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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Amantes e Inimigos / Nora Roberts
Amantes e Inimigos / Nora Roberts

 

 

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Amantes e Inimigos

 

Era mais um castelo que uma casa. As pedras eram cinzentas, mas chanfradas nas pontas, ao estilo herodiano, de modo que brilhavam com cores ao fundo. As torres maiores e meno­res se destacavam no céu, unidas pelo telhado guarnecido com ameias. As janelas, divididas por barras, eram altas e estreitas e em formato de diamante.

A edificação — Adam jamais a consideraria algo tão comum quanto uma casa — se agigantava por sobre o Hudson, audaciosa e excêntrica, e, se algo assim fosse possível, satisfeita consigo mesma. Se as histórias fossem verdadeiras, elas combinavam perfeitamente bem com o dono. Só precisava de um dragão e um fosso, Adam pensou ao cruzar o pátio ladrilhado.

Havia duas gárgulas ladeando os amplos degraus de pedra. Passou por elas com a reserva natural de um homem prático. Gárgulas e pequenas torres podiam ser aceitáveis em seu devido lugar — mas não na parte rural de Nova York, a poucas horas de carro de Manhattan.

Decidido a guardar sua opinião para si mesmo, ele levantou a pesada aldrava e deixou cair sobre a espessa porta de mogno hondurenho. Após a terceira batida, a porta se abriu. Com um esforço de paciência, Adam baixou os olhos para a pequena mu­lher de grandes olhos cinzentos, tranças negras e rosto coberto de fuligem. Ela usava um suéter surrado e uma calça jeans que já tinha visto dias melhores. Preguiçosamente, ela coçou o nariz com as costas da mão e o encarou também.

— Oi.

Ele conteve um suspiro, pensando que se os funcionários da casa seguiam o padrão de empregadas imbecis, as próximas semanas seriam muito tediosas.

— Sou Adam Haines. O sr. Fairchild está me aguardando — anunciou.

Ela o olhou com curiosidade ou desconfiança, ele não soube precisar.

— Aguardando-lhe? — Seu sotaque era de New England. Depois de ficar olhando por mais um momento ela franziu o cenho, deu de ombros e abriu caminho para ele entrar.

O salão era amplo e parecia sem fim. Os painéis de madeira fulgiam em marrom-escuro e opaco à luz difusa. Raios de luz vazavam de uma janela inclinada e incidiam sobre a pequena mulher, mas ele mal reparou. Quadros. Por enquanto, Adam esqueceu a fadiga da viagem e sua irritação. Esqueceu de tudo, menos dos quadros.

Van Gogh, Renoir, Monet. Museu nenhum podia reivindicar exposição melhor. Sentiu a força do poder. Seus sentidos foram tomados pelos matizes, tons, pinceladas e pela magnificência generalizada. Talvez, de alguma maneira estranha, fosse bom que Fairchild os guardasse em algo parecido com uma fortaleza. Adam se virou e viu a empregada com as mãos negligentemente entrelaçadas e os grandes olhos cinzentos fixos nele. A impaciência retornou.

— Pode se apressar? Diga ao sr. Fairchild que estou aqui.

—  E de quem se trata? — Estava claro que ela não se deixava afetar por impaciência.

—  Adam Haines — ele repetiu. Era um homem acostumado a criados e esperava eficiência.

— É, você disse.

Por um instante ele ficou se perguntando como seus olhos podiam ser nebulosos e límpidos ao mesmo tempo. Parou para pensar no fato de refletirem maturidade e inteligência, contras­tando com as tranças e o rosto sujo.

— Minha jovem... — Ele escolheu bem as palavras, com vagar e distinção. — O sr. Fairchild está à minha espera. Só precisa dizer-lhe que estou aqui. A senhorita pode fazer isto?

Um súbito e deslumbrante sorriso iluminou-lhe o rosto.

— Tá.

Ele ficou desconcertado com aquele sorriso. Percebeu pela primeira vez que ela tinha uma boca lindíssima, farta e delineada. E havia algo... algo debaixo da fuligem. Sem pensar, ele levantou a mão na intenção de limpar um pouco. A tempestade chegou.

— Não posso fazer isso! É impossível, estou dizendo. Uma farsa!

Um homem veio descendo rapidamente a escada longa e curvilínea. Estava com o rosto marcado pela tragédia e sua voz era um grasnido de maldição.

— É tudo culpa sua. — Parou, resfolegante, e apontou o dedo longo e magro para a pequena empregada. — Você está tramando, sem dúvida.

Robin Goodfellow, Adam pensou imediatamente. O homem era a imagem de um gnomo, pequeno e de compleição vivida, o rosto parecia o de um querubim. Os ralos cabelos claros no alto da cabeça quase que se eriçavam. Ele parecia dançar. As pernas finas agitadas no patamar da escada enquanto ele apontava o longo dedo para a mulher. Ela permaneceu imperturbável.

—  Sua pressão sangüínea está aumentando, sr. Fairchild. É melhor o senhor respirar fundo antes de ter um ataque.

—  Ataque! — Insultado, ele dançou mais rápido. Seu rosto ficou mais rosado, pelo esforço. — Eu não tenho ataques, garota. Nunca tive um ataque em minha vida.

—  Sempre há uma primeira vez. — Ela balançou a cabeça, mantendo os dedos levemente entrelaçados. — O sr. Adam Haines veio ver o senhor.

— Haines? Que diabo Haines tem a ver com isso? É o fim, estou dizendo. O apogeu. — Levou a mão dramaticamente ao coração. Os claros olhos azuis marejaram e Adam achou que ele fosse chorar. — Haines? — ele repetiu. Voltou-se abruptamente para Adam com um largo sorriso. — Estou lhe esperando, não estou?

Adam estendeu a mão cautelosamente.

— Sim.

— Que bom que você pôde vir, eu estava ansioso. — Ainda sorrindo, ele apertou a mão de Adam. — Na saleta — ele disse, soltando a mão de Adam para segurá-lo no braço. — Vamos beber algo. — Ele caminhava com o passo vigoroso de um homem que não tinha preocupação na vida.

Na saleta, Adam percebeu as antigüidades e revistas antigas. Fairchild indicou um sofá de crina de cavalo que era extraor­dinariamente confortável e ele se sentou. A empregada foi até uma enorme lareira de pedra e começou a esfregar por dentro, assoviando afinadamente.

— Vou tomar um uísque. — Fairchild resolveu, e pegou uma garrafa de Chivas Regai.

— Para mim está ótimo.

—  Admiro seu trabalho, Adam Haines. — Fairchild ofereceu o uísque com a mão firme. Seu rosto era calmo e a voz, mode­rada. Adam ficou imaginando se a cena na escada havia sido imaginação.

—  Obrigado. — Adam bebericou do uísque, observando o pequeno gênio à sua frente.

Pequenas rugas irradiavam dos olhos e da boca de Fairchild. Não fossem por elas e pelo cabelo ralo, passaria por um homem muito jovem. Sua aura de juventude parecia emanar de uma vitalidade interna, uma energia febril. Os olhos eram de um azul cristalino. Adam sabia que eles eram capazes de enxergar além das outras pessoas.

Philip Fairchild era, indiscutivelmente, um dos maiores artistas vivos do século XX. Seu estilo ficava entre o extravagante e o elegante, com um toque de tudo entremeado. Por mais de trinta anos ele desfrutou uma posição de fama, riqueza e respeito em meios artísticos e populares, algo que, em sua profissão, muito poucas pessoas conseguiram na vida.

E ele desfrutava de tudo, com seu temperamento que oscilava entre pomposo, irascível e generoso. De tempos em tempos, ele convidava outros artistas para sua casa no Hudson para passar semanas ou meses trabalhando, absorvendo ou simplesmente relaxando. Em outras ocasiões, não deixava ninguém passar da porta e entrava em reclusão total.

—  Fico contente com a oportunidade de trabalhar aqui por algumas semanas, sr. Fairchild.

—  O prazer é meu. — Tomou um gole do uísque e se sentou, gesticulando majestosamente com a mão, como se fosse um rei concedendo bênçãos.

Adam conseguiu conter um sorriso debochado.

—  Estou ansioso para estudar de perto algumas de suas telas. E incrível a variedade em seu trabalho.

—  Variedade é para o que vivo — disse Fairchild com uma risadinha. Da lareira veio um nítido urro. — Pirralha desrespeitosa — Fairchild resmungou com o copo na boca. Quando ele fez cara feia, a empregada jogou uma trança sobre o ombro e atirou o pano ruidosamente no balde. — Cards! — Fairchild aumentou a voz tão subitamente que Adam quase derrubou o uísque no colo.

— Desculpe?

—  Não há por quê — Fairchild disse graciosamente e gritou de novo. Ao segundo grito entrou na saleta a epítome dos mor­domos.

—  Sim, sr. Fairchild. — Sua voz era séria e levemente britâni­ca. O terno escuro que ele usava fazia discreto contraste com os cabelos brancos e a pele pálida. Ele parecia um soldado.

— Cards, cuide do carro e da bagagem do sr. Haines. Quarto de hóspedes Wedgwood.

— Muito bem, senhor — O mordomo concordou, após a mu­lher na lareira assentir com um ligeiro gesto de cabeça.

— E ponha seu equipamento no ateliê de Kirby — Fairchild acrescentou, dando risada ao ouvi-la engasgar dentro da lareira.

— Espaço de sobra para vocês dois — ele disse a Adam antes de fazer uma careta. — Minha filha, sabe. Ela está fazendo escultura, vive atolada em argila ou tirando lascas de madeira ou mármore. Não agüento isso. — Fairchild pegou o copo com ambas as mãos e abaixou a cabeça. — Deus sabe que eu tento. Coloquei minha alma nisto. E para quê? — ele perguntou, levantando a cabeça novamente. — Para quê?

— Lamento não poder...

— Fracasso! — Fairchild lamentou, interrompendo-o. — Ter de lidar com o fracasso na minha idade. Você está tramando — ele disse novamente à moreninha. — Você tem de tolerar... se conseguir.

Ela se virou e sentou na lareira, cruzando as pernas, e esfregou o nariz, deixando-o ainda mais sujo de fuligem.

—  Fica difícil de o senhor me culpar por ser tão admirado e mesmo assim ser uma alma perdida. — O sotaque desapareceu. Sua voz estava baixa e suave, sugerindo escolas européias de aperfeiçoamento. Adam a olhou com mais atenção. — Você está determinado a ser melhor do que eu — ela prosseguiu. — Por­tanto, estava fadado ao fracasso antes de começar.

—  Fadado ao fracasso! Fadado ao fracasso, eu? — Ele já estava de pé e dançando de novo, respingando uísque do copo. — Philip Fairchild vencerá, sua pirralha sem coração. Ele vencerá! Você engolirá suas palavras.

—  Besteira. — Ela bocejou deliberadamente. — Você tem seu meio, papai, e eu tenho o meu. Aprenda a conviver com a idéia.

— Nunca. — Ele bateu com a mão no coração novamente. — Derrota não existe no meu vocabulário.

— Agora sim — ela corrigiu, e se levantou para confiscar o resto do uísque.

Ele olhou com cara feia para ela, e em seguida para o copo vazio.

— Estava falando metaforicamente.

— Que sagaz. — Ela beijou-lhe o rosto, deixando um pouco de fuligem.

— Seu rosto está imundo — Fairchild resmungou.

Ela arqueou uma sobrancelha e passou o dedo na bochecha dele.

— O seu também.

Sorriram um para o outro. Por um momento, a semelhança era tão evidente que Adam ficou pensando como não percebera antes. Kirby Fairchild, filha única de Philip, artista respeitado e excêntrico por mérito próprio. Adam se perguntou o que a queridinha do jet set internacional estava fazendo ajeitando a lareira.

— Vamos, Adam. — Kirby voltou-se para ele com um sorriso displicente. — Vou lhe mostrar seu quarto. Você parece cansa­do. Ah, papai — acrescentou enquanto caminhava em direção à porta— , chegou a People desta semana. Está na mesinha. Isso vai entretê-lo — ela disse a Adam, conduzindo-o escadas acima.

Ele a seguiu lentamente, notando que ela caminhava com a graça impecável de uma mulher que aprendeu a se deslocar. As tranças balançavam nas costas. Calça jeans desbotada nas partes mais gastas, sem marca de grife no bolso traseiro. Os tênis Nike tinham cadarços partidos.

Kirby caminhou pelo segundo andar, passando por meia dúzia de portas e, então, parou. Olhou para as mãos e depois para Adam.

— Ê melhor você abrir. Senão vou sujar a maçaneta.

Ele abriu a porta e se sentiu como se estivesse voltando no tempo. O azul de cerâmica Wedgwood dominava as cores. Os mó­veis eram todos do período georgiano médio: cadeiras entalhadas, mesas trabalhadas com ornamentos. E também havia pinturas, mas desta vez o que chamou sua atenção foi a mulher atrás dele.

—  Por que fez isto?

—  Isto o quê?

— Aquele fingimento todo na porta. — Ele voltou até a soleira da porta onde ela estava. Ao olhar para baixo, calculou de cabeça que ela mal chegava ao metro e meio. Pela segunda vez ele sentiu o ímpeto de limpar a fuligem para ver o que havia naquele rosto.

— Você pareceu muito educado, mas emburrado. — Ela se encostou à ombreira da porta. Havia uma elegância nele que a intrigava, pois seus olhos demonstravam força e arrogância. Ela não sorriu, apesar de ser perceptível em sua expressão que estava se divertindo. — Estava esperando uma empregadinha estúpida, então facilitei para você. As bebidas serão servidas às 19h. Sabe voltar sozinho ou devo vir buscá-lo?

Ele achou que já estava de bom tamanho, por enquanto.

—  Eu chego lá.

—  Tudo bem. Ciao, Adam.

Fascinado a contragosto, ele ficou observando enquanto ela virou no fim do corredor. Talvez Kirby Fairchild fosse uma figurinha tão difícil e interessante quanto o pai. Mas isto seria para depois.

Adam fechou e trancou a porta. Suas malas ainda estavam cuidadosamente colocadas ao lado do armário de pau-rosa. Pe­gou a pasta e usou a combinação para abrir. Tirou um pequeno transmissor e apertou um interruptor.

—  Estou aqui.

—  Senha. — Foi a resposta.

Ele soltou um palavrão, suave e distintamente.

—  Gaivota. E esta é, sem sombra de dúvida, a senha mais ridícula de todos os tempos.

—  Rotina, Adam. Temos de seguir a rotina.

—  Claro. — Não houve nada parecido com rotina desde que ele parou o carro no alto da árdua e sinuosa estradinha. — Estou aqui, McIntyre, e quero que saiba o quanto estou contente por você me jogar neste hospício. — Deu um peteleco com o polegar e silenciou McIntyre.

Sem parar para se lavar, Kirby subiu correndo as escadas até o ateliê do pai. Abriu a porta e bateu com tanta força que potes e tubos de tinta tremeram nas prateleiras.

— O que você fez desta vez? — ela perguntou, imperativa.

— Estou começando de novo. — Sobrancelhas ralas franzidas, ele se debruçou sobre um pedaço úmido de argila. — Reiniciando. Renascendo.

— Não estou falando de suas tentativas inúteis com a argila. Adam Haines — ela disse antes que ele pudesse rebater. Com a delicadeza de um pequeno tanque, ela avançou sobre ele. Anos antes, Kirby aprendera que tamanho não importa para quem tem o dom de intimidar. Ela o desenvolveu meticulosamente. Bateu com as palmas das mãos sobre a mesa de trabalho e ficou cara a cara com ele. — O que pretende ao convidá-lo para ficar aqui sem sequer me avisar?

— Ora, ora, Kirby. — Fairchild não tinha vivido seis décadas sem ter aprendido a ser dissimulado e ardiloso. — Simplesmente me fugiu.

Kirby sabia melhor que ninguém que ele não se esquecia de nada.

—  Qual a sua intenção, papai?

—  Intenção? — Ele deu um sorriso sincero.

—  Por que o convidou exatamente agora?

— Admirei o trabalho dele. E você também — ele alegou ao vê-la apertar os lábios. — Ele escreveu uma carta tão bonita no mês passado sobre Scarlet Moon, quando estava em exposição no Metropolitan.

Ela arqueou a sobrancelha com um movimento elegante de­baixo de uma camada de fuligem.

— Você não convida todo mundo que elogia seu trabalho.

— Claro que não, meu bem. Isto seria impossível. É preciso ser... seletivo. Agora tenho de voltar ao trabalho enquanto o clima está fluindo.

— Algo vai fluir — ela prometeu. — Papai, se você pensa em vir com outra estratégia depois que prometeu...

— Kirby! — Seu rosto redondo e liso estremeceu de emoção. Seus lábios tremeram. Era apenas mais um de seus talentos. — Você duvida da palavra de seu próprio pai? De cuja semente você foi gerada?

— Isto me faz parecer uma gardênia, e não vai dar certo. — Ela cruzou os braços. Fazendo cara feia, Fairchild apalpou a argila informe.

—  Meus motivos são totalmente altruísticos.

—  Hum, hum.

—  Adam Haines é um jovem artista brilhante. Você mesma disse.

—  Sim, ele é, e tenho certeza de que seria uma companhia encantadora em outras circunstâncias. — Ela se inclinou para o pai, segurou-lhe o queixo e acrescentou: — Não agora.

—  Indelicada — Fairchild disse com desaprovação. — Sua mãe, que Deus a tenha, ficaria muito decepcionada com você.

Kirby rangeu os dentes.

— Papai, o Van Gogh!

— Está indo muito bem — ele afirmou. — Só mais uns dias.

Ciente de que estava prestes a gritar de raiva, ela foi até a janela da torre.

— Ah, maldição!

Senilidade, ela concluiu. Só podia ser senilidade. Como pôde considerar ter aquele homem aqui agora? Semana que vem, mês que vem, mas agora? Aquele homem, Kirby pensou friamente, não era nenhum bobo.

À primeira vista ela pensou que ele não era só atraente — mui­to atraente — , mas esperto. Aqueles grandes olhos fulgiam de in­teligência. A boca longa e fina representava determinação. Talvez ele fosse um pouco pomposo em seus modos e comportamento, mas não era suave. Não, ela tinha uma certeza instintiva de que Adam Haines era um osso duro de roer.

Ela gostaria de esculpi-lo em bronze, meditou. O nariz reto, os ângulos e planos agudos de seu rosto. Seu cabelo era quase cor de bronze profundo, reluzente, e só um pouquinho mais longo que o convencional. Ela queria capturar seu ar de arrogância e autoridade. Mas não agora!

Deu um suspiro e mexeu os ombros. Fairchild sorriu pelas costas dela. Quando ela se virou novamente para ele, Fairchild já estava deliberadamente concentrado na argila.

— Ele vai querer subir aqui, sabe? — Apesar da fuligem, ela enfiou as mãos nos bolsos. Tinham um problema; agora era preciso lidar com ele. Por boa parte de sua vida, Kirby teve de resolver as confusões que o pai criava. A verdade era que ela não tinha opção. — Seria esquisito não lhe mostrarmos seu ateliê.

— Amanhã mostraremos.

—  Ele não pode ver o Van Gogh. — Kirby fincou pé, pronta para brigar, e havia muitos pontos a defender. — O senhor não vai complicar as coisas mais ainda.

—  Ele não vai ver. Por que veria? — Fairchild deu uma olhada para cima, os olhos bem abertos. — Não tem nada a ver com ele.

Apesar de saber que era tolice, Kirby estava mais que certa. Não, não veria, ela pensou. Seu pai podia ser um pouco... peculiar, mas não era negligente. Nem ela.

— Graças a Deus está quase no fim.

— Mais uns dias e lá se vai, para o alto das montanhas da América do Sul. — Ele fez um gesto vago e de movimento com as mãos.

Kirby foi para o outro lado e descobriu a tela que estava em um cavalete no canto oposto. Observou-o como artista, amante das artes e filha.

A cena pastoral não era tranqüila e sim vibrante. As pinceladas eram irregulares, quase brutais, emprestando à paisagem simples um padrão frenético de movimento. Não, aquela tela não ficava parada esperando admiração. Ela pegava e agarrava pelo pescoço. Transmitia uma mensagem de dor, triunfo, agonias e prazeres. Seus lábios se apertaram, pois ela não tinha escolha. Ela sabia que Van Gogh não faria melhor.

— Papai. — Quando ela virou a cabeça, seus olhos se encontra­ram em perfeito entendimento. — O senhor é incomparável.

 

Às 19h Kirby já havia não apenas se resignado com o convida­do da casa, mas se preparado para entretê-lo. Era um traço básico de seu caráter procurar se divertir com aquilo que era obrigada a suportar. Estava se servindo de vermute quando percebeu que estava ansiosa para revê-lo e conseguir se embrenhar debaixo daquela máscara. Estava sentindo que Adam Haines devia ter várias camadas fascinantes.

Sentou-se em uma cadeira de espaldar alto, cruzou as pernas e voltou à falação louca e fora de controle do pai.

—  Ela me odeia, me frustra o tempo todo. Por quê, Kirby? — Ele abriu as mãos em súplica apaixonada. — Sou um homem bom, pai amoroso, amigo leal.

—  É sua atitude, papai. — Ela deu de ombros ao beber. — A culpa é do seu emocional.

—  Não há nada errado com meu emocional. — Fairchild fun­gou e levantou sua taça. — Não tem droga nenhuma de errado comigo. O problema é a argila, não eu.

—  O senhor é convencido — ela disse com simplicidade. Fairchild foi subindo seu tom de voz em desaprovação.

—  Convencido? Convencido? Que palavra diabólica é esta?

—  Adjetivo. Quatro sílabas, dez letras.

Adam ouviu a interação paralela enquanto caminhava para o salão. Após uma tarde tranqüila, ficou imaginando se estava pronto para lidar com mais uma crise de loucura. A voz de Fair­child subia gradualmente, e quando Adam parou na entrada, pôde constatar que o artista estava pronto para outra.

McIntyre pagará por isto, Adam pensou. Fazia questão que a vin­gança fosse lenta e meticulosa. Quando Fairchild apontou um dedo acusador, Adam foi até ele. Por um instante ele sentiu-se aturdido. A mulher na cadeira havia se desfeito da limpadora de chaminé suja e de trança que considerou quase impossível associá-las. Ela estava usando um vestido fino de seda tão escuro quanto seus ca­belos; drapejado nas beiradas e com uma fenda do lado que deixava entrever uma das coxas lisas. Ele estudou seu perfil enquanto ela observava o desvario do pai. Era um perfil delicadamente moldado, classicamente oval e com maçãs do rosto sutilmente pronunciadas. Seus lábios eram fartos, agora com um leve sorriso. Sem a fuligem, sua pele estava em algum ponto entre o dourado e o mel, com exuberante suavidade. Apenas os olhos lhe faziam lembrar que era a mesma mulher: cinzentos, grandes e divertidos. Ela jogou para trás os cabelos negros que lhe cobriam os ombros.

Havia algo além de beleza ali. Adam sabia que já tinha visto antes mulheres mais bonitas do que Kirby Fairchild. Mas havia alguma coisa... Ele procurou a palavra, mas não encontrou.

Como se o sentisse, ela se virou — só a cabeça. Mais uma vez o encarou, abertamente e com curiosidade, enquanto o pai continuava com seu desatino. Ela sorriu lentamente, bem lenta­mente. Adam sentiu como se tivesse levado um soco.

Sexo, ele concluiu, subitamente. Kirby Fairchild exalava sexo da mesma maneira que outras mulheres exalavam perfume. Sexo primitivo e sem culpa nenhuma.

Dando uma rápida avaliada que lhe era típica, Adam concluiu que não seria fácil disfarçar. Independentemente de como fosse lidar com Fairchild, tinha de saber bem onde estava pisando com a filha dele. Concluiu também que já queria fazer amor com ela. Tinha de lidar com as coisas muito bem.

—  Adam. — Ela falou com um tom de voz suave que, não obstante, sobrepujou a gritaria do pai. — Parece que você nos achou. Venha, papai está quase pronto.

—  Pronto? Estou arruinado. E pela minha própria filha. — Fairchild foi até Adam ao vê-lo entrar. — Convencido — ele disse. — Eu lhe pergunto, isto é termo para uma filha usar?

—  Um aperitivo? — Kirby perguntou. Levantou-se com uma fluidez que Adam sempre associou às mulheres altas e esguias.

—  Sim, obrigado.

—  O quarto está de seu agrado? — Fairchild, o rosto agora coberto por sorrisos, deixou-se cair abruptamente no sofá.

—  Sim, muito. — Adam concluiu que a melhor maneira de lidar com a situação seria fazer de conta que estava tudo normal. Afinal, fingir era parte do jogo. — Vocês têm uma casa... espetacular.

—  Gosto dela. — Satisfeito, Fairchild reclinou-se. — Foi construída perto da virada do século por um lorde inglês insano e rico. Amanhã você mostra a casa para ele, não é, Kirby?

— Claro. — Entregou uma taça a Adam, sorrindo-lhe. Diamantes, frios como gelo, cintilavam em suas orelhas. Dava

para ele sentir que o calor estava aumentando.

— Mal posso esperar. — Estilo, ele concluiu. Natural ou ad­quirido, a srta. Fairchild tinha estilo.

Ela sorriu por sobre a borda da taça, pensando precisamente a mesma coisa sobre Adam.

— Queremos agradar.

Cauteloso, Adam virou-se para Fairchild novamente.

— Sua coleção de arte faz frente às de museus. O Tiziano em meu quarto é fabuloso.

O Tiziano, Kirby pensou em pânico. Como podia ter esque­cido? O que poderia fazer agora? Não fazia diferença. "Não faz diferença", ela reafirmou para si mesma. Nem podia fazer, porque não havia mais nada a ser feito.

A paisagem do Hudson na parede a oeste... — Adam se voltou para ela bem quando Kirby estava procurando relaxar — é um de seus trabalhos?

Meu... Ah, sim. — Ela sorriu ao lembrar. Ela lidaria com o Tiziano na primeira oportunidade. — Esqueci. Receio que seja um tanto sentimental. Eu tinha voltado para casa depois de me formar e tinha uma queda pelo filho do chofer. Costumávamos namorar por lá.

Ele era dentuço — Fairchild a fez lembrar-se com uma risada de deboche.

O amor a tudo conquista — Kirby concluiu.

A margem do rio Hudson é um lugar e tanto para se perder a virgindade — disse o pai, subitamente severo. Agitou a bebida na taça e bebeu.

Aproveitando a repentina desaprovação paterna, ela resolveu debochar.

— Não perdi a virgindade na margem do rio Hudson. — Seus olhos brilharam, achando graça. — Perdi em um Renault em Paris.

"O amor a tudo conquista", Adam repetiu em silêncio.

— O jantar está servido — Cards anunciou da entrada, com dignidade.

— E já não era sem tempo. — Fairchild levantou-se de um salto. — Desse jeito um homem morre de fome na própria casa.

Sorrindo pelas costas do pai, Kirby ofereceu a mão a Adam. — Vamos?

As telas de Fairchild predominavam na sala de jantar. Um enorme lustre-candelabro Waterford iluminava o mogno e os cristais. Em uma enorme lareira de pedra crepitava o fogo. Os aromas eram de madeira queimada, velas e carne assada. Havia rendas e pratarias bretãs. Mesmo assim, suas pinturas predomi­navam.

Parecia que ele não tinha estilo específico. A arte era seu estilo, fosse pintando uma paisagem irregular e cheia de iluminação ou um retrato delicado e sombreado. Pinceladas ousadas ou delica­das, óleos marcados por espátulas ou aquarelas enevoadas, ele fizera todas as telas. E magnificamente.

Variada como suas telas era sua opinião sobre outros artistas. Sentados à longa e farta mesa, Fairchild falou de todas as per­sonalidades da arte, como se tivesse se transportado no tempo e desenvolvido relações com Rafael, Goya, Manet.

Suas teorias eram intrigantes, seu conhecimento era impres­sionante. O artista que havia em Adam se identificava com ele. O lado prático, que estava lá para fazer um serviço, manteve a cautela. Forças antagônicas o deixaram pouco à vontade. Sua atração pela mulher à sua frente lhe causava comichões.

Maldito McIntyre.

Adam concluiu que as semanas com os Fairchild seriam interessantes, a despeito de suas excentricidades. Ele não se im­portou com as complicações, mas se deixou levar. Por enquanto, procuraria relaxar e observar, esperando a hora de agir.

As informações que tinha sobre eles eram incompletas. Fairchild acabara de completar 60 anos, viúvo há quase vinte. Sua arte e seu talento não eram segredo, mas sua vida pessoal era velada. Talvez por temperamento. Talvez, Adam conjeturou, por necessidade.

Quanto a Kirby, pouco sabia. Na vida profissional, mantivera perfil discreto até sua primeira exposição no ano anterior. Ape­sar de ter sido um sucesso sem precedentes, tanto ela quanto o pai raramente buscavam publicidade para o trabalho. Na vida pessoal, era figura freqüente nas revistas de fofocas e imprensa marrom ao viajar para Saint Moritz com o campeão de tênis do ano, ou para a Martinica com a atual esperança de Hollywood. Sabia que ela tinha 27 anos e que não era casada. Não por falta de oportunidade, concluiu. Ela era do tipo de mulher que os homens perseguiam o tempo todo. Em outro século, ela seria do tipo de mulher por quem os homens duelariam. Adam pensou que ela teria adorado o melodrama.

Por sua vez, os Fairchild sabiam de Adam apenas o que era de conhecimento público. Nascera em família com posses, o que lhe dera tempo e recursos para que desenvolvesse seu talento. Aos 20 anos, sua reputação como artista começou a se firmar. Doze anos mais tarde, estava bem estabelecido. Vivera em Paris, depois na Suíça, até se estabelecer nos Estados Unidos.

Ainda assim, quando tinha seus vinte e poucos anos, viajou bastante enquanto pintava. Para Adam, a arte sempre vinha primeiro. Todavia, debaixo do exterior composto, debaixo da praticidade e sofisticação, havia um gosto pela aventura e um traço de argúcia. E havia também McIntyre.

Ele só precisava aprender a se controlar, era o que dizia ao pensar em McIntyre. Só precisava aprender a dizer não, não mesmo. Da próxima vez que Mac tivesse uma inspiração, que fosse ao inferno com ela.

Quando voltaram à sala de visitas para tomar café e conha­que, Adam calculou que poderia terminar o serviço em umas duas semanas. O lugar era realmente imenso, mas havia poucas pessoas nele. Depois que ela lhe mostrasse a casa, já saberia se situar bem. Depois seria rotina.

Satisfeito, concentrou-se em Kirby. No momento, ela era a anfitriã perfeita: encantadora e agradável. Pura classe e sofistica­ção. Era, momentaneamente, o tipo exato de mulher que sempre o atraiu: bem-arrumada, com bons modos, inteligente, graciosa. O recinto cheirava a estufa de rosas, fumaça de madeira e ao perfume tênue que dela emanava, e que parecia combinar os dois. Adam começou a ficar à vontade com o aroma.

—  Por que você não toca, Kirby? — Fairchild serviu mais conhaque para si mesmo e para Adam. — Ajuda a clarear minha mente.

—  Tudo bem. — Dando um rápido sorriso para Adam, Kirby foi até a outra extremidade do recinto, passando o dedo por so­bre um instrumento em forma de asa que ele presumiu se tratar de um pequeno piano.

Bastaram algumas notas para ele perceber que estava errado. É um cravo, ele pensou, atônito. A música flutuou no ar. Bach. Adam reconheceu o compositor e pensou se teria descido o bu­raco do coelho.[1] Ninguém — ninguém normal — tocava Bach no cravo em um castelo no século XX.

Fairchild ficou sentado com os olhos semicerrados, um dedo fino batucando, enquanto Kirby continuava a tocar. O olhar dela estava sério, a boca, ligeiramente úmida e grave. De repente, sem errar uma nota nem mover outro músculo, ela piscou lentamente para Adam. As notas fluíram, transformando-se em Brahms. Naquele instante, Adam soube que não apenas a levaria para a cama, pintaria seu retrato.

— Consegui! — Fairchild levantou-se de um salto e começou a arrastar os pés de um lado para outro pela sala. — Consegui. Inspiração. A luz dourada!

—  Amém — Kirby murmurou.

—  Você vai ver, garota ferina. — Sorrindo como uma de suas gárgulas, Fairchild se debruçou sobre o cravo. — No fim da se­mana terei um trabalho que vai fazer tudo o que você fez parecer um batente de porta.

Kirby levantou as sobrancelhas e deu-lhe um beijo na boca.

—  Baboseira.

—  Você vai engolir suas palavras — ele avisou, saindo do recinto.

—  Sinceramente, espero que não. — Ela se levantou e pegou sua bebida. — Papai tem uma tendência bastante competitiva. — O que costumava lhe agradar. — Mais conhaque?

—  Seu pai tem uma... personalidade única.

Uma esmeralda cintilou em sua mão quando ela levantou a taça. Ele viu que ela tinha mãos finas e delicadas, contrastando com o brilho duro da pedra preciosa. Mas havia força nelas, ele procurou lembrar enquanto a acompanhava até o bar. Força era algo indispensável para uma artista.

— Você é diplomático. — Ela se virou e levantou os olhos para ele. Havia um traço ínfimo de rosa em seus lábios. — Você é uma pessoa muito diplomática, não é, Adam?

Ele já havia aprendido a não confiar em expressões angelicais.

—  Em determinadas circunstâncias.

—  Na maioria das circunstâncias. É uma pena.

—  É?

Como ela gostava de contato pessoal durante todo tipo de confronto, manteve os olhos nos dele enquanto bebia. Sua íris era do cinza mais puro que jamais vira, sem traço de outras cores.

—  Acho que você seria um homem muito interessante se não fosse tão preso. Acho que você pensa muito bem em tudo, com todo cuidado.

—  Você acha que isto é problema? — Ele esfriou a voz. — É uma observação notável em tão pouco tempo.

Não, ele não devia ser nenhum chato, ela concluiu, satisfeita por ele se irritar. O que Kirby achava maçante era a falta de emoção.

— Eu poderia ter chegado facilmente a esta conclusão depois de uma hora, mas já vi seu trabalho. Além de talento, você tem autocontrole, dignidade e um forte senso do convencional.

— Por que me sinto como se estivesse sendo insultado?

— Perceptivo, também. — Ela sorriu com aquela vaga curva dos lábios que era fascinante contemplar. Ela se decidiu rapi­damente quando ele correspondeu ao sorriso. Ela sempre en­contrava a melhor maneira. Ainda observando-o, ela pôs a taça sobre uma mesa. — Sou impulsiva — ela explicou. — Quero experimentar a sensação.

Seus braços o envolveram, seus lábios nos dele, em um movi­mento que o pegou completamente despreparado. Ele teve uma impressão muito breve de fumaça de madeira e rosas, e de sua­vidade e uma força inacreditável, até ela recuar. Um leve sorriso permaneceu quando ela pegou seu conhaque e bebeu o restante. Gostara do rápido beijo, mas gostara ainda mais de chocá-lo.

— Muito bom — ela disse com ambígua aprovação. — O café-da-manhã é a partir das 7h. Basta chamar Cards se precisar de alguma coisa. Boa noite!

Ela se virou para sair, mas ele a pegou pelo braço. Quando percebeu, Kirby já havia girado. Quando seus corpos colidiram, a surpresa foi dela.

— Você me pegou desprevenido — ele disse baixinho. — Posso fazer bem melhor.

Ele tomou-lhe a boca rapidamente, seus corpos se moldaram. Suave e firme, seda fina e linho rústico. Havia algo primitivo no sabor dela, algo... além da idade. Ela o fazia lembrar os bosques de uma noite de outono: escuros, pungentes e cheios de peque­nos mistérios.

O beijo ficou mais longo e profundo sem que nenhum dos dois planejasse. A reação dela foi instantânea, como suas reações costumavam ser. Foi sem limites, como costumavam ser. Ela pas­sou as mãos pelos ombros dele, pelo pescoço, pelo rosto, como se já estivesse esculpindo. Algo vibrava entre eles.

No momento, o sangue dominou. Ela estava acostumada a isto; ele não estava. Ele estava acostumado à razão, mas não en­controu nenhuma. Havia calor e paixão, necessidades e desejos sem perguntas nem respostas.

No final das contas ele recuou, relutante. Cautela, pois ele estava acostumado a ganhar, era seu jeito.

Ela ainda sentia seu gosto. Kirby pensou, ao sentir seu hálito roçando seus lábios, como o julgara mal. Sua cabeça estava girando, algo novo para ela. Ela compreendia o sangue quente, a pulsação acelerada, mas não a névoa em sua mente. Sem saber por quanto tempo ele ainda manteria a vantagem, Adam sorriu para ela.

—  Melhor?

—  Sim. — Ela esperou até o chão ficar firme de novo sob seus pés. — Foi uma melhora e tanto. — Como seu pai, ela sabia ser dissimulada e ardilosa. Ficou mais tranqüila e foi até a porta. Tinha de pensar, reavaliar.

—  Quanto tempo ficará aqui, Adam?

—  Quatro semanas — ele disse, achando estranho ela não saber.

— Pretende dormir comigo antes de ir embora? — Dividido entre divertimento e admiração, ele a observou.

Ele respeitava a sinceridade, mas não estava acostumado a uma sinceridade tão brusca. Neste caso, resolveu fazer o mesmo.

— Sim.

Ela assentiu, ignorando a sensação que lhe subia pela espi­nha. Jogos, ela gostava de jogar. De vencê-los. Kirby sentiu que um jogo estava apenas começando entre ela e Adam.

— Terei que pensar nisto, não é? Boa noite.


 

Raios do sol matinal entravam pelas longas janelas da sala de jantar, projetando-se no piso em padronagens no formato de diamantes. Lá fora as árvores tinham o toque de setembro. Folhas passavam do alaranjado para o carmesim, as cores se misturando com dourados e acobreados e com os verdes que ainda persistiam. A grama estava viva com as flores e os arbustos caídos, que pareciam ter se incendiado. Adam deu as costas para a paisagem e passou a estudar as telas de Fairchild.

Mais uma vez, Adam ficou impressionado com a incrível variedade de estilos que Fairchild cultivava. Havia uma natureza-morta com as luzes e sombras de um Goya, uma paisagem com as cores frenéticas de um Van Gogh, um retrato com a sensibi­lidade e a graça de um Rafael. Devido ao tema, foi este quadro que lhe atraiu a atenção.

Uma mulher frágil, de cabelos escuros, olhava para ele. Havia um ar de serenidade nela, de paciência. Os olhos eram do mesmo tom de cinza puro que os de Kirby, mas as feições eram mais de­licadas, ainda mais. A mãe de Kirby tinha uma beleza rara, uma mulher rara que parecia ter tido tanto força quanto compreensão.

Não teria limpado uma lareira, mas teria entendido a filha que o fez. O fato de Adam conseguir perceber isto, e, com certeza, sem jamais ter conhecido Rachel Fairchild, só fazia provar o gênio de Fairchild. Ele criava vida com óleo e pincel.

A próxima pintura, executada no estilo de Gainsborough, era um retrato de corpo inteiro de uma jovem. Brilhantes cachos negros caíam sobre os ombros vestidos de musselina branca, dobrando no corpete e formando a saia. Ela estava de meias brancas e graciosos sapatos pretos de fivela. Os toques de cor vinham do grande cinto cor-de-rosa na cintura e das rosas escu­ras que ela carregava em uma cesta. Mas esta não era nenhuma menininha recatada.

A menina tinha a cabeça empinada, com uma ligeira inclinação de arrogância juvenil. O meio sorriso indicava malícia, enquanto os grandes olhos cinzentos dançavam com as duas coisas. Não devia ter mais de 11 ou 12 anos, Adam calculou. Já naquela época, Kirby devia dar trabalho.

— Uma criança adorável, não é? — Kirby estava à porta, aliás, fazia cinco minutos. Ela gostava de observá-lo e dissecá-lo tanto quanto Adam gostava de dissecar a pintura.

Ele se endireitou — escola secundária, Kirby concluiu. Mas as mãos continuam confortavelmente enfiadas nos bolsos. Apesar de estar usando suéter e calça jeans, havia nele um ar formal. Os contrastes a intrigavam como mulher e como artista.

Adam se virou e a estudou meticulosamente, como fizera com a pintura. No dia anterior ele a vira passar de moleca encardida a mulher sofisticada. Hoje ela era a imagem da artista boêmia. O rosto sem maquiagem e sem moldura, com os cabelos presos em um rabo-de-cavalo que lhe caía pelas costas. Para sua irritação, continuava a achá-la atraente.

Ela virou a cabeça e, por acidente ou desígnio, o raio de sol lhe cobriu o perfil. Naquele instante, ela estava de tirar o fôlego. Kirby suspirou ao observar o próprio rosto.

—  Um verdadeiro anjo.

—  Ao que parece, o pai sabia que não era bem assim.

Ela deu uma risada alta e farta. A voz calma e seca que ele tinha a agradava enormemente.

— Quanto a isto é verdade, mas é algo que nem todos perce­bem, — Ela estava contente por ele ter percebido, simplesmente porque sabia apreciar olhos atentos e mentes engenhosas. — Já tomou o café-da-manhã?

Ele relaxou. Ela havia se virado novamente, de modo que a luz já não lhe iluminava mais o rosto. Ela era apenas uma mulher atraente e simpática.

— Não, estava ocupado me impressionando.

— Ah, bem, não se deve ficar impressionado de estômago vazio. É fatal para a digestão. — Ela apertou um botão e deu-lhe o braço, levando-o à mesa. — Após comermos, vou lhe mostrar a casa.

— Adoraria. — Adam sentou-se à frente dela.

Agora, pela manhã, ela não usava perfume, a não ser o do sabonete: limpa e assexuada. E o excitou mesmo assim.

Uma mulher entrou no recinto caminhando pesadamente. Tinha um rosto longo e ossudo, pequenos olhos acastanhados e um nariz lastimável. Seus cabelos encanecidos estavam presos em um coque na nuca. Os sulcos profundos no cenho indica­vam sua natureza pessimista. Kirby deu uma olhada para ela, sorrindo.

— Bom dia, Tulip. Você terá de levar uma bandeja lá em cima para papai, que não vai sair daquela torre. — Tirou um guardanapo de linho do prendedor. — Só torrada e café para mim, e não venha com lição de moral. Não tenho mais como crescer.

Após soltar um grunhido de desaprovação, Tulip virou-se para Adam. Seu pedido de ovos e bacon mereceu o mesmo grunhido antes de ela se retirar novamente com seus passos pesados.

Adam arqueou uma sobrancelha ao se virar para Kirby.

— Ela é realmente maravilhosa em termos de organização. — Séria e com os olhos sorridentes, ela apoiou os cotovelos na mesa e descansou o rosto sobre as mãos. — Faz mais de 15 anos que brigamos por causa de comida. Tulip insiste que vou crescer se comer. Depois que fiz 20 anos achei que havia provado que ela estava errada. Fico me perguntando por que os adultos insistem em dizer coisas tão absurdas às crianças.

A jovem e robusta empregada que servira o jantar na noite anterior trouxe café. Ela se derramou em sorrisos para Adam.

—  Obrigada, Polly. — Kirby falou com voz gentil, mas Adam percebeu a advertência em seu olhar e o breve rubor da empre­gada.

—  Sim, senhora. — Sem olhar para trás, Polly saiu correndo da sala.

Kirby serviu-se de café.

— Nossa Polly é um amor — ela começou. — Mas tem o hábito de ser, ah, um pouco amiga demais de dois terços da população masculina. — Kirby pôs a cafeteira na mesa e sorriu. — Se você tem um fraco por jogos sexuais, Polly é seu tipo. Do contrário, eu não a deixaria se empolgar. Eu tive até que avisá-la para não se meter com papai.

A imagem de Polly, jovem e robusta, com Fairchild, um gnomo, lhe veio logo à mente. Ficou imaginando por um momento, com toda clareza, até que ele caiu na gargalhada.

"Ora, ora, ora", Kirby achou graça, observando-o. Um homem com uma risada daquelas tinha um tremendo potencial. Ela ima­ginou quais seriam as outras surpresas que ele guardava. Tomara que ela descobrisse boa parte delas durante sua estada.

Ele pegou a jarra de creme e despejou um pouco em seu café.

— Dou-lhe minha palavra que resistirei à tentação.

—  Ela tem formas estupendas — Kirby ressaltou, bebericando café preto.

—  É mesmo? — Foi a primeira vez que ela notou o sorriso dele: rápido e ferino. — Não havia reparado.

Kirby o observou enquanto seu sorriso lhe provocava um es­tranho efeito no sistema nervoso. Mais uma surpresa, ela pensou, e então pegou o café.

— Eu o julguei mal, Adam — ela murmurou. — Com certeza, foi um cálculo errado. — "Você não é exatamente o que parece", disse para si mesma.

Ele pensou no pequeno transmissor trancado dentro de sua grande mala.

— E alguém é?

—  Sim. — Ela lhe deu um sorriso longo e completamente ino­cente. — Sim, algumas pessoas são exatamente o que parecem, para melhor e para pior.

—  Você? — ele perguntou por de repente sentir vontade de saber quem e o que ela era. Não por McIntyre, nem pelo traba­lho, mas por si mesmo.

Ela ficou em silêncio por um momento e um sorriso irônico se instalou em seu rosto. Ele pensou, e com razão, que ela estava rindo de si mesma.

— O que pareço ser hoje é o que sou... hoje. — Com uma de suas mudanças lampejantes, ela mudou de humor. — Aqui está o café-da-manhã.

Conversaram um pouco enquanto comiam, falando de coisas sem importância, assuntos educados sobre os quais conversam duas pessoas quase estranhas durante uma refeição. Ambos foram criados para saber lidar com tais situações — conversas fúteis, um toma-lá-dá-cá inteligente e superficial, que não significava rigorosamente nada.

Mas Kirby sentia a presença dele, sentia mais do que devia. Mais do que desejava. Enquanto ele colocava sal nos ovos, ela ficou se perguntando exatamente que tipo de homem era aquele. Já concluíra que ele não tinha metade do conservadorismo que aparentava — Ou que ele talvez achasse que tinha. Havia um aventureiro dentro dele, ela tinha certeza. Sua única irritação vinha do fato de ter levado tanto tempo para perceber isso.

Lembrou-se da força e da turbulência do beijo que trocaram. Ele devia ser um amante exigente. E fascinante. O que significava que ela teria de ter ainda mais cuidado. Não achava mais que ele fosse fácil de controlar. Algo em seus olhos...

Ela recuou rapidamente desta linha de pensamento. A ques­tão era que ela tinha de controlá-lo. Terminou seu café e emitiu uma prece silenciosa para que o pai tivesse escondido bem o Van Gogh.

—  O tour será debaixo para cima — ela disse animadamente. Levantou-se e estendeu a mão. — As masmorras são maravi­lhosamente mórbidas e úmidas, mas acho que vamos pular esta parte em respeito ao seu suéter de caximira.

—  Masmorras? — Ele aceitou o braço que ela estava ofere­cendo e saiu do recinto caminhando ao seu lado.

—  Não as usamos agora, infelizmente, mas as vibrações são perfeitas, ainda dá para ouvir alguns gemidos e batidas. — Ela falou tão normalmente que ele quase acreditou. Percebeu que aquele era um de seus grandes talentos. Fazer coisas ridículas soarem plausíveis. — Lorde Wickerton, o primeiro proprietário, era muito covarde.

— Você aprova?

— Aprovar? — Ela avaliou enquanto caminhavam. — Talvez não, mas é fácil ficar intrigada por coisas que aconteceram quase um século atrás. O mal pode se tornar romântico depois de certo período de tempo, não acha?

— Nunca vi as coisas por este ponto de vista.

— Isto é porque você tem uma postura muito definida sobre o que é certo e errado.

Ele parou e, como estavam de braços dados, Kirby parou ao lado dele. Ele a olhou com uma indignação que a deixou em guarda.

— E você?

Ela abriu a boca, mas fechou antes de dizer alguma besteira.

— Digamos apenas que sou flexível. Você vai gostar deste quarto — ela disse, abrindo uma porta. — É bem forte e sossegado.

Sem perder a pose, Adam entrou com ela. Por quase uma hora foram de quarto em quarto. Ocorreu a ele que talvez tives­se subestimado o tamanho do lugar. Corredores serpenteavam e formavam ângulos, quartos apareciam onde eram menos esperados, alguns minúsculos, alguns enormes. A não ser que ele tivesse muita, mas muita sorte, levaria um bom tempo para fazer seu trabalho.

Kirby abriu duas portas pesadas e talhadas e o fez entrar na biblioteca. Tinha dois andares internos e era do tamanho de um apartamento comum de dois quartos. Havia tapetes persas desbotados espalhados pelo chão. A parede do outro lado era espelhada com as pequenas vidraças em forma de diamante que adornavam a maioria das janelas da casa. O restante das paredes estava com livros do chão ao teto. De uma olhada se via Chaucer ao lado de D. H. Lawrence. Stephen King encostado em Milton. Não havia a menor tentativa de fingir organização, mas havia o esplêndido cheiro de couro, pó e óleo de limão.

Os livros dominavam o recinto e não deixavam espaço para pinturas. Mas havia uma escultura.

Adam cruzou o recinto e levantou a figura de um garanhão esculpido em madeira de nogueira. Liberdade, graça e movimento pareciam vibrar em suas mãos. Ele podia quase ouvir o pulsar firme na palma da mão.

Havia um busto de bronze de Fairchild em um pedestal alto e redondo. O artista capturara a irreverência, a energia, porém, mais ainda, capturara uma delicadeza e generosidade que Adam ainda estava para ver.

Em silêncio, caminhou pela sala, examinando cada peça enquanto Kirby observava. Ele a deixava nervosa, e ela lutava contra isto. Nervosismo era algo que ela raramente sentia, e jamais reconhecia. Já tivera o trabalho apreciado antes, procurou lembrar. O que mais queria um artista a não ser reconhecimento? Ela entrelaçou os dedos e ficou em silêncio.

A opinião dele dificilmente importaria, pensou, e então umedeceu os lábios.

Ele pegou uma peça de mármore moldada no formato vibrante de um aglomerado de chamas. Apesar de o mármore ser branco, o fogo era real. Como todas as peças que examinara, o aglome­rado de chamas era palpável. Kirby havia herdado o talento do pai para criar vida.

Por um momento, Adam esqueceu todas as razões pelas quais estava lá e pensou apenas na mulher e na artista.

— Onde você estudou?

A resposta insolente que tinha na ponta da língua desapareceu de sua mente no momento que ele virou e olhou para ela com aqueles tranqüilos olhos castanhos.

— Ensino formal na École des Beaux-Arts. Mas papai sempre me ensinou.

Ele virou o mármore em suas mãos. Até as mentes mais pro­saicas teriam sentido o calor. Adam podia senti-lo.

—  Há quanto tempo você esculpe?

—  A sério? Cerca de quatro anos.

— Por que só fez uma exposição? Por que está deixando tudo enfurnado aqui?

Raiva. Ela arqueou a sobrancelha. Havia imaginado exatamen­te que tipo de temperamento ele teria, mas não esperava ver a resposta surgir por meio de seu trabalho.

—  Farei outra na primavera — ela disse, indiferente. — Charles Larson está cuidando disso. — Subitamente desconfortável, ela deu de ombros. — Na verdade, fui pressionada a fazer a outra. Eu não estava pronta.

—  Isto é ridículo. — Ele ergueu o mármore como se nunca o tivesse visto antes. — Absolutamente ridículo.

Por que ela se sentia vulnerável ao ver seu trabalho nas mãos dele? Kirby se virou e passou um dedo pelo nariz de bronze de seu pai.

— Eu não estava pronta — ela repetiu, sem saber ao certo por que estava explicando estas coisas a ele, pois jamais se explicava a ninguém. — Eu precisava ter certeza, sabe. Há quem diga, e vai sempre dizer, que eu me dei bem por causa de papai. É de se esperar. — Ela soltou um suspiro, mas a mão continuou no busto do pai. — Eu tinha de ter certeza de que era diferente. Eu tinha de saber.

Ele não esperava sensibilidade, doçura, vulnerabilidade. Não dela. Mas foi o que enxergou em seu trabalho e o que ouviu em sua voz. Aquilo o tocou, tanto quanto sua paixão.

— Agora você sabe.

Ela se virou novamente e empinou o queixo.

— Agora eu sei. — Com um sorriso estranho, ela se aproximou e tirou dele a peça de mármore. — Jamais contei isto a ninguém antes, nem mesmo a papai. — Quando levantou o olhar, seus olhos estavam quietos, suaves e curiosos. — Por que será que eu tinha de dizer isto a você?

Ele tocou em seus cabelos, algo que queria fazer desde que vira o sol matinal sobre eles.

— Por que será que estou feliz de ser eu?

Ela deu um passo para trás. Não havia como ignorar um desejo tão rápido e tão forte. Não havia como se esquecer de ter cautela.

— Bem, teremos de pensar nisto, creio. Aqui acaba a primeira parte de nosso tour. — Ela pôs a peça de mármore no lugar e abriu um sorriso sereno. — Todos os comentários e sugestões são bem-vindos.

Adam percebeu que havia penetrado em seu interior, e que ela não se importava. Isto ele entendia.

—  Sua casa é... impressionante — ele disse, abrindo um sorriso quase exagerado de tão largo. — Estou decepcionado por não haver um fosso e um dragão.

—  Experimente deixar seus legumes no prato e você verá o dragão no qual Tulip se transforma. Quanto ao fosso... — Ela começou a dar uma desculpa, e então se lembrou: — Cogumelos venenosos, como pude esquecer?

Sem esperar resposta, ela agarrou-lhe a mão e voltaram ao salão.

— Nada de fosso — ela disse enquanto ia direto até a lareira. — Mas há passagens secretas.

— Eu devia ter imaginado.

— Já faz um tempinho desde que eu... — Ela se desligou e começou a murmurar consigo mesma enquanto puxava e em­purrava o console da lareira, talhado em carvalho. — Juro que é uma das flores por aqui... tem um botão, mas é preciso achar direitinho. — Com um gesto de irritação ela jogou o rabo-de-cavalo novamente para trás dos ombros. Adam observou seus dedos longos e elegantes puxando e empurrando. Notou que as unhas delas eram curtas, redondas e sem esmalte. Unhas de colegial, ou de freira. Mesmo assim, permanecia a impressão de vitalidade sexual. — Sei que é aqui, mas não consigo bem... Et voilà. — Satisfeita consigo mesma, Kirby deu um passo para trás quando parte do painel rangeu ao se deslocar para o lado.

— Está precisando de óleo — rematou.

—  Impressionante — Adam murmurou, já imaginando se sua sorte estaria mudando. — É por aqui que se chega às mas­morras?

—  Ela se estende pela casa inteira, em um verdadeiro labi­rinto. — Dirigindo-se à entrada com ele, espreitou a escuridão.

—  Há uma entrada em quase todos os quartos. Um botão do outro lado abre ou fecha o painel. As passagens são escuras e mofadas. — Sentiu um calafrio e recuou. — Talvez por isso eu as tenha esquecido. — Subitamente gelada, ela esfregou as mãos.

—  Eu gostava de vir muito para cá quando criança; deixava os empregados malucos.

— Posso imaginar. — Mas ele viu o súbito terror em seus olhos enquanto ela fitava a escuridão.

— Acho que acabei pagando por isso. Um dia minha lanterna me deixou na mão e não consegui achar a saída. Lá tem aranhas do tamanho de cães. — Ela riu, mas deu mais um passo para trás.

— Não sei quanto tempo fiquei lá, mas quando papai me achou eu estava histérica. Não precisa dizer que acabei arranjando outras maneiras de aterrorizar os funcionários.

— Isto aqui ainda a amedronta.

Ela levantou os olhos, preparada para rebater. Seus olhos tranqüilos estavam revelando, pela segunda vez, uma simples verdade.

— Sim. Sim, parece que sim. Bem, agora que já confessei minha neurose, vamos em frente.

O painel se fechou, rangendo enquanto ela empurrava o con­trole. Adam sentiu mais do que ouviu seu suspiro de alívio. Ao pegar-lhe a mão, ele sentiu que estava gelada. Ele queria aquecer-lhe a mão, aquecê-la. Mas procurou se concentrar no que aquelas passagens poderiam significar para ele. Com elas ele teria acesso a todos os quartos sem o risco de dar de cara com um dos fun­cionários ou com um dos Fairchild. Quando uma oportunidade cai no colo, é preciso agarrá-la. Começaria naquela noite.

— Entrega para a srta. Fairchild.

Tanto Kirby quanto Adam pararam no primeiro dos degraus da escada. Kirby viu a caixa branca comprida que o mordomo tinha nas mãos.

—  De novo, não, Cards.

—  Parece que sim, senhorita.

—  Caramba. — Kirby fungou, coçou um ponto logo abaixo do maxilar e observou a caixa. — Terei que ser mais firme.

—  Como desejar, senhorita.

—  Cards... — Ela sorriu para ele, e apesar de seu rosto per­manecer impassível, Adam podia jurar que ele estava prestando atenção. — Sei que é grosseria, mas dê para Polly. Não agüento outra rosa vermelha.

—  Como quiser, senhorita. E o cartão?

—  Detalhes — ela murmurou, e deu um suspiro. — Deixe em minha escrivaninha, depois resolvo. Desculpe, Adam. — Virou-se e voltou a subir as escadas. — Tenho sido bombardeada por flores pelas últimas três semanas. Eu disse a Jared que não queria ser sua amante, mas ele é persistente. — Mais exasperada do que irritada, ela balançou a cabeça quando dobraram o cor­redor pela primeira vez. — Acho que vou ter de ameaçar contar à esposa dele.

—  Deve funcionar — Adam murmurou.

—  Eu lhe pergunto: será que um homem que já chegou aos 60 não devia ter mais sabedoria? — Subiu mais três degraus, revirando os olhos. — Não consigo imaginar o que passa na cabeça dele.

Ela cheirava a sabonete e estava disforme dentro do suéter e da calça jeans. Seguindo atrás dela para o segundo andar, Adam conseguia imaginar muito bem.

O segundo andar era cheio de quartos de dormir. Cada um deles era único, cada um decorado em estilo diferente. Quanto mais Adam via a casa, mais encantado ficava. E mais percebia como seria complicada sua missão.

—  O último quarto, meu boudoir. — Ela sorriu para ele daquela maneira vagarosa e indolente que lhe dava comichões nas palmas das mãos. — Prometo que não vou lhe comprometer, contanto que você fique sabendo que não sou conhecida por cumprir minhas promessas. — Ela deu uma risada leve, abriu a porta e entrou. — Barbatanas de peixe.

—  Não entendi, desculpe.

—  Desculpe o quê? — Ignorando-o, Kirby entrou no quarto. — Está vendo isto? — ela perguntou. Com um gesto notadamente semelhante ao do pai, ela apontou para a cama. Um cão sujo e desarrumado jazia como um troço no meio de um edredom de casal. Adam franziu o cenho e se aproximou um pouco mais.

—  O que é isso?

—  Um cachorro, é claro.

Ele olhou para a bolinha de pêlos cinzentos que parecia não ter frente nem costas.

— É possível.

O rabo curto e grosso começou a bater no edredom.

— Isto não é para rir, Montique. Depois sou eu que tenho que me explicar.

Adam viu a massa disforme se mexer até ele enxergar uma cabeça. Os olhos ainda estavam escondidos debaixo do punhado de pêlos, mas havia um pequeno focinho preto e uma língua estendida.

—  Por alguma razão eu lhe imaginava com um par de afghan hounds.

—  O quê? Ah! — Deu um breve tapinha na bola de pêlos e virou-se para Adam. — Montique não é meu, é de Isabelle. — Olhou para o cão com irritação. — Ela vai ficar furiosa.

Adam franziu a testa ao ouvir o nome desconhecido. Será que McIntyre deixou alguém escapar?

— Ela é uma das empregadas?

— Santo Deus, não. — Kirby deixou escapar uma risada ba­rulhenta que fez Montique se contorcer, empolgado. — Isabelle não serve ninguém. Ela... bem, ela está aqui agora. Vai ser uma encrenca danada — ela acrescentou entre os dentes.

Adam virou a cabeça e olhou para a porta. Começou a dizer a Kirby que não havia ninguém lá quando seus olhos captaram um movimento. Olhou para baixo e viu uma gata siamesa ama­relada. Seus olhos eram angulosos, de um azul gélido, e, apesar de ele nunca ter pensado em coisas assim antes, transmitiam uma absoluta irritabilidade. A gata cruzou a soleira, sentou e ficou olhando para Kirby.

— Não me olhe assim — Kirby disse. — Não tive nada a ver com isto. Não tenho culpa se ele fica vagando por aqui. — Isa­belle mexeu o rabo como se fosse um chicote e emitiu um som grave e ameaçador vindo da garganta. — Não vou tolerar suas ameaças e não vou ficar de porta trancada. — Kirby cruzou os braços e bateu o pé no carpete Aubusson. — Recuso-me a mudar um hábito de uma vida inteira para lhe agradar. Só que você terá de ficar de olho nele.

Enquanto observava em silêncio, Adam teve certeza de detec­tar um mau humor genuíno nos olhos de Kirby — O tipo de mau humor que uma pessoa projeta sobre outra. Ele pôs a mão deli­cadamente em seu braço e esperou que ela olhasse para ele.

—  Kirby, você está discutindo com uma gata.

—  Adam. — Ela deu-lhe um tapinha igualmente delicado na mão. — Não se preocupe. Sei lidar com isso. — Arqueando a sobrancelha, virou-se para Isabelle. — Se quiser, fique com ele, e o ponha na coleira, caso não queira que ele fique vagando por aí. E, da próxima vez, gostaria que batesse na porta antes de entrar em meu quarto.

Isabelle chicoteou a cauda mais uma vez, foi para a cama e olhou para Montique. Ele sacudiu a cauda, com a língua de fora, antes de pular desajeitadamente para o chão. Com uma espécie de trote agitado, ele seguiu a gata que saía do quarto em passo elegante.

—  Ele foi com ela — Adam murmurou.

—  Claro que foi — Kirby respondeu. — Ela tem um gênio pavoroso.

Recusando-se a ser tratado como bobo, Adam deu um longo e intransigente olhar para Kirby e perguntou:

—  Está querendo me dizer que o cachorro é daquela gata?

—  Você tem um cigarro? — Foi a resposta. — Raramente fumo, mas Isabelle me afeta muito. — Ela notou que os olhos dele não perderam a expressão tranqüila e levemente irritada enquanto ele pegava um cigarro e acendia para ela. Kirby teve de engolir a risada. Concluiu que Adam era notável. Puxou a fumaça e soprou sem tragar. — Isabelle sustenta que Montique a seguiu ao voltar para casa. Acho que ela o seqüestrou. Seria bem coisa dela.

Jogos, ele pensou de novo. O jogo dava para dois.

—  E a quem Isabelle pertence?

—  Pertence? — Kirby arregalou os olhos. — Isabelle não per­tence a ninguém, a não ser a ela mesma. Quem iria querer uma criatura tão ferina?

E ele podia jogar, como qualquer um. Tirou o cigarro dela e deu uma tragada.

— Se não gosta dela, por que, simplesmente, não se livra dela?

Ela pegou o cigarro de volta.

— Seria difícil fazer isso, já que ela paga o aluguel, não é? Tome, já basta — ela resolveu, depois de dar mais uma tragada.

— Já estou calma outra vez. — Devolveu-lhe o cigarro antes de caminhar para a porta. — Vou lhe levar ao ateliê de papai. Vamos pular o terceiro andar, onde tudo está coberto por lençóis.

Adam chegou a abrir a boca, mas resolveu que era melhor deixar certas coisas quietas. Deixando de lado gatas estranhas e cachorros feiosos, ele seguiu Kirby de volta ao corredor. As escadas continuavam em um longo arco rumo ao terceiro andar, quando ficava reto e estreito. Kirby parou no ponto de transição e fez um gesto para o corredor abaixo.

—  A planta é a mesma do segundo andar. Há escadas do outro lado que levam ao meu ateliê. O restante desses quartos raramente é usado. — Ela deu aquele vago sorriso e entrelaçou os dedos. — É claro que o andar inteiro é mal-assombrado.

—  É claro. — Ele achou nada menos que natural. Sem uma palavra, ele a seguiu até a torre.


 

Normalidade. Tubos de tinta estavam espalhados por toda parte, e os pincéis, em potes. O odor de óleo e terebintina permeava o ar. Disto Adam entendia: o imaterial e a sensuali­dade da arte.

O recinto era rodeado de janelas abobadadas e o teto, grandio­so. O assoalho devia ter sido bonito um dia, mas agora a madeira estava fosca, cheia de respingos e manchas de tinta. Havia telas nos cantos, contra as paredes, empilhadas no chão.

Kirby deu uma rápida olhada no recinto. A tensão em seus ombros se desfez quando viu que tudo estava em seu lugar. Caminhou pela sala e foi até o pai.

Ele estava sentado, sem se mexer nem piscar, os olhos voltados para as formas incompletas de um monte de argila. Sem dizer nada, Kirby deu a volta na mesa de trabalho, inspecionando a argila por todos os ângulos. Os olhos de Fairchild permaneciam cravados em seu trabalho. Após poucos instantes, Kirby se estiou, esfregou o nariz com as costas da mão e franziu os lábios. — Hummm.

— É sua única opinião? — Fairchild fustigou.

— Claro que é. — Ela ficou mordiscando o polegar por um momento. — Mas você tem direito de ouvir outra. Adam, venha dar uma olhada.

Ele deu-lhe um olhar mortal que a fez sorrir. Devido à boa educação, ele atravessou o ateliê e olhou para a argila. Parecia-lhe uma tentativa válida — um falcão parcialmente formado, garras expostas, bico entreaberto. O poder e a vida que emanavam de suas pinturas e das esculturas da filha simplesmente não estavam lá. Em vão, Adam procurou uma saída.

— Hummm — ele começou, e Kirby reagiu rapidamente.

— Viu, ele concorda comigo. — Kirby deu um tapinha na cabeça do pai e fez uma cara presunçosa.

— E o que ele sabe? — Fairchild questionou. — Ele é pintor.

— E você, querido papai, também. Um brilhante pintor. Ele lutou para não se deixar lisonjear e enfiou um dedo na argila.

—  Logo, sua pirralha detestável, eu serei um escultor igual­mente brilhante.

—  Vou lhe dar um Play-Doh de aniversário — ela sugeriu, e soltou um grito quando Fairchild agarrou-lhe a orelha e torceu.

—  Diaba. — Friccionou o lóbulo, torcendo o nariz. — Controle sua língua ou eu lhe transformo em Van Gogh.

Enquanto Adam observava, o homenzinho gargalhava; Kirby, contudo, parecia paralisada: rosto, ombros, mãos. A fluidez que percebera nela até quando estava parada tinha desaparecido. Não era irritação, mas... medo? Não de Fairchild. Tinha certeza de que Kirby jamais teria medo de um homem, menos ainda de seu pai. Era mais cabível que ela estivesse com medo por Fairchild, e também desconcertada.

Ela se recuperou a tempo e empinou o queixo.

—  Vou mostrar meu ateliê a Adam. Ele pode se acomo­dar lá.

—  Ótimo, ótimo. — Reconhecendo o tom na voz dela, Fair­child deu-lhe tapinhas nas mãos. — Ela é uma danadinha, não é, Adam?

— É, sim.

Kirby soltou um suspiro e Fairchild deu-lhe mais um tapinha na mão. A argila de sua mão passou para a dela.

— Viu, meu doce, você não agradece hoje em dia por aqueles aparelhos nos dentes?

— Papai. — Com um sorriso relutante, Kirby colocou o rosto obre a cabeça calva. — Eu nunca usei aparelhos nos dentes.

— Claro que não. Você herdou seus dentes de mim. — Ele deu um sorriso luminoso para Adam e piscou. — Volte quando estiver instalado, Adam. Preciso de um pouco de companhia masculina. — Apertou levemente o rosto de Kirby. — E não pense que Adam vai bajulá-la como Rick Potts.

— Adam não tem nada a ver com Rick — Kirby murmurou, enquanto pegava um pano para limpar a argila das mãos. — Rick é um doce.

— Os modos, ela herdou do leiteiro — Fairchild observou. Ela olhou para Adam.

— Tenho certeza de que Adam sabe ser doce, também. — Mas não havia confiança em sua voz. — O forte de Rick são as aquarelas. Ele é o tipo de homem que desperta o lado maternal das mulheres. Infelizmente, ele gagueja um pouco quando fica excitado.

— Ele é loucamente apaixonado por nossa pequena Kirby. Fairchild começaria a tagarelar de novo se não fosse o modo

como a filha olhou para ele.

— Ele apenas acha que é. Eu não o encorajo.

E aquela agarração que eu presenciei ao entrar na biblio­teca? Satisfeito consigo mesmo, Fairchild se voltou de novo para Adam. — Eu lhe pergunto: quando os óculos de um homem estão embaçados, não é preciso haver um motivo para isso?

— invariavelmente. — Droga, ele gostava dos dois, fossem apenas lunáticos inofensivos ou algo mais que inofensivos. Ele gostava dos dois.

O senhor sabe muito bem que isso é injustiça. — Mudando ligeiramente de postura, ela de repente ficou rígida e majestosa.

— Rick perdeu o controle temporariamente. Algo como uma explosão de temperamento, suponho. — Ela esfregou a manga do suéter. — Agora acho que já basta desse assunto.

— Ele está vindo passar uns dias aqui semana que vem. — Fair­child jogou a bomba quando Kirby estava a caminho da porta.

Ponto para ela, que mal se deixou afetar. Adam ficou pensando se estaria assistindo a um jogo de xadrez muito bem calculado ou a uma versão enlouquecida de xadrez chinês.

—   Muito bem — Kirby disse, tranqüila. — Direi a Rick que Adam e eu somos amantes e que Adam é ciumentíssimo e leva sempre um estilete na meia esquerda.

—   Santo Deus! — Adam murmurou quando Kirby saiu pela porta. — Ela vai fazer isso, também?

—   Pode apostar nisso — Fairchild concordou sem disfarçar o júbilo na voz. Ele adorava confusão. Um homem de 60 anos tinha direito de criar toda a confusão possível.

 

A estrutura do segundo ateliê-torre era idêntica à do primeiro. Só que o conteúdo era diferente. Além das tintas, pincéis e telas, havia facas, cinzéis e martelos de madeira. Havia placas de pedra calcária, mármore e pedaços de madeira. O equipamento de Adam era a única coisa organizada no recinto. Cards cuidou pessoalmente de empilhar seu material.

Uma longa mesa de madeira estava tomada por ferramen­tas, lascas de madeira, panos rasgados e um tecido embolado que um dia deve ter sido um jaleco de trabalho. Em um canto havia um aparelho de som de última geração. Um antigo aque­cedor a gás ficava embutido em uma parede, com um cavalete vazio em frente.

Como na torre de Fairchild, Adam entendia aquela espécie de caos. O local era banhado pelo sol. Era tranqüilo, espaçoso e atraente.

— Há espaço de sobra — Kirby disse-lhe com um gesto amplo. — Instale-se onde se sentir mais confortável. Imagino que não vamos interferir um com o outro — ela disse, em tom desconfiado, e então deu de ombros. Ela tinha de fazer o melhor possível. Melhor para ele ficar ali, junto dela, do que dividir com o pai o ateliê onde estava o Van Gogh. — Você é temperamental?

— Diria que não — Adam respondeu distraidamente, en­quanto começava a tirar seu equipamento das malas. — Alguns diriam que sim. E você?

— Ah, sim! — Kirby se instalou ruidosamente em sua mesa de trabalho e levantou um pedaço de madeira. — Tenho explosões de raiva e crises de melancolia. Espero que não se incomode.

Ele se virou para responder, mas ela estava olhando para o pedaço de madeira em suas mãos como quem busca por algo escondido por dentro.

— Estou dando vazão a minhas emoções agora. Não posso ser responsabilizada.

Curioso, Adam deixou de mexer nas malas para caminhar até a prateleira atrás de onde ela estava. Havia nela uma dúzia de peças em variados estágios. Ele escolheu um pedaço de madeira talhada e polida.

— Emoções — ele murmurou, passando os dedos pela ma­deira.

—  Sim, esta é...

—  Dor — ele disse. Dava para ver a angústia, sentir a dor.

— Sim. — Ela não tinha muita certeza se gostava ou não da­quela sintonia tão forte com ele, especialmente em se tratando daquela peça que lhe custara tanto. — Também já fiz Alegria e Dúvida. Pensei em deixar a Paixão por último. — Ela abriu as mãos debaixo da madeira e a levantou no nível dos olhos.

— Esta será Raiva. — Ela tamborilou os dedos na madeira, como se a provocando. — Um dos sete pecados capitais, apesar de eu sempre ter achado errado rotulá-lo assim. Nós precisamos de raiva.

Ele viu a mudança nos olhos dela enquanto fitavam profun­damente a madeira. Segredos, ele concluiu. Ela estava devastada por eles. Ainda assim, parecia totalmente aberta, completamente transparente, banhada em emoções ao se sentar com o sol sobre ela e levantando aquele pedaço de madeira nas mãos. Assim que ele começou a perceber, ela se mexeu e alterou o clima. Sorriu para ele com ironia ao levantar os olhos.

— Como estou trabalhando na Raiva, você terá de agüentar algumas crises de mau humor.

— Tentarei ser objetivo.

Kirby sorriu, gostando do toque de educação sobre o sarcasmo.

—  Aposto que você tem objetividade aos montes.

—  Nada além de minha cota.

—  Pode ficar com a minha também, se quiser. É bem pequena. — Ainda mexendo com a madeira nas mãos, ela olhou para o equipamento. — Está trabalhando em alguma coisa?

— Estava. — Ele caminhou ao redor para ficar na frente dela.

— Mas agora tenho outra coisa em mente. Gostaria de pintar você.

Seus olhos deixaram a madeira em suas mãos para se voltar para ele. Achando certa graça, ela notou que seus olhos pareciam desconfiados.

— Por quê?

Ele deu um passo à frente e tomou-lhe o queixo com a mão. Kirby permaneceu passivamente sentada enquanto ele a admirava sob diferentes ângulos. Mas ela sentiu seus dedos, cada um, lhe tocando a pele. Pele suave, e Adam não se deu ao trabalho de resistir à vontade de passar o polegar em sua face. Os ossos pareciam frágeis em suas mãos, mas os olhos eram firmes e diretos.

— Porque... — ele disse, afinal — seu rosto é fascinante. Eu quero pintá-lo, esta qualidade translúcida, sua sensualidade.

A boca de Kirby aqueceu-se pelo roçar displicente dos dedos dele. Suas mãos seguraram o pedaço de madeira com mais fir­meza, mas sua voz se mantinha inalterada.

— E se eu disser que não?

Havia outra coisa que o intrigava: o traço de arrogância que ela usava com moderação — e com êxito. Você deve deixar os homens de joelhos com este olhar, ele pensou. Deliberadamente, ele se aproximou e a beijou. Ele sentiu que ela ficou tensa, resistiu, depois ficou quieta. Ela estava, a seu modo, se defendendo, absorvendo os sentimentos que ele oferecia. Suas dobras dos dedos já estavam brancas de segurar a madeira, mas ele não viu. Ao levantar a cabeça, tudo que Adam notou foi a profundidade daqueles olhos cinzentos.

— Eu vou pintá-la de uma maneira ou de outra — ele mur­murou. Saiu do recinto para que os dois tivessem tempo para pensar no assunto.

 

Ela pensou mesmo no assunto. Por quase meia hora Kirby ficou totalmente parada, deixando a mente trabalhar. Era uma parte curiosa de sua natureza que uma mulher vibrante e inquieta como ela fosse capaz de tamanha imobilidade. Quando necessá­rio, Kirby podia ficar sem fazer absolutamente nada enquanto pensava em como resolver um problema, procurando respostas. Adam tornou aquilo necessário.

Ele mexia com algo dentro dela de uma maneira que jamais sentira. Kirby acreditava que uma das coisas mais preciosas da vida eram as coisas originais e novas. Desta vez, contudo, ela ficou considerando se deveria ultrapassar a linha divisória.

Ela gostava de homens que aceitam com naturalidade a satis­fação dos próprios desejos, como ela fazia. Tampouco tinha algo contra a idéia de encará-lo. Mas... no caso de Adam, não podia ir muito além do mas.

Seria mais seguro — e mais inteligente — se ela se concen­trasse na estranheza que era Adam estar ali, em se considerando o Van Gogh e o hobby do pai. Estava sentindo aquela atração na hora errada. Ela tocou o lábio superior com a língua e pensou se poderia provar dele. Hora errada, pensou novamente. F inconveniente.

Era melhor que seu pai fosse prudente, e imediatamente deu um suspiro. Chamar Philip Fairchild de prudente era como cha­mar Huck Finn[2] de estudioso. O maldito e brilhante Van Gogh tinha de ir embora rapidamente. E o Tiziano? Ainda tinha que cuidar disso. Adam estava com o pai dela, e no momento não havia nada que ela pudesse fazer. Só mais uns dias, ela pensou. Não havia nada com que se preocupar. O sorriso lhe voltou aos lábios. Provavelmente, seria divertido o restante da visita de Adam. Ela pensou nele, nos sérios olhos castanhos, na boca forte e sóbria.

Diversão perigosa, reconheceu. Mas o que era a vida sem um pouquinho de perigo? Ainda sorrindo, pegou suas ferramentas.

Trabalhou em silêncio, em total concentração. Adam, seu pai e o Van Gogh foram esquecidos. A madeira em sua mão era o centro do universo. Havia vida nela, ela podia senti-la. Só esperando que descobrisse a chave para libertá-la. Ela encontraria e teria a satisfação que andava de mãos dadas com a descoberta.

A pintura nunca lhe dava isso. Ela brincava de pintar, gos­tava daquilo, mas nunca teve o domínio da coisa. Nem nunca foi dominada por ela. A arte é um amante que exige fidelidade completa. Kirby entendia isso.

À medida que trabalhava, a madeira parecia tentar respirar. Ela sentiu súbita e claramente a cólera que queria arrancar de seu confinamento. Quase... quase livre.

Ao ouvir chamarem seu nome, logo levantou a cabeça.

—  Droga!

—  Kirby, sinto muito!

—  Melanie. — Ela engoliu o insulto, ou quase. — Não a ouvi subir. — Apesar de ter dispensado as ferramentas, continuava a segurar a madeira. Não podia perder a idéia agora. — Pode entrar. Não vou gritar com você.

— Tenho certeza de que deveria. — Melanie hesitou no umbral da porta. — Estou atrapalhando.

— Está, sim, mas a perdôo. Como foi Nova York? — Kirby fez um gesto indicando uma cadeira, sorrindo para sua amiga mais antiga.

Cabelos louro-claros elegantemente arrumados em um rosto ovalado. Maçãs do rosto mais salientes do que as de Kirby, e ha­bilmente maquiadas. A boca brilhava com um tom rosa profundo cuidadosamente aplicado. Kirby concluiu, como era de costume, que Melanie Burgess tinha o perfil mais perfeito já criado.

— Você está maravilhosa, Melly. Divertiu-se?

Melanie torceu o nariz enquanto limpava com a mão o as­sento da cadeira.

— Negócios. Mas meus desenhos de primavera foram bem recebidos.

Kirby levantou as pernas e as cruzou debaixo de si.

—  Jamais entenderei como você pode decidir em agosto o que estará vestindo em abril. — Ela estava perdendo o poder da madeira. Dizendo a si mesma que voltaria depois, ela pôs a madeira na mesa, ao seu alcance. — Você fez algo detestável com as barras das saias outra vez?

—  Você nunca presta atenção mesmo. — Olhou para o suéter de Kirby com cara de desespero.

—  Prefiro ter um guarda-roupa indeterminado a um guarda-roupa na moda. — Ela sorriu, ciente de quais botões tinha de apertar. — Este suéter não tem nem 12 anos.

—  E aparenta cada dia que viveu. — Ciente do jogo e das habilidades de Kirby Melanie trocou de tática. — Esbarrei com Ellen Parker na rua 21.

—  Foi? — Kirby entrelaçou os dedos e apoiou o queixo sobre eles. Nunca considerou fofoca falta de educação, menos ainda quando era interessante. — Faz meses que não a vejo. Ela ainda fica falando francês quando quer fazer segredo?

Você não vai acreditar. — Melanie estremeceu ao tirar um cigarro longo e fino de uma cigarreira laqueada. — Eu mesma só acreditei quando vi com meus próprios olhos. Jerry me disse. Você se lembra de Jerry Turner, não lembra?

—  Ele desenha lingerie feminina.

—  Vestuário íntimo — Melanie corrigiu com um suspiro. — Sério, Kirby.

—  Seja o que for. Eu gosto de boas lingeries. Mas o que foi que ele lhe disse?

Melanie pegou um isqueiro com monograma e o acendeu. Deu uma tragada delicada.

—  Ele me disse que Ellen estava tendo um caso.

—  Nossa, que novidade — Kirby respondeu secamente. Com um bocejo, esticou os braços para o teto para aliviar a tensão nos ombros. — Este é o número 103 ou eu pulei algum?

—  Mas, Kirby — Melanie deu uma batidinha no cigarro para enfatizar enquanto se inclinava — , desta vez é com o filho do dentista dela.

Foi o som da risada de Kirby que fez Adam parar no meio da escada para a torre. A risada reverberava pelas paredes de pedra, encorpada, real e provocante. Ele ficou parado enquanto ela ecoava e desaparecia. Ele continuou a subir, silenciosamente.

—  Sério, Kirby. Um dentista! — Mesmo conhecendo Kirby tão bem, Melanie ficou perplexa com sua reação. — É tão... tão classe média.

—  Ah, Melanie, você é uma admirável esnobe. — Sufocou mais uma risada quando Melanie bufou, indignada. Quando Kirby sorriu, foi irresistível. — É perfeitamente aceitável que Ellen tenha vários casos, contanto que se permita escolher apenas homens socialmente importantes, mas um dentista ultrapassa os limites do bom gosto?

—  É claro que não é aceitável — Melanie murmurou, perce­bendo que havia caído na armadilha da lógica de Kirby — Mas se a pessoa for discreta e...

—  Seletiva? — Kirby completou afavelmente. — Na verdade, a coisa é bem desagradável. Ellen perdendo a linha com o filho do dentista enquanto o pobre do Harold paga uma fortuna pelo leitinho do garoto. E a justiça, onde fica?

—  Você diz as coisas mais assombrosas.

— Tratamentos ortodônticos são caríssimos.

Com um suspiro exasperado, Melanie tentou mudar de as­sunto outra vez.

— Como vai Stuart?

Apesar de estar prestes a entrar, Adam parou sob o umbral e ficou em silêncio. O sorriso de Kirby havia desaparecido. Os olhos que estavam vivos de humor agora estavam sombrios. Algo duro, forte e desagradável se interpôs entre elas. Ao ver a mudança, Adam percebeu que ela daria uma inimiga e tanto. Havia muita coragem detrás de sua sagacidade indiferente, sua sexualidade animal e sua elegância de garota rica e excêntrica. Ele não se esqueceria disso.

—  Stuart — Kirby disse com voz frágil. — Realmente não sei.

—  Ah, querida. — Ao ouvir o tom ártico, Melanie mordeu o lábio inferior. — Vocês brigaram?

—  Brigar? — O sorriso continuou desagradável. — Pode-se dizer que sim. — Algo refulgiu: a raiva que ela estava querendo extrair da madeira. Kirby fez um esforço para afastá-la. — Assim que concordei em casar com ele, percebi que havia cometido um erro.

—  Você me disse que tinha dúvidas. — Após apagar o cigarro, Melanie se inclinou para pegar as mãos de Kirby — Acho que foi corajoso. Você nunca deixou nenhum relacionamento chegar ao noivado antes.

—  Foi um erro de julgamento. — Não, jamais deixara um relacionamento chegar ao noivado. Noivados significavam com­promisso. Ela tinha um bloqueio em relação a compromissos, talvez o único bloqueio que Kirby considerava sagrado. — Eu o corrigi.

— E Stuart? Imagino que tenha ficado furioso.

O sorriso que voltou aos lábios de Kirby não tinha traço de humor.

— Ele me deu a desculpa perfeita. Sabia que ele andava me Pressionando para marcar a data?

— E sei que você andava sendo evasiva.

— Graças a Deus! — Kirby murmurou. — Em todo caso, final­mente reuni forças para decidir. Acho que foi a primeira vez em minha vida que me senti realmente culpada. — Mexeu os ombros descuidadamente e pegou o pedaço de madeira novamente. Isto a ajudava a manter a firmeza, a se concentrar na raiva. — Cheguei à casa dele de surpresa. Foi uma atitude do tipo agora ou nunca. Eu devia ter percebido o que estava acontecendo assim que ele abriu a porta, mas ainda estava com meu discursinho gracioso quando reparei em algumas peças de... vestuário íntimo, digamos, jogados pelo quarto.

— Ah, Kirby...

Soltando um longo suspiro, Kirby prosseguiu:

— Esta parte da coisa foi culpa minha, suponho. Eu não dormia com ele. Simplesmente, não tinha vontade de ter in­timidade com ele. Não... — Ela procurou a palavra. — Calor... — ela escolheu, na falta de algo melhor. — Acho que é por isso que sabia que nunca me casaria com ele. Porém, fui fiel. — A fúria a invadiu novamente. — Fui fiel, Melly

— Não sei o que dizer. — A aflição vibrava em sua voz. — La­mento tanto, Kirby.

Kirby reagiu à compaixão balançando a cabeça. Jamais pro­curara por aquilo.

—  Eu não teria sentido tanta raiva se ele não tivesse ficado me dizendo o quanto me amava quando tinha outra mulher em sua cama. Achei humilhante.

—  Você não tem porque se sentir humilhada — Melanie disse, alterando-se um pouco. — Ele foi um idiota.

—  Talvez. Já teria sido suficientemente ruim se tivéssemos ficado nisso, mas saímos do assunto amor e fidelidade. A coisa ficou feia.

Sua voz foi diminuindo. Seus olhos ficaram anuviados. Hora dos segredos outra vez.

— Descobri muitas coisas naquela noite — murmurou. — Nunca me achei boba, mas parece que fui uma.

Novamente, Melanie se inclinou para pegar sua mão.

— Deve ter sido um choque terrível saber que Stuart era infiel antes mesmo de vocês casarem.

— O quê? — Confusa, Kirby voltou a si. — Ah, isso. Sim, também.

—  Também? O que mais?

—  Nada. — Com um movimento de cabeça, Kirby botou o assunto de lado. — Agora está tudo morto e enterrado.

—  Sinto-me péssima. Droga, eu apresentei vocês.

—  Talvez você devesse pagar com a cabeça, mas esqueça isso.

—  Você consegue?

Kirby mordeu os lábios, a sobrancelha arqueada.

— Diga, Melly, você ainda está ressentida comigo por causa de André Fayette?

Melanie entrelaçou as mãos com recato.

—  Faz cinco anos.

—  Seis, mas quem está contando? — Sorrindo, Kirby se aproximou. — Além disso, quem pode esperar o mínimo de bom gosto de um estudante de arte francês maníaco por sexo?

Melanie fez um bico com a bela boca.

—  Ele era muito atraente.

—  Mas era desprezível. — Kirby se esforçou para dar mais um sorriso. — Sem classe, Melly. Você devia me agradecer por afastá-lo, por mais sem querer que tenha sido.

Decidido a fazer notar sua presença, Adam entrou. Kirby levantou os olhos e sorriu sem sinal do gelo nem da fúria.

—  Olá, Adam. Foi boa a conversa com papai?

—  Sim.

Ao olhar para Melanie, concluiu que ela era ainda mais eston­teante de perto. Rosto clássico, porte clássico guarnecido em um vestido rosa-claro cortado com estilo e simplicidade.

—  Estou interrompendo?

—  Só fofocas. Melanie Burgess, Adam Haines. Adam é nosso convidado por algumas semanas.

Adam aceitou a mão esguia. Era suave e delicada, sem a menor sombra dos calos que Kirby tinha logo debaixo dos dedos. Ele ficou imaginando o que havia acontecido nas últimas 24 horas para fazê-lo preferir a artista desgrenhada àquela mulher per­feitamente bem-tratada que sorria para ele. Talvez ele estivesse ficando doente.

—  O Adam Haines? — O sorriso de Melanie ficou mais caloroso. Ela o conhecia, linhagem e educação irrepreensíveis. — Claro que é — ela continuou antes que ele pudesse dizer algo. — Este lugar atrai artistas como um ímã. Eu tenho uma pintura sua.

—  Tem? — Adam acendeu-lhe o cigarro, e depois acendeu um dos seus. — Qual?

—  Um Estudo em Azul. — Melanie inclinou o rosto para atingir os olhos dele com seu sorriso, um pequeno truque feminino que aprendera pouco antes de aprender a andar.

Do outro lado da mesa, Kirby observou os dois. Rostos extra­ordinários, concluiu. As pontas de seus dedos estavam coçando para capturar Adam em bronze. Um ano antes fizera Melanie em marfim: harmoniosa, serena e perfeita. Com Adam, rivaliza com as influências ocultas.

—  Eu quis a tela por ser forte — Melanie prosseguiu. — Mas quase a deixei passar, pois me deixava triste. Você se lembra, Kirby. Você estava lá.

—  Sim, eu lembro. — Quando levantou os olhos para ele, seus olhos estavam cândidos e sorridentes, sem vestígios do flerte que esvoaçava o olhar de Melanie. — Eu tive medo que ela tivesse um colapso e caísse em desgraça, então ameacei comprar. Papai ficou furioso por eu não ter comprado.

—  Tio Philip poderia abastecer o próprio Louvre — Melanie disse, dando de ombros como quem não liga.

—  Alguns colecionam selos — Kirby replicou, então sorriu novamente. — A natureza-morta em meu quarto é trabalho de Melanie, Adam. Nós estudamos juntas na França.

— Não, não pergunte — Melanie disse rapidamente, levantando a mão. — Não sou artista. Sou uma estilista que gosta de brincar.

— Só porque você se recusa a se envolver.

Melanie inclinou a cabeça, mas não concordou nem discordou.

—   Tenho de ir. Diga a tio Philip que mandei lembranças. Não vou correr o risco de perturbá-lo também.

—   Fique para o almoço, Melly. Faz dois meses que não a vemos.

—   Em outra ocasião. — Levantou-se com a graça de quem foi ensinada a sentar, a se levantar e a caminhar. Adam levantou-se com ela, sentindo o perfume Chanel. — Vejo você na festa do fim de semana. — Com mais um sorriso, ofereceu a mão a Adam.

— Você vem também, não é?

—   Gostaria.

—   Maravilha. — Melanie abriu a bolsa e tirou finas luvas de couro. — Nove horas, Kirby. Não esqueça. Ah! — A caminho da porta, ela parou e virou-se novamente: — Ah, meu Deus, os convites foram enviados antes que eu... Kirby, Stuart estará lá.

—   Não irei armada, Melly. — Ela riu, mas não foi uma risada muito rica nem leve. — Pelo seu jeito, parece que alguém der­ramou caviar no seu Saint Laurent. Não se preocupe com isso.

— Fez uma pausa e o calafrio passou com rapidez. — Prometo que não vou me preocupar.

—   Se você tem certeza... — Melanie franziu o cenho. Não era possível, contudo, discutir aquelas coisas na frente de um convidado. — Contanto que você não fique desconfortável.

—   Não serei eu quem ficará desconfortável. — A arrogância desleixada estava de volta.

—   Sábado, então. — Melanie deu um último sorriso para Adam antes de sair.

— Bela mulher — Adam comentou, voltando à mesa.

— Sim, excepcional. — A simples concordância não tinha qualquer traço de inveja ou despeito.

—  Como duas mulheres, duas mulheres excepcionais, de tipos totalmente diferentes, podem ser amigas?

—  Não tentando mudar uma à outra. — Ela pegou a madeira novamente e começou a girá-la nas mãos. — Eu passo por cima daquilo que vejo como sendo os defeitos de Melanie e ela passa por cima dos meus. — Ela viu o bloco e o lápis na mão dele e levantou a sobrancelha. — O que está fazendo?

— Alguns esboços preliminares. Quais são os seus defeitos?

— São numerosos demais para mencioná-los. — Pôs a madeira na mesa novamente e recostou-se.

— E os pontos positivos?

— Dezenas. — Talvez estivesse na hora de testá-lo um pou­quinho, para ver o que acontecia ao apertar determinados bo­tões. — Lealdade — Ela começou, airosamente. — Paciência e honestidade esporádicas.

— Esporádicas?

— Odiaria ser perfeita. — Ela passou a língua nos dentes. — E sou espetacular na cama.

Ele levantou os olhos para aquele sorriso brando. Qual era o jogo de Kirby Fairchild? Os lábios dele se abriram em um sorriso tão facilmente quanto os dela.

— Aposto que você é mesmo.

Ela riu e se aproximou da mesa novamente, apoiando o queixo nas mãos.

—  Você não se deixa amedrontar facilmente, Adam. O que me deixa mais determinada a continuar tentando.

—  É pouco provável que eu me amedronte por você dizer algo que eu já havia concluído antes. Quem é Stuart?

A pergunta a fez retesar o corpo. Ela o desafiara, Kirby reco­nheceu, agora tinha de aceitar o desafio.

— Um ex-noivo — ela disse, indiferente. — Stuart Hiller.

O nome o fez lembrar de algo, mas Adam continuou a ras­cunhar.

— O mesmo Hiller que dirige a Galeria Merrick?

— O mesmo.

Ele percebeu ansiedade na voz dela. Por um momento ele quis deixá-la com sua privacidade e sua raiva. Mas o trabalho vinha primeiro.

— Conheço-o de ouvir falar — Adam comentou. — Estava com intenção de visitar a galeria. Fica a uns trinta e poucos quilômetros daqui, não é?

Ela empalideceu um pouco, o que o confundiu, mas quando ela falou, sua voz estava firme.

— Sim, não é longe. Devido às circunstâncias, infelizmente não posso levá-lo.

—  Vocês podem resolver suas diferenças no fim de semana. — Bancar o abelhudo não era seu estilo, especialmente quando envolvia alguém de quem ele estava começando a gostar. Quando ele levantou os olhos, contudo, não viu desconforto. Ela estava lívida.

—  Não creio. — Ela fez um esforço consciente para relaxar as mãos. Notando o gesto, Adam imaginou quanto aquilo lhe custava. — Percebi que meu nome seria Fairchild-Hiller. — Ela deu de ombros lentamente. — Jamais daria certo.

—  A Galeria Merrick tem uma reputação e tanto.

—  É. Na verdade, a mãe de Melanie é a dona, e cuidou da galeria até uns dois anos atrás.

—  Melanie? Você não disse que o sobrenome dela era Burgess?

—  Ela foi casada com Carlyse Burguess, da Burguess Enter­prises. Estão divorciados.

—  Quer dizer que ela é filha de Harriet Merrick. — A lista de jogadores estava crescendo. — A sra. Merrick passou o comando da galeria para Hiller?

—  No geral. Ela dá seus palpites de vez em quando.

Adam viu que ela estava novamente à vontade, e concentrou-se no formato de seus olhos. Redondos? Não exatamente, ele con­cluiu. Tinham quase o formato de uma amêndoa, mas também não era bem isso. Como Kirby, eram simplesmente únicos.

— A despeito do que sinto por ele, Stuart é um marchand mui­to competente. — Deu uma risada rápida e curta. — Desde que ela o contratou, passou a ter tempo para viajar. Harriet acaba de voltar de um safári na África. Outro dia, quando lhe telefonei, ela comentou que havia trazido um colar de dentes de crocodilo.

Em um gesto louvável, Adam fechou os olhos nada mais que brevemente.

—  Suas famílias são próximas, então. Imagino que seu pai tenha feito muitos negócios com a Galeria Merrick.

—  Ao longo dos anos. Papai fez sua primeira exposição lá, mais de trinta anos atrás. A coisa meio que impulsionou tanto a carreira de meu pai quanto a de Harriet ao mesmo tempo.

— Kirby se endireitou na cadeira e franziu o cenho do outro lado da mesa. — Deixe-me ver o que você fez.

—  Em um minuto — ele murmurou, ignorando a mão estendida.

—  Vejo que suas atitudes se assemelham às minhas, quando conveniente. — Kirby jogou-se de volta no encosto da cadeira. Como ele nada disse, ela retorceu as linhas do rosto de forma antinatural.

—  Eu não faria isso por muito tempo — Adam aconselhou.

—  Você vai se machucar. Quando eu começar com o óleo, você terá que se comportar, senão eu lhe bato.

Kirby relaxou o rosto, pois já estava ficando com o maxilar duro.

— Saca-rolha, você não bateria em mim. Você tem a desvan­tagem de ser um cavalheiro, por dentro e por fora.

Ele levantou a cabeça e a alfinetou com o olhar.

— Não conte com isso.

Só aquele olhar bloqueou qualquer réplica petulante que ela pudesse ter dito. Não era o olhar de um cavalheiro, e sim de um homem que fazia as coisas da maneira como desejava. Antes que ela pudesse pensar na resposta adequada, o som de gritos e uivos chegou pela escada, adentrando a porta aberta. Kirby não fez menção de se levantar para ver o que era. Simplesmente sorriu.

— Vou fazer duas perguntas — Adam começou. — Primeira, que diabo é isso?

— De qual isso está falando, Adam? — Os olhos dela ficaram mais cinzentos e ingênuos.

— O berreiro.

— Ah, isso. — Sorrindo, ela se aproximou e agarrou-lhe o bloco de desenhos. — Este foi o último ataque de papai porque sua escultura não está dando certo; e é claro que nunca dará. Meu nariz tem mesmo esta curva? — Ela foi tateando o dedo por ele. — É, acho que sim. Qual era a outra pergunta?

—  Por que você diz "saca-rolha" ou algo igualmente ridículo quando um simples "inferno" ou "droga" funcionaria?

—  Tem a ver com charutos. Você devia mesmo mostrar estes rascunhos a papai. Ele vai querer vê-los.

—  Charutos. — Determinado a ter toda a atenção dela, Adam pegou o bloco de suas mãos.

—  Daqueles grandes, fedorentos, grossos. Papai costumava fumá-los como uma chaminé. Você precisava de uma máscara só para chegar à porta. Eu implorei, ameacei, até tentei fumar também. — Ela engoliu em seco com a memória infeliz. — Então, encontrei a solução. Papai é um bobão.

—  É mesmo?

—  Quer dizer, ele simplesmente não consegue resistir a uma aposta, tenha chance ou não. — Ela tocou a madeira novamen­te, ciente que teria de voltar a ela mais tarde. — Meu linguajar era, digamos, colorido. Sei dizer palavrões com eloqüência em sete línguas.

—  Um feito e tanto.

—  Tem sua utilidade, pode acreditar. Apostei com papai 10 mil dólares que eu conseguiria ficar mais tempo sem dizer pa­lavrão do que ele conseguiria ficar sem fumar. Meu linguajar e a camada de ozônio ficaram limpos por três meses. — Kirby se levantou e deu a volta na mesa. — Tenho a gratidão de todos os funcionários. — Abruptamente, caiu em seu colo. Jogou a cabeça para trás e passou os braços ao redor do pescoço dele. — Beije-me de novo, sim? Não resisto.

Não pode haver outra como ela, Adam pensou enquanto a bei­java. Com um som grave de prazer, Kirby se derreteu nele, toda desejo e suavidade.

Então, nenhum dos dois pensou mais nada, apenas sentiram.

O desejo foi imediato e intenso. Cresceu e se expandiu tanto que eles podiam se saciar de prazer. Ela se permitiu a luxúria, pois estas coisas costumavam ser breves demais, esvaziavam-se rápido demais. Ela queria a velocidade, o calor, a corrente. Um risco, mas a vida não era nada sem eles. Um desafio, mas cada dia trazia o seu. Ele a fez sentir-se suave, eufórica, insensata. Ninguém jamais fizera. Se ela podia ser domada, por que não ser? Jamais acontecera antes.

Ela precisava do que nunca percebera antes que precisava de um homem: força, solidez.

Adam sentiu a excitação inicial se tornar uma dor: algo profun­do, lânguido e constante. Não era algo a que ele pudesse resistir, e sim algo que ele descobriu que precisava. O desejo sempre foi uma coisa básica e simples, sem dor. Será que ele não sabia que ela era do tipo de mulher que fazia o homem sofrer? E, sabendo disso, não seria melhor evitar que isso acontecesse? Mas doía. Segurando-a em seus braços, ele sentia dor. Por querer mais.

— Vocês dois não podem esperar até depois do almoço? — Fairchild reclamou da soleira da porta.

Kirby suspirou baixinho e afastou os lábios dos de Adam. O gosto ficou, como ela agora sabia que ficaria. Como a madeira atrás dela, seria algo que a fazia recuar repetidas vezes.

—  Estamos indo — ela murmurou, e então roçou a boca de Adam outra vez, como uma promessa. Ela virou e apoiou o rosto no dele em um gesto doce. — Adam está me desenhando — ela disse ao pai.

—  É, estou vendo. — Fairchild deu um rápido riso de debo­che. — Ele pode lhe desenhar o quanto quiser depois do almoço. Estou com fome.


 

A comida parecia acalmar o temperamento de Fairchild. Enquanto ele avançava no salmão cozido, saiu-se com uma longa e técnica diatribe sobre o surrealismo. Pelo jeito, romper com o pensamento convencional para liberar a imagi­nação foi algo que exerceu um apelo tão forte que ele dedicou quase um ano entre o estudo e a prática. Dando de ombros jocosamente, confessou que suas tentativas de pintura surrea­lista foram medíocres, e seu mergulho na abstração foi um pouco melhor.

—  Ele baniu todas as telas para o sótão — Kirby disse a Adam enquanto remexia delicadamente a salada com o garfo. — Tem um em sombras de azul e amarelo, com relógios de todos os ta­manhos e formas meio que derretendo e pingando para todos os lados, e dois sapatos esquerdos enfiados num canto. Ele batizou de Ausência de Tempo.

—  Experimental — Fairchild resmungou, de olho na porção de peixe que Kirby não comera.

—  Ele recusou uma quantia obscena de dinheiro por ela e a trancou no sótão como se fosse um parente maluco. — Tranqüi­lamente, ela transferiu seu peixe para o prato do pai. — Em breve ele estará mandando a escultura também para lá.

Fairchild engoliu um pouco de peixe e então cerrou os dentes.

—  Pirralha desalmada. — Em um piscar de olhos ele mudou de querubim amável para demônio. — No ano que vem, por esta época, o nome de Philip Fairchild será sinônimo de escultura.

—  Bobagem — Kirby concluiu, e garfou um pepino. — Este tom de rosa lhe cai bem, papai. — Inclinou-se e plantou-lhe um beijo na face. — É bem próximo de fúcsia.

—  Você não tem idade suficiente para esquecer que posso deixar seu traseiro da mesma cor.

—  Molestador de crianças. — Sob o olhar de Adam, ela se levantou e envolveu o pescoço de Fairchild com os braços. Em questão de amor pelo pai, o enigma de Kirby Fairchild era de fácil solução. — Vou dar uma caminhada antes de ficar amarela e seca. Vem comigo?

—  Não, não, tenho um projetinho para terminar. — Ele deu tapinhas em sua mão ao sentir que ela ficara tensa. Adam viu algo passar entre eles antes de Fairchild se virar para ele. — Leve-a para caminhar e continue com seu... desenho — ele disse, dando uma gargalhada. — Você já pediu a Kirby para pintar seu retra­to? Sempre pedem. — Ele garfou o salmão novamente. — E ela nunca deixa.

Adam levantou sua taça de vinho.

— Eu disse a Kirby que pintaria o retrato dela.

A nova risada foi pleno deleite. Os olhos azul-claros se acen­deram com o prazer de criar tumulto.

— Mão firme, hein? Ela sempre precisou de uma. Não sei onde ela arrumou esse gênio miserável. — Sorriu com naturalidade. — Deve ter vindo da mãe.

Adam olhou para a mulher serena e de olhos suaves no re­trato.

—  Sem dúvida.

—  Está vendo aquela pintura ali? — Fairchild apontou para o retrato de Kirby quando criança. — Foi a primeira e única vez que ela posou para mim. Eu tive que pagar à pirralha. — Bufou e soprou, e voltou a atacar o peixe. — Doze anos de idade, e já era mercenária.

— Se vocês vão ficar falando de mim como se eu não estivesse aqui, vou pegar minhas botas. — Sem olhar para trás, Kirby saiu tranqüilamente da sala.

—  Não mudou muito, mudou? — Adam comentou enquanto esvaziava a taça de vinho.

—  Nem um pouquinho — Fairchild concordou orgulhosamen­te. — Adam, meu garoto, ela vai levá-lo para uma caminhada das boas. Espero que você esteja em forma.

— Eu fazia caminhadas por trilhas na faculdade.

A gargalhada de Fairchild foi contagiosa. Adam se ressentiu, mas, definitivamente, gostava dele. Isto complicava as coisas. Do outro quarto ele ouviu Kirby em acalorada discussão com Isabelle. Ele estava começando a perceber que complicação era o nome do meio daquela mulher. O que seria um trabalho muito simples estava sofrendo desdobramentos para os quais ele não se preparara.

—  Vamos, Adam. — Kirby enfiou a cabeça pela entrada da sala. — Disse a Isabelle que ela pode vir, mas ela e Montique têm de manter uma distância permanente de 5 metros um do outro. Papai — jogou o rabo-de-cavalo para trás — , acho mesmo que devemos tentar aumentar o aluguel. Ela deve acabar procurando um apartamento na cidade.

—  Não devíamos ter concordado com esse aluguel de longo prazo — Fairchild reclamou, e voltou sua atenção toda para o salmão de Kirby.

Decidido a não comentar, Adam se levantou e saiu.

Estava quente para setembro, e ventava. Ao redor da casa tudo estava cheio de vida com o outono. Canteiros de zínias e crisântemos se espalhavam por toda parte, escoando pelas bor­das e exalando um penetrante perfume. Perto de uma acerácea flamejante, Adam viu um velho de macacão remendado. Com caprichosa falta de dedicação, ele varria as folhas caídas. Quando eles se aproximaram, ele deu um sorriso sem dentes.

— Você nunca vai conseguir pegar todas, Jamie.

Ele emitiu um som débil como um assovio que devia ter sido uma risada.

—  Mais cedo ou mais tarde, senhorita. Há tempo de sobra.

—  Amanhã eu o ajudo.

— Ah, certo, então a senhorita vai fazer pilhas delas e pular dentro, como sempre. — Ele assoviou de novo e esfregou o queixo com a mão frágil. — Fique talhando sua madeira que talvez eu guarde uma pilha de folhas secas para a senhorita.

Com as mãos enfiadas nos bolsos traseiros da calça, ela pisou em uma folha no chão.

—  Uma grande, das boas?

—  Pode ser. Se você for boazinha.

—  Sempre tem que haver uma armadilha. — Agarrou a mão de Adam e o puxou.

—  Aquele velhinho é responsável pelo terreno? — Três acres, calculou. Três acres no mínimo.

—  Desde que se aposentou.

—  Aposentou?

— Jamie se aposentou quando tinha 65 anos. Foi antes de eu nascer. — A brisa soprou mechas de cabelo em seu rosto e ela as jogou para trás. — Ele diz que tem 92 anos, mas é claro que tem 95 e não vai admitir. — Balançou a cabeça. — Vaidade.

Kirby foi puxando-o até chegarem a uma colina perto do rio. Lá embaixo, a água parecia parada. As casas se espalhavam como pequenos pontos pela paisagem. Salpicos de tonalidades em vez de cores definidas, uma fusão de texturas.

Na cadeia de montanhas onde eles estavam havia apenas vento, rio e céu. Kirby jogou a cabeça para trás. Parecia primiti­va, selvagem, invencível. Virando-se, olhou para a casa. Parecia a mesma.

— Por que fica aqui? — Perguntas diretas não eram típicas dele. Kirby já mudara isso.

—  Tenho minha família, minha casa, meu trabalho.

—  E isolamento.

Os olhos dela se moveram. Apesar de estar com os cílios baixos, seus olhos não estavam fechados.

— As pessoas vêm aqui. Isso não é se isolar.

— Não quer viajar? Ver Florença, Roma, Veneza?

De sua posição sobre uma pedra ela quase conseguia encará-lo no nível dos olhos. Quando ela se virou para ele, estava sem sua arrogância típica.

— Já fui à Europa cinco vezes antes dos 12 anos. Passei quatro anos em Paris sozinha quando estava estudando. — Olhou por sobre o ombro por um momento, para o nada ou para tudo, ele não soube bem. — Dormi com um conde bretão em um chateau, esquiei nos Alpes suíços e caminhei pelos terrenos encharcados de Cornwall. Viajei, e viajarei novamente. Mas... — Ele soube agora que ela estava olhando para a casa, pois seus lábios se contraíram. — Eu sempre volto para casa.

— O que a traz de volta?

— Papai. — Ela parou e deu um amplo sorriso. — Lembranças, familiaridade. Insanidade.

— Você o ama muito.

Ela conseguia tornar as coisas impossivelmente complicadas ou perfeitamente simples. O trabalho que ele viera fazer estava se tornando um fardo cada vez maior.

— Mais que qualquer coisa ou qualquer pessoa. — Ela falou baixinho, de uma maneira que sua voz pareceu parte da brisa.

Ele me deu tudo o que importa: segurança, independência, lealdade, amizade, amor... e a capacidade de retribuir. Gostaria de achar que um dia vou encontrar alguém que queira isso de mim. Então, meu lar será ao lado dele.

Como ele poderia resistir à doçura, à simplicidade que ela mostrava tão inesperadamente? Não estava no roteiro, mas levou a mão ao rosto dela, só para tocar. Quando ela levou sua mão à dele, mexeu com algo dentro dele que não era desejo, mas tão Potente quanto.

Sentiu a força nele, além de uma confusão que devia ser igual a dela. Outra época, ela pensou. Em outra época teria funcionado.

Mas agora, justamente agora, havia muitas outras coisas. Deliberadamente, ela soltou a mão e virou-se para o rio.

Não sei por que lhe conto essas coisas — ela murmurou. — Não é da sua personalidade. As pessoas costumam compar­tilhar com você seus pensamentos íntimos?

Não. Ou, quem sabe, eu não estivesse escutando.

Ela sorriu e, em uma de suas relampejantes mudanças de humor, pulou da pedra.

Você não faz o tipo em quem as pessoas confiariam. — Deu o braço a ele informalmente. — Apesar de você ter ombros for­tes e firmes. Você é um pouco altivo — ela decidiu. — E só um pouquinho pomposo.

Pomposo? — Como ela conseguia seduzi-lo em um instante e enfurecê-lo no outro? — Como assim, pomposo?

Ele soou perigosamente parecido com seu pai, motivo pelo qual ela engoliu em seco.

Só um pouquinho — ela o relembrou, quase engasgan­do de rir. — Não se ofenda, Adam. Com certeza, há lugar no mundo para pomposidade. — Ao ver que ele continuou a olhar feio, ela limpou a garganta para não rir outra vez. — Gosto da maneira como você levanta a sobrancelha esquerda quando fica irritado.

Não sou pomposo. — Ele falava com muita precisão e observava os lábios dela tremendo de achar graça.

Talvez tenha escolhido a palavra errada.

Foi uma escolha completamente incorreta. — Por pouco, conteve-se antes de levantar a sobrancelha. Mulher danada, pen­sou, não vou rir.

Convencional. — Kirby deu-lhe um tapinha na face. — Te­nho certeza de que foi isto que eu quis dizer.

Tenho certeza de que essas duas palavras significam a mes­ma coisa para você. Recuso-me a ser categorizado por qualquer uma das duas.

Ela inclinou a cabeça e o observou.

— Talvez eu esteja errada — ela disse, tanto para si mesma quanto para ele. — Já me enganei antes. Deixe-me montar nas suas costas.

— O quê?

— Montar nas suas costas — Kirby repetiu.

— Você é louca.

Ela podia ser astuta, podia ser talentosa, ele já havia reconheci­do isso, mas parte de seu cérebro vivia em férias permanentes.

Dando de ombros, ela começou a caminhar de volta para casa.

—  Sabia que você não deixaria. Gente pomposa nunca brinca de cavalinho. É a regra.

—  Droga. — Ela estava fazendo isso com ele, e ele estava dei­xando. Por um momento, ele enfiou as mãos nos bolsos e ficou firme. Deixe-a fazer seus jogos com o pai, ele não morderia a isca. Depois de mais uma promessa a si mesmo, entrou no ritmo dela. — Você é uma mulher irritante.

— Nossa, obrigada.

Encararam-se, ele com frustração, e ela achando graça, até que ele lhe deu as costas.

— Monte.

—  Se insiste. — Pulou nas costas dele agilmente, soprou os cabelos de sobre os olhos e olhou para baixo. — Rapaz, você é alto.

—  Você é baixa — ele corrigiu, e deu impulso para ela se ajeitar numa posição mais confortável.

— Na próxima encarnação terei 1,70m.

— É melhor você acrescentar quilos além de centímetros à sua fantasia.

As mãos dela eram leves sobre os ombros dele, suas coxas firmes ao redor da cintura. Ridículo. Ridículo querê-la agora que ela estava fazendo a ambos de bobos.

— Qual seu peso?

— Cem quilos. — Ela acenou languidamente para Jamie.

— E quando tira as bolas de ferro do bolso?

—  Noventa e seis, se quiser ser técnico. — Com uma risada, ela lhe deu um rápido abraço. Sua risada era calorosa e pertur­badora em seu ouvido. — Você deve fazer algo ousado, como não usar meias.

—  O próximo gesto espontâneo deve ser fazê-la cair no chão com seu muito atraente bumbum.

—  É atraente? — Balançou os pés para a frente e para trás, preguiçosamente. — Eu mesma o vejo tão pouco! — Ela o segurou por um momento mais longo, pois se sentia tão bem, certa. Vá com calma, ela pensou, e olhe onde pisa. Enquanto conseguisse mantê-lo desestabilizado, as coisas fluiriam tranqüilamente. Inclinou-se para a frente e mordeu o lóbulo da orelha dele. — Obrigada pelo passeio, marujo.

Antes que ele pudesse responder, ela pulou das costas dele e entrou correndo na casa.

 

Era tarde da noite, estava silencioso e escuro, Adam estava sentado sozinho em seu quarto. Tinha o transmissor na mão e descobriu que tinha vontade de esmagá-lo em pedacinhos e esquecer que existia. Nada de envolvimentos pessoais. Esta era a regra número 1, e ele sempre a cumprira. Jamais tivera a ten­tação de não cumpri-la.

Queria cumprir desta vez, procurou lembrar. Só que não estava funcionando. Envolvimento, emoção, consciência — não podia deixar nada disto interferir. Ao olhar para a pintura que Kirby fez do Hudson, apertou o interruptor.

—  McIntyre?

—  Senha.

—  Droga, isto não é nenhuma história de Ian Fleming.

—  Regras. — McIntyre tratou de lembrá-lo. Após vinte segundos de pausa, ele cedeu. — Certo, certo, o que você descobriu?

Descobri que estou chegando perigosamente perto de ficar louco por uma mulher que não faz o menor sentido para mim, pensou.

— Descobri que da próxima vez que você tiver uma idéia genial, vá para o inferno com ela.

— Problemas? — A voz de McIntyre estalou no transmissor. —Você ficou de ligar se houvesse algum problema.

— O problema é que gostei do velho e a filha é... desconcertante. — Um termo adequado. Seu corpo ainda não havia se acalmado desde que pusera os olhos nela.

— Tarde demais para isso agora. Temos um compromisso.

— É. — Ele soltou um suspiro e bloqueou Kirby de sua mente. — Melanie Merrick Burgess é amiga íntima da família e filha de Harriet Merrick. É uma estilista muito elegante que não parece ter qualquer interesse mais profundo por pintura. De cara, eu diria que ela apoiaria bastante os Fairchild. Kirby recentemente desfez o noivado com Stuart Hiller.

— Interessante. Quando?

— Não sei a data — Adam respondeu. — E não gostaria de ficar sondando-a sobre um assunto tão delicado. — Houve um embate dentro de si mesmo enquanto McIntyre manteve o si­lêncio. — Por volta dos últimos dois meses, eu diria, não mais que isso. Ela ainda está chateada. — E magoada, pensou. Não esquecera os olhos dela. — Fui convidado para uma festa neste final de semana. Devo encontrar tanto Harriet Merrick quanto Hiller. Apareceu uma oportunidade por aqui, enquanto isso. O local é cheio de passagens secretas.

— Cheio do quê?

— Você me ouviu. Com alguma sorte, terei acesso fácil à casa toda.

McIntyre deu um grunhido de aprovação.

— Não vai ter problemas em reconhecer?

— Se está com ele, se está na casa e se por algum milagre eu conseguir encontrar no meio deste anacronismo, reconhecerei.

Ele desligou, e resistindo ao ímpeto de atirar o transmissor na parede jogou-o de novo dentro da mala.

Clareando a mente, Adam se levantou e começou a procurar o mecanismo na lareira.

Levou quase dez minutos, mas foi recompensado com um rangido e um painel se entreabriu. Entrou espremido pela brecha com uma lanterna. A passagem era úmida e bolorenta, mas ele iluminou a parede com a luz da lanterna até achar o interruptor. O painel se fechou com um guincho e o deixou no escuro.

Seus passos ecoaram e ele ouviu o som apressado de roedores. Ignorou a ambos. Por um momento ele parou em frente à parede do quarto de Kirby. Pensando consigo mesmo que estava apenas fazendo seu trabalho, parou para encontrar o interruptor. Mas pensou se ela já estaria dormindo na ampla cama com cobertura, debaixo do edredom de casal.

Podia apertar o botão e juntar-se a ela. Para o inferno com McIntyre e o trabalho. Para o inferno com tudo menos o que se encontrava detrás da parede. Regras, ele pensou, amaldiçoando. Estava cansado de regras. Mas Kirby estava certa. Adam tinha bem definido o que era certo e o que era errado.

Virou-se e continuou em frente.

O corredor dobrava abruptamente, conduzindo a íngremes degraus de pedra que se bifurcavam-se para a esquerda. Ao subi-los, viu que estava em outro corredor. Uma aranha se arrastou pela parede quando ele iluminou com a lanterna. Kirby não exagerou muito quanto ao tamanho. O terceiro andar era tão bom quanto qualquer outro para começar.

Ele girou o primeiro mecanismo que encontrou e se embrenhou pela abertura. Poeira e lençóis cobertos de poeira. Movendo-se silenciosamente, começou uma busca lenta e metódica.

Kirby estava inquieta. Enquanto Adam estava do outro lado da parede, lutando contra a vontade de abrir o painel, ela estava andando de um lado para o outro no quarto. Pensou em subir ao ateliê. Trabalhar talvez a acalmasse, mas qualquer trabalho que ela fizesse no atual estado de espírito seria um lixo. Frustrada, sentou-se no amplo parapeito da janela. Dava para ver no vidro o pálido reflexo de seu próprio rosto, ela o encarou

Não estava totalmente no controle. Quase qualquer outra falha seria mais fácil de admitir. Controle era essencial e, nas atuais circunstâncias, vital. O problema era retomá-lo.

O problema, ela corrigiu, era Adam Haines.

Atração? Sim, mas isso era coisa simples e fácil de resolver. Ha­via algo mais na coisa, e não era nada simples. Ele podia envolvê-la, e, uma vez envolvida, não mais seria fácil de lidar com ele.

Estendeu as mãos no peitoril e nelas apoiou a cabeça. Ele podia magoá-la. Isto para começar — um começo apavorante. Não era um golpe à toa para o orgulho nem para o ego, Kirby reconhecia, e sim uma ferida bem no fundo, onde importava; onde não haveria cura.

Obviamente, já estava ciente. Simplesmente não deixaria que ele a envolvesse, portanto, não deixaria que ele a magoasse. E aquele pedacinho de lógica a fez retomar o controle que não tinha. Apesar de lutar para metodicamente controlar seus pen­samentos, um feixe de luz lhe chamou a atenção.

"Quem seria àquela hora da noite", ela se perguntou sem muita surpresa. Fairchild tinha o hábito de convidar pessoas em horas estranhas. Kirby apertou o nariz contra o vidro. Um som não muito diferente do rosnado de Isabelle saiu da garganta.

— É muita cara-de-pau — ela murmurou. — Droga, é a maior cara-de-pau.

Como se voltando à existência, deu três voltas pelo quarto até que pegou um robe e saiu.

Acima dela, Adam estava para reentrar no corredor quando também viu os feixes de luz. Automaticamente, desligou a lan­terna e foi para o lado da janela. Observou um homem descer de uma Mercedes último tipo e caminhar na direção da casa. Interessante, Adam achou. Saiu da passagem secreta e voltou em silêncio para o corredor.

O som de vozes o alcançou enquanto ele relaxava dentro do recuo de uma entrada, e esperou. Os passos se aproximaram. De seu esconderijo, Adam observou Cards levar um homem magro e moreno para o ateliê de Fairchild.

—  O sr. Hiller está aqui, senhor. — Cards deu a informação como se fossem 16h, e não depois de meia-noite.

—  Stuart, que gentileza a sua de vir. — A voz de Fairchild ribombava pela entrada. — Venha, venha.

Depois de contar até dez, Adam começou a se dirigir à porta que Cards fechara, quando viu uma mancha branca se mexendo na escada. Soltou um palavrão, voltou para seu esconderijo e Kirby passou perto, a ponto de tocá-lo.

"Que diabo é isto?", ele se perguntou, entre a frustração e a vontade de rir. Lá estava ele, preso detrás de uma porta en­quanto as pessoas ficavam espreitando pelas escadas no meio da noite.

Enquanto ele observava, Kirby prendeu a parte de baixo de seu robe com os joelhos e, pé ante pé, subiu a torre.

Ele concluiu que aquilo era um pesadelo. Mulheres com ca­belos esvoaçantes se esgueirando por corredores frios com véus brancos. Passagens secretas. Encontros clandestinos. Um homem sensível e normal não se envolveria em nada disso nem por um minuto. Mas ele havia deixado de ser um homem totalmente sensato ao cruzar a porta da frente.

Depois que Kirby chegou ao último andar, Adam se aproxi­mou. A atenção dela estava toda voltada para a porta do ateliê. Calculando rapidamente, Adam subiu os degraus atrás dela, e, então, se misturou às sombras do canto. De olho em Kirby, imi­tou-a e ficou escutando a conversa detrás da porta também.

—  Que tipo de idiota você acha que eu sou? — Stuart per­guntou. Estava do lado de Adam, separado apenas por uma parede.

—  Do tipo que você achar melhor. Para mim não faz diferença. Sente-se, meu rapaz.

—  Escute aqui, nós tínhamos um trato. Quanto tempo achou que eu levaria para descobrir que você me enganou?

—  Na verdade achei que não levaria muito tempo. — Sorrin­do, Fairchild passou o polegar pelo falcão de argila. — Você não é tão esperto quanto pensei que fosse, Stuart. Você já devia ter descoberto a troca há semanas. Não que não fosse um trabalho excelente — ele acrescentou, com uma ponta de orgulho. — Mas um homem esperto providenciaria a autenticação da pintura.

Como a conversa a estava deixando confusa, Kirby pressionou ainda mais o ouvido contra a porta. Passou o cabelo por trás da orelha como que para ouvir com mais clareza.

Distraída, deixou o robe se abrir, revelando uma camisola ínfima e a pele dourada. Do canto onde estava, Adam se revirou e xingou em pensamento.

—  Nós tínhamos um acordo. — Stuart levantou a voz, mas Fairchild o fez calar-se com nada além de um gesto de mão.

—  Não vá me dizer que acredita nessa baboseira de honra entre ladrões! Está na hora de crescer se quiser jogar com os grandes.

— Eu quero o Rembrandt, Fairchild.

Kirby se retesou toda. Como Adam estava com a atenção totalmente voltada para o embate na torre, não reparou. Deus, ele pensou enraivecido, o desgraçado tem mesmo o quadro.

—  Processe-me — Fairchild sugeriu. Kirby sentiu o desdém em sua voz.

—  Dê-me, ou quebrarei seu pescoço esquelético.

Por dez segundos inteiros Fairchild observou calmamente en­quanto o rosto de Stuart foi ficando cada vez mais vermelho.

— Você não vai conseguir assim. E devo avisá-lo que ameaças me deixam irritado. Sabe... — Lentamente pegou um pano e foi limpando os excessos de argila das mãos. — Não me importa­va como você tratava Kirby. Não, não me importava nem um pouco.

Abruptamente, deixou de ser o excêntrico inofensivo. Não era mais querubim nem demônio, e sim um homem. Dos perigosos.

— Eu sabia que ela não chegaria a casar-se com você. Ela é inteligente demais. Mas suas ameaças desde que ela lhe deu o fora me irritaram. E quando fico irritado, tendo a ser vingativo. Um defeito — ele disse amigavelmente. — Mas é assim que sou. — Os olhos claros estavam frios e calmos sobre os de Stuart. — Ainda estou irritado, Stuart. Quando estiver pronto para negociar, eu o aviso. Enquanto isso, fique longe de Kirby.

— Você não vai sair dessa assim.

— Eu estou com todas as cartas. — Com um gesto impaciente, repeliu Stuart. — Eu tenho o Rembrandt, e só eu sei onde está. Se você se tornar um estorvo, e está perigosamente perto disso, eu posso resolver ficar com ele. Ao contrário de você, não tenho urgência de conseguir dinheiro. — Sorriu, mas o gelo continuava em seus olhos. — Não se deve gastar mais do que se tem, Stuart. É o conselho que lhe dou.

Impotente, intimidado, Stuart se agigantou sobre o homenzinho à mesa de trabalho. Era bastante forte e estava suficiente­mente furioso para quebrar o pescoço de Fairchild com as mãos. Mas, assim, não conseguiria o Rembrandt, nem o dinheiro do qual precisava tão desesperadamente.

—  Antes de terminarmos, você vai me pagar — Stuart pro­meteu. — Não vou fazer papel de bobo.

—  Tarde demais — Fairchild disse tranqüilamente. — Agora caia fora. Você sabe encontrar a saída sem perturbar Cards, não sabe?

Como se já estivesse sozinho, Fairchild voltou para seu falcão.

Rapidamente, Kirby olhou ao redor em busca de um esconde­rijo. Por um momento, Adam pensou que ela tentaria se esconder no canto em que ele estava. Com as costas apertadas contra a parede, Kirby fechou os olhos e fingiu ser invisível.

Stuart abriu a porta com violência e saiu do ateliê pisando duro, cego de ódio. Sem olhar para trás, desceu a escada. Quan­do ele passou, Adam notou que ele estava com o rosto de um homicida. Naquele momento, não tinha armas. Mas se achasse uma, não hesitaria.

Kirby parou, imóvel e silenciosa, enquanto os passos se dis­tanciavam. Respirou fundo bem devagar e soltou o ar, bufando. E agora? E agora, ela pensou, e quis apenas cobrir o rosto nas mãos e entregar os pontos. Mas, em vez disso, empinou os ombros e foi confrontar o pai.

— Papai. — A palavra soou serena e acusatória.

Fairchild levantou a cabeça, mas sua surpresa foi rapidamente mascarada por um sorriso afável.

— Oi, meu amor. Meu falcão está começando a respirar. Venha dar uma olhada.

Ela respirou fundo mais uma vez. A vida inteira ela o amara, ficara ao lado dele. O adorara. Nada disso jamais a impedira de ficar com raiva dele. Lentamente, mantendo os olhos nos dele, ela fechou o robe e amarrou a faixa. Quando se aproximou, Fairchild pensou que ela parecia uma atiradora de aluguel afivelando o revólver. Ela não o intimidaria como Hiller.

— Ao que parece, você não me deixou a par da situação — ela começou. — Uma pegadinha, papai. O que Philip Fairchild, Stuart Hiller e Rembrandt têm em comum?

— Você sempre foi boa com pegadinhas, meu doce.

— Agora, papai.

—  Apenas negócios. — Ele sorriu breve e cordialmente para ela, enquanto pensava em quanto exatamente deveria contar.

—  Vamos ser objetivos? — Ela se aproximou de modo que apenas a mesa ficou entre os dois. — E não me olhe com essa cara boba de quem não está entendendo. Não vai funcionar. — Envergou-se e olhou diretamente nos olhos dele. — Ouvi um bom pedaço enquanto estava lá fora. Conte o resto.

—  Escutando atrás da porta. — Ele fez um tsc-tsc de desapro­vação. — Falta de educação.

—  Honestamente, não tive intenção. Agora me diga, senão destruo seu falcão.

—  Pirralha má. — Com seus dedos ossudos, ele agarrou o pulso dela, e ambos sabiam quem venceria se a questão fosse essa. Ele soltou um longo suspiro. — Tudo bem.

Com um aceno de cabeça, Kirby tirou a mão e então cruzou os braços. O gesto habitual o fez suspirar mais uma vez.

Stuart veio me fazer uma pequena proposta algum tempo atrás. Você sabe, é claro, que ele não é ninguém, por mais pre­tensioso que seja.

—  Sim, eu sei que ele queria casar comigo por causa do meu dinheiro. — Ninguém a não ser seu pai teria detectado a voz ligeiramente embargada.

—  Não falei isto para magoá-la. — Sua mão alcançou a dela, um vínculo que se formara quando ela respirou pela primeira vez.

—  Eu sei, papai. — Ela apertou a mão dele e então enfiou as suas nos bolsos do robe. — Meu orgulho foi ferido. Tem de acontecer de vez em quando, suponho. Mas não me importo com a humilhação — ela disse com súbita audácia. — Não me importo nem um pouquinho. — Com um meneio de cabeça, baixou os olhos na direção dele. — O resto.

—  Bem. — Fairchild respirou fundo, enchendo as bochechas, e bufou. — Entre outros defeitos, Stuart é ganancioso. Ele estava precisando de uma grande quantia de dinheiro e não achava que devia trabalhar. Resolveu ficar com o auto-retrato de Rembrandt da Galeria Merrick.

—  Ele o roubou? — Os olhos de Kirby cresceram. — Macacos me mordam! Eu jamais diria que ele teria a coragem de fazer isso.

—  Ele achava que era muito esperto. — Levantando, Fairchild caminhou até a pequena pia no canto para lavar as mãos. — Har­riet estava de partida para seu safári e não haveria ninguém para questionar o desaparecimento por várias semanas. Stuart é um tanto ditatorial com os funcionários da galeria.

—  É uma delícia açoitar subalternos.

—  Em todo caso — amavelmente, Fairchild cobriu o falcão, dando a noite de trabalho por encerrada — , ele veio com uma oferta; por sinal bem reles; para que eu falsificasse o Rembrandt para a substituição.

Ela não achou que ele faria nada que a surpreendesse. Certa­mente, nada que a magoasse.

—  Papai, é o Rembrandt de Harriet — ela disse, chocada.

—  Kirby, você sabe que gosto de Harriet. Gosto muito. — Pas­sou um braço confortador em seus ombros. — Nosso Stuart tem um cérebro bem pequeno. Ele me deu o Rembrandt quando eu disse que precisava dele para fazer a cópia. — Fairchild balan­çou a cabeça. — Não houve nenhum desafio, Kirby. Não teve a menor graça.

— Que pena! — ela disse secamente e se jogou em uma cadeira.

—  Então, eu lhe disse que não precisava mais do original e lhe dei a cópia. Ele jamais suspeitou. — Fairchild juntou as mãos nas costas e olhou para o teto. — Queria que você tivesse visto. Era o máximo. Era um dos últimos trabalhos de Rembrandt, sabe. Texturas fortes, fundo luminoso...

—  Papai! — Kirby interrompeu o que se tornaria uma palestra.

—  Ah, sim, sim. — Com um esforço, Fairchild se controlou. — Eu lhe disse que levaria mais um tempinho para terminar a cópia e dar o tratamento para parecer mais velha. Ele acreditou. Piamente — Fairchild acrescentou, e estalou a língua. — Já faz quase três semanas, e ele submeteu a tela a testes. Eu fiz questão de não dar condições para que ela passasse nem no mais básico dos testes, claro.

—  Claro — Kirby murmurou.

—  Agora ele tem de deixar a cópia na galeria. E eu tenho o original.

Ela se deu um tempo para absorver tudo o que ele contara. Não fazia diferença como ela estava se sentindo. Furiosa.

—  Por que, papai? Por que fez isso? Não é como das outras vezes. É Harriet.

—  Kirby, não perca o controle. Você tem um gênio muito de­sagradável. — Ele fez de tudo para parecer pequeno e indefeso.

Sou velho demais para lidar com isso. Lembre-se de minha pressão arterial.

— Não me venha com pressão arterial. — Ela o encarou com olhos furiosos. — Não pense que vai sair dessa assim. Velho? — ela rebateu. — O senhor ainda é o mais jovem de seus filhos.

— Eu sinto que uma crise se aproxima — ele disse, inspirado pelo aviso da própria Kirby dois dias antes. Ele apertou a área do coração no peito com a mão trêmula e cambaleou. — Vou termi­nar como um monte inútil de macarrão gelado. Ah, as pinturas que eu teria feito. O mundo está perdendo um gênio.

Kirby cerrou os punhos e esmurrou a mesa de trabalho. Os instrumentos pularam e ela deu um longo berro. Defensi­vo, Fairchild pôs as mãos ao redor do falcão e esperou que a crise passasse. Finalmente, ela caiu de volta na cadeira, sem fôlego.

—  Você costumava fazer melhor do que isso — ele observou. — Acho que você está amolecendo.

—  Papai! — Kirby trincou os dentes com força para não ran­gê-los. — Sei que serei forçada a lhe espancar na cabeça e nas orelhas e vou acabar presa por parricídio. Você sabe que tenho pavor de lugares fechados. Ficaria maluca na prisão. Você quer levar isso na consciência?

—  Kirby, eu já lhe dei motivo para se preocupar uma única vez?

—  Não me force a fazer um relato, papai, já passa da meia-noite. O que o senhor fez com o Rembrandt?

—  Fiz com ele? — Ele franziu o cenho e fingiu se ocupar em cobrir o falcão. — Como assim o que eu fiz com ele?

—  Onde está? — ela perguntou, espaçando cuidadosamente as palavras. — Você não pode deixar uma pintura dessas por aí pela casa, principalmente quando resolve ter hóspedes em casa.

—  Hóspedes? Ah, você está falando de Adam. Bom garoto. Já gosto dele. — As sobrancelhas menearam duas vezes. — Pelo jeito, você o está achando agradável.

Kirby apertou os olhos.

—  Deixe Adam fora disso.

—  Querida, querida, querida. — Fairchild abriu um largo sorriso. — E eu que pensei que você tinha tocado no nome dele.

— Onde está o Rembrandt? — Toda tentativa de paciência se desintegrou. Considerou vagamente bater a cabeça na parede, mas abdicara desse estratagema aos 10 anos de idade.

— São e salvo, meu doce. — A voz de Fairchild transmitia calma e satisfação. — São e salvo.

— Onde? Em casa?

— É claro. — Ele lhe lançou um olhar atônito. — Você não acha que eu guardaria em outro lugar, não é?

— Onde?

— Você não precisa saber de nada. — Com um floreio, ele tirou o avental de trabalho e jogou sobre uma cadeira. — Con­tente-se em saber que é um lugar seguro, escondido com o devido respeito e afeição.

— Papai.

— Kirby. — Ele sorriu; um sorriso amável, de pai. — Uma filha tem de confiar no pai, deve respeitar a sabedoria dos anos. Você confia em mim, não confia?

— Sim, claro, mas...

Ele a cortou cantando a primeira parte de uma velha canção infantil em falsete vacilante.

Kirby lamentou e abaixou a cabeça para a mesa. Quando ela aprenderia? E o que faria com ele dessa vez? Ele continuou a cantar até que as gargalhadas brotaram e escaparam.

— Você é incorrigível. — Ela levantou a cabeça e respirou fundo. — Tenho uma terrível intuição que você não está me contando um monte de detalhes e que vou estar do seu lado de qualquer maneira.

— Detalhes, Kirby. — Ele os descartou com um gesto de mão. — O mundo é muito cheio de detalhes, eles confundem tudo. Lembre que a arte reflete a vida e que a vida é uma ilusão. Agora

venha, estou cansado. — Ele foi até ela e estendeu a mão. — Ponha seu papai para dormir.

Derrotada, ela aceitou a mão e parou. Nunca aprenderia, nunca! E, sempre, sempre o adoraria. Saíram juntos do quarto.

Adam observou enquanto eles começavam a descer os degraus da escada, de braços dados.

—  Papai... — A apenas meio metro do esconderijo de Adam, Kirby parou. — Existe, é claro, uma razão lógica para tudo isso, não é?

—  Kirby! — Adam viu o rosto variável assumir agora linhas calmas e sóbrias. — Eu alguma vez já fiz alguma coisa sem uma razão lógica e sensata?

Ela começou a dar uma risada quase inaudível. Dentro em pouco a risada disparou, rica e melódica. Ecoou, amainada e fantasmagórica, até ela apoiar a cabeça no ombro do pai. A meia-luz, com os olhos brilhando, para Adam ela nunca parecera tão sedutora.

— Ah, papai! — ela cantarolou, em claro contralto. — Tão maravilhoso para mim. — De braço dado com Fairchild, ela continuou a descer os degraus.

Bem contente consigo próprio e com sua cria, Fairchild co­meçou a cantar com ela em seu falsete vacilante. Suas vozes misturadas fluíram em direção a Adam até serem engolidas pela distância.

Saindo das sombras, ele parou no alto da escada. Ouviu uma risada de Kirby, e depois se fez silêncio.

— Cada vez mais curioso — ele murmurou.

Os dois Fairchild deviam ser loucos. Eles o fascinavam.


 

De manhã o céu estava cinzento e havia uma chuva pregui­çosa. Adam ficou tentado a levantar da cama, fechar os olhos e fingir que estava em sua própria casa, toda organizada, onde uma empregada administrava tudo e não havia nenhuma gárgula à vista. Em parte por curiosidade, em parte por coragem, ele se levantou e se preparou para encarar o dia.

Pelo que ouvira na noite anterior, não estava contando com descobrir muita coisa com Kirby. Ao que parecia, ela sabia menos sobre o Rembrandt do que ele. Adam estava também certo de que, por mais que apertasse Fairchild, ele não deixaria escapar nada. Podia parecer inocente e inofensivo, mas era astuto que só ele. E potencialmente perigoso, Adam considerou, lembrando da maneira clara com que Fairchild lidou com Hiller.

O melhor curso de ação continuava sendo manter as buscas noturnas com o auxílio das passagens secretas. Ele resolveu que os dias seriam, para sua sanidade, dedicados à pintura.

Para começo de conversa, eu não devia estar aqui, Adam pensou debaixo de um forte jato de água fria no chuveiro. Se não fosse pelo fato de Mac ter me atormentado por causa do Rembrandt, eu não estaria aqui. Última vez, prometeu a si mesmo enquanto se en­xugava. Ultima vez, mesmo.

Quando aquele aborrecimento com Fairchild acabasse, pin­tar não seria apenas prioridade de negócios, seria seu único negócio.

Vestido e feliz com a idéia de dar fim à sua segunda carreira em poucas semanas, Adam caminhou pelo corredor pensando em café. A porta de Kirby estava totalmente aberta. Ao passar, ele deu uma olhada para dentro. Franziu o cenho, parou, retornou e parou à porta.

— Bom dia, Adam. O dia não está lindo? — Ela deu um sorriso invertido, pois estava de ponta-cabeça em um canto.

Ele olhou deliberadamente para a janela para ter certeza de que estava pisando em chão firme.

—  Está chovendo.

—  Não gosta de chuva? Eu gosto. — Ela esfregou o nariz com as costas da mão. — Veja a coisa dessa maneira: deve haver dezenas de lugares onde o sol está brilhando. É tudo relativo. Você dormiu bem?

—  Sim. — Mesmo na posição em que ela estava, naquele momento, dava para Adam ver que estava com o rosto corado, sem sinais de uma noite maldormida.

—  Entre e espere um minuto, vou descer para o café com você.

Ele se aproximou e parou diretamente na frente dela.

—  Por que você está de cabeça para baixo?

—  É uma teoria minha. — Ela cruzou os tornozelos contra a parede, com os cabelos formando uma poça no carpete. — Pode se sentar por um minuto? Para mim fica difícil conversar com você com sua cabeça lá em cima e a minha aqui embaixo.

Ciente que acabaria se arrependendo, Adam se agachou. O suéter dela havia deslizado, mostrando uma fina linha do aveludado diafragma.

— Obrigada. Minha teoria é que passo as noites na horizontal e a maior parte do dia em pé. Portanto... — De alguma maneira ela conseguiu dar de ombros. — Fico de ponta-cabeça de manhã e antes de dormir. Assim o sangue pode circular um pouquinho.

Adam esfregou o nariz com o polegar e o indicador.

— Acho que entendo. Isso me apavora.

— Você devia tentar.

— Vou deixar meu sangue estagnado, obrigado.

— À vontade. É melhor você recuar, vou me desvirar.

Ela se pôs de pé e se ajeitou com rapidez e agilidade de atle­ta, surpreendendo-o. Encarando-o, ela afastou os cabelos sobre os olhos. Jogou-os para trás e sorriu para ele longa e languidamente.

—  Seu rosto está vermelho — ele murmurou, mais por defesa própria do que por qualquer outra razão.

—  Não há o que fazer, faz parte do processo. — Ela havia passado umas boas horas discutindo consigo mesma na noite anterior. Esta manhã ela decidira deixar as coisas acontecerem naturalmente. — É a única situação em que eu fico corada — disse a ele. — Então, se quiser dizer algo constrangedor... Ou lisonjeiro... ?

Contra seu bom senso, ele a tocou, abarcando-lhe a cintura com as mãos. Ela não recuou, não chegou mais perto, apenas esperou.

—  Seu rosto já está perdendo a cor, de modo que parece que perdi minha chance.

—  Amanhã você pode tentar novamente. Está com fome?

—  Estou. — Os lábios dela o deixavam com muita fome, mas ele não estava pronto para se testar ainda. — Quero examinar detalhadamente suas roupas depois do café-da-manhã.

—  Ah, é mesmo? — ela disse, apertando os lábios.

Ele arqueou a sobrancelha, mas apenas ela estava ciente do gesto.

—  Para a pintura.

—  Você não vai querer fazer um nu. — O humor nos olhos dela se desfez em tédio quando ela foi se afastando. — Esta linha é batida.

— Não perco meu tempo fazendo linha. — Observou-a com atenção: os frios olhos cinzentos que podiam ficar cálidos de jovialidade, a boca soberba que podia convidar e prometer com nada além de um sorriso. — Vou pintá-la porque você foi feita para ser pintada. Vou fazer amor com você exatamente pela mesma razão.

A expressão dela não mudou, mas sua pulsação sim. Kirby não era tola a ponto de fingir para si mesma que estava com raiva. Raiva e excitação eram duas coisas diferentes.

— Quanta decisão e arrogância da sua parte — ela disse len­tamente. Caminhando devagar em direção à penteadeira, ela pegou a escova e passou nos cabelos. — Não aceitei posar para você, Adam, tampouco aceitei ir para a cama com você. — Ela passou a escova mais uma vez nos cabelos e a pôs de volta na penteadeira. — Na verdade, duvido muito que vá fazer qualquer uma das duas coisas. Podemos ir?

Antes que ela chegasse à porta, ele a tomou para si. A veloci­dade a surpreendeu, mas não a força. Ela esperava irritá-lo, mas quando ela meneou a cabeça para olhar para ele, não viu mau humor. O que viu foi uma tranqüila e paciente determinação. Nada poderia ter sido mais irritante.

Ele a puxou mais para perto, de modo que seu rosto ficou disforme e sua boca dominava. Ela não resistiu. Kirby raramente resistia ao que queria. Pelo contrário, deixou o calor atravessá-la como um vento em fluxo contínuo e lento, ao mesmo tempo aterrorizante e pacífico.

Desejo. Não era assim que ela imaginava que seria com o homem certo? Não era por isso que ela estava esperando desde o primeiro momento em que se descobriu mulher? Estava lá agora. Kirby abriu os braços para aquele desejo.

Seu batimento cardíaco estava irregular, como deveria estar. Como ele poderia vencê-la se perdia terreno toda vez que estava perto dela? Se ele cumprisse a promessa — Ou ameaça — de que seriam amantes, o que mais poderia perder? E ganhar? Tantos pensamentos enquanto se aproximava dela. Valia a pena correr o risco.

— Você vai posar para mim — ele disse contra os lábios dela. — E fará amor comigo. Não há escolha.

Esta foi a palavra que a deteve. Foi esta frase que a forçou a resistir. Ela sempre tinha escolha.

— Eu não...

— Para nenhum de nós dois — Adam terminou, ao soltá-la.

— Decidiremos quanto às roupas após o café-da-manhã. — Como não queria dar-lhe chance de falar, ele a empurrou para fora do quarto.

Uma hora depois, a empurrou de volta.

Ela esteve serena durante a refeição. Mas ele não se deixou enganar. Ela estava lívida, isto sim, e lívida era como ele a queria. Ela não gostava de ser manipulada, minimamente que fosse. Ele sentia uma onda de satisfação por ser capaz de provocar isso. Aquele olhar rebelde e rabugento era exatamente o que ele estava querendo para o retrato.

— Vermelho, acho — ele disse. — Acho que lhe cairá me­lhor.

Kirby fez um gesto de mão para o armário e caiu de costas na cama. Olhando para o teto, ela refletiu sobre sua posição. Era verdade que sempre se recusara em ser retratada, a não ser pelo pai. Não queria que ninguém mais fosse tão próximo dela. Como artista, sabia muito bem como era íntima a relação entre o pintor e o modelo, fosse modelo uma pessoa ou uma tigela de frutas. Ela nunca se dispôs a se entregar dessa forma a ninguém.

Mas Adam era diferente. Se quisesse, ela poderia se convencer que era por causa do talento dele, porque ele queria pintar seu retrato, não por querer bajulá-la. Não era mentira, tampouco era exatamente a verdade. Mesmo assim, em certos casos, Kirby ficava à vontade com meias-verdades. Para ser honesta, tinha de reconhecer que estava curiosa para ver como ela ficaria pela perspectiva dele, mas ao mesmo tempo a idéia não a deixava totalmente confortável.

Mexendo apenas os olhos, ela o observou enquanto ele ins­pecionava o guarda-roupa.

Ele não precisava saber o que se passava em sua mente. De­certo que era boa em guardar para si mesma seus pensamentos. Devia ser um desafio fazer isso sob os olhos incisivos de um artista. Devia ser interessante ver até que ponto ela poderia dificultar as coisas para ele. Dobrou as mãos modestamente sobre o colo.

Enquanto Kirby estava ocupada com seu diálogo interno, Adam examinou uma variedade incrível de roupas. Algumas eram perfeitas para uma órfã, outras para uma adolescente excêntrica. Ele pensou se ela teria mesmo usado aquela minissaia púrpura, e como ficaria nela. Túnicas elegantes de Paris e Nova York pen­diam negligentemente, em quantidade que daria para abrir um brechó. Se as roupas refletem a pessoa, havia mais de uma Kirby Fairchild. Ele ficou imaginando quantas ela lhe revelaria.

Ele foi descartando um traje após o outro. Este era muito insípido, o outro, chique demais. Encontrou um macacão fol­gado pendurado no mesmo cabide que um vestido justinho de lantejoulas de grife. Ao pôr de lado um conjunto de três peças que cairia perfeitamente bem em uma advogada assistente, ele encontrou o que procurava.

Seda escarlate. Era sem dúvida caro, mas não era chique da maneira como imaginava que Melanie Burgess desenharia. O corpete de decote quadrado se afunilava até se abrir em uma farta e resplandecente saia. Havia babados na bainha e saia debaixo em branco, preto e fúcsia. As mangas eram curtas e bufantes, com tiras nas mesmas cores. Feito para uma cigana abastada. Perfeito!

— Este. — Adam foi com a peça até a cama e a segurou ao lado de Kirby. Com o cenho franzido, ela continuou a olhar para o teto. — Vista e venha para o ateliê. Vou fazer uns esboços.

Ela falou sem lhe dirigir o olhar.

— Você já se deu conta de que não me pediu nem uma vez para posar para você? Você disse que queria fazer meu retrato, disse que faria meu retrato, mas nunca me pediu para fazer meu retrato. — Com as mãos ainda dobradas, começou a bater um dedo. — Meu instinto me diz que você tem a essência de um cavalheiro, Adam. Quem sabe você não se esqueceu de pedir "por favor".

— Não esqueci. — Ele jogou o vestido ao pé da cama. — Mas acho que você ouve "por favor" demais dos homens. Você é uma mulher que deixa os homens de joelhos com um piscar de olhos. Não sou dado a ficar de joelhos. — Não, ele não era dado a ficar de joelhos, e estava se tornando imperativo que ele tomasse o controle, por ambos. Curvou-se, levou as mãos aos lados da cabeça de Kirby e então sentou-se a seu lado. — E estou tão acostumado quanto você a fazer as coisas da minha maneira.

Ela o observou, refletindo sobre suas palavras e sua posição.

—  Mas eu não pisquei os olhos para você ainda.

—  Não? — ele murmurou.

Dava para ele sentir seu cheiro, aquela fragrância selvagem, indomada, que combinava com remotas noites de inverno. Seus lábios tinham um biquinho que não era traço do rosto, mas sinal de birra. Foi isto que o tentou. Ele tinha de sentir o sabor. Só um toque, uma prova, e então ele trataria de seus interesses. Mas aquela boca produzia nele um efeito que a mulher como um todo não fazia. Ou, quem sabe, ela o conquistara.

Ele sentiu a ardência do desejo. Flamas de calor e fumaça. Era este o gosto dela. Fumaça e tentação, e a promessa de deleites absurdos.

Provara, mas já não bastava mais. Ele tinha de tocar.

Seu corpo era pequeno, delicado, algo que um homem talvez temesse tomar nos braços. Ele o fez, mas não mais por ela. E sim por ele. Podia ser pequena e delicada, mas podia partir um homem em dois. Disto ele estava certo. Mas, ao tocá-la, ao provar dela, não quis nem saber de nada.

Jamais quisera tanto uma mulher. Ela o fazia se sentir como um adolescente no banco de trás do carro, como um homem pagando pela melhor cortesã de um bordel francês, como um marido se aconchegando na segurança de sua esposa. Suas complexidades eram mais eróticas do que cetim, ligas e meia­luz — a boca suave e ágil, as mãos fortes e determinadas. Não estava certo se escaparia de qualquer uma das duas. Ao possuí-la estaria entrando em um ciclo infinito de complicações, de batalhas, de excitação. Ela era um narcótico. Um mergulho no precipício. Se ele não tivesse cuidado, acabaria exagerando na dose e se complicando.

Recuar foi mais difícil do que ele imaginava. Ela estava deita­da, com os olhos semicerrados e os lábios levemente entreabertos. Não se envolva, ele pensou freneticamente. Pegue o Rembrandt e caia fora. Foi isto que você veio fazer, repetiu para si mesmo.

— Adam... — Ela murmurou seu nome como se nunca o tivesse dito antes. Soou tão lindo em sua voz. O único pensa­mento que continuava com ela era que ninguém jamais a fizera se sentir daquele modo. Ninguém jamais faria. Algo estava se abrindo dentro dela, mas ela não podia lutar contra isto. Cederia. A inocência em seus olhos era autêntica, emocional e não física. Ao ver aquilo, Adam sentiu o desejo se acender outra vez.

"Ela é uma bruxa", disse a si mesmo. Circe. A sereia Lorelei. Ele tinha de recuar antes que se esquecesse disso.

— Você terá de se trocar.

—  Adam... — Ainda tonta, ela levantou a mão para tocar o rosto dele.

—  Acentue os olhos. — Levantou-se antes de ceder à tenta­ção.

—  Meus olhos? — Ela olhou para ele com a mente em branco e o corpo palpitando.

—  E solte o cabelo. — Foi até a porta enquanto ela se apoiava nos cotovelos para se levantar. — Vinte minutos.

Ela não permitira que ele visse a mágoa. Não se permitiria sofrer aquela rejeição.

— Você é bem pretensioso, não é? — ela disse suavemente. — E mais escorregadio do que qualquer um com quem já deparei. Talvez você ainda fique de joelhos.

Ela tinha razão — e ele podia esganá-la por isso.

— É um risco que tenho de correr. — Com um aceno de cabeça, ele passou pela porta. — Vinte minutos — repetiu.

Kirby cerrou os punhos, mas depois os relaxou vagarosamente.

— De joelhos — ela prometeu a si mesma. — Eu juro.

 

Sozinho no ateliê de Kirby, Adam procurou pelo mecanismo que dava acesso à passagem secreta. Procurou mais por curiosi­dade. Era de se duvidar que ele precisasse revirar um quarto ao qual lhe deram livre acesso, mas ficou satisfeito de localizar o controle. O painel se abriu tão ruidosamente quanto os demais que encontrara. Após dar uma olhada no interior, fechou de novo e voltou para a prioridade do momento: pintar.

Nunca era uma tarefa, mas nem sempre era um prazer. A ne­cessidade de pintar era uma necessidade que podia ser suave e gentil, ou incisiva e cortante. Não era uma tarefa, mas, decerto, era um trabalho, às vezes tão exaustivo quanto cavar uma trin­cheira com enxada e picareta.

Adam era um artista meticuloso, bem como um homem me­ticuloso. Talvez convencional, como Kirby o definiu. Mas não era rígido. Era tão organizado quanto ela deixava de ser, mas seu processo criativo era notavelmente semelhante ao dela. Kirby era capaz de ficar olhando para um pedaço de madeira por uma hora, até enxergar a vida nele. E ele fazia o mesmo com a tela. Ela sentia um sobressalto, um alívio físico no momento em que encontrava o que estava procurando. Ele sentia o mesmo quando algo surgia de um dentre as dezenas de esboços que fazia.

Agora ele estava apenas se preparando, e estava tão calmo e em ordem quanto seu equipamento. No cavalete ele arrumou a tela em branco, que aguardava. Cuidadosamente, selecionou três Pedaços de carvão. Começaria com eles. Estava começando os Primeiros esboços informais quando ouviu os passos dela.

Ela parou no umbral da porta, jogou a cabeça para trás e olhou para ele. Com deliberada cautela, ele pôs o bloco de desenho na mesa.

Estava com os cabelos soltos, fartos, sobre os ombros sedosos.

Com um movimento, as argolas nas orelhas e a meia dúzia de pulseiras em seu braço fizeram um ruído metálico. Seus olhos, sombrios e fuliginosos, ainda ardiam com seu mau gênio. Ele conseguiu imaginar sem esforço a imagem dela girando ao redor de uma fogueira, ao som de violinos e tamborins.

Ciente da imagem que projetava, Kirby pôs ambas as mãos na cintura e entrou. A ampla saia escarlate bailava ao redor das pernas. Parou na frente dele e deu duas voltas, sempre virando a cabeça para observá-lo por sobre o ombro. O cheiro de madeira queimada e de rosas encheu o ateliê.

— Você quer pintar o retrato de Katrina, é? — Sua voz apre­sentou um sufocado sotaque eslavo enquanto ela lhe passou o dedo no rosto. Insolência, desafio e, então, uma risada, que foi como uma carícia quente e perigosa, na pele dele. — Primeiro tem que colocar na mão dela uma moeda de prata.

Ele lhe daria qualquer coisa. Que homem não faria o mesmo? Lutando contra ela, lutando contra si mesmo, ele pegou um cigarro.

— Perto da janela a leste — ele disse calmamente. — Lá a luz é melhor.

Não, ele não escaparia tão fácil assim. Por trás do desafio e da insolência, seu corpo tremia, desejando Adam. Ela não deixaria que ele percebesse.

—  Quanto você paga? — ela exigiu saber, serpenteando em um turbilhão de escarlate e seda. — Katrina não faz de graça.

—  O preço de tabela. — Ele mal resistia ao ímpeto de agar­rá-la pelos cabelos e fazê-la curvar-se. — E só pago quando terminar.

Em abrupta mudança, Kirby alisou e ajeitou a saia. — Algo errado? — perguntou calmamente. — Talvez você não tenha gostado do vestido, no final das contas. — Ele esmagou o cigarro com um gesto agressivo.

— Vamos começar.

— Achei que já tínhamos começado — ela murmurou. Seus olhos estavam luminosos e jocosos. Ele queria sufocá-la tanto quanto queria rastejar por ela. — Você insistiu em pintar meu retrato.

— Não me provoque demais, Kirby. Você tem uma tendência a despertar meu lado mais ordinário.

— Acho que não posso levar a culpa por isso. Talvez você tenha se reprimido por tempo demais. — Como conseguiu exatamente a reação desejada, ela passou a cooperar ao máximo. — Agora, onde quer que eu fique?

— Perto da janela a leste.

Um a um, ela pensou com satisfação enquanto obedecia.

Ele só falou quando necessário: levante mais o queixo, vire a cabeça. Em pouco tempo ele conseguiu transformar a raiva e o desejo em concentração. A chuva caiu, mas o som foi abafado pelo vidro grosso das janelas. Com a porta da torre quase fechada, não havia mais nenhum som.

Ele a observou, a estudou, a absorveu, mas o homem e o artista estavam trabalhando juntos. Quem sabe, ao colocá-la na tela, ele a entenderia... e a si mesmo. Adam deslizou o carvão sobre a tela e começou.

Agora ela podia observá-lo, sabendo que ele estava voltado para dentro de si. Já vira dezenas de artistas trabalhando: ve­lhos, novos, talentosos, amadores. Suspeitava que Adam fosse diferente.

Ele usava um suéter, com o qual estava obviamente à von­tade, mas não usava jaleco. Mantinha-se aprumado enquanto esboçava, como se sua natureza exigisse que estivesse sempre alerta. Aquela era uma das coisas que ela já havia percebido sobre ele. Estava sempre observando. Ela sabia que um artista de verdade sempre fazia isso, ela sabia, mas parecia haver algo mais.

Ela o chamou de convencional, ciente de que não era bem verdade. Não exatamente. O que havia nele que não combinava com o modelo ao qual tentava se encaixar? Alto, esguio, atra­ente, aristocrático, rico, bem-sucedido e... Ousado? Esta foi a palavra que lhe veio à mente, apesar de não saber exatamente o porquê.

Havia nele algo de imprudente que a cativava. Algo que fazia equilibrar a maturidade, a confiabilidade que ela não sabia que desejava em um homem. Ele seria uma rocha à qual se agarrar durante um terremoto. E ele seria o terremoto. Kirby percebeu que estava afundando rapidamente. O truque seria impedi-lo de perceber isso e fazê-la de boba. Ainda assim, no fundo, ela gostava dele. Simples assim.

Adam levantou os olhos rapidamente e viu que ela estava sorrindo para ele. Era de desarmar, doce e descomplicada. Algo o alertou que Kirby desarmada era bem mais perigosa que Kirby armada. Quando ela abaixou a arma dela, ele levantou a dele.

— Hiller não pinta também?

Ele viu que o sorriso dela se desfez e tentou não lamentar.

—  Um pouco.

—  Você não posou para ele?

—  Não.

—  Por que não?

O gelo que surgiu nos olhos dela não era o que ele queria para o quadro. O homem e o artista travaram um combate enquanto ele continuava a esboçar.

—  Digamos que eu não gostava muito do trabalho dele.

—  Imagino que devo entender isto como um elogio ao meu. Ela lhe lançou um longo e neutro olhar.

—  Se prefere assim.

O logro fazia parte da tarefa, ele procurou lembrar. O que ouvira no ateliê de Fairchild não lhe dava outra opção.

—  Fico surpreso por ele não ter criado caso por causa disso, já que estava apaixonado por você.

—  Não estava. — Ela deixou escapar as palavras, e o gelo virou calor outra vez.

—  Ele a pediu em casamento.

—  Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Ele levantou os olhos e viu que ela estava dizendo exatamente o que pensava.

— Não?

— Eu concordei em casar com ele sem amá-lo.

Ele se esqueceu da pintura e ficou com a mão suspensa a centímetros da tela.

— Por quê?

Enquanto ela o encarava, ele via sua raiva esmaecer. Por um instante ela era simplesmente uma mulher em seu momento mais vulnerável.

— Questão de momento certo — ela murmurou. — Prova­velmente, o fator mais importante a governar nossas vidas. Se não fosse pelo momento certo, Romeu e Julieta teriam criado meia dúzia de filhos.

Ele estava começando a entender, e entender só o deixava mais desconfortável.

Você achou que estava na hora de casar?

Stuart é atraente, muito educado e charmoso, e achei que fosse inofensivo. Percebi que a última coisa que desejava era um marido educado, charmoso e inofensivo. Apesar disso, achei que ele me amasse. Passei muito tempo sem romper o noivado porque achei que ele seria um marido conveniente e que não me exigiria muita coisa. — Soou vazio. Foi mesmo vazio. — Um marido que me desse filhos.

Você quer ter filhos?

Tem algo errado com isso? — ela perguntou. — Você acha esquisito que eu queira uma família? — Ela fez um movimento breve e furioso que fez as pulseiras e brincos tilintarem outra vez. —Pode ficar chocado, mas tenho necessidades e desejos, quase como uma pessoa real. E não tenho de lhe dar explicações.

Ela já estava a meio caminho da porta quando ele segurou-a pelos ombros.

— Kirby, desculpe. — Quando ela tentou se soltar, ele segurou mais forte. — Estou falando sério.

— Desculpar o quê? — ela revidou.

— Por magoá-la — ele murmurou. — Com estupidez.

Os ombros dela relaxaram em suas mãos, lentamente, de modo que ele pôde ver o quanto aquilo lhe custava. Sentiu mais uma pontada de culpa.

— Tudo bem. Você tocou em um ponto frágil, só isso. — Ela deliberadamente tirou as mãos dele de seus ombros e deu um passo para trás. Ele teria preferido se ela o esbofeteasse. — Pode me dar um cigarro?

Ela pegou um dos cigarros dele e deixou que ele acendesse antes de lhe dar as costas de novo.

—  Quando aceitei a proposta de Stuart...

—  Você não precisa me contar.

—  Não deixo as coisas pela metade. — Parte da insolência voltou quando ela se virou para ele. Por alguma razão, isso não aliviou a culpa de Adam. — Quando eu aceitei, disse a Stuart que não o amava. Do contrário não me pareceria justo. Se duas pessoas terão um relacionamento importante, acho que tem que começar com honestidade, não acha?

Ele pensou no transmissor escondido em sua mala. Pensou que McIntyre estava esperando o próximo relatório.

— Acho.

Ela assentiu. Era uma área na qual não era nada flexível.

—  Eu lhe disse que o que desejava dele era fidelidade e filhos, e em retorno lhe daria o mesmo, e o máximo de afeto que pudesse. — Ela brincou com o cigarro e deu uma de suas tragadas rápidas e nervosas. — Quando percebi que as coisas não funcionariam para nenhum dos dois dessa maneira, fui falar com ele. Não fiz nada de forma descuidada ou casual. Foi muito difícil para mim. Você entende isso?

—  Sim, entendo.

Isso ajudava, ela percebeu. Mais do que a simpatia de Mela­nie, mais do que o apoio não verbalizado de seu pai, a simples compreensão de Adam ajudava.

— A coisa não foi nada bem. Eu sabia que haveria discussão, mas não contava que ele se descontrolasse. Ele fez alguns comen­tários bem específicos sobre minha capacidade de ser mãe e meu histórico. Em meio a toda aquela lavação de roupa suja emergiu a verdadeira razão pela qual ele queria casar comigo.

Ela deu mais uma tragada no cigarro e o amassou antes de se deixar cair em uma cadeira.

— Ele jamais me amou. Foi infiel o tempo todo. Acho que não importava. — Mas ela fez silêncio, ciente de que importa­va. — O tempo todo que passou fingindo gostar de mim estava me usando. — Quando levantou os olhos, lá estava a mágoa de volta. Ela não soube; teria odiado. — Dá para imaginar como é descobrir que sempre que uma pessoa estava abraçando ou fa­lando com você, estava na verdade imaginando como você seria útil? — Ela pegou o pedaço de madeira semipronto que poderia ser sua raiva. — Útil — repetiu. — Que palavra mais detestável. Ainda não me recuperei disso como deveria.

Ele esqueceu McIntyre, o Rembrandt e a tarefa que ainda ti­nha a fazer. Caminhou até ela e sentou-se a seu lado, colocou sua mão sobre a dela. Sob ambas as mãos estava a raiva de Kirby.

— Não posso imaginar que um homem a considere útil. Quando ela levantou os olhos, seu sorriso já se espalhara pelo rosto.

—  Que coisa bonita de se dizer. A coisa perfeita. — Perfeita demais para suas defesas decadentes. Por saber que custaria muito pouco para que ela se voltasse para ele agora e depois, ela suavizou o clima. — Que bom que você estará aqui no sábado.

—  Na festa?

—  Você pode ficar me olhando languidamente e todos pen­sarão que eu o rejeitei por sua causa. Sou dada a vinganças mesquinhas.

Ele riu e levou-lhe as mãos aos lábios.

—  Não mude — ele disse com uma súbita intensidade que a deixou em dúvida novamente.

—  Não tenho planos de mudar. Adam, eu... Ah, pelo amor de Deus, o que você está fazendo aqui? Esta conversa é parti­cular.

Cauteloso, Adam virou a cabeça e viu Montique entrar no quarto.

—  Ele não vai fazer fofoca.

—  A questão não é essa. Eu lhe disse que não podia entrar aqui.

Ignorando-a, Montique deu uma corridinha e com um salto tão desajeitado quanto rápido pulou no colo de Adam.

—  Que lindo pestinha — Adam disse, coçando as orelhas peludas.

—  Ah, Adam, eu não faria isso.

—  Por quê?

—  Está arrumando problemas.

—  Não seja absurda. Ele é inofensivo.

—  Ah, ele é, sim. Ela não é. — Kirby fez um gesto com a ca­beça em direção à porta, por onde Isabelle vinha se esgueirando. — Agora é tarde. Eu avisei. — Kirby meneou a cabeça e encarou o olhar de Isabelle com igual indiferença. — Não tenho nada a ver com isso.

Isabelle piscou os olhos duas vezes e olhou para Adam. Con­cluindo que sua responsabilidade acabava ali, Kirby deu um suspiro e se levantou.

—  Não posso fazer nada — ela disse a Adam e deu-lhe um tapinha no ombro. — Você pediu por isso. — E, assim, saiu do ateliê, passando bem longe da gata.

—  Não pedi para ele subir aqui — Adam começou a dizer, fazendo cara feia para Isabelle. — E não pode haver mal nenhum nisso... Ah, Deus — ele murmurou. — Ela conseguiu me fazer falar com a gata.


 

—Vamos caminhar — Kirby determinou quando a tarde V caiu e Fairchild ainda ia sair de seu ateliê. Mas ela tinha certeza de que ele não sairia antes de completar os mínimos detalhes do Van Gogh. Sabia que enlouqueceria se não saísse e esquecesse o projeto de estimação do pai por enquanto.

—  Está chovendo — Adam observou enquanto bebericava o café.

—  Você já mencionou isso antes. — Kirby empurrou seu café e se levantou. — Muito bem, então vou pedir para Cards lhe trazer um cobertor e uma boa xícara de chá.

—  Isto é um ataque psicológico?

—  Funcionou?

—  Vou pegar um casaco. — Ele se retirou, ignorando a risadinha abafada de Kirby

Quando saíram, foram envolvidos pela chuva fina e pelo nevo­eiro. Folhas corriam com a chuva. Finos dedos de névoa cobriam o solo. Adam se encolheu no casaco, pensando que aquele era um clima ruim para uma caminhada. Kirby marchava em frente com o rosto levantado para o céu. Ele planejara passar a tarde pintando, mas talvez isso fosse melhor. Se ele pretendia capturá-la em cores e pinceladas, pre­cisava conhecê-la melhor. Não era tarefa fácil, Adam riu por dentro, mas era estranhamente atraente.

O ar estava pesado com a fragrância do outono, e o céu, so­turno. Pela primeira vez desde que a conhecera, Adam sentiu serenidade em Kirby. Caminharam em silêncio, com a chuva entre eles.

Ela estava contente. Era uma sensação estranha para ela iden­tificar essa sensação que lhe vinha tão raramente. Com sua mão na dele, ela estava contente de caminhar em meio à neblina que se deslocava pelo chão e à chuvinha gelada sobre eles. Ela estava contente pela chuva, pelo friozinho e pela penumbra. Mais tarde seria hora de uma vibrante lareira e de um conhaque quentinho.

—  Adam, está vendo o canteiro de crisântemos logo ali?

—  Hummm?

—  Os crisântemos, quero pegar alguns. Você precisará ficar de olho.

—  De olho em quê? — Ele afastou os cabelos molhados dos olhos.

—  Em Jamie, é claro. Ele não gosta que ninguém se meta com suas flores.

—  As flores são suas.

—  Não, são de Jamie.

—  Ele trabalha para você.

—  E o que tem uma coisa a ver com a outra? — Ela pôs a mão em seu ombro enquanto vasculhava a área com os olhos. — Se ele me pegar, ficará furioso e não vai mais separar folhas secas para mim. Serei rápida, já fiz isso antes.

—  Mas se você...

—  Não há tempo para discutir. Agora você fica observando aquela janela ali. Ele deve estar na cozinha tomando café com Tulip. Faça um sinal para mim se o vir.

Adam não soube bem se acabou cedendo por ser mais simples ou se já estava entrando no espírito da coisa. Mas foi até a janela e deu uma olhada para dentro. Jamie estava sentado à ampla mesa redonda, segurando uma xícara de café com as duas mãos alquebradas. Virou-se e fez com a cabeça um sinal de "Vá em frente" para Kirby.

Ela se moveu como um relâmpago, lançando-se sobre o can­teiro e arrancando as flores pela raiz. Escuro e molhado, seus cabelos formaram uma cortina sobre o rosto enquanto ela enchia os braços de flores outonais. Ela também podia ser retratada assim, Adam riu por dentro. Na neblina, com os braços cheios de flores molhadas. Quem sabe fosse possível capturar no re­trato esses pequenos e estranhos arroubos de inocência. Olhou de novo pela janela, vagarosamente. Em um ridículo ataque de pânico, ele viu Jamie levantar-se e se dirigir à porta da cozinha. Esquecendo a lógica, ele correu para ela.

— Ele está vindo.

Surpreendentemente ágil, Kirby se levantou do canteiro e continuou andando. Apesar de estar correndo a toda velocidade, Adam só a alcançou quando dobraram o canto da casa. Rindo e ofegando, ela caiu sobre ele.

— Conseguimos!

— Por pouco — ele concordou. Seu coração estava dispara­do... por causa da corrida? Talvez. Ele estava sem fôlego... por causa da brincadeira? Quem sabe. Mas eles estavam molhados e próximos e a neblina estava subindo. Parecia que ele não tinha mais escolha.

Com os olhos nos dela, ele afastou do seu rosto os cabelos gotejantes. Sua pele estava fria, molhada e aveludada. Mas a boca de Kirby estava cálida e receptiva quando ele a beijou.

Ela não havia planejado aquilo. Se tivesse tido tempo de pensar, ela diria que não queria que as coisas acontecessem dessa maneira. Ela não queria ser fraca. Não queria confundir sua cabeça. Mas, pelo jeito, ela não tinha mais escolha.

Ele sentiu nela o gosto da chuva, fresca e inocente. Dava para sentir o cheiro penetrante das flores que estavam amassadas entre os dois. Ele não conseguia tirar as mãos de seus cabelos, daquele suave e pesado emaranhado. Ele a queria por inteiro, não como no início, mas de todos os modos possíveis. Aquele desejo não era mais o simples desejo de um homem por uma mulher, mas dele por ela. Exclusivo, imperativo, impossível.

Ela queria se apaixonar, mas queria planejar a coisa a seu modo, no seu devido tempo. Não era para acontecer daquela maneira estrondosa que a deixou tremendo. Não era para acon­tecer sem sua permissão. Abalada, Kirby recuou. Não aconteceria de novo até que ela estivesse pronta. Era isso. Com os nervos novamente firmes, ela sorriu.

—   Parece que fizemos o belo trabalho de amassá-las. — Quan­do ele estava para recuar, Kirby estendeu-lhe as flores. — São para você.

—   Para mim? — Adam olhou para os crisântemos que segu­ravam entre os dois.

—   Sim, você não gosta de flores?

—   Gosto de flores — ele murmurou. Por mais que não fosse a intenção, ela o tocou tanto com o presente quanto com o beijo. — Acho que nunca me deram flores antes.

—   Não? — Ela lhe lançou um olhar longo e ficou pensativa. Ela já havia recebido montanhas de orquídeas, lírios, rosas e mais rosas, até que elas passaram a significar pouco mais que nada. Seu sorriso veio lentamente quando ela tocou-lhe o peito com a mão. — Se eu soubesse, teria colhido mais.

Atrás deles uma janela se abriu.

—   Vocês não têm nada melhor para fazer do que ficar se agarrando na chuva? — Fairchild repreendeu. — Se querem ficar esfregando seus focinhos, que o façam dentro de casa. Não suporto espirros e funga-funga. — Fechou a janela com força.

—   Você está todo molhado — Kirby comentou, como se não tivesse reparado na chuva forte que caía. Ela deu o braço a ele e en­traram pela porta que estava aberta pelo sempre eficiente Cards.

—   Obrigada. — Kirby tirou o casaco ensopado. — Vamos precisar de um vaso para as flores, Cards. São para o quarto do sr. Haines. Veja se Jamie não está por perto, certo?

— Naturalmente, senhorita. — Cards pegou ambos os casacos e as flores ensopados e voltou pelo corredor.

— Onde você o arrumou? — Adam pensou alto. — Ele é incrível.

— Cards? — Kirby sacudiu a cabeça como um cachorro molhado. — Papai o trouxe da Inglaterra. Acho que ele era espião, ou, talvez, quem sabe, fosse leão-de-chácara. Em todo caso, é óbvio que ele vê tudo.

— Bem, crianças, se divertiram bastante? — Fairchild veio do salão num rompante. Usava uma camisa suja de tinta e exi­bia um sorriso convencido. — Completei meu trabalho e agora estou livre para dar toda minha atenção à escultura. Estava na hora de chamar Victor Alvarez — murmurou. — Já o fiz esperar demais.

— Ele pode esperar até depois do café, papai. — Ela lançou ao pai um breve olhar de advertência que Adam teria perdido se não estivesse observando tão de perto. — Leve Adam para o salão e eu providenciarei tudo.

Ela o manteve ocupado pelo resto do dia. Deliberadamente, Adam percebeu. Algo estava acontecendo e ela não queria que ele tivesse motivos para suspeitar. Durante o jantar, foi a anfitriã perfeita. Durante o café e o conhaque no salão, manteve-o entretido com uma profunda discussão sobre arte barroca. Apesar de suas conversas e seu charme fluírem com facilidade, Adam estava mais do que certo de que havia algo por trás. Mais uma coisa para ele descobrir.

"Ela não podia ter preparado melhor a cena", ele riu por den­tro. Um salão tranqüilo, o fogo estalando na lareira, conversa inteligente. E ela estava observando Fairchild como se fosse um falcão.

Quando Montique entrou, a cena mudou. Mais uma vez, o filhote desarrumado pulou no colo de Adam e se acomodou.

— Como ele conseguiu entrar aqui? — Fairchild perguntou.

— É Adam quem o encoraja — Kirby disse, bebericando co­nhaque. — Não podemos nos responsabilizar.

— Devo dizer que não! — Fairchild lançou um olhar grave para Adam e para Montique. — E se aquela... aquela criatura ameaçar processar novamente, Adam terá de ter seu próprio advogado. Eu não vou me envolver em nenhuma batalha judi­cial, especialmente tendo meu negócio por completar com o sr. Alvarez. Que horas são no Brasil?

— Alguma hora dessas — Kirby murmurou.

— Vou ligar para ele imediatamente e fechar o negócio antes que sejamos surpreendidos com uma intimação.

Adam recostou-se na cadeira com seu conhaque na mão e coçou as orelhas de Montique.

— Vocês realmente querem me fazer acreditar que receiam ser processados por uma gata?

Kirby passou o dedo pela borda de sua taça.

—  Acho que é melhor não contarmos a ele o que aconteceu no ano passado quando tentamos desalojá-la.

—  Não! — Fairchild levantou-se de um salto e arrastou os pés um pouco antes de sair correndo pela porta. — Não vou discutir isso. Não vou me lembrar disso. Vou ligar para o Brasil.

—  Ah, Adam... — Kirby deu uma olhada expressiva para a porta, sentindo-se esgotada.

Adam não precisou olhar para saber que Isabelle estava che­gando.

— Não me deixarei intimidar por uma gata.

— Tenho certeza de que é muito corajoso de sua parte. — Kirby tomou o restante de sua bebida e se levantou. — Assim como tenho certeza de que você entenderá se eu deixá-lo com sua coragem. Eu realmente preciso rearrumar minhas gavetas de roupas.

Pela segunda vez no dia Adam se viu a sós com um cão e uma gata.

Meia hora depois, após perder para Isabelle uma competição de quem encara por mais tempo, Adam trancou a porta e entrou em contato com McIntyre. Com o tom breve e conciso que McIntyre sempre admirou, Adam retransmitiu a conversa que ou­viu na noite anterior.

— Combina — McIntyre declarou como fato. Dava quase para Adam enxergá-lo esfregando as mãos. — Você já está sa­bendo bastante para tão pouco tempo. A investigação sobre Hiller revela que ele está vivendo de crédito e reputação. Ambos estão se esgotando. Você não faz idéia de onde Fairchild o está guardando?

— Fico surpreso que ele não tenha pendurado à vista de todos.

— Adam acendeu um cigarro e franziu a testa para o Tiziano do outro lado do quarto. — Seria bem seu estilo. Ele mencionou umas duas vezes um tal de Victor Alvarez do Brasil. Algum tipo de acordo que ele está fechando.

— Vou ver o que consigo descobrir. Talvez ele esteja vendendo o Rembrandt.

Ele não está precisando de dinheiro.

Algumas pessoas nunca têm o bastante.

— É. — Mas não se encaixava. Simplesmente não se encaixava. — Eu dou retorno.

Adam ficou pensando, mas só por uns momentos. Quanto antes tivesse algo concreto, mais cedo poderia se desembaraçar. Abriu o painel de instrumentos e foi trabalhar.

 

Pela manhã, Kirby posou para Adam por mais de duas ho­ras sem a menor discussão. Se ele achou que sua cooperação e disposição radiante foram feitas para confundi-lo, estava absolutamente certo. Ela também o estava mantendo ocupado enquanto Fairchild fazia os arranjos finais para a entrega do Van Gogh.

Adam trabalhou na noite anterior até a meia-noite, mas nada achou. Onde quer que Fairchild tivesse escondido o Rembrandt, o escondera bem. A busca de Adam pelo terceiro andar estava quase terminando. Estava na hora de procurar em outros lugares.

Escondido com o devido respeito e afeição", ele relembrou, isso então excluía qualquer possibilidade de estar no calabouço ou no sótão. Possivelmente, ele teria de lhes dar mais algum tempo, mas pretendia se concentrar, primeiro, na parte principal da casa. Seu objetivo inicial seriam os quartos particulares de Fairchild, mas quando e como ele ainda teria de resolver.

Quando a sessão de pintura terminou e Kirby voltou a seu próprio trabalho, Adam ficou andando pelo primeiro andar. Não havia ninguém para questionar sua presença. Ele era um convidado, e confiavam nele. Era o que se esperava, pensou quan­do começou a se sentir desconfortável. Uma das razões pelas quais McIntyre o apontara para aquela tarefa em particular era por ter livre acesso aos Fairchild e à casa. Ele era, tanto social quanto profissionalmente, um deles. Eles não teriam razão para suspeitar de um artista bem-educado e bem-sucedido a quem estavam acolhendo na própria casa. E quanto mais Adam tentava justificar suas ações, mais a culpa o devorava.

"Chega", disse a si mesmo, e olhou para o céu escuro lá fora. Já tivera o suficiente para um dia. Estava na hora de subir e se trocar para a festa de Melanie Burgess. Onde encontraria Stuart Hiller e Harriet Merrick. Lá não havia laços emocionais que o fizessem se sentir como um espião e um ladrão. Disse um palavrão entre os dentes e começou a subir os degraus da escada.

—   Com licença, sr. Haines. — Impaciente, Adam virou-se e olhou para Tulip indiferente. — Estava subindo?

—   Sim. — Como ele estava no pé da escada, bloqueando a passagem, ele se pôs de lado para ela passar.

—   Então leve isto para ela e faça com que beba. — Tulip lhe pôs na mão um copo grande cheio do líquido branco. — Tudo — acrescentou severamente antes de voltar claudicando para a cozinha.

Onde eles arrumavam os empregados?, Adam ficou pensan­do, franzindo o cenho para o copo em suas mãos. E por que ele permitiu que uma empregada lhe desse ordens? Em Roma, faça como os romanos, pensou, e voltou a subir a escada.

No caso, ela se referia a Kirby, obviamente. Adam cheirou o copo, desconfiado, enquanto batia em sua porta.

— Pode trazer — ela gritou — , mas não vou beber. Pode ameaçar o quanto quiser.

Tudo bem, ele pensou e abriu a porta. O quarto estava vazio, mas ele podia sentir o cheiro dela.

— Faça o pior que puder — ela convidou. — Não pode me intimidar com histórias de desordens intestinais e deficiências de vitaminas. Sou saudável como um cavalo.

O cheiro cálido e ardente fluía por ele. Com o copo na mão, ele cruzou o quarto e entrou no banheiro, onde o vapor subia, fragrante e nevoento como uma floresta tropical. Com seus ca­belos presos no alto da cabeça, Kirby relaxava em uma grande banheira incrustada no piso. Sobre a cabeça, plantas suspensas se derramavam, verdes e úmidas. Bolhas brancas e espumantes flutuavam aos montes na superfície da água.

— Então ela o mandou, não foi? — Despreocupada, Kirby es­fregou um dos ombros com uma esponja vegetal. Concluiu que as bolhas a cobriam com mais pudor que a maioria das mulheres da festa daquela noite. — Bem, então entre e pare de ficar me olhando de cara feia. Não vou pedir para esfregar minhas costas.

Ele pensou em Cleópatra flutuando em sua barcaça. Quantos homens ela teria enlouquecido além de Júlio César e Marco An­tônio? Olhou para a comprida parede espelhada detrás da pia. Estava embaçada devido ao vapor que ascendia de seu banho em colunas visíveis.

—  A água está bastante quente?

—  Sabe o que é isso? — ela perguntou, e pegou o sabonete da saboneteira. Era um bolo em rosa-claro, bem claro, e deixava uma espuma cremosa em sua pele. — É uma mistura de gosto asqueroso que Tulip periodicamente tenta me forçar a tomar. Tem ovos crus e outras coisas abjetas. — Fez uma careta e levantou uma perna surpreendentemente longa para ensaboar. — Fale a verdade, Adam, você beberia ovos crus voluntariamente?

Ele a observou esfregar o sabonete e os dedos pela panturrilha abaixo.

—  Não posso dizer que sim.

—  Muito bem, então. — Satisfeita, trocou de perna. — Vai para o ralo.

— Ela me disse para ver se você bebia. Tudo — acrescentou, começando a se divertir.

Ela mexeu o lábio inferior ligeiramente enquanto pensava.

—  Isso o coloca em uma posição difícil, não é?

—  De qualquer maneira, é uma posição.

— Sabe do que mais, vou tomar um gole. Então, quando ela perguntar se eu bebi, posso dizer que sim. Estou tentando mentir menos.

Adam lhe deu o copo, observando enquanto ela provava e fazia careta.

—  Não tenho certeza se você está sendo verdadeira assim.

—  Eu disse diminuir, não eliminar. Na pia — ela acrescentou.

— A não ser que você queira tomar o resto.

— Eu passo. — Ele jogou fora e então sentou na borda da banheira.

Surpresa com o movimento, ela apertou o sabonete entre os dedos. Ele caiu subitamente.

— Hidrofobia — ela murmurou. — Não, não se incomode, eu vou achar. — Mergulhou a mão na água e começou a procu­rar. — Podiam fazer um sabonete que não escorregasse sempre das mãos. — Agradecida pela distração, ela pegou novamente o sabonete. — Ah! Agradeço muito você ter me trazido esse troço nojento, Adam. Agora, se quiser se retirar...

— Não estou com pressa. — Pegou preguiçosamente a esponja. — Você falou qualquer coisa sobre esfregar suas costas.

— Roubo! — A voz de Fairchild rugiu no recinto diante dele. —Chame a polícia. Chame o FBI. Adam, você será testemunha. —Ele balançou a cabeça, sem ver nada de estranho na platéia para o banho da filha.

—  Fico feliz de ter um banheiro espaçoso — ela murmurou. —Que pena que não pensei em servir refrescos. — Aliviada pela interrupção, passou sabonete no braço. — O que foi roubado, papai? A cena de rua do Monet, o retrato de Renoir? Já sei, suas meias esportivas.

— O meu smoking preto! — Apontou o dedo dramaticamente para o teto. — Teremos de tirar as digitais.

— Obviamente que foi roubado por um psicótico com fetiche por trajes de gala — Kirby concluiu. — Adoro um mistério. Vamos ouvir os suspeitos. — Afastou uma mecha de cabelos dos olhos e recostou-se: uma Sherlock Holmes nua e erótica. — Adam, você tem um álibi?

Com um meio sorriso, ele esfregou a esponja molhada e áspera nas mãos.

— Passei a tarde seduzindo Polly.

Os olhos dela se iluminaram, divertidos. Ela sabia que ele tinha potencial.

— Não serve — ela disse. — Não levaria mais de 15 minutos para seduzir Polly. Você tem um smoking preto, suponho.

— Evidência circunstancial.

—  Um mandado de busca — Fairchild se intrometeu, inspi­rado. — Vamos pedir um mandado de busca e revistar a casa toda.

—  Vai demorar demais — Kirby determinou. — Na verdade, papai, eu acho melhor esperar por Cards.

—  Foi o mordomo. — Fairchild caiu na gargalhada, exultante, mas logo se recompôs. — Não, não, meu terno jamais caberia em Cards.

—  Verdade. Ainda assim, por mais que eu odeie informar, ouvi por acaso Cards dizendo a Tulip que pretendia pegar seu terno.

—  Confiança — Fairchild murmurou para Adam. — Não dá para confiar em ninguém.

Sua intenção era limpar com esponja e passar a ferro, creio. — Ela afundou até o pescoço e examinou os dedos dos pés. — Ele vai desmoronar como um muro se você o acusar. Tenho certeza.

— Muito bem. — Fairchild esfregou e juntou as talentosas e finas mãos. — Eu mesmo lido com o caso e abafo a publici­dade.

— Um homem bravo — Kirby concluiu enquanto seu pai saía. Relaxada e achando graça, ela sorriu para Adam. — Bem, parece que minhas bolhas estão derretendo, então é melhor continuarmos essa discussão alguma outra hora.

Adam se aproximou, agarrou a arcaica corda da tampa da estupenda banheira.

— Está chegando a hora de nós começarmos e terminarmos muito mais do que uma conversa.

Cautelosa, Kirby observou o nível da água, sua última de­fesa, diminuir. Resolveu que, quando encurralada, era melhor ser indiferente. Tentou sorrir, mas não conseguiu disfarçar o nervosismo.

— Diga-me quando estiver pronto.

— Pretendo fazer isso — ele disse suavemente. Sem mais nenhuma palavra, levantou e a deixou sozinha.

Depois, quando desceu as escadas, Adam sorriu ao ouvir a voz dela.

— Sim, Tulip, eu bebi aquele troço horrível. Não vou desmaiar de desnutrição na sala dos Merrick. — O rugido grave que se seguiu em resposta demonstrou desagrado. — Asas de grilo, tenho usado saltos altos por metade de minha vida. E não são 15 centímetros, são sete e meio. E ainda vou ter de escutar sermão se chegar depois da meia-noite. Por que não vai fazer um bolo, hein?

Ele ouviu Tulip murmurar e torcer o nariz e passar por ele ao sair do quarto, pisando forte.

 

— Adam, graças a Deus. Vamos sair antes que descubram algo mais para me atazanar.

Seu vestido era de um branco puro, sem adornos, fino e flu­tuante. Cobria-lhe os braços, subia ao alto do pescoço, modesto como um hábito de freira, quente como uma noite tropical. Seus cabelos caíam sobre os ombros, negros e lisos.

Com um meneio, ela pegou uma capa negra e a serpeou em volta de corpo. Por um momento ela ficou parada, ajustando-a enquanto a luz dos lustres esvoaçava na ausência de cor. Ela parecia um retrato de Manet: forte, romântica e atemporal.

— Você é uma criatura fabulosa de se olhar, Kirby.

Ambos pararam e ficaram olhando. Ele já fizera elogios antes, com mais estilo, mais finesse, mas nunca com tamanha sinceridade. Ela já fora bajulada por príncipes de línguas es­trangeiras de modos perfeitos. Nada disso fizera seu coração palpitar antes.

— Obrigada — ela conseguiu dizer. — Você também. — Sem saber mais direito se seria sábio, ela ofereceu-lhe a mão. — Pronto?

— Sim. Seu pai?

— Ele já foi — ela disse enquanto caminhava para a porta. E quanto antes fossem, tanto melhor. Ela precisava de um pouco mais de tempo antes de ficar novamente sozinha com ele. — Nós não temos o hábito de ir a festas no mesmo carro, principalmente em se tratando de Harriet. Ele gosta de chegar cedo e costuma ficar até mais tarde, tentando levar Harriet para a cama. Pedi para trazerem meu carro. — Ela fechou a porta e o levou a um Porsche prateado. — Prefiro dirigir a navegar, se não se importa.

Mas ela não esperou pela resposta dele e sentou no banco do motorista.

 — Perfeitamente — Adam concordou.

 — A noite está maravilhosa. — Ela virou a chave na ignição. A força vibrou sob seus pés. — Lua cheia, muitas estrelas. — Soltou o freio tranqüilamente, passou a embreagem e pisou no acelerador. Adam foi jogado contra o banco quando desceram pela estrada, seguidos pelo ronco do motor.

 — Você vai adorar Harriet — Kirby prosseguiu, trocando de marcha enquanto Adam olhava para a vista enevoada. — Ela é como uma mãe para mim. — Ao chegarem à estrada principal, Kirby fez os pneus cantarem ao diminuir a velocidade e virar para a esquerda. — Você já conheceu Melly, claro. Espero que não me abandone por completo esta noite depois de revê-la.

Adam firmou os pés no chão do carro.

— Alguém repara nela quando você está por perto? — E será que chegariam vivos à casa de Merrick?

 — É claro. — Surpresa com a pergunta, ela se virou para olhar para ele.

 — Santo Deus, preste atenção para onde vai! — Não muito gentilmente, ele virou a cabeça para o lado.

 — Melly é a mulher mais perfeitamente linda que já conheci. — Kirby trocou de marcha novamente, diminuindo a velocidade para virar à direita, e depois acelerou. — Ela é uma estilista muito talentosa e muito, muito decente. Nem quis receber dinheiro do marido quando se divorciaram. Orgulho, creio eu, mas também ela não precisaria do dinheiro. Tem uma vista maravilhosa do Hudson do seu lado, Adam. — Kirby se debruçou sobre ele para apontar. O carro rabeou.

 — Obrigado, mas prefiro ver daqui de cima — Adam disse enquanto a empurrava de volta para seu banco. — Você sempre dirige desta maneira?

 — Sim. Lá está a estrada que leva à galeria — ela continuou. Ela fez um vago gesto com a mão e o carro passou zunindo por um cruzamento. Adam deu uma olhada no velocímetro.

 — Você está a 90.

 — Sempre dirijo mais devagar à noite.

 — Bom saber. — Murmurando, ele acendeu a luz.

 — Lá está a casa, lá em cima. — Passou correndo por uma curva em S. — Fica linda, toda acesa assim.

Era uma casa branca e majestosa, do tipo que se espera ver no alto de um barranco que dá para o rio. Incandescia de elegância com suas dezenas de janelas. Sem diminuir a velocidade, Kirby subiu pela passagem circular. Puxou os freios subitamente, ex­traindo um palavrão murmurado de Adam, e parou o Porsche na entrada da frente.

Adam pegou as chaves da ignição e guardou no bolso.

 — Eu dirijo na volta.

— Quanta consideração. — Oferecendo a mão a seu valete, Kirby saiu. — Agora não terei mais que me limitar a um só drinque. Champanhe — ela decidiu, subindo os degraus ao lado dele. — A noite parece boa para isto.

No momento que a porta se abriu, Kirby foi envolvida por uma azáfama de sedas deslumbrantes que deixavam rastro.

— Harriet. — Kirby deu um abraço apertado na mulher estatual de cabelos vermelhos como fogo. — É maravilhoso vê-la, mas acho que estou sendo mordida pela dentadura de seu crocodilo.

 — Desculpe, querida. — Harriet segurou seu colar e recuou para beijar Kirby. Era uma mulher esplêndida, bem encorpada, ao estilo imortalizado por Rubens. Seu rosto era grande e aveludado, dominado pelos profundos olhos verdes que brilhavam com as pálpebras prateadas. Harriet não era de sutilezas. — E este deve ser seu hóspede — ela continuou, avaliando Adam rapidamente com o olhar.

— Harriet Merrick, Adam Haines. — Kirby sorriu e apertou a face de Harriet. — E comporte-se, senão papai vai desafiá-lo para brigar.

 — Maravilhosa idéia. — Com um braço ainda em Kirby, Har­riet deu o outro a Adam. — Tenho certeza de que você tem uma fascinante história de vida para me contar, Adam.

 — Inventarei uma.

 — Perfeito. — Ela gostou do que viu nele. — Já temos um grupo, apesar de a maioria ser dos amigos enfadonhos de Melanie.

 — Harriet, você precisa ser mais tolerante.

 — Não preciso, não. — Jogou seus ultrajantes cabelos para trás. — Tenho sido dolorosamente educada. Agora que você está aqui, não preciso mais ser.

 — Kirby. — Melanie entrou no salão em um vestido azul-gelo justinho. — Que par vocês fazem. Ellen, tire o manto de Kirby, apesar de ser uma pena estragar o efeito. — Sorrindo, ela estendeu a mão a Adam enquanto a empregada tirava o manto dos ombros de Kirby — Que bom que veio. Temos alguns amigos em comum por aqui, ao que parece. Os Birmingham e Michael Towers de Nova York. Lembra-se de Michael, Kirby?

— O publicitário que range os dentes?

Harriet deu uma sonora gargalhada, enquanto Adam lutou para se controlar e não fazer o mesmo. Com um suspiro, Melanie os acompanhou em direção à festa.

—  Tente se comportar, sim?

Mas Adam não soube direito se ela estava falando com Kirby ou com a mãe.

Esse era o mundo ao qual ele estava acostumado: pessoas elegantes vestindo roupas elegantes e mantendo conversas racionais. Fora criado em meio a recursos comedidos, onde o champanhe efervescia baixinho e dignidade era algo tão essencial quanto formação universitária. Ele entendia, ele se encaixava.

Após 15 minutos, estava longe de Kirby e entediado.

 — Resolvi fazer uma jornada pelas matas australianas — Har­riet disse a Kirby. Passou o dedo em seu colar de dentes de cro­codilo. — Adoraria se você fosse comigo. Nós nos divertiríamos muito esquentando copos de lata na fogueira.

— Acampar? — Kirby perguntou, ruminando o assunto. Talvez estivesse precisando de uma mudança de ares após o pai se acalmar.

— Pense nisso — Harriet sugeriu. — Só pretendo partir daqui a seis semanas. Ah, Adam. — Ela lhe segurou o braço. — Agnes Birmingham tentou fazê-lo beber? Não, não responda. Está escrito em seu rosto, mas você é educado demais.

Ele se permitiu ser levado entre ela e Kirby onde ele queria estar.

— Digamos apenas que eu estava procurando por alguma conversa mais estimulante. Já encontrei.

 — Encantador. — Ela concluiu que gostava dele, mas guarda­ria para si por mais tempo sua avaliação sobre ele servir ou não para Kirby. — Admiro seu trabalho, Adam. Gostaria de fazer a primeira oferta de sua próxima tela.

Ele pegou taças de um garçom que passava.

— Estou fazendo um retrato de Kirby.

— Ela está posando para você? — Harriet quase engasgou com o champanhe. — Você a acorrentou?

— Ainda não. — Ele lançou um olhar lânguido para Kirby. — Ainda é uma possibilidade.

— Você precisa me deixar exibir essa tela quando terminar. — Ela podia ser uma mulher que operava no estado emocional em muitos sentidos, mas a base de tudo era a arte, e os negócios implícitos. — Prometo que faço uma cena horrorosa se você recusar.

 — Ninguém faz cenas melhores. — Kirby bebeu à saúde dela.

 — Você precisa ver o retrato de Kirby que Philip pintou para mim. Ela não ficava sentada, mas é brilhante. — Ela brincou com a borda da taça. — Ele pintou quando ela voltou de Paris; acho que três anos atrás.

 — Gostaria de ver. Estava pensando em visitar a galeria.

— Ah, está aqui, na biblioteca.

 — Então por que vocês dois não vão lá? — Kirby sugeriu. — Vocês estão me excluindo da conversa, deviam me abandonar fisicamente também.

 — Não seja temperamental — Harriet retrucou. — Você pode vir, também. E eu... bem, bem — ela murmurou em uma voz subitamente desprovida de calor. — Algumas pessoas não têm senso de decoro.

Kirby virou a cabeça só um pouquinho e viu Stuart entrar no recinto. Ela apertou os dedos ao redor da taça, mas então deu de ombros. Antes que o movimento se completasse, Melanie estava a seu lado.

 — Desculpe, Kirby. Esperava que ele não viesse, depois de tudo.

Em um gesto lento, de certa maneira insolente, Kirby jogou os cabelos para trás dos ombros.

 — Se isso importasse, eu não teria vindo.

 — Não quero que você se constranja... — Melanie começou a dizer, mas foi interrompida por uma risada rápida e bastante genuína.

 — Quando foi que você ouviu falar que eu fiquei constran­gida?

— Bem, vou cumprimentá-lo, senão as coisas só ficarão piores.

— Ainda assim, Melanie hesitou, evidentemente dividida entre lealdade e bons modos.

— É claro que vou despedi-lo. — Harriet fez graça quando a filha foi cumprir sua função. — Mas quero ser sutil.

— Despeça-o se quiser, Harriet, mas não por minha causa. — Kirby tomou seu champanhe.

— Parece que devemos nos preparar para o espetáculo, Adam. — Harriet bateu com a rosácea ponta do dedo na taça. — Para aflição de Melanie, Stuart está se aproximando.

Sem dizer uma palavra, Kirby pegou o cigarro de Adam.

— Harriet, você está maravilhosa. — A voz suave e cultivada não lembrava em nada o tom que Adam ouviu no ateliê de Fairchild. — A África lhe fez bem.

Harriet deu um sorriso protocolar.

— Não esperávamos vê-lo.

 — Eu estava um pouco ocupado. — Encantador, elegante, ele se virou para Kirby. — Você está fascinante.

 — Igualmente — ela disse, inabalada. — Parece que seu nariz voltou ao lugar. — Sem perder o ritmo, ela se voltou para Adam.

— Creio que ainda não se conhecem. Adam, este é Stuart Hiller. Stuart, tenho certeza de que você conhece o trabalho de Adam Haines.

 — Sim, muito. — O aperto de mão foi educado e indiferen­te. — Vai ficar em nossa área de Nova York por muito tempo?

 — Até terminar o retrato de Kirby — Adam disse, tendo a dupla satisfação de ver Kirby sorrir e Stuart fechar a cara.

— Combinei com Harriet de expor na galeria.

Com essa simples estratégia, Adam ganhou Harriet. — Tenho certeza de que será uma grande aquisição para nossa coleção.

Até um homem com pouca sensibilidade teria sentido as ondas de indignação. Por enquanto, Stuart as ignorou.

— Não pude lhe falar enquanto estava na África, Harriet, e as coisas têm andando agitadas desde seu retorno. O retrato de mulher de Tiziano foi vendido para Ernest Myerling.

Ele levantou a taça e Adam voltou sua atenção para Kirby. Sua cor desapareceu lentamente, tom a tom, até seu rosto ficar branco como a seda que vestia.

 — Não me lembro de falar sobre vender o Tiziano — Harriet replicou. Sua voz estava tão sem cor quanto a pele de Kirby.

 — Como disse, não consegui lhe falar. Como o Tiziano não está listado em sua coleção pessoal, se encontra entre as telas à venda. Acho que ficará contente com o preço. — Ele acendeu um cigarro com um fino isqueiro de prata. — Myerling insistiu que fosse testado. Ele está mais interessado em investimentos do que em arte, infelizmente. Pensei que você gostaria de estar lá amanhã para os procedimentos.

"Ah, Deus, ah, meu Deus!", um pânico real e muito forte girou em turbilhão pela mente de Kirby. Em silêncio, Adam observou o medo crescer em seus olhos.

— Testada! — Evidentemente ultrajada, Harriet enfureceu-se.

— Dentre todas as petulâncias, duvidarem da autenticidade das telas de minha galeria! O Tiziano não devia ter sido vendido sem minha permissão, e muito menos para um ignorante.

— Pedir para testar não é nenhuma novidade, Harriet. — Ao ver que um grupo de pessoas acenava para ele, Stuart abrandou: — Myerling é um homem de negócios, não é perito em arte. Ele deseja fatos. — Deu uma longa tragada e soprou fumaça. — Em todo caso, a papelada já foi feita e não há mais nada a fazer. O negócio é fait accompli, a depender do resultado do teste.

— Discutiremos isso pela manhã. — Harriet abaixou a voz ao terminar seu drinque. — Aqui não é hora nem local.

 — Eu... eu vou me servir de outro drinque — Kirby disse de repente. Sem mais nenhuma palavra, ela foi se afastando do grupo. A náusea, percebeu, era resultado direto do pânico, e o pânico estava longe de terminar.

— Papai. — Ela agarrou o braço dele, e o afastou de uma conversa sobre a versatilidade de Dali. — Tenho que falar com o senhor. Agora.

Ao perceber o tom de sua voz, ele deixou que ela o levasse para outro local.


 

 

Kirby fechou a porta da biblioteca de Harriet e encostou-se nela. Não perdeu tempo.

— O Tiziano será testado amanhã de manhã. Stuart o vendeu.

— Vendeu! — Fairchild arregalou os olhos, com o rosto rosado. — Impossível. Harriet não venderia o Tiziano.

— Ela não vendeu. Ela estava brincando com os leões, lembra? — Ela enfiou as mãos nos cabelos e tentou falar calmamente. — Stuart fechou o acordo, ele acabou de dizer-lhe.

— Eu lhe disse que ele era um idiota, não disse? Não disse?

— Fairchild ficou repetindo e fazendo uma coreografia. — Eu disse a Harriet também. Alguém me deu ouvidos? Não, nem Harriet. — Ele deu uma volta, pegou um lápis da escrivaninha e partiu ao meio. — Mesmo assim ela contrata o idiota e vai perambular pela selva.

 — Não adianta voltar a isso agora! — Kirby retrucou. — Temos que lidar com as conseqüências.

 — Não haveria nenhuma conseqüência se tivessem me dado ouvidos. A teimosa se deixou levar pela carinha bonita. Foi isso. — Parou, respirou fundo e entrelaçou as mãos. — Bem — disse com voz amena — , isso é um problema.

 — Papai, não se trata de um erro no seu talão de cheques.

 — Mas pode ser resolvido, provavelmente com menos esforço. Alguma chance de cancelar o negócio?

 — Stuart disse que a papelada foi finalizada. E é Myerling — acrescentou.

— Aquele pirata velho. — Fez uma careta e deu um leve chute na escrivaninha de Harriet. — Não há como cancelar— Fairchild concluiu.

 — Próximo passo. Nós fazemos a troca. — Pela maneira como Kirby balançou a  cabeça, percebeu que ela já havia pensado no assunto. Houve um rápido lampejo de orgulho e depois a raiva se instalou. O rosto redondo e angelical ficou tenso.  — Deus, Stuart vai pagar por me fazer desistir dessa tela.

 — Muito fácil falar, papai. — Kirby caminhou pelo recinto até ficar cara a cara com ele. — Mas quem foi que colocou Adam no quarto com a tela? Agora teremos de tirá-la de seu quarto, pegar a cópia que está na galeria sem ele perceber que houve uma troca. Tenho certeza de que você percebeu que Adam não é nenhum bobo.

Fairchild alteou as sobrancelhas. Recurvou os lábios. Esfregou as palmas das mãos.

— Um plano.

Ciente de que já era tarde demais para se lamentar, Kirby deixou o corpo cair em uma poltrona.

— Vamos ligar para Cards e dizer para ele levar a tela para o meu quarto antes de voltarmos.

Ele aprovou com um breve gesto de cabeça.

— Você tem uma cabeça maravilhosamente criminosa, Kirby.

Ela teve de sorrir. Um misto de aventura já nascia em meio ao pânico.

— Hereditariedade — ela disse ao pai. — Agora, minha idéia é esta... — Abaixando a voz, ela começou a revelar.

— Vai dar certo — Fairchild concluiu poucos momentos depois.

— Isso ainda veremos. — Soava suficientemente plausível, mas ela não subestimava Adam Haines. — Então é só isso que podemos fazer.

— E fazer direito — acrescentou Fairchild.

A concordância dela foi um leve dar de ombros.

 — Adam estará cansado demais para notar que o Tiziano su­miu, depois que fizer a troca na galeria. Colocarei o outro de novo no quarto dele. As pílulas para dormir são nossa única chance. — Ela baixou os olhos para as mãos, insatisfeita, mas ciente de que era a única saída. — Não gosto de fazer isso com Adam.

 — Ele só terá uma boa noite de sono. — Fairchild sentou-se no braço da poltrona. — Todos nós precisamos de uma boa noite de sono de vez em quando. Agora é melhor voltarmos ou Melanie mobilizará equipes de busca atrás de nós.

 — Vá primeiro. — Kirby soltou um profundo suspiro. — Vou telefonar para Cards e pedir que comece.

Kirby esperou até Fairchild fechar a porta para então pegar o telefone na escravinha de Harriet. Não se importava da tarefa que tinha pela frente, na verdade estava ansiosa por aquilo. A não ser quanto a Adam. Não podia fazer nada, procurou lembrar, e rapidamente deu as instruções a Cards.

Agora, ela pensou ao pôr o fone de volta no gancho, é tarde demais para recuar. Os dados, por assim dizer, foram lançados. A verdade era que os planos afobados para aquela noite se mostra­riam bem mais interessantes do que uma festa. Enquanto hesi­tava mais um pouco, Stuart abriu a porta e entrou, fechando-a delicadamente.

— Kirby. — Ele se aproximou com um meio sorriso no rosto. Sua paciência se esgotou agora que estavam a sós. — Precisamos conversar.

Agora não, ela pensou em um momento de pânico. Será que já não estava tendo de lidar com coisas demais? Então pensou na maneira como ele a humilhara, como mentira. Quem sabe não fosse melhor terminar com aquilo logo de uma vez.

 — Acho que já dissemos tudo que tínhamos a dizer um ao outro da última vez que nos vimos.

 — Não chegamos nem perto disso.

 — Fico entediada com redundâncias — ela disse mansamen­te. — Mas, se você insiste, vou dizer. É uma pena que você não tenha dinheiro para fazer jus a seu visual. Seu erro, Stuart, foi não me fazer querê-lo... não da maneira que você me queria. — Diminuiu deliberadamente a voz, falando baixinho e sedu­toramente. Não havia nem começado a lhe dar o troco. — Você podia me enganar em relação a amor, mas não quanto ao desejo. Se você se concentrasse nisso em vez de se concentrar na cobiça, teria tido uma chance. Você é — continuou suavemente — um mentiroso, um traidor, e se poderia ter sido divertido por um breve período, eu agradeço a Deus por você nunca ter posto as mãos em mim, nem no meu dinheiro.

Antes que ela conseguisse passar por ele, Stuart agarrou o braço dela.

— É bom se lembrar dos hábitos de seu pai antes de jogar lama nos outros.

Ela baixou os olhos para sua mão, e então levantou o olhar outra vez. Um olhar feito para irritar.

— Você, honestamente, acha que pode se comparar com meu pai? — Sua fúria saiu em forma de gargalhada, e a gargalhada foi um insulto em si mesma. — Você jamais terá seu estilo, Stuart. Você é de segunda classe, e sempre será.

Ele bateu com as costas da mão no rosto dela com força e a fez cambalear. Ela não emitiu nenhum som. Quando se levantou para encará-lo, seus olhos eram como duas fendas, muito escuras e muito perigosas. A dor não significava nada, só que ele havia lhe causado essa dor e ela não tinha como retribuir na mesma moeda. Ainda.

— Você provou o que eu disse — Kirby falou, impassível, enquanto esfregava os dedos no rosto. — Segunda classe.

Ele quis bater nela outra vez, mas cerrou os punhos. Por en­quanto, ele precisava dela.

— Chega de jogos, Kirby. Eu quero o Rembrandt.

— Eu o cortaria com uma faca antes de meu pai entregá-lo a você. Você não tem classe, Stuart. — Ela não tentou lutar quando ele lhe agarrou os braços.

— Dois dias, Kirby. Diga ao velho que ele tem dois dias, senão você é quem vai pagar.

— Ameaças e abuso físico são suas únicas armas. — Abrupta­mente, com mais esforço do que ela lhe permitiu testemunhar, Kirby transformou seu ódio em gelo. — Tenho minhas armas, Stuart, infinitamente mais eficazes. E se eu resolvi apelar para golpes baixos, você não teve a finesse de lidar comigo. — Ela manteve os olhos nos dele, o corpo rígido. Ele podia xingá-la, mas sabia reconhecer uma verdade ao ouvi-la. — Você é uma cobra — ela acrescentou baixinho. — E você não vai se safar por muito tempo. O fato de ser fisicamente mais forte do que eu é apenas uma vantagem temporária.

— Bem temporária — Adam disse ao entrar e fechar a porta. A voz dele combinava com a de Kirby em frieza. — Tire as mãos dela.

Kirby sentiu desaparecer a dor das mãos que a apertavam e viu que Stuart lutava para manter a serenidade. Ajeitou a gravata cuidadosamente.

 — Lembre-se do que eu disse, Kirby. Pode ser importante para você.

 — E você se lembre do que Byron descreveu como vingança de mulher — ela respondeu, esfregando o braço para fazer vol­tar a circulação. — Como o salto de um tigre: mortal, ligeiro e esmagador. — Soltou aos braços ao longo do corpo. — Pode ser importante para você. — Virou-se, caminhou até a janela e ficou olhando para o nada.

Adam manteve a mão na maçaneta enquanto Stuart cami­nhava até a porta.

— Toque nela mais uma vez e terá de se ver comigo. — Lentamente, Adam virou a maçaneta e abriu a porta. — Eis outra coisa para você se lembrar. — Os sons da festa entraram no recinto e sumiram novamente quando ele fechou a porta após Stuart sair.

— Bem — ele começou, lutando com sua própria fúria. — Acho que devo dar graças a Deus por não ter uma ex-noiva por aí.

 — Havia escutado o suficiente para saber que tinha tudo a ver com o Rembrandt, mas deixou isso de lado e foi até ela. — Ele não sabe perder, e você é um assombro. A maioria das mulheres teria chorado ou se lamuriado. Você ficou firme, o insultando.

 — Não acredito em lamúrias — ela disse, o mais levemente que pôde. — E Stuart jamais me faria derramar uma lágrima sequer.

 — Mas você está tremendo — ele murmurou ao lhe tocar os ombros.

 — Raiva. — Ela respirou fundo e soltou o ar lentamente. Não estava disposta a mostrar fragilidade, não para todo mundo.

— Agradeço pelo papel de cavaleiro salvador. —Ele sorriu e beijou-lhe o alto da cabeça.

 — Sempre às ordens. Por que nós não... — Perdeu as palavras ao virar-lhe o rosto na sua direção. A marca da mão de Stuart se transformara em uma marca vermelha opaca, contudo incon­fundível. Quando Adam tocou-lhe o rosto com os dedos, seus olhos estavam gelados. Mais gelados e mais perigosos do que ela jamais os vira. Sem dizer uma palavra, ele deu meia-volta e se dirigiu à porta.

 — Não! — Desespero não era um sentimento típico, mas agora ela ficou desesperada ao agarrar-lhe o braço. — Não, Adam, não faça isso. Não se envolva. — Ele a afastou, mas ela correu até a por­ta e a bloqueou. As lágrimas que conseguira controlar com Stuart agora lhe afloravam nos olhos. — Por favor, minha consciência já está pesada demais sem eu o envolver nisso. Eu vivo minha vida como quero, e o que consigo com isso é problema meu.

Ele quis afastá-la e se embrenhar em meio aos convidados para pôr as mãos em Stuart. Queria, mais do que já quisera qualquer coisa, ter o prazer de sentir o cheiro de sangue do outro, Mas ela estava parada na frente dele, pequena e delicada, com lágrimas nos olhos. Ela não era do tipo de mulher que chegava às lágrimas facilmente.

— Tudo bem. — Ele lhe acariciou o rosto e fez uma promessa.

Antes de tudo acabar, ele iria, sim, sentir o cheiro do sangue de Stuart Hiller. — Você só está adiando o inevitável.

Aliviada, ela fechou os olhos por um instante. Quando os abriu novamente, ainda estavam úmidos, mas não mais deses­perados.

 — Não acredito no inevitável. — Ela pegou sua mão e a le­vou ao peito, onde a manteve por um momento até sentir que a tensão de ambos cedera. — Você deve ter vindo ver meu retrato. Está lá, pendurado sobre a escrivaninha. — Ela fez um gesto na direção do quadro, mas ele não tirou os olhos dela.

 — Vou estudar o quadro minuciosamente, assim que acabar de dar atenção ao original. — Ele chegou perto e simplesmente a abraçou. Apesar de nenhum dos dois estar ciente, esse foi o mais perfeito gesto de apoio. Ela deitou a cabeça no ombro dele e pensou em paz, e nos planos nos quais já dera início.

— Desculpe, Adam.

Ele ouviu o lamento em sua voz e esfregou os lábios em seus cabelos.

— Pelo quê?

— Não posso lhe dizer. — Passou os braços com força ao redor de sua cintura, abraçando-o como jamais abraçara ninguém. — Mas me desculpe.

 

A viagem de volta da mansão dos Merrick foi mais sóbria que a chegada. Kirby estava sentada no banco do passageiro. Em outras circunstâncias, Adam teria atribuído seu silêncio e desconforto à cena com Hiller. Mas ele se lembrou de sua reação à menção da venda do Tiziano.

Ele ficou imaginando o que estava se passando naquele cérebro caleidoscópico dela. E como descobriria? Adam decidiu pela abordagem direta, e pensou rapidamente que era uma pena desperdiçar aquele luar.

 — O Tiziano que foi vendido... — Ele começou, fingindo não ver o sobressalto de Kirby. — Faz muito tempo que Harriet o tinha?

 — O Tiziano. — Ela entrelaçou as mãos sobre o colo. — Ah, anos e anos. Sua srta. Birmingham tinha as formas de uma abobrinha, não acha?

 — Ela não é minha srta. Birmingham. — Um novo jogo, ele concluiu, e relaxou contra o encosto do bando. — É uma pena que tenha sido vendido antes que eu pudesse ver. Sempre fui grande admirador de Tiziano. A tela em meu quarto é linda.

Kirby deixou escapar um som que deve ter sido algo como um risinho nervoso.

— A da galeria é tão linda quanto — ela disse. — Ah, aqui estamos, em casa novamente. Pode deixar o carro na frente — ela disse, em parte aliviada, em parte irritada pelo fato de os próximos passos estarem sendo postos em prática. — Cards cuidará dele. Espero que não se importe de voltar cedo para casa. Lá está papai — acrescentou ao sair do carro. — Não deve ter conseguido nada com Harriet. Vamos tomar uma bebida antes de dormir?

Ela começou a subir os degraus sem esperar o consentimento dele. Ciente de que ele estava prestes a se tornar parte de algum plano concebido às pressas, ele foi também. Está tudo muito conveniente, ele achou graça enquanto Fairchild esperou à por­ta com um sorriso afável.

— Gente demais — Fairchild anunciou. — Prefiro festas menores. Vamos tomar um drinque no salão e fofocar.

Não pareça tão ansioso, droga, pensou Kirby, e quase fez cara feia para ele. — Vou dizer a Cards para cuidar do Rolls e do meu carro.

— Ainda assim, ela hesitou quando os dois homens caminharam para o salão. Adam captou a indecisão nos olhos dela antes de Fairchild gargalhar e lhe dar um tapa nas costas.

— E não se apresse em voltar — disse a Kirby. — Já tive minha cota de mulheres por enquanto.

— Que amável. — A ironia e a força lhe voltaram à voz. — Vou entrar e comer a torta de limão de Tulip. Inteira — acrescentou, e passou por eles arrastando os pés.

Fairchild pensou com tristeza em seu lanche noturno.

— Pirralha — ele murmurou. — Bem, vamos beber uísque, então.

Adam enfiou as mãos casualmente nos bolsos e observou cada movimento de Fairchild.

— Tive oportunidade de ver o retrato de Kirby na biblioteca de Harriet. É maravilhoso.

 — Um de meus melhores, se me permite dizer. — Fairchild levantou a garrafa de Chivas Regai. — Harriet gosta de minha pirralha, sabe. — Com um movimento hábil, Fairchild tirou duas pílulas do bolso e as jogou no uísque.

Em circunstâncias normais, Adam não teria percebido. Mãos engenhosas, ele pensou, tão intrigado quanto entretido. Muito rá­pido, muito ágil. Pelo jeito, eles queriam tirá-lo do caminho. Seria um desafio para ele confrontar os dois. Com um sorriso, aceitou a bebida e, então, voltou à paisagem de Corot atrás de si.

— O tratamento de cor de Corot... — Adam começou, dando um pequeno gole. — Ela traz uma perspectiva profunda a todo o seu trabalho.

Nenhum estratagema poderia ter funcionado melhor. Fairchild ficou pronto para deitar e rolar.

— Sou suspeito para falar de Corot. Ele tinha excelente mão para os detalhes sem ser meticuloso e ofuscar a pintura como um todo. Agora, as folhas... — Ele começou, e pôs sua bebida sobre a mesa para apontá-las. Enquanto ele palestrava, Adam pôs sua bebida na mesa, pegou a de Fairchild e desfrutou do uísque.

Lá em cima, Kirby encontrou o Tiziano já embalado em papel grosso.

— Deus o abençoe, Cards — ela murmurou. Deu uma olhada em seu relógio e procurou esperar dez minutos antes de pegar a tela e sair do quarto. Foi descendo calmamente pela escada dos fundos, onde seu carro a aguardava.

No salão, Adam observava Fairchild sentado no canto do sofá, roncando. Concluindo que o mínimo que podia fazer seria deixar seu anfitrião mais confortável, começou a pegar as pernas de Fair­child para colocá-las no sofá. O som de um carro o deteve. Adam chegou à janela a tempo de ver o Porsche de Kirby saindo.

— Você terá companhia — ele prometeu a ela. Dentro de instantes ele estava ao volante do Rolls.

A velocidade só aumentou o senso de aventura de Kirby. Ela guiou por instinto enquanto se concentrava em sua tarefa da­quela noite. Isso ajudava a diminuir a culpa por causa de Adam, um pouco.

Quando estava a meio quilômetro da galeria, parou e esta­cionou na rua. Grata pelo Tiziano ser relativamente pequeno, apesar de a moldura pesar, ela o pegou e começou a caminhar. Seus saltos ecoavam no asfalto. Nuvens corriam à frente da lua, ocultando o luar para em seguida liberá-lo. Envolta em sua capa, Kirby passou pelas árvores que cercavam a galeria. A luz era fraca, toda sombras e segredos. Do alto veio o lamento grave de uma coruja. Ela jogou os cabelos para trás e riu.

— Perfeito — definiu. — Só precisamos de um trovão e uns relâmpagos. Espreitando por entre as árvores em missão secreta. — Ela achou graça. — Cercada pelos sons da noite. — Ela trocou o peso de braço e continuou. — O que não se faz por quem se ama.

Viu a grandiosa galeria de tijolos vermelhos por entre as ár­vores. O luar a distorcia. Estou quase chegando, ela pensou dando uma rápida olhada no relógio. Em uma hora estaria de volta, em casa — e, quem sabe, não acabaria comendo a torta de limão, afinal.

A mão de alguém pesou em seu ombro. A capa esvoaçou quando ela se virou. Porcaria de droga do inferno, ela pensou, ao olhar para Adam.

— Saiu para dar uma volta? — ele perguntou.

— Ora, olá, Adam. — Como não podia desaparecer, ela teve de encará-lo. Ela tentou dar um sorriso simpático. — O que está fazendo aqui?

— Seguindo você.

— Lisonjeiro. Mas papai não o estava entretendo?

— Ele apagou.

Ela olhou para ele por um instante e então deu um suspiro. Seguiu-se um sorriso sardônico.

— Creio que ele mereceu. Espero que você o tenha deixado confortável.

 — Chega. Agora, o que há nesse pacote? Apesar de saber que era inútil, ela agitou os  ílios.

— Pacote?

Ele tamborilou o dedo no embrulho.

— Ah, este pacote. Só uma pequena missão a cumprir. Está ficando tarde, não está na hora de você voltar?

 — Sem chance.

 — Não. — Ela mexeu os ombros. — Achei que não.

 — O que tem neste pacote, Kirby, e o que pretende fazer com isto?

— Tudo bem. — Ela passou a tela para os braços dele por­que os dela estavam ficando cansados. Quando se é flagrado, é preciso extrair o melhor da situação. — Creio que você merece uma explicação, e que não irá embora enquanto não conseguir uma. Terá de ser uma conversa condensada, Adam, pois estou em cima da hora. — Ela pôs a mão no pacote que ele estava segurando. — Este pacote é o retrato de mulher de Tiziano, e vou colocá-lo na galeria.

Ele arqueou uma sobrancelha. Não precisava que Kirby lhe dissesse que estava segurando uma pintura.

— Eu tinha a impressão de que o retrato de mulher de Tiziano estava na galeria.

— Não... — Ela foi franca. Se fosse capaz de pensar em al­guma mentira, meia-verdade, conto da carochinha, teria usado. Só conseguiu pensar em dizer a verdade. — Este é um Tiziano — ela disse, apontando o pacote com a cabeça. — A tela que está na galeria é um Fairchild.

Ele deixou o silêncio pairar por um momento enquanto o luar crivava o rosto de Kirby. Parecia um anjo... Ou uma feiticeira.

 — Seu pai falsificou um Tiziano e o deixou na galeria no lugar do original?

 — Claro que não! — A indignação não foi simulada. Kirby procurou conter o gênio e ser paciente. — Não vou lhe dizer mais nada se você insultar meu pai.

 — Não sei o que me deu.

— Tudo bem, então. — Ela se encostou numa árvore. — Quem sabe eu deva começar pelo começo.

 — Boa idéia.

 — Anos atrás, papai e Harriet estavam de férias na Europa. Encontraram o Tiziano, ambos jurando que tinham visto pri­meiro. Nenhum dos dois cedeu, e parecia um crime abrir mão da tela. Eles fizeram um acordo. — Fez um gesto para o pacote.

— Cada um pagaria metade, e papai pintaria uma cópia. Eles ficariam intercalando a posse do original a cada seis meses, alternando com a cópia, se é que me entende. O estipulado era que nenhum dos dois tivesse a posse. Harriet manteve sua tela na galeria, sem incluí-la na lista de sua coleção particular. Papai manteve a dele em um quarto de hóspedes.

Ele refletiu por um instante.

 — Isso é ridículo demais para ser invenção sua.

 — Claro que não é invenção minha. — Fez um biquinho que funcionou, como era de se esperar. — Não acredita em mim?

 — Não. Você vai ter de explicar muito mais coisas quando voltarmos.

Talvez sim, Kirby pensou, talvez não.

 — Agora, diga: como exatamente pretende entrar na galeria.

 — Com as chaves de Harriet.

— Ela lhe deu as chaves? —Kirby bufou de frustração.

— Preste atenção, Adam. Harriet está furiosa por Stuart ter vendido a tela, mas até ela estudar o contrato não há forma de saber até que ponto é possível ou não cancelá-lo. A coisa não parece boa, e não podemos correr o risco de deixar que a tela seja testada; ou seja, a tela de meu pai. Se o procedimento for suficientemente sofisticado pode provar que a tela não é do século XVI.

 — Harriet sabe que a tela na galeria é falsa?

 — Uma simulação, Adam.

— E há outras... simulações na Galeria Merrick? Ela lhe lançou um olhar longo e  gelado.

— Estou tentando não me irritar. Todas as pinturas de Harriet são autênticas, bem como sua metade do Tiziano.

— Por que ela própria não fez a substituição?

 — Porque... — Kirby começou e conferiu as horas. O tempo estava passando — não só teria sido difícil para ela desaparecer da festa tão cedo quanto nós fizemos, mas porque seria extrema­mente complicado. O vigia da noite poderia dizer a Stuart que ela apareceu na galeria no meio da noite carregando um pacote. Ele juntaria uma coisa com a outra. Sim, até ele conseguiria juntar uma coisa à outra.

 — Então, o que dirá o vigia noturno ao ver Kirby Fairchild aparecendo na galeria no meio da noite?

 — Ele não nos verá. — O sorriso dela foi veloz e muito, muito presunçoso.

— Nos verá?

— Já que você está aqui. — Ela sorriu para ele, e com vontade.  —Já lhe disse tudo, e como você é um cavalheiro, vai me ajudar a fazer a troca. Teremos de trabalhar rápido. Se formos pegos, teremos de agüentar os resultados. Você não terá de fazer nada, eu resolvo tudo.

— Você resolve tudo. — Ele balançou a cabeça para as nuvens. —Agora podemos todos dormir tranqüilos. Uma condição. —Ele a cortou antes mesmo que começasse a falar. — Quando acabarmos, se não estivermos na cadeia ou hospitalizados, você vai me contar tudo. Se estivermos presos, eu a mato da maneira mais lenta possível.

— Assim são duas condições — ela murmurou. — Mas tudo bem.

Entreolharam-se por um instante; ela pensando o quanto te­ria de revelar, ele pensando o quanto conseguiria saber. Ambos acharam desagradável o logro.

 — Vamos terminar com isso. — Adam fez menção para que ela tomasse a frente. Kirby caminhou pela grama e foi direto para a porta principal. Tirou as chaves do bolso fundo de sua capa.

 — Estas duas desligam o alarme — ela explicou enquanto girava as chaves em uma série de cadeados. — E estas abrem a porta. — Ela sorriu ao ouvir o frágil clique da fechadura. Ela se virou e observou Adam, atrás dela com seu smoking elegante. — Fico muito feliz por estarmos vestidos a caráter.

 — Parece adequado usar trajes formais quando se está inva­dindo uma instituição respeitada.

 — É verdade. — Kirby enfiou as chaves no bolso de trás. — E nós fazemos uma dupla bastante impressionante. O Tiziano fica na parede para o oeste do segundo andar. O vigia tem um quartinho nos fundos, aqui no térreo. Presumo que ele beba café preto com rum e fique lendo revistas pornográficas. É o que eu faria se fosse ele. Supõe-se que ele faça uma ronda por hora, mas não dá para ter certeza se ele é diligente.

— E que horas ele faz a ronda, se é que faz?

— A cada hora exata; o que nos dá vinte minutos. — Ela olhou para o relógio e deu de ombros. — Dá para ser feito, mas se você não tivesse me pressionado para dar detalhes nós teríamos mais tempo. Não faça cara feia — acrescentou. Ela levou o dedo aos lábios e se esgueirou pela porta.

Das profundezas de seu bolso saiu uma lanterna. Seguiram o feixe de luz pelo carpete. Juntos subiram a escada.

Obviamente, ela conhecia bem a galeria. Sem hesitação, ela se movimentou pelo escuro, pegando a direção do segundo andar e seguindo pelo corredor, sem quebrar o ritmo. Sua capa girou quando ela se virou para entrar em uma sala. Em silêncio, ela jogou a luz sobre as pinturas até parar em frente à cópia do Tiziano que estava no quarto de Adam.

— Aí está — Kirby sussurrou enquanto a luz brilhava nos cabelos com cor de poente que Tiziano imortalizara. A luz era fraca demais para Adam ter certeza da qualidade, mas jurou a si mesmo que examinaria a tela minutos depois. — Não dá para diferenciar um do outro... nem mesmo um perito. — Ela sabia o que ele estava pensando. — Harriet é uma autoridade respeita­da e não conseguiria diferenciar. Não tenho certeza se os testes diriam que não é autêntico. Papai tem um jeito dele de tratar as telas. — Ela se aproximou para que a lanterna iluminasse a tela inteira. — Papai pôs um círculo vermelho na parte de trás da moldura da cópia para que conseguissem diferenciar. Vou pegar o pacote agora — ela disse rapidamente. — Pode descer a tela. — Ela se ajoelhou e começou a desembalar a tela que haviam trazido. — Fico feliz por você aparecer — ela concluiu. — Sua altura será uma vantagem na hora de descer uma tela e pendurar a outra.

Adam parou com a falsificação nas mãos. Concluiu que es­trangulá-la agora faria muito barulho. Mas depois...

— Vamos lá, então.

Trocaram as telas em silêncio. Adam pendurou a que trouxe­ram na parede enquanto Kirby embalava a outra. Após dar o laço na corda, ela jogou a luz sobre a parede mais uma vez.

 — Está um pouco torto — ela concluiu. — Um pouquinho para a esquerda.

 — Escute, eu... — Adam parou ao ouvir o som de um apito frágil e desafinado.

— Ele veio mais cedo! — Kirby sussurrou e pegou a tela.

— Quem poderia esperar eficiência dos funcionários hoje em dia?

Com um movimento rápido, Adam fez com que ela, a tela e ele próprio se espremessem contra a parede ao lado do arco da entrada. Vendo -se espremida e parcialmente sufocada, Kirby conteve uma vontade desesperada de cair na risada. Certa de que isto irritaria Adam, ela prendeu a respiração e engoliu em seco.

O apito soou mais alto.

Em sua mente, Kirby imaginava o vigia passeando pelo corre­dor, parando para iluminar aqui e ali ao caminhar. Ela esperou, em nome da paz de espírito do vigia e do temperamento de Adam, que fosse uma ronda superficial.

Adam a sentiu tremer e a abraçou mais forte. De alguma ma­neira ele deu um jeito de protegê-la. Esqueceu que ela o havia envolvido naquela situação. Agora só pensava em tirá-la de lá.

Um feixe de luz passou pela porta, com o apito soando mais próximo. Kirby tremia como vara verde. A luz entrou no recin­to, percorrendo as paredes em movimentos curvos. Adam ficou tenso, ciente que estava a centímetros de ser descoberto. A luz parou, baixou por um instante e depois voltou pelo caminho de onde veio. E, então, tudo ficou escuro.

Eles não se mexeram, apesar de Kirby querer muito, pois estava com a moldura afundando em suas costas. Esperaram, parados e em silêncio, até o apito desaparecer.

Como o leve tremor de Kirby se transformara em um cala­frio seguido de outro, Adam a afastou de si para lhe murmurar palavras de conforto.

 — Está tudo bem. Ele já foi.

 — Você foi maravilhoso. — Ela cobriu a boca para segurar o riso. — Já pensou em ter como hobby invasão de imóveis?

Ele passou a tela para debaixo de um dos braços e então se­gurou o dela com firmeza. Na hora certa ele daria o troco por esta.

 — Vamos embora.

 — Certo, até porque, pelo jeito, não é um bom momento para lhe mostrar a galeria. É uma pena — concluiu. — Há pinturas excelentes na próxima sala, e uma natureza-morta maravilhosa pintada por papai.

 — Com o nome dele mesmo?

— Francamente, Adam. — Pararam na entrada para ver se o caminho estava livre. — Que deselegância.

Não se falaram até estarem escondidos no meio das árvores. Então, Adam se virou para ela.

— Vou levar a tela e segui-la. Se você passar dos 50 quilômetros, mato você.

Ela parou quando chegaram aos carros e o tirou do eixo com seus olhos subitamente sérios.

— Agradeço por tudo, Adam. Espero que não pense muito mal de nós. Sua opinião conta.

Ele passou um dedo pelo rosto dela.

 — Anda preciso resolver o que penso de você. Os lábios dela fizeram uma curva nos cantos.

 — Tudo bem, então. Não se apresse.

— Entre e dirija — ele ordenou antes que se esquecesse do que precisava ser resolvido. Ela tinha uma maneira própria de fazer um homem se esquecer de muitas coisas. Coisas demais.

A viagem de volta levou quase o dobro do tempo, pois Kirby ficou bem abaixo do limite de velocidade. Mais uma vez ela dei­xou o Porsche na frente da casa, ciente que Cards cuidaria dos detalhes. Uma vez dentro de casa, ela foi direto ao salão.

"Bem" ela pensou ao olhar para o pai. "Parece que ele está bem confortável, mas acho que vou só esticá-lo. "

Adam se encostou à ombreira da porta e esperou enquanto ela deixava o pai ajeitado para passar a noite. Após afrouxar a gravata e tirar os sapatos, ela jogou sua capa sobre ele e beijou-lhe a careca.

 — Papai — ela murmurou. — Sua estratégia foi descoberta.

 — Vamos conversar lá em cima, Kirby. Já.

Kirby se aprumou e dirigiu a Adam um longo e sereno olhar.

— Já que está pedindo com tanta educação. — Ela pegou do bar uma garrafa de conhaque e dois copos. — Também devemos ser sociáveis durante a inquisição. — Ela passou por ele e subiu a escada.


 

Kirby acendeu o abajur de cabeceira cor-de-rosa e serviu o conhaque. Após dar um copo a Adam, ela chutou os sapatos para longe e sentou-se de pernas cruzadas na cama. Observou enquanto ele rasgava o embrulho e examina a tela.

Franzindo o cenho, ele estudou as pinceladas, o uso da cor, a técnica veneziana que era de Tiziano. Fascinante. Absolutamente fascinante.

— Isto é uma cópia?

Ela teve de sorrir. Esquentou o conhaque entre as mãos, mas não bebeu.

— A marca de papai está na moldura.

Adam viu o círculo vermelho, mas mesmo assim não achou conclusivo.

— Eu podia jurar que é autêntico. Como qualquer um.

Ele pendurou a tela na parede e se virou para ela. Parecia uma sacerdotisa indiana com seus cabelos contra a seda branca e virgem. Com um sorriso enigmático, ela continuou sentada na Posição de lótus, a taça de conhaque abarcada pelas duas mãos.

— Quantas telas mais na coleção de seu pai são cópias? Lentamente, ela levantou a taça e bebeu um gole. Tinha de se esforçar para não ficar irritada com a pergunta, lembrando que ele tinha o direito de perguntar.

 — Todas as telas da coleção de papai são autênticas. A não ser, agora, este Tiziano. — Ela mexeu os ombros descuidadamente. A esta altura, pouco importava.

 — Quando você falou da técnica que ele usa para que a tela pareça ser mais antiga, não deu a impressão de que ele só a usou em uma tela.

Ela ficou pensando onde estava com a cabeça ao pensar que ele não se ligaria em um comentário casual como aquele. Mas procurou lembrar que, afinal, quem está na chuva é para se molhar. E estava cansada de ficar pisando em ovos. Ela girou levemente a taça e cintilaram luzes em tom de vermelho e âmbar contra o copo.

— Confio em você — ela murmurou, surpreendendo a ambos. — Mas não quero envolvê-lo em algo de que você não gostará de ficar sabendo. Quero que entenda isso. Depois que eu lhe disser, será tarde demais para se arrepender.

Ele não se importava com o surto de culpa. Sua consciência o questionou: quem estava enganando quem agora? E, no final, quem pagaria o preço?

 — Deixe que eu me preocupe com isso — ele disse, lidando com Kirby primeiro e deixando sua consciência para depois. Engoliu o conhaque e deixou o calor se espalhar. — Quantas cópias seu pai já fez?

 — Dez... não, onze — corrigiu, e ignorou o breve palavrão que ele soltou. — Onze, sem contar o Tiziano, que está em uma categoria à parte.

 — Categoria à parte — ele murmurou. Cruzou o recinto e serviu-se de mais conhaque. Tinha certeza de precisar mais. — E qual é a diferença?

 — O Tiziano era uma acordo pessoal entre Harriet e papai. Apenas um modo de evitar rancores.

— E os outros? — Ele se sentou em uma poltrona meticu­losamente ao estilo Rainha Anne. — Que tipo de acordos eles envolvem?

— Cada caso é um caso, naturalmente. — Ela hesitou enquan­to o observava. Será que as coisas seriam diferentes se tivessem se encontrado um mês antes? Quem sabe. Mais uma vez, era uma questão do momento certo, era riu por dentro e bebericou do conhaque que aquecia. — Para simplificar as coisas, papai os pintou e depois os vendeu para partes interessadas.

 — Vendeu? — Ele se levantou, pois não conseguia ficar parado. Já desejando que fosse possível detê-la antes que começasse, ele começou a andar de um lado para outro. — Santo Deus, Kirby. Você não entende o que ele fez? O que ele está fazendo? Isso é fraude, pura e simples.

 — Eu não chamaria de fraude — rebateu, contemplando atentamente seu conhaque. Afinal, aquilo era algo sobre o que ela já havia pensado bastante. — E, decerto, não é puro nem simples.

 — O que é então? — Se ele tivesse escolha, a levaria embora daquele lugar naquele momento: deixaria o Tiziano, o Rembrandt e seu pai louco naquele castelo ridículo e daria o fora dali. Para algum lugar. Qualquer lugar.

— Uma estrepolia. — Kirby definiu com um meio sorriso. — Tramóia — ele repetiu baixinho. Esquecera que ela também era louca. — Tramóia. Vender telas falsificadas por enormes quan­tias de dinheiro para desavisados é fazer estrepolia? — Caminhou mais um pouco, procurando respostas. — Droga, o trabalho dele custa uma fortuna. Por que ele faz isso?

— Porque ele pode fazer — ela respondeu, simplesmente. Ela abriu a mão, expondo a palma. — Papai é um gênio, Adam. Não digo isso como filha, mas como colega nas artes. E com a genialidade talvez venha um pouquinho de excentricidade.

— Ignorando o incisivo som de escárnio, ela prosseguiu: — Para Papai, pintar não é só uma vocação. A vida e a arte são uma só coisa, intercambiável.

 — Concordo com tudo isso, Kirby, o que não explica por que...

 — Deixe-me terminar. — Ela estava novamente envolvendo a taça com ambas as mãos, sobre o colo. — Uma coisa que papai não tolera é ganância, seja da maneira que for. Para ele, a ga­nância representa não só a adoração ao dinheiro, mas também o cerceamento da arte. Você deve saber que sua coleção está sendo sempre emprestada para museus e universidades. Apesar de ele considerar que a arte pertence ao setor privado tanto quanto às instituições públicas, ele detesta a idéia de gente rica comprando arte só por investimento.

 — É admirável, Kirby. Mas ele fez negócios vendendo telas falsas.

 — Não é um negócio. Ele jamais tirou proveito financeiro. — Pôs a taça de lado e entrelaçou as mãos. — Primeiramente, cada potencial comprador das emulações de papai é investigado em detalhes. — Ela esperou um pouco. — Por Harriet.

Ele quase se sentou novamente.

 — Harriet Merrick faz parte de tudo isso?

 — Tudo isso — ela sorriu serenamente — tem sido o hobby de ambos pelos últimos 15 anos.

 — Hobby — ele murmurou, e sentou.

 — Harriet é muito bem relacionada, sabe. Ela se certifica que o comprador seja muito rico e que more bem longe. Dois anos atrás papai vendeu um Renoir fabuloso para um xeque árabe. Era um de meus favoritos. De qualquer maneira — ela continuou, levantando para servir mais bebida a Adam, e depois para si mes­ma — , todo comprador também seria conhecido por seu apego ao dinheiro, e/ou por uma completa falta de senso comunitário ou de compromisso. Por meio de Harriet, ficaram sabendo que papai tinha um trabalho raro e oficialmente não descoberto.

Pegou sua taça e retornou à posição na cama enquanto Adam permanecia em silêncio.

— No primeiro contato, papai nunca coopera, é completamente desdenhoso. Gradualmente se deixa levar até que o acordo está feito. O preço é, naturalmente, exorbitante, do contrário os aficionados por arte se sentiriam ofendidos. — Deu um golinho e desfrutou do fluxo quente proporcionado pelo conhaque. — Ele só negocia em dinheiro vivo, assim não há registro. E, então, as telas são enviadas para o Himalaia, ou para a Sibéria, ou qualquer outro lugar, para ficarem bem escondidas. Depois papai doa o dinheiro anonimamente para a caridade.

Respirando fundo ao fim do discurso, Kirby se recompensou com mais conhaque.

 — Está me dizendo que ele faz tudo isso, todo o trabalho, todas as intrigas, a troco de nada?

 — Decerto que não estou dizendo isso. — Kirby sacudiu a cabeça e se aproximou. — Ele lucra muito. Lucra em satisfação, Adam. O que mais é preciso, afinal de contas?

Ele lutou para se lembrar do código de certo e errado.

— Kirby, ele está roubando! —Kirby inclinou a cabeça e pensou.

 — Por quem você torcia, Adam? Pelo xerife de Nottingham ou por Robin Hood?

 — Não é a mesma coisa. — Ele passou a mão pelos cabelos, tentando convencer a ambos. — Droga, Kirby, não é a mesma coisa.

 — Existe uma ala pediátrica recém-modernizada no hospital local — ela começou a dizer baixinho. — Uma cidadezinha chamada Appalachia ganhou um carro de bombeiros novo e equipamento moderno. Outra, no meio do nada, ganhou uma maravilhosa biblioteca nova.

 — Tudo bem. — Ele se levantou para interrompê-la. — Em 15 anos tenho certeza de que existe uma lista e tanto. Talvez isso seja muito louvável de um modo estranho, mas também é ilegal, Kirby. Isso tem de parar.

 — Eu sei. — A simples concordância da parte dela lhe fez quebrar o ritmo. Com um semi-sorriso, Kirby mexeu os ombros.

Foi divertido enquanto durou, mas faz algum tempo que sei que isso tem de parar antes que algo dê errado. Papai tem em mente um projeto para uma série de telas, e eu o convenci a começar logo. Ele deve levar uns cinco anos e assim nos dar tempo para respirar um pouco. Mas, enquanto isso, ele fez algo com que não sei como lidar.

Ela estava para revelar mais. Antes mesmo que ela começasse a falar, Adam já sabia que Kirby diria toda a verdade. Sentou-se em silêncio, desprezando a si mesmo, enquanto ela dizia tudo que sabia sobre o Rembrandt.

— Eu imagino que parte disso seja vingança de Stuart — ela continuou, enquanto Adam fumava em silêncio e ela mais uma vez ficava revirando seu conhaque sem beber. — De alguma maneira, Stuart descobriu o hobby de papai e o ameaçou de revelar tudo quando eu terminei o noivado. Papai disse para eu não me preocupar, pois Stuart não estava em posição de causar problemas. Na ocasião, eu não fazia idéia da história do Rembrandt.

Ela estava se abrindo para ele, sem perguntas, sem hesitação. Ele sondaria mais, que Deus o ajudasse, ele não tinha escolha.

 — Você tem alguma idéia de onde ele o escondeu?

 — Não, mas não procurei. — Quando ela olhou para ele, não era mais a cigana ardente nem a princesa exótica. — Ele é um bom homem, Adam. Ninguém sabe disso melhor do que eu. Sei que existe uma razão para o que ele fez, e, até segunda ordem, tenho de aceitar isso. Não espero que você tenha a mesma lealdade que eu, apenas que guarde segredo. — Ele não disse nada, e ela entendeu seu silêncio como concordância. — Agora minha maior preocupação é que papai subestime a brutalidade de Stuart.

 — Ele não fará isso depois que você lhe contar sobre a cena na biblioteca.

 — Não vou contar. Porque — ela prosseguiu antes que Adam argumentasse — não sei prever sua reação. Você deve ter per­cebido que meu pai é um homem muito explosivo. — Inclinou a taça e seu olhar encontrou o dele com uma rápida mudança de humor. — Não quero que você se preocupe com isso tudo,

Adam. Fale com papai, se quiser. Converse com Harriet também, pessoalmente, acho que ajuda esquecer esse negócio todo de vez em quando e deixar hibernar. Como um urso-pardo.

— Urso-pardo.

Ela riu e se levantou.

 — Deixe-me pegar mais conhaque para você. Ele a deteve, segurando-a pelo pulso.

 — Já me contou tudo?

Franzindo o cenho, ela soprou um pedaço de felpa na colcha da cama.

— Mencionei o Van Gogh?

— Ah, Deus! — Ele apertou os olhos com os dedos. Por alguma razão, ele esperou que houvesse um fim, mas não acreditou que realmente houvesse. — Que Van Gogh?

Kirby sorriu com os lábios contraídos.

 — Não é exatamente um Van Gogh.

 — Seu pai?

— O último. Ele vendeu a Victor Alvarez, um barão do café na América do Sul. — Ela sorriu ao ver que Adam não disse nada, ficou apenas olhando para a frente. — As condições de trabalho em sua fazenda são deploráveis. Claro que não há nada que possamos fazer para remediar isso, mas papai já reservou O preço da compra para uma escola em algum lugar da área. É a última que fará por vários anos, Adam — ela acrescentou enquanto ele ficava lá, sentado e apertando os olhos com os dedos.

— Francamente, acho que ele vai ficar satisfeito por você saber de tudo. Ele adoraria lhe mostrar essa tela. Está especialmente satisfeito com ela.

Adam esfregou as mãos no rosto. Não ficou surpreso ao se ouvir dando risada.

— Suponho que deva ser grato por ele não ter decidido fazer o teto da Capela Sistina.

— Só depois que ele se aposentar — Kirby disse, jocosamente. — E isso ainda levará tempo.

Sem saber se ela estava fazendo piada ou não, ele não a levou a sério.

 — Preciso de um tempo para assimilar tudo.

 — É justo.

Ele não voltaria para o quarto para contar tudo a McIntyre, decidiu ao pôr a taça de lado. Não estava pronto para isso ainda, logo após Kirby ter dividido tudo com ele, sem perguntas, sem limitações. Não era possível pensar em seu trabalho, nem se lembrar de obrigações externas depois que ela se abriu para ele com toda confiança. Não, ele daria um jeito, algum jeito, de no fim justificar o que resolvera fazer. Certo e errado não estavam mais tão bem definidos.

Olhando para ela, ele precisava tranqüilizá-la, mostrar-lhe que estava certa ao lhe conceder o mais precioso dos presentes: confiança irrestrita. Talvez ele não merecesse, mas precisava daquilo. Precisava dela.

Sem uma palavra, ele a tomou nos braços e a beijou, sem pa­ciência, sem exigências. Antes que qualquer um dos dois pudesse pensar, ele baixou o zíper nas costas do vestido dela.

Ela queria se dar a ele; qualquer coisa, tudo que ele quisesse. Não queria questioná-lo e sim se esquecer de todos os motivos pelos quais não deveriam ficar juntos. Seria tão fácil se afogar naquele mar de sentimentos que era tão novo e tão único! E, ainda assim, nada que fosse real, nada que fosse forte era fácil. Desde cedo lhe fora ensinado que as coisas que mais importa­vam eram as mais difíceis de conquistar. Recuando, ela resolveu colocar tudo em um nível com o qual pudesse lidar.

— Você me surpreende — ela disse com um sorriso espontâneo.

Ele a trouxe para si novamente. Dessa vez ela não escaparia.

 — Que bom.

 — Sabe, a maioria das mulheres tem expectativas de sedução, por mais superficial que seja.

O divertimento podia estar nos olhos dela, mas ele sentiu seu coração batendo junto ao dele.

— A maioria das mulheres não é Kirby Fairchild. — Se ela quisesse brincar devagar, ele faria o diabo para satisfazê-la... contanto que o resultado fosse o mesmo. — Por que não cha­mamos isso de meu próximo ato espontâneo? — ele sugeriu e fez o vestido cair dos ombros. — Não quero aborrecê-la com perseguições convencionais.

Como ela podia resistir a ele? As mãos suaves em sua pele, a boca que lhe sorria e tentava? Ela jamais hesitou em ter o que queria... até agora. Quem sabe tivesse chegado a hora de o jogo empatar, sem ganhar tudo nem perder nada.

Lentamente ela sorriu e deixou o vestido deslizar até o chão quase sem fazer som nenhum.

Ele descobriu que ela era um verdadeiro tesouro de cetim gelado e pele quente. Ela era tão sedutora e cativante quanto ele imaginava. Uma vez decidida a se entregar, não havia restri­ções. Em um simples gesto ela abriu os braços para ele e ficaram juntos.

Suspiros suaves, murmúrios graves, pele contra pele. O luar e o matiz rosado do abajur competiam entre si e se misturaram, assim como o colchão cedeu sob o peso de ambos. Os lábios dela eram quentes, e seus braços fortes. À medida que ela se mexia debaixo dele, convidando, atiçando, ele foi se esquecendo de como ela era pequena.

Tudo. Por inteiro. Agora. O desejo levou ambos a agarrar sem paciência, e ainda assim... De alguma maneira, por trás da paixão, do calor, havia uma ternura que nenhum deles esperava do outro.

Ele tocou. Ela estremeceu. Ela provou seu gosto. Ele palpitou. Desejavam até o ar parecer cintilar de desejo. A cada segundo ambos foram encontrando mais daquilo que desejavam, mas desse encontro vinha mais vontade ainda. Receber, ela parecia dizer, depois entrega, entrega total.

Ela não tinha tempo de flutuar, apenas de palpitar. Para ele. Por ele. Seu corpo suplicava; ansiava era uma palavra suave demais. Ela o queria, o que era único para ela. E ele, com um beijo, com um toque de mão, podia levá-la a alturas que ela ja­mais sonhara que existissem. Ali estava a perfeição, ali estava o deleite pelo qual ela esperava, mas sem realmente nele acreditar. Aquilo era o que ela desejava tão desesperadamente na vida, mas nunca encontrara. Aqui e agora. Ele. Não havia nem precisava haver nada mais.

Ele chegou perto da loucura. Ela o abraçou, mais forte e mais apertado, à medida que foram oscilando juntos para o limite. Juntos era tudo em que ela conseguia pensar. Juntos.

Sossego. Estava tão sossegado que talvez jamais houvesse novamente algo como um som. Seu cabelo roçava o rosto dele. Sua mão, encolhida e solta, estava sobre o coração dele. Adam estava em silêncio e sentia dor, uma dor que não sabia que podia sentir.

Como ele deixou que aquilo acontecesse? Controle? O que o fez pensar que teria controle com Kirby? De alguma maneira, ela havia se enrolado nele, corpo e mente, enquanto ele fingia não saber direito o que estava fazendo.

Ele veio fazer um trabalho, procurou lembrar. Ainda tinha de fazê-lo, a despeito do que se passasse entre eles dois. Será que ele podia fazer o que viera fazer e ainda assim protegê-la? Seria possível se dividir em dois quando sua estrada sempre fora tão reta? Ele não tinha certeza de mais nada agora, a não ser que perderia, fosse qual fosse o fim do jogo. Ele tinha de pensar, de criar a distância da qual precisava para pensar. Melhor para ambos se ele começasse agora.

Mas, quando ele se afastou, ela o segurou com mais força. Kirby levantou a cabeça e o luar atingiu seus olhos, hipnotizando-o.

— Não vá — ela murmurou. — Fique e durma comigo. Não quero que termine ainda.

Ele não conseguia resistir a ela agora. Talvez jamais conse­guisse. Sem dizer nada, Adam a trouxe para perto de novo e fechou os olhos. Podia fingir um pouquinho mais que amanhã tudo se resolveria.

Kirby foi acordada pelos raios do sol, mas tentou ignorá-los jogando os travesseiros sobre a cabeça. Não funcionou por mui­to tempo. Resignada, jogou-os no chão e permaneceu deitada, quieta, sozinha.

Não ouviu Adam sair, nem esperava que ele ficasse até ama­nhecer. De certa maneira, estava feliz por acordar sozinha. Agora podia pensar.

Como foi confiar completamente em um homem que mal conhecia? Não havia resposta. Por que não desconversou de suas perguntas, não desviou de certos fatos, como sabia ser capaz de fazer? Não havia resposta.

Não era verdade. Kirby fechou os olhos por um momento, sabendo que havia sido mais honesta com Adam do que estava sendo consigo mesma. Ela sabia a resposta.

Ela lhe dera mais do que jamais dera a qualquer homem. Mais do que uma aliança física, mais do que algumas horas de prazer na noite. Ela dividiu com ele a essência de seu eu. Não havia como retroceder agora, mesmo se ambos preferissem assim.

Sem saber, ele lhe tomou a inocência. Virgindade emocional era algo tão real e tão vital quando a física. E era tão impossível de recuperar. Ela, pensando na noite, sabia que não teve von­tade de recuar. Agora ambos seguiriam rumo ao que fosse lhes acontecer.

Levantou-se para se preparar para enfrentar o dia.

 

Lá em cima, no ateliê de Fairchild, Adam observou a tela com a paisagem rural. Dava para sentir a agitação e o drama. O calmo cenário vibrava com vida frenética. Viva, real, perturbadora. Seu criador estava ao lado dele, não o Vincent van Gogh que Adam juraria ter utilizado pincel e paleta, mas sim Philip Fairchild.

— É magnífico — Adam murmurou. O elogio saiu antes que Pudesse deter-se.

— Obrigado, Adam. Gosto muito dela. — Fairchild falou como um homem que já aceitou há muito tempo sua superioridade e a responsabilidade inerente.

 — Sr. Fairchild...

 — Philip — Fairchild interrompeu afavelmente. — Não há razão para formalidades entre nós.

De alguma maneira, Adam sentiu que até a intimidade casual poderia complicar uma situação já irremediavelmente compli­cada.

 — Philip — ele recomeçou — , isso é fraude. Seus motivos podem ser nobres, mas o resultado continua sendo fraude.

 — Com certeza. — Fairchild balançou a cabeça, concordando.

— Fraude, adulteração, mentira descarada sem a menor sombra de dúvida. — Levantou os braços e os deixou cair. — Não tenho como me defender.

Adam ficou enraivecido. A não ser que estivesse muito enga­nado, estava para escutar a maior quantidade de baboseiras de todos os tempos.

— Adam... — Fairchild pronunciou lentamente o nome e juntou as mãos com os dedos esticados. — Você é um homem astuto, racional. Orgulho-me de ser um bom juiz de seu caráter.

— Como se fosse muito velho e frágil, Fairchild se abaixou para sentar em uma poltrona. — Mas é imaginativo e tem mente aberta; isso aparece em seu trabalho.

Adam pegou o café que Cards havia trazido.

 — E?

 — Após sua ajuda em nosso pequeno problema na noite passada, e considerando sua habilidade em fazer meu golpe se voltar contra mim mesmo, sou levado a crer que você é capaz de se adaptar ao que alguns talvez chamem de incomum.

 — Talvez chamem mesmo.

 — Veja bem. — Fairchild aceitou o copo que Adam lhe pas­sou e se recostou. — Você me disse que Kirby lhe contou tudo. Estranho, mas vamos deixar isso de lado por enquanto. — Ele já havia tirado suas conclusões quanto a isso e fazia gosto. Não estava pronto a perder em outros pontos. — Após o que lhe foi dito, você pode apontar uma pitada que seja de egoísmo em minha empreitada? Você não vê que meus motivos são tão-so­mente humanitários? — Empolgando-se, Fairchild pôs o copo na mesa e colocou as mãos entre os joelhos ossudos. — Quem se beneficia de meu hobby são crianças pequenas e doentes, e os menos afortunados que nós. Não guardei um centavo sequer, nem 1 dólar, ou franco, ou dinheiro qualquer. Nunca, nunca, nunca pedi crédito ou homenagens que a sociedade, naturalmente, gostaria de me conceder.

— Você tampouco pediu pela ordem de prisão que certamente vão expedir.

Fairchild inclinou a cabeça, admitindo, mas não perdeu o ritmo.

— É meu presente para a humanidade, Adam. Meu pagamento pelo talento que me foi concedido por um poder superior. Estas mãos... — Ele as levantou, finas, esqueléticas e estranhamente belas. — Estas mãos têm um dom pelo qual preciso retribuir do meu jeito. Foi o que fiz. — Fairchild abaixou a cabeça e soltou as mãos sobre o colo. — Todavia, entendo se você me condenar.

Fairchild parecia, Adam ponderou, um cristão convicto sendo encarado por leões pagãos: firme em sua crença, resignado em sua fé.

—   Um dia — Adam murmurou — seu halo desaparecerá e o estrangulará.

—   É possível. — Sorrindo, ele levantou a cabeça novamente. — Mas, enquanto isso, desfrutamos do que podemos. Vamos comer deste bolo dinamarquês, meu garoto.

Sem palavras, Adam lhe estendeu a bandeja. — Já considerou as conseqüências para Kirby caso seu... hobby seja descoberto?

— Ah! — Fairchild engoliu um pedaço do bolo. — Um tiro em meu calcanhar-de-aquiles. Naturalmente, ambos sabemos que Kirby pode encarar qualquer obstáculo e se virar, seja como for. — Ele comeu mais um pouco do bolo, saboreando o sabor de framboesa. — Mas Kirby, só em existir, requer emoção de um tipo ou de outro. Concorda?

Adam pensou na noite, e no que ela o mudara.

— Sim.

A resposta breve e concisa foi exatamente o que Fairchild esperava.

— Estou fazendo uma pausa nesse negócio por várias razões, e a primeira delas é a posição de Kirby.

— E sua posição quanto ao Rembrandt de Merrick?

— Isso é outro problema. — Fairchild limpou as pontas dos dedos em um guardanapo e pensou em comer outro pedaço de bolo. — Gostaria de discutir os prós e contras desse negócio com você, Adam, mas não estou disponível neste exato momento.

— Ele sorriu e olhou por sobre a cabeça de Adam. — Pode-se dizer que envolvi Kirby figurativamente, mas até as coisas se resolverem ela não é uma das peças principais do jogo.

 — O senhor está escalando o elenco da peça, além de dirigir, papai? — Kirby entrou no ateliê e pegou o bolo no qual Fairchild estava de olho. — Dormiu bem, querido?

 — Como uma pedra, pirralha — ele murmurou, lembrando da confusão de acordar no sofá, coberto por sua capa. Não se importava de perder a parada, mas era um homem que sabia reconhecer uma mente ágil.

— Fiquei sabendo que suas atividades noturnas deram certo.

 — Missão cumprida. — Ela olhou para Adam e colocou as mãos nos ombros do pai. O elo estava lá, inquebrantável.

 — Talvez eu deva deixá-los a sós por enquanto. Adam tem talento para extrair informações. Você deve acabar contando a ele o que não conta para mim.

— Tudo na devida hora. — Ele deu tapinhas em suas mãos.

— Estou dedicando minha manhã ao meu falcão. — Levantou-se e foi descobrir sua argila em evidente repúdio. — Você devia ligar para Harriet e dizer que está tudo bem antes de se divertirem juntos.

Kirby estendeu a mão.

— Você tem algum divertimento em mente, Adam?

— Para falar a verdade... — Ele seguiu o impulso e a beijou enquanto o pai observou e especulou. — Estava pensando em uma sessão de óleo e tela. Você terá de se trocar.

— Se é o melhor que pode fazer. Duas horas apenas — ela avisou enquanto caminhavam para fora do ateliê. — Do contrário meu pagamento fica mais caro. Tenho meu próprio trabalho, sabe.

— Três.

— Duas horas e meia. — Ela parou no patamar da escada do segundo andar.

— Você parecia uma criança esta manhã — ele murmurou, e tocou-lhe o rosto. — Não tive coragem de acordá-la. — Ele deixou sua mão por um breve momento e tirou-a em seguida.

— Encontro-a lá em cima.

Kirby foi para o quarto e jogou o vestido vermelho na cama. Enquanto se despia com uma das mãos, fazia uma ligação no telefone com a outra.

 — Harriet, aqui é Kirby, pode descansar a mente.

 — Criança esperta. Houve algum problema?

 — Não. — Ela tirou a calça jeans. — Conseguimos.

 — Nós? Philip foi com você?

— Papai ficou roncando no sofá depois que Adam trocou as bebidas.

— Ah, querida. — Harriet achou graça e ficou mais tranqüila. — Ele ficou com muita raiva?

— Papai ou Adam? — Kirby replicou, e deu de ombros. — Não importa, no final ambos foram bastante razoáveis. Adam foi de grande ajuda.

— O teste não será antes de meia hora. Conte os detalhes.

Tirando e vestindo roupas com esforço, Kirby contou-lhe tudo.

— Maravilhoso! — Satisfeita com o drama, Harriet sorriu ao telefone. — Quisera eu ter feito isso. Preciso conhecer seu Adam melhor e arrumar uma maneira espetacular de lhe mostrar minha gratidão. Acha que ele gosta de dentes de crocodilo?

— Nada o agradaria mais.

— Kirby você sabe como lhe sou agradecida. — A voz de Harriet soou abruptamente séria e maternal. — A situação é complicada, para dizer o mínimo.

 — Não há como reverter o contrato?

 — Não. — Ela soltou um suspiro ao pensar na perda do Tizia­no. — A culpa é minha. Eu devia ter explicado ao Stuart que a tela não era para ser vendida. Philip deve estar furioso comigo.

 — Você consegue lidar com ele. Sempre consegue.

 — Sim, sim. Sabe Deus o que eu faria sem você. A pobrezi­nha da Melly simplesmente não consegue me entender como você.

 — Ela foi feita de material diferente. — Kirby olhou para o chão e tentou não pensar no Rembrandt e na culpa que sentia. — Venha jantar conosco hoje, Harriet, você e Melanie.

 — Ah, eu adoraria, querida, mas tenho um encontro. Pode ser amanhã?

 — Está ótimo. Devo ligar para Melly ou você fala com ela?

 — Estarei com ela esta tarde. Cuide-se e agradeça a Adam por mim. Droga, é uma pena que eu esteja velha demais para dar a ele outra coisa que não dentes de crocodilo.

Com uma risada, Kirby desligou.

 

O sol inundava o vestido, acentuando ou sombreando os tons de vermelho-escuro. Cintilava das argolas nas orelhas às pulseiras nos braços. Ciente de que a luz estava perfeita, Adam trabalhou fervorosamente.

Ele era um artista de detalhes e sutilezas, que usava luz e sombra para criar climas. Buscava em seus retratos expressar uma realidade interna, a verdade por baixo da superfície do modelo. Em Kirby ele viu a essência da mulher: poder e fragilidade, e aquela qualidade elusiva e mística do sexo. Altiva, sedutora. Ela era as duas coisas.

Horas se passaram sem que ele percebesse. Mas seu modelo, por sua vez, estava com outro estado de espírito.

— Adam, se você consultar o relógio verá que eu já lhe dei mais do que o tempo combinado.

Ele a ignorou e continuou a pintar.

— Não agüento ficar aqui mais nem um momento. — Ela soltou os braços, tirando-os da pose, e os balançou, mexendo os ombros. — Deste jeito eu nunca mais vou poder praticar salto com vara novamente.

— Posso trabalhar no fundo por algum tempo — ele murmurou — Preciso de mais três horas pela manhã. É quando a luz fica melhor.

Kirby segurou a resposta na ponta da língua. Era de se esperar que um artista ficasse sem educação ao se perder em sua arte. Esticando os músculos, ela foi espiar por trás dele.

 — Você tem boa mão para luz — ela concluiu ao observar a tela em progresso. — É muito lisonjeiro, decerto, você escolheu cores bem ardentes e desafiadoras. — Ela olhou com cuidado para as linhas vagas de seu rosto, as tintas e tons que ele estava usando para criá-la sobre a tela. — Mas, mesmo assim, existe uma fragilidade nela que eu não entendo bem.

 — Talvez eu a conheça melhor do que você mesma. — Ele não olhava para ela, continuava pintando. Por não olhar, ele não viu a expressão de estupor se transformar gradualmente em aceitação.

Kirby entrelaçou as mãos e foi se afastando. Tinha de fazer aquilo de uma vez, resolveu. Tinha de ser feito, ser dito.

— Adam...

Foi um murmúrio inarticulado. Ele continuou de costas para ela.

Kirby respirou fundo.

 — Eu amo você.

 — Hum-hum.

Algumas mulheres ficariam arrasadas. Outras ficariam furio­sas. Kirby riu e jogou a cabeça para trás. A vida nunca era como se esperava.

— Adam, gostaria de um minuto de sua atenção. — Apesar de ela continuar a sorrir, estava ficando com as juntas dos dedos ancas. — Estou apaixonada por você.

A segunda tentativa funcionou. Seu pincel, todo em coral, parou no ar. Muito lentamente, ele o abaixou e se virou. Ela estava olhando para ele com um meio sorriso no rosto, as mãos entrelaçadas com tanta força que doía. Ela não esperava uma reação, nem exigiria uma.

— Não digo isso para pressioná-lo, nem para constrangê-lo.

— Seu nervosismo apareceu apenas ligeiramente quando ela umedeceu os lábios. — É só que acho que você tem direito de saber. — Suas palavras começaram a sair rapidamente. — Nos conhecemos há pouco tempo, eu sei, mas acho que é assim que acontece às vezes. Não pude fazer nada. Não espero nada de você, nem permanente nem temporariamente. — Ao ver que ele ainda assim não falara nada, ela sentiu uma onda de pânico com a qual não sabia lidar. Será que ela havia estragado tudo? Agora seu sorriso já não combinava com seus olhos. — Tenho que me trocar — ela disse levemente. — Pelo jeito, você me fez perder o almoço.

Ela estava quase na porta quando ele a deteve. Ao segurá-la pelos ombros, sentiu sua tensão. E ao sentir, ele entendeu que ela lhe dera tudo que havia em seu coração. Algo que ele sabia por instinto que jamais fora dado a nenhum outro homem.

— Kirby, você é a mulher mais espetacular que já conheci.

— É, tem sempre alguém dizendo isto. — Ela tinha de sair, e rápido. — Você vai descer ou devo mandar trazer uma bandeja?

Ele abaixou a cabeça até o alto da dela e pensou como as coisas podiam acontecer tão rapidamente, tão decididamente.

— Quantas pessoas seriam capazes de fazer uma declaração de amor tão simples e desprendida e depois sair sem pedir nada? Desde o começo você não fez uma coisa que fosse como eu esperaria. — Ele roçou os lábios contra os dela, levemente, de um modo que ela quase nem sentiu. — Não tenho a chance de dizer nada?

 — Não é necessário.

 — É, sim. — Ele a virou e abarcou-lhe o rosto com as mãos.

— E prefiro estar com as mãos em você ao dizer que a amo.

Ela se manteve bem empinada e falou com toda a calma:

— Não sinta pena de mim, Adam, eu não suportaria isso.

Ele começou a dizer todas as coisas doces e românticas que uma mulher quer ouvir em uma declaração de amor. Todas as palavras tradicionais e normais que um homem pudesse usar ao oferecer a si mesmo. Não eram para Kirby. Então, ele arqueou uma sobrancelha.

— Se você não contava em ser correspondida, terá de se acostumar.

Ela esperou um pouco, pois precisava ter certeza. Correria o risco, qualquer risco, se tivesse certeza. Ao olhar nos olhos dele, ela começou a sorrir. A tensão em seus ombros desapareceu.

—  Foi você quem começou.

—  É. Acho que terei que conviver com isso.

O sorriso desapareceu quando ela se jogou com força sobre o peito dele.

— Ah, meu Deus, Adam, eu preciso de você. Você não imagina o quanto.

Ele a apertou também com força, tão desesperadamente quanto ela.

— Imagino, sim.


 

Amar e ser amada. Para Kirby aquilo era desconcertante, aterrorizante, estimulante. Queria tempo para experimen­tar, absorver. Entender não importava, agora não, no primeiro ímpeto de emoção. Ela só sabia que, apesar de sempre ter sido feliz na vida, estava lhe sendo oferecido algo mais. Estavam lhe oferecendo risadas à meia-noite, palavras suaves ao amanhecer, a mão dele para segurar e uma vida para compartilhar. O preço a pagar seria parte de sua independência e da lealdade que antes pertencia apenas a seu pai.

Para Kirby, amar significava dividir, e dividir não comporta­va restrições. O que quer que tivesse, o que quer que sentisse, pertencia a Adam tanto quanto a si própria. O que quer que fosse acontecer entre eles agora, ela jamais seria capaz de mudar. Como não conseguia mais trabalhar em seu ateliê, ela desceu Para encontrá-lo.

A casa estava silenciosa no começo do anoitecer, com os empregados lá embaixo preparando o jantar e fofocando. Kirby sempre gostou dessa hora do dia: após uma longa e produtiva sessão de trabalho no ateliê e antes do jantar. Hora de sentar em frente a uma lareira crepitante ou caminhar pelas rochas. Parou em frente à porta de Adam e levantou a mão para bater.

O murmúrio de vozes a deteve. Se Adam estava conversando novamente com seu pai, poderia ficar sabendo sobre o Rembrandt algo que pudesse despreocupá-la. Enquanto ela hesitava, a batida na porta da frente vibrou pela casa toda. Dando de ombros, ela deu meia-volta para atender.

 

Em seu quarto, Adam passou o transmissor para a outra mão.

 — Esta foi a primeira oportunidade que tive de ligar. Não tenho novidade nenhuma.

 — O combinado é você ligar todas as noites. — Irritado, McIntyre parecia gritar ao fone. — Droga, Adam, estava começando a pensar que tinha acontecido algo com você.

 — Se você conhecesse estas pessoas, perceberia como é ridí­cula a idéia.

 — Eles não suspeitam de nada?

 — Não. — Adam amaldiçoou a existência daquele serviço.

 — Fale da sra. Merrick e de Hiller.

 — Harriet é charmosa e exuberante. — Não poderia clas­sificá-la como inofensiva. Apesar de se lembrar do que ele e Kirby fizeram na noite anterior, não tocou no assunto. Adam já havia racionalizado que aquela história toda não tinha nada a ver com seu serviço. Não especificamente. Aquilo bastava para ele não dizer nada a McIntyre. Em vez disso, Adam lhe diria o que achava que devia, nada além. — Hiller é muito ardiloso, e completamente falso. Eu surpreendi a ele e Kirby quando ele ia bater nela.

 — Qual era a razão?

 — O Rembrandt. Ele não acredita que o pai não contou nada a ela sobre o assunto. Ele é o tipo de homem que acha que sempre pode conseguir o que quer usando de força física, principalmente quando a outra pessoa é menor que ele.

 — Parece ser uma preciosidade de homem. — Mas ele perce­beu a mudança de tom. Se Adam estivesse se envolvendo com a Fairchild... Não. McIntyre afastou a idéia. Não precisavam daquilo. — Por acaso, fiquei sabendo de Victor Alvarez.

— Esqueça. — Adam manteve a voz casual, pois sabia como Mac podia ser perceptivo. — É uma perseguição ao impossível. Já trouxe isso à tona e não tem nada a ver com o Rembrandt.

— Você quem sabe.

 — É. — Ele sabia que McIntyre jamais entenderia o hobby de Fairchild. — Já que estamos de acordo, tenho uma condição.

 — Condição?

 — Quando terminar com o Rembrandt, vou resolver o resto do meu jeito.

 — Como assim do seu jeito? Escute, Adam...

 — Do meu jeito — Adam cortou. — Ou então você arruma outra pessoa. Vou recuperá-lo para você, Mac, mas depois disso os Fairchild ficam fora da história.

 — Ficam fora? — McIntyre explodiu e o fone rangeu com a es­tática. — Como diabos pode esperar que eu os deixe de fora?

 — Problema seu. Apenas faça isso.

 — Esse lugar é cheio de loucos — McIntyre murmurou. — Deve ser contagioso.

 — É. Eu retorno depois. — Com um sorriso, Adam desligou o transmissor.

Lá embaixo, Kirby abriu a porta e olhou para os olhos míopes de Rick Potts, emoldurados por óculos de armação escura. Esten­deu a mão, sabendo que devia estar úmida de nervosismo.

 — Olá, Rick. Papai me disse que você vinha nos visitar.

 — Kirby. — Ele engoliu em seco e apertou sua mão. Só de vê-la suas glândulas ficavam em polvorosa. — Você está ma-maravilhosa. — Estendeu-lhe um buquê de cravos na altura do rosto.

 — Obrigada. — Kirby pegou as flores que Rick havia parcialmente esmagado e sorriu. — Venha, vou lhe preparar um drinque. Você fez uma longa viagem, não fez? Cards, guarde a bagagem do sr. Potts, por favor — continuou, sem dar a Rick chance de falar.

Ela sabia que ele precisaria de um pouco de tempo para formular as palavras. — Papai logo descerá. — Ela pegou água mineral e serviu com gelo. — Ele tem dedicado muito tempo a seu novo projeto; tenho certeza de que ele vai querer conversar sobre ele com você. — Após lhe entregar a bebida, ela fez menção a uma poltrona. — E, então, como vai você?

Primeiro ele bebeu para descolar a língua do céu da boca.

— Tudo bem. Quer dizer, tive um resfriado semana passada, mas estou bem melhor agora. Jamais viria lhe ver se estivesse  com algum germe.

Ela se virou para esconder o riso e se serviu de uma garrafa de Perrier.

 — Muita consideração sua, Rick.

 — Você tem... tem trabalhado?

 — Sim, estou quase terminando o material de minha expo­sição de primavera.

— Vai ser uma maravilha— ele disse com lealdade cega. Apesar de reconhecer a qualidade do trabalho dela, as peças mais fortes o intimidavam. — Vai ficar em Nova York?

 — Sim. — Ela foi se sentar ao lado dele. — Por uma semana.

 — Então talvez... quer dizer, eu adoraria, se você tiver tempo, é claro, de levá-la para jantar. — Ele engoliu um pouco de água mineral. — Se você tiver uma noite livre.

 — Muito gentil de sua parte.

Atônito, ele ficou boquiaberto, com as pupilas dilatadas. Da porta, Adam observava a adulação juvenil daquele homem magricela e um tanto desajeitado. Adam calculou que em dez segundos Kirby o teria a seus pés, querendo ou não.

Kirby levantou os olhos e sua expressão mudou tão sutilmente que Adam não teria percebido se não estivesse tão sintonizado com ela.

— Adam. — Havia alívio em seus olhos, mas a voz soou normal. — Estava esperando você descer. Rick, este é Adam Haines Adam, acho que papai lhe falou de Rick Potts um dia desses.

A mensagem foi clara. Seja gentil. Com um sorriso sociável, Adam aceitou o aperto da mão úmida.

— Sim, Philip disse que você vinha passar uns dias aqui. Kirby me disse que você trabalha com aquarelas.

— Ela disse? — Quase se descontrolando pelo mero fato de Kirby tocar em seu nome, Rick ficou simplesmente parado por um momento.

— Teremos uma longa conversa depois do jantar. — Levantando-se, Kirby começou a levar Rick gentilmente para a porta.

— Tenho certeza de que você quer descansar depois de dirigir. Sabe onde fica seu quarto, não sabe?

— Sim, sim, claro.

Kirby o observou descer o corredor antes de se virar. Foi até Adam e o abraçou.

— Detesto me repetir, mas amo você.

Ele lhe tomou o rosto com as mãos e a beijou com suavidade, deixando a promessa de mais.

 — Repita-se o quanto quiser. — Baixou os olhos para ela, subitamente excitado apenas por seu sorriso. Beijou a palma de sua mão com uma contenção que a deixou fraca.

 — Você me tira o fôlego — ele murmurou. — Não é de admirar que deixe Rick Potts parecendo uma geléia.

 — Prefiro fazer isso com você.

E preferia. Não era fácil admitir. Com um leve sorriso, Adam a afastou.

— Você vai mesmo dizer a ele que sou um namorado ciumento e que tenho um estilete?

 — É para o bem dele. — Kirby pegou sua taça de Perrier. — Ele sempre fica muito envergonhado ao perder o controle. Ficou sabendo algo mais de papai?

 — Não. — Intrigado, ele franziu o cenho. — Por quê?

 — Eu fui lhe procurar antes de Rick chegar. Ouvi você con­versando.

Ela colocou a mão na dele e Adam lutou para não transparecer sua tensão.

— Não quero forçar as coisas agora. — Aquilo era verdade, ele pensou incisivamente. E não era mentira.

— Não, você provavelmente tem razão quanto a isso. Papai tende a se obstinar facilmente. Vamos sentar perto do fogo um pouco — ela disse, conduzindo-o à lareira. — E ficar sem fazer nada.

Ele se sentou ao lado dela, abraçando-a, desejando que as coisas fossem simples como pareciam.

 

Horas se passaram até que voltaram ao salão, mas já não es­tavam mais sozinhos. Após uma farta refeição, Fairchild e Rick se juntaram a eles para continuar a conversa sobre arte e técnica. Auxiliado por duas taças de vinho e meia taça de conhaque, Rick começou a tecer loas ao trabalho de Kirby. Adam reconheceu os sinais de guerra: as orelhas rosadas de Fairchild e os olhos ingênuos de Kirby.

 — Obrigada, Rick. — Com um sorriso, Kirby levantou sua taça de conhaque. — Tenho certeza de que você vai gostar do último trabalho de papai. É uma tentativa com argila. É um pássaro ou coisa assim, não é, papai?

 — Um pássaro? Um pássaro? — Com um giro rápido, ele dançou ao redor da mesa. — É um falcão, sua horrenda. Uma ave de caça, uma criatura sagaz.

Era um veterano, Rick tentou mitigar.

 — Adoraria ver, sr. Fairchild.

 — E verá. — Com um gole, Fairchild terminou sua bebida. — Pretendo doar ao Metropolitan.

O ronco de Kirby pode ter sido involuntário ou forçado, mas deu resultados.

 — Está zombando de seu pai? — Fairchild questionou. — Não tem fé nestas mãos? — Ele as levantou, os dedos abertos. — As mesmas mãos que a seguraram assim que você saiu do ventre de sua mãe?

 — Suas mãos são a oitava maravilha do mundo — Kirby disse a ele. — Todavia... — Ela pôs a taça na mesa, sentou-se nova­mente e cruzou as pernas. Meticulosamente, ela juntou os dedos e olhou por sobre eles. — Pelo que tenho observado, o senhor tem dificuldade com a estrutura. Quem sabe com alguns anos de prática o senhor venha a desenvolver o dom da construção.

— Estrutura? — ele bradou. — Construção? — Ele apertou os olhos e empinou o queixo. — Cards! — Kirby lhe enviou um sorriso tranqüilo e pegou novamente sua taça. — Cards![3]

— Sim, sr. Fairchild.

— Cards — repetiu Fairchild, olhando para o majestoso mordomo, que esperava à porta.

 — Sim, sr. Fairchild.

 — Cards! — Ele aumentou o tom de voz, empinando-se.

— Acho que papai quer um maço de cartas, Cards — Kirby explicou. — Jogar cartas.

— Sim, senhorita. — Cards fez uma leve mesura e foi buscar.

 — Qual é o problema com esse homem? — Fairchild mur­murou. Com gestos apressados, começou a abrir espaço na mesinha. Cerâmica Wedgwood e delicados vidros venezianos foram postos no chão sem o menor cuidado. — Parece até que não fui claro.

 — É muito difícil conseguir bons empregados hoje em dia — Adam murmurou com os lábios na taça.

 — Suas cartas, sr. Fairchild. — O mordomo pôs os dois maços selados na mesa e saiu discretamente do recinto.

— Agora vou lhe mostrar uma coisa sobre construção. — Fair­child pegou uma cadeira, sobre os pés da qual enganchou suas pernas finas. Abriu o selo do primeiro maço e pôs as cartas na mesa. Com meticuloso cuidado, ele encostou uma carta à outra, formando um arco. — Mão firme e olho perspicaz — Fairchild murmurou enquanto começou a construir, lentamente e com intensidade total, uma casa de cartas.

— Isto o manterá fora de combate por enquanto — Kirby declarou. Piscou para Adam, virou-se para Rick e começou a falar sobre amigos em comum.

 

Uma hora se passou entre conhaques e conversa amena. Oca­sionalmente se ouvia um resmungo ou murmúrio do arquiteto no canto. O fogo crepitava. Quando Montique entrou e pulou no colo de Adam, Rick ficou pálido e se levantou.

 — Você não devia fazer isso. Ela vai aparecer a qualquer mo­mento. — Pôs sua taça na mesa ruidosamente. — Kirby, acho que vou subir. Quero começar a trabalhar cedo.

 — Claro. — Ela o observou se retirar antes de se virar para Adam. — Ele morre de medo de Isabelle. Montique foi para seu quarto quando ele estava dormindo e se aninhou em seu travesseiro. Isabelle acordou Rick dizendo coisas bem pouco educadas, e sobre seu peito. É melhor eu subir para dar uma olhada se está tudo em ordem. — Ela se levantou, inclinou-se e o beijou levemente.

 — Não basta.

 — Não? — O lento sorriso iluminou-lhe o rosto. — Quem sabe podemos resolver isso mais tarde. Vamos, Montique, vamos encontrar a desgraçada da sua dona.

 — Kirby... — Adam esperou que ela e o filhote chegassem à porta. — Quanto Isabelle paga de aluguel?

 — Dez ratos por mês — ela disse, sobriamente. — Mas vou aumentar para 15 em novembro. Quem sabe ela não cai fora lá pelo Natal. — Contente com a idéia, ela saiu com Montique.

 — Uma criatura fascinante, a minha Kirby — Fairchild co­mentou. Adam cruzou o salão e olhou para a enorme e irregular estrutura de cartas que Fairchild continuava a construir. — Fasci­nante! Ela é uma mulher que tem muitos aspectos por baixo da superfície. Kirby pode ser cruel quando se sente no direito. Já a vi esmagar homens de mais de 1,80m como se fossem besouros. — Segurou uma carta entre os indicadores de ambas as mãos e então encaixou vagarosamente no lugar. — Você vai reparar, contudo, que sua atitude com Rick é sempre gentil.

Apesar de Fairchild continuar a dar a máxima atenção a suas cartas, Adam sabia que aquilo não era só conversa à-toa.

— Obviamente, ela não quer magoá-lo.

— Exatamente. — Fairchild começou a construir com paciência outra ala. Ou Adam estava muito enganado, ou as cartas estavam lentamente ganhando a forma da casa em que estavam.

— Ela vai tomar muito cuidado para que isso não aconteça, pois sabe que a adoração que ele nutre por ela é sincera. Kirby é uma mulher forte, independente. Mas quando se trata do coração, ela é uma manteiga derretida. Há um monte de gente neste planeta por quem ela sacrificaria qualquer coisa que pudesse. Rick é uma dessas pessoas; Melanie e Harriet são outras. E eu mesmo. — Ele levantou uma carta na ponta dos dedos como se estivesse sentindo seu peso. — Sim, eu — repetiu suavemente. — Por isso, as circunstâncias do Rembrandt são muito difíceis para ela. Ela estava dividida entre lealdades distintas. O pai e a mulher que foi sua mãe pela maior parte de sua vida.

 — Você não faz nada para mudar isso — Adam acusou. Ir­racionalmente, ele queria jogar as cartas longe, derrubar aquela construção meticulosamente erigida. Enfiou as mãos nos bolsos, os punhos cerrados. Até que ponto poderia censurar Fairchild se ele estava enganando Kirby da mesma maneira? — Por que não lhe dá alguma explicação? Algo que ela possa entender?

 — A ignorância é uma bênção — Fairchild declarou calma­mente. — Neste caso, quanto menos Kirby souber, mais simples serão as coisas.

 — Você é muito atrevido, Philip.

 — Sim, sim, é bem verdade. — Ele equilibrou mais algumas cartas e depois voltou ao assunto que lhe ocupava a mente. — Kir­by teve dezenas de homens. Ela podia escolhê-los e descartá-los como as mulheres fazem com as roupas. Ainda assim, a seu modo, ela sempre foi cautelosa. Acho que Kirby achava que não era capaz de amar um homem e resolveu se nivelar por muito, muito baixo ao aceitar casar com Stuart. Besteira, é claro. — Fairchild pegou seu drinque e estudou a casa de cartas dançante. — Kirby tem grande capacidade de amar. Quando ela ama um homem, ela fica vulnerável. Ela ama intensamente, Adam.

Pela primeira vez ele levantou o rosto para olhar nos olhos de Adam.

— Quando a mãe dela morreu, Kirby ficou devastada. Não gostaria de viver para vê-la passar por nada parecido com aquilo outra vez.

O que ele podia dizer? Menos do que gostaria, mas, ainda assim, apenas a verdade.

— Não quero magoar Kirby. Faria qualquer coisa para não magoá-la.

Fairchild o observou por um momento com seus olhos azul-claros que enxergavam muito e profundamente.

— Acredito em você, e espero que arrume uma maneira de evitar isso. Anda assim, se você a ama, encontrará um jeito de consertar qualquer estrago que faça. O jogo está rolando, Adam, e as regras foram estabelecidas. Não podem mais ser alteradas, podem?

Adam olhou para o rosto redondo.

— Sabe porque estou aqui, não sabe?

Fairchild deu uma gargalhada e se voltou novamente para suas cartas. Sim, Adam Haines é mesmo astucioso, ele pensou, deliciado. Kirby percebera desde o início.

— Por enquanto vamos dizer apenas que você está aqui para pintar e para... Observar. Sim, observar. — Encaixou outra carta. — Pode ir atrás dela lá em cima, e se precisa de minha bênção, a tem. O jogo está quase no fim, Adam. Em breve teremos de recolher as peças. O amor é tênue no começo, meu garoto. Se quiser mantê-la, seja tão teimoso quanto ela. É o meu conselho.

 

Kirby passava a escova pelos cabelos em gestos longos e me­tódicos. Havia ligado o rádio baixinho, de modo que o animado jazz mal passava de uma pulsação. Ao ouvir a batida na porta, ela suspirou.

— Rick, você realmente precisa dormir. Vai detestar seu estado amanhã de manhã.

Adam abriu a porta. Olhou longamente para a mulher em frente ao espelho, que trajava seda bege e um laço cor de marfim. Sem dizer nada, ela fechou e trancou a porta.

— Ah, meu Deus! — Kirby pôs a escova na penteadeira e se virou, estremecendo de leve. — Mulher nenhuma tem segurança nos dias de hoje. Veio conseguir o que deseja de mim, não é?

Adam foi até ela. Deslizou as mãos pelos cabelos sedosos e a abraçou.

 — Eu estava apenas de passagem. — Quando ela sorriu, ele levou seus lábios aos dela. — Amo você, Kirby. Mais que qual­quer uma, mais que tudo. — De repente sua boca ficou feroz, os braços apertando com força. — Nunca se esqueça disso.

 — Não esquecerei. — Mas suas palavras foram abafadas pelos lábios dele. — Só não deixe de me lembrar. Agora... — Ela se afastou alguns centímetros e começou a desfazer lentamente o nó de sua gravata. — Talvez eu deva lhe lembrar.

Ele observou sua gravata cair no chão e então ela começou a tirar o paletó dos ombros dele.

 — Pode ser boa idéia.

 — Você tem trabalhado muito — ela disse enquanto jogava seu paletó mais ou menos na direção da poltrona. — Acho que você deve ser paparicado um pouquinho.

 — Paparicado?

 — Hummm. — empurrou-o delicadamente para a cama e se ajoelhou para tirar-lhe os sapatos. Deixou-os cair negligen­temente, depois as meias, e começou a massagear-lhe os pés. — Paparicos fazem bem em pequenas doses.

Ele sentiu o prazer se espalhar por seu corpo com aquele to­que que quase poderia ser descrito como maternal. Suas mãos eram suaves, apesar dos calos. Eram mãos fortes e hábeis, que Pertenciam tanto à artista quanto à mulher. Lentamente ela foi subindo pelas pernas, depois descendo... provocando, prometen­do, até que ele ficou sem saber se deitava e aproveitava ou se a agarrava e tomava para si. Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Kirby se levantou e começou a lhe desabotoar a camisa.

 — Gosto de tudo em você — ela murmurou enquanto puxava as bordas da camisa de dentro da calça. — Já disse isso antes?

 — Não. — Ele deixou que ela desabotoasse os punhos da camisa para tirá-la.

Com toda a calma, Kirby passou a mão do tórax até o ombro. — Sua aparência. — Suavemente, beijou-lhe um lado do rosto. — Sua textura. — Depois o outro. — Seu gosto. — Abriu o cinto e foi abaixando a calça, centímetro por centímetro. — Não mudaria nada em você.

Ela sentou sobre ele de pernas abertas e começou a traçar longos, demorados beijos em seu rosto e pescoço.

— Uma vez, quando eu estava pensando em me apaixonar, cheguei à conclusão de que não havia um único homem de quem eu pudesse gostar o suficiente para tornar a coisa possível. — Sua boca parou logo acima da dele. — Estava errada.

Suaves, cálidos e lindamente tenros, seus lábios encontraram os dele. Mimar... a palavra ficou perdida em sua mente enquanto ela lhe dava mais do que qualquer homem poderia esperar, e com que poucos poderiam sonhar. A força de seu corpo e de sua mente, a delicadeza de ambos. Eram dele, e ele não teve de pedir. Seriam dele enquanto seus braços fossem capazes de abraçá-la e estar bem abertos para envolvê-la.

Sabendo apenas que amava, Kirby entregou-se de corpo e alma. O corpo dele se aqueceu sob o dela, esguio e rijo. Disciplina­do. De alguma forma a palavra a excitava. Ele sabia quem ele era e o que queria. Ele trabalharia por ambos. E ele não lhe pediria que abrisse mão de nada do que ela era para se encaixar.

Os ombros dele eram firmes. Não tão amplos a ponto de sobrepujá-la, mas bastante amplos para lhe oferecer toda se­gurança que precisasse. Ela esfregou os lábios sobre aqueles ombros. Havia músculos em seus braços, mas sutis, nada que ele fosse flexionar para mostrar superioridade, mas que estavam lá caso ela optasse por ser protegida. Ela passou os dedos por eles. Suas mãos eram hábeis, elegantemente masculinas. Mãos que não lhe impediriam de ir aonde quisesse, mas que estariam lá, estendidas, quando ela voltasse. Ela apertou os lábios sobre uma, e depois a outra.

Ninguém jamais o amara assim... com paciência, adoração. Ele não queria nada além de continuar sentindo aquelas inves­tidas longas e demoradas de seus dedos e aquele toque úmido persistente de seus lábios. Ele sentia a ambos por todos os poros. Uma experiência completa. Ele via seus cabelos negros brilhantes lhe caindo sobre a pele e ouvia seus murmúrios de aprovação enquanto ela o tocava.

A casa estava em silêncio mais uma vez, a não ser pelo som baixo e suave da música. O edredom debaixo das costas era macio. A luz era parca e confortável; a melhor iluminação para amantes. E enquanto ele estava deitado, ela o amou até que ele fosse coberto por camadas e mais camadas de prazer. Isso ele lhe retornaria.

Ele podia tocar a seda, e sua carne, sabendo que ambas eram lindas. Podia sentir o gosto de seus lábios e saber que ele jamais passaria por privações enquanto ela estivesse ali. Quando a ouviu suspirar, soube que este seria o único som que o satisfaria. O de­sejo por ele estava nos olhos dela, obscurecendo-os, ele sabia que podia viver com pouco, contanto que pudesse ver seu rosto.

A paciência começou a se desfazer em ambos. Ele podia sentir seu corpo despertar freneticamente para a vida em toda parte que ela tocava. Podia sentir sua própria tensão nascendo do desejo que só ela lhe causava. Um desejo desesperado, urgente, exclusivo. Se ele tivesse apenas mais um dia de vida, passaria cada momento lá, com Kirby em seus braços.

Ela tinha cheiro de fumaça de madeira e de flores almiscaradas, de mulher e de sexo, pronta e completa. Se ele tivesse o poder, teria congelado o tempo ali mesmo, enquanto ela se movia sobre ele à luz do luar, os olhos sóbrios de desejo, a pele brilhando contra a camisola seda.

Então ele tirou a camisola pela cabeça para que pudesse vê-la como nenhum outro homem jamais a veria novamente. Os cabelos jogados para trás eram como uma noite contrastando com a pele. Nua e ávida, ela era toda fantasia primitiva, todos os seus sonhos de uma noite de verão. Ela era tudo.

Os lábios dela se entreabriram e eles trocaram respirações afobadas. A paixão a inundou tanto que ela estremeceu e foi receber o que precisava dele, e por ele. Tudo. Tudo e mais. Com um som grave de triunfo, Kirby o trouxe para dentro de si e o conduziu. Rápida, furiosa.

Ela estava sendo continuamente impelida por seu corpo, e sua mente explodia em imagens. Tantas cores, tantos sons! Tanto fre­nesi! Arqueando o corpo para trás, ela se moveu como um trovão, mal sentindo a força com que ele a segurava pela cintura. Mas ela ouviu quando ele disse seu nome. Sentiu-o preenchê-la.

A primeira onda a inundou, seu corpo entrou em choque e depois ela foi mais longe, e mais, e mais. Não havia nada que ela não tivesse, e nada que não pudesse dar. Desacordada, ela se deixou levar.

Com as mãos nela e com o gosto dela ainda em seus lábios, Adam sentiu o corpo tremer à beira do ápice. Por um momento, um momento só, ele recuou. Pôde vê-la sobre ele, aprumada como uma deusa, com a pele úmida e cintilante, os cabelos caídos nas costas enquanto ela levantava as mãos em êxtase. Ele se lembraria disso para todo o sempre.

 

A lua já não estava mais cheia, mas sua luz era suave e bran­ca. Ainda estavam sobre o edredom, enlaçados e tão juntinhos quanto suas respirações. Com Kirby deitada sobre ele, Adam pensou em tudo que Fairchild dissera. E tudo o que poderia e não podia fazer relacionado a isso.

Lentamente seus corpos foram voltando ao normal, mas ele não conseguiu encontrar nenhuma das respostas que tanto queria. Que respostas ele poderia encontrar tomando por base mentiras e meias-verdades?

Tempo. Talvez tudo o que tivesse agora fosse o tempo. Mas quanto tempo não dependia dele. Com um suspiro, ele se virou e passou a mão pelas costas dela.

Kirby se apoiou em um cotovelo. Seus olhos já não estavam mais obscuros, e sim travessos e límpidos. Ela sorriu, tocou os próprios lábios com o dedo e depois os dele.

— Da próxima vez que aparecer na cidade, vaqueiro — ela disse, jogando o cabelo sobre o ombro — , não se esqueça de perguntar por Lulu.

Ela achou que ele fosse rir, mas ele lhe agarrou os cabelos e a segurou bem como estava. Não havia humor em seus olhos, mas a intensidade que ela tinha visto quando ele estava com a paleta na mão. Seus músculos ficaram retesados, deu para ela sentir.

— Adam?

— Não, não se mexa. — Ele forçou a mão a relaxar, e então lhe acariciou o rosto. Não podia estragar tudo com a palavra errada, o gesto errado. — Quero me lembrar de você exatamente deste jeito. Viçosa depois de fazer amor, e com o luar sobre os cabelos.

Ele tinha um medo ilógico de não mais vê-la daquela maneira; com aquele sorriso a centímetros de seu rosto. Poderia jamais sentir o calor de sua pele sobre a sua sem que nada, nada os separasse.

O pânico veio rápido e foi bem real. Incapaz de detê-lo, Adam a trouxe para si e a abraçou como se não fosse soltá-la outra vez.

 

Depois de posar por trinta minutos, Kirby se obrigou a não ser impaciente. Concordara em ceder duas horas a Adam, e trato era trato. Não queria pensar no tempo que perdera ficando parada, então, em vez disso, tentou se concentrar em seus planos de escultura quando sua obrigação terminasse. Sua Raiva estava quase pronta.

Mas o sol parecia cálido demais e brilhante demais. Sua mente ficava, com freqüência, estranhamente vazia, até que de repente ela caía em si novamente e se lembrava de onde estava.

 — Kirby. — Adam a chamou pela terceira vez e observou quando ela piscou, confusa, e o focalizou. — Pode esperar a sessão terminar para cochilar?

 — Desculpe. — Com esforço, ela limpou a mente e sorriu para ele— Estava pensando em outra coisa.

 — Não pense em nada se isso a faz dormir — ele murmurou, e pincelou a tela com escarlate. Estava certo, bem certo. Nada que ele jamais fizera parecia tão certo quanto aquela pintura. A neces­sidade de terminá-la estava se tornando uma obsessão. — Incline a cabeça para a direita novamente. Você fica saindo da pose.

— Seu feitor de escravos. — Mas ela obedeceu e tentou se concentrar.

— Só é possível trabalhar com você na base do chicote. —  Com cuidado ele começou a aperfeiçoar as dobras da parte de baixo do vestido. Queria que ficassem suaves, fluidas, mas claramente definidas. — É melhor se acostumar a posar para mim. Já tenho vários outros estudos em mente que vou querer fazer depois que nos casarmos.

Ela foi tomada por uma vertigem. Sentiu vir em ondas físicas e emocionais; não sabia bem discernir uma da outra. Sem pensar, ela soltou os braços.

 — Droga, Kirby. — Ele começou a xingar novamente quando viu que os olhos dela pareciam maiores e mais escuros. — O que foi?

 — Não pensei... Não percebi que você... — Levou a mão à cabeça que girava e caminhou pelo ateliê. As pulseiras caíram na altura do cotovelo com um som musical. — Preciso de um minuto — ela murmurou. Será que ela devia se sentir como se alguém tivesse lhe tirado o ar? Como se sua cabeça estivesse a um metro do corpo?

Adam a observou por um instante. Percebeu que ela não es­tava parecendo muito firme. E sua face estava mais corada que o normal. Levantou-se, pegou sua mão e a fez parar.

 — Você está doente?

 — Não. — Ela balançou a cabeça. Nunca ficava doente, Kirby pensou. Só um pouco cansada... e talvez, pela primeira vez na vida, totalmente devastada. Respirou fundo, procurando se convencer que dentro de um instante estaria bem. — Não sabia que você queria casar comigo, Adam.

Foi isso?, ele pensou enquanto passava as costas da mão em seu rosto. Ela não devia saber? Mas, então, ele se lembrou de que tudo acontecera muito rapidamente.

— Eu amo você. — Era simples para ele. O amor levava ao casamento e o casamento à família. Mas como ele pôde esquecer que Kirby não era uma mulher normal e que ela era tudo, menos simples? — Você me acusou de ser convencional — ele a fez lembrar, e desceu com as mãos até os ombros. — O casamento é uma instituição bastante convencional. — Para a qual talvez você não esteja pronta, ele pensou, sentindo uma breve pontada de dor. Ele tinha de lhe dar espaço se queria ficar com ela. Mas de quanto espaço ela precisava, e quanto espaço ele estava disposto a dar? — Quero passar minha vida com você. — Adam esperou até seu olhar encontrar o dele outra vez. Pa­recia que tinha ficado atônita com suas palavras... uma mulher daquelas! Adam não podia acreditar. Bela, sensual, forte. Como era possível que uma mulher como Kirby ficasse surpresa por ser desejada? Quem sabe ele tivesse agido rápido demais, muito sem jeito. — Seja como você escolher, Kirby. Talvez eu devesse ter escolhido melhor o momento, o lugar, para lhe pedir em vez de lhe dizer.

— Não é isso. — Abalada, ela levou a mão ao rosto. Era tão sólida, tão forte! — Não preciso disso. — Seu rosto enrubesceu por um momento, e balançando a cabeça ela se mexeu novamente até parar onde estivera posando. — Já me pediram em casamento antes várias vezes... além de tantas outras que me pediram algo menos que matrimônio. — Ela conseguiu sorrir. Ele a queria não só por hoje, mas pelos amanhãs também. Ele a queria como ela era. Ela sentiu as lágrimas brotando, de amor, de gratidão, mas as conteve. O momento que um desejo se realiza não é hora de chorar. — Esperei por isto a vida toda, mas não achava que ficaria tão aturdida.

Aliviado, ele foi até ela.

— Vou entender isto como um bom sinal. Ainda assim, não me importaria de ouvir um simples "sim".

— Odeio fazer qualquer coisa simples. Ela sentiu o quarto sacudir e desbotar, e o mesmo com as mãos dele em seus ombros.

— Kirby... Santo Deus, está escapando gás! — Ao levantar Para segurá-la, sentiu o cheiro forte e doce avançar sobre ele.

— Saia! Vá tomar ar! Deve ser o aquecedor. — Ele a empurrou para a porta e se debruçou sobre o antiquado mecanismo.

Ela tropeçou pelo ateliê. A porta parecia estar a quilômetros de distância, quando ela finalmente a alcançou, só teve forças para se encostar contra a pesada madeira e retomar o fôlego. O ar estava mais puro ali. Kirby respirou fundo e reuniu forças para pegar a maçaneta. Puxou, mas ela continuou fechada.

— Droga, eu disse para você sair! — Ele já estava sufocando com o gás quando a alcançou. — O gás está saindo daquela coisa!

 — Não consigo abrir a porta! — Furiosa consigo mesma, Kirby tentou de novo. Adam empurrou-lhe as mãos e tentou puxar.

— Está presa? — ela murmurou, apoiando-se nele. — Cards vai dar um jeito.

Trancados, ele concluiu. Por fora.

 — Fique aqui. — Após escorá-la na porta, Adam pegou uma cadeira e jogou contra a janela. Os vidros racharam, mas não que­braram. Mais uma vez, ele bateu com a cadeira, e de novo, até que, após resistir um pouco, o vidro quebrou. Com movimentos rápidos, ele foi pegar Kirby e segurou-lhe a cabeça perto da abertura.

 — Respire — Ordenou.

No momento ela não conseguia pensar em nada além de res­pirar ar fresco e tossir.

— Alguém nos trancou aqui, não foi?

Ele sabia que não demoraria muito para ela clarear as idéias. E que ela sabia que não adiantava tentar negar as coisas.

 — Sim.

 — Podíamos gritar por horas. — Ela fechou os olhos e se concentrou. — Ninguém nos escutaria, estamos isolados demais aqui em cima. — Com as pernas bambas, ela se encostou na parede. — Teríamos de esperar alguém dar por nossa falta e vir nos procurar.

 — Onde fica o registro principal deste aquecedor?

 — Registro principal? — Ela apertou os olhos com os dedos e se forçou a pensar. — Eu simplesmente giro aquele troço quando está frio aqui em cima... Espere aí. Tanques... têm uns tanques lá na cozinha. — Ela se virou para a janela quebrada mais uma vez, procurando lembrar que não podia passar mal. — Uma para cada torre e para cada andar.

Adam olhou para o pequeno e antiquado aquecedor. Não levaria mais muito tempo, mesmo com a janela quebrada.

 — Vamos sair daqui.

 — Como? — Se ela ao menos pudesse deitar... só por um mi­nuto... — A porta está trancada. Acho que não sobreviveríamos a um pulo dentro do canteiro de zínias de Jamie — acrescentou, olhando para baixo, onde a cadeira foi parar. Mas ele não estava ouvindo. Quando Kirby se virou, viu que Adam estava passando a mão pelas beiradas enfeitadas da soleira. O painel se abriu. — Como achou isso?

Ele a pegou pelo cotovelo e a empurrou.

 — Vamos.

 — Não consigo. — Com o que restava de força, Kirby apoiou as mãos nas paredes. O medo e a náusea duplicaram ao pensar em entrar naquele buraco escuro e úmido na parede. — Não consigo entrar aí.

 — Não seja ridícula.

Quando ele a fez entrar, Kirby resistiu e recuou.

 — Não, vá você. Vou ficar esperando você voltar e abrir a porta.

 — Escute. — Tentando afastar os vapores, ele a segurou pelos ombros. — Não sei quanto tempo vou levar para achar o cami­nho no escuro.

 — Terei paciência.

 — Você pode morrer — ele disse entre os dentes. — O aque­cedor está instável; se houver um curto circuito vai tudo pelos ares! Você já respirou gás demais.

 — Não vou entrar aí! — A histeria aflorou e ela não teve forças nem bom senso para combatê-la. Levantou a voz ao recuar dele, tropeçando. — Não posso entrar aí, não entende?

 — Espero que você entenda isso — ele murmurou, e lhe deu um golpe forte no maxilar. Sem fazer nenhum som, ela caiu em seus braços. Adam não hesitou. Jogou-a sobre o ombro e entrou na passagem secreta.

Fechou a entrada para cortar o fluxo de gás, e a passagem ficou no breu total. Segurando Kirby com um braço, Adam foi tateando pela parede. Tinha de encontrar a escada, e o primei­ro mecanismo. Buscando às cegas, testando cada passo, ele foi tocando na parede, pois sabia o que aconteceria a ambos se ele corresse e precipitasse a ambos de cabeça pela íngreme escada de pedras abaixo. Ouviu a agitação de roedores e afastou com as mãos as teias de aranha que lhe vinham no rosto. Talvez fosse melhor que Kirby estivesse inconsciente. Era mais fácil carregá-la do que teria sido arrastá-la.

Cinco minutos, depois dez e, enfim, seu pé pisou no vazio.

Cautelosamente, ele trocou Kirby de ombro, encostou o ou­tro na parede e começou a descer. Os degraus eram de pedra, e bastante traiçoeiros com iluminação. No escuro, sem corrimão para se segurar, eram mortais. Lutando contra a vontade de ir mais rapidamente, Adam se certificava bem de cada degrau antes de passar ao próximo. Ao chegar ao fundo não foi mais rápido, mas começou a passar a mão pela parede, procurando um interruptor.

O primeiro funcionou. Tinha de se concentrar em apenas res­pirar. Kirby oscilou em seu ombro quando ele se esgueirou pela passagem estreita. Xingando, Adam seguiu em frente às cegas até seus dedos esbarrarem em uma segunda alavanca. O painel se abriu apenas o suficiente para ele passar se espremendo com sua carga. Piscando ao deparar com a luz do sol, ele passou correndo pelos móveis cobertos de poeira e chegou ao corredor.

Ao chegar ao segundo andar e passar por Cards, não diminuiu o passo.

 — Desligue o gás do ateliê de Kirby pelo registro principal — ele ordenou, tossindo sem parar. — E não deixe ninguém se aproximar de lá.

 — Sim, sr. Haines. — Cards continuou a caminhar para a esca­da principal, carregando sua pilha de roupas de cama limpas.

Quando Adam chegou ao quarto de Kirby, deitou-a na cama e abriu as janelas. Permaneceu por um momento, apenas respirando, deixando o ar bater em seu rosto e aliviar os olhos. Seu estômago revirou. Forçando-se a diminuir o ritmo, a respirar pausadamente, ele se inclinou. Quando a náusea passou, voltou-se para ela.

A cor havia desaparecido. Agora ela estava pálida como o edre­dom. Ela não se mexeu. Não se mexia, ele lembrou, desde que ele batera nela. Estremecendo, apertou os dedos em sua garganta e sentiu uma pulsação lenta e firme. Ele correu até o banheiro e umedeceu uma toalha com água fria. Colocou a toalha sobre o rosto dela e falou seu nome.

Primeiro ela tossiu, violentamente. Nada poderia tê-lo aliviado mais. Quando abriu os olhos, ela ficou olhando para ele como quem não entende nada.

— Você está em seu quarto — ele disse. — Você está bem agora.

— Você me bateu.

Ele sorriu por causa da indignação em sua voz. — Achei que você suportaria melhor um soco com um queixo desses. Eu mal lhe encostei o dedo.

— Isso é o que você está dizendo. — Sentou-se cuidadosamente e tocou o queixo. Sua cabeça girou uma vez, mas ela fechou os olhos e esperou passar. — Imagino que tenha feito por merecer. Desculpe por ter dado ataque histérico.

Ele encostou a testa na dela.

— Você me deixou completamente apavorado. Acho que você é a única mulher que já recebeu uma proposta de casamento e um soco no queixo minutos depois.

— Eu detesto fazer as coisas de modo normal. — Por precisar de mais um minuto, recostou-se aos travesseiros. — Desligou o gás?

— Cards está resolvendo isso. — Claro. — Ela disse isto com calma suficiente, e então puxou o edredom com os dedos. — Até onde sei, nunca tentaram me matar antes.

Facilitava as coisas que ela entendesse e aceitasse os fatos friamente. Ele assentiu com a cabeça e tocou-lhe o rosto com a mão.

 — Primeiro chamamos um médico. Depois chamamos a polícia.

 — Não preciso de médico. Só estou um pouco enjoada agora, vai passar. — Pegou as duas mãos dele e segurou com força. — E não podemos chamar a polícia.

Ele viu algo nos olhos dela que quase o fez perder a cabeça. Teimosia.

— É o procedimento normal depois de uma tentativa de assassinato, Kirby.

Ela não piscou.

 — Farão várias perguntas irritantes e vão revirar a casa toda. Acontece em todos os filmes.

 — Isto não é brincadeira. — Ele apertou as mãos dela. — Você podia ter morrido, e teria, se estivesse lá sozinha. Não vou deixar que tentem de novo.

 — Você acha que foi Stuart?

Ela soltou um profundo suspiro. Seja objetiva, ela pensou, depois você pode fazer Adam ser objetivo.

 — Sim, acho que foi, apesar de não ter pensado que ele fosse tão ingênuo. Não há mais ninguém que poderia querer me fazer mal. Mesmo assim, não podemos provar nada.

 — É o que veremos. — Seus olhos brilharam no momento em que ele pensou na satisfação que teria de extrair uma confissão de Hiller.

Ela viu. Entendeu.

 — Você é mais primitivo do que eu imaginava. — Tocada, ela percorreu-lhe o maxilar com o dedo. — Não sabia como é legal ter alguém para derrotar os dragões por mim. Quem precisa de policiais bobos quando se tem você?

 — Não tente me enrolar.

 — Não estou tentando. — O sorriso se desfez de seus olhos e lábios. — Não estamos em posição de ligar para a polícia. Não posso responder às perguntas que eles fariam, você não enten­de? Papai tem que resolver o assunto do Rembrandt, Adam. Se tudo vazar agora, ele estará irremediavelmente comprometido. Pode ser preso. Por nada — ela disse suavemente. — Por nada eu correria tal risco.

— Ele não será preso — Adam disse sucintamente. Não im­portava quantos pauzinhos tivesse de mexer, mas daria um jeito de Fairchild permanecer ileso. — Kirby, você acha que seu pai continuaria com o que está armando ao saber disso?

 — Não sei prever sua reação. — Cansada, ela suspirou fundo e tentou fazê-lo entender. — Ele pode destruir o Rembrandt num ataque de raiva. Pode correr atrás de Stuart sozinho. Ele é capaz disso. O que isso traria de bom, Adam? — A tontura estava passando, mas a deixou fraca. Apesar de não saber, a vulnerabilidade era sua melhor arma. — Precisamos que fique assim por mais tempo.

 — O que quer dizer com ficar assim?

 — Vou falar com papai... contar o que aconteceu do meu modo, para ele não fazer drama. Harriet e Melanie virão para o jantar esta noite. Tem que esperar até amanhã.

 — Como ele pode sentar e jantar com Harriet depois de roubar algo dela? — Adam questionou. — Como ele pode fazer uma coisa dessas com uma amiga?

Os olhos dela se injetaram de dor. Ela baixou o olhar deliberadamente, mas ele já o tinha visto.

 — Não sei.

 — Desculpe.

Ela balançou a cabeça.

— Não precisa pedir desculpas. Você tem sido maravilhoso no meio disso tudo.

 — Não fui, não. — Ele apertou os olhos com as bases das mãos.

 — Deixe que eu decida isso. E me dê mais um dia. — Ela tocou os pulsos dele e esperou que ele abaixasse as mãos. — Só mais um dia, e então eu falo com papai. Talvez consigamos esclarecer tudo.

— Só um dia, Kirby. Só isso. — Ele também tinha no que pensar. Quem sabe mais uma noite lhe traria algumas respostas. — Amanhã você vai contar tudo a Philip, sem omitir detalhes. Se ele não concordar em resolver o negócio do Rembrandt até então, vou tomar o controle da situação.

Ela hesitou por um minuto. Ela disse que confiava nele. Era verdade.

 — Tudo bem.

 — E eu me entendo com Hiller.

 — Você não vai brigar com ele.

Achando graça, ele arqueou uma sobrancelha.

 — Não?

 — Adam, não quero que você se machuque. Só isso.

 — A confiança que você tem em mim é impressionante. Dando risada, ela se sentou novamente e o envolveu com os braços.

 — Meu herói. Ele jamais ousaria encostar um dedo em você.

 — Com licença, srta. Fairchild.

 — Sim, Cards. — Kirby virou a cabeça e indicou para que o mordomo entrasse.

 — Parece que por alguma razão uma cadeira foi arremessada pela janela de seu ateliê. Lamentavelmente, ela caiu sobre o canteiro de zínias de Jamie.

 — É, eu sei. Imagino que ele esteja muito irritado.

 — De fato, está, senhorita.

 — Vou pedir desculpas, Cards. Quem sabe um cortador de grama novo... Pode providenciar o conserto da janela?

 — Sim, senhorita.

 — E substitua aquele aquecedor por alguma coisa do século XX — Adam acrescentou. Ele observou Cards lhe dirigir o olhar e se voltar novamente para Kirby.

— O mais rápido possível, por favor, Cards. — Com um aceno de cabeça, o mordomo se retirou.

— Ele recebe ordens de você, não é? — Adam comentou enquanto os calmos passos  se afastavam. — Eu reparei nos olhares e acenos sutis entre vocês dois.

Ela limpou uma sujeira do ombro de sua camisa.

— Não faço idéia do que você quer dizer.

— Um século atrás Cards seria conhecido como "O homem da rainha". — Quando ela riu do termo, ele a fez se acomodar no travesseiro outra vez. — Descanse — Ordenou.

— Adam, estou bem.

 — Quer que eu seja durão outra vez? — Antes que ela pudesse responder, ele cobriu sua boca com a dele, e permaneceu assim. — Desligue a bateria um pouquinho — ele murmurou. — Acho que vou ter de chamar o médico mesmo.

 — Chantagem. — Ela o fez trazer a boca de volta para junto da sua. — Mas se você descansar comigo...

 — Mas descansar não seria o resultado neste caso. — Ele se afastou e ela reclamou com um resmungo.

 — Meia hora.

 — Certo. Eu volto.

Ela sorriu e deixou que seus olhos se fechassem.

— Estarei esperando.

 

Estava cedo demais para estrelas, e tarde demais para raios solares. De uma janela no salão, Adam observou o poente se alongando por mais alguns momentos.

Após relatar a McIntyre a tentativa de assassinato contra Kirby, ele se viu subitamente esgotado. Meias-mentiras, meias-verdades. Aquilo tinha de acabar. E acabaria, decidiu, amanhã. Fairchild teria de voltar à razão e Kirby ficaria sabendo de tudo. Para o diabo com McIntyre, o trabalho e tudo mais. Ela merecia honestidade além de tudo aquilo que ele queria lhe dar. Todo o resto, ele percebeu, não significaria nada para Kirby sem honestidade.

O sol foi se pondo mais e o horizonte explodiu em tons rosados e dourados. Pensou na mulher de Tiziano. Ela entenderia, ele pensou. Ela tinha de entender. Pensando em dar uma olhada nela novamente, Adam deu as costas à janela.

Quando chegou ao quarto dela, ouviu o som da água cor­rendo. O som simples e natural dela cantarolando no banho lhe dissolveu a tensão. Ele pensou em juntar-se a ela e então se lembrou de como ela parecia pálida e cansada. Outra hora, ele prometeu a ambos ao fechar a porta do quarto dela novamente. Outra hora ele teria o prazer de relaxar com ela naquela grande banheira de mármore.

 — Onde está aquela garota desgraçada? — Fairchild perguntou por trás dele. — Ela anda se escondendo o dia inteiro.

 — Tomando banho — Adam respondeu.

 — É melhor que ela tenha uma explicação muito boa. — Com expressão carrancuda, Fairchild pôs a mão na maçaneta.

Adam automaticamente bloqueou a porta.

— O que é?

Fairchild olhou para ele.

— Meus sapatos.

Adam olhou para baixo e viu os pés pequenos de Fairchild, com meias.

 — Acho que não estão com ela.

 — Um homem se enfia dentro de um terno apertado, se en­forca com uma gravata ridícula e não tem sapatos. — Fairchild puxou o nó ao redor do pescoço. — Isso é justo?

 — Não. Já tentou com Cards?

 — Cards não conseguiria enfiar seus enormes pés britânicos em meus sapatos. — Então ele franziu o cenho e contraiu os lábios. — Mas, pensando bem, ele estava com meu terno.

 — Eu não tenho mais argumentos.

 — O homem é cleptomaníaco — Fairchild resmungou ao perambular pelo corredor. — Se eu fosse você, ficava de olho em suas cuecas. Nunca se sabe o que ele vai pegar da próxima vez. Coquetéis em meia hora, Adam. Mexa-se.

Concluindo que uma bebida seria excelente idéia após o dia que passara, Adam foi se trocar. Ele estava ajustando o nó da gravata quando Kirby bateu na porta. Ela abriu sem esperar pela resposta, parou por um momento, posando deliberadamente na entrada: cabeça jogada para trás, um braço levantado e apoiado na ombreira da porta e o outro na cintura. A peça única colante que ela estava usando se ajustava a cada curva, caindo em dobras da altura do pescoço e abrindo completamente nas costas. Nas orelhas, esme­raldas do tamanho de quarteirões lançavam um tom de verde vivo. Ao redor da cintura, cinco correntes de ouro retorcidas.

 — Oi, vizinho. — Cintilante e resplandecente, ela foi até ele. Adam levou o dedo ao seu queixo e observou aquele rosto. Sen­do artista, ela sabia como fazer uso das cores de uma paleta de maquiagem. Sua face estava tingida com um toque de bronze, os lábios apenas ligeiramente mais escuros. — E então?

 — Você parece melhor — ele concluiu.

 — Que desculpa pobre para um elogio.

 — Como se sente?

 — Eu me sentiria bem melhor se você parasse de me exami­nar como se eu tivesse alguma doença rara e terminal e me bei­jasse como devia. — Ela lhe envolveu o pescoço com os braços e o encarou com olhos semicerrados.

Foram os cílios que ele beijou primeiro, suavemente, com uma ternura que a fez suspirar. Então os lábios dele foram descendo pela face e delicadamente pelo maxilar.

 — Adam... — Seu nome foi só um sopro no ar quando ele fez seus lábios tocarem os dela. Ela queria tudo agora. Instantanea­mente. Ela queria fogo e trovão, o prazer e a paixão. Ela queria aquele contentamento calmo e expansivo que só podia ser dado a ela. — Eu amo você — ela murmurou. — Amo você até não sobrar mais nada a não ser esse amor.

 — Mas não há mais nada a não ser isso — ele disse, quase incisivamente. — Temos uma vida inteira para isso. — Ele a afastou um pouco para pegar suas mãos e levá-las aos lábios.

Uma vida inteira, Kirby, e não é o bastante.

— Então teremos que começar logo. — Ela sentiu aquela vertigem outra vez, a cabeça leve, mas não fugiria. — Bem logo

— acrescentou. — Mas temos de esperar ao menos até depois do jantar. Harriet e Melanie devem chegar a qualquer momento.

 — Se eu pudesse escolher, ficaria sozinho com você neste quarto, fazendo amor até o amanhecer.

 — Não me tente a macular sua reputação. — Por saber que tinha de fazer isso, ela recuou e terminou de ajustar a gravata dele. Era um gesto feminino, e ele percebeu que gostava daquilo.

— Desde que eu contei a Harriet sobre sua ajuda com o Tiziano ela resolveu que você é a melhor coisa do mundo, depois de manteiga de amendoim. Eu não gostaria de estragar essa impressão fazendo você se atrasar para o jantar.

— Então é melhor irmos agora. Mais cinco minutos sozinho com você e vamos nos atrasar bem mais. — Quando ela riu, ele passou o braço no dela e a conduziu para fora do quarto. — Aliás, roubaram os sapatos de seu pai.

 

Para um observador casual, o grupo no salão parecia um pu­nhado de pessoas elegantes e cosmopolitas. Seguras, simpáticas, ricas. Olhando além dos brilhos, um olho mais atento veria a palidez da pele de Kirby, cuidadosamente disfarçada pela ma­quiagem. Quem olhasse de perto perceberia que suas bobagens simpáticas encobriam um desconforto que vinha do conflito de lealdades.

Para alguém de fora, o grupo poderia ser entendido por um aspecto diferente se a tela estivesse esticada. Quem estava no salão mal percebia os nervos de Rick, que o faziam gaguejar. O mesmo quanto ao sutil desprezo de Melanie por ele. Ambos eram os esperados. Os sorrisos de dentes arreganhados de Fairchild e as risadas animadas de Harriet cobriam o restante.

Todos pareciam relaxados, a não ser Adam. Quanto mais o tempo passava, mais ele queria ter insistido para Kirby adiar o jantar. Ela parecia frágil. Quanto mais energia ela despendia, mais frágil parecia para ele. E de uma valentia tocante. Sua de­voção a Harriet não era da boca para fora. Era algo que Adam podia ver e ouvir. Quando ela amava, como disse Fairchild, amava completamente. Devia estar dividida só de pensar no Rembrandt. Amanhã. No dia seguinte, isso terminaria.

— Adam. — Harriet deu-lhe o braço enquanto Kirby servia

drinques após o jantar. — Adoraria ver o retrato de Kirby.

— Assim que eu terminar você terá uma exibição particular.

— E até terminarem os reparos na torre, ele pensou, todos os estranhos serão mantidos longe.

— Suponho que terei de me contentar com isso. — Ela fez biquinho por um momento, e depois o perdoou. — Sente-se ao meu lado — Harriet exigiu, e espalhou no sofá o vermelho alaranjado de sua saia. — Kirby disse que eu posso paquerá-lo.

Adam percebeu que Melanie ficou ligeiramente corada com o jeito coquete da mãe. Incapaz de resistir, ele levou a mão de Harriet aos lábios.

— Preciso de permissão para paquerá-la?

— Guarde seu coração, Harriet — Kirby avisou enquanto preparava os drinques.

— Tome conta de sua vida — Harriet replicou. — Aliás, Adam, gostaria que você ficasse com meu colar de dentes de crocodilo como sinal de minha satisfação.

  •  — Santo Deus, mãe. — Melanie deu um golinho no conhaque. — Por que Adam iria querer esse troço medonho?

  •  — Sentimento — ela devolveu, sem piscar o olho. — Adam concordou em me deixar exibir o retrato de Kirby, e quero re­tribuir.

    A coroa era rápida, Adam pensou enquanto ela lhe mandava um sorriso ingênuo, e Melanie foi mantida completamente à parte do hobby que a mãe mantinha com Fairchild. Ao estudar a beleza serena de Melanie, Adam concluiu que a mãe sabia bem o que fazia. Ela jamais reagiria como Kirby. Melanie podia ter o amor e a afeição deles, mas os segredos eram mantidos entre os três, como um triângulo. Não, estranhamente satisfeito, agora era um quadrado.

    — Ele não tem que usar o colar — Harriet prosseguiu, interrompendo-lhe os pensamentos.

    — Espero que não — Melanie disse, olhando para Kirby.

    — É para dar sorte. — Harriet deu uma olhada para Kirby e então apertou o braço de Adam. — Mas talvez você já tenha toda a sorte de que precisa.

    — Quem sabe minha sorte esteja apenas começando.

     — Que desagradável eles ficarem falando em código. Kirby sentou-se no braço da poltrona de Melanie.

     — Então, por que não os ignoramos?

     

     — Seu falcão está ficando muito bom, sr. Fairchild — Rick arriscou.

     — Ah! — Era tudo que Fairchild precisava. Explodindo em bons sentimentos, ele deu a Rick uma palestra aprofundada sobre o uso do compasso de calibre.

    — Agora Rick conseguiu — Kirby sussurrou para Melanie.

    — Papai não tem piedade de público cativo.

    — Não sabia que tio Philip estava esculpindo.

    — Não toque no assunto — Kirby disse rapidamente. — Você jamais escapará. — Franziu os lábios e olhou para o elegante vestido rosa-escuro de Melanie. As linhas fluíam com o clarão de uma enfeitada fivela na cintura. — Melly, será que você teria tempo de me desenhar um vestido?

    Surpresa, Melanie levantou os olhos.

    — Claro, adoraria. Mas tenho tentado convencê-la por anos e você sempre se recusou a tirar as medidas.

    Kirby deu de ombros. Um vestido de casamento era outro assunto, riu por dentro. Ainda assim, não mencionou os planos que tinha com Adam. Seu pai saberia primeiro.

     — Costumo comprar por impulso, qualquer coisa que me interesse na hora.

     — De Goodwill a Rive Gauche — Melanie murmurou. — En­tão, só pode ser ocasião especial.

    — Estou aprendendo com você — Kirby saiu pela tangente.

    — Você sabe que eu sempre admirei seu talento, é só que eu sabia que não teria paciência para todas as preliminares. — Ela riu — Você acha que pode desenhar um vestido que me faça parecer recatada?

    — Recatada? — Harriet interrompeu, fazendo biquinho com a palavra. — A pobre Melanie precisaria de uma feiticeira para conseguir isso. Até quando criança, vestindo aquele encantador vestido de musselina, você parecia capaz de enfrentar uma tribo de índios Comanche. Philip, você precisa me emprestar aquela pintura de Kirby para a galeria.

     — Veremos. — Os olhos dele cintilaram. — Primeiro você vai precisar me amaciar um pouco. Sempre tive uma profunda afeição por aquela tela. — Deu um suspiro pesado e recostou-se com seu drinque na mão. — Seu valor não está na superfície.

     — Ele ainda reclama do cachê que cobrei para posar. — Kir­by sorriu com doçura para o pai. — Ele esquece que eu jamais cobrei dos outros.

     — Você nunca posou para os outros — Fairchild relembrou.

     — Mas também nunca lhes dei permissão para tal.

     — Melly posou para mim por pura bondade de seu coração.

     — Melly é mais legal do que eu — Kirby disse simplesmente. — Gosto de ser egoísta.

     — Criatura sem coração — Harriet disse brandamente. — É muito egoísmo de sua parte ensinar aquelas crianças deficientes a esculpir durante o verão.

    Kirby percebeu o olhar surpreso de Adam e se virou, descon­fortável.

    — Harriet, pense na minha reputação.

    — Ela é sensível em relação a suas boas ações — Harriet disse a Adam, apertando-lhe o joelho.

     — Eu simplesmente não tinha mais o que fazer. — Dando de ombros, Kirby se virou para o outro lado. — Vai a Saint Moritz este ano, Melly?

    Fraude, Adam pensou ao observá-la mudar o centro da conversa de si mesma. Uma bela e sensível fraude. E ao perceber isso, ele a amou ainda mais.

    Quando Harriet e Melanie estavam para ir embora, Kirby estava lutando contra uma enorme dor de cabeça. Tensão demais ela sabia, mas não admitiria. Podia dizer a si mesma que precisava apenas de uma boa noite de sono, e quase acreditou nisto.

    — Kirby. — Harriet serpeou sua manta de quase dois metros sobre o ombro e então pegou no queixo de Kirby. — Você parece cansada e um pouco pálida. Não a vejo ficar pálida desde que ficou gripada aos 13 anos. Lembro de você xingar, dizendo que jamais ficaria doente de novo.

    — Após aquele remédio nojento que você me enfiou garganta abaixo, não podia mesmo ficar doente. Estou bem. — Mas passou os braços ao redor do pescoço de Harriet e permaneceu assim. — Estou bem, mesmo.

     — Hummm. — Por sobre sua cabeça, Harriet franziu o cenho para Fairchild. — Você devia pensar na Austrália. Vamos dar um pouco de cor a essas bochechas.

     — Farei isso. Amo você.

     — Vá dormir, filha — Harriet murmurou.

    No momento que a porta se fechou, Adam pegou o braço de Kirby. Ignorando o pai e Rick, ele começou a empurrá-la escada acima.

     — Você tem de ir para a cama.

     — Não era para você me puxar pelos cabelos em vez do braço?

     — Outra hora, quando eu estiver mais mal-intencionado. — Ele parou na porta do quarto dela. — Você vai dormir.

     — Já cansou de mim?

    As palavras mal haviam saído de sua boca quando ele cobriu seus lábios com os dele. Abraçando-a bem junto, ele se deixou levar por um momento, liberando as carências, os desejos, o amor. Dava para ele sentir seu coração batendo, seus ossos der­retendo.

    — Não vê como estou cansado de você? — Ele a beijou novamente, emoldurando-lhe o rosto com as mãos. — Você precisa perceber como me deixa entediado.

    — Tem algo que eu possa fazer? — ela murmurou, enfiando as mãos dentro do paletó dele.

    — Descanse. — Ele a pegou pelos ombros. — Esta é sua última oportunidade de dormir sozinha.

    — Vou dormir sozinha?

    Não era fácil para ele. Queria devorá-la, queria deliciá-la. Que­ria, mais que tudo, pôr as cartas na mesa antes de fazerem amor novamente. Se ela não estivesse parecendo tão esgotada, tão exausta, ele teria contado tudo ali mesmo.

    — Talvez isso a deixe chocada — ele disse suavemente. — Mas você não é a Mulher Maravilha.

     

    — Você vai ter uma boa noite de sono. Amanhã. — Ele pegou as mãos dela e aquele olhar, aquela súbita intensidade, a deixaram confusa. — Amanhã, Kirby, vamos conversar.

    — Sobre o quê?

    — Amanhã — ele repetiu, antes que mudasse de idéia. — Agora descanse. — Ele a empurrou delicadamente para o quarto. — Se não estiver se sentindo melhor amanhã, ficará de cama e será paparicada.

    Ela conseguiu dar um último sorriso ferino.

    — Promete?

     

    Depois que Kirby fora jogada na cama e se revirara por mais de uma hora, ficou claro que não descansaria como todos queriam que ela fizesse. Seu corpo estava pesado, mas sua mente se recusava a entregar os pontos.

    Ela tentou. Por vinte minutos ficou recitando poesias cretinas. Fechou os olhos, contou 527 camelos. Ligou o rádio da cabe­ceira e ouviu música de câmara. E no final de tudo continuava acordada.

    Não era medo. Se Stuart realmente tentou matá-la, não con­seguiu. Ela era esperta e tinha Adam. Não, não era medo.

    O Rembrandt. Não podia pensar em mais nada depois de ver Harriet rindo, após se lembrar de como Harriet cuidou dela quando pegou a gripe e da carinhosa e totalmente desnecessária conversa de mulher para mulher que tiveram quando ela virou mocinha.

    Kirby sofria a falta da mãe, e apesar de ela ter morrido quando Kirby ainda era criança, a lembrança permanecia perfeitamente clara. Harriet não fora uma substituta. Harriet simplesmente fora Harriet. Kirby a amava simplesmente por isso.

    Como conseguiria dormir?

    Irritada, Kirby se revirou, deitando de costas, e ficou olhando para o teto. Talvez, quem sabe, pudesse fazer uso de sua insônia e organizar tudo, para tentar entender o que estava aconte­cendo.

    Seu pai, ela tinha certeza, não faria nada para magoar Harriet sem razão. Será que a vingança de Stuart era razão suficiente? Após um momento, ela concluiu que não fazia sentido.

    Harriet fora para a África; isso foi primeiro. Quase duas se­manas depois de Kirby desfazer o noivado com Stuart. Depois  1 ela contou ao pai das ameaças de chantagem de Stuart e ele não se preocupou. Ele disse, Kirby lembrava, que Stuart não estava em posição de causar problemas.

    Então fazia sentido presumir que eles já tivessem começado os planos de trocar as telas. Vingança estava fora de questão.

    Então, por quê?

    Não foi por dinheiro, pensou Kirby. Não foi pelo desejo de ter a tela para si. Este não era seu estilo; ela sabia melhor do que ninguém o que ele pensava sobre ganância. Mas roubar de uma amiga não era, tampouco.

    Se ela não podia encontrar a razão, talvez pudesse descobrir a tela.

    Ainda olhando para o teto, ela começou a pensar em tudo que o pai tinha dito. "Tantos comentários ambíguos", ela refle­tiu. Mas aquilo era típico dele. Em casa; isto era certo. Em casa, escondido com a devida afeição e respeito. Quantas centenas de possibilidades ela poderia cogitar em uma só noite?

    Bufou de indignação e se revirou mais uma vez. Deu uma última apalpada no travesseiro e fechou os olhos. O bocejo, ela sentiu, era um sinal de esperança. Ao se aninhar mais, uma vaga lembrança se manifestou.

    Pensaria naquilo amanhã... Não, agora, ela pensou, e rolou na cama de novo. Ia pensar agora. O que seu pai estava dizendo a Adam quando ela entrou no ateliê na noite após a troca do Tiziano? Algo... Algo... quanto a envolvê-la figurativamente.

    — Droga dos infernos — ela resmungou, e apertou os olhos, concentrando-se. — Que diabo isso queria dizer? — Quando estava prestes a desistir, a idéia surgiu. Ela arregalou os olhos e se levantou. — Seria bem seu estilo!

    Pegou um robe e saiu correndo do quarto.

    Hesitou por um momento no corredor. Talvez devesse acordar Adam e lhe contar sua teoria. Mas ele não havia tido um dia dos mais fáceis. Se ela conseguisse algo de concreto, o acordaria. E se estivesse errada, seu pai a mataria.

    Foi rapidamente até o ateliê do pai e depois desceu para a sala de jantar.

    Em nenhum dos trajetos se deu ao trabalho de acender as luzes. Não queria que alguém saísse do quarto para perguntar o que ela estava fazendo. Carregando um pano velho, uma garrafa e uma pilha de jornais, ela foi silenciosamente pelo escuro. Ao chegar à sala de jantar, acendeu as luzes. Ninguém a investigaria no térreo, a não ser Cards. Ele jamais a questionaria. Ela traba­lharia rápido.

    Kirby espalhou os jornais em grossos blocos sobre a mesa de jantar. Pôs a garrafa e o pano sobre a mesa e se voltou para seu próprio retrato.

    — Você é esperto demais para seu próprio bem, papai — ela murmurou, observando a pintura. — Eu jamais saberia dizer se isto é uma duplicata. Só há um jeito.

    Depois de tirar a tela da parede, Kirby a colocou sobre os blocos de jornal.

    — Seu valor não está na superfície — ela murmurou. Não foi isso que ele disse a Harriet. Ele foi presunçoso. Foi presunçoso desde o começo. Kirby abriu a garrafa e derramou o líquido no pano. — Perdoe-me, papai — disse baixinho.

    Com o mais leve dos toques — um toque de perita — ela começou a remover camadas de tinta do canto inferior. Minutos se passaram. Se ela estivesse errada, queria que o dano fosse mí­nimo. Mas, se estivesse certa, tinha algo inestimável nas mãos.

    De uma maneira ou de outra, não podia se apressar.

    Umedeceu o pano e esfregou mais uma vez. Desapareceu a arrojada assinatura do pai, e depois a luminosa grama de verão e a base.

    E lá estava, onde só devia haver uma tela, o marrom-escuro e sombrio. Apareceu uma letra, depois outra. Não era necessário mais nada.

    — Maldita droga do inferno — ela murmurou. — Eu tinha razão.

    Debaixo dos pés da garota que ela fora um dia estava a assi­natura de Rembrandt. Ela pararia por ali. Tão cuidadosamente quanto ao abrir, ela tampou a garrafa.

    — Quer dizer, papai, que o senhor colocou o Rembrandt para dormir debaixo de uma cópia de meu retrato. Só mesmo o senhor para ter a idéia de copiar a si mesmo para se dar bem.

    — Muita esperteza.

    Kirby se virou rapidamente para a escuridão atrás dela que vinha do lado de fora da sala de jantar. Ela conhecia aquela voz; não tinha medo. Seu coração começou a bater forte e as sombras se mexeram. "E agora?", ela perguntou rapidamente. Como ela explicaria aquilo?

    — A esperteza está no sangue, não é, Kirby?

    — Foi o que me disseram. — Ela tentou sorrir. — Gostaria de explicar. É melhor você sair do escuro e se sentar. Pode levar...  — Ela parou quando a primeira parte do convite foi aceita. Olhou para o cano do pequeno e lustroso revólver. Levantando os olhos da arma, ela olhou para os delicados e claros olhos azuis.

     — Melly, o que está havendo?

    — Você parece estar surpresa. Fico contente. — Com um sorriso de satisfação, Melanie apontou a arma para a cabeça de Kirby. — Talvez você nem seja tão esperta assim, no final das contas.

    — Não aponte isto para mim.

    — Eu quero apontar para você. — Ela abaixou a arma para o peito. — E farei mais se você se mexer.

    — Melly. — Ela não estava com medo, ainda não. Estava confusa, até irritada, mas não estava com medo daquela mulher com quem fora criada. — Afaste este troço e se sente. O que está fazendo aqui a esta hora da noite?

     — Duas razões. Primeira, para ver se eu encontrava algum traço da pintura que, tão convenientemente, encontrou para mim. Segunda, para terminar o trabalho que deu errado esta manhã.

     — Esta manhã? — Kirby deu um passo à frente e então con­gelou ao ouvir o clique rápido e letal. "Santo Deus, será que está mesmo carregada?" — Melly...

     — Acho que calculei mal, senão você já estaria morta. — O elegante vestido de seda cor-de-rosa fez um leve sussurro quando ela deu de ombros. — Conheço as passagens muito bem. Lembra que você costumava me levar para lá quando éramos crianças... antes de você entrar lá com uma lanterna defeituosa. Eu mu­dei as pilhas dela, sabe. Nunca lhe disse isso, não é? — Ela riu enquanto Kirby permaneceu em silêncio. — Usei as passagens esta manhã. Quando tive certeza de que você e Adam estavam lá, saí e liguei o gás pelo registro principal. Já havia quebrado o interruptor do mecanismo.

     — Você não pode estar falando sério. — Kirby passou a mão pelos cabelos.

     — Não poderia falar mais sério, Kirby.

     — Por quê?

     — Primeiro, por dinheiro, é claro.

    — Dinheiro? — Ela teria rido, mas sua garganta estava fechando. — Mas você não precisa de dinheiro.

     — Você é tão convencida. — A peçonha transpareceu. Kir­by pensou como jamais percebera antes. — Sim, eu preciso de dinheiro.

     — Você não quis receber pensão do seu ex-marido.

     — Ele não me daria um centavo — Melanie corrigiu. — Foi ele quem cortou comigo, e como me flagrou em adultério, eu não estava em posição de levá-lo ao tribunal. Ele me deu um divór­cio discreto e tranqüilo para que nossas reputações não fossem arranhadas. E, a não ser por um incidente, eu fui bem discreta Stuart e eu somos sempre muito cuidadosos.

     — Stuart? — Kirby levantou a mão para esfregar a testa. — Você e Stuart?

     — Somos amantes faz mais de três anos. As perguntas estão pipocando por sua cabeça, não estão? — Divertindo-se, Melanie deu um passo à frente. O aroma de Chanel a seguia. — Foi mais prático para nós fingirmos que éramos apenas conhecidos. Eu convenci Stuart a pedi-la em casamento. Minha herança defi­nhou, é quase nada. Seu dinheiro satisfaria muito bem meus gostos e os de Stuart. E estaríamos mais perto de tio Philip.

    Ela ignorou o restante e foi direto ao ponto mais impor­tante.

     — O que você quer de meu pai?

     — Descobri o joguinho que ele e minha mãe vêm jogando há anos. Não sei dos detalhes, mas descobri o bastante para poder usar isso se preciso for. Achei que estava na hora de usar o talento de seu pai em benefício próprio.

     — Você planejou roubar sua própria mãe.

     — Não seja tão certinha. — A voz dela era gélida. A arma estava firme. — Seu pai a traiu sem pensar duas vezes, e nos enganou ainda por cima. Agora você resolveu esse probleminha para mim. — Com a mão livre, fez um gesto em direção à pin­tura. — Eu devia ficar contente por falhar hoje de manhã. Anda estaria procurando pela tela.

    De alguma maneira ela lidaria com a situação. Kirby começou pelo básico.

     — Melly, como você seria capaz de me ferir? Fomos amigas a vida inteira.

     — Amigas? — A palavra soou obscena. — Eu a odeio desde que me entendo por gente.

     — Não...

     — Odeio — Melanie repetiu, friamente desta vez e transpa­recendo verdade. — As pessoas sempre ficaram ao seu redor, os homens sempre a preferiram. Minha própria mãe preferia você.

    — Não é verdade. — Será que a coisa chegava tão fundo assim? Kirby sentiu a culpa invadi-la. Será que ela deveria ter percebido isso antes? — Melly... — Mas quando ela começou a se aproximar, Melanie fez um gesto com a arma. — Melanie, não seja tão rígida e formal... Melanie, onde está seu senso de humor? — Seus olhos se apertaram.

    — Ela nunca disse com todas as letras que eu devia ser mais parecida com você, mas era isso que ela queria.

    — Harriet ama você...

     — Ama? — Melanie cortou Kirby com uma risada. — Não estou nem aí para o amor. Ele não compra o que preciso. Você pode ter me tomado a mãe, mas esta foi uma transgressão leve. Os homens que você me arrancou debaixo do nariz, um atrás do outro, foram coisa muito pior.

     — Jamais lhe arranquei homem nenhum. Jamais demonstrei interesse em ninguém em quem você tivesse interesse sério.

     — Houve dezenas deles — Melanie corrigiu. Sua voz era dura como vidro. — Você sorria, dizia alguma coisa idiota e eu ficava esquecida. Você nunca teve minha beleza, mas usava este seu suposto charme para seduzi-los, ou, então, ficava dura como uma pedra de gelo e conseguia o mesmo resultado.

     — Eu devo ter sido simpática com quem você gostava — Kir­by disse rapidamente. — Se eu ficava dura como pedra era para desencorajá-los. Santo Deus, Melly, eu jamais faria nada para magoá-la. Eu amo você.

    — Não preciso mais do seu amor. Já me serviu o suficiente. Ela sorriu lentamente quando as lágrimas brotaram dos olhos

    de Kirby. — Só lamento que você não tenha se apaixonado por Stuart. Eu queria vê-la ficar caída por ele, sabendo que ele me preferia... que teria casado com você só porque eu quis que casasse. Quando você foi encontrar com ele naquela noite, eu quase saí do quarto só pelo prazer de ver sua cara. Mas... — Ela deu de ombros. — Nós tínhamos planos de longo prazo.

     — Você me usou — Kirby disse baixinho quando não conse­guiu mais negar. — Você fez Stuart me usar.

     — Claro. Ainda assim, não foi muito esperto de minha parte voltar de Nova York para passar o final de semana com ele.

     — Por que, Melanie? Por que fingiu estes anos todos?

     — Você era útil. Desde criança eu sabia disso. Depois, em Paris, você me abriu portas, e depois a mesma coisa em Nova York. Foi até por sua causa que passei um ano em meio ao luxo com Carlyse. Você não dormiu com ele, nem casou com ele. Eu fiz as duas coisas.

     — E é só isso? — Kirby murmurou. — Só isso?

     — Só isso. Você não é mais útil, Kirby. Na verdade, você é uma inconveniência. Planejei sua morte como aviso para tio Philip, mas agora é apenas uma necessidade.

    Ela quis se virar, mas não podia.

    — Como pude conhecê-la a vida toda e não ver isso? Como você pode ter me odiado sem demonstrar?

    — Você deixa as emoções dominarem sua vida, eu, não. Pegue a tela, Kirby. — Ela fez um gesto com a arma. — E cuidado com ela. Stuart e eu recebemos uma proposta excelente por ela. Se você gritar, eu atiro e saio com a tela pela passagem secreta antes que alguém desça.

     — O que vai fazer?

     — Vamos para a passagem secreta. Você vai sofrer uma queda terrível e quebrar o pescoço, Kirby. Vou levar a tela para casa e esperar que me avisem do acidente.

    Kirby ficou paralisada. Se ao menos tivesse acordado Adam... Não, se ela o tivesse acordado, ele também estaria com uma arma apontada para ele.

     — Todo mundo sabe como me sinto em passagens secretas.

     — Será um mistério. Quando encontrarem o espaço vazio na parede, saberão que o Rembrandt foi a causa. Stuart e eu seremos os primeiros alvos, mas ele está fora da cidade há três dias. Eu vou ficar devastada pela morte de minha mais querida e antiga amiga. Vou precisar passar meses na Europa para me recuperar da dor.

    — Você pensou em tudo. — Kirby descansou contra a mesa.

    Mas é capaz de matar, Melly? — Lentamente, fechou os dedos ao redor da garrafa, tirando a tampa com o polegar. — Assassinato cara a cara, não por controle remoto como hoje de manhã.

    — Ah, sim. — Melanie sorriu lindamente. — Prefiro assim. Acho melhor com você sabendo quem vai matá-la. Agora pegue a tela, Kirby. Está na hora.

    Com um movimento rápido do braço, Kirby jogou a mistura de terebintina sobre o pescoço e o vestido de Melanie. Quando Melanie levantou a mão para se proteger, Kirby deu o bote. Caí­ram juntas rolando no chão, a arma imprensada entre ambas.

     

     — Como assim Hiller está em Nova York desde ontem? — Adam questionou. — O que aconteceu hoje de manhã não foi acidente. Ele teve algo a ver com isso.

     — De jeito nenhum. — Em poucas palavras, McIntyre aca­bou com a teoria de Adam. — Tenho um homem de confiança de olho nele. Posso lhe dar o nome do hotel em que Hiller está. Posso lhe dar o nome do restaurante onde ele almoçou e o que ele comeu enquanto vocês estavam jogando cadeiras pela janela. Ele tem um álibi, Adam, o que não quer dizer que não tenha arranjado tudo.

     — Droga. — Adam abaixou o transmissor enquanto reorga­nizava as idéias. — Não estou gostando disso, Mac. Lidar com Hiller é uma coisa, mas é outra história se ele tiver um parceiro ou se estiver pagando um matador profissional para fazer seu serviço sujo. Kirby precisa de proteção, de proteção oficial. Quero-a fora disso.

     — Vou providenciar. O Rembrandt...

     — Não estou nem aí para o Rembrandt — Adam replicou. - Mas ele estará em minhas mãos amanhã, nem que eu tenha que pendurar Fairchild pelos polegares.

    McIntyre deu um suspiro de alívio.

     — Assim é melhor. Você estava me deixando nervoso, pensei que você havia se amarrado na Fairchild.

     — Eu estou amarrado na Fairchild— Adam respondeu serena­mente. — Então é melhor providenciar para que ela fique fora... — Ele ouviu um tiro. Um, acentuado e claro. O tiro ecoou em sua cabeça. — Kirby! — Ele não pensou em mais nada; soltou o transmissor no chão e saiu correndo.

    Chamou-a pelo nome outra vez enquanto descia as escadas correndo. Mas sua única resposta foi o silêncio. Chamou enquanto corria feito louco pela barafunda de recintos do térreo, mas ela não respondeu. Quase cego de terror, com sua própria voz ecoando como um deboche, ele correu, acendendo as luzes ao passar, até que a casa estava toda acesa como em uma come­moração. Disparando em direção à sala de jantar, ele quase caiu sobre as duas silhuetas no chão.

     — Ah, meu Deus!

     — Eu a matei! Ah, Deus, Adam, me ajude! Acho que a ma­tei! — Com lágrimas correndo pelo rosto, Kirby segurava um guardanapo de linho ensopado de sangue no lado de Melanie. A mancha se espalhava pela seda cor-de-rosa do vestido e pela mão de Kirby.

     — Mantenha a pressão firme. — Ele não fez perguntas, mas pegou um guardanapo de linho do bufê atrás dele. Afastou Kirby e foi sentir o pulso. — Está viva. — Apertou mais guardanapos na lateral do corpo de Melanie. — Kirby...

    Antes que ele pudesse falar de novo, instalou-se o caos. O restante da casa foi parar na sala de jantar, vindos de todas as direções. Polly deu um grito infinito.

    — Chame uma ambulância — Adam ordenou a Cards, e O mordomo virou-se imediatamente para obedecer. — Faça-a calar a boca, ou tire-a daqui — ele disse a Rick, referindo-se a Polly

    Recuperando-se rapidamente, Fairchild ajoelhou ao lado da filha e da filha de sua melhor amiga.

    — Kirby, o que aconteceu aqui?

    — Tentei tirar a arma dela. — Ela lutou para respirar ao ver sangue em suas mãos. — Nós caímos. Eu não... papai, nem sei qual de nós duas puxou o gatilho. Ah, Deus, nem sei. — Melanie estava armada? — Firme como uma rocha, Fair­child segurou Kirby pelos ombros e a fez olhar para ele. — Por quê?

    — Ela me odeia. — Sua voz ficou embargada, mas se estabi­lizou ao olhar para o rosto do pai. — Ela sempre me odiou, e eu nunca soube. Foi o Rembrandt, papai. Ela planejou tudo.

    — Melanie? — Fairchild olhou para Kirby e para o corpo incons­ciente no chão. — Ela estava por trás disso. — Ele ficou em silêncio por um momento apenas. — Qual o estado dela, Adam?

     — Não sei, droga. Sou artista, não sou médico. — Havia fúria em seus olhos e sangue em suas mãos. — Podia ter sido Kirby.

     — Sim, tem razão. — Os dedos de Fairchild apertaram os ombros da filha. — Tem razão.

     — Eu achei o Rembrandt — Kirby murmurou. Se fora o cho­que que a deixara de cabeça leve, não cederia a ele. Forçou-se a pensar e falar com clareza.

    Fairchild olhou para o espaço vazio na parede e depois para a mesa onde estava a tela.

    — Achou mesmo.

    Estalando a língua, Tulip tirou Fairchild do caminho e pegou Kirby pelo braço. Ignorando todos os outros, ela fez Kirby se levantar.

    — Venha comigo, meu amor. Venha agora comigo, boa garota. Sentindo-se impotente, Adam observou Kirby ser afastada enquanto se esforçava para conter o sangramento.

     — Você deve ter uma explicação muito boa — ele disse entre os dentes ao olhar para Fairchild.

     — Não é hora para explicações a esta altura — ele murmurou. Levantou-se bem lentamente. O som das sirenes rompeu o silêncio. — Vou ligar para Harriet.

    Quase uma hora se passou até que Adam pudesse lavar o sangue das mãos. Ainda inconsciente, Melanie estava, a toda velocidade, a caminho do hospital. Ele só pensava em Kirby agora, e saiu do quarto para encontrá-la. Quando chegou ao térreo, encontrou uma discussão exaltada. Apesar de os gritos partirem de um só lado, o ruído vibrava pelo corredor.

     — Quero ver Adam Haines, e quero vê-lo imediatamente!

     — Entrando de penetra, Mac? — Adam se aproximou e parou ao lado de Cards.

     — Adam, graças a Deus. — O pequeno e corpulento homem com cara de brigão e olhos desarmados passou a mão nos cabelos desgrenhados. — Não sabia o que havia acontecido com você. Pode dizer a esta parede para me deixar passar?

     — Tudo bem, Cards. — Lançou um olhar inexpressivo. — Ele não é repórter. Eu o conheço.

     — Muito bem, senhor.

     — Que diabo está acontecendo? — McIntyre questionou quando Cards saiu caminhando pelo corredor. — Quem foi que saiu daqui dentro de uma ambulância? Droga, Adam, achei que fosse você. A última coisa que eu soube foi de você gritar e interromper a transmissão.

     — Foi uma noite dura. — Adam pôs a mão em seu ombro e o conduziu ao salão. — Preciso de uma bebida. — Indo direto ao bar, Adam serviu-se, bebeu e se serviu de mais. — Beba, Mac — ele convidou. — Isto tem de ser melhor que o troço que você anda comprando naquela pousada de estrada. Philip — ele con­tinuou ao ver Fairchild entrar no recinto. — Imagino que você vá querer uma dose.

     — Sim. — Com um aceno de cabeça para McIntyre, e sem perguntas, Fairchild aceitou o copo que Adam ofereceu.

     — É melhor nos sentarmos. Philip Fairchild — Adam prosse­guiu enquanto Fairchild se acomodava — , este é Henry McIntyre, investigador da companhia de seguros Commonwealth.

     — Ah, sr. McIntyre. — Fairchild bebeu metade de seu uísque em um gole só. — Mas primeiro, Adam, satisfaça minha curiosidade. Como você se envolveu com a investigação?

    Não é a primeira vez que trabalho para Mac, mas é a última. — Ele lançou a McIntyre um olhar calmo, mas revestido de aço. — Tem a ver com o fato de sermos primos — acrescentou. — Em segundo grau.

    — Parentes. — Fairchild deu um sorriso intencional, e depois se voltou para McIntyre com um sorriso charmoso.

    — Você sabia por que eu estava aqui — disse Adam. —

    Como?

    — Bem, Adam, meu garoto, não tem nada a ver com sua astúcia. — Fairchild virou o resto do uísque, e então se levantou para encher o copo. — Eu esperava que alguém viesse. Você foi o único que apareceu. — Ele se sentou outra vez e deu um suspiro.

    — Simples assim.

     — Esperando?

     — Alguém pode me dizer quem estava naquela ambulância?

    — McIntyre interrompeu.

    — Melanie Burgess. — Fairchild olhou para o uísque no copo. — Melly. — Ele sabia que doeria, por muito tempo. Para ele, para Harriet e para Kirby. Era melhor começar a lidar com aquilo.

    — Ela levou um tiro quando Kirby tentou tirar a arma dela... a arma que ela estava apontando para minha filha.

    — Melanie Burgess — McIntyre ponderou. — Isto casa com a informação que tive hoje. Informação — acrescentou para Adam

    que eu ia lhe dar quando você interrompeu a transmissão. Gostaria de começar do começo, sr. Fairchild. Imagino que a polícia esteja a caminho.

    — Sim, não há como escapar disso. — Fairchild deu um gole no uísque e começou a discutir como lidaria com a situação. Então ele viu que não tinha mais a atenção de McIntyre. Ele estava olhando para a porta.

    Vestindo calça jeans e blusa branca, Kirby estava parada na entrada da porta. Estava pálida, mas seus olhos estavam sombrios.

    Era linda. Foi a primeira coisa que McIntyre pensou. A segunda foi que ela era o tipo de mulher que pode esvaziar a cabeça de um homem como um homem sedento esvazia uma garrafa.

    — Kirby. — Adam se levantou e cruzou o recinto. Segurou-lhe as mãos. As dela estavam frias, mas firmes. — Você está bem?

    — Sim. E Melanie?

    — Os paramédicos cuidaram de tudo. Tive a impressão que o ferimento não é tão grave quanto parece. Vá deitar — ele murmurou. — Esqueça disso por enquanto.

    — Não. — Ela balançou a cabeça e conseguiu dar um sorriso frágil. — Estou bem, mesmo. Já me lavaram, me apalparam e me deram licor, apesar de eu não me importar em beber mais um pouco. A polícia vai querer me interrogar. — Olhou para McIntyre. Não perguntou, simplesmente presumiu que ele fosse da polícia. — Precisa falar comigo?

    Foi quando ele percebeu que a estava olhando fixamente. McIntyre limpou a garganta e se levantou.

    — Gostaria de ouvir a história de seu pai primeiro, srta. Fairchild.

    — E não queremos todos? — Esforçando-se para manter o equilíbrio, ela caminhou para a poltrona do pai. — Vai pôr as cartas na mesa, papai, ou preciso arrumar um advogado?

    — Não é preciso, minha doçura. — Ele pegou sua mão e segurou. — O começo — ele continuou com um sorriso para McIntyre. — Acho que começou poucos dias antes de eu e Harriet pegarmos um vôo para a África. Ela é uma mulher distraída. Teve de retornar à galeria uma noite para pegar uns papéis que esqueceu. Quando viu a luz no escritório de Stuart, foi lhe dar uma bronca por trabalhar até tarde. Mas acabou ouvindo por acidente sua conversa ao telefone e ficou sabendo de seus planos para roubar o Rembrandt. Distraída, mas arguta, Harriet saiu e deixou Stuart pensar que seus planos seguiam sem ninguém saber. — Ele sorriu e apertou a mão de Kirby. — Mulher inteligente, veio direto à procura de um amigo conhecido por sua lealdade e mente astuta.

    — Papai. — Com uma risada de alívio, ela se curvou e beijou-lhe a cabeça. — Vocês estavam trabalhando juntos, eu devia saber.

    — Desenvolvemos um plano. Talvez não muito sabiamente, decidimos não envolver Kirby nele. — Olhou para ela. — Devo pedir desculpas?

    — Nunca.

    Mas os dedos passando em sua mão disseram por ele.

    — O relacionamento de Kirby com Stuart nos ajudou a tomar

    essa decisão. E sua ocasional falta de visão. Isto é, quando ela não concorda com meu ponto de vista.

    — Acho que vou aceitar as desculpas, afinal.

    — Seja como for. — Levantando-se, Fairchild começou a caminhar pelo recinto, as mãos às costas. Kirby concluiu que aquela era sua versão do Sherlock Holmes, e recostou-se para apreciar o espetáculo. — Harriet e eu sabíamos que Stuart não era capaz de armar e concretizar um roubo desses sozinho. Harriet não fazia a menor idéia de com quem ele estava falando ao telefone, mas meu nome foi citado. Stuart disse que ele tinha, ah, me "sondado quanto à idéia de criar uma cópia da pintura". — Seu rosto resvalou facilmente para uma expressão de irritação. — Não faço idéia de por que ele foi pensar que um homem como eu faria uma coisa tão indigna e desonesta.

    — Incrível — Adam murmurou, e ganhou um sorriso ofuscante de pai e filha.

    — Decidimos que eu concordaria, após uma barganha por pagamento. Então eu teria o original comigo e daria a cópia a Stuart. Cedo ou tarde seu cúmplice seria forçado a aparecer para tentar recuperá-la. Enquanto isso, Harriet daria parte do roubo, mas se recusaria a registrar queixa. Em vez disto, ela exigiria que a companhia de seguros agisse com discrição. Relutantemente, ela lhes falou de sua suspeita de que eu estivesse envolvido, garantindo assim que a investigação fosse centrada em mim e, por associação, a Stuart e seu cúmplice. Escondi o Rembrandt sob uma cópia da minha pintura de minha filha, e guardei o original em meu quarto. Sou um sentimental.

     — E por que a sra. Merrick simplesmente não contou a verdade à polícia e à seguradora? — McIntyre questionou após pensar na explicação.

     — Porque eles podiam ser rápidos. Sem ofensa — Fairchild acrescentou indolentemente. — Stuart podia ser pego, mas o cúmplice talvez jamais fosse. E confesso que era a intriga que interessava a ambos. Era irresistível. Claro que vocês vão querer corroborar minha história.

     — É claro — McIntyre concordou, e ficou imaginando se seria capaz de lidar com outro insano.

     — Nós teríamos feito as coisas de modo diferente se tivés­semos idéia de que Melanie estava envolvida. Vai ser difícil para Harriet. — Fez uma pausa e deu um longo olhar para McIntyre, subitamente prosaico. — Cuidado com ela. Muito cuidado. Você pode achar nossos métodos pouco ortodoxos, mas ela é uma mulher que teve de lidar com dois choques esta noite: a traição da filha e a possibilidade de perder a filha única.  — Ele passou a mão nos cabelos de Kirby ao parar perto dela.

     — Não importa a profundidade da mágoa, o amor permanece, não é, Kirby?

     — Só sinto um vazio — ela murmurou. — Ela me odiava, e acho, acho mesmo, que ela queria me matar mais do que queria a tela. Imagino... imagino quanto disso seja culpa minha.

     — Você não pode se culpar por ser você mesma, Kirby. — Fair­child lhe abarcou o queixo com a mão. — Não pode culpar uma árvore por buscar o sol nem outra por apodrecer por dentro. Nós fazemos nossas escolhas e somos responsáveis por elas. A culpa e o mérito pertencem ao indivíduo. Você não tem direito de reivindicar nenhuma das duas coisas aos outros.

     — Você não vai me deixar cobrir a mágoa com culpa. — Após uma longa respiração ela se levantou e lhe beijou o rosto. — Vou ter de encarar a situação. — Sem pensar, ela estendeu a mão para Adam antes de se virar para McIntyre. — Precisa de um depoimento meu?

    — Não, o tiro não é de minha jurisdição, srta. Fairchild. Só o Rembrandt. — Terminou o restante de seu uísque e se levantou. — Terei de levar isto comigo, sr. Fairchild. Alegremente, Fairchild abriu os braços. — Perfeitamente compreensível.

     — Aprecio sua colaboração. — Se é que se podia classificar assim. Com um sorriso cansado, voltou-se para Adam. — Não se preocupe, não esqueci suas condições. Se tudo for como ele diz, conseguirei deixá-los oficialmente de fora disso, como com­binamos outro dia. Sua parte no trabalho acabou, e no geral você conduziu tudo muito bem. Então, lamento muito se você tiver falado sério quanto a não trabalhar mais para mim. Você re­cuperou o Rembrandt, Adam. Agora terei de lidar com a parte burocrática.

  •  — Trabalho? — Kirby ficou gelada e se virou. Ainda estava de mão dada com Adam, mas sentiu ficar dormente ao tirá-la lentamente. — Trabalho? — ela repetiu, levando a mão ao estô­mago como se tivesse levado uma pancada.

    Agora não, ele pensou, frustrado, e procurou pelas palavras que ele pretendia usar dentro de poucas horas.

    — Kirby...

    Com toda a força que lhe restava, com toda a amargura que sentira, cobriu o rosto com a mão.

     — Canalha — ela murmurou. Saiu correndo, sem olhar para trás.

     — Vá se danar, Mac. — Adam correu atrás dela.

     

    Adam a alcançou quando Kirby ia bater a porta do quarto. Abrindo-a com um empurrão, ele forçou a entrada. Por um momento, apenas se encararam.

    — Kirby, me deixe explicar.

     — Não. — O olhar magoado fora substituído por fúria glacial. — Simplesmente saia. Saia, Adam, da minha casa e da minha vida.

     — Não posso. — Ele a segurou pelos ombros, mas ela empinou a cabeça e seu olhar foi tão frio, tão duro, que ele tirou as mãos. Era tarde demais para explicar da maneira que ele havia planejado. Tarde demais para evitar que ela ficasse magoada. Agora ele tinha que dar outro jeito. — Kirby, eu sei o que você deve estar pensando. Eu quero...

     — Sabe? — Ela teve de se esforçar muito para não levantar a voz. Mas falou com calma e tranqüilidade. — Vou lhe dizer, de qualquer forma, para que possamos deixar tudo bem direitinho e acertado.

    Ela o encarou porque se recusava a dar as costas à dor ou à traição.

     — Estou pensando que jamais detestei ninguém como o detesto neste momento. Estou pensando que Stuart e Melanie poderiam ter aulas com você sobre como usar pessoas. Estou pensando em como fui ingênua, estúpida de acreditar que ha­via algo de especial em você, algo de estável e honesto. E estou pensando como pude fazer amor com você sem perceber nada disso. Mas eu também não vi isso em Melanie. Eu a amava e confiava nela. — Lágrimas lhe queimaram nos olhos, mas ela as ignorou. — Eu amei você, acreditei em você.

     — Kirby...

     — Não me toque. — Ela recuou, mas foi o tremor em sua voz, não o movimento, que o impediu de ir até ela. — Nunca mais quero sentir suas mãos em mim. — Por estar com vontade de chorar, ela riu, e o som foi cortante como um punhal. — Eu sem­pre admirei um mentiroso dos bons, Adam, mas você é o melhor. Toda vez que você me tocou, você mentiu. Você se prostituiu naquela cama. — Ela fez um gesto em direção à cama e sentiu vontade de gritar. Queria se jogar nela e chorar até esvaziar. Ficou parada, ereta. — Você se deitou ao meu lado e me disse tudo o que queria ouvir. Você ganha pontos extras com isso, Adam? Com certeza, isso estava bem além de suas obrigações.

     — Não faça isso. — Já bastava para ele. Não queria mais aquele seu olhar frio e nítido e aquelas palavras frias e claras. — Você sabe que eu não fui desonesto. O que aconteceu entre nós não teve nada a ver com o resto.

     — Teve tudo a ver.

     — Não. — Ele aceitaria tudo que ela quisesse dizer, mas aquilo, não. Ela havia mudado sua vida com pouco mais que um olhar. Ela tinha de saber disso. — Eu jamais deveria ter posto minhas mãos em você, mas não consegui me conter. Eu a queria. Eu precisava de você. Você precisa acreditar nisso.

     — Eu vou lhe dizer no que acredito — ela disse baixinho, pois cada palavra que proferia era como um talho em seu coração. Ela havia acabado com essa história de ser usada. — Você veio por causa do Rembrandt e pretendia encontrá-lo a despeito de quem

    ou o que tivesse de passar por cima. Meu pai e eu fomos meios para você alcançar um objetivo. Nada mais, nada menos.

    Ele tinha de escutar aquilo, deixá-la dizer, mas não haveria mais mentiras entre eles.

    — Eu vim por causa do Rembrandt. Quando entrei por aquela

    porta, só tinha uma prioridade, encontrar a tela. Mas não a co­nhecia quando entrei por aquela porta. Não estava apaixonado por você.

    — É agora a hora em que você diz que tudo mudou? — ela questionou, cedendo à raiva. — Devemos esperar que soem os violinos?

    Ela estava enfraquecendo. Virou-se e se encostou no batente da cama.

    — Faça melhor, Adam.

    Ela podia ser cruel. Ele lembrou do aviso do pai. Ele só queria acreditar que tinha uma defesa.

     — Não posso fazer melhor do que a verdade.

     — Verdade? Que diabo você sabe sobre a verdade? — Ela se virou de novo, os olhos agora úmidos e brilhando de ardor. — Eu fiquei aqui neste quarto e disse tudo a você, tudo que sabia sobre meu pai. Eu lhe confiei seu bem-estar, a coisa mais importante de minha vida. Onde estava sua verdade naquela hora?

     — Eu tinha um compromisso. Você acha que para mim foi fácil ficar sentado aqui escutando, sabendo que não poderia lhe dar aquilo que você estava me dando?

     — Sim. — Seu tom era mortalmente calmo, mas seus olhos estavam incisivos. — Sim, acho que foi questão de rotina para você. Se você me dissesse naquela noite, no dia seguinte ou no outro, eu poderia ter acreditado em você. Se eu tivesse ouvido de você, teria lhe perdoado.

    O momento certo. Ela não havia lhe dito como era vital fazer as coisas no momento certo? Agora ele sentia que ela estava esca­pulindo, mas ele nada tinha para lhe oferecer senão desculpas.

    — Eu ia lhe contar tudo, do começo ao fim, amanhã.

    — Amanhã? — Ela assentiu lentamente. — É sempre conveniente recorrer ao amanhã. Pena para nós que ele raramente chega.

    Todo o calor, todo o fogo que a atraiu a ele acabara. Ele só vira esta expressão em seu rosto uma vez antes: quando Stuart a encurralara e ela não tinha escapatória. Stuart usou de força física, mas não era mais bonito do que a pressão emocional que Adam sabia ter usado.

     — Desculpe, Kirby. Se eu tivesse corrido o risco e contado tudo esta manhã, teria sido diferente para todos nós.

     — Não quero suas desculpas! — Foi vencida pelas lágrimas e chorou. Ela já havia sacrificado tudo, e agora seu orgulho também tinha ido embora. — Achei que havia encontrado o homem com o qual compartilharia minha vida. Eu me apaixonei por você de uma hora para outra. Sem perguntas, sem dúvidas. Acreditei em tudo o que você me disse. Eu lhe dei tudo que tinha. Nunca, em toda a minha vida, deixei que alguém chegasse tão perto de mim quanto você. Eu lhe confiei tudo que sou, e você me usou. — Virou-se e apertou o rosto contra o balaústre da cama.

    Ele a usara, não havia como negar a si mesmo. Ele a usara, como Stuart. Como Melanie. Amá-la não fazia diferença, apesar de que ele tinha de esperar que fizesse toda a diferença.

     — Kirby. — Ele precisou de toda a sua força para não se aproximar dela, confortá-la, mas se pusesse os braços nela agora estaria confortando apenas a si mesmo. — Não há nada que você possa me dizer que eu não tenha dito a mim mesmo. Eu vim aqui fazer um trabalho, mas me apaixonei por você. Também não tive nenhum aviso. Eu sei que a magoei. Não há nada que eu possa fazer para fazer o tempo voltar.

     — Você esperava que eu caísse em seus braços? Espera que eu diga que nada mais importa, só nós dois? — Ela se virou, e apesar de ainda estar com a face molhada, seus olhos estavam secos. — Tudo faz diferença — ela disse categoricamente. — Seu trabalho termina aqui, Adam. Você recuperou seu Rembrandt. Leve, você fez por merecer.

    — Você não vai me eliminar da sua vida.

    — Você fez isso por mim.

    — Não. — A fúria e a frustração tomaram conta de tal modo que ele agarrou o braço dela e a sacudiu. — Não, você vai ter de se ajustar às coisas como elas são, porque eu vou voltar. — Ele passou as mãos pelos cabelos dela, mãos pouco firmes. — Você pode me fazer sofrer. Por Deus, você pode fazer isso. Isso eu lhe concedo, Kirby, mas vou voltar.

    Antes que sua raiva o levasse longe demais, ele se virou e a deixou sozinha.

    Fairchild estava esperando por ele, sentado calmamente no salão, perto do fogo.

    — Achei que você precisaria disso. — Sem se levantar, ele fez menção ao copo de uísque na mesa ao lado dele. Esperou até Adam virar tudo. Não precisava que dissesse o que se passara entre eles. — Sinto muito. Ela está magoada. Quem sabe com o tempo os ferimentos cicatrizam e ela seja capaz de ouvir.

    As dobras dos dedos de Adam estavam brancas envolvendo o copo.

     — Foi o que eu disse a ela, mas não acreditei no que disse. Eu a traí. — Ele baixou os olhos e os pousou sobre Fairchild. — E você.

     — Você fez o que tinha de fazer. Você tinha um papel a de­sempenhar. — Fairchild abriu as mãos sobre os joelhos e olhou para elas, pensando na sua parte. — Ela teria encarado a situação, Adam. Ela é forte o suficiente. Mas até Kirby tem seu ponto fraco. Melanie... Foi logo depois de Melanie.

     — Ela não me deixa confortá-la. — Foi esta angústia que o fez ficar olhando fixo pela janela. — Ela parece tão ferida, e eu estar lá só complica mais as coisas. — Recompondo-se, olhou para o nada. — Vou embora assim que acabar de fazer minha mala. — Ele virou apenas a cabeça e olhou para o pequeno homem careca em frente ao fogo. — Eu a amo, Philip.

    Em silêncio, Fairchild observou Adam ir embora. Pela primeira vez em seis décadas ele se sentiu velho. Velho e cansado. Com um suspiro profundo, bem profundo, ele se levantou e foi até a filha.

    Encontrou-a enrascada na cama, a cabeça apoiada nos braços e nas pernas. Estava sentada em silêncio e imóvel, e ele sabia que ela estava totalmente arrasada, totalmente. Ao se sentar ao seu lado, ela levantou a cabeça. Lentamente, com a mão dele lhe acariciando os cabelos, os músculos relaxados, ela falou:

    — Será que um dia a gente consegue parar de bancar a boba, papai?

    — Você nunca foi boba.

    — Ah, sim, sim, pelo jeito eu sempre fui. — O queixo apoiado nos joelhos, o olhar fixo e reto. — Perdi nossa aposta. Acho que você vai abrir, entusiasmado, aquela caixa de charutos que vem guardando.

    — Acho que devemos considerar os atenuantes.

    — Quanta generosidade sua. — Ela tentou sorrir, mas não conseguiu. — Não vai ficar com Harriet no hospital?

     — Claro que vou.

     — Então é melhor ir. Ela precisa de você.

    Sua mão fina e ossuda continuava a lhe acariciar o cabelo.

    — E você, não?

    — Ah, papai. — As lágrimas vieram em uma torrente, e ela se jogou em seus braços.

     

    No térreo, Kirby seguiu Cards enquanto ele carregava as malas. Uma semana depois da descoberta do Rembrandt, ela percebeu que era impossível ficar ali. Ela não encontrava conforto em sua arte, nem em sua casa. Tudo trazia lembranças com as quais ela não podia mais lidar. Ela dormia pouco e comia menos. Sabia que estava perdendo o contato com a pessoa que ela era, e então fez planos para se forçar a voltar.

    Abriu a porta para Cards e olhou para a manhã luminosa. Teve vontade de chorar.

    — Não sei o que leva uma pessoa sensata a levantar a esta hora ridícula para pegar o carro e ir para o mato.

    Kirby afastou a melancolia e se voltou para ver o pai descendo a escada em um roupão gasto e descalço. O restante de cabelos que tinha estava eriçado.

    — Deus ajuda quem cedo madruga — ela lhe disse. — Quero chegar à pousada e me instalar. Quer café?

    — Não dormindo como estou — ele murmurou enquanto ela esfregava o nariz em sua face. — Não sei o que está errado com você para se enfiar em uma barraca no Himalaia.

    — É uma cabana bem luxuosa de Harriet aqui nas montanhas Adirondacks, a uns 30 quilômetros de Lake Placid.

    — Não arrume problemas. Você estará sozinha.

     — Já estive sozinha antes — ela comentou. — O senhor está irritado porque não terá ninguém além de Cards com quem gritar durante algumas semanas.

     — Ele nunca responde gritando. — Mas mesmo enquanto resmungava, Fairchild estudava o rosto de Kirby. As olheiras e a perda de peso eram bem aparentes. — Tulip deveria ir com você. Alguém tem de fazer você comer.

    — Eu farei isso. O ar da montanha deve me deixar faminta.

    — Ele continuou fazendo cara feia para ela, que lhe tocou o rosto. — Não se preocupe, papai.

    — Eu estou preocupado. — Segurou-a pelos ombros, os braços esticados. — Pela primeira vez em sua vida você está me deixando realmente preocupado.

     — Uns quilinhos, papai.

     — Kirby. — Ele lhe abarcou o rosto com sua mão forte e magra.

    — Você precisa falar com Adam.

    — Não! — A palavra saiu com violência. Com esforço, ela respirou fundo para se acalmar. — Já disse tudo o que queria dizer a Adam. Preciso de tempo e solidão, só isso.

    — Está fugindo, Kirby?

    — O mais rápido que posso. Papai, Rick me pediu novamente em casamento antes de ir embora.

    — Que diabos isso tem a ver com tudo? — ele questionou — Ele sempre lhe pede em casamento antes de partir.

    — Eu quase aceitei. — Ela segurou as mãos dele, querendo que ele entendesse. — Eu quase aceitei porque parecia a maneira mais fácil de sair dessa. Eu teria arruinado a vida dele.

    — E quanto à sua?

    — Eu tenho que colar os pedaços de novo. Papai, estarei bem. Quem precisa do senhor agora é Harriet.

    Ele pensou em sua amiga, sua mais antiga e próxima amiga. Pensou na dor.

     — Melanie vai para a Europa quando estiver totalmente recuperada.

     — Eu sei. — Kirby tentou não se lembrar da arma, ou do ódio. — Harriet me disse. Ela vai precisar de nós dois quando Melly tiver partido. Se não consigo ajudar a mim mesma, como poderei ajudar Harriet?

     — Melanie não quer ver Harriet. A garota está se destruindo de tanto ódio. — Olhou para a filha, seu orgulho, seu tesouro.

    — Quanto antes Melanie sair do hospital e estiver a quilômetros de distância, melhor para todos.

    Ela sabia o que ele havia feito, como ele lutara contra seus sentimentos sobre Melanie para não causar mais dor a ela ou a Harriet. Ele confortou as duas sem extravasar a própria fúria. Ela o abraçou forte por um momento, sem dizer nada. Precisando não dizer nada.

    — Todos nós precisamos de tempo — ela murmurou. Quando se afastou, ela estava sorrindo. Não o deixaria com lágrimas nos olhos. — Vou me enclausurar no mato e esculpir enquanto você fica moendo seu falcão.

    — Que língua mais maldita em um rosto tão lindo.

    — Papai... — Ela conferiu, distraída, o conteúdo de sua bolsa. — Qualquer pintura que fizer será com seu próprio nome?  — Como ele não respondeu ela levantou os olhos, apertando-os.  — Papai?

    — Todas as minhas telas serão Fairchild. Não lhe dei minha palavra? — Ele fungou e pareceu ferido. Kirby começou a se preocupar.

    — Essa obsessão em esculpir — ela começou, olhando para ele cuidadosamente. — Você não está pensando em emular Rodin ou Cellini, não é?

    — Você faz perguntas demais — ele reclamou, enquanto a levava à porta. — Está perdendo o dia, melhor ir logo. Não se esqueça de escrever.

    Kirby parou na entrada e virou-se para ele.

    — Vai levar anos — ela concluiu. — Se um dia você adquirir o talento. Vá em frente e brinque com seu falcão. — Ela lhe beijou a testa. — Eu o amo, papai.

    Ele a observou descer os degraus e entrar no carro.

    — Não se deve interferir na vida dos filhos — ele murmurou. Com um largo sorriso, acenou, despedindo-se. Quando ela já

    estava fora do campo de visão, ele correu para o telefone.

     

    Florestas sempre a atraíram. No meio do outono, o mato gritava de tanta vida. A explosão de cores era um último estágio antes que as árvores entrassem no ciclo final. Era uma ordem que Kirby aceitava: nascer, crescer, amadurecer, renascer. Ainda assim, após passar três dias sozinha, ela ainda não havia encon­trado sua serenidade.

    O córrego pelo qual ela passou fluía e sibilava. O ar estava refrescante, com aroma penetrante. E ela estava infeliz.

    Quase resolvera seus sentimentos em relação a Melanie. Sua amiga de infância estava doente, e por muito tempo, e talvez jamais se recuperasse. Não foi uma traição pior do que um cân­cer. Mas era uma coisa maligna que Kirby sabia que tinha de cortar de sua vida. Ela quase aceitou, por causa de Melanie e por causa de si mesma. Podia se entender com Melanie, mas ainda teria de lidar com Adam. Ele não tinha doença nenhuma, nem mágoas de uma vida inteira. Simplesmente, tinha um trabalho a cumprir. E isso era uma coisa fria demais para ela aceitar.

    Com as mãos nos bolsos, sentou-se em uma tora e olhou com raiva para a água. "Minha vida", admitiu, "é uma bagunça só. " Ela era uma bagunça. E estava cansada.

    Tentou dizer a si mesma que tiraria Adam de sua vida. Não tirara. Sim, se recusou a ouvi-lo. Não, não tentou procurá-lo. Não bastava. Não bastava, Kirby concluiu, pois assim as coisas ficavam inacabadas. Agora ela jamais saberia se ele tinha algum sentimento real por ela. Ela jamais saberia se ele já havia, breve­mente que fosse, pertencido a ela.

    Talvez fosse melhor assim.

    Ficou de pé e começou a caminhar novamente, arrastando as folhas que dançavam aos seus pés. Estava cansada de si mesma. Mais um começo. Mas ela resolveu que não continuaria assim. Custasse o que custasse, faria Kirby Fairchild voltar à forma. A começar agora. Em passos velozes, ela começou a voltar à cabana.

    Gostava do visual da cabana, plantada no meio do bosque, sozinha. O teto era alto e inclinado e os vidros cintilavam. Pensou ao entrar pela porta dos fundos que trabalharia. Após trabalhar, comeria até estufar.

    Tirando o casaco ao entrar, caminhou direto até a mesa de trabalho instalada no canto da sala de estar. Sem olhar ao redor, jogou o casaco de lado e se dirigiu para seu material de trabalho. Fazia dias que não tocava no material. Ela se sentou e pegou um pedaço de madeira sem forma. Esta seria sua Paixão. Talvez, mais do que nunca, ela precisasse dar forma a essa emoção.

    Fazia silêncio enquanto ela explorava o sentimento e a vida da madeira em suas mãos. Pensou em Adam, nas noites, nos toques, nos sabores. Doía. A paixão podia doer. Usando isso, ela começou a trabalhar.

     

    Uma hora passou voando. Ela só percebeu quando os dedos estavam com cãibra. Com um suspiro, pôs a madeira na mesa e esticou os dedos. A cura começara. Ela podia estar certa disso agora.

    — Um começo — murmurou consigo mesma. — É um começo.

    — É a Paixão. Já posso ver.

    A faca caiu de sua mão e bateu na mesa quando ela se virou. Do outro lado da sala, sentado calmamente em uma poltrona estilo antigo, estava Adam. Ela quase pulou da cadeira para ir até ele, mas se conteve. Ele parecia o mesmo, exatamente o mesmo. Mas nada continuava igual. Ela tinha de se lembrar disso.

    — Como entrou aqui?

    Ele sentiu o gelo em sua voz. Mas vira seus olhos. Em um instante, ela lhe disse tudo que ele ansiava ouvir. Ainda assim, ele sabia que não podia apressar as coisas.

     — A porta da frente não estava trancada. — Ele se levantou e foi até ela. — Eu entrei para esperar por você, mas quando você entrou parecia tão intensa, e começou a trabalhar logo em seguida. Não quis perturbar seu trabalho. — Como ela não disse nada, ele levantou a madeira e a virou em suas mãos. Parecia arder lentamente. — Impressionante — ele murmurou. — Que poder impressionante você tem. — Só de segurar a peça ele ficou com mais vontade de tê-la, de ter o que ela estava colocando na madeira. Cuidadosamente, ele a pôs de volta na mesa, mas seus olhos estavam mais intensos ao estudá-la. — Que diabo você anda fazendo? Passando fome?

     — Não seja ridículo. — Ela se levantou e se afastou dele, mas não sabia para onde ir.

     — Culpa minha, também?

    A voz dele estava calma e séria. Ela jamais seria capaz de resistir àquele tom. Reunindo forças, ela se virou para ele.

    — Tulip o mandou vir aqui para ver como eu estou?

    Ela estava magra demais. Droga. Será que seus quilos esta­vam evaporando? Ela estava tão pequena! Como podia ser tão Pequena e parecer tão arrogante? Ele queria se aproximar dela. Implorar. Ele tinha quase certeza de que agora ela o escutaria. Mas não queria que fosse dessa maneira. Ele enfiou as mãos nos bolsos e deu uma volta.

    — Lugarzinho aconchegante, este. Fiquei dando uma olhada enquanto você estava fora.

     — Fico feliz por você ficar à vontade.

     — É tudo que Harriet disse que era. — Ele olhou para ela novamente e sorriu. — Isolado, aconchegante, charmoso.

    Ela arqueou uma sobrancelha. Era mais fácil com a distância entre eles.

     — Você falou com Harriet?

     — Levei seu retrato à galeria.

    A emoção surgiu e desapareceu nos olhos dela. Pegou um pequeno pelicano de latão e o acariciou, distraída.

     — O meu retrato?

     — Prometi que podia exibi-lo quando eu terminasse. — Ele observou que ela tocava o pelicano com dedos nervosos. — Não foi difícil terminar sem você. Eu a via em toda direção que olhava.

    Rapidamente ela começou a caminhar para a parede da frente da cabana. Era toda de vidro, podia-se ver o mato. Ninguém podia se sentir preso com uma vista daquelas. Kirby se aferrou a isso.

     — Harriet está passando por um momento muito difícil.

     — A tensão transparece um pouco. — Nela e em você, pensou. — Acho que é melhor para ela não encontrar Melanie. Com Stuart fora do caminho, a galeria a mantém ocupada. — Ele a encarou, tentando imaginar que expressão encontraria em seu rosto. — Por que não registrou queixa, Kirby?

     — Para quê? — ela replicou. Pôs a peça de latão na mesa. Muletas eram muletas, e estava cansada delas. — Tanto Stuart quanto Melanie estão desgraçados, banidos da elite que significa tanto para eles. A publicidade foi terrível. Eles não têm dinheiro, nem reputação. Será que isso não é punição suficiente?

     — Melanie tentou matá-la. Duas vezes. — Subitamente fu­rioso com o tom dela, calmo e até impassível, ele se aproximou e a fez virar-se. — Droga, Kirby, ela queria matá-la!

     — Foi ela quem quase morreu. — Sua voz seguia impassível, mas ela deu um passo para trás, afastando-se dele. — A polícia terá de aceitar minha versão de que a arma disparou por aci­dente, mesmo que as pessoas em geral não aceitem. Eu podia mandar Melly para a cadeia. Eu não me sentiria vingada ao ver Harriet sofrer.

    Adam se esforçou para conter a impaciência e olhou pela vidraça.

    — Ela está preocupada com você.

    — Harriet? — Kirby deu de ombros. — Não há porquê.

    Quando você a encontrar, diga que estou bem.

     — Você pode dizer pessoalmente quando nós voltarmos.

     — Nós? — Sua voz ganhou um leve contorno de irritação. Nada podia tê-lo aliviado mais. — Ainda vou ficar aqui por mais um tempo.

     — Tudo bem. Não tenho nada melhor para fazer.

     — Isto não foi um convite.

     — Harriet já me convidou — ele disse tranqüilamente. Ele deu mais uma olhada ao redor enquanto Kirby começava a se esquentar. — O lugar parece bem grande para dois.

     — É aí que você se engana, mas não vou estragar seus planos. — Ela deu a volta e se dirigiu para a escada. Antes que descesse cinco degraus, os dedos dele lhe envolveram o braço e a fizeram parar. Quando ela se virou, ele viu que sua cigana estava de volta.

     — Você não acha mesmo que vou deixar você ir embora, não é? Kirby, você me decepciona.

     — Você não tem que me deixar fazer nada, Adam. Nem vai me impedir de fazer coisa alguma.

     — Só quando necessário. — Apesar de ela continuar rígida, ele pôs as mãos em seus ombros. — Desta vez você vai me escutar. E vai começar a me escutar em um minuto.

    Ele a beijou, como estava precisando fazia semanas. Ela não resistiu, nem correspondeu. Ele sentiu que ela estava lutando contra a necessidade de fazer as duas coisas. Ele podia pressioná-la, sabia, e ela cederia. Mas, então, ele jamais a teria de verdade, lentamente seus olhares se encaixaram e ele se aprumou.

    — Chega de você me fazer sofrer — ele murmurou. — Eu paguei, Kirby, em cada momento que passei sem você. Em cada noite que você passou longe de mim. Quando vai parar de me punir?

    — Não quero puni-lo. — Era verdade. Ela já o perdoara. Mas sua confiança, aquela proteção forte que sempre tivera, sofrera um grande golpe. Desta vez, quando ela recuou, ele não tentou detê-la. — Sei que nos separamos com um clima ruim. Talvez fosse melhor que ambos reconhecêssemos ter nos enganado e deixar assim. Percebo que você fez o que tinha de fazer. Sempre fiz o mesmo. Está na hora de eu seguir com minha vida, e você com a sua.

    Ele sentiu uma breve agitação interna de pânico. Ela estava calma demais, demais mesmo. Ele queria sua emoção, qualquer tipo que ela tivesse para dar.

     — Que tipo de vida nós teríamos um sem o outro?

    Nenhuma. Mas ela balançou a cabeça.

     — Eu disse que me enganei...

     — E agora você vai me dizer que não me ama?

    Kirby olhou diretamente para ele e abriu a boca. Enfraquecida, desviou o olhar para sobre o ombro dele.

    — Não, eu não amo você, Adam. Desculpe.

    Ela quase o fez cair de joelhos. Se ela não tivesse desviado o olhar naquele instante, seria o fim para ele.

     — Achei que você seria capaz de mentir melhor do que isto. — Em um movimento, ele diminuiu a distância entre eles. Seus braços a envolveram, firmes, seguros. Os mesmos, ela pensou. Nada mudara, afinal. — Eu lhe dei duas semanas, Kirby. Talvez eu devesse lhe dar mais tempo, mas não consigo. — Enterrou o rosto em seus cabelos enquanto ela fechava os olhos, apertando-os. Ela estava errada, lembrou. Estava errada em relação a muitas coisas. Será que aquilo poderia estar certo?

     — Adam, por favor...

     — Não, chega. Eu amo você. — Ele a afastou, mal resistindo ao ímpeto de sacudi-la. — Eu amo você e você terá de se acos­tumar com isso. Isso não vai mudar.

    Ela cerrou a mão antes de ceder ao impulso de lhe acariciar o rosto.

    — Acho que você está sendo pomposo outra vez.

    — Então você vai ter de se acostumar com isso, Kirby... — Ele lhe emoldurou o rosto com as mãos. — De quantas maneiras você quer que eu peça desculpas?

    — Não. — Balançando cabeça, ela se afastou novamente. Devia ser capaz de pensar, alertou a si mesma. Tinha de pensar. — Não preciso de desculpas, Adam.

     — Não precisaria — ele murmurou. — Seu pai e eu tivemos uma longa conversa antes de eu vir para cá.

     — É mesmo? — Ela prestou atenção em um vaso com flores secas. — Que legal.

     — Ele me deu sua palavra de que não vai mais... emular pinturas.

    De costas para ele, ela sorriu. A dor passara sem que ela per­cebesse, e com ela as dúvidas desapareceram. Eles se amavam. Havia pouco mais na vida. Ainda sorrindo, Kirby resolveu que não contaria a Adam sobre a ambição que seu pai tinha de es­culpir. Ainda não.

    — Que bom que você o convenceu — ela disse, irônica.

     — Ele decidiu me dizer, já que vou entrar para a família. Tremeluzindo os cílios, ela se virou para ele.

     — Que lindo. Papai vai adotá-lo?

    — Não foi exatamente este tipo de relação que discutimos. — Aproximando-se dela, ele segurou seus braços outra vez. Agora ele sentiu a entrega e a força. — Diga outra vez que você não me ama.

    — Eu não amo você — ela murmurou, e levou a boca à dele. — Não quero que você me abrace. — Ela lhe envolveu o pescoço com os braços. — Não quero que você me beije de novo. Agora. — Seus lábios se uniram aos dele, abertos, entregues. O calor foi aumentando, ele gemeu e a puxou para si.

    — Você é obstinada, não é? — ele murmurou. — Invariavelmente.

     — Mas vai se casar comigo?

     — Nos meus termos.

    Quando ela inclinou a cabeça para trás, ele começou a lhe cobrir o pescoço de beijos.

     — E quais são?

     — Posso ser fácil, mas não sou de graça.

     — O que você quer, um acordo pré-nupcial? — Meio que rindo, ele a afastou. Ela era dele, fosse ela quem ou o que fosse. Ele jamais a deixaria partir outra vez. — Não sabe pensar em outra coisa que não dinheiro?

     — Eu gosto de dinheiro... e ainda temos que discutir meu cachê para posar. Contudo... — Ela respirou fundo. — Meus termos para casar são ter quatro filhos.

     — Quatro? — Mesmo conhecendo Kirby, ele foi pego de surpresa. — Quatro filhos?

    Ela umedeceu os lábios, mas sua voz saiu forte.

    — Sou irredutível quanto a este número, Adam. É uma cláusula inegociável. — Então seus olhos ficaram joviais e cheios de desejos. — Quero filhos. Seus filhos.

    Sempre que ele achava que a amava completamente, percebia que era capaz de amá-la mais. Ainda mais.

    — Quatro? — ele repetiu, assentindo lentamente. — Alguma preferência quanto ao sexo?

    A respiração que ela estava prendendo saiu em forma de ri­sada. Não, ela não estava errada. Eles se amavam. Pouca coisa sobrava, além disso.

    — Sou flexível, uma mistura seria legal. — Jogou a cabeça para trás e sorriu para ele. — O que acha?

    Ele a tomou nos braços e foi em direção à escada.

    — Acho melhor começarmos logo.



 

[1]Buraco do coelho" faz referência ao livro de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas. Alice segue o coelho até sua toca e entra em um mundo desconhecido. (N. do E.)

[2]Personagem Huckleberry Finn de Mark Twain. (N. do E. )

[3]Trocadilho com o sobrenome do mordomo Cards (cartas, em português), a quem o patrão pede que lhe traga cartas de jogar, baralho. (N. do T. )

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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