e agora sentia compaixão, empatia, amor. Brie sempre soube que esse dia chegaria.

           — Tenho que ir. Estão me esperando — Sam fez ameaça de ir embora, mas parou. — Tem certeza de que Aidan vai ouvi-la? Ele está do outro lado do oceano.

           — Podemos nos comunicar através dos séculos — respondeu Brie com calma.

           Era verdade. Ela não era uma guerreira nem nunca seria, mas estava destinada a ajudar Aidan e à Irmandade com seus dons. Brie foi aprimorando suas habilidades para sentir e ver. Era raro o dia em que ela não sentia a dor de uma criança ou tinha uma visão de tal sofrimento. Aidan tinha que responder como se fosse uma chamada de emergência. Havia-se aficionado a procurar entre as areias do tempo para encontrar e defender os meninos que ela via. Em suas visões sempre havia pistas. Aidan preferia que ela ficasse em Awe enquanto ele cumpria seu dever como Mestre. Era um machista, mas Brie sabia que ele a amava tanto que ficava apavorado por colocá-la em perigo ou perdê-la.

           Aidan nunca a deixava por muito tempo, mas eles se separavam frequentemente. Entre eles podiam estar séculos. Mas não importava. Sempre estavam em contato.

           Sam assentiu com a cabeça e saiu. Macleod e Tabby estavam esperando na outra sala para levá-la de volta a Nova Iorque.

           Brie começou a andar pela biblioteca. Aidan, onde está você? Volte!

           Ela disse a si mesma que não devia entrar em pânico. Aidan tinha muito poder. Ela confiava nele plenamente. Nenhum Mestre era tão forte, tão bom, tão corajoso quanto o seu marido. Mas estava assustada. Sua vida juntos era boa demais para ser verdade. Encontrou o amor de sua vida e não queria perdê-lo.

           Aidan se materializou em meio a uma turbulenta corrente de ar e energia branca e dourada. Aterrissou em pé, com o rosto crispado pela dor do salto através do tempo. Mas era também contra a dor de perder seu filho outra vez. Brie correu para ele e abraçou seu corpo musculoso e trêmulo. Ela esperou a dor física recuar. Quando ele a olhou, ela desejou chorar. Era o homem mais belo que já viu, mas a dor e a ira devastaram suas belas feições. Brie tinha esperança de nuca vê-lo tão angustiado novamente.

           Eles estavam revivendo o passado.

           Aidan se separou dela.

           — Procurá-lo na cidade é como tentar encontrar uma agulha em um palheiro.

           Brie tocou seu rosto.

           — Ian é um homem crescido agora.

           — Que me odeia.

           Ela tentou conter as próprias lágrimas.

           — Mas podemos perdoá-lo porque sabemos o quanto ele suportou.

            — Claro que posso perdoá-lo. Eu amo meu filho. E agora esse bastardo voltou a capturá-lo. Você sabe o que fizeram com ele.

           Seu marido sabia por que entrou na mente de Ian, ansioso para saber a verdade. Brie só podia adivinhar os horrores que seu filho sofreu.

           — Agora ele é um homem, e tem poder e também tem Sam.

           Aidan olhou para ela.

           — A Matadora? Ian só a está usando para transar com ela.

            — Não querido, você está errado. Sam está libertando Ian de seu passado, assim como eu te libertei.

           Aidan a abraçou com força.

           — Estou com medo por ele.

           — Eu sei.

           — Não permitirei que ele volte a sofrer. Desta vez, eu encontrarei e matarei esse monge bastardo — afastou-se bruscamente. Seus olhos azuis brilhavam.

            Brie se limitou a olhá-lo. Seu coração batia com violência. Ele a olhou com espanto.

           — O que está acontecendo? O que está me escondendo?

           Ela abriu sua mente por completo.

           — Moray voltou? — E Aidan, o Lobo de Awe, empalideceu.

          

            — Ele desmaiou de novo — disse o guarda, rindo.

           Ian estava muito quieto, nu sobre o chão de cimento, preso na dor. Estava contando os minutos que faltavam para que retornassem seus torturadores.

           Dessa vez, iria se vingar.

           Dessa vez, destruiria Carlisle.

           Procurou não sorrir enquanto permanecia deitado de barriga para baixo, com os olhos fechados. Suportou suas torturas por um único motivo: a vingança.

           Não sabia se passaram dias ou horas da partida de Sam. Eles bateram nele várias vezes, e não só com os punhos. Ele os ouviu conversar. Tinham ordens de mantê-lo fraco e indefeso, mas com vida. O monge voltou para Carlisle, no século XVI. Após o último espancamento, fizeram nele uma transfusão de sangue e deram antibióticos. Lembrava que um médico o atendeu, recompôs ossos quebrados e fraturas.

           Mas isso foi um erro. Foi um erro dar-lhe sangue e medicamentos. Tinha a impressão de que seu corpo estava quebrado. Seu corpo estava quebrado. Mas sua mente estava intacta. O sangue e a medicação o fortaleceram por dentro, onde realmente era importante.

           Nunca foi tão claro o que devia fazer.

           Sentia tanta fúria...

           E o medo, de algum modo, desapareceu. Ele não sabia por que o medo com o qual viveu toda a sua vida havia desaparecido, mas não importava. Já não era um menino de nove anos, embora durante as surras às vezes a lembrança de seus anos de cativeiro ia e voltava e quando o médico chegou, também. Sam estava com ele todo esse tempo.

           Era como se ela se recusasse a afastar-se do seu lado. Inclusive quando era torturado ele a sentia perto. Sabia que partiu, que o desobedeceu e foi em busca da página. Mas tinha a impressão de que ela estava ali mesmo. Quando a dor alcançava seu ápice, estendia as mãos para ela e encontrava conforto.

           Uma ou duas vezes tentou utilizar sua telepatia visual para encontrá-la, mas estava muito fraco, muito sedado para conseguir isso. Tentou de novo, mas só viu seu rosto desfigurado pela preocupação. Ele sabia que era sua imaginação.

           Sam Rose, a intrépida, preocupada com ele... Apaixonada por ele...

           Ian sabia que devia ter entendido mal. Durante as horas ou dias anteriores, pensou uma e outra vez, assombrado, sobre sua declaração de amor. Sam não podia amar um homem como ele. O filho de um Mestre que nunca seria um Mestre, um quase imortal que utilizava seus poderes para roubar obras de arte, não para ajudar os outros. E o que era ainda pior, que foi um covarde quase toda sua vida.

           Não podia tê-la ouvido bem. Mas o que importava?

           Sam era sua amiga.

           E ela sempre o ajudaria.

           Não queria que trocasse a página por ele, mas Sam ia fazer isso, porque era sua amiga. E, se fosse libertado, ele a teria de volta ao seu lado.

           Apesar da dor, experimentou um sentimento desconhecido para ele. Era tão fraco, tão tênue e estranho que era difícil identificá-lo, perguntou-se se seria alegria.

           — Vamos acordá-lo para o doutor? Ei Maclean, o médico virá te examinar para que possamos nos divertir um pouco mais.

           — Ele está sorrindo? — o outro guarda parecia incrédulo.

           Ian ficou tenso e procurou refrear seu sorriso. Nunca havia se sentido tão lúcido. Sentia seu poder sobrenatural preparado para manifestar-se. As drogas não foram tão eficazes quanto antes. Havia chegado o momento.

           — Prefiro examiná-lo enquanto estiver inconsciente — disse o médico com nervosismo. — Podem colocá-lo na maca, por favor?

           Ian se manteve como estava enquanto o levantavam e o transportavam para uma sala em que havia uma maca. Ele gemia. Doíam-lhe os ossos quebrados. Doíam-lhe as entranhas. Doía-lhe a pele. Mas refreou um sorriso frio e cruel. Seus dedos ansiavam infligir dor. Matar.

           O doutor apoiou o estetoscópio sobre seu peito nu e começou a escutar o batimento de seu coração. Ian sentiu sua surpresa ao ouvir a força do seu pulso.

           Ele abriu os olhos e sorriu para o médico. O médico arregalou os olhos em alarme. Ian agarrou o estetoscópio e o enrolou ao redor do seu pescoço tão rapidamente e com tanta força que o médico começou a engasgar imediatamente. Seus olhos pareceram sair das órbitas. Os guardas correram para ele. Ian se sentou e quebrou-lhe o pescoço com suas próprias mãos. Enquanto fazia isso, lançou uma descarga de poder.

           Os guardas estavam possuídos. Isso significava que podiam suportar mais do que um mortal comum. Cambalearam, sob o impacto da energia de Ian, mas continuaram avançando, as mãos levantadas para prendê-lo e dominá-lo. Ian agarrou um bisturi, um dos instrumentos que usaram contra ele. Cravou-o no coração do primeiro guarda. Quando o outro o agarrou pelo braço, lançou nele várias descargas de poder. O guarda cambaleou e por fim desabou morto. Ian levantou-se para enfrentar o terceiro guarda que apontava um revólver. Ele puxou o bisturi do peito do primeiro guarda.

           — Venha me buscar — grunhiu.

            O guarda sorriu selvagemente para ele, mas não se moveu.

            — Ah, esqueci que tem ordem de me manter com vida — disse ele ameaçando se aproximar. — Então acho que será melhor que eu vá. — O guarda disparou.

           Ian se lançou para ele ao mesmo tempo em que a bala penetrava em seu lado. Eles caíram juntos. Tudo lembrava Ian quando ele foi apertado e cutucado, os cabos, os choques elétricos, a miséria e o terror do menino de nove anos de idade. Rugindo, Ian cravou o bisturi profundamente. Quando ele parou, estava montado escarranchado sobre o guarda e respirava com dificuldade. Ainda tinha a vista nublada pela ira. Viu que cravou doze punhaladas no guarda. Ele rolou para longe e sentou-se no chão, ofegando. Estava livre.

           E Carlisle estava muito vivo. Ian baixou o olhar. Levou um tiro. Ele esperava que fosse um arranhão. Aquela queimação não era nada comparada com o que acabava de sofrer. Decidiu ignorá-la.

           Concedeu-se um momento para respirar fundo, fazendo pouco caso da carnificina que havia ao seu redor. Seu corpo doía, mas tinha seus poderes e podia saltar. Pensou em Sam.

           Onde ela estava? Estaria bem? Estaria em Loch Awe, onde poderia estar a salvo? O monge, ao menos, voltou para 1527. O que significava que era para onde ele iria imediatamente.

           A raiva voltou, queimando dentro dele. Parecia que estava em seu sangue, suas veias. Levantou-se, segurando seu lado. Outro quase imortal levaria um ou dois dias para se curar. Ele não tinha esse luxo.

Ian mancou até a mesa e puxou as calças cirúrgicas do médico e as colocou. Depois parou. Antes de viajar no tempo em busca do monge para matá-lo, tinha que encontrar Sam e assegurar-se de que ela estava bem, esforçou-se para encontrá-la.

           Sam, onde você está?

           Passou um longo momento. Não houve resposta. Tentou de novo.

            Sam?

            Quando não sentiu sua presença nem a ouviu, procurou-a com sua telepatia visual. Ele a viu em seguida, diante de um escritório moderno. Estava furiosa. Ian reconheceu o cenário: Sam estava na HCU.

           Exalou um suspiro de alívio. Ocorreu-lhe que estava mais preocupado com ela do que deveria estar, mas preferiu considerar mais tarde aquela ideia.

           Cruzou a sala. A porta metálica estava entreaberta e, ao cruzá-la, ficou paralisado. Diante dele, pendurada em uma viga acima, havia uma jaula.

           De repente, sentiu dificuldade em respirar. Sentiu medo por um instante, mas ele venceu o medo. Continuava chocado, entretanto, e ao olhar o hall cinza e estéril, sentiu que aquilo era familiar. A angústia o fez enjoar.

           Não hesitou. À sua direita havia portas de garagem que sem dúvida levavam para a rua, e à esquerda, ao fundo do corredor, uma porta metálica. Aproximou-se dela.

           Estava aberta.

           Assim que entrou no próximo corredor pequeno, ele congelou de novo. Era a parte de trás do hall de uma casa vitoriana. O espaço era pequeno e apertado. A poucos metros de distância, em frente, havia uma porta bonita de madeira antiga com painéis de vidro. À sua direita havia uma escada estreita com corrimão de madeira lavrada levando aos dormitórios.

           Sabia que a sua esquerda havia um salão e, mais à frente, uma cozinha.

           Ele cambaleou tonto e enjoado.

           Este era o lugar onde o mantiveram cativo.

           Olhou a porta de trás pela qual acabava de entrar e gritou.

           Havia nela uma inscrição, a mesma viu no cofre de Hemmer. A mesma com a qual conviveu quando era um menino de nove anos.

           Atrás dele, elevou-se o mal.

 

            Nick exalou um suspiro de alívio quando as portas do veículo blindado foram fechadas por dois soldados do Exército dos Estados Unidos. Atrás dele, um jato militar no qual retornou de Glasgow esperava na pista do aeroporto particular em Long Island ocidental. Os soldados o saudaram com uma inclinação de cabeça. Vestindo suas calças cáqui e ostentando a insígnia dos Rangers, saltaram na cabine do veículo e ligaram o motor.

           Nick sentiu que encolhiam suas vísceras. Desde que partiram de Awe, tinha um mau pressentimento. O veículo, entretanto, não explodiu.

           Nick se aproximou do carro negro que o esperava. Kit estava sentada atrás do volante. Olharam-se quando Nick abriu a porta e disse:

           — Me dê esse lugar.

           Kit teve que sair pelo seu lado e dar a volta para mudar de assento.

           — É isso?

           — É isso. — Nick deslizou atrás do volante e ligou o motor do Lincoln enquanto Kit se sentava no banco do passageiro. Ele tinha a sensação de que algo estava errado. Foi muito fácil. Um dos casos mais fáceis de sua vida. Lembrou-se que Maclean estava em poder de uma entidade de extrema maldade. Seu intestino voltou a se agitar.

           Ele foi para a estrada mal iluminada, seguindo o veículo blindado. Sentada a seu lado, Kit parecia inquieta.

           — Desembucha de uma vez — disse ele, apesar de não estar de bom humor para a sua opinião. Precisava de uma bebida. E não se incomodaria com um pouco de sexo também.

           — Porque você não levou Sam de volta para casa? — perguntou ela, virando-se para olhá-lo. Ela estava pálida e tinha olheiras.

           — Sam está suspensa enquanto eu decido se a demito ou não — respondeu ele com calma ao tomar a estrada que levava a cidade. Falava sério. Sam tentou enganá-lo. E isso a transformava em uma agente perigosa. Isso fazia dela uma rival.

           — Ótimo — resmungou Kit. — E Maclean? Vamos deixar que apodreça?

           — Se o encontrarmos, salvaremos esse burro sem sorte — respondeu Nick enquanto lançava um olhar pra ela.

           Viu os outros veículos ao mesmo tempo que Kit. Foram direito para eles. Nick percebeu o que pretendiam: separá-los da página. Agarrou-se ao volante, decidido a se manter na estrada.

           — Nick! — gritou Kit.

           Era uma forma de brincar de pegar o fraco, ele pensou, enquanto os dois grandes SUVs avançavam para eles, provavelmente a oitenta ou noventa quilômetros por hora. No último instante, Nick deu uma guinada. Não tinha escolha, porque ele sabia que eram conduzidos por demônios, subdemonios ou possessos capazes de suicídio para pará-lo.

           Kit se agarrou à sua cadeira enquanto o carro cruzava um aterro, entrou na floresta e continuou seguindo. Nick pisou no freio e começou a ziguezaguear freneticamente entre as árvores. Roçou uma delas com o lado esquerdo do pára-choque dianteiro e o carro girou violentamente. Ele pisou mais no freio e o maldito carro parou. Ele olhou para Kit. Ela olhou de volta.

           — Eu estou bem.

           Nick amaldiçoou, saiu do carro e correu para o aterro. Quando chegou, a estrada estava vazia. O veículo blindado desapareceu. Seu celular tocou e ele respondeu à chamada.

           — Olá, Nick — Rupert Hemmer ria dele. — Eu acho que tenho algo que você quer.

 

            Eram três da manhã. Sam andava pelo escritório de Nick, furiosa como quando estava em Loch Awe, quando ele roubou dela a página da ilusão. Recebeu alguns olhares de incredulidade quando chegou na HCU, mas ela não tinha certeza sobre o que significavam aqueles olhares. Significavam que todo mundo sabia que traiu Nick e a agência?

           Ter Macleod se exibindo ao redor da HCU não era uma boa ideia para ninguém. Somente aqueles habilitados a níveis mais elevados de acesso a arquivos sabiam sobre a Irmandade, muito menos sobre a viagem no tempo. Como o monge deveria fazer contato com ela no apartamento de Maclean, parecia ser uma boa ideia enviar Tabby e Macleod para lá.

            Sam tinha vontade de estrangular Nick com suas próprias mãos. Até esse dia, sentiu respeito e admiração por ele. Mas tudo isso se transformou em fumaça. Nunca voltaria a ver seu chefe da mesma maneira. E ele já não era seu chefe. Era o fim.

           A porta se abriu e Nick entrou, despenteado e com um olho roxo. Sam não hesitou. Nick a olhou com surpresa quando ela se aproximou dele. Sam deu-lhe um murro no olho ferido.

           — Jesus — disse Nick.

           — Você me devia isso — grunhiu isso ela.

           Ele deu-lhe um longo olhar e depois se aproximou do minibar de seu escritório, colocou um cubo de gelo no olho e disse: — Deve ser amor.

            — Estou a sete horas esperando você voltar Nick!

            — Alguns gostam de viajar a moda antiga.

            — Onde está a página?

            Nick ficou sério e atirou o cubo de gelo no cesto de papéis.

            — Sinto muito, criança. Ela se foi.

            Sam o olhou friamente.

            — Você quer dizer que ela está no Pentágono? Ou que federais a têm ou que talvez esteja lá embaixo nos cofres da CDA, nos quais ninguém sabe da existência?

           — Preciso de uma bebida — respondeu ele, e começou a servir uísque. Encheu dois copos e ofereceu um a ela. Sam negou com a cabeça.

            — Onde está a página?

            — Você realmente está de revirar a cabeça.

            — Não seja machista comigo.

            — Hemmer a tem.

            Sam sufocou.

     — O maldito nos preparou uma emboscada. Roubou o blindado. Não sei como pretende abri-lo. Bem, seu palpite é melhor do que o meu. Acho que torturará os Rangers. Não se preocupe — sorriu sombrio antes de beber a metade do scotch. — Todos os federais, toda a polícia e a metade do exército estão procurando por ele. E os Rangers não se dão por vencidos facilmente.

           Sam pensava com velocidade.

           — Vá prendê-lo em sua cobertura!

           — Prendendo Hemmer não conseguiremos a página. Nem tampouco o matando. Ele tem o poder e vai nos controlar.

           Sam não se interessava por Hemmer.

           — Ian foi capturado. O monge o mantém em um armazém, no Brooklyn. Tenho que encontrá-lo, me ajude.

           Ele tocou seu olho direito.

           — Não pode me pedir isso amavelmente?

           — Eu estou implorando, não pedindo.

           — Sam, não quero que Maclean sofra mais do que já sofreu. Sinto muito pelo que tive que fazer. Kit e uma equipe estão tentando localizá-lo. Assim que o encontrarmos, o tiraremos dali.

           Ela girou e continuou andando pelo escritório, frenética.

           — Se não for tarde demais.

           A luz do intercomunicador começou a piscar. Nick se aproximou de sua mesa.

            — Não me diga que encontrou alguma coisa.

            — Um caminhoneiro encontrou quatro homens mortos algumas horas atrás — respondeu Kit Mares. — A polícia de Nova York está na cena e acabam de nos avisar e a ligação acabou no momento que chegamos. O caso é nosso.

           — E?

           — Trata-se de um armazém no Brooklyn, em 2145 da West Elm. Coloquei o endereço na Big Mamma. Nick, esse edifício era de propriedade de Robert Moran. Adivinhe de quem é agora? — perguntou, excitada. — Rupert Hemmer.

           Nick levantou o olhar.

           — Vamos.

           Sam já estava na porta.

 

            Ian ficou muito quieto, olhando para o monge.

           Carlisle lhe sorriu lentamente.

           — Enfim sós...

           Ian deu a si mesmo um momento. Lembrou-se dos piores momentos de sua vida, causados por aquele demônio.

           — Você foi muito criativo, escapando assim, Ian. Mas realmente acreditou que eu não estaria vigiando cada um dos seus movimentos?

           Ele sorriu lentamente, com frieza. A raiva se dissipou. Só ficou o desejo de matá-lo.

           — Você se excitou vendo como eles me espancavam?

           — Uma surra é muito pouco para meu gosto e você sabe disso — o monge estreitou os olhos. — Você não tem medo. Vou ter que mudar isso. Você percebeu que está debilitado, e que as drogas ainda estão em seu sistema? Não pode usar seus poderes.

           — Isso não me importa — Ian avançou para ele.

           Um brilho de alarme cruzou os olhos do monge.

           — Eu poderia mudar de ideia. E você morreria hoje mesmo.

           — Com prazer — disse Ian suavemente. — Porque eu o levaria comigo.

           O monge levantou a mão. Ian se preparou para receber a descarga de energia. Saiu voando até o outro extremo da pequena sala e se chocou violentamente contra a parede. Caiu no chão.

           O monge riu. Ian avançou de novo para ele. O monge sorriu, divertido, e atacou de novo. Ian chocou-se contra a parede atrás das escadas. Doeu mais desta vez, levantou-se devagar e sorriu. Voltou a andar em direção a Carlisle.

           — Talvez você não se importe em morrer — disse o monge com suavidade. — Mas eu não quero você morto — seu poder brilhou de novo.

           Dessa vez, Ian viu estrelas ao se chocar contra a parede. Com os olhos fechados, ele não fez nenhum movimento para se levantar. O monge se aproximou, inclinou-se sobre ele e acariciou sensualmente sua bochecha.

           — Tente outra vez — ele sussurrou.

           Ian abriu os olhos e o olhou. Um instante depois, cravou o bisturi no peito dele. O monge saltou para trás, furioso, e arrancou o bisturi.

            — Isto dificilmente vai me deter!

            Ian o atacou com todo seu poder. O monge grunhiu, saiu voando e caiu violentamente sobre a pequena mesa que havia junto a porta da frente. Ian correu para ele enquanto se esforçava para reunir mais poder. Ele brilhou fracamente. O monge ficou de joelhos. Seu rosto era uma máscara de raiva. Um ciclone negro golpeou Ian, lançando-o para trás.

           O monge sempre teve mais poder. Ian não poderia derrotá-lo dessa maneira. Ele morreria, e Carlisle continuaria vivo, de repente pensou em todos os meninos que aquele demônio continuaria abusando, todas as mulheres, todos os homens. E sentiu uma nova onda de raiva.

           Era uma raiva tranquila e profunda. Mas já não eram seus anos de cativeiro que o preocupavam, mas os Inocentes.

           Enquanto se preparava para levantar, uma rajada de vento pareceu cruzar o hall. Hesitou confuso, enquanto o ar parecia adotar uma centena de formas diferentes. Ele vislumbrou feições, olhos aterrorizados e cheios de perplexidade, bocas escancaradas. Um fio de cabelo loiro brilhante. Uma lágrima, respingos de sangue.

           A fúria e o medo inundaram o hall. O monge também notou isso e se levantou, alarmado. Ian ouviu gritos e compreendeu que estava cara a cara com as almas das vítimas do monge: com os espíritos dos homens, mulheres e meninos aos quais matou.

           — Por eles — disse asperamente.

           As almas perdidas se colocaram entre a porta e o monge. Ian percebeu nesse momento que Carlisle pretendia fugir.

           — Covarde! — gritou furioso. — Você tem o dobro do meu poder! Será que você vai fugir de uns poucos fantasmas?

            O monge o olhou de frente e as almas formaram um círculo escuro ao seu redor. Ian lançou uma descarga.

           Carlisle levantou a mão para devolver o seu poder. Ian estava pronto para agachar a cabeça quando percebeu que os fantasmas restringiam o monge. Ele não conseguia levantar a mão. Ian voltou a lançar um raio de energia contra ele.

           O monge deixou escapar um grito e caiu ao chão. As sombras o engolfaram. Carlisle gritou.

           Ian não podia ver o que estava acontecendo, mas o monge se debatia e se retorcia como se estivesse coberto por aranhas e serpentes. Aquelas almas perdidas queriam vingança. Ian não podia reprová-los. Esperava que eles o estivessem torturando.

           Ian correu, agarrou um abajur de pé e o partiu em dois. Ajoelhou-se sobre o Carlisle, segurando uma longa barra de metal sobre seu peito. O terror cobriu o semblante do monge. Seus olhares se encontraram.

           — Não — sussurrou Carlisle.

           A porta da frente se abriu de repente.

           Ian levantou o olhar. Sam entrou precipitadamente, acompanhada de seu pai, de Brie, de Macleod, de Tabby e do Nick Forrester. Mas ninguém iria privá-lo daquele momento. O monge iria pagar pelo que fez. E sofreria primeiro.

           — Derrote-o — disse Sam, tirando uma pistola do bolso de trás de suas calças. — Ou eu farei isso.

           Era uma coisa nobre a fazer. Mas ele não se sentia nobre naquele momento.

           — Eu não vou deixá-lo desmaiar — disse Ian afundando a estaca de ferro no peito do monge, tirando-a pelo outro lado do corpo. Sentiu alegria. E satisfação.

           O monge gritou. Tentou se levantar e começou a lutar outra vez como se tentasse se livrar dos fantasmas. Brie agarrou Aidan para impedir que ele se aproximasse.

           — É a guerra de Ian.

           — Ele vai saltar! — gritou Sam. Ela apontou a arma para a testa do monge.

           Ian olhou para ela e seus olhos se encontraram. Ele queria torturar o monge como Carlisle o torturou. Queria que ele sofresse durante dias, semanas, meses, anos. Queria que ele sentisse medo e dor. Queria vingança. Sam sabia. Ela balançou a cabeça.

           — Você não é um deles.

           E o desejo selvagem de infligir dor retrocedeu. Ian sentou-se e concordou com a cabeça, de repente se sentindo exausto. Sam se aproximou e colocou uma bala na testa do monge e outra em seu coração.

           Os olhos de Carlisle, cheios de dor e incredulidade, cravaram em Ian.

           Ian o olhou fixamente enquanto ele agonizava. Sam tocou seu ombro.

           — Ian?

           Ele não afastou o olhar do monge. Ignorando-a, ele viu o monge sangrar. Os olhos de Carlisle ficaram inertes. Um momento depois seu fulgor vermelho se apagou e suas pupilas ficaram azuis e inertes.

           Era o fim.

 

 

           Sam sabia que Ian estava exausto em todos os sentidos. Sobretudo, emocionalmente. Parecia cambalear quando usou o teclado de segurança para abrir as portas de sua casa, se movendo vagarosamente. Não disse nenhuma palavra durante o trajeto de carro até Manhattan. Naquele momento, ao entrar na sua casa em Park Avenue, ele nem sequer a olhou. Sam entrou atrás dele com expressão sombria. Era evidente que Ian estava perdido em seus pensamentos. Sam sabia que ele estava pensando em Carlisle e no que acabava de acontecer, e talvez em seu passado. Desejava abraçá-lo, mas não o fez.

           Ele tinha uma expressão tão severa... Venceu o monge. E isso era bom. Finalmente fez justiça. Mas Sam estava preocupada com ele.

           Ian parecia ter ido ao inferno várias vezes.

           As luzes estavam acesas quando entraram no amplo hall. Brie e Aidan entraram atrás deles. Nick ficou no Brooklyn que agora era uma cena do crime da CDA, assim como o armazém adjacente. Sam não se ofereceu para ficar e ajudá-lo. Pelo que ela sabia, já não trabalhava mais para ele. Tabby e Macleod foram para o seu loft. Sua irmã parecia inquieta, mas Sam se sentia tão aliviada pela morte de Carlisle e também preocupada com Ian, que não havia perguntado o que estava acontecendo com ela. Sentiu sua ansiedade ao se despedir dela no Brooklyn. Sabia, entretanto, que Tabby não iria embora ainda. Porque aquilo não acabou, se Brie tivesse razão a respeito de Moray.

           Sam estremeceu. Não esteve presente quando Brie e Aidan derrotaram Moray em 1502 com ajuda de Tabby, mas ouviu falar sobre ele e leu centenas de páginas sobre o reinado de terror que submeteu a Escócia durante quase mil anos.

           Olhou para Ian, que parou diante de uma mesa e esfregava as têmporas lentamente. Não queria falar com ele sobre a Visão de Brie. Desejava que fosse um engano, apesar de sua prima nunca interpretar mal suas visões.

           Virou-se e olhou para ela. Brie sorriu com amargura, aparentemente em sintonia com ela. Ian se apoiou de repente na mesa como se estivesse enjoado. Gerard entrou apressadamente no salão.

           — Senhor, quer que lhe traga algo? — perguntou com calma, apesar de parecer preocupado.

           — Uísque — respondeu Ian ríspido.

           Aidan se aproximou dele e pôs a mão sobre seu ombro. Ian se encolheu e o olhou com frieza.

            — Eu não preciso ser curado. Não por você.

            — Eu não vou desistir — disse Aidan, e colocou sua outra mão sobre o ombro.

           Sam viu luz branca sair de seus dedos.

           Ian se soltou.

           — Eu não me lembro de ter convidado você pra vir aqui.

           — Ian — disse Sam duramente, — isso não é justo. — Não podia acreditar que continuasse rejeitando seu pai. Ele se virou e olhou para ela com descrença. Ele estava muito pálido. Sam pensou que estava a ponto de desmaiar. Mas ele foi torturado, drogado, espancado.

           — Aidan, por favor, cure-o.

           Aidan agarrou seus ombros com força. Ian fez uma careta, mas ficou quieto. Sam sabia que estava muito esgotado para resistir.

           — Trarei bebidas e lanches para todos — disse Gerard, muito sério.

           Sam se aproximou dele.

           — O monge morreu.

           — Graças a Deus — ele levantou as sobrancelhas.

           — Você ficaria orgulhoso, Ian fez isso sozinho — Sam, entretanto, tremia incapaz de se mostrar alegre. Ian passou vinte e quatro horas nas mãos de Carlisle. Ela desejava poder ler a mente de Ian, porque ele deveria estar triunfante, não sombrio. A única coisa que ela sabia era que ele estava no limite de suas forças. Ele precisava descansar e esquecer aquela crise.

           Sam não sabia se ele poderia fazer isso, se realmente Moray tivesse retornado dos mortos. Aidan soltou finalmente seu filho, olhando-o atentamente. Seu sorriso era muito tênue.

           — Você deve se sentir melhor agora.

           Ian não lhe devolveu o sorriso.

           — Eu vou me sentir.

           — Você não vai me receber aqui, não é?

           Ian não respondeu.

           O semblante de Aidan ficou ainda mais triste.

           — Então, nós vamos.

           — Bom — disse Ian com brutalidade, dando de ombros como se não se importasse, mas Sam viu um lampejo em seus olhos. Sabia que ele se importava. Ele simplesmente, não podia se desligar do passado, nem sequer depois da morte do monge.

           Brie se aproximou dele.

           — Nós amamos você, aconteça o que acontecer, e não importa o que você fizer ou disser.

           Ian se virou.

           Aidan disse olhando para os ombros rígidos de Ian:

           — Estou orgulhoso de você, enfrentou seus piores medos. Destruiu seu maior inimigo, contra todas as probabilidades. Você tem uma boa vida aqui, e agora tem uma boa companheira — ele hesitou. — Você sabe onde nos encontrar. Sempre será bem-vindo em Awe. Sempre será o seu lar.

           Ian finalmente olhou para seu pai.

           — Este é meu lar.

           Sam fechou os olhos. Desejava chorar de desespero.

           — Se alguma vez precisar de mim, chame e eu virei — disse Aidan. As lágrimas brilharam em seus cílios. Estendeu a mão e Brie se aproximou e o abraçou.

           — Nunca desisti do seu pai e nunca vou desistir de você — sussurrou. Sorriu com tristeza e olhou Sam. — Cuide dele. E cuide-se.

           Sam pensou em Moray.

           — Esperem! — exclamou, mas era muito tarde. Já haviam desaparecido, a sala mudou quando eles foram.

            Ok, Sam pensou, desejando que eles não partissem. Mas eles foram embora e ela estava sozinha com Ian.

           Sam olhou para ele e viu uma lágrima escorregar de seus olhos. Ela afastou o olhar para que ele não percebesse que ela viu suas emoções. Não sabia o que podia significar essa lágrima. Ele já estava caminhando pelo corredor, deixando-a sozinha no salão.

           Seu coração partiu. Ian passou por um inferno: primeiro, sessenta e seis anos de cativeiro demoníaco e em seguida uma vida de isolamento absoluto, cheio de sofrimento. Abraçou-se, um gesto raro nela. Ela o amava tanto.

           Se ele pudesse se desprender de seu passado. Ele precisava de seu pai e de Brie. Precisava dela, e de Tabby e dos outros Highlanders.

           Apesar de suas escolhas ele não estava sozinho. Não mais. Ela podia não ter o seu amor, mas tinha sua amizade e sabia que podia contar com ele. Porque o amava, ela finalmente correu atrás dele. Não ia deixá-lo sozinho essa noite.

          

            Encontrou-o em seu closet, despindo-se. Enquanto vestia um jeans, Sam tocou suas costas coberta de cicatrizes. Ian se virou lentamente. Em seus olhos brilhavam a angústia e a dor. Sam se ouviu dizendo:

           — Não me rejeite também.

           Ele olhou nos seus olhos.

           Sam andou para frente e o abraçou. Ela queria dizer a ele o quanto estava preocupada, com medo e o quanto se importava, mas não fez. Limitou-se a abraçá-lo. Ian se deixou abraçar. Começou a tremer. Mas não de desejo, mas de cansaço extremo mental, físico e emocional.

            — Você o venceu — sussurrou ela enquanto acariciava suas costas, e começou a chorar. — Estava apavorada por você.

           Ele deixou escapar um som e a rodeou com os braços.

           — O que é isso? — sussurrou ela.

           Ele demorou um momento antes de responder.

           — Há muitas lembranças — disse com voz áspera. — Esta casa...

            Ela o abraçou com mais força.

            — Você está tendo flashbacks? — Isso explicaria seu absoluto silêncio na última hora.

            Ele balançou a cabeça, então falou áspero.

     — Eu não posso parar as memórias, Sam.

           Ela não sabia como consolá-lo.

     — As memórias vão desaparecer com o tempo. ­— ou isso ela esperava. — O passado ficou para trás, Ian. Você conseguiu. Destruiu o seu carcereiro. O garoto indefeso já se foi. E ele nunca mais vai voltar.

           Ele exalou um suspiro.

           — Mal posso acreditar que tenha acabado.

           — Acabou — disse ela com ênfase. Mas depois pensou em Moray.

            Ian ficou calado um momento.

            — Havia fantasmas, Sam. Todas as almas de suas vítimas. Elas me ajudaram.

           Ela pareceu surpresa.

           — Fico feliz — ela disse com veemência, agarrando-se a ele.

           Ian hesitou.

           — Eu estava tão furioso... E no final não era só por mim mesmo — Sam o olhou sentindo-o estranho. — Estava furioso por todas aquelas pobres almas que ele destruiu.

           Ela sorriu.

           — Eu acho que isso é genético — disse em voz baixa.

           Ele sustentou seu olhar.

           — Também é genético que eu goste de infligir dor? Porque eu estava feliz fazendo-o sofrer.

 

            Sam ficou ainda mais consternada, mas depois sacudiu a cabeça.

            — É uma reação muito humana, Ian. Esse demônio te torturou muito tempo, e desfrutou fazendo isso.

           — Se você acha — respondeu ele, soltando-a. Ele aproximou-se de uma estante, mas se limitou a olhar as camisetas dobradas.

            — Você não é como Moray. Nem seu pai também.

            — Sério? — respondeu ele. — Lembro que meu pai foi mau durante sessenta e seis anos.

           — Você não tem um só grama de maldade no corpo — Ian se virou para olhá-la. — Estou feliz que você tenha torturado Carlisle.

           Ele levantou as sobrancelhas.

           — Você está falando sério.

           — Acho que eu também teria torcido a faca.

            Ele olhou fixamente para ela. Sam sustentou seu olhar, pensando na gravação que encontrou no cofre de Awe.

           — Tenho que perguntar uma coisa. Talvez este não seja o melhor momento, mas como estamos sendo brutalmente sinceros um com o outro, vou tentar — ele levantou as sobrancelhas. — Encontrei um DVD no cofre de seu quarto em Loch Awe — disse Sam sem afastar o olhar. Ele não se alterou. — Não era a mesma gravação que Hemmer tinha — acrescentou ela, mas depois percebeu como era desnecessária aquela declaração.

           — E você acha que fui eu quem deu essa gravação ao Hemmer para que chantageá-la? — seus olhos cinza se escureceram.

           — A verdade é que não sei o que pensar, exceto que você não se surpreendeu muito ao nos ver fazendo amor no futuro, porque obviamente viu o DVD que encontrei.

           — Sim, eu não fiquei surpreso — ele se virou e começou a sair do closet.

           Merda, pensou Sam zangando-se.

           — Você deu a gravação ao demônio do Hemmer? — ela caminhou atrás dele.

           Ian girou para olhá-la.

           — Não, não dei — respondeu duramente. — Mas ele pode ter roubado de mim.

            — Por que, em primeiro lugar, você a tem, pelo amor de Deus? — gritou ela.

           — Porque eu estava obcecado — replicou.

           Sam estremeceu.

           — O quê?

           Ele ruborizou, mas seus olhos cinza brilharam.

           — Já me ouviu, Sam — disse ele perigosamente. — Depois que nos encontramos em Oban, eu estava tão alterado que nem sequer podia pensar com clareza. Saltei no futuro. Eu sabia que havia câmeras em minhas casas. Sabia que com o tempo eu te faria minha. Procurei nas gravações do meu sistema de segurança e voilà, lá estávamos nós.

           A cabeça de Sam dava voltas.

           — Mas você odeia saltar no tempo.

           — Primeiro me embebedei — replicou ele.

           Sam começava a entender, ele havia se sentido tão atraído por ela que se embebedou e saltou no tempo com o único propósito de conseguir um vídeo no qual os visse juntos. Ela o imaginava sentado em uma sala às escuras, vendo-os transar como loucos... e fazer amor.

           Ian sorriu lentamente.

           — Não se preocupe. Eu gostei muito das cenas.

           Sam sentiu uma onda de desejo.

           — Eu fico contente.

           A expressão de zanga desapareceu do olhar de Ian, substituído por um calor latente. Sam se aproximou dele e agarrou o cós de seu jeans.

            — Muitas mulheres não estariam felizes com você agora — murmurou.

            — Eu não me importo com as outras mulheres. Nunca me importaram.

            Sam o puxou mais perto e ele permitiu.

            — Você nunca se importará — mas ele se importava com ela. Estava certa.

            Ian deslizou as mãos por seus jeans e a agarrou com força nas nádegas rígidas.

            — Você é a única mulher ao meu redor. Sempre será minha amiga. Você mesma disse isso.

           — Sim — ela sussurrou com seu coração cambaleando. Pulsava tão urgentemente que tinha dificuldade de pensar com clareza. Desejava falar de seus sentimentos. Mas isso era uma loucura. Em vez disso ela beijou-lhe a clavícula. — Este é um grande momento para comemorar, Ian. Você venceu. — Ela beijou-lhe a garganta. — Carlisle está morto.

           Ele gemeu, excitado. Sam começou a sentir um estremecimento de prazer e baixou o zíper dele. Ian a ajudou a baixar o jeans já apertado.

           — Por quê? — ele perguntou com voz rouca. — Diga-me por que é tão leal.

           Ela se aproximou e o ouviu, apesar de que sua boca não se mover. Diga-me por que se importa tanto. Ela congelou.

           — Ian — sussurrou. — Acho que o momento de falar já passou.

           — Não — ele deslizou a mão por sua nuca e, colocando os dedos entre as mechas de seu cabelo, jogou a cabeça dela para trás. — Você me ama. Você disse isso — cravou seu olhar cinza nela.

           Droga, pensou Sam com o coração acelerado. Pela primeira vez em sua vida, teve medo.

           — Não consigo lembrar — mentiu, e em seguida compreendeu que era uma mentira patética.

           Ian sorriu. Depois começou a avançar, levando-a para trás, sem afastar o olhar dela. Sam sabia o que ele queria, e não era só seu corpo. Ela não sabia se alguma vez poderia voltar a dizer aquelas palavras. Suas costas bateram contra a parede de prateleiras. Ele manteve uma mão baixa, sobre sua nádega e ela ergueu-se em uma prateleira. Ele a ajudou. Foi estranho. As outras prateleiras machucavam suas costas, mas o que isso importava? Levantou a perna direita e rodeou o quadril de Ian. Ele olhou sua boca.

           — Te desejo mais do que em Oban — disse. — Mais que todas as noites, enquanto assistia as gravações. Mais que ontem ou que esta manhã.

           Sam conteve a respiração.

           — Ótimo. O sentimento é... mútuo. — Não é? Pensou em silêncio.

           Ele estava se movendo em direção a ela. Os olhos de Ian pareceram dilatar-se quando ele a penetrou. Sam deixou escapar um gemido, vencida pela pressão de seu membro dentro dela e pela onda de prazer que cresceu imediatamente. Mas ele parou. Sam sabia que havia corado. Não esperava que ele dissesse que a amava... ou esperava?

           Os olhos dele cintilaram e ela, tarde demais, compreendeu que ele a ouviu. Começou a empurrar seu peito para afastá-lo, mas ele voltou a penetrá-la profundamente com força, obrigando-a a levantar a perna e a rodear a cintura dele. Quando ele começou a mover-se, lentamente, com calma, o sentimento de pertencê-lo foi tão intenso que Sam o abraçou e se rendeu por completo a ele. Realmente amava Ian Maclean.

           Ela estava pronta para gozar. Ele jogou sua cabeça para trás e seus olhares se encontraram.

           — Obrigado — disse ele áspero. — Por não fugir de mim.

           De algum modo ela conseguiu sorrir. Depois, deixou-se levar. Não podia resistir ao amor e à felicidade, ao desejo. Entregou-se à força incrível que se agitava dentro dela, aquele prazer maravilhoso, a primeira onda de prazer, e ele a beijou.

           Ele a beijou como se fosse a primeira vez, a última vez, a única vez. Sam montou em sua cintura e o beijou da mesma maneira.

 

            Tabby parou no loft que compartilhou com Sam, aflita pelas lembranças. Macleod a abraçou.

           — Sei que vocês sempre sentirão falta uma da outra.

       Ela olhou seu belo rosto.

           — Eu não me arrependo. De nada.

           Macleod a estudou por um momento.

           — Mesmo que você se arrependesse, eu não a deixaria partir.

           Tabby sorriu. A princípio foi muito difícil acostumar-se a estar com um homem tão machista e medieval. Mas, depois de discutir, acabavam sempre fazendo amor apaixonadamente, e amando-se e compreendendo-se melhor um ao outro. Suas almas se atraíam como ímãs e Macleod sabia disso tão bem quanto ela.

           — Não me arrependo, mas estou preocupada — disse Tabby. — Até que Ian veja a luz ela poderá contar com ele?

            — Ian a ajudará — disse Macleod firmemente. — Não saberá o por que, mas não lhe dará as costas se ela estiver em perigo.

            — Brie tem que estar errada sobre Moray — acrescentou ela, detestando pronunciar aquele nome em voz alta.

           Macleod ficou calado, mas Tabby ouviu seus pensamentos. Em vinte e cinco anos desde que Brie foi viver no castelo de Awe com Aidan, ela esteve errada apenas uma vez em suas previsões.

           Tabby cruzou o espaçoso loft. Sam mantinha o baú no fundo da casa, fechado com chave, mas ela ainda tinha a chave em seu bolso, com o resto das chaves de sua casa. Abriu o baú, levantou a tampa e deixou escapar um gemido ao ver seus amados cristais. Passou as mãos por eles antes de voltar-se para Macleod com um sorriso.

           Ele sacudiu a cabeça, divertido.

           — Quer que levemos isso para casa?

           Em Blayde havia dúzias de poderosos cristais.

           — Não. Sam pode precisar deles algum dia.

           — Seu destino é Maclean.

           — Sim, eu também acho. Mas não sei em que época vão viver suas vidas.

           — Ele é tão medieval quanto eu — respondeu Macleod.

           Tabby sorriu pouco convencida. Sam encontrou seu destino como ela, a mais de dois séculos. Estava emocionada que Ian Maclean estivesse junto de sua irmã. Ele não era um Mestre, mas tinha poder e a queria.

           Se Moray havia retornado, precisavam de toda ajuda que pudessem conseguir.

           Macleod ficou sério e ela também. Trocaram um olhar, assim como também compartilhavam os pensamentos. Se Brie não estivesse errada, ainda teriam que passar por muitas coisas.

           — Eu estive lá — disse Tabby lentamente. — Estávamos todos, exceto Sam e você. Brie, Allie, Claire e eu vencemos Moray. Aidan destruiu seu corpo físico. Vimos como desaparecia sua alma no universo. Parecia como se sua energia negra se dispersasse.

           — E se ele não desapareceu?

           — Então encontrarei o feitiço adequado para fazer o que não conseguimos naquele dia — respondeu Tabby com simplicidade.

           — Tabitha — protestou ele. — Conheço seus poderes, mas esse é um ônus muito grande para uma única mulher.

            — Não, não é. Sou uma Rose, Guy. Talvez esteja guardado para mim este dia especial.

           Ele cruzou a sala.

           — É a mais teimosa das mulheres e eu a amo muitíssimo. Mas não vou permitir que leve esse fardo sozinha — disse com firmeza. — Está certa de que não pode esperar até que amanheça? — estreitou-a entre seus braços com um olhar intenso.

           O corpo de Tabby ficou tenso. A atração que havia entre eles foi quase fatal desde o início. Acariciou seu rosto áspero. Amava Macleod agora mais que nunca.

           — Alguma vez pude te dizer não?

           Mas, apesar do desejo que sentia, tinha muito medo. E se não encontrasse a magia que necessitavam? Moray havia retornado por causa de Aidan ou de Ian? Amava muitíssimo sua irmã e sua prima. Suas batalhas eram batalhas dela.

           Macleod suspirou e olhou para ela. Tabby levantou os olhos.

           — Malcolm e Claire venceram Moray em 1425, e ele voltou dos mortos. Nós o vencemos uma segunda vez, em 1502. Guy, se ele voltou, talvez os rumores sejam verdadeiros.

           Macleod a soltou. Seu semblante escureceu.

           — Que ele é imortal?

           — E nós não somos. Nenhum de nós.

          

            Ela finalmente adormeceu, embora fosse meio-dia e o sol entrasse em seu quarto.

           Ian a olhou e se entregou a um impulso impossível. Passou a mão por seu longo, ágil e lindo corpo. Contemplou seu belo rosto. Seu coração batia com violência, a ponto de explodir. Sam suspirou em sonhos e se mexeu.

           Sam Rose o amava. Ian se deitou de costas e ficou olhando o teto sisudo.

           Começou a ver imagens daquela noite. O médico que estrangulou tão brutalmente. O monge, sendo atacado por aquelas almas. Sam, apontando uma pistola para a cabeça de Carlisle.

           Ele mudou de posição, desconfortável. Seu coração lhe dizia que devia sorrir, se alegrar. Mas como poderia fazer isso? Sentia-se enjoado. Fechou os olhos. Ele estava aflito. Desde que saiu da casa do Brooklyn, as lembranças não pararam de assaltá-lo. Era como se ele tivesse sido libertado no dia anterior, como se aqueles sessenta e seis anos de sofrimento estivessem gravados a fogo em sua alma e sua mente. O monge estava morto, mas ele o via com tanta clareza que parecia estar diante dele. E seu avô. Ele nunca esqueceria o cérebro por trás de seu cativeiro e tortura. Perto de Moray, o monge parecia bondoso. Moray fazia o monge parecer humano. Sam disse que aquele menino indefeso desapareceu e não voltaria mais, mas ele se sentia de novo como aquele menino.

           Não podia se alegrar. Nem agora, nem nunca.

           Ela o amava Isso não importava. Ele não podia corresponder. Ele não queria corresponder.

           Lágrimas começaram a queimar sob suas pálpebras fechadas. Continuava ainda ferido. Sempre estaria machucado. Havia muita dor em seu passado, muitas lembranças. Não sabia o que era amor, não queria saber, embora uma parte estúpida de si estivesse satisfeito que Sam o amasse.

           Jamais poderia lhe dar o que ela queria. Ele nunca poderia fazer isso.

           Compreendeu que estava com medo outra vez. Não, ele estava aterrorizado. Quando Sam descobriria toda a verdade sobre ele? Descobriria quando lesse seu arquivo.

           Olhava fixamente o teto, com os olhos embaçados. Era difícil claramente, tinha dificuldade para respirar. Conseguiria esse arquivo custasse o que custasse e destruiria todas as cópias. De qualquer maneira, não importava mais. Sam era muito inteligente. Certamente sabia toda a verdade porque tinha todas as peças do quebra-cabeças. Só que ainda não teve tempo de juntá-las. Faria isso, mais cedo ou mais tarde.

           Era o sexo que a fascinava e não uma questão de sua própria habilidade, era o poder e a resistência que ele herdou dos deuses. Não poderia ser outra coisa. Ele não era gentil. Ele não era amável ou encantador. Ele não tinha moral, não havia código de ética. Ele não era um herói. Um rostinho bonito apenas, não ia tão longe. Só podia ser o sexo. Ele não era amável.

            Ele sabia sem dúvida.

           Ninguém o amava. Nem agora, nem nunca. Nem mesmo seu pai, porque, se realmente o amasse, teria encontrado um modo de resgatá-lo quando era um menino. Homens como ele não mereciam amor. Ele não merecia Sam Rose.

           Visualizou toda sua vida em sua mente. Era como um comprido túnel, sombrio e infinito, que devia atravessar sozinho. O túnel começava com seu cativeiro, um negro buraco de dor e desespero. Não havia luz dentro dele, nem no princípio, nem no final para guiá-lo para a saída. Não havia saída.

           Começou a rir impotente. O túnel era seu destino.

           Olhou para Sam, que continuava adormecida. Era a mulher mais forte e dura que conheceu. Até mesmo enquanto dormia sentia sua força de guerreira. Uma força que até mesmo alguém como ele podia confiar.

           Ele esteve sozinho por toda a sua vida, até onde podia se lembrar. Estava acostumado a isso. Não havia motivo para que sentisse aquela opressão no peito.

           As lembranças do que fizeram juntos há tão pouco tempo o inundaram de repente com a força de uma maré. Como ela deixou cair aquele vestido vermelho. Como colocou algemas nele, triunfante. Como havia se colocado entre Forrester e ele. Como apontou sua arma para Carlisle e acabou com ele.

           E o túnel pareceu de repente mais escuro, se era possível. Era difícil imaginar uma vida sem ela, mas não havia outra escolha. Porque não podia imaginá-la olhando-o com desdém e escárnio e abandonando-o com um gesto de indiferença. Não tinha nenhuma dúvida de que esse dia chegaria.

           Sam virou-se para ele em seu sono supreendendo-o. Ian não se moveu. A mão dela roçou seu quadril. E seu coração trovejou diferente.

           Ele era viciado em seu corpo. Era viciado no prazer que lhe dava, a aquela fuga do túnel maldito que era sua vida. Se ele se inclinasse sobre ela, aquele instante terrível desapareceria. Mas o alívio seria temporário. Quando acabassem, nada teria mudado.

           Seu peito doía tanto que se perguntava se estava tendo um ataque cardíaco. Não conseguia se imaginar um único dia sem suas disputas verbais. Gostava das respostas de Sam, suas respostas engenhosas. Falou mais com ela que em toda sua vida. Claro que passou quase toda vida isolado como um prisioneiro, desde sua libertação.

           Como ele se sentia, não importava. Estava acostumado a estar sozinho. Haveria outras mulheres, sem rosto nem nome, ansiosas por agradá-lo, mulheres às que utilizaria e abandonaria, mulheres com as que não se incomodaria em falar, mulheres cuja opinião sobre ele não lhe importaria. Mulheres que não o desafiariam, nem retrucariam, nem o olhariam com aqueles olhos violetas, cheios de preocupação.

           Passou pela cabeça que, desde que conheceu Sam, uma luz apareceu no túnel. E que desde esse dia era cada vez mais forte. Era quase como se houvesse um farol no final do túnel.

           Mas isso era impossível.

           O medo o prendia com garras. O mesmo medo com o qual conviveu dia após dia.

           Sam estava se mexendo. Ian se sentou e afastou as mantas. Saiu da cama e se vestiu rapidamente. Negava-se a continuar pensando. Havia tomado uma decisão. Usando seu celular, disse aos pilotos que preparassem o avião para voar até Glasgow. Não tinha intenção de voltar a saltar no tempo, nunca mais.

           Saiu do closet vestindo uma jaqueta de couro leve. Sam estava sentada em sua cama, sob os lençóis dourados, com o cabelo revolto e os lábios inchados. Olhava-o com medo, como se soubesse o que ele estava fazendo.

           — Aonde vai, Ian?

           — Eu estou saindo — respondeu sem emoção se afastando dela, olhar para ela era como uma tortura.

           Ela abraçou os joelhos contra o peito sob os lençóis.

           — Você está me deixando, não é verdade?

           Ian finalmente a olhou. Nunca esqueceria seus olhos, nem sua coragem.

           — Acabou.

           Ela concordou com a cabeça, imperturbável. Ian se virou bruscamente, alcançando a porta.

           — Não vou tentar pará-lo — disse Sam. Era um aviso.

           Ian congelou na porta.

           — Eu sei.

           — Importa-se que eu pergunte por quê? Por que agora? — ela falava sem emoção.

           Seu coração implorou a ele. Ele realmente não queria fazer isso. Talvez houvesse esperança...

           — Eu sou assim, Sam.

           Pelo canto do olho ele a viu assentir.

           — Entendo.

           Ian lançou a ela um último olhar. Seu coração gritava. Mas seu coração não sabia nada.

           Ele não tinha escolhas.

           Entrou no túnel negro.

           E ele estava errado. Não havia luz, nenhuma luz.

 

 

           Quando entrou em seu loft, Sam entendia por fim o que era ter o coração partido. A dor que sentia era como uma faca, uma punhalada. Se fosse uma mulher fraca, teria rastejado até sua cama e se entregue à necessidade de chorar.

           Mas ela era uma Rose e uma Matadora. Então ela lembrou a si mesma que aquilo não era amor. Ela se iludiu e Ian Maclean era um desastre.

           Fechou devagar a porta e viu sua irmã sentada no sofá, tão imprópria em suas roupas medievais. Estava debruçada sobre o Livro das Rose com um sorriso. Parecia ter encontrado algo que estava procurando. Sam ouviu o som de chuveiro ligado.

           Tabby deixou de sorrir e se levantou.

           — Guy não pôde resistir à tentação de tomar banho num chuveiro moderno. Fiz com que me trouxesse o Livro. O que está errado, Sam? Quem morreu?

           Sam sorriu com amargura, aproximou-se da geladeira e tirou uma cerveja.

           — Ninguém morreu Tabby.

           Tabby atravessou o loft até o balcão da cozinha.

           — É Ian, não é?

           Sua irmã deu de ombros.

           — Nunca foi amor de verdade. Além disso, as Matadoras não têm tempo para amor e romance.

           — Quem você está tentando convencer?

            Sam deu um gole a sua cerveja.

     — Você sabe. Nada mudou. Continua sendo um idiota egoísta.

            Tabby girou os olhos.

       — Ele te ama e você o ama. E não acredito que seja egoísta com você.

            Sam tremeu, zangada de repente.

     — Peço desculpas por discordar de você, irmãzinha.

            — Não desista dele! — exclamou Tabby, agarrando sua mão. — Lute por seu amor!

           — Eu não estou apaixonada — replicou. Então desmoronou e desistiu. Ela sabia que era uma maldita mentira. Amava aquele bastardo. Ela foi ao inferno por ele. Ela se manteve ao seu lado contra seus piores inimigos. E ele a deixou.

           — Eu sei que você não acredita em mim. — disse Tabby sem rodeios. — Porque eu te conheço.

            Sam olhou para ela sombriamente.

     — Não vou atrás dele, Tabby.

            — Por que não? O que você pode perder? O seu orgulho?

            Sam terminou a cerveja e cruzou os braços.

            — Sim, perderia meu orgulho. Ian iria rir de mim.

            — Não, Ian não vai rir de você. Ele precisa de você mais que precisa respirar. É evidente.

            Sam parecia surpresa e tensa. Tabby estava certa no último ponto. Maclean precisava dela. O monge morreu, mas a vida de Ian continuava um desastre. Mas, se ela fosse atrás dele, riria dela. Não riria? Mas se ele risse? Molhou os lábios.

            — E o que se sabe de nosso pior pesadelo feito realidade?

            Tabby ergueu as sobrancelhas claras.

     — Você refere a Hemmer e ao poder da ilusão?

            — Esse é preocupante, mas não tão assustador quando Moray.

            — Se Brie estiver certa e Moray está de volta, ele ainda não se mostrou.

            Sam respirou fundo.

     — Então teremos que encontrá-lo e eliminá-lo de uma vez por todas.

 

           Ele não disse a ninguém para onde ia. Nem sequer para Gerard. Fechou a porta de sua casa em Loch Awe e procurou ignorar o latejar doloroso de seu coração. Ele sentiu os efeitos da diferença de fuso horário. Foi acendendo as luzes enquanto percorria o amplo hall, e então percebeu que não estava sozinho.

           Os pelos de sua nuca arrepiaram. O corredor escureceu e a temperatura desceu bruscamente. Sentiu um peso terrivelmente familiar, um poder escuro que conhecia muito bem.

           Moray? Seu avô estava morto. Mas aquela maldade era inconfundível. Ian começou a sentir pânico. Procurou afastá-lo de si. Ele tinha que estar enganado.

           Sua nuca continuava arrepiada. Virou-se lentamente para o interior em penumbra do grande salão. Uma figura em sombras se levantou do sofá.

           O medo o paralisou. Não havia como confundir a maldade que percebia ali. As luzes acenderam. Rupert Hemmer o olhava de frente, mas ele só via Moray, seu avô.

           — Olá, um Ihain[13] — disse Hemmer suavemente, sorrindo.

           Seus joelhos se dobraram. Estava com tanto medo que estava a ponto de urinar-se. Estava em choque e não conseguia falar. Aquilo era impossível. Tinha que ser um pesadelo. Seu avô se aproximou lentamente.

           — Você não está sonhando, meu rapaz, estou de volta. Passou muito tempo. Muito. Mas, quando é necessário, posso ser muito paciente. Você está muito bem, considerando o que passou.

           Aquele era seu pior pesadelo transformado em realidade. Enfrentar o demônio de seu avô novamente.

           O homem que tinha diante era, entretanto, Rupert Hemmer, ao menos na aparência. O medo começou a retroceder.

           — O que você quer?

           — Vingança.

           Seu coração balançou com mais medo e pavor. Seu avô sorria, mas seus olhos queimavam, cheios de ódio e maldade. A lembrança de Sam assaltou Ian, seus olhos violeta de aço. Alegrou-se enormemente de tê-la abandonado, assim não se veria envolvida no que iria ocorrer.

           — Me temia antes e me teme agora. Pobre Ian — disse seu avô em tom zombador.

           Já não era mais aquele menino, pensou Ian. Era um quase imortal com grandes poderes. Não destruiu o monge?

           — Só um tolo seria destemido — Ian se ouviu respondendo. Seu coração batia lentamente, pesadamente, com o pulso do caçador, não da caça.

           Moray riu com suavidade.

           — Eu odeio a seu pai como nunca odiei a nada nem a ninguém. Ele é meu filho e se nega a fazer minha vontade, então você será a moeda com a qual ele terá que pagar.

           Ian sentiu o impulso repentino de defender e proteger seu pai.

           — Meu pai o derrotou uma vez. Voltará a derrotá-lo e desta vez eu ficaria feliz em ajudá-lo.

           — Sério? Mas você não pode ganhar Ian, não de mim. Vim para te fazer prisioneiro outra vez. Como ajudará Aidan sendo um cativo impotente?

           Ian quase sucumbiu ao medo, mas conseguiu se levantar, uma picada de medo, breve, rápida e ele se acalmou. Iria sobreviver, iria proteger e defender sua família.

           — Tente, tente agora e veja o que acontece. Agora enfrenta um homem, não uma criança covarde.

           O sorriso do Moray se apagou.

           — Eu não temo nada, Ian, muito menos você e a cadela guerreira que ama.

           Ian ficou rígido de medo.

           — Eu não amo ninguém.

           Moray riu dele.

           — Eu ainda sou Rupert Hemmer, Ian. Essa é a beleza de tudo: minha alma se fundiu com a dele.

           Era difícil entender o que ele dizia, mas Ian acreditava. Moray e Hemmer, eram uma só pessoa.

           — E você consegue adivinhar o que vem agora? — perguntou seu avô suavemente.

           Ian estava pensando em como podia proteger Sam, quando deveria estar pensando em como se esquivar do ataque de Moray e depois dar-lhe o golpe fatal. Aquilo tinha que acabar.

           — É assim como pensa me assustar? Jogando um jogo de adivinhações?

           — Esqueceu que tenho um novo poder? — perguntou seu avô com calma. — Posso transformar você em um menino novamente. E eu farei isso.

           Ian demorou um momento para recordar. Hemmer tinha o poder da ilusão.

           Atrás de seu avô, ele viu a colcha azul que cobria sua cama, pequena e estreita. Ele viu o quarto cheio de brinquedos. Moray o chamou com o dedo.

           O pânico foi intenso, sufocando-o. Ele se apoiou na porta. Seu ombro na maçaneta. Ele voltava a ser aquele menino pequeno.

           Uma parte de seu cérebro gritava que aquilo não era mais que uma ilusão. Mas pressionou de novo contra a porta, cheio de medo, consciente do que estava por vir.

           — Não há onde se esconder. Venha aqui. Pode me servir para uma coisa.

 

           — Eu gosto dessas credenciais — comentou Tabby, sorrindo, quando pegaram o elevador privado que levava ao apartamento de cobertura de Hemmer.

           Mas Sam não estava de humor para brincadeiras. O porteiro olhou de boca aberta sua pequena camiseta. Nem sequer olhou sua identidade falsa. Macleod se pôs a rir.

           — Sua irmã não precisa usar cartão de visitas Tabitha. O porteiro estava a ponto de desmaiar.

 

           Sam saiu do elevador. Hemmer tinha a página, mas não era por isso que queria conversar com ele. Hemmer passou por círculos escuros, com demônios. Se sabia alguma coisa sobre Moray, pensava tirar isso à força. Considerando que foi amigo de Robert Moran e que era proprietário do edifício do Brooklyn que antes pertenceu a Moran, talvez ainda estivesse em contato com seu mentor, por mais que este estivesse morto.

           A porta do apartamento se abriu antes que chegasse a ela. Apareceu uma faxineira desesperada.

           — Graças a Deus que vieram — exclamou a faxineira esfregando as mãos.

           A saudação desconcertou Sam.

           — Deus não tem muito que ver com isto — respondeu secamente. — O que está acontecendo?

            A mulher ficou pálida.

     — Vocês não são da polícia? Acabo de chamar a emergência. Pobre senhora Hemmer! O senhor Hemmer ficará devastado.

            Sam soltou uma maldição e entrou correndo no apartamento.

           — Onde ela está?

           — Em sua cama — respondeu a faxineira.

           Sam ignorou o elevador e tomou as escadas, seguida por Macleod e sua irmã. Correu até o final do corredor, passando pelo quarto onde viu Ian pela primeira vez. Imaginava que a suíte principal estava ao fundo do corredor. Ela estava certa.

           Becca estava nua e morta na cama king-size.

            — Um crime de prazer — afirmou categoricamente Macleod. — Ele tomou seu poder.

           Sam se aproximou de Becca realmente sentindo pena dela. Nunca reagiu a qualquer crime demoníaco, mas agora seu estômago estava agitado.

           — Como ele sabe? — perguntou a Tabby.

           — Nos deparamos com crimes de prazer quase todos os dias, Sam. São uma epidemia em nossa época. Macleod pode sentir quando o estupro é demoníaco. Além disso, olhe para seu rosto.

           Sam percebeu que não queria olhar atentamente para Becca. Não entendia o que estava errado com ela e por que estava tão chateada. Fechou seus olhos e olhou seu rosto. Tinha uma expressão de êxtase. Ela era tão parecida com sua Mãe...

           Ficou enjoada, perguntando-se se ela lembraria de sua mãe cada vez que trabalhasse em um caso parecido. Abalada, disse:

           — Hemmer não tem nenhuma só gota de sangue demoníaco — disse trêmula. — Ele não podia fazer isso.

           Tabby ficou calada. Macleod disse com calma:

           — Pode ser Moray.

           — Por que Moray estaria envolvido com Hemmer? — perguntou Tabby.

           — Eles se conheciam — respondeu Sam. Enquanto ela cobria Becca com um lençol, falou à sua irmã sobre Moran. Depois ouviu uns passos que conhecia bem. Não se surpreendeu ver Nick entrar no quarto, acompanhado de Kit.

           Kit se aproximou dela.

           — Ei, você está bem?

           Sam concordou com a cabeça.

           — Obrigado por seu interesse — ela lançou a Nick um olhar gélido enquanto Kit e Tabby davam um abraço carinhoso. Nick interrompeu seu reencontro ao puxar o lençol e descobrir o cadáver de Becca.

           — Eu me perguntei se ia encontrá-la aqui — disse a Sam. Ele Estudou o cadáver por um momento. Depois a olhou. — Seu menino foi para Awe.

            Sam ficou tensa. Nick continuava mantendo vigilância sobre Maclean? Será que Ian iria ficar bem em Awe, sozinho? Moray estava lá, em alguma parte, e teria que ser destruído. E, para piorar a situação, Ian não sabia que seu avô retornou.

           — Ele está bem? — ela perguntou com cautela.

           — Como demônios quer que saiba?

           — Puxa, eu não sei. Sua casa também não tem câmeras?

           Ele a olhou sombrio.

           — Amanhã pela manhã eu quero ver você em meu escritório.

           — Não, obrigado — Sam sorriu com frieza. Não pensava dar seu braço a torcer.

           O olhar de Nick teria acovardado a qualquer outra pessoa.

           — Tenho um presente para Maclean — Sam pareceu surpresa. — Sinto muito o que aconteceu, eu tinha que fazer o que fiz, embora voltaria a fazer tudo de novo. Mas não preciso do seu maldito arquivo. Se tiver coragem de passar por meu escritório, eu o darei a você — ela estava perplexa. — Sim, é um oferecimento de paz. Mas com condições.

           — Como que eu volte a trabalhar para você?

           — Algo assim — Nick sorriu.

           Sam estava cheia de tensão. Ela adorava seu trabalho. Era seu dever proteger e defender as pessoas, mas nunca perdoaria Nick pelo que fez.

            — Vou pensar sobre isso — respondeu. — Ou tenho que responder agora?

           Ele riu.

           — Não, não vou colocar nenhum prazo. De fato, pode ficar com o arquivo mesmo que você não volte para a HCU. Sam raramente foi surpreendida duas vezes. Ela estava chocada novamente.

            Ele a chamou com o dedo. Sam decidiu não se incomodar em perguntar. Seguiu-o até o térreo e ao cofre. A pintura de uma paisagem bonita estava encostada na parede. A inscrição que viu em outra ocasião estava acima no lugar vago do quadro. Os hieróglifos brilhavam.

           — Ok, você me pegou. O que é isso? O que significa? — Nick se aproximou da inscrição e Sam teve a estranha sensação de que ele estava inquieto.

           — Em todos os anos que eu estive nesta guerra, antes de que alguém a considerasse uma guerra, só vi essa inscrição três vezes. Aqui, no armazém do Brooklyn e no século I.

           Sam estremeceu.

           — Me dê a má notícia.

           Ele a olhou muito sério.

           — É uma rubrica de Satã, Sam. Se você acha que o mal mais poderoso de todos não existe em uma única e poderosa entidade, engana-se. Diz-se que não mais de uma dúzia de demônios conseguiram seu selo de aprovação ao longo da história — ele estava pensativo. — Não é a primeira vez que se vê esta inscrição. Os russos a viram em um dos palácios de Stalin — ele hesitou. — Jan a viu.

            Sam mal podia compreender o que ele estava dizendo.

           — Está tentando me dizer que o maldito Hemmer, que é tão mortal quanto nós, goza da confiança de Satã?

           — Seu DNA talvez seja do lojista da esquina, mas tenho certeza de que ele não seja mortal. Não mais. Onde está nosso multimilionário predileto, afinal?

           — Boa pergunta.

           — Especialmente, porque ele tem a página. Por que será que eu acho que tenho a sensação de que você não veio por causa da página? Você já sabe, corre o rumor de que Moray ressuscitou — Nick cravou-lhe o olhar. — Nós dois sabemos que não foi o bom Rupert quem se encarregou de sua mulher. Está certa de que você não quer a minha ajuda, garota?

           Sam estava a ponto de responder quando viu Ian.

           Sua imagem tremia atrás de Nick, vestido exatamente como ela o viu na última vez. Via através dele e compreendeu que aquela imagem era fruto de sua telepatia visual. Ian tinha um olhar urgente. Algo estava muito errado.

           — Ian, onde você está? — gritou ela.

            — O que está acontecendo? — Nick se virou e seus olhos arregalaram. Ele também via Ian.

 

           A jaula girava. Ian se agarrava às suas barras, frias sob suas pequenas mãos.

            — Por favor, me deixe sair. — Era a primeira vez que o metiam na jaula. Seu castigo por tentar escapar. Seu coração pulsava tão forte e tão rápido que parecia a ponto de estalar.

           Seu avô sorriu e se afastou. E ele começou a afastar os ratos a chutes.

           Não. Aquilo não estava realmente acontecendo...

           Aquelas palavras ressoavam em sua cabeça, longínquas e vagas, iam deixá-lo ali para que o comessem vivo, e depois o curariam. Se tentasse escapar outra vez, voltariam a colocá-lo na jaula. O pânico o paralisava. Sentiu os dentes afiados dos ratos e gritou. Como podia estar acontecendo aquilo outra vez?

           Fechou os olhos e rezou para que seu pai o salvasse. Aquilo não estava acontecendo na verdade. Mas ele afastou os roedores com os pés, uma e outra vez, gemendo, por que o grande Aidan de Awe não o resgatava?

           Ele via seu pai tão claramente, em pé ante a chaminé do grande salão, rodeado de maldade...

           Ajude-me, por favor!

           Seu pai pareceu se assustar.

           — Ian?

           Ajude-me! Estou na cidade de Nova Iorque, Ajude-me!

           Aidan gritava, seu rosto se transformava em uma máscara furiosa. E depois desaparecia...

           Ian sacudia as barras, frenético. Ele tinha que sair, porque estava sangrando e não tinha forças para continuar afastando os ratos.

           Mas ele já não era um menino. Aquilo era um truque, um truque cruel e retorcido.

           Enquanto ele se aferrava às barras confuso, viu uma mulher bela e corajosa. Ele agarrou-se com mais força às barras. Já não lutava contra os ratos. O rosto daquela mulher brilhava em sua mente e compreendeu que aquilo era mais importante que o castigo da jaula. De repente a via com mais clareza. Seus olhos brilhavam, cheios de urgência.

           Ian, onde você está? O que está acontecendo?

           Ele se assustou.

           Sam.

            Começou a compreender, mesmo quando ameaçava desfalecer pela dor. Não podia desmaiar agora. Se desmaiasse, morreria. Aquilo não estava acontecendo. Ele não era um menino. Passou por tantas coisas com Sam. Eles lutaram juntos contra o mal.

           Fez um grande esforço para ultrapassar a escuridão que envolvia a jaula. A noite era tão densa que o oprimia. Mas tinha que atravessar aquele manto impenetrável de poder negro. Esforçou-se por ver. Por um momento viu a si mesmo como um homem adulto, agachado dentro de uma jaula construída para um menino. Então se ergueu por completo, exalou e não atingiu o teto da jaula. As formas e as sombras de sua sala de estar começavam a ficar visíveis. Através de uma janela viu o sol nascente e a bruma que flutuava sobre o lago.

           Respirou fundo. Um intenso alívio se apoderou dele.

           Percebeu que tinha os punhos fechados, mas não em torno das barras. Fechava-os com tanta força que as unhas cravavam na pele de suas palmas. Ele foi preso no passado pelo poder da página e era tão real como se estivesse acontecendo de verdade. Para ter certeza olhou para baixo, mas viu sua perna vestida no jeans, não a panturrilha pequena e ensanguentada de um menino. E não havia ratos. Ele estava firmemente na realidade agora.

           Ian, onde está você?

           Ele ficou tenso. Ouviu de novo Sam com toda clareza. Mas ele não queria arrastá-la àquela guerra com seu avô. Moray iria machucá-la, se pudesse, só para vingar-se dele.

           O medo desapareceu finalmente e em seu lugar surgiu uma intensa sede de vingança. Não podia permitir que Moray fizesse mal a Sam ou a seu pai. Protegeria aqueles que amava ou morreria tentando.

           Concentrou-se nela para certificar-se de que estava a salvo e não nas mãos do mal. Encontrou-a instantaneamente. Estava em pé em um quarto desconhecido. Concentrou-se mais ainda e viu Nick com uma insígnia pendurada no pescoço. Depois viu, sobre uma cama, um cadáver coberto com um lençol.

           — Meu primeiro crime de prazer. Como desfrutei. Eu posso ver porque esse crime é tão viciante.

           Era a voz de Hemmer. Mas se aquilo era real, se Moray havia ressuscitado, tinha que ter se transformado em Rupert Hemmer.

           Ian se virou lentamente. A maldade do Moray era inconfundível, mas não mais assustadora. Continuava em sua sala de estar.

           — Você é Hemmer ou Moray?

           — Ambos — Hemmer sorriu. — Agora, estou no controle. Há momentos que quem mandava era seu avô. Ele é tão poderoso que não posso resistir a ele... E eu quase não me importo.

           Ian molhou os lábios, concentrado como nunca antes.

           — Então, a alma dele se fundiu com a sua?

           Hemmer sorriu.

           — Algo parecido com isso.

           — Moray foi derrotado.

           — Depois do que acaba de experimentar, você ainda questiona o seu retorno?

         O estômago de Ian revolveu. Não havia nenhuma dúvida. Moray voltou.

           — Você tem todos os poderes de Moray?

           — Por que não, como iria permitir que ele possuísse a minha alma? — estreitou os olhos, que se transformaram no azul de seu avô. Lentamente tornaram-se vermelhos, mas a sala permaneceu inalterada. — Demos-lhe permissão para sair da jaula, Ian, meu garoto? —Moray riu suavemente.

           — Como foi que você voltou? Como entrou em Hemmer?

            Aqueles olhos vermelhos brilhantes se dilataram.

           — Fizemos outro pacto com o diabo.

           Aquilo não era uma ilusão, pensou Ian. Isso era real. Estava em frente ao seu avô, que também era Rupert Hemmer. Alguns minutos antes, aquela ideia o aterrorizaria. Agora, ardia de desejo de acabar com aquilo. Nunca odiou ninguém como odiava a aquela entidade maléfica.

           — Te devo uma, meu avô.

            — Atreve-se a nos desafiar? — perguntou Moray. — Nós temos todo o poder.

            — Não, vocês não têm todo o poder. Não têm o poder dos Deuses. Não têm o poder do bem.

           Moray riu exultante.

           — Você sabe? Eu nunca pensei que pudéssemos transformá-lo quando você era um menino. Por isso apenas tentamos. Mas vamos fazer uma coisa, vamos utilizar você para derrubar seu pai de uma vez por todas.

           — Ele já o derrotou uma vez. E voltará a derrotá-lo. E desta vez eu o ajudarei. Desta vez, terá que lutar contra os dois.

            — Quanta bravura! Desta vez, Aidan virá correndo para te salvar, não é mesmo, Ian?

           Ele ficou tenso. Não havia nenhuma dúvida de que seu pai tentaria resgatá-lo se voltassem a colocá-lo em uma prisão virtual, do mesmo modo que sabia que ele tentaria resgatá-lo quando era um menino, se não acreditasse que estava morto.

            — O que ainda não decidi é como o matarei. Deveria deixar que Aidan o visse morrer antes de matá-lo? Ou deixá-lo sofrer um pouco mais, talvez vendo morrer a doce Samantha depois de ter gozado com ela? — seu rosto escureceu. — Ela se atreveu a me desafiar e eu nunca deixo uma provocação sem resposta — de repente Hemmer apareceu.

           Ian desejou que Sam tivesse escutado quando ele lhe disse que Hemmer era perigoso. Desejava protegê-la mais do que qualquer outra pessoa. Ele sentiu a tentação de chegar a um acordo com Hemmer, mas não podia negociar com o mal. Não era confiável.

           — Desta vez — disse suavemente, — quando o destruirmos, você vai para o inferno e lá ficará.

            — Sério? — Moray riu. — Alguns de nós somos imortais, Ian. Certamente você já ouviu dizer.

           Negou-se a acreditar em seu avô.

           — Se lembra do jogo favorito que o monge reservava para Ano Novo?

           Ian tentou resistir ao poder, mas ele o envolveu como um manto. De repente encontrou-se em um corredor comprido de cimento, com as paredes cobertas de portas fechadas. O pânico o sufocou. Recuou, tremendo de medo.

           — Abra a porta, qualquer porta — ordenou seu avô. — Nossos convidados estão esperando, Ian.

           Ele começou a correr. A risada de Moray o seguiu. Um demônio se materializou diante dele. Ian se virou para correr na outra direção. Apareceram outros demônios. Correu até porta mais próxima e a abriu. Um gigante o agarrou e ele entendeu o que aconteceria a seguir. Sua mente começou a fechar...

           E começou a sentir dor.

           A risada de Moray ecoou.

           Não podia suportar aquilo, ele ia morrer. Não, ela ia morrer.

           Sam ia morrer.

           Ele não era um menino. Não estava no labirinto. Aquilo era uma ilusão e Sam estava em perigo. Tinha que sair dali. Teria que deter Moray.

 

           — Beber não vai resolver isso — disse Brie suavemente.

           — O vinho vai aliviar a dor — replicou Aidan, e imediatamente lamentou ter falado tão duramente com a mulher que ele amava mais que a própria vida.

           Mas ao invés de aproximar-se dela ele levou as mãos à cabeça e se sentou à mesa do grande salão de Awe. Precisava desesperadamente de seu filho. Vê-lo de novo depois de vinte e cinco anos foi uma experiência controversa. Desejou abraçá-lo como se fosse um menino. Ficou emocionado quando Ian recorreu a ele em busca de ajuda. Mas a raiva e a hostilidade de seu filho o feriam como adagas. Ian nunca iria perdoá-lo, pensou.

           E ele não podia reprová-lo. Ele falhou com seu menino. Ian tinha direito de culpá-lo. Ele mesmo se culpava.

           Olhou para sua bela esposa. Estendeu-lhe a mão.

           — Você pode tentar ver o que ele vai fazer?

           — Eu já tentei uma dúzia de vezes e só vejo sombras negras. Estou muito assustada, Aidan. Acho que o medo me impede de ver.

           Aidan se aproximou e puxou-a para seus braços.

           — Nós o vencemos uma vez. Se ele voltou, voltaremos a vencê-lo.

           Os olhos de Brie arregalaram de repente. Aidan virou e viu seu filho. Ian estava deitado de costas e se retorcia como se lutasse. Sua figura era difusa, transparente.

           Ele estava de novo em perigo.

           — Eu também o vejo — sussurrou Brie.

           — Onde ele está? — gritou Aidan. — Ian, onde você está?

           Mas não houve resposta.

 

            A porta da frente estava aberta e o lustre do teto aceso, assim como as arandelas nas paredes. Lá fora amanheceu e o sol tingia os campos de dourado.

           Sam sentou-se, dolorida. Aterrissou no hall de entrada de Awe. Macleod estava ajudando Tabby a se levantar. Sam ficou em pé e o olhar azul de Macleod a queimou.

           — Ele está aqui.

           Mas Sam já tinha percebido o imenso peso que oprimia a casa. Era o peso do mal, maior do que já sentiu antes. Foi o suficiente para que sentisse uma náusea de medo.

           Respirou fundo e afugentou aquela sensação desconhecida. A casa estava tão silenciosa que podia ouvir sua própria respiração, a de sua irmã e de Macleod. Ela estendeu a mão de repente e apagou o lustre. Tabby acreditava ter um feitiço que iria prender a alma de Moray no corpo de Hemmer. Da última vez, seu feitiço tornou impossível que a alma de Moray encontrasse refúgio físico em outro corpo, e se dispersou na atmosfera, ou isso era o que eles pensavam. Agora o plano era outro: usar o feitiço para prender sua alma e eliminar Hemmer. Tabby, entretanto, não conhecia nenhuma magia para impedir o poder da ilusão.

           Os pelos de sua nuca arrepiaram.

           — Moray, mostre-se — Macleod chamou suavemente.

           A pressão que oprimia a casa aumentou. A atmosfera começou doer a pele. Moray não apareceu.

           — Eu tenho que encontrar Ian — disse Sam. Ela sabia que Moray o estava torturando. Sentia isso em cada fibra de seu ser. Tinha certeza de que iria encontrá-lo na casa de Loch Awe, mas estava desanimada porque não podia senti-lo.

            — Se encontrarmos Moray, encontraremos Ian — disse Macleod sem rodeios.

           — Ele tem razão — disse Tabby.

           A pressão que caía sobre elas se intensificou. Sam ouviu uma risada suave, como um eco distante.

           — Foda-se, bastardo — Sam sussurrou. Ela iria buscá-lo de sala em sala. Estava certa de que Ian estava ali. Ao passar em frente ao salão ela o viu estendido no chão. Ele estava imóvel como um cadáver. Sam gritou e correu para ele, com medo que estivesse morto.

           Ela ajoelhou-se. Viu mover suas pálpebras e sentiu uma fraca sensação do seu poder. O alívio inundou-a.

            — Ele está inconsciente — disse quando Tabby se ajoelhou a seu lado. — Ian — ela acariciou sua testa, trêmula, com medo de pensar no que fez com ele.

            — Não acredito que esteja inconsciente — disse Tabby em tom amargo.

           Sam olhou desconfiada para ela.

           — Ele está desmaiado e com frio, Tabby. Se estiver ferido, suas lesões têm que ser internas, porque não sangra.

           — Está sob o poder de Moray — afirmou sua irmã. — Sinto o poder da página, Sam. Sinto sua magia, e sinto como a usa e a corrompe para o mal. Ian está em outro mundo.

           A tensão de Sam ficou insuportável.

           — Ian, acorda! — disse, tomando suas mãos.

           Suas pálpebras se contraíram, mas continuou sem se mover. Parecia paralisado.

           — Eu me pergunto se ele pode ouvi-la. Guy pode ler seu pensamento? — perguntou Tabby.

           Como Macleod não respondeu imediatamente Sam o olhou. O highlander tinha uma expressão sombria.

           — Ele é um menino. Vocês não precisam saber o que estão fazendo com ele.

           Sam embargou. Apoiou a cabeça de Ian sobre seu peito e se inclinou sobre ele, chorando.

           — Volte para mim, Ian, por favor. Saia desse mundo! Isso não é real. Aqui é real... Eu sou real!

           Suas pálpebras continuaram se movendo, mas seu corpo permanecia imóvel.

           Macleod se agachou junto a Tabby.

           — Não pode libertá-lo do feitiço, Tabitha?

           — Vou tentar — começou a cantar suavemente. — Manto de controle, rasgue-se. Realidade diferente cesse! Rasgue-se, manto! Ian Maclean volte para mundo real!

           Sam apoiou sua bochecha na dele, desejando que ele despertasse.

           — Volte Ian. Pode me ouvir? Volte!

           Suas pálpebras se moveram mais lentamente. Depois ele ergueu-as lentamente. Olhou-a com os olhos vidrados pela dor.

           — Ian... — seu coração se partiu.

           A luz mudou. Seus olhos se encontraram.

           — Você continua sendo minha amiga? — parecia incrédulo.

           Sam respirou fundo e o abraçou com força.

           — Sempre significa sempre, Maclean.

 

           Ian sentou-se lentamente.

           — Ele está aqui.

           Sam olhou instintivamente para a porta e nesse instante a sala escureceu. O frio caiu sobre eles. A pressão da atmosfera se intensificou como se estivesse a ponto de se formar um ciclone.

           Quando Sam olhou para a entrada, a porta de madeira e as molduras se transformaram na porta de ferro com barras de uma cela. As paredes estofadas se tornaram de concreto. Não havia janelas. A sala estava tão escura que estava difícil enxergar.

           Ian respirou fundo.

           — Ele está usando o poder.

           Sam pegou a mão dele quando se levantaram cautelosamente.

           — Você ainda está comigo?

           — Se o que quer saber é se sou um menino assustado, não. Mas estamos em uma cela.

           —Sim, eu vejo isso também. Tabby? — Sam virou-se. Estendeu a mão para frente, para uma poltrona, mas só sentiu ar. A ilusão parecia real.

           Nick, entretanto, disse que uma mente poderosa podia vencê-la.

           Sua irmã murmurou:

     — Manto, rasgue-se em pedaços. Realidade diferente cesse. Rasgue-se, rasgue manto de controle, nos devolva ao mundo real!

           Macleod se aproximou da porta de ferro com expressão resoluta. Os móveis que deveriam ter bloqueado seu caminho não estavam lá, na verdade. Quando chegou à porta metálica, as belas portas de madeira, de repente, magicamente, reapareceram. Sam respirou aliviada quando a sala voltou para a normalidade.

           De repente, Kristin Lafarge estava em frente à sua irmã e sorria diabolicamente.

           Era a bruxa que caçou Tabby através do tempo. Era a mesma puta que usou sua poderosa magia negra para virar a faca de Sam contra si mesma, quase a fazendo se matar. Mas Lafarge morreu na batalha contra Tabby em 1550, no An Tùir-Tara. Isso significava que Kristin estava perseguindo sua irmã...

           Ian a agarrou, impedindo-a de avançar.

           — Ela não é real.

           — Nós temos certeza disto? — Nick não estava seguro do que podia acontecer no mundo virtual. Se uma pessoa morresse, em que estado estaria quando se levantasse o manto da ilusão? Sam não queria saber.

           Tabby recuou receosa, quando Macleod correu para Kristin com a espada levantada, a expressão violenta. Ele queria destruí-la. Atrás dele apareceu outra mulher, morena e sensual, com longas vestes vermelhas, seu rosto uma máscara de fúria maligna. Era Criosaidh. A bruxa com a qual Tabby havia lutado durante séculos, mas que também morreu naquele dia em An Tùir-Tara.

           — Guy! — gritou Tabby em alerta. Ele virou e levantou a mão no instante em que Criosaidh lançava um raio de fogo entre os dois.

           — Manto, rasgue-se. Cesse realidade diferente, rasgue-se manto, nos devolva ao mundo real — cantava Tabby desesperadamente.

           Sam agarrou Kristin para impedi-la de agredir Macleod por trás. Mas a bruxa sorriu para ela e desapareceu. Criosaidh também desapareceu antes que Macleod a alcançasse. A sala voltou ao normal.

           Sam piscou. As cortinas de seda do salão se moveram.

           O sol da manhã penetrava pelas janelas, revelando os lindos móveis e os quadros de Ian, as paredes verde musgo, os luxuosos tapetes orientais.

           A pressão que os oprimia era mais intensa do que nunca. Ela olhou para Ian. Tinha a sensação de uma desgraça iminente. Era isso, pensou ela, o confronto final, o definitivo. Ian a olhou nos olhos e concordou com a cabeça. Depois andou para a porta. Sam o seguiu, aliviada ao ver que não parecia assustado. A vítima foi embora. Ela estava ferozmente satisfeita.

           Se Moray não se mostrava, eles teriam que encontrá-lo.

           — Saia, saia onde quer que esteja — disse em voz baixa Sam.

           — Ele virá — disse Ian, silencioso, monótono. — Só está tentando ganhar tempo.

            Sam achava que ele tinha razão. Quando entraram no corredor ela teve uma surpresa: Aidan e Brie corriam para eles. Aidan estendeu as mãos e apertou os ombros de Ian.

           — Você está ferido? —perguntou.

           Ian não se afastou.

           — Não.

           Aidan o olhava com ansiedade. Baixou a mão.

           — Eu ouvi você me chamar como quando era um menino.

           Ian ficou olhando para ele.

           — E desta vez você veio.

           — Claro que sim.

           Ian respirou fundo. Um breve momento se passou.

           — Moray está aqui.

           Aidan olhou para Brie.

           — É a mim a quem ele busca e ninguém mais, vou mandar você para casa e todas as mulheres também devem ir.

            — Você está brincando? — perguntou Sam, atônita.

            — Não vou deixá-lo, Aidan — disse Brie suavemente, a expressão determinada.

            A risada de Moray ecoou em torno deles.

            — Uma reunião de família, enfim...

            Todos viraram para enfrentar Rupert Hemmer, que estava sorrindo, em deleite. Estava envolto em um poder negro e se erguia sobre uma enorme nuvem de aspecto ameaçador.

           — Esperei vinte e cinco anos por este dia — olhou para Aidan. — E usarei Ian para conseguir o que quero.

           Aidan começou a tremer de ira.

           — Nós sabemos muito bem que só o que você quer é a minha dor.

           — Sim, muitas e muitas delas. A menos que você se renda a mim... e a Satã.

           — Se tiver que escolher, prefiro a dor — rosnou Aidan.

           Brie o agarrou pelo braço. Sam estava surpresa porque via somente Moray, apesar do ser que estava de pé diante deles ser Rupert Hemmer. O sorriso do Moray ficou feio e mesquinho.

            — Realmente acha que você e essa sua mulher insignificante podem vencer a mim, Moray o grande? Você achava que eu iria simplesmente desaparecer? Eu esperei todos esses anos. Esperei e observei, sabendo que algum dia encontraria uma maneira de voltar para você, meu filho — virou-se para Ian. — Sabe do que sou capaz. Permitirá que seu pai escolha a dor?

           Ian arfava. Ele estava pálido, mas seus olhos brilhavam. Como se usassem uma comunicação silenciosa, Ian e Aidan rugiram e atacaram de uma vez. A sala se encheu de repente de tanto poder branco que era como se um raio tivesse atingido o local. Mas Moray desapareceu e o poder de Ian e Aidan ricocheteou pelo saguão, rachando paredes e estilhaçando o vidro dos quadros.

           — Covarde! — grunhiu Ian.

            Tabby sentou-se bruscamente e começou a murmurar baixinho para si mesma. Aidan olhava intensamente para Ian, que se virou devagar para olhá-lo.

           — Não permitirei que ele volte a fazer mal a você — disse. — Eu juro perante os Deuses, Ian.

           Ian hesitou. Seu olhar cintilou.

           — Eu Sei — olhou para Sam, que parecia assustada. — Vá embora, Sam.

            Ela se aproximou.

     — Moray continua aqui. Como você quer atrai-lo para que se mostre?

            — Nós ficaremos juntos — disse Aidan com firmeza. — E esperaremos que ele se mostre novamente.

           — Tabitha — disse Macleod em tom estranhamente reconfortante — você encontrou o feitiço adequado?

            Tabby olhou para seu marido.

     — Acho que sim — seu olhar encontrou o de Sam. E se eu não puder fazer isso? Perguntou-lhe em silêncio. E se eu estiver errada?

            Claro que você pode fazer, respondeu Sam tão silenciosamente quanto ela.

           Macleod estava claramente ouvindo as duas, porque colocou protetoramente o braço em torno de sua esposa.

       — O feitiço funcionará, certifique-se de bloquear seu poder para saltar.

           Ela concordou com a cabeça.

           — Eu já fiz isso.

           Mas as palavras mal saíram de sua boca quando o corredor ficou escuro e gelado. Sam de repente deparou-se com outra porta metálica incrustada em um muro de concreto. Todos haviam desaparecido, exceto Ian e ela. Ela pegou sua mão. Ele a apertou com força, um suor súbito nas palmas.

           — Não é real — disse laconicamente.

           Não, não era, mas parecia. Sam tocou o frio metal da porta. — Ele nos isolou.

            — Não abra! — gritou Ian, alarmado.

            Sam retirou a mão como se estivesse queimando. — Você sabe onde estamos? —então ela viu que havia portas idênticas de ambos os lados do corredor.

            — Estamos em um labirinto — respondeu ele áspero. — E o mal está atrás de cada porta.

           Sam se afastou da porta. Ela deveria ter se chocado com Ian, mas não foi assim. Virou-se. Ian havia desaparecido. Ela estava sozinha!

           Ela lembrou-se que aquilo era uma ilusão, uma realidade virtual. Mas Moray os separou dos outros, e agora ele a separou também de Ian. Olhou para o fundo do corredor. Parecia infinito.

           — Ian?

           Aguçou o ouvido. Onde você está?

           — No labirinto.

           Não abra a porta!

           — Abra a porta — murmurou Moray.

           Ela virou. Ele estava atrás dela, sorrindo.

           — Onde está Ian, bastardo? O que você fez com ele?

           — Ele está jogando um jogo — murmurou. Ele passou uma unha bem cuidada por sua bochecha. Ela se afastou. — Nós te desejamos Sam. Em mais de um sentido.

           — Aposto que sim.

           — Nós sempre conseguimos o que queremos.

           — Nem sempre. Desta vez, não.

           — Sabe quanto poder nós temos agora? Ninguém pode nos derrotar. Ninguém nunca nos venceu. Mas isso você já sabe, não é? Existem centenas de páginas escritas sobre o grande Moray no HCU.

           — Sim, você é famoso — disse Sam. — Tristemente famoso claro! — como iria enfrentá-lo sozinha? Ela tinha que sair daquela realidade! Pensou no salão, com seus móveis luxuosos, e imaginou todos ali, de pé, tentando descobrir qual seria o próximo movimento de Moray. Sam tentou alcançar essa realidade.

           Por um momento o hall mudou e Sam acreditou ver todo mundo, menos Ian, em pé diante o aparador e o espelho art decor.

           — Você deveria abrir a porta, Sam — disse Moray, tirando-a de seus pensamentos. — É a única forma de sair deste mundo.

           Ela precisava de ajuda. Tabby, maldição, o que aconteceu com seu feitiço?

           Mas nem sequer percebia a presença de sua irmã e muito menos a ouvia. Sam começou a ouvir sons suaves vindos da porta mais próxima, ficou tensa.

           — Ninguém vai ajudá-la — Moray deslizou um dedo sobre seu ombro. — Só você pode se ajudar. Abra a porta.

            Ela o olhou nos olhos. Foi um erro. Seus poderes de persuasão eram extraordinários. Sam agora podia identificar os sons que chegavam do outro lado da porta. Uma mulher estava gemendo de prazer.

           — Abra a porta, Sam. Você não se arrependerá. Você ficar muito satisfeita.

           Ela não queria abri-la, mas não pôde se conter. De repente tinha que saber o que havia do outro lado. Virou-se e abriu a pesada porta.

           Havia um casal no chão. Sam viu a extraordinária beleza do homem e compreendeu que era um demônio. Estava presenciando um crime de prazer. Sentiu o impulso de detê-lo, de salvar a Inocente. Mas ela viu o cabelo de cor champanhe da mulher e congelou. Ficou paralisada de espanto.

           O demônio desapareceu. Sua mãe se sentou.

           — Sam?

           Ela recuou para a parede.

           — Mãe?...

           Laura levantou-se.

           — Sou eu, Sam. Você me salvou!

           Sam sufocou. Ela não havia salvado a sua mãe aquele dia e ela sabia que aquilo não era real, mas piscou porque estavam na rua do subúrbio de Nova Iorque onde ela cresceu. Era um dia de outono, igual àquele. Havia folhas vermelhas e amarelas por toda parte.

           A casa de madeira branca em que se criou estava atrás da Laura. A bicicleta azul de Tabby estava na garagem, em pé. A dela, vermelha, estava de lado onde ela a deixou cair.

           Exatamente como naquele dia.

            — Sam — soluçou Laura, correndo para ela. Estreitou-a entre seus braços, tremendo.

           E a mãe dela parecia viva e quente, seu peito subia e descia colado ao de Sam e sua bochecha era suave como a seda. Cheirava a limão e a flores, a fragrância Halston que ela sempre usava. E se ela viajou no tempo? Aquilo era real?

           Sam percebeu que estava chorando. Ela amava sua mãe incrivelmente. Sempre a quis assim. Agora ela percebeu que tinha muita saudade.

           E se tivesse interrompido o crime de prazer antes e tivesse impedido assim a morte de sua mãe?

           Laura a soltou.

           — Graças aos Deuses, você chegou — sussurrou com lágrimas nos olhos azuis.

           Sam começou a alarmar-se. Sua mãe ficou transparente.

           — Mamãe! Não vá! — gritou. Mas sabia que Laura estava a ponto de desaparecer para sempre, porque aquilo não era real. Não estava acontecendo.

           Sua mãe desapareceu.

           Sam não podia entender de onde vinha aquela tristeza. Levou as mãos ao rosto, a ponto de chorar.

           — Satã pode te devolver isso, Sam. A voz suave de Moray vibrou dentro dela.

            Sam se obrigou a levantar, enxugou os olhos e virou, cheia de receio.

            — Posso dar o que você quiser — disse Moray. — Posso te devolver sua mãe.

            — Então agora pode voltar no tempo? — perguntou ironica. Mas começava a se zangar.

           — Não, não posso. Ninguém pode, nem sequer os Deuses — Moray sorriu. — Mas já sabe que, quando o destino dá errado, pode-se corrigi-lo.

           Sam ficou quieta. Moray acabava de mencionar um dos princípios fundamentais do Livro das Roses. A morte de Laura foi um engano? Podia ser desfeita?

           — Eu posso desfazê-lo — afirmou ele, e em seus olhos brilharam estranhamente. Era como se pudesse ver tudo e para sempre.

            O estranho fogo de seus olhos atravessou Sam da mesma maneira que as suas palavras: como se não houvesse limites físicos entre eles. Sam não podia pensar direito. E se Laura não estivesse destinada a morrer?

           — Eu preciso de você, Sam. Eu quero você. Eu te quero tanto que posso deixar Ian ir embora se não for suficiente devolver-lhe sua mãe — o sorriso do Moray também mudou. — Tenho observado você durante muito tempo. Desde que você era uma menina pequena. Já que não posso converter Aidan, eu vou levá-la em seu lugar.

           Pela primeira vez em sua vida ela sabia o que era o medo real.

           — Quem é você?

           Satã.

           Sam recuou até se chocar contra uma parede.

            — Tenho mil faces. Venha comigo Sam, me entregue sua alma e te darei tudo o que desejar.

           Sam o olhou e Moray encarou seu olhar. Sua mente estava pesada, era tão difícil pensar. Não podia fazer um pacto com o diabo. Mas e se sua mãe podia voltar dos mortos e Ian poderia ser libertado de uma vida de tormento?

           Sam?

           A voz de Ian pareceu cortar a névoa e dissipá-la. Sam piscou, viu Moray e, depois dele, uma enorme sombra que recuava.

           — Ian!

           Ele estava tentando encontrá-la. Nesse instante, Sam percebeu que jamais faria o impensável. Ela era uma Rose! Moray se inclinou para ela.

            — Você pagará com sua vida se não aceitar nossa oferta.

            — Eu vou sair daqui — replicou ela com ferocidade.

            — Não, você não vai — respondeu Moray. E levantou a mão. Seu poder negro a atravessou como uma faca. Sam olhou para baixo, esperando se ver partida em duas. Havia sangue por toda parte. Quando Moray se afastou demorou um momento para perceber que estava sangrando.

          

            Sam estava no labirinto.

           Ian viu que estava em uma pequena cela e correu até a porta, mas ela estava fechada por fora. Sam não podia ficar sozinha no labirinto.

           Ele tinha medo, mas não por si mesmo. Já não importava que aquilo fosse ou não uma realidade virtual. Porque ela estava com Moray.

           Fechou os olhos e começou a rezar com todas suas forças. Se os Deuses interviessem, se a salvassem, entregaria a eles sua vida inteira. Faria o que eles pedissem. Se eles quisessem que voltasse para sua época, faria isso. Se quisessem que ele fosse um Mestre, como seu pai, ele seria. Doaria seus milhões para obras de caridade, viveria na pobreza. Ele até inclusive morreria, se os Deuses assim quisessem.

           Mas não ouviu resposta alguma. Notou a porta fria sob sua bochecha e abriu os olhos. Os deuses não o escutaram durante seus anos de cativeiro, e estava certo de que também não escutariam agora. Mas ele estava estranhamente calmo.

           Ele ia encontrar Sam.

           Surpreso, Ian saiu para o corredor. Mas não no corredor do labirinto. Em vez disso, chocado ele encontrou-se no hall da casa do Brooklyn onde passou seis décadas prisioneiro. Imediatamente sentiu uma náusea.

           Ian?

           Sobressaltou-se. Sam estava tentando encontrá-lo. Sam, onde você está?

           Mas ela não respondeu. Então, o monge saiu de um pequeno salão, sorrindo bondosamente. Ian deu um passo para trás, desejando fugir.

           — Como foi à escola, Ian?

           Recordou-se que o monge estava morto e que aquilo não era real. Continuava consciente de quem era e do que tinha que fazer, mas o menino pequeno lutava para voltar a vida.

           — Você não existe — respondeu com a maior firmeza possível.

           — Claro que existo. Eu posso cuidar de você. Você tem dever de casa? —perguntou o monge com suavidade e um brilho no olhar.

           Ian compreendeu o que ele queria, virou-se para as escadas. O menino pequeno emergiu: sentia o impulso de escapar.

           — Você não pode fugir. Não há onde se esconder — disse seu avô.

           Ian parou em seco. O ódio e a sede de vingança voltaram. O menino desapareceu. Ian olhou para Moray, que riu dele.

           — Onde está Sam?

           Ian? Me ajude!

           Ele a ouvia-a de forma tão clara como se estivesse em outro quarto.

           — Onde ela está maldito canalha? — gritou.

           — Encontre-a, se puder — Moray desapareceu, assim como o hall da casa. Respirando com dificuldade, Ian viu o infinito corredor ladeado por dúzias de portas idênticas. Ela estava em um desses quartos?

           Começou a avançar, suando. Abriu a primeira porta e ficou paralisado. O menino de nove anos estava dentro, com seu avô: uma lembrança que preferia esquecer.

           Fechou a porta e se apoiou contra a parede, tremendo. Não queria recordar aquilo. Seu ódio era tão intenso que conseguiu dissipar seu medo. Moray conhecia seu humilhante segredo. Queria jogar isso na cara dele. Mas Sam estava em um daqueles quartos, possivelmente sendo torturada.

           Começou a procurar sala por sala, ignorando as lembranças, a dor, o medo e a vergonha. Cinco portas a frente parou, sem fôlego e quase enlouquecido. Havia muitas portas. Dessa forma nunca a encontraria. Compreendeu muito tarde que naquele jogo ele não sairia vencedor. Esse jogo foi feito para torturá-lo, para vencê-lo e colocá-lo de joelhos.

           — O que você fez com ela? Vou matá-lo, filho da puta! — gritou no corredor vazio.

           Moray não respondeu.

           Ian tentou sentir a presença de Sam.

           Sam!

           Ele a ouviu gemer.

           A fúria se apoderou dele. Ouviu uma risada longínqua. Moray estava jogando com ele outra vez, como fez durante sessenta e seis anos.

           Sam estava em apuros. Ele sentiu em seu coração. Ele sentiu em sua alma. Não tinha tempo para brincar de gato e rato com Moray. Sua mente se afiou e ele lutou para retornar à realidade de sua casa em Loch Awe. Seu pai e Brie, Macleod e Tabby estavam em algum lugar fora de seu alcance, de sua vista. Olhou corredor cheio de portas tentando ver o hall de sua casa. E viu Sam.

           Estava caída no chão, em um corredor, em meio a uma poça de sangue.

           Era telepatia visual.

           Ian começou a correr pelo corredor. As paredes mudaram. Viu paredes pintadas e obras de arte. Em seguida elas eram de concreto outra vez e se encheram de portas metálicas.

           — Sam!

           As paredes continuavam mudando, diante dele apareceram duas janelas. O sol entrava por elas; mais à frente, via Loch Awe. Ian correu pelo corredor com todas as suas forças em direção a essas duas janelas. Tinha que voltar para o mundo real.

           O chão se moveu. O concreto transformou-se em uma fina lã pintada à mão. Escorregou em um chão de madeira. Diante de si havia uma parede cheia de livros, virou-se. Estava em sua biblioteca. Cruzou a sala, a caminho da porta.

           Ela estava deitada no chão do corredor.

           Ian se ajoelhou a seu lado, horrorizado. Sam não podia morrer.

           Parecia inerte em seus braços. Era impossível! Sam Rose era invencível. Era a mulher mais valente que conhecia.

            — Você não pode morrer! — Abraçou-a, frenético. Não podia viver sem ela. Ele amava aquela mulher. Ouviu passos e ouviu Tabby gritar. Aidan se ajoelhou a seu lado.

           — Deixe-me curá-la.

           Ian olhou para seu pai.

           — Salve-a. Por favor.

           — Ele não pode salvá-la — Moray riu deles.

           Ian e Aidan viraram em uníssono. Tabby caiu de joelhos e começou a cantar. Macleod disse suavemente, com expressão implacável:

           — Você não pode saltar Deamhan[14].

           Ian e Aidan levantaram devagar.

           — Salve Sam — disse Ian para seu pai. — Moray é meu.

           Os olhos de Moray se arregalaram.

           — O que houve pai? — disse Aidan. — Esta com medo?

           — Minha alma é imortal — grunhiu Moray. — Assim como meu poder — lançou uma descarga de poder negro.

           Ian o atacou com sua energia, imediatamente seguido por Macleod e Aidan. O poder branco e o negro se chocaram. Moray voltou a atacá-los, agachando-se. As duas grandes ondas de poder voltaram a se atacar. O raio de Moray foi direito para Ian, esquivando-se das energias em conflito na sala.

           Ian se preparou para o golpe. Mas viu com assombro que o raio se chocava contra um muro invisível e ricocheteava. O feitiço de proteção de Tabby. Ian lançou todo seu poder contra Moray. Viu que o raio prateado afundava no peito de seu avô.

           Moray se transformou em Hemmer de novo. Ian endireitou-se enquanto Hemmer gemia e olhava seu peito ensanguentado. Aidan e Macleod atacaram ao mesmo tempo.

           Hemmer levantou a vista. Seus olhos continuavam sendo os de Moray, e estavam cheios de fúria e ódio.

           — Eu sou imortal — proclamou asperamente.

           Ian lançou nele outra descarga. Embora os olhos de Hemmer brilhassem, vermelhos, Hemmer estava mortalmente pálido e começava a entrar em colapso. Ian atacou outra vez. De repente, os olhos castanhos de Hemmer apareceram em seu rosto, com o olhar em choque dos moribundos, antes de cegarem. Caiu ao chão, soltando faíscas negras e vermelhas. O poder negro saiu dele com um rugido e começou a girar em torvelinho ao redor da sala.

           Tabby estava de pé e segurava algo nas mãos.

            — Mal eterno, vem a mim. Mal eterno, encontre a paz. Mal eterno, encontre este lugar. Mal eterno, ocupe este espaço.

           Ian viu que ela segurava um pote de cristal com tampa. Viu com perplexidade que o poder negro entrava no pote. Tabby fechou a tampa e a apertou com força enquanto murmurava:

           — Que o mal fique encerrado aqui dentro, que fique preso neste lugar — sem soltar o pote, virou-se, alarmada. — Sam?

           Ian viu então que Aidan estava cuidando dela. Ele virou-se e caiu de joelhos. O pânico começava a apoderar-se dele.

           — Não!

            — Ela está morta — disse Aidan, embargado, olhando-o de forma incisiva.

            Era impossível. Ian a estreitou em seus braços, incrédulo. Aidan apertou seu ombro. Ele sacudiu sua mão, furioso.

           — Ela não está morta!

           De repente uma luz imensa estava enchendo a biblioteca. Ian olhou para cima. No brilho da luz ele viu formas e silhuetas, humanas na aparência. Compreendeu que eram os imortais. Ele não conseguia respirar. Os Deuses antigos encheram a sala, vestidos com vestes longas. Um Deus, o mais alto de todos se aproximou.

           Ian estava furioso. Odiava a todos! Eles tomaram Sam dele e o condenado a ser vítima do mal. Mas quando o grande Deus se aproximou, sentiu-se banhado por sua magnificência e seu esplendor. O ódio e a fúria desapareceram. Ao distinguir os traços do Deus, percebeu que eram familiares. Então ele virou-se. A luz daquele Deus estava banhando Sam. Enquanto olhava, suas pálpebras se moveram.

           — Ela está viva — sussurrou. Nunca nada significou tanto para ele.

           Ian pensou ter ouvido um homem dizer:

     É tempo para viver, não para morrer.

           Ian olhou de novo ao Deus, que permanecia agora pairando sobre Sam com um sorriso paternal nos lábios. Seus olhos se encontraram. A boca do Deus não se moveu, mas Ian o ouviu com toda clareza.

           Nunca quisemos fazer mal a você, Ian. E nós não o abandonamos.

           O Deus começou a desaparecer diante de seus olhos, assim como a luz brilhante que iluminava a sala.

           — Espere! — gritou Ian.

           Agora é a sua vez.

           A luz voltou a ser normal e as aparições desapareceram. Ian se ajoelhou junto a Sam. Agora era a sua vez. Não precisava de um Deus para dizer mais. Sabia o que ele queria dizer. Era a sua vez de viver.

           Seu coração se encheu de alegria. Foi estanho, uma mistura de excitação, antecipação. De repente, o passado parecia muito distante, estava onde sentia que pertencia.

           Sam abriu os olhos. Ian olhou para ela e o seu coração deu um tombo.

           — E Moray? — disse ela.

           Ian sorriu lentamente.

           — Ele se foi... Eu acho.

           Sam olhou pra ele muito séria. Tocou seu rosto.

           — Eu ouvi você — disse ela.

          

            Ian cruzou seu quarto vestido apenas um jeans. Acabava de sair do chuveiro. Ele congelou. Seu pai estava parado na porta.

           Tinha muitas coisas a dizer a ele e não sabia se poderia falar.

            — Estamos prestes a ir embora — disse Aidan. — Posso entrar?

           Ian ficou tenso, mas assentiu com a cabeça.

           — Salvou Sam. Agora estou em dívida com você.

           — Você não me deve nada — respondeu Aidan, parando em uma mesa lindamente esculpida.

           Ian não sabia o que dizer. Agora sabia que seu pai o resgataria se soubesse que estava vivo todos aqueles anos atrás. De repente teve um flashback.

           O garoto cruzava o grande salão correndo e gritando alegremente. O cão de caça correu ao seu lado latindo de excitação. Seu pai retornou da guerra vitorioso. Aidan entrou com seus homens. Tinha o manto xadrez molhado e as botas cheias de barro. Ignorou as donzelas que esperavam para recolher seu manto e dar-lhe vinho.

           — Vem aqui, meu menino — gritava, sorrindo. Ian se lançava para ele e Aidan o tomava em seus braços, rindo. E ele era tão feliz...

           Seus os olhos encheram de lágrimas enquanto olhava seu pai.

           — Você realmente acreditava que eu estava morto. Agora sei.

           — Eu o vi matá-lo — disse Aidan com voz rouca. — Saltei no tempo mais de uma vez, tentando evitar o assassinato. Passei sessenta e seis anos perseguindo Moray, anos que poderia ter passado procurando você. Morrerei com meus arrependimentos.

           — Não — Ian disse. — Ninguém deve viver com culpas e arrependimentos.

           — Ninguém deveria viver com dor — acrescentou Aidan em voz baixa.

           Ian encolheu os ombros.

           — Não é tão ruim agora. Durante muito tempo o passado continuou sendo presente. Mas agora não é mais.

            Aidan assentiu.

     — Estou contente — ele hesitou. — Tenho que ir.

            — Espera! — disse Ian rispidamente. E Ian estava lá, de repente queria dizer a seu pai que estava arrependido e que entendia o que aconteceu. Chegou o momento de pôr fim ao sofrimento de ambos.

           — Sinto muito — ouviu-se dizer. — Estou muito arrependido por tê-lo responsabilizado por aquilo que não era sua culpa.

           — Realmente me perdoa? — Os olhos de Aidan arregalaram, estava incrédulo. — Eu faria qualquer coisa por você. Você é meu primogênito, Ian. Eu o amo como só um pai pode amar um filho.

           Ian balançou a cabeça e seu coração explodiu de emoção. Ele também amava esse homem. Sempre o amou. Mas a raiva o impediu de sentir esse amor.

           O rosto de Aidan suavizou-se. Ian compreendeu muito tarde que seu pai tinha telepatia, o que para ele era tão natural quanto respirar. Aidan leu seus pensamentos.

           E ele estava feliz.

           A sala pareceu girar de repente. Um pó dourado encheu o espaço, entre eles. Aidan sorriu. Ian percebeu o poder que sentiu antes: um poder sagrado e majestoso. Por um momento pensou que algum Deus voltou para a Terra.

           Mas um Highlander alto e loiro surgiu da bruma e sorriu para ele com uma expressão paternal.

           — Hallo, a Ihain[15].

           Ian enrijeceu. Ian viu MacNeil várias vezes depois de seu cativeiro, nos meses que ele estava mudando tão rapidamente de menino para homem, antes que abandonasse a Idade Média para viver no futuro. O abade da Iona dirigia a Irmandade e alguns diziam que tinha tanto poder e tanta sabedoria quanto os Deuses.

           — O que está acontecendo? Não me dão boas-vindas? — MacNeil agarrou seu ombro. — Você parece cauteloso rapaz — ele encarou Aidan. — Hallo[16].

           Aidan inclinou a cabeça.

           — Neil.

           O poder sagrado que fluía de sua mão parecia penetrar no ombro de Ian e isso era bom.

            — Você nunca me fez uma visita nestes vinte e cinco anos.

            — Não era o momento, rapaz. Mas é tempo agora — seus olhos verdes brilharam.

            Ele está parafraseando o Deus. Ian percebeu.

            — Você conheceu seus piores inimigos, um por um. Você enfrentou seus piores temores e os conquistou, cada um. Estou orgulhoso, Ian. Todos os Deuses estão.

            Ian estava atônito.

           — Ninguém está orgulhoso de mim — disse ele lentamente. Mas seu coração trovejou. Havia esperança.

           — Eu estou. Os Anciãos também. E seu pai aqui presente.

           Ian sentiu que as lágrimas saltavam, virou-se para que não o vissem chorar. Aquilo parecia um milagre.

           — Você está falando sério?

           — Sim. Mas não é nenhum milagre, rapaz. Você ganhou o nosso respeito.

            Ian assentiu, incapaz de falar.

            — Não deseja saber o motivo de minha repentina visita?

            Ele encontrou o olhar divertido de MacNeil ainda satisfeito e sua mente entendeu.

            — Acho que já sei. Pretende me repreender por ter vivido fora do meu tempo — começava a sentir-se desanimado. Ele fez um acordo. Se os Deuses queriam que ele voltasse para 1527, teria que ir. E sabia que Sam não viveria no passado com ele. Seu estômago revirou. Agora não era o momento de pensar nela ou nos sentimentos que ele admitiu ter naquele dia. Mas eles permaneceriam profundos e eternos, uma parte dele agora.

           — Foi concedida uma dispensa para você — MacNeil sorriu. — Pode ficar no futuro, com sua namorada.

           Ian ficou perplexo.

           — Mas há uma condição, claro — acrescentou MacNeil, muito sério.

            — Eu decidi por mim mesmo. — Ian não podia imaginar o que estava amarrado àquilo.

            — Você deve tomar os mesmos votos que seu pai. Já é hora.

            Ian tinha certeza que entendeu errado. Olhou para seu pai, cujos olhos brilhavam estranhamente.

           — Vocês querem que eu... eu... me uma aos Mestres?

           — Claro que nós queremos — respondeu MacNeil. — Nós não o protegemos durante seu cativeiro? Qualquer outro homem, mesmo um quase imortal, teria morrido. Estava escrito que você viveria para conhecer este dia... e muitos outros mais.

           Ian estava atordoado. Os Deuses o queriam, afinal de contas. Se imaginou de repente vivendo em Nova Iorque, dedicado a proteger os Inocentes, com Sam Rose ao seu lado...

           Estava tão abalado que não podia falar.

 

           Meio vestida, Sam olhou o pote de manteiga de amendoim que sua irmã segurava.

           — Está brincando comigo?

           — Muito clichê hein? — Tabby sorriu.

           — Foi aí onde colocou a alma de Moray? — Sam começou a rir. Agora parecia engraçado.

           — Foi o único pote que encontrei. E, além disso, o feitiço era como o anterior, mas do inverso, se você se lembrar.

           Sam sacudiu a cabeça.

           — Sim, eu lembro. Você me contou sobre isso. Na última vez, você o mandou para o espaço. Mas não acredito que colocar o poder de Moray em um pote de manteiga de amendoim o vá reter por muito tempo.

           Tabby era presunçosa.

     — O pote vai ficar em um cofre, em minha agência no Banco da América.

           Sam sorriu.

           — E se o entregamos ao CDA? No porão eles têm cofres protegidos. Sempre me perguntei o que havia neles. Ei! Talvez haja uma centena de potes de manteiga de amendoim, cheios do mal de demônios mortos.

           Tabby enrugou o nariz.

           — Que ideia nojenta.

           E era. Sam ficou séria.

           — Que há mais, irmãzinha?

           Tabby deixou o pote sobre um aparador.

           — Temos que voltar. Mas tenho boas notícias. Macleod leu a mente de Hemmer. A página está em um cofre, no Banco de Nova Iorque.

           — Isso deixará Nick feliz — Sam pensou sobre as páginas do Duisean que estavam em posse de Moray e do monge Carlisle. — Ele não leu a mente ao Carlisle por acaso?

           — A Irmandade está procurando na catedral de Carlisle, em busca das diversas partes do Duisean. Mas é pouco provável que encontrem algo. O monge poderia tê-las escondido em qualquer lugar.

           — Você vai me deixar saber se encontrarem algo, certo? — disse Sam. Já começava a sentir falta de sua irmã. Mas não era como antes. Era uma saudade, e não doía. Tabby estava bem. Macleod era realmente um grande cara. E ela tinha Brie na Idade Média. Brie também estava ótima. Tinha Aidan.

           — Vou avisá-la. Desta vez vamos nos manter em contato.

           Sam a olhou atentamente.

           — Eu vi mamãe.

           Tabby se sobressaltou.

            — Não era real, mas foi ótimo.

            Tabby se emocionou.

           — As Rose não morrem. Vamos para outro lugar.

           — Isso é um mito.

           — É? — Tabby sorriu como se soubesse algo que ela ignorava.

            — Como vamos estar em contato? — perguntou Sam.

            — Não acredito que isso seja um problema, Sam.

            O que queria dizer com isso?

            — Eu não estou me mudando para a Idade Média.

            — Eu não disse que você faria isso. Mas enquanto que algumas estamos destinadas a ficar em uma apenas uma época, outras nem tanto.

           Sam a olhou fixamente.

           — E eu sou uma dessas outras.

           — Sim, querida, você é — Tabby a abraçou de repente. — E agora você tem Ian.

            Sam respirou fundo.

     — Tabby , eu o amo, mas ele tem uma tonelada de cicatrizes para curar. O que aconteceu não significa que vamos viver felizes para sempre, lutando juntos na guerra contra o mal, como Guy e você ou Brie e Aidan.

           — Claro que sim — exclamou Tabby alegremente. — Ian é a sua outra metade. Não digo que vai ser fácil, porque ele tem um longo caminho de cura pela frente. Mas ele deu os primeiros passos. E você aprendeu a ter compaixão pelos outros. Vocês estão destinados a aprender juntos. São companheiros de alma.

           Sam se sentou em uma poltrona de brocado dourado.

           — Ele me deixou.

           — Sério? — Tabby lançou um olhar pra ela. — Bem, vocês certamente são um casal agora.

           Antes que Sam pudesse contestar, Brie entrou na sala. Correu para abraçar Sam.

           — Ainda é a mulher mais forte que eu conheci. Estou muito orgulhosa de você.

           — Eu? — Sam riu e abraçou sua prima. — Olhe para você. Toda bonita, tão centrada...! Onde está a minha nerd tímida?

           Sua prima riu.

           — Ela cresceu e muito depressa. Oh, Sam. Somos todas tão sortudas, não somos? — Seus olhos se encheram de lágrimas.

           Sam pensou nelas e em Allie. Pensou em Ian, Guy e Aidan. Pensou em sua mãe.

           — Sim, somos muito sortudas.

           Brie deu-lhe um abraço maternal.

           — E você vai voltar a trabalhar para Nick.

           Sam mordeu o lábio.

           — Bem, suponho que preciso ganhar a vida. E Nick vai me entregar o arquivo de Ian sem condições.

            — Viu? Ele não é tão ruim — Brie riu. Depois ficou séria. — Temos que ir.

            Sam ficou tensa olhando para Tabby.

           — Não é para sempre — disse sua irmã. — Além disso, você tem que começar sua nova vida com Ian.

           — Desde quando se tornou tão sábia? Embora suponha que isso ocorra a todas as Rose com o passar dos séculos — Sam a acompanhou à porta. Ok, isso doeu um pouco — Realmente tem que ir agora?

           — Sim, nós temos — respondeu Tabby. — A Inocência está em perigo em 1527. E sinto falta da minha casa.

            — Está bem, milady, mas isto não é um adeus. É um até breve.

            — Em Los Angeles — respondeu Brie. — Nos deve um jantar.

           Sam riu.

           Quando Tabby e Brie partiram, Sam vestiu um jeans e uma camiseta de alças, sentia-se estranhamente feliz e emocionada. Já sentia falta delas, é obvio. Mas todas as Rose tinham seu destino e o seu era Ian Maclean.

           Ficou quieta. Seu destino era muito mais do que matar demônios. Ela sentia isso profundamente em seus ossos.

           E ele também a amava. Ela o ouviu dizer isso. Quando estava agonizando, ela o ouviu pensar que não podia viver sem ela. E o sentimento era mútuo.

           Sam sentiu sua presença e seu poder. Levantou a vista. Ian estava na porta. Parecia recém-saído do banho e ainda estava com os cabelos úmidos. Usava jeans, uma camisa polo negra e um relógio Cartier, tão sexy e tão elegante e, de algum modo, perigoso. A melhor visão que já teve. Mas ambos estavam em um território que nenhum dos dois ousou entrar antes. Ian tinha uma expressão sombria, inquisitiva. O que isso significava?

           — Ei.

           — Olá — ele se aproximou. — Como você se sente?

           — Melhor do que nunca — respondeu ela suavemente, consciente de que seu coração transbordava de alegria. — Gostaria de se juntar a mim numa bebida?

            — Primeiro quero conversar — aproximou-se e a puxou em seus braços. Sam ficou surpresa com aquela demonstração de afeto. Mas seu corpo rígido teve um efeito imediato sobre ela.

           — Ei? Você está bem?

           Ian ficou pensativo.

           — Hoje, enfrentei a meus torturantes e recordei os piores momentos de meu passado.

            Sam ficou calada. Esquadrinhou seu semblante. Aquele olhar atormentado desapareceu de seus olhos.

           — Você está diferente — disse com cautela.

           Ian esboçou um sorriso fugaz.

           — Sinto-me diferente. Meu pior pesadelo, até hoje, era enfrentar Moray de novo.

            Sam tocou sua bochecha.

     — Mas você enfrentou. E agora ele está morto.

            Ele sacudiu lentamente a cabeça.

     — Esse era meu pior pesadelo. Agora, meu pior pesadelo é que você morra Sam.

           — Eu não morri Ian — hesitou. Então decidiu dizer. — E ouvi você.

           Ele se ruborizou.

           — Você viu os Anciãos?

           Então ele não queria falar de seus sentimentos. Bem, não tinha importância. Ela assentiu com a cabeça.

           — Sim, eu os vi.

           — MacNeil me pediu que eu me unisse à Irmandade. E eu aceitei. Em breve farei os votos.

           Sam estava emocionada e, ao vê-lo sorrir, percebeu que ele estava muito contente. Agarrou-o pelos braços, mas de repente percebeu o que aquilo significava.

           — Você está me deixando — disse, alarmada.

           Ele sacudiu rapidamente a cabeça.

           — Não. Já cometi esse engano uma vez. Eu nuca vou fazer isso de novo.

            Ela conteve a respiração, assombrada.

     — O que você acabou de dizer?

            — Eu disse que não vou deixá-la — seus olhos brilharam. — Eu tenho permissão para viver fora do meu tempo, com você e é isso que vou fazer.

           Sam começou a imaginar o futuro: um futuro com o qual nunca sonhou. Ian e ela em Nova Iorque, melhores amigos, parceiros, amantes e almas gêmeas, lutando juntos contra o mal.

           — Você sempre poderá contar comigo — disse ele com voz áspera.

            Ela apoiou a cabeça em seu peito e sentiu o batimento de seu coração.

           — Ótimo. Já somos dois.

           Ian inclinou o rosto e seus olhos se encontraram...

           — Não será fácil. Eu não sou fácil.

           — Eu adoro desafios.

           Ele esboçou um sorriso.

           — Nunca pensei que teria esta oportunidade.

           Sam sorriu. Seu coração transbordava de alegria.

           — Você merece mais que uma oportunidade. Merece ser feliz. Merece ter uma família. Merece ser um Mestre — em seguida acrescentou: — Você ainda me merece.

           — Eu?

           Ela esfregou os nódulos contra seu peito.

           — Ei, essa é a minha deixa e eu não tenho dúvida. A minha resposta é “sim”.

           — Mas por quê? — ele tinha um olhar brilhante, inquisitivo. — Por que eu?

            Ela não teve que pensar sobre isso.

            — Porque você é o homem mais forte e valente que já conheci. Porque você é minha outra metade.

           — Você conhece meus segredos.

           — Sim, eu os conheço — ficou na ponta dos pés para beijá-lo com firmeza. — É por isso que eu te amo tanto.

           Ele tinha os olhos úmidos.

           — Eu te amo — disse com voz rouca. — Morreria por você, Sam.

            — Eu sei. Mas não se preocupe, ninguém vai morrer nos próximos séculos. Exceto os maus, claro.

            Ian estreitou-a em seus braços. Seu corpo condenadamente interessado agora.

            — Claro que não. — Sam puxou seu cinto. Ela o amava tanto. Nunca o desejou tanto como nesse momento. — Ei, tenho uma ótima grande ideia. Por que não vamos lá em cima fazer amor como na gravação de Rupert?

            Ian Maclean riu. E o som era rico e profundo. O som de um homem que abandonou o seu passado.

 

 

 

[1] Arquitetura grega. A coluna coríntia tem as proporções mais delicadas e lembra uma donzela.

[2] Florence Nightingale (Florença, 12 de maio de 1820 — Londres, 13 de agosto de 1910) foi uma enfermeira britânica que ficou famosa por ser pioneira no tratamento a feridos de guerra, durante a Guerra da Criméia. Ficou conhecida na história pelo apelido de "A dama da lâmpada", pelo fato de servir-se deste instrumento para auxiliar na iluminação ao auxiliar os feridos durante a noite.

[3] São Cuthbert (634 - 20 de Março 687) foi um monge anglo-saxão, bispo e eremita integrante dos mosteiros de Melrose e Lindisfarne no Reino de Northumbria , na época, incluindo, em termos modernos, norte da Inglaterra, bem como o sul -leste da Escócia.

[4] Estudo da ação das forças sobre o estado de movimento dos corpos, ou das mudanças de sistemas físicos e químicos.

[5] No original: Mr. Clean

[6] No original: Mr. Down and Dirty

[7] Do francês: olá

[8] Demônio, espírito maligno.

[9] Decorada conforme a região francesa, famosa pelo vinho tinto.

[10] Poeta celta.

[11] Talvez a mais antiga raça de pôneis do Reino Unido. Escavações na ilha de Shetland, na Escócia, indicam que esta raça existe há pelo menos 2.500 anos.

[12] La Perla marca líder de lingerie de luxo e moda, vestuário, moda praia, para mulheres e homens desde 1954, principalmente nos Estados Unidos e Europa.

[13] Tradução do inglês: oferta; sacrifício; servir; definir; mortos; para oferecer, um sacrifício, oferecê-lo; para servir;

- Tradução provável: oferenda

[14] Inglês arcaico: Maldito, demônio.

[15] Tradução do inglês: oferta; sacrifício; servir; definir; mortos; para oferecer, um sacrifício, oferecê-lo; para servir;

- Tradução provável: oferenda

[16] Hallo – inglês escocês arcaico – Olá

 

                                                                                                    Brenda Joyce

 

 

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