Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Amar perigosamente / Heinz G. Konsalik
Amar perigosamente / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Amar perigosamente

 

Capitulo 1

Alexander Jesus Guapa era negro como o pecado e criado para todo o serviço. Não havia nada que ele não pudesse arranjar, o impossível era para ele natural e quando tinha de ser, ele roubava tudo o que o seu amo precisava, e apresentava‑lho então, com um sorriso grande e feliz. Mas hoje, naquele dia ardente e húmido, em que a selva fumegava e o sol nadava como um ovo numa insípida sopa deleite, ele estava mesmo desesperado.

‑ É como se estivesse enfeitiçado, senhorita! ‑ gritava ele torcendo as mãos. ‑ A bagagem está carregada, o barco pode seguir, mas quando eu examino e conto os caixotes, falta sempre um. O terceiro, senhorita! Agora é o da tenda da cozinha. Aqui há alguém que rouba como um macaco! ‑ Furioso, revirava os olhos, cerrava os punhos e proferia um som que soava como o ecoar de um tambor de tronco de árvore. A Dra. Ellen Donhoven sorriu, indulgente.


‑ Conta mais uma vez, Alexander Jesus ‑ disse ela. ‑ O melhor é contares até dez; depois começas do princípio outra vez! Guapa torceu o nariz e correu ofendido de volta para a prancha de embarque. A forte chuva diária sussurrou sobre Tefé, e depois, de novo, o sol ardeu sobre a terra encharcada com os seus rios gigantescos e florestas imensas. Tefé é uma cidade da selva amazónica situada junto a um grande rio, perto de um lago, a partir do qual o rio Tefé corre para sul, para a imensidão desconhecida. Aqui não existem mais estradas nem atalhos, nem colónias no rio, nem sequer as miseráveis cabanas dos que procuram orquídeas ou dos exploradores de diamantes, ou as tendas dos cavaleiros da fortuna que atravessam a selva amazónica e esperam encontrar algo que mude as suas vidas e os faça enriquecer. A maioria acaba por encontrar as setas envenenadas dos índios, são assassinados por gente, cujos nomes ninguém sabe, que nunca viram um branco, para os quais ainda não foi indicado um missionário e só através de outros indígenas se conhecem os seus bárbaros costumes, o seu veneno absolutamente mortal e que o seu ódio pelos intrusos é tão ilimitado como as florestas e os rios. Esta é a terra a sul do lago Tefé, o mais gigantesco pedacinho de terra que não consta dos mapas, um inferno verde, ardente, húmido, impregnado de febres, hostil, emaranhado, pobre. Um mar encapelado de copas de árvores. Rios com crocodilos e piranhas assassinas, margens cobertas de lianas com serpentes, lagos e charcos nos quais a morte espera sob a forma de gigantescas e venenosas aranhas. Um verdadeiro inferno na Terra, e, no entanto, uma terra que atrai sempre gente, que seduzida dentro desta imensidade verde satisfaz o impulso de seguir o rasto dos seus segredos. A Dra. Ellen Donhoven era uma rapariga desportiva e elegante, com cabelo louro curto e um rosto magro, bonito, mas enérgico. Os seus olhos azuis podiam olhar sonhadores, mas, do mesmo modo, repentina e inesperadamente, fulminar perigosamente. Ela sentou‑se na varanda do único "hotel" de Tefé, uma miserável construção de madeira com cinco quartos e camas de ferro cobertas com mosquiteiros deteriorados; tinha as pernas, que estavam metidas numas botas altas de atacadores, apoiadas na ripa mais baixa do corrimão e a blusa do seu fato de safari amarelo e verde estava aberta no pescoço. Perto de si estava sentado o Dr. Rudolf Forster, que bebia uma cerveja de lata inglesa, morna. O Dr. Forster irradiava manifesta virilidade. Alto, de ombros largos, ancas estreitas, um rosto marcado, de traços finos e olhos castanhos, tornou‑se, em dez dias, o centro de atenção de todas as mulheres e raparigas de Manaus, desde que ali tinha chegado da Alemanha, havia três semanas. Ellen tinha‑o recebido no campo de aviação da capital da selva e, cumprimentando‑o, suspirara:

‑ Rudolf, você é uma pessoa terrível. Então também me seguiu na selva! Que quer daqui?

‑ Isso sabe você, Ellen ‑ respondera o Dr. Forster. ‑ Talvez eu seja um idiota incurável, mas qual é o homem apaixonado que o não é?

"Não, não, eu não quero começar de novo! Não tenha medo, Ellen. Nem uma palavra sobre amor, mas acreditava que eu a deixava penetrar sozinha no inferno verde? Já que esta loucura tem de acontecer, então vamos partilhá‑la!

‑ E quem financia a sua iniciativa?

‑ O seu pai. ‑ O Dr. Forster sorrira. ‑ Ele ficou muito aliviado, assim que descobriu em mim o louco que a queria acompanhar. Não preciso de lhe dizer o que o seu pai pensa do seu plano.

‑ Não, eu sei. Mas já tenho idade suficiente, e a vida de uma filha rica de um pai ainda mais rico mete‑me nojo. Não me tornei médica e bacteriologista, para agitar alambiques de vidro e provetas na fábrica do meu Pai e para ver vírus a formigarem no microscópio. Tenho outros planos.

‑ Eu sei. ‑ O Dr. Forster dera o braço a Ellen e tinham‑se dirigido para o jipe, que esperava no campo de aviação. Alexander Jesus Guapa estava sentado ao volante e arreganhara os dentes amplamente.

‑ Quem é este?

‑ O meu primeiro recrutamento. Fiel como um cão e hábil como uma raposa! ‑ Ela tinha parado e tinha as mãos apoiadas nas ilhargas. ‑ Também o vou ter às costas?

‑ Sim. O financiador assim o quer. O paizinho tem sorte em eu

tomar conta de si.

‑ Vai ser um trabalho de morte, Rudolf.

‑ Isso para mim está claro. Domesticar uma pantera negra é provavelmente mais fácil. Mas você tem de compreender que para uma rapariga é simplesmente penoso penetrar na selva desconhecida, avançar até aos inexplorados índios e analisar os seus venenos!

‑ Porquê? Será que as mulheres são menos corajosas que os homens? É exactamente o contrário que eu quero provar. Vocês, homens, com os vossos cuidados antiquados, fazem‑me sentir como sendo o sexo fraco. Nós não somos fracas, somos tão tenazes e resistentes como vocês. Para além disso, podem‑se destilar a partir destes venenos ainda desconhecidos determinados remédios que talvez nos possam levar a uma revolução no domínio dos medicamentos. Pense só no curare: também foi e é, definitivamente, um veneno índio. Que seria da anestesia actual sem esse curare!


O Dr. Forster já naquela altura tinha desistido de contrariar Ellen. Pensou nas discussões, que duraram meses, em Estugarda, na "villa" do milionário Dr. Donhoven, que com a produção dos medicamentos Don Médical se contava entre os fabricantes de medicamentos mais importantes da Alemanha, nos longos serões no quarto de Ellen e naturalmente no arrebatamento do velho Donhoven:

‑ Muito bem, então vai lá para os teus índios! Deixa‑os fazerem de ti uma cabeça mirrada! Eles vão ter muito trabalho, com uma cabeça dura como essa! Já tens idade suficiente... e eu apenas sou um velho esclerosado!

Tinham sido horas horríveis, mas Ellen tinha‑se imposto. Era a sua qualidade de carácter mais forte: lutava por aquilo que queria. Agora estavam sentados na varanda do quarto miserável na margem do lago Tefé; o barco da expedição, uma lancha baixa e larga que também podia andar nas águas pouco profundas e pantanosas da selva, estava carregado, a tripulação estava completa e só Alexander Jesus corria lamentoso, em redor, queixando‑se ao sol tórrido e ao céu fumegante da sua dor perante a maldade das pessoas. O caixote faltava realmente. Ele tinha contado quatro vezes, a tenda da cozinha tinha sido roubada, juntamente com as panelas e as frigideiras. A tripulação da expedição estava reunida na plataforma de embarque e no próprio barco. Lá estava Fernando Paz, um brasileiro de origem espanhola, a examinar mais uma vez os seus caixotes. Ele viajava como analista, era responsável pelos microscópios e todo o serviço de química que os acompanhava pela selva fora. Ellen tinha recrutado Fernando Paz no Rio de Janeiro, num laboratório de pesquisa de medicamentos. Era uma pessoa baixa e desembaraçada, com profundos olhos de criança castanhos, um pouco gordo, sempre alegre e um grande fumador. Nunca era visto sem um cigarro, e já se tinha verificado que à noite ligava o despertador e interrompia o sono para fumar quatro vezes. Na margem, sentado sobre um saco de viagem, estava Pietro Campofolio. Também ele tinha nascido no Rio, mas os seus tetravôs eram italianos, os avós tinham um pouco de sangue índio, os seus pais eram por sua vez uma mistura de italiano e espanhol, ele próprio sentia‑se como italiano, lia jornais italianos, vociferava contra a política da sua terra natal e cantava árias das óperas de Puccini e Verdi. Possuía uma bela voz de tenor épico, mas tinha‑se tornado antropólogo. A história da Humanidade tinha‑o desde sempre fascinado, não é de admirar, já que tinha nascido numa terra que se tinha desenvolvido num cadinho de raças. Assim, Campofolio tinha‑se tornado cientista e cantor, em segundo lugar. Tinha‑se juntado à expedição de Ellen já em Manaus, porque também ele estava interessado nos selvagens desconhecidos do Rio Tefé e Rio Juma. Ele queria determinar a idade daquela raça através de medições do crânio e escrever um livro interessante sobre o assunto. O terceiro no barco era Rafael Palma, um mulato. Ellen tinha‑o trazido como cozinheiro. Palma era um génio na cozinha. De velhos carneiros fazia os mais tenros assados, os lombos dos porcos selvagens eram temperados como nenhum cozinheiro do Ritz de Paris faria, e as suas saladas, só ele sabia como eram feitas, sabiam a Primavera conservada em vinagre e óleo. Para ele, o desaparecimento da tenda da cozinha era um quase fim do mundo. Assim que o Alexander Jesus tinha descoberto o roubo, ele tinha corrido à volta de Tefé, aquele lugarejo imundo, e tinha comprado novas panelas e frigideiras, púcaros e alguidares, pratos, taças e talheres, mas já não tinha encontrado uma tenda. Quem é que em Tefé dorme debaixo de lona!


‑ Também pode ser assim, senhorita! ‑ exclamou Palma, assim que Ellen apareceu na plataforma de embarque. ‑ Temos de construir aqui em baixo um abrigo de folhas, bem ao costume da terra. Também é melhor para cozinhar. O fumo dispersa‑se mais rapidamente. Que o diabo leve o ladrão!

Um pouco afastado, sentado num tronco de madeira na borda do mar, estava o quarto homem da expedição, Gaio Moco. Moco era um caso notável. Era de pura raça índia do território de Juma e Itanhaua; portanto, da região que Ellen ia explorar. Um dia, tinha surgido da selva desconhecida com o corpo cheio de marcas de lutas com animais selvagens. Só trazia com ele uma lança e uma tanga feita de grandes folhas à volta das ancas. Assim que tinha saído da escuridão húmida da floresta, tinha colocado a sua lança no chão, tinha erguido as duas mãos para o céu e assim tinha posto o pé na civilização. Fora havia três anos. O único missionário neste território, que vivia na ilha Pananim, no meio do imenso Amazonas, tinha‑o acolhido, tinha‑lhe ensinado a língua portuguesa, tinha‑o baptizado ao fim de um ano e tinha chegado à conclusão que nunca tinha visto pessoa melhor que Gaio Moco. Este era o seu nome, que ele tinha dado a si próprio. Ninguém sabia mais nada sobre ele. Nunca contou por que razão tinha saído do interior impenetrável da sua floresta. Era calmo, sempre delicado, mas preferia viver sozinho, afastado dos outros. Um jovem que às vezes olhava sonhadoramente para o lado da floresta, como se sentisse saudades. Assim que em Tefé se ouviu falar da expedição, Gaio Moco logo se aprontou para se lhe juntar como intérprete. O missionário abençoou‑o e entregou‑lhe uma pequena cruz de prata para levar. Ele pressentia que nunca mais tornaria a ver Moco. Mas Gaio pendurou o crucifixo no seu pescoço castanho avermelhado.

‑ Onde está o José? ‑ perguntou Ellen, olhando em redor. Moco apontou para o lado da aldeia da selva.

‑ Ele disse que estava no correio, senhorita.‑ Tinha uma voz grave e sonora. O seu olhar pousou no barco e os seus olhos escuros brilharam. ‑ Partimos amanhã?

‑ Sim. Ao nascer do sol, Moco. Acho que deves ser o único, para além de mim, que está contente.

‑ Quero rever Ynama ‑ disse Moco, pensativo.

‑ Quem é Ynama?

‑ Uma rapariga. ‑ O índio levantou‑se e caminhou lentamente ao longo da margem do lago. Ellen seguiu‑o com os olhos e passou as mãos pelo seu cabelo curto. "Uma rapariga. Ele sonha com uma rapariga. Há três anos. Ela vive algures na imensidão verde... pequena, de pele castanha, de cabelos longos e negros, nua como no paraíso. Por que razão terá Moco fugido da floresta?" Voltou para o barco, onde Alexander Jesus estava numa acesa discussão com Rafael Palma. Palma tinha posto um monte de panelas na margem e exigia um lugar para os seus utensílios de cozinha. O que era impossível, pois o barco, baixo e largo, já estava cheio de caixotes e sacos. Para Ellen, era um enigma onde é que as oito pessoas ainda se podiam sentar. Alexander Jesus era o único que não estava preocupado com isso. Entretanto, José Cascal estava a telefonar a alguém em Manaus, na pequena divisão da estação de correio. O empregado, esgotado, estava deitado a um canto, bebia água gelada e fumava um grosso charuto verde. Havia catorze anos que vivia no Amazonas, mas o calor sufocante da chuva quotidiana deitava‑o sempre abaixo.


O suor saía‑lhe dos poros como a água por um passador. Olhou José com os olhos turvos, sem tomar atenção ao que ele gritava ao telefone. De todos os elementos da expedição, José Cascal era a figura mais estranha e cheia de mistério. Era um homem de estatura média, magro e musculado, com um rosto de cor castanho‑amarelada, que no Brasil se encontra muito nos mestiços. É uma cor de pele, mistura de muitos povos, uma herança tão variegada como as flores dos pântanos da selva. José Cascal usava, sobre o lábio superior, um pequeno bigode que muito cuidava. Os cabelos permaneciam lisos, agarrados à cabeça estreita de ave de rapina. Os seus olhos castanhos estavam permanentemente à espreita e observavam. Ellen não o recrutara. Viera sozinho, em serviço oficial. Fora enviado pelo governador de Manaus. Com um ar impassível, Cascal apresentou a sua identificação, a ordem e um ofício à Dra. Donhoven.

‑ Eu sei, senhorita ‑ tinha ele dito com a cortesia de um senhor espanhol ‑, que a minha presença não é desejada, e eu também preferia ter ficado em Manaus junto de bonitas raparigas, mas uma ordem é uma ordem! Uma expedição à selva desconhecida tem de ser acompanhada por um funcionário público.

‑ Para quê ?Até agora não tem sido habitual. Oh, eu pressinto que o meu pai está por trás disto! ‑ Ela tinha batido com o pé no chão e Cascal, um conhecedor da beleza feminina, tinha admirado a médica alemã, cheia de temperamento. Mas depois abanara a cabeça:

‑ O seu pai não tem nada a ver com isto. O governo enviou‑me para a proteger.

‑ Um homem vai‑me proteger da floresta? Isso dá vontade de rir! Pensa que, quando desfraldar as bandeiras do governo, os índios vão ficar em sentido?

‑ Claro que não, senhorita. Mas o governo foi nomeado para deitar um olho em tudo, desde que seja possível.

‑ Ah, estou a perceber. ‑ Ellen sorrira zangada. ‑ Eu podia, por exemplo, seduzir o chefe de Juma e assim destruir a raça. Ou então, podia encontrar filões de ouro e explorá‑los! Ou podiam fazer de mim uma deusa branca da selva, fértil como uma abelha‑mestra. ‑ Ela rira alto e, de novo, Cascal admirara o seu charme agressivo. ‑ Não tenho medo. Eu afasto‑me dos obstáculos sozinha.

Mas a discussão fora inútil. José Cascal permaneceu em Tefé como observador do governo, arranjou, e isto era uma vantagem, para além de duas caçadeiras, também duas pistolas automáticas nos depósitos militares e uma caixa de explosivos embalados.

‑ Um charuto barulhento como este faz milagres ‑ tinha ele comentado quando Ellen inspeccionara, com reserva, os explosivos.

‑ Podem salvar a nossa vida. Para os índios, esta bola de fogo é equivalente à queda do sol... isto abre‑nos o caminho, quando for preciso.

José Cascal olhou o suado empregado do correio de soslaio e dobrou‑se ainda mais sobre o auscultador.


‑ Já está tudo acertado ‑ dizia ele, acentuando cada palavra. - A ligação com Manaus estava uma miséria. As linhas telefónicas estavam penduradas livremente pelas árvores ao longo do rio Amazonas; só havia postes nas raras estações de correio. ‑ A alemã quer ir pela região entre o rio Repartimento‑rio Juma‑rio Itanhaua. É o triângulo. Exactamente! Já tentei encaminhar a expedição para o rio Coari. Falei‑lhes dos índios que ainda lá vivem, como no paraíso, dos seus venenos, o diabo que a carregue... ela não desiste do seu plano, esta alemã!

O interlocutor em Manaus pareceu reflectir. Depois disse, com uma voz sombria e dura:

‑ José, você prometeu‑me que a Dra. Donhoven não ia para o triângulo do rio. Deus do céu, existem centenas de afluentes do Amazonas, milhões de metros quadrados de selva inexplorada... por que é que tem de ser precisamente este sítio?

‑ Ela meteu isso na cabeça, general.

‑ Então tire‑lho!

‑ Não se consegue. O general não a conhece.

‑ Uma mulher!

‑ Eu não diria isso tão depreciativamente. ‑ Cascal irritou‑se. De longe, da confortável poltrona dele, tudo era diferente e mais fácil. "Venha cá, General", pensou. "Mostre os dentes à Ellen. Ao telefone, qualquer um pode gritar". ‑ Ellen Donhoven é uma máquina cheia de energia.

‑ Então arranque‑lhe alguns fios, que a sua máquina fica a parecer outra!

‑ Vou tentar, general. De qualquer maneira, temos de ir, primeiro por um troço do rio Tefé abaixo, antes que ela note qualquer coisa.

‑ Naturalmente. ‑ Em Manaus, o general pareceu estudar o mapa. ‑ Fiquem sempre no rio. A expedição tem de acabar, no máximo, na foz do Repartimento.

‑ Isso, eu prometo‑lhe, general. ‑ Cascal desligou, deu uma pancada nas costas do empregado e deixou a estação. Fizera a promessa de que perto do inferno verde escancararia ainda o portão de um outro inferno.


Ao amanhecer, o barco largou a margem e roncou devagar sobre a superfície do lago ainda escura e calma. Alexander Jesus tinha conseguido o que ninguém julgava ser possível: havia lugar para todos no barco, e até as panelas e caldeiras de Rafael Palma tinham sido levadas. Era verdade que o barco se afundava na água até ao seu ponto perigoso e os crocodilos que, curiosos, nadavam em volta, como troncos de árvores podres e incrustrados, erguiam as suas cabeças, repugnantes e achatadas, no ar sobre o costado, cravavam os olhos no veículo barulhento. Ellen estava de melhor humor. Tudo estava de acordo com os planos pré‑estabelecidos. Durante a noite não tinha sido roubado mais nada, por que Palma e Guapa tinham‑se revezado a fazer sentinela. Campofolio, o antropólogo, estava sentado atrás, num lugar entre os caixotes, e praticava a sua segunda actividade. Cantava canções de marinheiros italianos com uma voz bela e atraente. José Cascal e o Dr. Forster acocoravam‑se em dois sacos de lona das tendas atrás de Ellen e observavam o amanhecer na selva que iam percorrer. Ao volante do barco a motor estava Gaio Moco, o índio. Os seus olhos brilhavam, como se o sol já o tivesse encontrado. "Vou para a minha terra natal", pensava ele. "Volto para Ynama". De volta para as cabanas redondas no vale florescente. Em três anos, já tinham esquecido o que Gaio fizera um dia. Pois Gaio quisera levar consigo os conhecimentos dos brancos, e isso era muito melhor que todas as cabeças do inimigo. A viagem no lago decorria mais rapidamente do que tinham pensado, mas assim que chegaram à foz do rio Tefé, tornou‑se mais lenta. A selva, árvores gigantescas enredadas de lianas e fetos com metros de altura, aglomerava‑se até à água indolente e verde. Troncos de árvore apodrecidos iam ao seu encontro, tinham de rodear os bancos de areia, por vezes o casco do barco rangia no fundo do rio, que ali era muito baixo, para depois, subitamente, se tornar outra vez tão profundo que Alexander Jesus quando media a profundidade com uma vara comprida já não encontrava mais o fundo. Há quase cinco horas que viajavam no meio do rio Tefé quando Rafael Palma, o mágico da cozinha, repartiu um pudim de chocolate com nozes brasileiras. Montara uma cozinha improvisada na popa do barco, rodeada de caixotes, e cozinhava sobre dois fogões a gás.

‑ à noitinha há lombo de porco ‑ anunciou, estalando a língua. ‑ E além disso, rebentos de bambu.

‑ Uma autêntica viagem de luxo ‑ disse o Dr. Forster sarcasticamente, devorando o seu pudim. ‑ Devíamos recomendá‑la a uma agência de viagens: três meses na selva virgem, com pensão completa, viagem de recreio pelo rio e a possibilidade de se tornar uma cabeça mirrada. Recomenda‑se para senhoras casadas e sogras. José Cascal tinha‑se comprometido a descrever a paisagem a Ellen. Era fácil, pois, para além, de um muro de vegetação verde, de um rio turvo e de um céu azul, que de repente se podia transformar num tecto cinzento e sufocante, do qual a chuva caía em torrente, não havia nada para ver. Ao fim de sete horas, começou a chover muito. Moco, o índio, conduziu o barco para a margem. Os outros esticaram as lonas das tendas e abrigaram‑se apressadamente. à volta chovia a cântaros, o que fazia o inerte rio Tefé espumar. Moco foi o único que não procurou abrigar‑se nas tendas. Permaneceu no seu lugar e observava a margem próxima. Ele via mais do que os outros. Muito mais! Além estava uma lata ferrugenta, presa nas raízes aéreas de uma árvore, que se erguia no rio. Além, na água pouco profunda, uma ripa de caixote. Para Moco, eram sinais alarmantes: nenhum objecto flutua rio acima. Portanto, se ali na margem estavam caixas e tábuas, deveria estar mais para cima, pelo menos um branco, talvez até mais. Donde vinham? Em Tefé não se tinha sabido de nenhum barco que tivesse viajado rio acima. A expedição de Ellen era, de certeza, a primeira que se tinha embrenhado na selva atrás do lago. Moco estava calado quando a chuva parou e Palma serviu garrafas de chá que tinha posto a refrescar na água. Mas assim que continuaram viagem, examinou a margem de perto. Ao fim de oito horas de viagem no rio, José Cascal propôs ficarem por ali naquele dia. O calor tórrido e húmido deixava‑os a todos sem forças, metia‑se nos pulmões, deixava o coração fraco, apertava as têmporas como ferro. Sentaram‑se à volta dos caixotes, molhados de suor, e dormiram como se estivessem febris. E só tinham viajado durante 8 horas.

‑ Agora um banho fresco ‑ considerou o Dr. Forster, olhando desejoso o rio Tefé. ‑ Um salto de cabeça ...

‑ Então a água ficava logo a fervilhar e você, em dez minutos, virava um esqueleto ‑ riu Cascal. ‑ Piranhas... elas não perguntam, se você é alemão. A fome delas é internacional.


Gaio Moco dirigiu o barco para um banco de areia no rio e deixou a sua quilha deslizar, devagar e cuidadosamente, pela areia. Quatro crocodilos nadaram logo para junto dele, era evidente que aquele era o seu banco de areia. Cascal resolveu o conflito à maneira da selva. Pegou na sua arma e atingiu dois dos horríveis predadores nos olhos. Eles viraram‑se, fustigaram a água com as suas caudas longas e pontiagudas, o sangue tingiu o rio... e então começou realmente a fervilhar uma maré de pequenos e fulminantes corpos sobre os crocodilos mortos, despedaçando‑os; arrancaram as bocas, apenas compostas de filas de dentes afiadas, pedaços inteiros de carne dos corpos ainda palpitantes, e em segundos transformaram os predadores em ossos roídos e placas córneas à deriva.

De olhos arregalados, Ellen fitava esta demonstração de morte e sobrevivência da Natureza.

‑ Como é tudo tão cruel à nossa volta ‑ disse Cascal, sombriamente. ‑ Senhorita, ainda podemos voltar para trás...

‑ Porquê?‑ Ellen saltou para o banco de areia. O choque já tinha sido ultrapassado. ‑ Por que dois crocodilos foram devorados? Meus senhores... ‑ Ellen olhou para os homens, a única que tinha saltado do barco. ‑ Não quero ouvir mais de vocês o quanto esta viagem é perigosa. Quem tiver medo, pode regressar. Eu, de qualquer maneira, vou seguir para a frente, está decidido.

‑ Casar com uma mulher destas significa heroísmo ‑ disse Fernando Paz, o analista, para Campofolio, pousando o seu saco na terra. ‑ E, ao mesmo tempo, ela parece um anjo do altar da igreja de Santa Bárbara.

Montaram o seu primeiro acampamento naquele banco de areia. Como o terreno era muito mole para colocar as estacas das tendas, desistiram delas e construíram pequenos quartinhos com os caixotes, esticaram a lona por cima e esconderam‑se nas suas casinhas. Campofolio e Paz adormeceram assim que a noite caiu sobre o rio e a selva; Palma ainda fez chá para a manhã seguinte e pôs as suas garrafas no rio, para as refrescar. Alexander Jesus Guapa correu de uma pilha de caixotes para outra, perguntando se estava tudo em ordem, depois eclipsou‑se no barco e enrolou‑se entre dois sacos para dormir. Cascal também se recolheu. à luz de uma lanterna, mediu no mapa o caminho que tinham percorrido. A velocidade que o barco tinha feito naquele dia, permitia‑lhe facilmente calcular os quilómetros. O cansaço que todos tinham sentido era de chumbo. Os lombinhos de porco que Palma tinha cozinhado estavam deliciosos, mas não foram apreciados, estavam demasiado cansados para isso. Depois apareceu a noite, uma noite tropical cheia de magia com um céu estrelado como nos contos de fadas. A selva cheirava agora a sedução, apenas o rio Tefé cheirava fortemente a especiarias. No muro alto e verde‑escuro, pequenos pássaros de longas caudas sussurravam e murmuravam da escuridão e precipitavam‑se sobre o rio. Algures cantava um pássaro nocturno desconhecido, melhor que um rouxinol, prolongado, suave, com uma melodia suspensa. Na manhã seguinte, depois do pequeno almoço, pelo qual Palma foi adorado, pois um cozinheiro deve ser tratado com boa disposição, se não o estômago tem de se queixar, retomaram a viagem pelo rio. Cascal tinha calculado aproximadamente setenta quilómetros de distância desde o lago Tefé, quando Moco ligou o motor e gritou para o lado dos outros:


‑ O tanque está vazio! Tenho de o atestar novamente. - Ele instalou um tubo de sucção até aos dez barris de gasolina, colocados no meio do barco, destapou o primeiro barril e aplicou a bomba de sucção. Fez plop, plop e bombeou ar no depósito do motor. Moco tirou a bomba e bateu no barril. O seu rosto parecia uma máscara rígida. Arrancou o tubo, virou o barril e com um pontapé fê‑lo rolar no convés.

‑ Vazio! ‑ gritava ele ao mesmo tempo. ‑ Vazio! ‑ Bateu nos outros barris. Em todos o mesmo som. ‑ Todos vazios! ‑ gritou ele cerrando os punhos. ‑ Não temos mais gasolina!

‑ Mas é impossível... ‑ balbuciou Campofolio. ‑ É impossível. Que é que nós fazemos num barco sem gasolina?

Alexander Jesus dançava como um louco no convés.

‑ Diabo! ‑ gritava ele. ‑ Com todos os diabos! Os barris estavam cheios. Eu próprio os fiz rolar para bordo! Alguém os esvaziou antes de nós sairmos! Não tenho culpa, não tenho culpa...

Ellen dirigiu‑se para Moco. Estava inclinado para o motor silencioso, os seus olhos estavam escuros e perigosos. A selvajaria da sua selva natal tinha voltado.

‑ Os homens brancos fizeram sabotagem ‑ disse ele sombriamente. ‑ Não podemos continuar... Só estava um barril cheio, e eu gastei‑o.

José Cascal abriu caminho por entre a bagagem. Estava nervoso como os outros e ergueu os braços quando parou em frente da Ellen.

‑ Isto é o fim! ‑ exclamou. ‑ Não vamos mais para a frente! Sem gasolina está tudo acabado! Eu proponho virarmos e deixarmo‑nos levar pelo rio. Em dois dias, estaremos de volta ao lago e lá poderemos enviar sinais luminosos.

‑ Você pode voltar para trás, José! ‑ disse Ellen empurrando o perplexo Cascal para o lado. ‑ Quando a técnica falha, o animal que há no homem tem de aparecer. Eu continuo o caminho a pé.

‑ A pé? ‑ gritou Cascal.‑ Isso é uma loucura!

‑ Deixe‑me, José.‑ Ellen olhou para os homens perante ela.‑ Se todos querem voltar para trás... façam favor. O barco pertence‑vos. Eu vou atravessar a floresta. Um de vocês, eu sei, vai‑me acompanhar: Moco.

‑ A todos os quatro ventos! ‑ disse o índio com voz firme.

‑ Eu não o permito! ‑ exclamou Cascal.

‑ Aqui na selva, a autoridade governamental não existe mais. Quer‑me dar ordens? Quer‑me deter à força?

‑ Se for necessário, sim! ‑ Cascal tirou, como por encanto, de imediato, uma pistola do seu casaco colonial. ‑ Dra. Donhoven, seja razoável. A pé através da floresta! Através de uma podridão de séculos... com serpentes e animais selvagens, índios, que só conhecem a morte, milhares de mosquitos venenosos, eu não o permito.

‑ Moco ‑ disse Ellen, virando a cabeça para ele ‑, ele quer‑nos obrigar.

‑ Pense nas piranhas, senhor! ‑ disse Moco, sombriamente. Era uma ameaça que qualquer um percebia. Cascal baixou a pistola.

‑ Temos de falar e pensar em tudo com toda a objectividade - disse ele. ‑ A coragem é magnífica, mas o limite da loucura está a ser ultrapassado demasiado depressa. Pense numa coisa: como é que quer orientar‑se na selva? Com a bússola? Senhorita, isto aqui não é nenhum passeio no campo.

‑ Moco guiar‑nos‑á.

Cascal deitou um olhar ao índio, como se o quisesse ver no Inferno.


‑ E isso é suficientemente seguro para si?

‑ Sem dúvida. Um homem que quer ir para a sua rapariga encontra sempre o caminho... mesmo através da seiva.

‑ A mulher... ‑ o Dr. Forster sorriu para Ellen. ‑ Está a ver, agora falou a mulher que há em si. - Cascal pousou a mão no ombro do brasileiro. ‑ Mais uma alteração na situação: eu também vou! Fico junto de Ellen, mesmo que o nosso caminho seja através de pântanos infestados de dragões. - Cascal andava às voltas. Procurava as palavras e finalmente disse apenas, fatigado:

‑ Há mais idiotas a bordo?

‑ Somos todos idiotas, senhor. ‑ Fernando Paz esfregou o seu nariz grosso. ‑ Não deixamos a nossa doutora sozinha! Para mais tarde cuspir em todos os espelhos?

‑ Bom! Bom! ‑ Cascal afundou‑se esgotado num caixote. ‑ Todos homens de bem! Todos suicidas! Senhores... nenhum de vocês vai voltar, isso digo‑vos eu!

‑ Não, pelo contrário. Você é que vai! ‑ Ellen fez um amplo, movimento com a mão. ‑ Leve o barco e deixe‑se ir à deriva. Moco. a gasolina ainda chega até à margem?

‑ Sim, senhorita.

Ele ligou o motor e dirigiu o barco até à margem lamacenta e fétida. Alexander Jesus, que foi o primeiro a saltar para terra, enterrou‑se até aos joelhos no pântano choco, mas depois de alguns passos já pisava terreno firme e sacudiu a lama das suas pernas. Apanhou a amarra que Moco lhe atirou, atou‑a a um tronco de árvore e puxou o barco para tão perto que só com um salto se podia alcançar terra firme.

‑ Vamos preparar a bagagem ‑ disse o Dr. Forster, assim que todos desceram. ‑ Só o mais necessário, só o que cada um possa levar facilmente. Nada de pesos. O mais importante são as armas, as munições, os medicamentos, os fósforos, os utensílios de laboratório, a caixa do equipamento fotográfico e as panelas de Palma. E naturalmente os mosquiteiros.

Empurrou Cascal que, mal humorado, estava parado na margem a fixar o rio.

‑ Quando você chegar a Tefé com o resto da carga, ponha‑a no armazém atrás do hotel. As coisas ainda foram caras e não se podem perder.

‑ Porquê eu? ‑ Cascal andou em volta. O seu rosto estava acinzentado. Ele tinha as suas ordens e tinha feito uma promessa, para ele, não havia outra escolha: ‑ Afinal sempre vou!

‑ Você? Agora é de vez?

‑ Não sou nenhum cobarde. Mas odeio a estupidez.

‑ E apesar disso quer ir?

‑ Sim. Mas apenas porque está aqui uma mulher. - Dobrou‑se e apanhou os caixotes que Palma, Moco e Alexander Jesus tinham tirado do barco. E depois veio a noite... a primeira debaixo do enorme tecto de folhas da selva, a noite antes da caminhada para o incerto. Uma noite cheia de avisos...

 


Capitulo 2

As tendas estavam montadas, duas fogueiras ardiam, atraindo para ali uma nuvem de mosquitos. Rafael Palma lavava as suas panelas e a louça de servir no rio e esfregava‑as com areia. Ellen escrevia, à luz de um candeeiro a pilhas, as últimas frases no seu diário da expedição e José Cascal estava em pé entre as bagagens, fixando o rio, mal‑humorado. O seu problema estava agora, devagar, a avolumar‑se na sua cabeça. O general tinha dito claramente: "Impeça a entrada na nascente do rio Juma." Cascal girou em torno de si e abrangeu com a vista toda a actividade do pequeno acampamento. Viu como Alexander Jesus escolhia uma grande árvore para, como um macaco, se segurar nas lianas, trepar pelo tronco e se sentar numa bifurcação de dois ramos grossos. Aí, acocorou‑se como uma pantera e sorriu ironicamente para Palma, que estava por baixo da árvore, a esfregar as suas panelas.

‑ Melhor que qualquer tenda! ‑ gritou Alexander lá do alto.

‑ Vem cá para cima, Rafael.

O cozinheiro tocou levemente na testa e arrastou‑se até à tenda da cozinha. Triste, acocorou‑se entre todos os seus tesouros, dos quais ele só tinha conseguido trazer uma parte. Como cada um tinha de carregar com o seu próprio equipamento, apenas Gaio Moco arcou com uma parte da bagagem de Ellen, Palma estava indeciso quanto ao que devia carregar às suas costas. Havia um grande dilema que lhe dava que fazer: cozinhava e comia de bom grado, mas detestava qualquer peso no corpo. Suspirando, arrastou‑se para debaixo de um mosquiteiro e antes de adormecer pensou, com um arrepio, que no futuro só serviria peixes do rio e animais da selva que pudessem caçar. Principalmente macacos! Rafael Palma conhecia trinta e quatro receitas diferentes de como se podiam preparar, mas isso pouco o consolava.

Embora, no fundo, não se considerasse muito necessário, resolveram montar sentinela.

‑ Para o nosso próprio descanso ‑ disse Dr. Forster, olhando para cima para Alexander Jesus, que estava confortavelmente deitado no seu ramo bifurcado, mascando pastilha elástica. Depois virou‑se para Ellen, que estava sentada num caixote diante da sua pequena tenda e fumava um cigarro em silêncio.

‑ Você também dorme mais descansada, Ellen.

‑ Eu não conheço o medo, você sabe disso, Rudolf. Por que é que alguém nos iria atacar? Vimos com intenção amigável.

‑ Seria bom se se pudesse dizer isso aos animais selvagens. ‑ José Cascal voltou do rio, onde estivera amuado. Ainda não sabia como se devia comportar nos dias e semanas seguintes. Apenas sabia uma coisa: "Não vamos chegar à nascente do rio Juma, nunca! Não podemos lá chegar."

‑ Por isso estará sempre uma fogueira a arder. ‑ Forster esvaziou, em pequenos goles, o resto da sua cerveja e atirou a lata para longe, para o enredado da selva. Depois do jantar, Palma já tinha regalado todos com duas cervejas; eram as últimas, pois os dois caixotes de cervejas americanas tinham de ali ficar.

‑ A sentinela deve dar o alarme à mais pequena dúvida.

‑ Vai ser uma noite serena! ‑ Cascal riu sarcasticamente.


‑ Quando o Alexander Jesus ouvir um macaco murmurar a dormir, dispara sobre ele próprio. A selva está cheia de ruídos desconhecidos. Ellen Donhovem sorriu cansada e abanou a cabeça.

‑ José, você é uma pessoa teimosa. De modo algum podem morar tantos diabos nesta floresta para me fazerem medo.

‑ A insensatez é a maior doença deste mundo. ‑ Cascal levantou os ombros resignadamente. ‑ Boa noite!

‑ Boa noite, José!

Cascal estava, justamente, a afastar a entrada da sua tenda, quando estremeceu e ficou parado, com a cabeça retraída. Sobre ele, algures no céu escuro para os lados do rio, ouviu‑se um ruído de motor. Aproximou‑se rapidamente, como uma súbita trovoada, a ribombar, cresceu e desapareceu, também rapidamente, na escuridão. O eco pairou no silêncio da floresta. Gaio Moco, que tinha trazido madeira seca do rio para as fogueiras, fixou o olhar para cima, para a escuridão da noite. Campofolio e Fernando Paz deitaram a cabeça de fora das suas tendas.

‑ Diabo, eram aviões! ‑ exclamou Palma, apontando para o céu.

‑ Deve ter sido uma formação completa.

O Dr. Forster olhou Ellen, atónito.

‑ O som parecia de aviões pesados. E isto no meio da noite, sob a selva?

‑ Disparate! ‑ Cascal tinha‑se acalmado. Fazia sinais com ambos os braços e abanava a cabeça. ‑ Era uma trovoada.

‑ àquela velocidade? Então as árvores dever‑se‑iam ter agitado. e nós quase não temos vento.

‑ Aviões! Senhores, isso seria contra toda a razão. ‑ Cascal riu‑se asperamente, não se sentia bem. ‑ Para onde é que eles voariam? Estamos perante alguns milhares de quilómetros de "nada".

‑ Eram motores de avião! ‑ disse Campofolio teimosamente

‑ Já andei tanto de avião na minha vida que conheço muito bem o som. Mas o que é que há de tão importante assim nisso? Talvez seja militares. Boa noite....

O primeiro turno de sentinela estava a cargo do Dr. Forster. Esperou perto da tenda de Ellen, até a ténue luz se apagar lá dentro, e depois andou com dificuldade até à fogueira e lá instalou‑se em cima de um barril de gasolina vazio. Gaio Moco, uma pessoa que aparentemente nunca estava cansada, estava deitado no chão, do outro lado das chamas. Forster atirou‑lhe o seu maço de cigarros, por cima do fogo. Agradecido, Moco acenou‑lhe com a cabeça. Acendeu um cigarro e fumou‑o como uma rapariga pouco habituada, apertando‑o entre o polegar e o indicador. Depois de cada chupada, voltava a aspirar o fumo através dos lábios em bico.

‑ Gaio, seja totalmente honesto ‑ disse o Dr. Forster.

‑ Moco não conhece a mentira. ‑ O índio fixava o olhar no seu cigarro.

‑ O que a senhorita Ellen está a fazer tem algum sentido? Alguma vez chegaremos ao Juma através desta floresta gigantesca?

‑ Desde que eu esteja convosco, sim. Sozinhos, nunca.

‑ Conhece bem o terreno?

‑ Eu sei onde vive a minha tribo. É perto da Juma.

‑ Supondo que alguma coisa acontece... Uma mordidela de serpente, febres, qualquer azar... quais serão, então, as nossas possibilidades?


‑ Muito más, senhor. ‑ Moco atirou a beata para o fogo. ‑ A floresta devorar‑vos‑á como uma serpente devora o rato.

‑ Obrigado, Gaio. ‑ O Dr. Forster apoiou a cabeça nas duas mãos. Fernando Paz rendeu‑o duas horas mais tarde. Depois foi Campofolio a fazer sentinela e depois dele foi Palma que se sentou à fogueira. Afastado de todos, Moco estava deitado no chão a dormir. Enrolado, mal respirava, pouco incomodado com os mosquitos. Antes de dormir, tinha‑se untado com o sumo de uma planta, não se sentia cheiro, mas deveria cheirar mal aos mosquitos. Zumbiam num arco à sua volta. Rafael Palma dormia. Não se lhe podia levar isso a mal. Com uma grande tristeza no coração, sentara‑se no meio das suas provisões, pouco antes de iniciar a sentinela, e escolhera e embalara um saco, lançara‑o sobre os ombros, mas como era demasiado pesado, desembalara‑o novamente. O que tinha sobrado, finalmente, eram 15 quilos de conservas, além das panelas e das frigideiras grandes, que ele juntou numa trouxa e pendurou ao pescoço, a servir de contrapeso ao saco. Apareceram‑lhe lágrimas nos olhos assim que marcou definitivamente a bagagem de marcha. De dia para dia, esta tornava‑se mais leve, consolava‑se ele. Mas a vida também ficou um desconsolo. sempre só peixe ou coxa de macaco com molho de passas, o que era um tormento para um cozinheiro tão divino como Rafael Palma. Depois adormeceu, sentado à fogueira com a cabeça pendente e a ressonar alto. Ao lado, no alto, Alexander Jesus grunhia na sua árvore. E nada aconteceu, nenhum animal selvagem entrou furtivamente no acampamento e apanhou Palma na fogueira, nenhuma serpente estrangulou Guapa na sua árvore, nenhum índio sedento de sangue cortou a cabeça de Moco. A noite passou e, como Palma dormia e o seu substituto não acordou, dormiram todos pela manhã dentro. Mas depois acordaram sobressaltados, saltaram das suas tendas e pegaram nas armas, prontos a disparar. Um grito estridente alertara‑os. Depois repetiu‑se, e fora Alexander Jesus, que o soltara. Arrojou‑se para as lianas da sua árvore, tremendo com o corpo todo. Se os negros podiam ficar pálidos, então Guapa estava‑o. A sua pele escura parecia azul‑acinzentada. Assim que chegou a terra firme, começou a dançar à roda, como se tivesse sido mordido por milhares de formigas. Tinha a boca muito aberta, mostrando os dentes brancos, e soltava sons que soavam como grunhidos de leitões. Algo se bamboleava no seu pescoço, que à noite, seguramente, ele não tinha levado para a árvore consigo. O Dr. Forster e José Cascal reconheceram logo o que era, e os Olhos de Moco cintilaram também, perigosamente.

‑ Ficou maluco? ‑ perguntou Ellen admirada.

‑ Não lhe podemos levar a mal.

O Dr. Forster apontou para o objecto que estava pendurado no pescoço do Alexander Jesus:

‑ Uma cabeça mirrada...

‑ Meu Deus! ‑ Ellen cravou os dedos no braço de Forster. Palma e Moco dominaram Guapa, que, gritando, batia em si próprio quando chegaram ao pé dele. A sua boca espumava, os olhos estavam esgazeados de medo. Moco levou o terrível aviso a Ellen, na palma da mão como se estivesse a entregar um presente numa bandeja de prata.

‑ Era um branco ‑ disse Moco calmamente, ‑ Temos de ser cuidadosos.


‑ Recuar! ‑ gritou Cascal. Os seus olhos demonstravam autêntico medo. Aquilo não tinha sido planeado, não era nenhuma encenação sobre o medo ... aquilo era selvajaria autêntica, uma ameaça de morte que pairava sobre eles. ‑ Recuar imediatamente! Deixamo‑nos ir no barco, rio abaixo, até ao lago. Retiremo‑nos! Para trás!

‑ Um momento, José! ‑ Ellen olhou o Dr. Forster. No olhar dele também se lia horror. ‑ Esta expedição é sua ou minha?

‑ Isso agora já não tem mais importância! ‑ exclamou Cascal. - Como representante do governo, eu ordeno o regresso!

‑ Você está a repetir‑se, José. Já lhe disse ontem que aqui na selva sua estúpida autoridade estatal acaba.

‑ Esta cabeça mirrada de um branco não é suficiente? Se todos deveremos ter este aspecto dentro de alguns dias? - gritou Cascal. - As fogueiras estavam acesas, estava uma sentinela a vigiar e havia um índio... ‑ apontou para Moco, que ainda tinha na palma da mão a repugnante cabeça mirrada ‑, tínhamos connosco um índio, que deveria ouvir os vermes rastejarem... e apesar disso um selvagem conseguiu trepar até Guapa, no cimo da árvore, e pendurar‑lhe esta coisa medonha ao pescoço. Se isto não é suficiente, não sei o que é que poderá impedir esta loucura de continuar. Devemos todos morrer realmente?

‑ Eu vou continuar! ‑ disse Ellen calmamente. ‑ Moco? Que é que tu achas?

‑ Deixe‑me ir sozinho, senhorita...

‑ Tu também? ‑ A decepção espelhava‑se no rosto de Ellen. Curvou a cabeça e pensou nas narrativas sobre as caçadas destes caçadores de cabeças. Aquele crânio arreganhava‑lhe os dentes, tão grande como um punho de criança, com os ossos todos soltos, secos e curtidos, mas claramente reconhecível como uma cabeça de homem branco. O segredo e o terrível destino desta pessoas gelava‑os. Quem teria sido? Um aventureiro? Um coleccionador de orquídeas? Um investigador? Um missionário? Um caçador? Todos os anos a selva engolia uma quantidade de brancos e ninguém os via mais. Ninguém os procurava. Também, para quê? Nunca são encontrados, e onde é que se devia começar a procurar? Depois, por acaso, as expedições encontram vestígios de brancos mortos, ou os índios trazem consigo, dos grandes rios, narrativas sobre a morte de inimigos brancos.

‑ Que é que vais fazer agora com ele? ‑ perguntou Ellen, em cuja voz transparecia cansaço. Gaio Moco fechou a mão na pequena cabeça branca amarelada.

‑ Vou pendurá‑lo à minha cintura.

‑ Temos que sepultá‑lo como um cristão ‑ disse Campofolio, que ainda se lembrava da sua educação religiosa na Sicília.

Na margem, começou um ruído novo. Alexander Jesus arrastava os caixotes de volta para o barco e lá começou a gritar orações à Virgem e aos santos com voz cantante. Estava totalmente desconcertado, o medo primitivo da sua raça a demónios roubava‑lhe o entendimento.

‑ Vamos deitar abaixo as tendas ‑ disse Ellen, cravando as mãos nos bolsos do seu fato colonial. Ninguém devia ver como elas tremiam

‑ Os senhores podem voltar para Tefé. Boa viagem! Moco, junta as nossas coisas. Seguiremos dentro de uma hora...

Virou‑se e dirigiu‑se a passos largos para o rio.

‑ Devia‑se partir‑lhe a cabeça ‑ sibilou Cascal.


‑ Com quê? ‑ O Dr. Forster sorriu. ‑ Ainda tem de ser inventado o objecto que o faça ‑ Olhou os outros homens e limpou o suor da testa. Com o sol da manhã tinha também vindo o calor de chumbo. A floresta fumegava. ‑ Que é que decidiram?

‑ Isso pergunto‑lhe eu primeiro ‑ resmungou Fernando Paz.

‑ Eu fico com ela ‑ disse o Dr. Forster.

‑ Mais um louco! ‑ exclamou Cascal.

‑ Eu amo‑a. ‑ O Dr. Forster respirou fundo. ‑ Por isso tenho razão para encarar a maior loucura como uma coisa normal.

Uma hora mais tarde começou a caminhada através da selva desconhecida. Ninguém faltava, todos iam com ela. Até Alexander Jesus. Tinha rezado alto para si, durante quatro horas, até estar rouco, mas não ficou para trás. Voltar sozinho com o barco pareceu‑lhe mais inseguro do que ir com os outros em frente para o inferno verde. Moco e Rafael Palma seguiam à frente. Com machados afiados abriam caminho no enredado da mata. Metro após metro, hora após hora... perante eles o infinito verde e ondulado. Era como se um caracol fosse a caminho de conquistar a América.

 

Durante quatro dias lutaram com a floresta. Era uma tortura que lhes tirava as forças. Todas as noites Ellen seguia no mapa até onde tinham ido, apesar de os trajectos parecerem ridículos em relação à distância que ainda tinham pela frente. José Cascal calculava que a expedição, àquele ritmo, precisaria de meio ano para chegar até à foz dos rios Juma e Itanhaua, se o conseguisse.

‑ Mesmo que dure um ano ‑ disse Ellen teimosamente. ‑ Eu tenho tempo.

Na quarta noite, Paz e Campofolio encontraram algo estranho: na margem do Tefé estavam dois cartuchos vazios, presos na rede de gavinhos da água.

‑ Cartuchos de espingarda! ‑ identificou o Dr. Forster. ‑ Isto é espantoso. Não estão no rio há muito tempo. Deve haver uma expedição a atravessar a floresta, à nossa frente.

‑ Impossível. Toda a expedição tem de ser participada e autorizada em Manaus. ‑ Cascal mirava os cartuchos com uma cara sombria.

‑ Um caminhante isolado... Ainda há disso?

‑ Aqui nesta terra há de tudo, senhor ‑ disse Cascal, metendo os cartuchos dentro do bolso. Na tenda, observou‑os com uma lupa... eram cartuchos de origem americana. ‑ Diabo! ‑ murmurou ele, embrulhando‑os como se fossem de ouro. Os tipos em Tefé andavam a dormir. Deviam levar pancada até à morte.


Nessa noite, Alexander Jesus teve uma nova aventura. O facto de ser ele, o homem negro e corajoso, que todas as noites dizia obedientemente as orações como a sua mãe lhe tinha ensinado, sempre o atingido, encarava‑o ele como um golpe do destino cego. Fora com Palma a uma margem do rio pouco profunda, onde se viam grandes peixes, que Palma ainda não sabia ao certo se podiam ser comidos, quando subitamente ouviu um ruído atrás de si. Alexander Jesus deu um salto para o lado, mas foi em falso. Pisou qualquer coisa mole e redonda, tropeçou, caiu de joelhos e durante alguns segundos ficou abraçado a um corpo móvel, manchado e escorregadio. Uns músculos monstruosos comprimiram‑se à sua volta, estrangularam‑lhe as ancas e fizeram as suas articulações ranger. Alexander Jesus gritou como se estivesse num espeto. Palma, que estava parado na margem do rio a pensar como é que se poderiam apanhar os peixes grandes, se com um anzol ou com uma lança, à maneira indígena, foi até lá. Viu o seu amigo lutar com uma gigantesca anaconda, uma serpente não venenosa, mas sem dúvida alguma potente, da qual se sabe que engole e devora por inteiro pequenos porcos e outros animais de tamanho médio. Sibilante, abria agora a sua boca larga e levantava a cabeça na direcção de Palma, enquanto, com o seu corpo, ameaçava estrangular o pobre Alexander Jesus.

‑ Socorro! ‑ gritou Palma. ‑ Socorro! Correu para o acampamento, onde os outros já tinham ouvido os gritos horríveis de Guapa e corriam para o rio com armas e machados afiados.

‑ Uma anaconda! Um bicho gigante! Ela está a esmagá‑lo... depressa!

José Cascal foi o primeiro a alcançar a margem. Tentou inutilmente ter a cabeça da serpente em mira, de maneira que não atingisse também Alexander Jesus. Mas o negro, sempre a gritar, estava sempre no caminho... bateu insensatamente no corpo escorregadio e procurou agarrar, com as mãos, a cabeça da serpente. Com três saltos de pantera, Moco chegou ao pé dele. O machado fulminou no ar, ouviu‑se algo a ranger, e a cabeça da serpente gigantesca caiu para o lado. Mas os músculos do corpo não tinham ainda afrouxado, mantinham a sua vítima apertada. Só quando Moco e Cascal puxaram em conjunto o corpo palpitante é que Guapa se pôde livrar do aperto mortal, rolou alguns metros no chão e ficou, então, deitado de costas, como um peixe lançado à terra.

‑ Virgem Maria ‑ gemeu ele. ‑ Por amor de Deus! Não te rezo sempre? ‑ Depois chorou como uma criança, e Palma deu‑lhe a penúltima lata de cerveja para beber. O Dr. Forster, mais tarde, mediu a serpente; tinha seis metros e quarenta centímetros de comprimento e era tão grossa como uma coxa de homem. O único que estava contente com a serpente era Rafael Palma. Pronto, à noite havia bife de serpente coberto de paprica. Mas, apesar de ser delicioso, foi com

grande sacrifício que o Dr. Forster, Ellen e Campofolio tragaram os bocados. Palma resplandecia. Ele conhecia onze receitas de serpente. Onde é que no mundo inteiro havia um cozinheiro como ele? Depois desta nova aventura de Alexander Jesus, Ellen compreendeu que a caminhada através da selva não estava dependente do tempo, mas sim dos nervos das pessoas. Com toda a sua coragem masculina, Fernando Paz dava agora razão ao reservado Cascal:

‑ Era melhor voltarmos para trás e prepararmo‑nos de novo ‑ disse ele. ‑ Assim ainda é possível. Com o barco admitia‑se, fazia sentido... mas o que agora temos de empreender é absurdo. Voltar para trás, carregar mais gasolina e seguir em frente mais uma vez... assim está certo. O que é que acha, Pietro?

Campofolio, sempre cavalheiro, como italiano que era, olhou de soslaio para Ellen. Viu o seu ar frio e deu consigo próprio num enorme conflito íntimo. No fundo, tinha medo, mas qual era o homem que o mostrava na presença de uma mulher bonita?

‑ Se se deixar só a inteligência reinar... ‑ esquivou‑se ele.


‑ Só a inteligência nos pode salvar agora! ‑ O Dr. Forster pôs o braço no ombro de Ellen. Sentiu a rejeição dela... ficou rígida. - Desde há alguns dias sabemos que corremos para o infindável sem uma centelha de esperança. Desde há alguns dias que falamos sobre isso, mas vamos continuando em frente como os cordeiros. Ellen... sua cabeça dura, quer jogar com a sua vida?

‑ Quero. Era uma resposta clara e simples. Contra ela não havia mais perguntas. O Dr. Forster levantou‑se e começou a andar de trás para a frente junto da fraca fogueira. Gaio Moco observava‑o do seu lugar. Para ele, o mundo era mais simples. Ele voltava para a sua tribo, ia matar o feiticeiro porque ele mentia às pessoas, e depois casaria com Ynama, a rapariga dos cabelos longos. "Que pobres são os brancos", pensava ele. "Fazem da sua vida um inferno..." De manhã, Moco fez uma boa proposta, Declarou a Ellen Donhoven que deviam construir pirogas.

‑ Vai levar algum tempo ‑ disse. ‑ Mas temos aqui todas as ferramentas necessárias. Vou escavar três troncos e esculpir uns remos largos. Se remarmos nestes troncos pela beira do rio, onde a corrente não é muito forte, iremos mais depressa do que por terra. Podemos até empurrá‑las com umas varas compridas, nos sítios menos profundos.

‑ Andar de gôndola na selva ‑ disse Campofolio, sorrindo ironicamente. ‑ "ó mia bella Venezia!" Mas é uma boa proposta. Muito bem.

Fernando Paz também estava entusiasmado. Palma e Alexander Jesus estavam sempre de acordo e abanavam afirmativamente a cabeça com rostos resplandecentes.

‑ Piroga... óptimo! ‑ disse Guapa. ‑ Vamos deixar esta terra amaldiçoada por Deus.

O único que não concordou foi José Cascal. A proposta de Moco contrariava os seus planos novamente. Olhou para o índio venenosamente.

‑ E os rápidos? ‑ perguntou ele. ‑ Nós sabemos, através de fotografias aéreas, que em cima no rio há uma série de rápidos com cascatas. E lá não há piroga que se aguente. Vamos andar à deriva como madeira seca.

‑ Evitamos os rápidos ‑ disse o Dr. Forster. Viu que Ellen acolhia a proposta de Moco como um sedento recebe um gole de água. ‑ Junto das cascatas trazemos os barcos para terra e continuamos a viagem. De certeza que vamos mais depressa do que a pé pela selva.

‑ Já arrastou alguma vez um tronco de árvore? ‑ exclamou Cascal. 

‑ Vou arranjar madeira leve ‑ retorquiu Moco, calmamente. ‑ Madeira de Muahua. Pesa tanto como a cortiça...

José Cascal cerrou os punhos atrás das costas. "Não fazia sentido", pensou ele, "continuar a ser humano." Não fazia sentido, evitar o mais necessário. "O índio tem de desaparecer. Ele é a alma deste grupo. Se eu matar a alma, o corpo fica inútil. Sem Moco, Ellen Donhoven já não é mais uma heroína." Encolheu os ombros, resmungando:


‑ Mais tarde vão‑me dar razão. - E foi para a sua tenda. A morte de Moco foi decidida naquela manhã. Muito cedo, porém, foram construir as pirogas. Moco e Palma vaguearam pela floresta e procuraram os troncos certos, deitaram‑nos abaixo, cortaram‑lhes os ramos e voltaram depois para o acampamento, com uns compridos pedaços de árvore. Trouxeram‑nos sozinhos sem grande esforço; os troncos eram redondos e grossos que nem quatro fortes cavalos. O Dr. Forster e Campofolio ficaram admirados. Levantaram os troncos bastante alto e não se cansaram muito a levá‑los. De facto, deviam ser bastante fáceis de escavar, como a cortiça, semelhante à balsa, que flutua sempre e nunca se afunda. Para Cascal, aquilo já não era uma maravilha da Natureza, ele conhecia a madeira Muahua, da qual os índios esculpiam as suas canoas, rápidas como setas. Com a corrente, no meio do rio, flutuavam nas suas pirogas mais rapidamente do que uma lancha.

‑ Quanto tempo vai demorar até podermos ir? ‑ perguntou Ellen, assim que Moco tinha pousado os troncos nuns baixos cavaletes e marcado o contorno da cavidade com um machado.

‑ Um mês, talvez dois, senhorita.‑ Moco olhou o rio próximo. Os outros tinham aberto um lugar no emaranhado da selva e começaram a instalar‑se para mais tempo. Palma e Alexander Jesus fizeram uma lareira com pedras do rio. Quem comia. sempre bem, tinha sempre ânimo, era a opinião de Palma.

‑ Dois meses! ‑ Cascal arrancava teatralmente os cabelos. ‑ Até lá, vamos apodrecer aqui!

‑ Temos tempo, muito tempo. ‑ Ellen Donhoven sorriu para Moco, agradecida. ‑ Construa‑nos uns barcos bonitos, Gaio.

Claro que estes longos dias não se passaram sem haver incidentes. Enquanto Moco, Palma, Guapa e Paz trabalhavam nas pirogas, em tronco nu, molhados de suor, que Moco untava com o seu sumo de plantas desconhecidas que mantinha todos os insectos afastados, Cascal sentava‑se em volta e estorvava onde podia. Em pouco tempo, todos o odiaram, e o Dr. Forster disse‑lhe uma vez:

‑ Senhor Cascal, você pode ter uma outra opinião diferente da nossa, pode, como funcionário, ter as suas ideias próprias, isso todos nós respeitamos. Mas é impossível que você impeça sempre o trabalho, como um travão.

‑ Você vai ver onde é que isto tudo vai levar ‑ disse Cascal duramente. ‑ Nenhum de nós vai sobrevivera este disparate. Somos todos uns suicidas convictos, loucos.

 

A construção das pirogas ia bem. Já estava escavado um tronco, que Moco podia deixar ir para a água, para fazer uma viagem experimental através da baía. Flutuava perfeitamente, só que era susceptível de se virar. Cascal sorria larga e ironicamente.

‑ Se se voltarem no Reno ou no Elba, não é perigoso ‑ disse ele maliciosamente. ‑ Lá pode‑se nadar facilmente para a margem. Mas se se voltarem no rio Tefé então teriam de ser campeões internacionais de natação, as piranhas tornar‑vos‑iam em esqueletos em dez segundos! Cair na água é para nós uma garantia de ter uma sepultura a valer.

‑ Ainda não está pronto ‑ disse Moco, fulminando Cascal com os seus olhos castanho‑escuros. ‑ O equilíbrio é a maior arte na construção das pirogas. Eu aprendi isso, fui eu que construí as melhores canoas da minha tribo.

No décimo nono dia algo aconteceu de novo. Desta vez, a vítima não foi Alexander Jesus, mas sim o cozinheiro Rafael Palma. Ao procurar lenha para a fogueira, pisou algo escorregadio e foi mordido. Não gritou como Guapa, mas dirigiu‑se de volta ao acampamento, saltando sobre a perna sã, deitou‑se de costas e descalçou o sapato. Na parte de cima do tornozelo podia ver‑se nitidamente a ferida, que os dentes da serpente tinham feito. Não sangrava muito, mas o tornozelo inchou imediatamente, ficando azulado.


‑ Eu estou a gelar, senhor ‑ disse Palma, assim que o Dr. Forster começou com a operação. ‑ Eu estou a gelar, como se estivesse no Inverno. Estou a bater os dentes... Vou morrer? ‑ murmurou Rafael.

‑ Doutor... eu gelo... eu gelo...

‑ Vai sobreviver. ‑ Depois de uma anestesia à perna inteira, o Dr. Forster abriu o tornozelo de Palma. Ellen assistiu‑lhe e era como se estivesse em Estugarda, no hospital, quando era uma jovem estagiária do médico‑assistente, Dr. Forster, que segurava os instrumentos e ligava os vasos que ele lhe indicava. Fez um corte muito para além do músculo penetrado pelo veneno, espalhou penicilina na ferida, Colocou um dreno e ligou, depois, a perna. Palma jazia no convés e fixava o céu azul com os olhos arregalados de susto. Ele tinha‑se dado logo como liquidado.

‑ Não podemos continuar, de maneira alguma, antes de Palma estar curado ‑ disse Ellen ao fim da tarde. ‑ Portanto, instalemo‑nos logo.

Já estava a anoitecer quando Alexander Jesus, que estava a ver as suas ratoeiras no rio, saltou para uma elevação e atirou os dois braços para o ar. Assim que ouviram os seus gritos, pensaram logo que alguma coisa lhe tinha acontecido novamente.

‑ Um barco! Um barco! Um barco com um homem branco! Cascal saltou como se tivesse sido atingido. Arrancou a sua arma do chão e correu para a margem. Os outros mal conseguiram segui‑lo, só Moco o alcançou com saltos longos e elásticos, silencioso como um gato, como um animal.

‑ Isso é impossível! ‑ exclamou Palma, enquanto corria. ‑ De onde é que apareceu aqui um branco?

‑ Pense nos cartuchos vazios! ‑ exclamou o Dr. Forster. ‑ Além... ouça... Ouvia‑se distintamente o roncar fraco e claro de um pequeno motor fora de bordo. Que som, nesta selva verde, que música da longínqua civilização. Um motor! Um barco a motor!

‑ Um motor! ‑ gritou Campofolio, dançando à roda com Guapa.

‑ Um motor! Temos um motor outra vez! ‑ E depois cantou O sole mio e correu cantando para o rio. Era mesmo italiano! Na margem, Alexander Jesus acenava com a sua camisa e gritava :

‑ Aqui! Aqui! ‑ José Cascal disparou para o ar duas vezes e Moco acendeu rapidamente uma fogueira, deitando‑lhe ervas secas para cima. O fumo branco e espesso estendeu‑se densamente sobre o rio.

‑ Aí vem ele! ‑ exclamou Campofolio, olhando através dos binóculos. ‑ Está a acenar‑nos. Meu Deus, o negro tem bom olho. É realmente um branco.

O pequeno barco aproximou‑se da baía devagar. O homem que nele estava sentado e que tinha desligado o motor vestia um fato verde semelhante a um camuflado do exército, e um chapéu entrançado. Era alto e forte, bem barbeado e irradiava tal força que à primeira vista não havia selva infestada de febres que a vencesse. Assim que tirou o chapéu, pois viu uma mulher na margem, o seu cabelo louro e espesso brilhou ao sol do fim da tarde. "Uma pessoa antipática", pensou o Dr. Forster. Ao primeiro olhar, sentiu o perigo que emanava daquele homem.


O barco rangeu na areia da margem e o motor parou. Com um grande salto, o homem saltou para terra e, à vontade, baixou a cabeça perante Ellen Donhoven, exactamente como se se tivessem conhecido num recinto de dança e não através de um acaso, que talvez lhe salvasse a vida, num rio da selva.

Mas ele não chegou a dizer uma palavra. José Cascal barrou‑lhe o caminho e obrigou‑o, com a arma, a ficar parado. O Dr. Forster e os outros homens também o rodearam. Só Alexander Jesus dava pulos na margem em volta da proa do barco e gritava:

‑ Agradeço‑te, Virgem Maria! Tu ouviste‑me. Tu ouviste‑me.

‑ Quem é você? ‑ perguntou Cascal, cortante. ‑ Donde é que você vem? Que é que faz sozinho neste lugar? Como é que vem neste barco? Desde quando anda por aqui?

O homem olhou, admirado, à sua volta. Ele dominava os outros homens em altura e piscou os olhos para o lado de Ellen, por cima das suas cabeças. O seu comportamento, os seus olhos, o seu amplo sorriso tinham nele algo de rapaz desarmado.

‑ Ele faz sempre tantas perguntas? ‑ riu ele. ‑ Primeiro, pergunta mais fácil! O barco pertence à McHarper & Companhia, do Miami. e custou, sem o motor, quatrocentos e cinquenta dólares. U barco de fibra de vidro que nunca se afunda, justamente o mais apropriado para os rios de lixo daqui.

Ellen Donhoven riu alto. Cascal ficou vermelho de raiva... O Dr. Forster sentiu este sorriso como uma fanfarra, o tom cortou‑lhe o coração. "Ela nunca tinha rido assim", ocorreu‑lhe. "Desde que eu conheço, nunca lhe deu este tom. Ou será que eu estou a deixar‑me influenciar pela minha antipatia imediata por este homem?"

‑ Quem é você? ‑ gritou Cascal.

O homem fez um sinal a Ellen por cima das cabeças.

‑ Toda a sua equipa é assim tão descortês? ‑ perguntou ele. Depois, subitamente, empurrou a arma de Cascal para baixo e olhou‑o com os seus olhos cinzentos, duros como o aço. ‑ Se me vou apresentar, então primeiro a uma senhora. Senhor, na sua terra, até agora só encontrei gentlemen... não me obrigue a fazer de si um também.

Antes de Cascal o poder evitar, o estranho tinha‑o agarrado e atirado para o lado como um pedaço de madeira. O Dr. Forster e Campofolio começaram a vacilar, resultando dali uma passagem, e com dois grandes passos o homem ficou ao pé de Ellen.

‑ Cliff ‑ disse ele. ‑ O meu nome é Cliff Haller. Tenho 37 anos, várias vezes vacinado contra tudo e todos, solteiro, bebedor de uísque, de pai e mãe, e um idiota que acha a selva magnífica. Então, eu também sou uma idiota ‑ disse Ellen, sorrindo. Sou Ellen Donhoven, alemã, também solteira e tenho a mania de querer investigar o veneno índio para a produção de medicamentos alemães.

‑ Esplêndido! ‑ Cliff Haller bateu com as palmas da mão na anca. - Então podemos fundar um pequeno e bonito manicómio. ‑ Virou‑se e viu‑se à frente de uma parede de homens que o observavam sombrios. O seu comportamento parecia não ser o mais adequado. Haller passou as mãos pelo cabelo louro, cor de trigo.

‑ Gentlemen ‑ disse ele. ‑ Perdoem‑me por eu viver. Se o vosso negro não tivesse gritado como um escalpado, tinha passado por vocês e não nos tínhamos conhecido. Mas agora estou aqui.


‑ E isso é bom, Mr. Haller ‑ disse o Dr. Forster, indo contra as suas íntimas convicções; mas na sua posição, os sentimentos pessoais eram um grande luxo. ‑ Temos aqui um doente. Mordedura de serpente. Eu operei‑o, mas ele tem febre. Nestas circunstâncias, o seu barco a motor pode‑nos ajudar muito. Se o doente ficar mais fraco, podemos levá‑lo de volta a Tefé.

‑ Todos médicos, não é? ‑ Cliff Haller olhou em volta. Fixou Moco e deixou o seu olhar deslizar sobre as pirogas quase prontas. ‑ E um índio! Eu suponho que me vá contar exactamente por que estão acampados aqui no meio do inferno, como se estivessem na Flórida. Mais um esclarecimento: não vou a Tefé.

‑ Mas o doente...

‑ Ou vamos tê‑lo em cima da perna outra vez ou ele recebe uma linda cruz de mogno.

‑ O seu comportamento é inaudito! ‑ exclamou Fernando Paz. José Cascal levantou a sua arma.

‑ Você tem o tipo de um assassino ‑ disse ele, rangendo os dentes.

‑ Vamos obrigá‑lo a viajar para Tefé. Cliff Haller virou‑se para Ellen. Os seus olhos cinzentos tinham uma expressão de admiração infantil. Era o olhar de um urso que tinha deixado acariciar o seu pêlo, para depois, subitamente, repelir.

‑ Os seus homens estão com a telha, não? ‑ perguntou ele.

‑ Sabe de quando se fala que foi a última vez que alguém obrigou Cliff a fazer alguma coisa? Quando ele tinha 2 anos e era posto no berço. Ellen, eu ajudo‑a. Levo‑a para a minha cabana e depois logo vemos. É um convite.

‑ Eu aceito‑o de boa vontade, Mr. Haller.

‑ Trate‑me por Cliff. ‑ Haller sorriu amplamente.

‑ Quando me chamam de Mr. Haller, vejo‑me como se fosse outra pessoa, tão desacostumado estou.

‑ Tem uma cabana aqui no rio? ‑ perguntou Cascal, respirando dificilmente.

‑ Sim.

‑ Mas ninguém sabe disso.

‑ Há tanta coisa desconhecida neste mundo que uma cabana no rio Tefé não é, certamente, de extrema importância.

‑ Desde quando vive aqui?

‑ Ele é da repartição de registo de moradores? ‑ Cliff envolveu Ellen Donhoven pela cintura. Fê‑lo tão seguro de si que o Dr. Forster piscou os olhos cheios de malícia. "Agora ele vai conhecer a Ellen", pensou. "Agora ela vai chegar‑lhe." Mas Ellen não fez semelhante coisa. Permitiu o braço no seu corpo, apenas a sua cabeça estremeceu um pouco para trás. O Dr. Forster cerrou os punhos. A verdade assustadora, que ele não queria aceitar em Cascal, estava agora demonstrada: qualquer mulher se submete à virilidade perfeita. Ellen também não era excepção, neste caso.

‑ Vamos então ver o doente ‑ disse Cliff Haller.

‑ Você é médico? ‑ perguntou o Dr. Forster, mordaz.

‑ Não. Mas para se ver um doente é preciso ser‑se médico? - Sem se preocupar com os outros, puxou Ellen para a tenda e ela seguiu‑o de boa vontade. Campofolio, furioso, espezinhou um pedaço de madeira para o lado.

‑ Apanhámos um magnifico exemplar! ‑ disse ele. ‑ Isto ainda pode vir a ser divertido.

‑ Mas ele tem um barco a motor. ‑ Alexander Jesus virou os olhos. ‑ Para fugir não precisamos de mais ...

‑ De qualquer maneira, ele é um indivíduo misterioso. ‑ Cascal pôs a sua arma debaixo do braço. ‑ Os serviços públicos não têm conhecimento de que aqui em cima, no rio, existe uma colónia. Vou andar de olho neste Mr. Cliff. Quem se esconde na selva, tem qualquer motivo para isso.


Cliff Haller assumiu o comando a partir daquela altura. Ellen Donhoven permitiu‑o sem oferecer resistência. O que Cliff ordenava, ela era a primeira a cumprir. Rafael Palma foi levado para o barco de Haller. A sua perna ardia como se estivesse em fogo, mas o inchaço estava a melhorar. O Dr. Forster dava‑lhe medicamentos fortes, mas eles actuavam de forma insuficiente, o veneno parecia inflamar todos os seus nervos, e Palma rangia os dentes de dor, as lágrimas correndo‑lhe pela face. Alexander Jesus aproveitava cada minuto livre para rezar sempre por ele. Apesar da escuridão, que entretanto tinha caído, Cliff Haller seguiu viagem. Pôs as duas pirogas quase prontas a reboque, nas quais, Moco, Cascal, Paz, Guapa, Campofolio e o Dr. Forster se acocoravam, enquanto Ellen e Cliff subiam para o barco e se colocavam perto do choroso Palma. Bastante devagar, seguiram pelo rio escuro acima.

- Ele é doido! ‑ disse Cascal, ofegante. Estava pálido de medo. Segurava‑se com as duas mãos nos lados da sua piroga. ‑ Ir pelo rio à noite! Aqui há muitos bancos de areia, bem perto da superfície. Ele não os pode conhecer todos. Se nós, com os nossos barcos lá esbarramos e nos voltamos...

Engoliu em seco. Os outros também fixaram a água negra. "A morte dura dez segundos", pensaram eles. "Depois seremos apenas esqueletos perante os instintos sanguinários de uma quantidade fervilhante de piranhas." Depois de três longas horas, uma luz reluziu na água. Apenas um brilho ténue... um leve feixe de luz. Cascal e o Dr. Forster viram‑na primeiro.

‑ Luz! ‑ Cascal esbarrou no Dr. Forster. ‑ Deve ser a cabana. Luz. Sabe o que isso significa?

‑ Que a viagem finalmente acabou.

‑ Significa que ele não está sozinho! ‑ Cascal puxou a arma para si. ‑ Está alguém à espera dele na cabana...

A casa estava numa baía linda e pouco profunda do rio Tefé. A selva estava desbravada numa área de trinta metros e, aparentemente, a madeira tinha sido o material para a construção. A primeira impressão era romântica, mas visto de mais próximo o alojamento mostrava‑se como uma mísera cabana, coberta de ramos secos entrançados. Também assombroso era o material que estava por baixo do telheiro junto à casa: barris de gasolina, partes sobresselentes de motor, ferramentas de toda a espécie, redes boas e novas para peixes, nassas (cesto de pescar, feito de vimes, e de forma afunilada).

Três enormes candeeiros a petróleo ardiam à entrada e perto do alpendre e lançavam um clarão fraco até ao atalho do cais na margem. Com o braço estendido, Cliff Haller apontou para esta minúscula manchinha de civilização na selva desconhecida.

‑ Aquilo que eu posso oferecer não é uma grande fazenda ‑ gritou ele para Ellen, por entre o crepitar do motor. ‑ Mas tenho algo, que você já não sabe o que é há semanas: uma cama como deve ser.

Assim que o barco atracou, a porta da cabana abriu‑se. Uma rapariga apareceu no clarão da luz, saltando logo para a sombra, assim que reparou nas duas pirogas. A sua aparição foi muito breve, mas todos tinham visto que ela segurava uma arma de fogo nas mãos. Cliff Haller desligou o motor.

‑ Podes ficar descansada, favorita ‑ gritou ele para a cabana.


‑ Recolhi uma expedição inteira! ‑ Depois inclinou‑se para Ellen e o seu sorriso arrapazado encantou‑a completamente. ‑ Esta é a Rita. Uma rapariga simpática.

‑ A sua noiva?

‑ Eu diria que isso seria demasiado íntimo. Encontrámo‑nos no Rio, na estrada, gostámos um do outro e ficámos juntos. Tão simples como isto.

Ajudou Ellen a sair do barco, enquanto os outros subiam o atalho, deixando cuidadosamente as pirogas oscilantes. Alexander Jesus e Fernando Paz levantaram Palma, que gemia, e levaram‑no para a cabana. Lá estava a Rita, com a arma pronta a disparar, olhando‑os com uma cara sombria. O Dr. Forster foi o primeiro que a pôde observar bem. Era uma daquelas mulheres sul‑americanas cujo sangue era uma mistura de várias raças. Espanhola, portuguesa, índia... era uma mistura de uma beleza empolgante. O que esta terra possuía de selvagem e exótico, de grandioso e de cruel, de feitiço e ódio, estava concentrado neste tipo de mulher, de tal maneira que elas podiam oferecer o céu e o inferno simultaneamente.

‑ Boa tarde! ‑ disse o Dr. Forster. A rapariga não olhou para ele. Ela fixava o olhar em Ellen Donhoven, que estava parada junto de Cliff. Ele parecia estar a explicar‑lhe qualquer coisa. Depois, pôs‑lhe o braço por cima dos ombros e dirigiu‑se para a cabana. Os olhos de Rita faiscaram. "Oh, meu Deus", pensou o Dr. Forster, que estava junto dela. "É preferível vaguear meio ano através de uma região infestada de serpentes do que viver perto de duas mulheres enciumadas. Isto é o inferno perfeito."

- Devo apresentá‑las... ‑ disse Cliff no seu modo indiferente. - Esta é Miss Ellen Donhoven, uma médica da Alemanha. Quer ir aos Jumas, para lhes roubar os seus venenos. Mas tiveram azar desde o início. Sem gasolina, uma série de acidentes... vamos recuperá‑los para a grande viagem.

Rita olhou para Ellen sem dizer uma palavra. Depois voltou‑se e entrou na cabana.

‑ Ela não gosta de mim ‑ disse Ellen, hesitante. ‑ Seria bom se lhe dissesse, que eu não estou interessada em si, Cliff, apenas vim por causa de Palma.

‑ Eu não lhe devo nenhuma explicação. ‑ Cliff Haller seguiu à frente do pequeno grupo e segurou a porta quando levaram Palma para dentro da cabana.

O interior desta casa feita de madeira era maior do que se podia supor, vista de fora. Havia uma salinha e três quartos. O mais assombroso era que os móveis consistiam em sólidas mesas e cadeiras americanas de jardim e duas camas de ferro, com o respectivo colchão, na divisão que servia de quarto de dormir. No canto da cozinha havia um grande fogão a gás. José Cascal abrangeu tudo com um olhar rápido, o espanto lia‑se na sua cara. "Conforto na selva! Donde é que vêm todos estes objectos? É impossível terem sido transportados naquele pequeno barco. E de que é que Cliff Haller está à procura aqui, no curso superior do rio Tefé? Por que razão é que um homem branco e uma linda rapariga construíram uma cabana entre os índios e uma selva sempre hostil?"

‑ Você vive aqui como um rei ‑ disse Cascal, aguardando. Cliff Haller riu.

‑ Talvez eu seja um?

‑ Como é que arranjou o material todo aqui?


‑ Isso seria uma pergunta para uma charada de palavras cruzadas. Contente‑se em comprovar que ele existe. Rita, minha doçura, os nossos hóspedes têm fome. Faz uma sopa! ‑ Como lhe era devido, empurrou uma cadeira para Ellen e para os outros fez um gesto de convite com a mão. ‑ Há lugar para quatro. Os outros têm de contentar‑se com uma caixa vazia. Gentlemen, eu volto já.

Correu para fora de casa e Rita seguiu‑o imediatamente. O Dr. Forster olhou Ellen, que esticava as suas pernas cansadas.

‑ A nossa aparição provocou uma tragédia familiar ‑ disse ele, sarcasticamente. ‑ Dificilmente encontraremos sossego aqui.

‑ Primeiro, Palma tem de ficar bom. Quanto tempo calcula, Rudolf, que ele ainda tem de ficar deitado?

Com estes venenos não se podem fazer prognósticos. Pode Ser por pouco tempo, mas também pode durar duas a três semanas.

‑ Temos de ficar esse tempo todo. ‑ Ellen parecia aliviada.

O Dr. Forster reparou nisso com espanto. Ele sentia que Ellen lhe estava a escapar, e nada podia fazer contra isso. Lá fora, no alpendre, havia uma breve e violenta discussão. Cliff, que procurava uma caixa larga e vazia e que a queria pôr ao ombro, parou atónito quando Rita foi ao seu encontro.

‑ Quanto tempo vão eles ficar? ‑ perguntou ela, duramente. Os seus olhos negros ardiam.

‑ Isso não sei.

‑ Estás interessado na médica da Alemanha.

‑ Sai do caminho, amor. ‑ Cliff apertou‑lhe o queixo. ‑ Não digas disparates, tu sabes o quanto te amo.

‑ Mas ela é bonita, inteligente e atrai‑te. Eu vi como tu lhe puseste o braço.

‑ Ela é um raio de uma mulher corajosa.

‑ E eu não sou corajosa? Não vim para este inferno contigo? Não deixei a minha terra?

‑ Diabo! Cala a boca! ‑ Os olhos de Cliff Haller endureceram.

‑ Não faças disparates, amor!

‑ Se tu não lhe fizeres nada... tu sabes que eu só te amo a ti... - Ela virou‑se e correu de volta para casa. Cliff seguiu‑a com a caixa vazia ao ombro. Aquilo era uma ameaça, e ele percebia‑a.

‑ Mulheres... ‑ murmurou. ‑ Devia‑se ficar afastado delas, mas, que diabo, infelizmente, precisa‑se delas!

Rita Sabaneta, de seu nome completo, como tinha Cascal rapidamente perguntado, fez uma sopa de feijão que sabia deliciosamente. Entretanto, Cliff Haller examinou a ferida de Palma, e o Dr. Forster viu, atónito, como ele lhe colocou uma papa verde e gordurosa, que guardava numa vasilha de barro índia, sobre o pé. Moco, que estava sentado junto de Palma, abanou a cabeça afirmativamente várias vezes, quando o Dr. Forster olhou para ele sem fazer perguntas.

‑ É um bálsamo de raízes e folhas, como os nossos feiticeiros utilizam ‑ disse ele, assim que Cliff foi para a salinha. ‑ Cura melhor que os remédios dos brancos.

‑ Esperemos que sim. ‑ O Dr. Forster inclinou‑se sobre o pé engordurado. O bálsamo cheirava a podre, a folhas decompostas, mas parecia ser agradável, refrescante, pois os gemidos de Palma deixaram de se ouvir, e ele estava deitado sossegadamente e adormeceu rapidamente. "Devia‑se analisar este bálsamo", pensou o Dr. Forster.


"Por que motivo não podemos aprender algo de novo com os curandeiros índios? O curare também veio da selva amazónica." Uma hora mais tarde foram dormir. Ellen ficou com uma cama, na outra deitaram‑se Rita e Cliff juntos. Fizeram‑no com uma naturalidade desarmada. José Cascal, que desde a sua entrada na cabana andava furtivamente à volta de Rita Sabaneta como um gato à volta de leite e a queria sondar sobre quem era Cliff Haller, enrolou‑se ao lado do Dr. Forster.

‑ Qual é a sua impressão, senhor? ‑ segredou ele.

‑ Não é boa. Este Cliff é um aventureiro.

‑ Por outro lado, a namorada dele é uma maravilha da Natureza.

‑ Pode ser. Estou a prever complicações.

‑ Viu os barris de gasolina? E estas instalações aqui? Como é que o indivíduo trouxe tudo pelo rio acima?

‑ Vamos aguardar. Felizmente Palma está a recuperar rapidamente... depois seguimos.

Cascal calou‑se e virou‑se de costas. "Tanto um como outro estão a ser inoportunos", pensou ele. "Mais trezentos quilómetros, e chegaremos à zona em que ninguém deve entrar. Tem de acontecer nos próximos dias. A expedição tem de fracassar."

 

Capitulo 3

Havia dois dias que Ellen e os seus companheiros viviam na cabana de Cliff Haller e estavam totalmente ocupados. Os homens continuavam a construção das pirogas, e Haller pôde acelerar a escavação do interior, ao queimar a madeira com um pequeno maçarico de soldar. Os índios faziam‑no com fogo descoberto, deixavam a madeira carbonizar e retiravam‑lhe o interior. Cascal corria em volta como um cão que tinha tomado o faro. "Ele tem tudo", pensava ele. "Aqui em volta, ele tem maçaricos, garrafas de oxigénio, gasolina, uma oficina perfeita, caixas com conservas americanas de carne e legumes, assim como latas de coca‑cola... seriam cargas para duas carretadas", avaliou Cascal. "É impossível ele tê‑las arranjado com o pequeno barco de motor fora de bordo e com aquele baixo barco de fibra. Como é que todos estes tesouros da civilização vieram parar à selva inexplorada?"

Rita Sabaneta riu muito nestes dias, mas era um riso alto, duro e quase histérico. Fernando Paz e, acima de todos, Campofolio, que tinha o seu sangue italiano em efervescência, circulavam em volta de Rita, contavam‑lhe piadas, ajudavam‑na no que ela precisava, adoravam a sua comida e ficavam com ciúmes um do outro. No terceiro dia, à tardinha, Ellen sentou‑se sozinha no acesso ao barco e olhou sobre o rio escuro. O Dr. Forster tinha‑a justamente deixado, furioso, desiludido e confuso. Ele tinha‑a observado a descer para o rio e tinha‑a seguido. Lá, ele procurara mais uma vez atraí‑la para fora da sua reserva.

‑ Nós não queríamos falar mais sobre isto ‑ disse ele ‑, assim não dá, Ellen. Eu amo‑a.

‑ Eu sei, Rudolf. É a sua grande tragédia. ‑ Ela olhara para o rio e apoiara o queixo nos joelhos dobrados. ‑ Você conhece os meus planos.

‑ Uma coisa não implica a outra. Ou quer ser conquistada? Pensou na maneira de ser de Cliff, seguro de si próprio, e no brilho dos olhos de Ellen, quando o olhava.

‑ É fácil, brincar ao homem forte.

De repente, abraçara‑a e puxara‑a para si. Quando a quis beijar, ela empurrou‑o com os punhos contra o peito e soltou‑se dos seus braços.


‑ Deixe‑se disso, Rudolf! ‑ disse ela com uma frieza que o atingiu como um sopro gelado. ‑ Não queira sujar a boa impressão que tenho de si.

Indignado, sentindo‑se como um aluno repreendido, o Dr. Forster retrocedeu para casa. Não viu um grande vulto que saiu da escuridão do alpendre e que na orla do bosque se dirigiu para baixo, para o rio. Era seguido por uma sombra esguia como um gato, silenciosa e confundindo‑se com o muro escuro da selva.

‑ Você, Cliff? ‑ Ellen virou a cabeça para trás, assim que Haller pousou a sua mão forte na sua fronte. ‑ Por que não está a dormir?

‑ Isso pergunto‑lhe eu, Ellen. Ele permaneceu atrás dela e deixou a mão deslizar‑lhe para o ombro. Ellen sentiu‑se começar a tremer por dentro. "Sou louca", pensou ela. "Mando embora o Rudolf, que é um magnífico indivíduo e tremo junto a Cliff, que é um aventureiro desconhecido. Compõe‑te, Ellen." Mas a sua resistência interior era mais fraca do que o seu íntimo impulso para a ternura. Sorveu a voz dele como se fosse um estupefaciente, quando ele disse:

‑ É perigoso estar sentada sozinha neste rio da selva. Sei que estamos a ser observados dia e noite pelos índios; não os vemos, mas eles vêem‑nos claramente.

‑ Eu tenho o Moco. Ele toma conta de mim.

Cliff olhou à sua volta.

‑ Onde é que ele está metido?

‑ Por aí. ‑ Ela semicerrou os olhos. ‑ A Rita vai dar pela sua falta.

‑ Está a dormir. E mesmo que ela não estivesse a dormir, eu sou um homem livre. Tal como você é uma mulher livre, Ellen. Nós somos extremamente parecidos. Ambos nos rimos do meio‑ambiente, fazemos o que nos agrada, impomos os nossos pensamentos, temos coragem e uma força tal que pode mudar o mundo. Ellen... ‑ As mãos dele deslizaram dos ombros dela e tocaram os seus seios. Estavam claramente rijos sob a fina camisa colonial: dois cones agudos e

firmes, que ele apertou nos seus dedos. O sangue afluiu às têmporas de Ellen. "Saltar", ordenou ela a si própria. "Levantar o braço e bater‑lhe. Dar‑lhe um pontapé na canela, para que ele tenha recebido um aviso, de uma vez por todas." Mas não fez nada; de olhos fechados, deixou os dedos dele circularem nos seus seios.

‑ Tenho a sensação que pertencemos ao mesmo grupo ‑ disse Cliff, suavemente.

‑ Então devemos ser loucos ‑ sussurrou Ellen.

‑ Será que isso é um erro? Vive‑se mais facilmente quando tudo é permitido...

Ele voltou‑a de uma vez, comprimiu‑a contra ele e beijou‑a. Os lábios dela estavam frios e húmidos, mas desabrocharam, abriram‑se à vontade, com o seu beijo. Só então ela se soltou e sacudiu a cabeça.

‑ Nós somos realmente doidos! ‑ disse, ofegante. - Temos de pôr a cabeça de baixo de água fria! Dentro de alguns dias seguimos o nosso caminho... e nunca mais nos veremos na vida.

‑ Quem diz isso?‑ Cliff puxou‑a novamente para si. Os seus olhos cinzentos cintilavam. ‑ Nós ficamos juntos.

‑ O que quer isso dizer?


‑ Avançamos juntos para o Juma. A nascente do Juma e do Itanhaua foi sempre o meu objectivo. Esta cabana aqui é apenas uma estação intermédia.

‑ Nós... nós vamos juntos... ‑ Ellen ficou paralisada. Depois, lançou os braços à volta do pescoço de Haller, como uma pequena criança feliz. ‑ Cliff. Oh, Cliff tu vais acompanhar‑me ...

‑ Mesmo que a região não me interessasse, agora seria uma infantilidade deixar‑te ir sozinha. Ellen, rapariga... eu sou um tipo sujo, eu sei... mas às vezes também sou honrado até à medula. Eu amo‑te, que diabo!

‑ Cliff!.    

Caíram nos braços um do outro e beijaram‑se com toda a paixão que se desencadeava dentro deles. Depois, Haller levantou Ellen com um salto pegando‑lhe pelos braços e levou‑a, através da escuridão, em direcção ao alpendre. Debaixo das árvores, a pequena e delgada sombra esperava. Quando se movimentou e quis seguir furtivamente Cliff Haller, alguém a fez parar, firmemente. Com um grito baixo, Rita apareceu. Não tinha ouvido nada, e visto ainda menos.

‑ Quieta! ‑ disse Moco em voz baixa. Apertou o braço direito de Rita, tocou‑lhe em baixo e agarrou o punhal que ela segurava.

‑ Eu mato‑o! ‑ disse Rita, rangendo os dentes. ‑ Eu mato os dois!

‑ Porquê? Ele merece‑o?

‑ Eu amo‑o! Que sabes tu disso?

‑ Deixa‑os estar juntos. ‑ Moco arrancou‑lhe o punhal das mãos e pô‑lo no seu cinto. Soluçando, Rita encostou‑se a uma árvore e puxou os seus longos cabelos negros. Parecia que queria arrancar cada madeixa. ‑ Ambos precisam um do outro.

‑ E eu? Eu também preciso de Cliff! Deixei tudo para ir com ele! E agora ele deita‑me fora como um sapato velho! Oh, eu tenho de o matar! Eu tenho! ‑ Queria saltar outra vez para Moco, mas o índio foi mais rápido. Empurrou‑a para o tronco da árvore, novamente.


‑ Tu tens de ter esperança ‑ disse ele, sombriamente. ‑ Eu esperei três anos por Ynama, aprendi muito e vi o outro mundo. Sem espera, a vida seria muito barata. Cliff nunca a levará com ele, depois de terem estado com os Jumas. Os seus caminhos vão ser novamente separados. Mas, então, tu estarás aqui. Aprende a esperar... - Ele soltou‑a e ela abanou a cabeça afirmativamente, deu‑lhe a mão e voltou para a cabana lentamente. Só quando passou junto ao alpendre hesitou e retraiu então a cabeça. Sons balbuciados em voz baixa pairavam indistintamente através da noite. Rasgavam‑lhe o coração como com um gancho de ferro. Perto da pequena varanda da cabana estava sentado José Cascal, fumando um cigarro. Para que não se pudesse ver a brasa, ele segurava‑o escondido na concha da mão. Rita Sabaneta parou de repente. Teria ele assistido a tudo, ou teria acabado de sair de casa? Esperou. A primeira frase deveria esclarecer isso. Cascal não tinha visto nada. Tinha saído furtivamente da cabana havia dois minutos, para inspeccionar rigorosamente as imediações, sobretudo o armazém. Uma descoberta tinha‑o posto em alvoroço: debaixo da cama em que Palma dormia, estava um pára‑quedas dobrado. Parecia estar resolvido o mistério de como é que Cliff Haller tinha o seu equipamento perfeito. Fora fornecido através do ar. Todo aquele magnífico material tinha sido lançado de pára‑quedas. "Mas quem é que lançou estas coisas? De onde vieram os aviões? Em Manaus ninguém soube disto." Os mistérios aumentavam... mas a suspeita de Cascal aumentava ainda mais.

- Uma bonita noite ‑ disse José para Rita, como se tivesse sentado lá fora para apreciar a noite na selva. ‑ Também não consegue dormir?

- Há demasiados bichos selvagens aqui à volta, a andarem furtivamente ‑ respondeu Rita, apaticamente. ‑ Gatos...

Cascal levantou a cabeça.

‑ Não ouço nada. Está a pensar em panteras?

‑ Também. ‑ Rita encostou‑se ao parapeito de madeira e olhou Cascal interrogativamente.

‑ Vêm de Manaus?

‑ Sim.

‑ Você é um patriota? Cascal não sabia o que queria dizer aquela pergunta. Claro que ele era um patriota, era um funcionário público e era pago para amar a sua pátria.

‑ Naturalmente ‑ disse ele. ‑ Qual é o brasileiro que não ama a sua pátria? Existe terra mais linda?

‑ Estaria pronto para morrer por ela?

Cascal acautelou‑se. Ele não era um herói, mas percebia que naquela altura ansiava por algo como o heroísmo. Ele não estava era muito esclarecido sobre o modo de o realizar.

‑ Qualquer brasileiro sacrificará a sua vida pela pátria ‑ disse ele pateticamente. ‑ Milhares já o demonstraram.

‑ Então, venha comigo, senhor...

Ela foi em frente e Cascal seguiu‑a. Atrás da cabana havia um pequeno anexo, que Cascal sempre tinha tomado por uma oficina. O alpendre também estava cheio de caixas, e utensílios. Rita fechou a porta e iluminou o sítio com um isqueiro. à luz da pequena e trémula chama abriram caminho até uma mesa, em cima da qual estava uma grande caixa de ferro. Ela iluminou‑a e Cascal encolheu os ombros.

‑ O Cliff esconde aqui o dinheiro dele? ‑ perguntou ele, sarcasticamente. ‑ Rita, eu não arrombo cofres.

‑ Isto aqui é mais do que dinheiro. - Ela abriu a caixa e tirou a tampa. Ao mesmo tempo, puxou para fora duas compridas antenas. Cascal engoliu em seco e ficou pálido. Tinha perante ele um aparelho completo de transmissão.

‑ Isto... é inaudito... ‑ gaguejou ele. Inclinou‑se, apalpou os botões e fichas e rodou o interruptor "Strom". Suavemente as baterias zumbiram, o indicador oscilou sobre o número da frequência e as escalas. ‑ Para onde é que ele transmite?

‑ Isso eu não sei.

Com o rosto desfigurado, Rita estava junto do transmissor. A luz fraca oscilava sobre ela e desfigurava‑a ainda mais.

‑ Ele transmite em inglês e recebe em inglês.

‑ E por que motivo é que denunciou isto a mim, Rita?

‑ Suponha que eu seja uma patriota.

‑ Ou suponha, que você arda de ódio contra Ellen Donhoven e Cliff, que lhe está a ser infiel.

‑ E isso tem importância? ‑ Rita recolheu as antenas para baixo e pôs a tampa no transmissor. - Agora já acredita que aquilo que viu é muito perigoso?

‑ Se Clif chegar a saber, conforme... ‑ Cascal sentiu, sob a sua pele, a comichão do perigo. ‑ O que é que sabe dos planos dele, Rita?


‑ Ele quer ir para a nascente, como a médica alemã.

‑ E porquê?

‑ Isso ele não disse. Quando eu lhe pergunto, ele ri. "É lá que está o umbigo do mundo", diz ele sempre. "E esse umbigo está a criar pus." Eu não compreendo.

Cascal acenou a cabeça afirmativamente. Ele compreendia o que Haller queria dizer com o umbigo do mundo. Algumas centenas de quilómetros mais... e o mundo dormiria menos sossegado do que até agora.

‑ Como é que ele obteve o seu equipamento?

‑ As caixas foram lançadas de pára‑quedas por três vezes. Pequenos aviões de desporto. Não sei de onde vieram.

Deixaram o pequeno armazém e esgueiraram‑se para a casa, de novo para a varanda. Cascal acendeu um novo cigarro com os dedos trémulos. Sem uma palavra, Rita tirou‑lho da boca e fumou algumas passas apressadas.

‑ O que vai fazer? ‑ perguntou ela depois. Cascal fixava a noite. Da descoberta do transmissor secreto surgiu uma missão que exigia dele verdadeira coragem.

‑ Vou seguir Cliff de perto.

‑ E é tudo?

‑ O que é que esperava, Rita?

‑ Um patriota mata o inimigo.

‑ Mais tarde. ‑ Cascal deitou o cigarro fora... de repente já não lhe sabia bem. ‑ Eu ainda preciso do Cliff. Quero saber até que ponto ele está metido neste jogo.

‑ Você é um cobarde! ‑ Rita disse‑o com todo o desprezo e correu, para dentro da cabana. Cascal seguiu‑a com as mãos atrás das costas. Arrepiava‑se com esta nova tarefa. No alpendre, os gemidos e as palavras sussurradas tinham acabado. Também ali brilhavam as luzes minúsculas de dois Cigarros na escuridão.

‑ Daqui a três dias poderemos viajar‑ disse Cliff, deitando a sua cabeça entre os seios de Ellen. Era um lugar quente e aromático. ‑ Palma já estará capaz de viajar. Quem é este Cascal realmente?

‑ Um funcionário público de uma repartição qualquer de Manaus.

‑ Ah...

‑ Ele acompanhou‑me porque tinha a ordem de me proteger. Uma ordem idiota.

‑ Talvez... - Cliff fumava o seu cigarro pensativamente. Atarefa de José Cascal, para ele, não era uma ordem disparatada. A presença dele era mais uma prova do segredo que perseguia. ‑ Temos de o afastar o mais rapidamente possível.

‑ Bem dito. Mas como? ‑ Ela afagava o cabelo louro e molhado de suor de Cliff e sentia‑se feliz como nunca na sua vida. Nem sequer quando tinha experimentado o seu primeiro amor: um jovem estudante de medicina. Ambos se tinham amado pela primeira vez, no fundo, apenas por curiosidade. Nunca tinha experimentado um sentimento profundo... até àquela altura, em que o céu, nos braços de Cliff, estalara em cristais cintilantes.

‑ Pode cair borda fora...

‑ Isso seria assassínio, Cliff ‑ Ela empurrou a cabeça dele para o lado. ‑ Que tu possas pensar assim... é incrível...


‑ Desculpa, rapariga. ‑ Cliff retomou o seu lugar entre os seios de Ellen. "Desistamos de uma explicação", pensou ele. "Ela nunca iria compreender. Para ela, no Juma só há o veneno... aquilo que eu procuro é mais que mil toneladas de veneno. E lá também não há mais moral, nem consciência, nem leis. Isto é apenas matar uma pequena parte do que é necessário. Ellen, minha querida, o mundo tem mais segredos do que as gotas das setas dos índios..."

Virou‑se e pôs as mãos novamente por baixo do corpo nu dela. Ela levantou‑se ao encontro dele e suspirou alto. Nos círculos dos ramos sobre o alpendre, os pássaros do paraíso vibravam e cantavam.

 

Rafael Palma restabeleceu‑se rapidamente. A papa de erva revelou‑se uma maravilha. Passados cinco dias, já coxeava ali em volta e cozinhou, em louvor da sua salvação da morte, uma panela com muita carne de macaco e um fruto de uma árvore que Moco chamava de Chiquaquoa. Sabia a tomate, mas era branco e farinhento. Por duas vezes, Cascal reparou que, à noite, Cliff esgueirava‑se para o anexo para transmitir. Aparentemente, dava a entender que a expedição partiria em breve. Cascal aproveitou‑se daqueles tempos de transmissão... esperou que Cliff deixasse o alpendre, sentou‑se, então, ao aparelho ainda quente e sintonizou‑o na frequência dos transmissores militares de Manaus.

‑ Você é um felizardo ‑ transmitiu o general em resposta quando Cascal comunicou a sua descoberta. ‑ Deixe o Haller prosseguir. Ele indicar‑nos‑á o buraco através do qual nos podemos infiltrar. Assim que ele tiver passado, nós fechamo‑lo. José, eu estou muito satisfeito consigo.

 

A partida foi um circo perfeito. Três pirogas foram levadas a reboque por Cliff; para trás deixava tudo aquilo que tinha juntado, com excepção do aparelho transmissor, tal como Cascal tinha verificado, quando Cliff correra de volta para terra, para procurar a sua pistola pretensamente esquecida.

‑ Os índios não vão roubar nada ‑ disse Cliff, quando Ellen afirmou que era uma pena deixar ficar tudo para trás. ‑ Eles têm um medo infernal de coisas desconhecidas. Imagine que eles encontravam a garrafa de oxigénio, rodavam a tampa de roseta e de repente aquilo começava a assobiar. Para eles, seria o diabo e nunca mais poriam o pé neste pedaço de terra.

Infinitamente devagar, os barcos deslizaram no rio uns atrás dos outros. O motor fora de bordo dava o seu máximo, uma canoa estava carregada de barris de gasolina, e Cascal olhava impotente para esta força, para ele inatingível, que os levava rio acima até à nascente. Rita Sabaneta desistira da oposição a Ellen. Cascal assim a tinha aconselhado. Ela fez como se nunca soubesse nada do amor mágico nocturno que se incendiava entre Cliff e Ellen. Ela tinha esperança em Cascal. Pressentia que tinha perdido Cliff mas tinha ficado junto dele, já não por amor, mas por um ódio mortal. Queria assistir ao seu aniquilamento. Queria deleitar‑se com a sua queda. O sangue misto fervilhava dentro dela. Durante três dias e três noites, correu tudo bem... viajaram através do rio, junto à margem, e percorreram mais milhas do que Cliff tinha calculado. à noite, permaneciam no rio, deixavam‑se deslizar um pouco para trás, de modo a irem para o meio. Lá ancoravam, dormiam e instalavam uma sentinela. Moco, que tudo ouvia e via, deu o alarme, logo no primeiro dia da continuação da viagem.


- Eles estão a seguir‑nos ‑ gritou ele da sua canoa para cima, para o barco de Cliff. ‑ índios... seguem perto de nós... observam‑nos...

Procuraram logo na margem do rio; Campofolio procurou até com o seu binóculo, mas não viram nada. Apenas o gigantesco muro espesso e verde. Mas depois, ouviram algo ao cair do crepúsculo. Batidas abafadas e ritmadas. Cliff Haller abanou a cabeça afirmativamente e comprimiu os lábios.

‑ São eles. Eles comunicam por intermédio de troncos de árvores escavados. Toda a selva está em tumulto. Agora temos de, à noite, permanecer no meio do rio.

Na quarta noite, Moco desapareceu. De manhã, faltava na sua canoa, e ninguém sabia onde ele tinha ficado. Fizera a última sentinela e algo deveria ter acontecido durante ela. Cliff Haller não sabia dar nenhuma explicação.

‑ Ele não pôde ter nadado através do rio ‑ disse ele. ‑ Nem um louco faria isso!

‑ Mas ele foi‑se embora! ‑ exclamou Cascal. ‑ Desaparecido no meio do rio.

‑ Para isto só há duas possibilidades: ou alguém o atirou ao rio... e então teremos de ser interrogados... ou foi apanhado pelos índios, com um barco.

‑ Deve ter sido isso! ‑ exclamou Cascal. ‑ Voltou para a selva. Cliff fitou Cascal pensativamente. A rápida certeza do brasileiro não lhe agradou.

‑ Poderia ser ‑ disse ele, alongando as palavras. ‑ Mas não é possível. Moco era um Juma; aqui vivem os Ataxas. Já há algumas centenas de anos que as duas tribos correm atrás das cabeças uma da outra. Não creio que Moco tenha ido com eles de livre vontade. Acredito muito mais na primeira hipótese: alguém o empurrou pela borda fora. Gentlemen... temos um porco entre nós! ‑ Fez um longo movimento com a mão. ‑ Agora ninguém se pode esconder... ninguém tem álibi. Todos estávamos no rio. Portanto, começemos a dilacerar‑nos mutuamente.

 

Cliff Haller estava, agora, parado em frente dos homens apreensivos e calados, com a pistola subitamente na mão, pronta a disparar. Ellen Donhoven acocorou‑se atrás dele e fitava o muro de hostilidade que se tinha formado à sua frente.

‑ Verificamos ‑ disse Cliff ‑ que na realidade apenas um de nós não pode ser acusado de assassínio: Rafael Palma. Ele ainda não pode fazer muita coisa com o seu pé.

‑ Mas tinha as mãos livres ‑ disse José Cascal, venenosamente.

‑ Cliff, não seja ridículo! Assassínio! Como se houvesse interesse da nossa parte em eliminar o índio. Ele era o único que conhecia o caminho através do inferno.

‑ Exactamente por isso, era motivo suficiente. A expedição esteve, desde o principio, envolvida num enigma. Primeiro, em Tefé, desapareceu a cozinha, depois os barris de gasolina estavam vazios, agora o guia foi pela borda fora para as piranhas... estou curioso sobre o que ainda se irá passar. ‑ Cliff apontou a sua pistola para o Dr. Forster. ‑ O que é que fez de manhã, doutor?

‑ Dormi. Como você. Excepcionalmente, Cascal tem razão: você está‑se a comportar como se estivesse a actuar num mau filme. Do mesmo modo, poderemos afirmar que você atirou Moco ao rio, para nos fazer dependentes de si. Tem um álibi?


Cliff Haller guardou a pistola. Deitou um olhar rápido a Ellen e depois virou‑lhe as costas. Tinha um álibi, mas era suficientemente cavalheiro, para não o utilizar.

‑ Vamos para terra ‑ disse ele. ‑ Talvez descubramos mais. Primeiro na margem esquerda, e depois na direita ...

‑ Está a esquecer os índios? ‑ gritou Campofolio.

‑ Eles observam‑nos nus. Se nos quisessem atacar, teriam outro aspecto.

Foram lentamente até à margem esquerda do rio Tefé e atracaram na margem pantanosa e a cheirar a podre. Alexander Jesus esgravatou com a vara em volta até encontrar solo firme, então, saltou para terra e puxou o barco a motor para junto dele com uma corda. Cliff Haller, Fernando Paz e também Cascal procuraram numa longa tira da margem, enquanto os outros ficaram no barco. O Dr. Forster aproveitou a ocasião para trepar para o lado de Ellen. Estava sentada ao sol, encostada para trás, como se estivesse num país ocidental e não no meio da selva brasileira.

‑ O que acha de Cliff ‑ perguntou ele.

‑ Ele é um típico homem corajoso.

‑ Gente dessa parte o pescoço com facilidade.

‑ Ou tira o diabo do Inferno.

‑ Isso atrai‑a, Ellen?

‑ A si não, Rudolf? Se chegarmos ao Juma, é só com a ajuda de Cliff.

‑ Quem é ele, na realidade? O que faz ele aqui? Ele não parece estar a apanhar borboletas.

‑ Explicou‑me que vive aqui no rio porque isto o atrai extraordinariamente. Odeia tudo o que seja burguês.

‑ E você acreditou?

‑ Por que não? Eu também amo a aventura.

os homens voltaram ao fim de uma hora.

‑ Nada! ‑ gritou Cascal, ainda de longe.

‑ Não sei, de todo, o que procuramos.

‑ Para a outra margem... ‑ Cliff ligou o motor. ‑ Eu recuso‑me a acreditar que o Moco foi a primeira pessoa a poder voar com os braços.

Na margem direita do rio, Campofolio encontrou, então, o que aparentemente Cliff procurava. Estava um pedaço de osso corroído na água pantanosa. Um pedaço de um braço. Cliff Haller levantou‑o ao alto, e Alexander Jesus rompeu de imediato num gemido, caiu de joelhos e rezou.

‑ O Moco caiu ao rio. É a morte mais certa. Querem mais alguma prova? Não sei qual de vocês é o maldito assassino... mas alguém é. E a esse canalha, eu digo o seguinte: vamos seguir viagem. E agora sou eu que indico o caminho. O próximo assassínio será cometido contra mim. Por favor, sirvam‑se... Vão achar mais difícil surpreenderem‑me!

Cliff Haller agiu de imediato. Mandou os homens todos para as canoas, até o doente Palma. No seu barco a motor, apenas ficaram Ellen e Rita Sabaneta.

‑ Isso acontecerá sempre de noite ‑ disse‑lhes ele. ‑ Para ser de dia, são demasiado cobardes.


A viagem prosseguiu. Sol ardente, floresta fumegante, ar podre adocicado da floresta verde, gigantesca. À tarde choveu a cântaros, uma trombada de água que Alexander Jesus recolheu em lonas de tenda e transvazou para depósitos de água. E depois novamente o sol, um disco ardente e um ar saturado de humidade, que se metia nos Pulmões, comprimia o coração, fazia o suor brotar dos poros e sugava as forças do corpo. Avançavam, hora após hora, sempre pelo meio do rio, contra a corrente furtiva, vencida metro após metro. Até à noite seguinte. Cliff Haller impôs uma distância de cinco metros entre ele e as canoas. Ordenou a Alexander Jesus que lançasse a grande pedra, ligada a uma corda, que servia de âncora.

‑ Vocês ficam aí, gentlemen ‑ gritou ele, rindo amplamente.

‑ Quem quiser algo de mim, pode nadar até aqui acima. Quem chegar aqui sem ser esqueleto, ganha uma medalha de ouro.

Naquela noite decidiu‑se o destino da maior parte das pessoas. Ellen dormia num colchão de ar, na popa do barco, perto do motor. à frente, onde a corda da âncora caía no chão, estava Rita Sabaneta. Cliff tinha‑se esticado no meio... fumava um cigarro atrás do outro e levantava a cabeça de vez em quando e olhava para o lado de Rita, Quando calculou que ela dormia profundamente, endireitou‑se e rastejou até Ellen. Mas não foi longe... uma mão segurou‑o pelo tornozelo do pé esquerdo e puxou‑o para trás. Cliff virou‑se e viu os olhos ardentes de Rita.

‑ Queres ir para ela? ‑ sibilou Rita. A sua face estava comprimida e tinha perdido toda a beleza virginal. Com um salto, lançou‑se à frente de Haller e agarrou‑se a ele firmemente. Com o choque, ele caiu para trás e bateu com a cabeça no canto de um caixote. Aturdido, viu como Rita puxava por ele e tentava levá‑lo para a costada do barco. Esta fraqueza apenas durou alguns segundos, depois a sua cabeça ficou novamente lúcida e, com um golpe, afastou a rapariga de si.

‑ Maldita gata! ‑ rosnou ele. ‑ Eu ia cair no rio, não é? Viraria comida, não é? Oh, maldita!

Inclinou‑se para a frente e esbofeteou‑a duas vezes. A cabeça dela voou de um lado para o outro, e os longos cabelos negros oscilaram ao mesmo tempo, em volta da sua face maltratada.

‑ Tu queres ir ter com ela! ‑ perguntou ela, ofegante. ‑ Tal como ontem e anteontem! Pensas que eu não vi? Oh, eu mato‑te... e a ela também... ela primeiro...

‑ És louca ‑ disse Cliff. Sentou‑se rum caixote e procurou um novo cigarro no seu bolso. ‑ Tinhas pensado que ficaríamos juntos para sempre?

‑ Eu amo‑te! ‑ Rita Sabaneta meteu a mão no bolso das calças, tirou um maço de cigarros e lançou‑o a Cliff. ‑ Por amor, atravessei eu contigo quase meio mundo.

‑ Desde o Rio até Tefé!

‑ Não é suficiente? Por que razão me deitas fora agora? Ela é mais bonita que eu? Olha para ela: o cabelo, a face altiva, o corpo franzino, o peito como uma criança... o que tem ela? ‑ Subitamente, ela saltou, arrancando a blusa pela cabeça, as calças pelas ancas e ficou em pé, nua perante Cliff Haller. Como uma serpente, torceu o seu esplêndido corpo castanho e apertou para cima, com as duas mãos, os seus seios cheios.

‑ Ela tem isto... e isto... e isto? ‑ gritou ela. Com um salto, estava junto de Cliff, lançou‑se sobre ele, beijou‑o e apertou‑o com as pernas e os braços. ‑ Consegue fazer amor como eu? ‑ sibilou‑lhe ela no rosto. ‑ Consegue atordoar‑te com o seu amor?


A resistência de Cliff Haller incendiou‑se perante a paixão de Rita. Como sempre, quando ela o abraçava, ele reconhecia que aquela mulher era a única que lhe dominava as forças. Nos braços dela, deixava de ser um herói. "Ela faz de mim um pateta", pensava ele sempre."No seu corpo, sou um nada sem cérebro. Ela consome‑me a razão." Depois, ficaram deitados junto um do outro, fumando e fitando o céu salpicado de estrelas.

‑ Eu vou matá‑la ‑ disse Rita Sabaneta. ‑ Cliff, não tomes isto levianamente. Se tu depois me estrangulares ou me fizeres outra coisa qualquer, é‑me indiferente. Mas ela não vive mais... isso é o principal. ‑ Ela endireitou‑se e fitou o rosto cansado dele, marcado pelo amor impetuoso. ‑ Estou‑te a avisar, Cliff não toques mais nela!

No quarto dia chegaram ao primeiro rápido, como Cascal tinha dito antecipadamente. O Dr. Forster verificou, com surpresa, que Cascal aparentemente conhecia melhor o rio Tefé do que todos os outros. Mas calou‑se sobre o assunto e propôs‑se observar melhor Cascal a partir daquela altura. O rápido e a queda de água foram o fim da viagem de barco. Cliff abordou a margem esquerda, onde estava depositado um largo banco de areia, e deixou o barco encalhar. Foi buscar um mapa, e Cascal reconheceu que era composto de fotografias aéreas.

‑ Donde tirou essas fotografias? ‑ perguntou ele de chofre.

‑ Isso não lhe diz respeito, senhor ‑ Cliff desenhou uma cruz com um lápis vermelho no lugar do rio, que estava identificado distintamente na fotografia aérea como sendo uma barreira branca. ‑ Estamos aqui. Aparecem ainda mais quatro rápidos, perto uns dos outros. Não faz sentido continuarmos a viagem de barco para o levar para as quedas de água e depois deixá‑lo de novo no rio.

‑ Isso quer dizer, então, continuar a pé? ‑ disse o Dr. Forster. ‑ Tem algum pé doente? ‑ perguntou Cliff, algo venenosamente.

O Dr. Forster cerrou os punhos e afastou‑se. "Um tipo repugnante", pensou ele. "Devia‑se bater‑lhe no seu grande focinho. Mas isso seria uma rebelião sem sentido; ele tem a força de um touro. Só poderia ser vencido havendo união entre todos, se todos estivéssemos de acordo... e, mesmo assim, tudo seria em vão, pois Ellen admira‑o." Assim, engoliu a grosseria e, por amor, optou pela cobardia. O transbordo foi cansativo, a distribuição das cargas levou a acesas discussões. Cliff era o que fazia tudo sozinho. Aprontou os sacos de carga, pesou‑os e estabeleceu quem os tinha de carregar. Cascal deu um pontapé na sua bagagem e fincou as mãos nos quadris.

‑ Não! ‑ exclamou ele. ‑ Não sou nenhum burro de carga! Nem dez cavalos me obrigavam a levar isto!

‑ Eu não preciso de dez cavalos, senhor... isto aqui é suficiente. ‑ Cliff levantou o punho e atingiu Cascal por baixo do nariz. ‑ Até à nascente do Juma são ainda trezentos quilómetros. São trinta dias de marcha, se andarmos lentamente. Quer ser o único cobarde?

Cliff olhou à sua volta. Cascal não parecia ser o único a recusar‑se, também os outros homens olhavam para ele, zangados.

‑ Ah, é isso! ‑ disse ele, alongando as palavras. ‑ O vento sopra de todos os lados? Uma pequena revolução? Ellen... ‑ virou a cabeça para ela e sorriu amplamente com ironia. ‑ Teve pouca sorte com a sua tripulação. São só indivíduos que em vez de ossos têm pudim...


Foi nesse momento que Cascal explodiu. Saltou para a frente e bateu‑lhe. O golpe foi bem apontado, atingiu Cliff bem por baixo do queixo, e qualquer outra pessoa teria tombado como uma árvore. Mas não Haller. Ele apenas se defendia; como um cão caído na água, fitou Cascal incrédulo e depois baixou‑se um pouco.

‑ Cliff. ‑ chamou Ellen Donhoven estridentemente. E também Rita Sabaneta, que estava acocorada junto a uma fogueira a descoberto e cozinhava uma panela de sopa de feijão, pois tinha tomado conta da cozinha durante o tempo de convalescença de Palma, lançou um grito de aviso.

‑ Falta‑lhe a força, senhor! ‑ disse Cliff, perigosamente suave.

‑ Não me deixo acariciar facilmente.

Lançou‑se em linha recta, mas Cascal, que estava preparado, desviou‑se, dançou para o lado, mostrando, de repente, medo nos olhos. Cliff perseguiu‑o, mas não voltou a desferir nenhum golpe. Como uma roda, os outros precipitavam‑se sobre ele. Rodopiavam punhos, os golpes vibravam, pragas e gemidos misturavam‑se com a respiração ofegante dos lutadores, um remoinho de braços abateu‑se sobre Cliff, o sangue jorrou‑lhe do nariz, mas ele não desistia, lutava e andava em volta, chegando a atingir Campofolio tão duramente no baixo‑ventre, que o italiano, uivando, rolou no chão e berrou como se lhe estivessem a tirar a pele. Subitamente, como o descarregar de uma trovoada para depois reinar uma calmaria fantástica, também os homens retrocederam e deixaram Cliff em paz. Estava deitado de costas, o seu rosto estava inchado, tinha um olho fechado, e o outro fitava Ellen e Rita, que estavam ajoelhadas junto dele a limparem cuidadosamente o sangue do seu rosto destroçado, com trapos molhados.

‑ Bando de cobardes! ‑ disse Ellen. O Dr. Forster nunca lhe tinha ouvido aquela voz. Levantou a cabeça de Cliff para o seu colo.

Simultaneamente Rita rasgou‑lhe a camisa no peito e começou a massajar‑lhe o coração. Depois correu para os cantis de água, despejou o conteúdo de um deles na camisa rasgada e com ela refrescou assim a cabeça e o tronco de Cliff.

‑ Era necessário! ‑ disse o Dr. Forster, ofegante. ‑ Ellen, a tolerância tem limites.

‑ Não fale comigo! ‑ gritou ela de imediato.‑ Já é suficientemente mau ter de suportar a sua presença!

‑ Ellen! ‑ Ele arrancou‑a do chão e ela bateu‑lhe na cara, comportando‑se como uma gata assanhada. O Dr. Forster agarrou‑a por um braço e apertou‑a contra o seu corpo. Ela tentou atingi‑lo com o joelho, mas não conseguiu.

‑ Onde é que ficou o seu bom senso? ‑ gritou ele. ‑ Não vê que, para este indivíduo, é totalmente indiferente que todos nós morramos? Só o Diabo sabe o que o impele para o Juma! Ele não iria nem um passo mais devagar, se atrás dele fosse morrendo uma pessoa após outra. Vocês odeiam‑no porque ele é mais forte do que vocês! Porque ele é superior a todos vocês! ‑ gritou Rita. Beijava o rosto magoado de Cliff e limpava o sangue que corria continuamente do nariz dele.


Ellen observava aquilo tudo com as sobrancelhas franzidas. A sua respiração ficou mais acelerada, quase histérica. Cliff estava ainda inerte, mas era evidente que não tinha ficado assim tão ferido que não se pudesse mexer mais. Estava a descansar, estava a reunir forças. Tinha tempo. à sua frente estavam trezentos quilómetros de selva densa e hostil, e junto dele teria seis homens que apenas estavam à espera de se livrarem dele. "Bonitas perspectivas", pensou. "Pode‑se andar mais confortavelmente. Isso é uma coisa que o Mr. Hodkins, em Washington, não pode pagar de modo algum. Eles, de um modo geral, fazem tudo muito fácil lá no quartel‑general: põem uma imagem aérea na mesa, apontam para uma região na selva, onde pretensamente ainda ninguém esteve, e dizem: Cliff, aqui está uma tarefa para si. Vá para lá! Deve ser um diabo de um projecto interessante. Parece ser tudo floresta cerrada, mas na fotografia número dezanove há algo que brilha. Não é um brinco de uma índia, ou então ela teria orelhas como um portão de um celeiro. O que é que pensas disto, Cliff? Uma pequena viagem através da terra das orquídeas. De resto, as mulheres devem ser de classe. Raparigas mestiças. Leva um par de embalagens de hormonas contigo..."

Cliff Haller levantou a cabeça e sentou‑se. Apontou para o Dr. Forster e acenou com a cabeça afirmativamente.

‑ Ele tem razão, o rapaz. É‑me totalmente indiferente que vocês fiquem pelo caminho. Ellen e Rita e eu... nós, de qualquer maneira, vamos chegar ao Juma. Eu faço qualquer aposta.

Levantou‑se, apoiando‑se em Rita e Ellen e dobrando um pouco os joelhos, começou, então, a dançar como um boxer, que se aquecia a fazer exercícios de aquecimento, e respirou fundo algumas vezes. Depois, ficou novamente em forma e deu um beijo a Rita e a Ellen na face.

‑ Obrigado, girls! E os valentes gentlemen que se amanhem, vamos em frente. Ellen, pode carregar com 10 quilos?

‑ Naturalmente, Cliff.

‑ Rita, tu és uma rapariga forte. Pega no saco amarelo.

Lançou a sua bagagem ao ombro, pendurou uma arma ao pescoço, pegou num machado e acenou.

‑ Ainda temos de batalhar um par de quilómetros, girls! Cerrem esses lindos dentinhos uma atrás da outra!

Foi em frente, procurou um caminho através do enredado de lianas, talhou, com o machado, um atalho no muro verde e calcou com os pés tudo a partir dali, um colosso de músculo e energia. Ellen Donhoven atirou a sua bagagem para o ombro. Quando o Dr. Forster a quis ajudar, ela deu‑lhe um empurrão no peito.

‑ Não me toque! ‑ gritou ela, com o rosto desfigurado.

‑ Eles estão como doidos! ‑ disse Fernando Paz quando Cliff desapareceu na selva com as duas raparigas.

‑ Quando o tipo vê uma mulher, é como um estupefaciente. Com os diabos, vamos viajar para trás e deixá‑los avançarem sozinhos? É tão idiota, mas eu não sou capaz de o fazer.

‑ Vamos! Vamos! ‑ Cascal carregou a sua bagagem, gemendo. Para ele, já não havia mais retorno. Dali a cem quilómetros apareceria a zona de perigo. Nessa altura, algo devia acontecer, a expedição tinha de ser destroçada. Após vinte minutos, alcançaram Cliff e as raparigas.

‑ Chegaram os camelos de carga! ‑ disse Cliff alto.


O Dr. Forster poderia tê‑lo morto por esta observação. De noite, ouviram novamente zumbidos no céu. Pesados aviões de transporte atravessaram a escuridão. Eram pelo menos dez. Durante um quarto de hora, o silêncio nocturno foi preenchido pelo vibrante ribombar. Cliff levantou a cabeça. Cascal também estava ainda acordado.

‑ Lá trazem eles cuecas e coca‑cola aos índios... ‑ disse ele bem disposto.

Cascal virou‑se para o outro lado e cerrou os dentes. Achava que o plano do general de Manaus não era bom, deixar Cliff Haller avançar sem ser molestado, para, através dele, chegar a saber o ponto fraco, para poder descobrir o segredo.

 

Dois dias mais tarde, Fernando Paz e Alexander Jesus morreram. Foram mortes estranhas. Caíram subitamente de joelhos, saiu‑lhes espuma da boca, os seus corpos contorceram‑se terrivelmente, os olhos dilataram‑se de horror... depois perderam os sentidos, e passados dez minutos estavam mortos. O Dr. Forster examinou‑os, tanto quanto lhe permitiram os meios primitivos. Injectou‑lhes antivenenos indiscriminados, porque não sabia o que os tinha contaminado... mas depois desistiu e fechou os olhos desorbitados pelo medo de Paz e Alexander Jesus.

‑ Eles foram, sem dúvida, envenenados ‑ disse. ‑ Mas com quê?

‑ índios? ‑ perguntou Cascal, alongando a palavra.

‑ Disparate! ‑ Cliff ajoelhou‑se junto dos cadáveres. ‑ Então estaríamos todos feitos. E onde estão as setas?

‑ Eles disparam pequenas setas de bambu com zarabatanas às suas vítimas. Chamam‑lhe a "morte silenciosa".

‑ Nós vamos apanhar o mesmo. ‑ Cliff e o Dr. Forster despiram os cadáveres e examinaram os seus corpos. Nenhuma ferida, nem mordida de serpente, nada. Haller olhou pensativamente os membros deformados. ‑ É como com o Moco ‑ disse ele. ‑ Alguém os envenenou. Com a comida, com a água... e o círculo fica cada vez mais pequeno: Cascal, o Dr. Forster, Palma e eu, naturalmente ... um de nós está a eliminar‑nos um após outro.

‑ Isso é um absurdo ‑ achou o Dr. Forster.

‑ Isso já você tinha dito uma vez, Dr. Forster.

‑ Eu vi que há pouco tinham ambos bebido pelos cantis de água ‑ balbuciou Rafael Palma. Para ele, a marcha através da selva era um verdadeiro tormento... era verdade que o seu pé estava salvo, já não estava inchado, e a ferida estava a cicatrizar bem... mas cada passo cravava‑se até ao cérebro. Ficar para trás, não podia... sozinho nesta selva, era morte certa. Tinha de ir em frente, atrás dos outros... e o medo de ficar esquecido fazia‑o andar. Muitas vezes rangia dentes de dor.

 

Cliff desatarrachou o cantil de Alexander Jesus e cheirou o gelado. Depois estendeu‑o a Cascal.

‑ Prove.

‑ Está doido?

‑ Quem fez o chá?

‑ Eu ‑ disse Rita. ‑ Enchi todos os cantis. Eu própria já bebi do chá.

‑ Então, alguém durante a noite deitou o veneno nos cantis dos dois. Eu também bebi do chá, e estou vivo. Não pode ser da água.

‑ índios... ‑ disse Cascal teimosamente.

‑ Acabe lá com os seus índios, Cascal! Acredita que eles se esgueiraram até nós, fizeram pingar veneno em dois cantis e foram‑se outra vez embora? Ou punham em todos, ou então em nenhum. Se nos quisessem matar, faziam‑no mais facilmente. Pense nas zarabatanas deles.


A desconfiança geral tornou‑se simplesmente insuportável. Ellen Donhoven exprimiu‑se, por fim, com a sua singular clareza mordaz:

‑ Daqui para a frente, cada um alimenta‑se a si próprio!

‑ E eu aniquilo qualquer um que se aproxime do outro. A partir de agora fica uma distância de cinco metros entre cada um de nós! Até de noite! A Ellen, a Rita e eu vamo‑nos alternando na vigilância nocturna. Quem ultrapassar a fronteira dos 5 metros é alvejado, está entendido gentlemen? ‑ Cliff Haller apontou para os cadáveres.

‑ Vamos enterrá‑los ou lançá‑los ao rio?

‑ Enterrá‑los... ‑ disse Campofolio sombriamente. ‑ Clíff, que espécie de pessoa é você?

‑ Um realista. Cavar duas campas, paga‑se em esforço e em tempo. E nós ainda precisamos bastante de ambos. No rio desaparecem com a rapidez de segundos, mais depressa no que num crematório. Cinza ou comida para peixe, onde é que está a diferença?

‑ E você ainda o admira, Ellen! ‑ disse o Dr. Forster, rouco. ‑ Ele é um monstro!

Ellen Donhoven apertou os lábios. Tirou as pequenas pás da bagagem e começou a abrir a terra. Sem uma palavra, Cliff tirou‑lhe a pá.

Passaram‑se cinco horas até que tivessem cavado as duas campas e enterrado Fernando Paz e Alexander Jesus. Depois calcaram firmemente a terra e fizeram rolar pedras do rio, para lhes porem por cima. Campofolio queria ainda fazer uma cruz, mas Cliff impôs a partida.

‑ Deus também se preocupará com eles, desta maneira - disse ele, trocista. ‑ Mas connosco ninguém se preocupa. Perdemos uma metade do dia ...

Continuaram a marcha. Mas tudo tinha mudado muito. Antes, tinham de atravessar o inferno verde, agora também arrastavam com eles um segundo inferno. O inferno da desconfiança, o ódio recíproco. Durante três dias, tudo correu bem. Lutavam através da selva, cada um separado do outro 5 metros. à noite dormiam em fila indiana, em iguais distâncias de segurança, como se fossem compridos elos de uma corrente. Cliff, Ellen e Rita alternavam na sentinela... mas os outros também vigiavam. De manhã, todos estavam cansados e na disposição de partirem as cabeças reciprocamente. Na quarta noite Cliff estava no seu lugar a andar de um lado para o outro. A fogueira não estava a arder, e apenas as brasas vermelhas brilhavam tenuamente através da escuridão. Rita Sabaneta dormia profundamente... Cliff ficou convencido disso quando se lhe dirigiu e a abanou suavemente. Ela murmurou algo no sono e continuou a dormir como se estivesse anestesiada. Cliff acendeu um cigarro, sentou‑se contra uma árvore e encostou a cabeça para trás. Os dias anteriores tinham‑lhe consumido as forças mais do que se via. "Ainda mais cerca de duzentos quilómetros", pensava ele. "Vinte dias de inferno febril e selva fumegante. Vinte dias de rio sempre sujo com o seus peixes assassinos. Vinte dias de medo de novos atentados." Sobressaltou‑se. Uma sombra deslizou ao longo das árvores.

‑ Ellen ... ? ‑ perguntou ele em voz baixa.


‑ Sim. ‑ Ela sentou‑se nele e puxou as pernas. Os seus grandes olhos azuis olhavam‑no, expressando um pedido infantil: "Não me mandes embora... deixa‑me estar contigo..." ‑ Não consigo dormir - disse ela.

‑ Medo?

‑ Não. Tu estás aqui ...

‑ Então o que é, baby?

‑ Amo‑te!    

Ele rodeou‑a com os braços e puxou‑a para si. Ela levantou a cabeça e beijou‑o, e ficou feliz quando ele pôs as mãos nos seus seios e os acariciou.

‑ Vem! ‑ disse ele. A voz dele podia ser terna, mas na altura soava estranha e sombria. ‑ Que diabo, sobra‑nos pouco tempo, para sermos felizes.

Penetraram alguns metros na floresta, através do seu embrenhado, e caíram então nos braços um do outro e deixaram‑se cair, enlaçados, no chão mole. Rita Sabaneta assustou‑se vivamente quando alguém a abanou no ombro. Quis soltar um grito, mas uma mão tapou‑lhe a boca e abafou‑o.

‑ Quieta! ‑ sussurrou uma voz de homem. ‑ Está quieta, com mil raios! Acorda! Sou eu, o José! ‑ Cascal deixou a mão escorregar da boca da Rita.

Estava deitado perto dela e então puxou‑se para junto dela e segredou‑lhe ao ouvido:

‑ Esta noite é interessante. O Cliff e a médica desapareceram na floresta... ‑ Rita estremeceu vivamente. Mas Cascal fê‑la baixar imediatamente. ‑ Sossega! ‑ segredou‑lhe ele. ‑ Sossega! ‑ A sua mão deslizou sobre o peito de Rita. Ele ouvia como ela rangia os dentes.

‑ Eu mato‑a ‑ gemeu ela.‑ Já lhe disse isso a ele: eu mato‑a!

‑ Isso seria estúpido, minha rapariga. ‑ Cascal acariciou o rosto de Rita e depois a sua mão foi como um raio até ao decote da blusa e agarrou o seu seio direito. Ela quis defender‑se, mas agarra de Cascal era tão firme que só sairia com grande barulho.

‑ Tire a mão! ‑ sibilou ela.

‑ Ele está além deitado na terra a atraiçoar‑te e tu queres fazer‑te de santa? ‑ A voz de Cascal tremia um pouco. ‑ Porquê matar? Humilha‑o! Quebra o orgulho dele! Bate‑lhe com as suas próprias armas...

Rita estava deitada de costas e tremia de raiva. Ficou rígida, quando Cascal lhe abriu a blusa e levantou a saia. Então, subitamente lançou‑se para cima, agarrou Cascal e puxou‑o sobre ela.

‑ Sim! ‑ disse ela, alto. ‑ Ele deve ver isto! Deve rebentar! Cascal tentou tapar‑lhe a boca, mas ela mordeu‑o na palma da mão, arranhou‑o e bateu‑lhe, até ele libertar a sua cabeça.

‑ Ah! ‑ gritou ela. ‑ Isto é como fogo! Como fogo! - Gemendo, rasgou a camisa de Cascal em duas e agarrou‑o com as pernas, como uma serpente, quando ele se quis afastar dela.

‑ Tu és louca! ‑ sibilou‑lhe ele. ‑ Maldita! Deixa‑me!

Ele tentou sair do seu abraço, mas ela tinha‑o tão agarrado como um polvo à sua vítima. Só quando viu Cliff ao pé de si é que soltou Cascal, estendeu os braços e as pernas, oferecendo o seu corpo nu de uma maneira obscena, e fixando Cliff com os olhos ardentes. Cascal rolou para o lado, infeliz.

‑ Mas que amante! ‑ disse ela com a respiração a galopar. - Ainda nunca tinha sido tão bom! As raparigas têm razão: um ianque é um amante insípido. Tudo a contra‑relógio... sempre com recordes de velocidade...


Cliff levantou‑a e deu‑lhe uma retumbante bofetada. Rita, com a pancada, voou um metro, para depois se precipitar no chão. Cascal agitou‑se. Com um salto, ficou junto à fogueira e arrancou das brasas um grosso ramo de árvore ainda a arder. Ellen Donhoven gritou, lá ao fundo, invisível nas sombras da floresta. Os outros homens acorreram. Cliff sacou da sua pistola e puxou a corrediça.    

‑ Cinco metros, boys, ou isto rebenta.

Palma, Campofolio e o Dr. Forster ficaram parados. Cascal estava curvado em frente de Cliff, com o ramo em brasa na mão.

‑ Deixe cair o estúpido pau ‑ disse Haller.

‑ Vem buscá‑lo tu! ‑ gritou Cascal por sua vez.

‑ Isso é o que tu vais ver! ‑ Haller disparou com a rapidez de um relâmpago; tinha valido a pena ter estado na melhor escola de tiro que havia na U.S.A. O ramo em brasa saltou da mão de Cascal sem que ele tivesse sido atingido. Praguejando, Cascal arremessou o resto para o lado. O que se seguiu passou‑se muito rapidamente. Com três golpes, Cliff atirou Cascal, que se defendia com os pés, ao chão, levantou‑o de novo e atordoou‑o definitivamente com uma aparatosa pancada no queixo. Deixou‑o ficar deitado, virou‑se para Rita, nua, e levantou‑a do chão. Ela mordeu‑o na mão, saltou para ele, mas ele sacudiu‑a como se fosse um insecto. Sem uma palavra, arrastou‑a para uma árvore, apanhou algumas cordas da bagagem no caminho para lá e atou‑a ao tronco liso. Ela gritava e abanava a cabeça de um lado para o outro.

‑ Escuta‑me! ‑ gritou ela. ‑ Cliff, misericórdia! Não me podes atar! Deixa‑me explicar‑te tudo... foi ideia do José... Cliff, eu amo‑te... e estou totalmente doente de amor... tu enganaste‑me primeiro... tu, com essa maldita loura ... Cliff, não me podes matar. Socorro! Socorro!

‑ Acabe já com isso! ‑ gritou Campofolio, saltando para a frente. Haller girou em volta e empunhou a pistola.

‑ Para trás! ‑ ordenou ele, duramente. ‑ Temos de começar a entender, que aqui não estamos em recreio! ‑ Disparou dois tiros para o chão, mesmo em frente das biqueiras das botas de Campofolio. O italiano saltou para trás.

‑ Seu porco! ‑ gritou o Dr. Forster. ‑ Mas também se consegue parti‑lo em pedaços!

Cliff Haller tinha atado Rita à árvore e voltou de novo para a fogueira. Ela gritava, pedia, implorava, chamando os outros homens para a ajudarem.

‑ Agora vamos inverter as posições! ‑ disse Haller. ‑ Vocês vão à frente, gentlemen; assim, ter‑vos‑ei melhor debaixo de olho. E vai ser agora! Uma caminhada nocturna vai‑nos refrescar a todos. Ou há aqui alguém já cansado?

Calados, embalaram tudo, o Dr. Forster, Campofulio e Palma seguiram à frente. Rita Sabaneta gritou até a sua voz se perder e morrer num gemido. Cliff Haller era o último. Segurou Ellen e pôs a mão na anca dela. Ela deu um passo para o lado, libertando‑ se assim da sua garra.

‑ Essa agora! ‑ disse Cliff. ‑ Estás armada em moralista?

‑ Eu tenho medo de ti. ‑ Ellen acelerou o passo.

‑ Não te aproximes de mim!

Subitamente, começou a correr, como se corresse pela sua vida e deteve o Dr. Forster.

‑ Posso ficar junto de si, Rudolf? ‑ perguntou ela. ‑ Por favor!


Ele abanou a cabeça afirmativamente e continuou a andar. Como uma cega, Ellen tacteou atrás dele e segurou‑se à sua cintura.

 

José Cascal recuperou os sentidos e rolou, gemendo, sobre o abdómen. Não sabia dizer quanto tempo tinha passado desde o golpe com que Cliff Haller o tinha feito desmaiar junto à fogueira; devia ter sido bastante tempo, pois o lume estava quase apagado. A noite, pálida, estendia‑se sobre a floresta e o rio, o inferno verde estava saturado de vozes e ruídos. No esvoaçar e guinchar dos pássaros nocturnos misturava‑se também um gemer fraco, que trouxe Cascal completamente de volta à realidade. Endireitou‑se e esfregou a cara maltratada algumas vezes. Depois pôs‑se em pé, cambaleou como um bêbedo, segurou‑se a um tronco de árvore e sacudiu de si os últimos vestígios de atordoamento, como um cão sacode a água do pêlo. Aqueles gemidos... Uma voz de mulher. Da escuridão do outro lado da fogueira na orla da floresta... Cascal lembrou‑se novamente... o ataque absurdo a Cliff, aquele touro feito homem, Rita nua, que suplicante tinha caído de joelhos perante Haller, o espanto paralisado dos outros, que tinham ficado ali em volta, impotentes.

‑ Rita! ‑ chamou Cascal, baixo. E depois mais alto, pois não obteve qualquer resposta: ‑ Rita! Rita!

‑ Sim.... aqui..., José... ‑ Uma voz flutuante, rouca de tanto gritar desesperadamente, sem tom, apenas um ofegar. Cascal caminhou vacilante através da escuridão, seguindo a voz, apanhou um ramo em brasa da fogueira extinta e fê‑lo girar em volta de si próprio algum as vezes, para que a brasa se ateasse. Assim que o ramo se incendiou e a luz da chama, oscilando, revelou fantasticamente as imediações, continuou a andar às apalpadelas e viu Rita. Pendia, nua, nas cordas com que Cliff a tinha amarrado, e a cabeça oscilava de um lado para o outro, os longos cabelos negros flutuavam ao mesmo tempo, como um véu de defunto.

‑ Aquele porco... ‑ balbuciou Cascal. ‑ Oh, Deus, perdoa‑me, se eu o matar como a um bicho. ‑ Vacilou mais um pouco, já sem força nas pernas, até Rita e desfez os nós com os dedos trémulos. Assim que as cordas cederam, Rita caiu, como se já não tivesse ossos.

Rolou no chão, de braços estendidos, e fechou os olhos. Cascal arrancou a sua camisa do corpo, cambaleou até ao rio, molhou‑a na água e correu de volta para Rita. Com a camisa molhada, massajou‑lhe a cabeça, os seios e o corpo todo, esfregando‑lhe as têmporas e zona do coração, beijou‑a e acariciou‑a, e depois deixou a camisa molhada bater‑lhe no corpo, mais e mais, até ela se mexer, respirar fundo, abrir os olhos e olhar Cascal, com os seus grandes olhos castanhos, como um animal moribundo.

‑ Onde, onde está ele? ‑ perguntou ela, mal se ouvindo. Cascal abraçou‑a, uma louca alegria atravessou‑o, beijou‑a e colocou a cabeça dela no seu colo. "Eu amo‑a realmente", pensou ele, desejando ser capaz de experimentar um sentimento daqueles. Primeiro, apenas se queria vingar de Cliff, agora tinha‑se tornado o seu destino.

‑ Eles foram‑se embora... todos... Não sei quanto tempo fiquei deitado. ‑ Envolvia‑a com as suas mãos e beijava‑a nos olhos.

‑ Como é que tu estás, favorita?...

- Eu queria morrer, José...


-Porquê? Por causa de um homem como Cliff. Ele é um diabo, Rita! Vamos caçá‑lo como a um jaguar...

‑ Nós? Quem?

‑ Tu e eu e os meus amigos.

‑ Estou tão cansada, José, cansada de morte. ‑ Ela pousou os seus dedos frios na mão dele. ‑ O que podemos fazer? Ele é mais forte do que todos nós!

‑ Isso só tu é que pensas. Não sabes o que há por detrás de nós. Espera!

Ele saiu debaixo dela, apoiou a cabeça dela na camisa toda amarrotada e molhada e levantou‑se. Com a acha em chamas, dirigiu‑se ao acampamento e encontrou a sua bagagem e a de Rita, que Cliff tinha deixado para trás. Quem a iria carregar? Com as últimas forças, arrastou a sua trouxa para a margem do rio, desatou‑a e procurou febrilmente em cada um dos muitos pacotes e caixas. Depois olhou para o relógio, que usava no pulso esquerdo, e começou a aparafusar um objecto alongado e escuro. Rita Sabaneta levantou a cabeça.

‑ José! ‑ chamou ela com medo.

‑ Estou aqui. Junto ao rio. Dentro de uma hora, estaremos fora deste inferno! ‑ Cascal levantou o objecto escuro. Era uma espécie de pistola ultrapesada. No cano colocou um cartucho redondo com a forma de um pequeno foguete. ‑ Em dez minutos deverão estar por cima de nós... e o mais tardar daqui a uma hora vão‑nos levar daqui para fora... o maior erro de Cliff, foi não nos ter abatido também. - Cascal pôs a grande pistola junto de si e deixou‑se cair de costas, na margem. Rita, também se deixou ir para trás. O seu corpo aviltado e maltratado ardia e fazia comichão. Mas ainda mais ardentemente, o seu ódio contra Cliff Haller e Ellen Donhoven devorava o seu coração. Batia os dentes, de excitação interior, agarrando‑se com as unhas ao chão mole da floresta.

‑ José! ‑ chamou ela. A sua voz tinha, de novo, um som pleno, mas estava estridente de ódio flamejante.

‑ Sim, favorita?  

‑ Quem és tu? Quem és tu, realmente?

‑ Já te esclareço mais tarde. Mais cinco minutos; além, ouves? Zumbidos baixos. Ainda longe, apenas um sussurro surdo entre as milhares de vozes nocturnas da floresta, mas aproximando‑se rapidamente, crescendo como um ribombar de trovões.

‑ Aviões ‑ murmurou Rita. Sentou‑se e observou Cascal, que tinha saltado, estava parado na margem do Tefé, segurando a pesada pistola no alto, sobre a sua cabeça, para o céu nocturno. O zumbido abafado estava agora sobre eles. Cascal disparou. Um estampido surdo e o pequeno foguete lançou‑se para cima, para a escuridão do céu, e lá estoirou. Uma bola vermelha pairou durante alguns segundos como um minúsculo pára‑quedas no ar e afundou‑se, depois, próximo da margem oposta do rio. Cascal disparou ainda mais três vezes a sua bala luminosa, depois foi de volta para Rita e rodeou‑a com os braços.

‑ Estamos salvos ‑ disse ele. ‑ Vais ter uma cama como deve ser, vais ser examinada por um médico, vais ser tratada como uma princesa... e depois vamos matar o Cliff. Ela abanou a cabeça afirmativamente, em silêncio, apoiou a cabeça no peito dele e fixou o rio.

‑ Quem és tu?‑ perguntou ela, de novo, passado bastante tempo. Cascal beijou‑a atrás no pescoço e acariciou o seu magnífico corpo macio.


‑ Eu sou José Cascal, capitão do exército brasileiro e membro dos serviços secretos, da secção de Manaus. É tudo.

‑ Serviços secretos! ‑ Rita fitou Cascal com os olhos muito abertos. ‑ Estavas atrás de Cliff desde o princípio ...

‑ Não. Eu não sabia da existência dele. O nosso encontro foi casual. Mas que sorte, termo‑nos encontrado! Ele contou‑te o que Procurava aqui na selva de Tefé?

‑ Não. Nunca. Mas ele transmitia todas as noites. Partimos três dias mais tarde e seguimos como estava planeado, lá deparámos com vocês.

‑ Onde o conheceste?

‑ No Rio. Num bar. Eu dançava lá.

‑ E vieste logo para a selva com ele?

‑ Eu apaixonei‑me por ele, José. Ele era um homem como se fosse tirado de um livro de gravuras. Nos seus braços, eu ficava como que atordoada. ‑ Inclinou a cabeça para trás e beijou Cascal. ‑ Agora eu sei quantos disfarces o diabo pode assumir... vou matá‑lo, José!

‑ Tu não, eu é que vou fazê‑lo! E tu deves assistir, tal como se assiste à morte de um touro na arena.

Depois deitaram‑se, próximos, no chão da floresta, muito aconchegados um ao outro, mas sem se amarem... só a sensação de estarem perto um do outro, do contacto das suas peles, era para eles felicidade suficiente. Passado apenas uma hora ouviram um claro vibrar no ar. Cascal apontou para o céu e riu.

‑ Lá estão eles! ‑ exclamou. ‑ Vão‑nos puxar. Quando chegar a manhã, vais estar deitada numa cama feita de roupa branca limpa...

 

Correram para os volumes da bagagem deixados para trás. Rita vestiu um simples vestido de lã, Cascal procurou uma camisa, e pouco depois o raio de luz de um projector oscilou nitidamente sobre o rio Tefé. Um helicóptero com flutuadores desceu lentamente para o rio, pousou na água cuidadosamente, a hélice girava a meia velocidade, o barulho do motor foi morrendo, e zumbindo suavemente, o helicóptero deslizou até ao pontão da margem. Cascal correu para baixo, em direcção ao rio. Com os braços estendidos, correu para o feixe de luz do projector, que tacteava agora a selva.

‑ Amigos! ‑ gritou. ‑ Aqui! Aqui!

Aporta do helicóptero abriu‑se e um barco de borracha bateu na água, seguido de um homem em uniforme de cabedal e forte capacete de voo. Cascal virou‑se. Rita apareceu correndo no raio de luz do helicóptero, caiu‑lhe no pescoço e beijou‑o. Ria, enquanto as lágrimas lhe corriam sobre o rosto palpitante, e Cascal pegou‑lhe nos braços e levou‑a para baixo para o barco de borracha.

‑ Eles vieram ‑ balbuciou Rita. ‑ Eles vão‑nos levar daqui. Eu não acredito, José... eu não acreditei verdadeiramente.

Duas horas mais tarde estava deitada numa cama macia de lençóis brancos lavados, como Cascal lhe tinha prometido, um médico e duas enfermeiras ocupavam‑se dela, deram‑lhe comida fortificante e depois algumas injecções calmantes, pois ela tinha começado de novo a chorar histericamente. Tinha ido para um outro mundo desconhecido e pleno de segredos, cuja visão facilmente dominou, para depois quebrar de novo.

 

Dez dias andaram eles por atalhos estreitos através da selva, durante dias de calor intenso e húmido, com bandos de mosquitos, durante noites quentes e cheirando a podre, acompanhados de animais que não se viam, cujos bafos e guinchos os rodeavam furtivamente. Cliff Haller tinha desistido de fazer andar à sua frente os três outros homens como carneiros. O Dr. Forster, Pietro Campofolio e Rafael Palma não eram seus adversários. Percorriam os seus quilómetros estupidamente, arrastavam as suas cargas através da floresta húmida, deitavam‑se à noite esgotados, como mortos, junto à fogueira e não pensavam empreender nada contra Cliff. O que mais se podia fazer? Matá‑lo? E depois? Numa distância de centenas de quilómetros à sua volta apenas estava o inferno verde, estava a maldita terra inexplorada, virgem e hostil, com rios, pântanos, selva e floresta tropical... apenas se podia ir para diante, não havia retorno, e aquele avante só Cliff o determinava, que aparentemente era o único que sabia onde o caminho deveria acabar. Ellen Donhoven ficou junto do Dr. Forster. Desde a noite em que Cliff tinha amarrado Rita, maltratada e nua, à árvore e a tinha deixado para trás, tinha afastado Haller do seu caminho. Repeliu as suas aproximações grosseiramente. Por três vezes naqueles dez dias, ele tentou puxá‑la para si. Uma noite sentou‑se junto dela à fogueira e pousou a mão no seu joelho dobrado. Ela tirou‑a, sem uma palavra, como se enxotasse um insecto.

‑ Baby, tenho de clarificar as coisas, creio eu ‑ disse Cliff, olhando provocantemente o Dr. Forster, que estava sentado do outro lado, junto a Ellen, e assava um peixe no espeto nas brasas ardentes da fogueira.

‑ Não há mais nada a dizer! ‑ disse Ellen, rigidamente.

‑ Sim? Achas que sim? ‑ Cliff sorriu ironicamente, mas embaraçado. ‑ O que se passou com a Rita...

‑ Não quero ouvir nada acerca disso!

‑ Mas é necessário.

‑ Você comportou‑se como... como... Falta‑me qualquer comparação! ‑ exclamou o Dr. Forster irritado.

‑ Muito bem! ‑ Cliff deixou‑se cair para trás e apoiou a cabeça no seu antebraço.

‑ Sem querer ser imodesto, poder‑se‑ia dizer que, eu sou incomparável. Baby, só uma achega: Eu estou aqui numa missão Política

‑ Oh, meu Deus! O novo James Bond! ‑ exclamou o Dr. Forster. ‑ Aqui no interior da selva existem cidades secretas, escondidas, que vão fabricar foguetões lunares!

Cliff Haller tornou a endireitar‑se subitamente. O seu rosto estava muito sério.

‑ Você não sabe como está próximo, doc. Agora não é a hora certa para dar explicações, mas acreditem em mim, era necessário eliminar Cascal.

‑ Não nos conte histórias heróicas, Cliff ‑ O Dr. Forster levantou‑se e tirou o peixe assado das brasas. Dividiu‑o e empurrou o prato para o colo de Ellen. ‑ Você é um cão impassível.


‑ Pois sou. ‑ Haller estava muito longe de se sentir ofendido. ‑ Tenho de o ser. E o que aconteceu com a Rita? Ela tinha‑se virado, Ela uniu‑se a Cascal. Maldição, eu fui suficientemente humano para a deixar viver, apesar de tudo. Na nossa profissão, sair do caminho significa tanto como estar numa campa. Por eu não ter atirado Rita ao rio, talvez nós todos nos venhamos a arrepender, e então não servirá de nada refilar.

‑ Quem é você realmente, Cliff ‑ perguntou Campofolio. Estava deitado do outro lado da fogueira, e tão depressa gelava como suava. A febre tinha‑o apanhado e tirava‑lhe as forças. O Dr. Forster tinha‑lhe dado comprimidos de quinino e encheu‑o de injecções. Na verdade, fizeram baixar a febre, mas deitaram Campofolio abaixo e envolveram‑no num cansaço paralisante. ‑ Você não está à procura de borboletas raras...

‑ Não. ‑ Cliff Haller olhou para Ellen penetrantemente.

‑ Tenho uma determinada missão.

‑ De quem? ‑ perguntou o Dr. Forster.

‑ Do bom Deus, se quiser. De algum modo, eu jogo na qualidade do bom Deus. Tenho que impedir algo.

‑ Aqui, onde ainda nunca veio ninguém? Acha que somos todos idiotas?

‑ Não todos. ‑ Cliff voltou‑se de novo para Ellen. ‑ Daqui a dois dias, segundo os meus cálculos, teremos conseguido.

‑ Não! ‑ Ellen pôs o prato, com o peixe meio comido, no chão.

‑ Eu estive a reflectir... vamos regressar!

‑ O quê? ‑ O Dr. Forster, Campofolio e Palma, deitado quase a dormir, rodearam‑na. Apenas Haller ficou quieto. O seu rosto tinha ficado duro, como se fosse esculpido em pedra.

- O que quer isso dizer? ‑ gritou Palma.

‑ Foi tudo em vão? Já não tenho mais vontade. ‑ Ellen Donhoven olhou Cliff belicosamente. ‑ Qualifico a minha expedição de mais sensata voltando para o barco pelo caminho mais rápido.

‑ Finalmente ficou sensata, Ellen ‑ disse o Dr. Forster, pousando o braço no seu ombro. Cliff Haller abanou a cabeça.

‑ Tanto disparate amontoado, é uma dor! ‑ disse ele, alto. ‑ Não contando com que não haja já vestígio do barco, pois os índios há muito que o raparam... Porquê para trás? O objectivo está à nossa frente! A nascente do rio Tefé e do rio Itanhaua. Em dois dias estamos na região do Juma... lá terá o seu veneno, My lady.

‑ Eu desisto dele.

‑ Bom! Vamos então dar com as cabeças umas contra as outras! Cliff olhou Ellen que, com os punhos cerrados, tinha‑se levantado num pulo.

‑ Eu sou o major Cliff Haller, membro da CIA americana. Agente especial em missão definida. ‑ Riu, com pouca vontade. ‑ Está clara a intenção agora, Miss Ellen?

‑ Não! ‑ Ellen Donhoven abanou a cabeça, furiosa. ‑ Estou‑me nas tintas para a sua CIA e o seu major!

‑ Mas não devia estar, em relação ao que foi construído apenas a dois dias de marcha de distância de nós, no meio da selva. Não pode de modo algum ser‑me indiferente, nem à minha terra! Temos de ter cem por cento de certeza. E eu digo‑vos claramente, gentlemen: quem se recusar desde já, por assim dizer, ao que eu quero, vou facilitar‑lhe a sensação de ter uma bala na cabeça! ‑ Cliff Haller bateu no seu bolso das calças. Todos sabiam que era ali que se encontrava a pistola. Ele podia‑a tirar mais rapidamente, do que os outros se lançarem a ele. Major da CIA, os serviços secretos americanos, de um homem daqueles, dizia‑se que poderia roubar um banquinho atrás do diabo, sem ele dar por isso.


O Dr. Forster foi o primeiro a conformar‑se com aquela nova situação. Colocou‑se entre Ellen e Cliff.

‑ E o que acontecerá depois? ‑ perguntou ele. ‑ O que acontecerá, quando você tiver descoberto o raio do seu segredo da floresta?

‑ Essa é uma pergunta delicada. ‑ Cliff coçou a cabeça. ‑ Você quando está junto de uma mulher, também pergunta sempre o que vem a seguir? ‑ Fez um sinal, quando Forster quis responder. ‑ Uma coisa posso‑lhe prometer: vou providenciar para que saiamos desta terra de lixo e que Miss Ellen leve com ela o seu maldito veneno. Para o regresso temos mais tempo do que para a ida. Temos de ter mais tempo, pois será atravessar a paisagem a torto e a direito.

‑ E se eu não entrar no jogo, Cliff? ‑ gritou Ellen.

‑ Seria pena, baby. Lá, para onde nós vamos, não se faz diferença entre homens ou mulheres, dispara‑se desde que levante a cabeça!

‑ E você já sabe isso tudo de antemão! ‑ disse o Dr. Forster, rangendo os dentes.

‑ Sim.

‑ E apesar disso levaria a Ellen para esse perigo.

‑ É o único caminho, doc. Sem mim e só com Cascal não teriam vindo até tão longe. Mas isso só mais tarde compreenderão. Quem é que porventura empurrou o Moco para o rio? Quem é que envenenou o Alexander Jesus e o Fernando Paz? Quem, porventura?

‑ Cascal? Você é doido, Cliff.

‑ E você é cego, doc ! Vamos, amigos, deitem‑se e durmam finalmente. De manhã cedo, segue‑se para a frente, e precisamos de todas as forças, e eu também.

 

Ao amanhecer do segundo dia, já tinham partido ao primeiro raio de sol e avançavam uns atrás dos outros através da selva fedendo mofo; Cliff e Ellen Donhoven pararam subitamente. à sua frente ouviam um ruído que era novo para eles. Soava como se uma chuva tropical continuamente sussurrasse sobre a floresta, longe deles... caudais de água, que batiam nas árvores. Cliff tirou o seu mapa de fotografias do bolso e apontou para o rio sem nome.

‑ Isto é uma queda de água ‑ disse ele. ‑ Não se vê nada na fotografia aérea, mas isto é, sem dúvida, uma queda de água.

‑ Deixou os outros recuperarem caminho e apontou, para longe, com o braço estendido.

‑ O que é isto? ‑ Campofolio levantou os olhos castanhos.

‑ Pode ser uma queda de água. Mas uma coisa imensa. Não está no mapa?

‑ Não.

‑ Este ruído à frente deve ser de uma catarata como a de Niagara. ‑ disse o Dr. Forster, maliciosamente. ‑ Enviaram‑no, maior, para inspeccionar a concorrência?

‑ Mais ou menos! ‑ Cliff deixou cair a sua carga e os outros seguiram‑no. O calor vibrava entre as árvores gigantescas, o chão pantanoso parecia fumegar. Cada inspiração era um esforço, parecia que quebrava os pulmões. O suor saía dos poros como de uma esponja comprimida. Um clima infernal. - Fim, por hoje! Levantemos o acampamento! Nada de fogueira, gente, nada de fumo. Campofolio, você tem o fogão a gás na bagagem. Quantas bilhas de gás ainda temos?

‑ Três bilhas das pequenas.


‑ Deve chegar. Nada de cozinhar inutilmente! Pode acontecer termos de ficar aqui uma semana. ‑ Uma inquietação crescente despertara em Cliff. Estava a comportar‑se como um aluno frente a um exame. "Vejam só", pensou Ellen, "ele, afinal, também tem nervos. Que diabo de queda de água é esta que estamos a ouvir?"

‑ Estamos, então, próximos do seu alvo, Mr. Major? ‑ perguntou ela, trocista.‑ E deveremos esperar, a seguir, o que o grande serviço secreto vai fazer de nós e dos outros.

‑ Mais ou menos, Ellen. ‑ Cliff tinha ficado muito sério, de repente. Mudara muito na última meia hora. ‑ Não a vou pôr em perigo. Vou fazer tudo para a deixar de fora desta operação. Eu... maldito seja... eu amo‑te, Ellen... e quero ir contigo de volta para o ar fresco e dar‑te a oportunidade de conheceres o outro Cliff. Agora só vês a porcaria... e eu tenho de ser assim, pois está muita coisa terrível em jogo.

Durante duas horas fizeram, com os machados, um acampamento fora das lianas e arbustos, espetaram ramos fortes no chão e entrançaram um tecto de folhas largas, plantas entrelaçadas e ramos flexíveis e finos. Debaixo desta cobertura de protecção amontoaram a bagagem e dispuseram os seus lugares de dormida. Cliff deu provas de ser um trabalhador rápido e hábil... terminou o seu tecto de protecção em tempo recorde e depois ajudou os outros nas suas construções.

‑ Aprendi na Flórida, num treino especial ‑ disse ele. ‑ Lá, nos pântanos, fomos simplesmente lançados dos aviões, e tínhamos que, sozinhos, em nove semanas, ir sobrevivendo... com um machado, uma arma, munições para cem tiros e uma faca. Correu estupendamente. Construímos cabanas de folhas, esculpimos chávenas e pratos, entrançámos esteiras... quando eles nos quiseram tirar de lá de novo, tiveram pena de nos arrancar de tão bela vida. Robinson Crusoe não vivia assim tão mal...

à noite, Cliff Haller aprontou‑se para a sua grande missão sozinho. Vestiu um uniforme às manchas verdes e amarelas que trazia na bagagem, com o qual, passados apenas alguns metros, não se diferenciava da selva; encheu dez carregadores de pistola e colocou‑os nos bolsos fundos, esfregou a cara com cinza, até ficar castanho‑acinzentada, afivelou um machado numa bolsa de couro à cintura e pôs uma espécie de rede grosseira e escura sobre o cabelo cortado à escovinha. Quando ficou pronto, parecia um insecto gigantesco, desconhecido que causava medo. Ellen Donhoven observava‑o com os olhos muito abertos. Aquele homem era para ela um enigma, e ela própria também se considerava como um enigma. O Dr. Forster, e ela tinha‑o visto naqueles últimos maus dias, era um bom amigo, digno de confiança, que estava sempre pronto a ajudar... mas com Cliff Haller, era mais, era a fascinação de uma personalidade invulgar, era, apesar de toda a crueldade, que havia nele, uma sensação de comichão... era a experiência do extraordinário, o coração de uma mulher conquistada irresistivelmente,, o incompreensível lado selvagem do ser humano.

‑ É como num mau filme ‑ disse o Dr. Forster, amargamente. ‑ O grande herói em fato de combate. Onde é que você tem o canhão portátil, Cliff? Onde é que está o seu helicóptero insuflável? E onde está a pistola de raios laser? James Bond tinha isso tudo no bolso!


‑ Eu só preciso dos meus olhos e de uma máquina fotográfica - disse Cliff. Carregou uma pequena máquina fotográfica do tamanho da palma da mão com um filme especial, pendurou‑a, com um fio de nylon ao pescoço, escondendo‑a no uniforme verde e amarelo. Campofolio girava à volta dele, como um gato à volta do rato na ratoeira. Palma estava deitado, cansado, debaixo do seu tecto de folhas, o seu pé ainda picava sempre e a articulação estava ainda inchada. Demoraria muito até o seu corpo digerir completamente o veneno.

‑ Pode acontecer que não nos vejamos mais? ‑ perguntou Campofolio, subitamente. Cliff hesitou e olhou de soslaio para o lado de Ellen.

‑ Sim... ‑ respondeu ele, então, alongando a palavra. E em voz baixa: ‑ Seu burro!

‑ Isso é verdade, Cliff? ‑ saltou Ellen.

‑ Tudo é possível. ‑ Haller examinou mais uma vez a sua pistola automática com o silenciador curto e pesado.

‑ O que vai ser de nós? ‑ continuou a perguntar Campofolio, inquieto. ‑ Se eu não vier dentro de três dias, vão ao encontro do ruído da queda de água. Lá, alguém os recolherá e os levará consigo, sem mim, vão ser tomados por inofensivos. ‑ Cliff voltou‑se, quando Ellen, subitamente, parou atrás dele e lhe tocou. Ele lançou‑lhe os braços em volta, puxou‑a para ele, beijou‑a e ela pendurou‑se indefesa no seu peito, fechando os olhos. Também subitamente, ele soltou‑a, girou e desapareceu entre os arbustos com apenas alguns saltos de tigre.

O Dr. Forster amparou Ellen, que ali estava como que anestesiada. A sua garganta estava seca, como um leito de rio no deserto.

‑ Você ainda o ama, Ellen... ‑ disse. ‑ O que é que se passa consigo?

‑ Não sei, Rudolf. Não sei ‑ correu para o seu tecto de folhas, deixou‑se cair na esteira, enterrou o rosto entre os braços e começou a chorar como uma criança.

 

Cliff Haller andava depressa através da floresta, abria caminho com o machado, sempre que era necessário, mas evitando fazer barulho. Só quando o rumor e o trovejar da queda de água desconhecida ficavam tão altos que em comparação desvaneciam todos os outros ruídos é que não tomava isso em consideração e erguia o seu machado através do enredado de lianas e espinhos. Ao amanhecer chegou a uma zona que tinha mais luz. Lá, a floresta tinha sido desbravada por mãos humanas. Por toda a parte erguiam‑se do chão cepos de árvore cortados a um metro da terra. Havia bastante madeira. Cliff tornou‑se mais cauteloso, confundindo‑se com a floresta, deslizou em frente, e certificou‑se de tudo em volta. O rugido da queda de água próxima abafava tudo; era, realmente, o único ruído que devorava todos os outros. Trezentos metros depois da floresta iluminada, Cliff parou subitamente em frente de uma rede alta. Parecia ser inofensiva, com malha espessa, segura por estacas de ferro.

"Dois metros e cinquenta de altura", calculou Cliff. E disse, em voz alta:

‑ Idiotas!   


A rede estava ligada à corrente de alta tensão. Alguns animais, que jaziam mortos na rede, carbonizados, confirmavam‑no. Ignorantes. Eles tinham corrido contra a rede e sido imediatamente estufados. Desde que a rede provocasse a morte, nada acontecia, só se alguém fizesse um buraco por ali adentro, com um alicate isolante e desligasse o circuito, é que o alarme tocaria em algum lado. Cliff aproximou‑se da rede electrificada e calculou, de novo, a altura.


"Devem‑nos achar umas crianças de mama", disse para si próprio. "Para que é que aprendemos ginástica aplicada?" Construiu um instrumento auxiliar eficaz e ao mesmo tempo muito simples, com o qual podia vencer a rede de alta tensão: uma catapulta. Nas proximidades da rede, dobrou um tronco de árvore fino com lianas fortes para a terra, até a madeira começar a ranger. Depois acocorou‑se na ponta do ramo, segurou‑se firmemente, cortou a liana com o machado. Cliff foi projectado bem alto no ar, por cima da rede, e rolou depois, no outro lado, sobre o chão mole. Ficou com algumas contusões, na coxa e no ombro esquerdo, mas não partiu nada; esticou‑se a repousar, mexendo todas as articulações. Depois levantou‑se e percorreu os metros seguintes a coxear, até estar habituado à dor na coxa. No ombro nem dava por ela. Correu dois mil metros na floresta iluminada, nos últimos metros já se arrastava e então, abriu‑se perante ele um mundo maravilhoso, que até a ele Cliff Haller, o deixou sem palavras. à sua frente estava um vale profundo, no qual se precipitavam os lados opostos do rio desconhecido. Era uma catarata, do dobro da altura da do Niagara, mas não tão larga, no máximo cinquenta metros... mas a água, que retumbante e com espuma ali trovejava, a névoa de espuma, que borbulhava no fundo do vale, e por entre a qual o sol rompia em cores espectrais, o florescente arco‑íris, magnífico e eterno, que se estendia de margem a margem e um inferno vencido por água espumante, aquela força da natureza, que branca e espumosa ali irrompia entre as árvores gigantescas e se precipitava nas profundezas, vociferando, onde tudo parecia fervilhar, como se um vulcão vomitasse leite por fora... era uma visão, que tocou o próprio Cliff` Haller no coração. Inspirando profundamente, deitou‑se, entre a erva alta e um arbusto molhado de espuma, na terra rochosa e deixou‑se borrifar pelo vale infernal. Sentiu como o sangue martelava nas suas têmporas e galopava quente através das suas veias. Mas não era esta catarata, esta queda magnífica, como Cliff nunca tinha visto, que o interessava, mas sim aquilo que tinha sido construído em volta desta maravilha da Natureza. Na suave encosta esquerda estavam colados os edifícios compridos de uma central eléctrica. As salas das turbinas, os transformadores, os edifícios de habitação, tudo estava coberto por redes gigantescas, com ramos espetados. Redes onde balouçavam autênticas árvores ou prados artificiais. Por cima da encosta, na selva desbravada, Cliff viu uma pista de descolagem, três grandes bangares, onde estavam pesados maciços aparelhos de transporte, os aviões cujos motores ouvira o barulho todas as noites. No ar estavam quatro helicópteros que giravam à volta de toda a região... vespas de olhos claros, às quais não escapava nada que de estranho houvesse naquela região. Cliff Haller, no seu uniforme camuflado, continuou a rastejar para a esquerda, como um escaravelho verde na erva, inseguro com as libelinhas gigantescas que zumbiam sobre o vale. O planalto era maior do que Cliff tinha calculado, baseando‑se nas indistintas fotografias aéreas. Saía da floresta e depois transformava‑se novamente nela, através de redes de camuflagem. Debaixo daquelas redes, contudo, montados em bases largas de betão, erguidos para o céu em ângulo recto na direcção da América do Norte... compridos objectos, delgados e brancos com cabeças vermelhas pontiagudas, rodeados de apoios e plataformas de ferro trabalhado... estavam os mísseis. Mísseis intercontinentais, para os quais não existe distância, que sobrevoam mar e terra, delgadas lanças da morte, que depois de lançados nada mais deixam do que morte e horror. Dali, do lugar secreto no meio da selva da nascente dos rios Juma e Itanhaua, era possível atingir Miami, Nova Iorque ou São Francisco, Nova Orlães ou Washington, Detroit ou Chicago, Dallas ou Filadélfia.


Não havia distâncias, tão fantástico já tudo aquilo soava... quem premisse ali um botão vermelho, deixava os mísseis trovejarem no céu, indo cada um deles ao encontro de determinado ponto calculado no continente norte‑americano. Ali, na selva inexplorada, a morte aniquiladora estava à espreita, tinha‑se estabelecido a ameaça mortal. O que os soviéticos não tinham conseguido em Cuba, uma base de mísseis contra os Estados Unidos, tinha resultado ali com toda a tranquilidade e segredo, numa realidade. Uma realidade assassina. Cliff limpou o rosto algumas vezes, mas não apagava mais do que salpicos de água, o quadro mantinha‑se: A central eléctrica, a pista de descolagem com os aviões, as rampas de lançamento dos mísseis, as casernas baixas para o pessoal, o hospital militar no qual se desfraldava uma bandeira com a cruz vermelha, uma comprida torre emissora, que mal se podia distinguir das árvores altas, os amplos radares, que giravam preguiçosamente em círculos, ouvidos e olhos que tudo ouviam e viam... Cliff sentiu nascer em si uma perigosa frieza. Rolou de costas, virou o rosto escurecido para o helicóptero, que lateralmente sobrevoava a fronteira do campo vedado, e compreendeu que só podia levar a cabo uma parte da sua missão, que era investigar a totalidade da zona secreta no meio da selva. O que ele ali tinha descoberto não deixava mais dúvidas. Não eram necessárias mais ordens de Washington, não havia mais perguntas, mais conferências. Era como o general Cushing tinha dito quando da despedida: "Maior, há‑de chegar talvez a situações que dependerão unicamente da sua decisão. Tome‑as acertadamente. Tem a minha bênção... só que... eu não sei de todas elas. Está entendido?" Tudo estava totalmente entendido, principalmente naquele momento em que Cliff tinha os mísseis perto de si. Ficara tão frio porque o que deveria fazer nos próximos dias talvez fosse a maior aventura que um homem sozinho alguma vez tinha levado a cabo. Assim que o helicóptero virou, Cliff endireitou‑se e tirou algumas fotografias da catarata, do vale, da encosta e do diversificado conjunto de edifícios, com a sua máquina fotográfica especial. Depois enroscou a teleobjectiva e fotografou os mísseis, as casernas e a rampa de lançamento com os aviões. Só isso teria sido suficiente para ter cumprido a sua missão! O resto era com Washington e com um comando especial, cuja rápida ofensiva era agora necessária. E era isso que incomodava Cliff. "Rápida ofensiva." Na sua situação, eram umas palavras imbecis. Perante ele, estava a marcha de regresso através da selva, o chegar ao contacto em Manaus, o envio das fotografias para Washington através da bagagem diplomática a partir do Rio... quanto tempo se perdia nisso! Dois, três meses talvez.. . e depois o tempo até o comando especial entrar em acção, silencioso, ultrapassadas todas as complicações diplomáticas... Por outro lado, aqui estava ele, infiltrado no corpo do inimigo como um parasita, e só a ele era possível avançar rapidamente até ao seu coração e matá‑lo. Os seus pensamentos corriam a galope.

"Tome as suas decisões, major... Os mísseis, as cabeças exterminadoras vermelhas dirigidas para a pátria..." Cliff Haller meteu novamente a máquina fotográfica no seu uniforme, puxou melhor a rede escura sobre o seu cabelo e esperou. O céu estava a ficar vermelho, antes do crepúsculo cair, dourada, a água despenhava‑se na bacia dos rochedos. Depois o céu ficou descorado, riscado e cinzento‑esverdeado. Sombras baixaram sobre o vale, a artificial cidade da morte afundou‑se completamente debaixo das redes, nem uma luz brilhava, eles viviam nos quartos por trás de gelosias cerradas. Apenas se viam os limites da pista de descolagem... ali, pequenos pontos vermelhos piscavam, assinalando a sua largura e comprimento. Cliff arrastou‑se para a margem da encosta e começou, protegido pelas longas sombras, a descida para a rampa dos mísseis. Elas puxavam‑no irresistivelmente... eram ímanes gigantescos, que nunca mais o deixariam livre. A decisão solitária de Cliff tinha sido tomada.

 

Ao fim de uma meia hora, chegou a um círculo interior escondido debaixo das redes de camuflagem da cidade baixa e escura. O sussurro da catarata cobria tudo, tão poderoso na sua eterna queda trovejante, que Cliff Haller se interrogou como é que as pessoas podiam suportar viver ali durante meses sem lhes estalar a cabeça. De dia devia ser tolerável, então, toda a grandiosa natureza deste inferno verde entrava no jogo, as árvores gigantescas, o rio, o vale permanentemente cintilante de espuma, o eterno arco‑íris, o céu ardente... mas de noite, quando não há mais nada para além de escuridão e além disso este trovejar da massa de água infernal, então a vida só se aguentaria com tampões de algodão nos ouvidos. De resto, ali parecia viver‑se muito despreocupadamente. A total impossibilidade de chegar a esta cidade fantasma, que encerrava em si a morte múltipla, por caminhos normais, isto é, por terra, fazia com que não tivessem sido colocadas sentinelas. Não havia postos nas rampas dos mísseis, as casernas estavam como se fossem autênticas barracas abandonadas, apenas havia actividade na pista de descolagem, onde, precisamente, dois dos aviões de transporte estavam a descolar, guiados pelo fino feixe de luz de um projector que rapidamente se extinguiu assim que os aviões levantaram voo. Cliff admirava a arte de voar destes pilotos. A pista de descolagem era curta, os motores deviam correr na máxima rotação, os aviões lançavam‑se sobre a pista e iam a toda a velocidade, tal como uma descida de pára‑quedas, quando ultrapassavam os limites e pairavam depois subitamente sobre o vale profundo. Era uma descolagem semelhante à dos porta‑aviões, e os aviões tinham de subir imediatamente a pique. Isto era possível com os aviões a jacto, que para tal tinham sido construídos... mas aqui tratava‑se de pesados e maciços aviões de transporte, que disparavam sobre o abismo com os motores rugindo, para depois, de uma maneira arriscada, trovejarem no céu nocturno. Ainda mais difícil devia ser a aterragem dos aviões muito carregados... pairavam totalmente sobre o vale, faziam um círculo à volta da catarata, perdendo ali a altitude, e voavam tão baixo junto à pista que quase pousavam espontaneamente na margem da garganta, para depois tomarem a trajectória da aterragem. Cliff sentiu uma grande consideração por estes rapazes dentro das cabinas de pilotagem. Esperou deitado por baixo de um rochedo, até os dois aviões estarem no ar e de lá zumbirem invisivelmente. As luzes de presença das asas nem uma vez reluziram, aqui não havia rota aérea, nem sentido contrário, nem o perigo de colisão. Aqui, o céu pertencia apenas à cidade completamente secreta e mortal da selva. Cliff continuou a subir. Admirado, viu que não estava tudo às escuras, como tinha verificado na encosta oposta. As camuflagens eram perfeitas. Debaixo das redes espessas, tecidas com tectos de folhas, brilhavam lâmpadas fracas nas paredes das casas e lanternas de patíbulo ligeiramente curvas. Num edifício a grande distância soava música alta... devia ser a cantina... alguns vultos em uniformes verdes, estavam parados à porta a conversar. Pela sombra densa das casas, oficinas e redes de camuflagem, Haller deambulou através da cidade. Na pista os helicópteros aterravam e descolavam. Sobrevoavam a região e apenas deixavam os seus projectores de solo brilhar por pouco tempo onde suspeitavam que havia um ponto vulnerável na vedação, Senão, confiavam tudo à rede electrificada e ao seu sistema de alarme, que denunciava, de imediato, a mais ínfima lesão no fio eléctrico. Cliff riu abertamente.

‑ Eu já aqui estou ‑ murmurou ele, malicioso. ‑ Já estou a estender‑me atrás de vocês. Só que ainda não sei como é que vou sair daqui. - Continuou a esgueirar‑se, rodeou a cantina iluminada e foi‑se encostando com a barriga ao longo das paredes até às oficinas, Empurrou um dos portões amplamente, de modo a que pudesse deslizar lá para dentro, e de repente deparou com um jovem soldado à sua frente, que à luz de um candeeiro de secretária reparava o seu transistor pessoal. O aparecimento de uma criatura salpicada de amarelo‑esverdeado com o rosto escuro e uma rede escura na cabeça deixou o rapaz sem fala e como que paralisado. Fitava Cliff com os olhos muito abertos.

‑ "Sorry, boy!" ‑ disse Cliff delicadamente. Depois, bateu‑lhe com aborda da mão, fazendo o rapaz rolar da cadeira silenciosamente e ficar estendido no chão. ‑ Sonha com a mamã!


Cliff procurou através da oficina até encontrar o que lhe faltava: um alicate isolante de cortar arame, como os que precisam os electricistas quando têm de trabalhar com a corrente eléctrica. Pôs o alicate isolante num pequeno saco, pendurou‑o à sua cintura e deixou de novo, rapidamente, a oficina. Lá fora ocorreu‑lhe que era descuidado deixar o rapaz ali deitado... voltou para trás, atingiu‑o novamente no queixo, atou‑o e amordaçou‑o com um cabo e um trapo enrolado e deslizou, então satisfeito, para fora, para a noite. Todo o complexo das rampas dos mísseis estava vigiado por dois sentinelas, mas que em vez de patrulharem os roquetes, estavam sentados nas casinhas de vigilância, lendo livros. Descuido por toda a parte... a selva, sem dúvida, era a melhor protecção. Cliff Haller observou os dois soldados durante muito tempo. Ficou junto à parede da vigia e esperou ali, que eles, pelo menos de hora a hora fizessem uma ronda. Mas não aconteceu nada. Ambos estavam deitados nas camas de campanha, liam, bebiam chá fresco e ouviam sambas a partir do distante Rio de Janeiro.

‑ Bem, então vamos lá! ‑ disse Cliff, baixo. ‑ Uma picadela de abelha na língua também pode ser mortal.

 

O comandante da "Base I", general Aguria, e José Cascal estavam sentados frente a frente na sala central de comando. Bebiam uma cerveja alemã fresca e ao mesmo tempo fumavam finos charutos escuros. Em cima da mesa estava um grande mapa da região da "Base I". Todas as medidas de segurança, todos os postos, todas as barreiras, cada pormenor abalizado de defesa estava ali registado. Segundo este mapa, nem um verme podia uma única vez arrastar‑se através da zona vedada sem ser visto por algum controlo.

‑ Admira‑me que o Cliff Haller não tenha vindo já há muito tempo ‑ sibilou Cascal, duvidoso, fumando o seu forte charuto apressadamente. ‑ A última informação dos índios veio há três dias... desde aí, o grupo desapareceu sem deixar rasto.

‑ Talvez ele tenha desistido? ‑ Aguria era um homem impressionante, com sobrancelhas espessas. Amava a vida, e encarava que tivessem feito dele o comandante da coisa mais secreta do mundo não com uma grande honra, mas como um castigo de Deus.

‑ Cliff, desistir? Nunca ‑ disse Cascal firmemente. ‑ Talvez ele erre em volta do nosso sistema de segurança e não saiba nenhum caminho? Desde há quatro dias que fortes patrulhas não deixam passar nada por toda a rede. A voltagem dos fios eléctricos foi aumentada em cinquenta por cento. Até queima quem olhar penetrantemente para ela. Ali já não há entrada.

O general Aguria bebeu um grande trago de cerveja.

‑ Você pensa, Cascal, que este Haller não está sozinho, mas sim que arrastou com ele toda a expedição. No fundo, porquê?

‑ Apaixonou‑se pela médica alemã.

‑ Sendo um espião? Então já está morto! ‑ Aguria riu. ‑ Consideremos que aconteceu alguma coisa à mulherzinha. Um pé torcido, uma mordidela de serpente, escorpião ou aranha ou uma simples febre estúpida. O que teria feito Cliff Haller?

‑ Continuaria em frente.

‑ E deixava‑a sozinha? Parece que ele ama a rapariga.

‑ Sozinha, não. ‑ Cascal olhou para o fumo do charuto. ‑ Teria deixado os outros membros da expedição trazê‑la. Este tipo não conhece qualquer obstáculo! Não... deve ter acontecido outra coisa.

‑ índios?

‑ Isso também saberíamos. Eles rufam no tambor os seus triunfos Por toda a região. Mas também está tudo sossegado do lado deles. Isso é o que me aflige. Este silêncio à volta de Cliff Haller não é natural. ‑ Inquieto, Cascal dirigiu‑se à janela e olhou a noite lá fora. ‑ Você não tem nenhuma abertura no vosso sistema de segurança?


‑ Nenhuma. Veja você mesmo. ‑ O general Aguria passou a mão sobre o mapa. ‑ Nem sequer o Cabo Kennedy é tão Seguro! Nós vimos e ouvimos tudo. Anteontem, um objecto aéreo intruso sobrevoou a base a quinze mil metros de altitude. O nosso radar apanhou‑o na imagem imediatamente. Era seguramente um distante avião de reconhecimento americano, mas a esta altitude não se vê nada. Deixámo‑lo avançar e enquanto ele pairava sobre a floresta, jogámos ao homem morto. Isto é o mais seguro.

‑ Mas os americanos têm uma suspeita... isso é suficiente.

‑ Eles suspeitam sempre, faz parte da sua tarefa. ‑ Aguria bebeu novamente um gole de cerveja. ‑ No mundo, qualquer um engana o outro!

‑ E se Cliff consegue infiltrar‑se?

‑ Impossível, Cascal!

‑ Ele só precisa de algumas fotografias. O que vem a seguir, você já sabe com certeza. A "Base I" será uma operação do comando "Top Secret" dos americanos. Em qualquer altura voamos pelos ares...

‑ Espere aí, José.‑ O general Aguria abanou a cabeça. ‑ Eu tenho aqui reunidos os melhores homens do exército. Todos especialistas. "Os comandos brasileiros." E à nossa volta estão quilómetros de selva. Onde é que no mundo se poderia estar mais seguro do que aqui?

‑ Perante um exército? Em lado nenhum. Mas um homem isolado pode ser mais prejudicial do que um exército inteiro, E este homem vigia‑nos como um jaguar.

‑ Então, isto é uma falha sua, Cascal!

‑ Minha? Como assim?

‑ Por que é que simplesmente não fuzilou Cliff Haller? Teve oportunidades de o fazer.

‑ Isso é verdade. ‑ Cascal pensou em Rita. "Eu não a teria conquistado", pensou ele, "se naquela altura tivesse fuzilado Cliff. E quando ela o quis fazer, era demasiado tarde para isso. Quando Deus criou as mulheres, deve ter feito um pacto com o Diabo!" O general Aguria enrolou o mapa e fechou‑o novamente no cofre forte blindado. Deixou a porta bater, houve um som... e ao mesmo tempo, lá fora, uma explosão abalou toda a cidade secreta, o solo abanou, Cascal e Aguria cambalearam para a parede, o clarão vermelho ardente das chamas iluminou fantasmagoricamente o vale. As sirenes dos alarmes soaram estridentes de todos os lados... todos os projectores brilharam apontando para o "Plano II", submergindo toda a zona numa clara luz do dia.

‑ Cliff Haller! ‑ disse Cascal, respirando pesadamente. ‑ Ele está entre nós!

‑ Mas não sairá mais daqui para fora! ‑ gritou Aguria histericamente. ‑ E não pode fazer ir pelos ares mais do que este míssil!

‑ Ele também não quer mais! ‑ Cascal correu para fora da central de comando, junto de Aguria. ‑ Ele unicamente entregou o seu cartão de visita. Os colegas dele encarregam‑se dos outros...

Lá fora estava o inferno à solta. O lançador do míssil número três estava desfeito, o suporte de aço e as rampas estavam bizarramente torcidas e despedaçadas. Os destroços do míssil dinamitado estavam espalhados num raio de cem metros, tinham destruído as redes de camuflagem, tinham‑se cravado nos tectos, tinham fendido as paredes da cantina em quatro metros de largura. Duas ambulâncias saíram do hospital para o local do acidente com as sirenes apitando. Os helicópteros zumbiam sobre o vale como um enxame. As tropas saíram a correr das casernas para os locais indicados pelos alarmes.


O vale foi cerrado hermeticamente. Viaturas contra incêndio esguichavam jactos compactos de neve carbónica sobre os destroços do míssil em chamas. O calor era tão intenso que ninguém podia arriscar a aproximar‑se. Outras viaturas cobriam de imediato os mísseis intactos com uma capa fresca, para não deixarem explodir os projécteis carregados, derivado ao intenso calor que se fazia sentir. O general Aguria e Cascal estavam nas proximidades do local da explosão, recebendo as informações contraditórias que vinham de todos os lados.

‑ Catorze feridos, dois mortos! ‑ disse Aguria. ‑ José, se eu apanho esse Cliff vou tratá‑lo como os índios do Juma tratam os missionários. Vou deixá‑lo morrer aos poucos! E espero apanhá‑lo a ele, Cascal, para depois cumprir o juramento! A única saída que lhe resta para a liberdade é a catarata, e nem sequer um pedaço de madeira lhe sobrevive... vai‑se esmagar nos rochedos.

Todo ele estremeceu e atirou os braços para a frente.

‑ Além! Ouça! Tiros! Apanharam‑no! Apanharam‑no! Se já o vimos, então não nos escapa!

Um jipe aproximou‑se, Aguria e Cascal saltaram para dentro dele e correram a toda a pressa ao encontro do sítio dos tiros.

 

Cliff tinha‑se Posto em segurança, depois de ter atirado a pequena e única carga de explosivo que levara com ele para debaixo do mecanismo do míssil e de se ter colado a um dos tubos a jacto, com um íman. Depois tinha colocado o minúsculo relógio, programado Para dez minutos, era o período máximo, que era possível neste tipo de construção, e tinha‑se feito ao caminho de regresso para a rede electrificada. Tinha aproveitado a retirada para tirar mais algumas fotografias. Tinha fotografado os mísseis de perto, as casernas e a central de comando, os radares e o posto de transmissão e tinha chegado ao último edifício, eram as oficinas, quando a carga explosiva rebentou com um estrondo enorme e o míssil se despedaçou numa coluna de fogo. A pressão da onda explosiva atirara Cliff ao chão. Tinha rolado alguns metros para a frente, depois saltara e correra sobre o planalto ao encontro dos rochedos salvadores, onde atrás dos troncos das árvores e dos arbustos, apesar de toda aquela área desbravada, encontraria novamente esconderijo suficiente na selva. Corria com os pulmões doridos, o suor saía‑lhe por todos os poros, atrás dele as labaredas ardiam e as sirenes dos alarmes gritavam. Nesse momento, os projectores varriam todos os cantos. Estavam montados em árvores altas, em suportes giratórios que, telecomandados, cobriam agora toda a zona. Cliff deu ainda um salto para trás de um arbusto e então ficou ali deitado, quieto, estendido bem rente ao chão. Por cima dele, a um meio metro de altura, pairava um dos feixes de luz brilhantes. "Ainda mais quatrocentos metros até à rede", calculou Haller. Quatrocentos metros... não se podiam fazer. Não agora, nesta caldeira de militares a correr, de projectores que procuram, de helicópteros que cobrem tudo em volta e no bloqueio da cidade anónima por todos os lados. à sua esquerda ouviu tiros... Eram os tiros que tinham provocado o grito de triunfo do general Aguria. Mas era apenas um atirador de pistola automática precipitado, que tinha visto algo a fugir e tinha disparado de imediato. Embaraçado, estava então ao pé da sua presa, quando Aguria ali chegou a toda a pressa no seu jipe. Era o enorme cão‑pastor do tenente Rodrigues. Aguria ficou furioso e gritou, voltou a saltar para o seu jipe e correu a toda a pressa de volta para o local dos mísseis.

‑ Ele não vai sair! ‑ gritou ao ouvido de Cascal. ‑ A base é tão fechada como uma caldeira!

Isso também notou Cliff, quando continuou a rastejar, metro a metro, aproveitando o seu terreno escarpado. O seu fato amarelo esverdeado permitia‑lhe confundir‑se totalmente com a Natureza, não era reconhecido a partir dos helicópteros. Em compensação, não havia um sítio na rede que não estivesse iluminado. Os projectores cruzavam‑se. Os jipes com soldados pesadamente armados corriam de lá para cá sobre o solo firmemente calcorreado.

É verdade que um míssil tinha sido destruído, mas podia ser substituído. Mais importante que todas as destruições era Cliff Haller, o homem. Ele tinha, seguramente, tirado fotografias da explosão, conhecia, agora, a "Base I", tinha escapado à cilada, as suas fotografias chegariam aos serviços secretos americanos; o trabalho de anos e no valor de milhões seria em vão. O grande segredo da América do Sul não valeria mais um tostão...

Cliff estava deitado, confundido com o solo, à distância de três metros da rede, à espera. A agitação era enorme, quase parecia pânico. Só consolava ver, à luz dos projectores, o rio e a catarata, esta massa de água na bacia dos rochedos... uma imagem magnífica. Uma cortina colossal de gotas cintilantes pendia sobre o vale. Cliff esteve deitado praticamente imóvel, no solo, durante uma hora. Grupos de soldados passavam a cidade a pente fino, cada canto, cada metro de terra, cada rochedo. à sua frente, as patrulhas de jipes ainda rolavam ao longo da rede. Depois deviam ter recebido nova ordem através da rádio. Separaram‑se, indo um grande pelotão de volta para a cidade e o outro, o que permanecia, assumia agora uma maior zona de controlo. O general Aguria tinha tomado esta decisão... pensava que conhecia os planos de Cliff.

‑ Ele nunca iria para a rede ‑ disse para Cascal. ‑ Não há um metro às escuras, os jipes, os helicópteros... seria suicídio. Não, ele está escondido no interior da base!

‑ E como é que ele entrou? ‑ perguntou Cascal.

‑ Vamos agora mesmo justamente averiguar isso. A rede é indestrutível. Mas ele deve ter achado uma abertura em qualquer sítio. Ou será que tem algum helicóptero em miniatura desmontável com ele?

‑ Não! ‑ disse Cascal zangado. ‑ Mas, apesar de tudo, está aqui; e Isso é assustador, general!


Cliff Haller esperou até que os dois jipes se encontrassem à sua frente e depois fossem para a direita e para a esquerda. Estes escassos minutos até eles voltarem eram os únicos que lhe davam alguma hipótese real. Contou até três, inspirou o ar bem fundo e nestes segundos pensou estupidamente na sua mãe, que mal tinha conhecido, pois tinha morrido quando ele tinha dez anos de idade, e de quem ele sempre tinha sentido a falta. Depois saltou, estendendo‑se de cabeça para a frente, rolou no solo, travou em frente à rede com o calcanhar, puxou do alicate isolante, colocou‑o, cortou os dois últimos fios eléctricos e esgueirou‑se através do buraco como uma serpente. Na central de vigilância, as campainhas de alarme tocaram. A rede foi danificada! Secção VIII. Os jipes de controlo viraram com a rapidez de um raio e correram a toda a pressa para trás. Encontraram o buraco de imediato, mas Cliff Haller já havia muito que tinha desaparecido no muro impenetrável e flutuante da selva.

‑ Através da rede! ‑ gritou Cascal, assim que a notícia chegou a Aguria. ‑ Debaixo do olho dos soldados! Debaixo das luzes dos projectores! O seu sistema de defesa é uma merda, general!

‑ Mas agora já temos a direcção! Quarenta homens vão dar‑lhe caça já! ‑ A voz de Aguria soava esganiçada. A sua cabeça estava muito vermelha, como se fosse rebentar por igual.

‑ Você pode assobiar aos seus quarenta recém‑nascidos para virem para trás! Até onde quer seguir o Cliff? Até Manaus? Até ao Rio? General, este Haller é um indivíduo que, se for preciso, se esconde no olho do cu do Diabo! Agora só há uma coisa a fazer... uma caçada como a uma caça rara! ‑ Cascal enfiou as mãos nos bolsos.

‑ Uma caçada com astúcia, engodo e instinto! Deixe‑me a mim e à Rita, amanhã cedo, na bifurcação da nascente do rio Juma.

‑ Você... você sozinho, José?

‑ Um regimento não o vai encontrar... mas um homem sozinho, talvez. Eu acho que conheço o caminho de regresso dele. Ele tem de ir a Manaus para se livrar das fotografias. E vai tomar o mesmo caminho que eu no lugar dele também tomaria. Com ele, os seus soldados ficam desamparados, mas duas panteras que se farejam encontram‑se de certeza. E mais ainda: não se esqueça dos índios no Juma! Cliff tem de atravessar a região deles! E tem a expedição toda com ele...

‑ Diabo! Você acha que ele vai voltar para a rapariga alemã!

‑ Exactamente. Um americano que está doido por uma rapariga comporta‑se realmente como um doido.

 

Cliff Haller pendurou‑se na copa larga de uma árvore, apoiou‑se em ramos da grossura de braços, um esconderijo à maneira dos índios, quando, na "Base I", todas as luzes se apagaram, novamente, como com um só golpe. Apenas à volta das rampas dos mísseis e na rede cortada brilhavam algumas lâmpadas, de luz pouco visível.

Cliff Haller sentou‑se lá em cima num ramo grosso, e encostou‑se ao tronco liso. "A mim não", pensou, trocista. "Este truque é antiquíssimo. Tão depressa não desistem da busca. Agora tenho tempo, Senhores, muito tempo. E a bagagem não pesa mais do que alguns gramas... o filme da "Base I". Em Washington vão ficar com os olhos do tamanho de rodas de moinho."

 

Ellen Donhoven, o Dr. Forster, Campofolio e o totalmente esgotado Rafael Palma estiveram sentados à espera, durante todo o dia, até ao começo da noite, debaixo das suas coberturas de folhas. Com a saída de Cliff tinha nascido um vazio; sentiam‑se como que deitados fora, abandonados como cachorros enjeitados. Todos se tinham habituado demasiado a que Cliff pensasse por eles, agisse por eles, fosse à frente deles, e precisarem de o seguir dava‑lhes a impressão que lá, onde ele estava, havia segurança, se é que se pode falar, de algum modo, em segurança neste inferno verde.


‑ Um cigarro? ‑ perguntou Forster estendendo um maço a Ellen.

‑ Sim. Obrigada. - Fumaram algum tempo em silêncio, depois Ellen virou a cabeça para ele.

‑ Rudolf. Tem de me ajudar.

‑ Com prazer. Mas como e em quê?

‑ Imediatamente! Quero fazer uma loucura.

‑ E quer saber se eu a posso seguir?

‑ Tem de o fazer, Rudolf, se me ama realmente, como você diz.

‑ Deu a volta e pousou os braços no pescoço dele. ‑ Eu quero fugir... fugir do Cliff.. de mim, de todos, do que acontecer, se o Cliff voltar... Não quero vê‑lo mais! Ele é como uma onda que me atira ao chão... e é dela que eu quero fugir! Tenho esse direito. E você tem de me ajudar nisso, Rudolf...

‑ Fugir! Fugir do Cliff. O que é que você propõe?  

‑ Vamos partir já!     

Saltou alto, esticou‑se, e era, de novo a decidida Ellen Donhoven, que tinha organizado a expedição aos índios de Juma, em Manaus.

‑ Numa hora podemos estar prontos para andar. Vamos voltar para o rio Tefé. O caminho antigo.

‑ Cliff vai‑nos alcançar.

‑ Ele nunca nos irá seguir. O objectivo dele está em frente. Tem uma missão a cumprir que é mais importante do que eu.

‑ Não subestime o Cliff, Ellen!

‑ Eu sei o que estou a fazer. Vamos partir! ‑ Ellen Donhoven olhou o Dr. Forster longamente. Depois sorriu um pouco preocupada.

‑ Não era isto também o que você queria, Rudolf

‑ Sim.

‑ Quando estivermos em segurança em Manaus, eu prometo‑lhe ir consigo para o Rio e voar de volta para Estugarda. Dou‑lhe a minha palavra.

Ela foi ao encontro da mão dele, e ele apertou‑a, hesitante.

‑ Como você deve amar o Cliff... ‑ disse ele em voz baixa.

‑ Nunca mais o devo voltar a ver.

‑ Então seria uma catástrofe, não é?

‑ Sim... seria o meu próprio fim do mundo.

Uma hora mais tarde, a pequena caravana seguiu, através da noite, até ao rio Tefé. O Dr. Forster ia à frente, seguido de Ellen e de Palma, coxeando. Campofolio fazia o fecho com a arma de fogo deixada ficar por Cliff. Aproximadamente ao fim de quatro horas de marcha, pararam subitamente. Atrás deles soou como que uma explosão, depois o céu ficou cinzento, quando repentinamente se acenderam inúmeras luzes. Só se podia ver um clarão pálido daqueles quando uma grande cidade ficava encoberta pela noite. Depois de um curto e tolhido silêncio, seguiram‑se os estrondos de diversos motores aéreos. O Dr. Forster olhou Campofolio fixamente.

‑ Isto é monstruoso ‑ disse ele rouco. ‑ Soa como se aqui no meio da selva inexplorada houvesse um aeroporto. Donde é que vêm estes aviões assim de repente? E os clarões de luz no céu? Que explosão foi aquela?

‑ Parece que Cliff encontrou o seu alvo ‑ disse Campofolio. ‑ O major Cliff Haller, da CIA! Será que sabíamos o que arrastámos connosco durante semanas? Vivemos em cima de uma bomba e não o sabíamos.

‑ Mas o que é que há lá atrás, na floresta? Que segredo é que ele persegue?


‑ Em frente! ‑ A voz de Ellen soava esganiçada. O coração dela palpitava até ao pescoço, o sangue vibrava‑lhe nas têmporas. ‑ Isto é coisa do Haller! O que é que nós temos com isso? Só queremos uma coisa: sair deste inferno! Virou‑se e seguiu em frente. "Cliff", pensava ela. "O que aconteceu? Estás em segurança? Correu tudo bem? Cliff, rezo por ti. Mas nunca mais quero tornar a ver‑te! Acredita‑me, no fundo, nós seguimos juntos."

O Dr. Forster ficou para trás sozinho, enquanto os outros seguiram Ellen. Ouviu tiros e viu muitos relâmpagos iguais, o reluzir dos projectores dos helicópteros, à procura. "O que estará lá atrás?", perguntou a si próprio novamente. "O que é que Cliff Haller encontrou na selva? O que significa a mancha branca da fotografia aérea?"

O céu ao longe ficou encarniçado. "Além, algo está a arder", constatou o Dr. Forster. "E está relacionado com o Haller, com certeza. O que será?     

Cliff estava em acção, e acção significava perigo, também para eles todos. Correu para a frente, para Ellen, e pousou os braços no ombro dela. Toda ela estremeceu ligeiramente... os seus pensamentos estavam com Cliff.

‑ Ele fez qualquer coisa ir pelos ares ‑ disse ele. ‑ O céu está cheio de clarões de fogo.

‑ Não temos nada a ver com isso! ‑ O rosto dela estava como que entorpecido. ‑ Quero voltar... quero voltar consigo, Rudolf, para a Alemanha.

 

Cliff Haller ficou no seu esconderijo da árvore, até a manhã se arrastar sobre a copa. Os helicópteros circulavam de novo, sobre toda a região, mas era um desperdício de gasolina, pois quando Cliff desceu do tronco e ficou em pé no solo da floresta, era mais fácil encontrar um botão num celeiro cheio de palha, do que a ele. Ao mesmo tempo, Cascal e Rita voaram também sobre ele em direcção ao rio Juma e pousaram na confluência das duas nascentes dos rios. Lá instalaram um acampamento e esperaram pelas notícias dos tambores dos índios. O general Aguria tinha enviado índios amigos, que faziam trocas com os soldados, em todas as direcções, para darem o alarme à sua gente e às suas tribos. Se chegassem a ver Cliff Haller... os índios deixá‑lo‑iam em paz, mas os seus tambores denunciariam o caminho dele a Cascal.

 

De coração alegre, Cliff corria de volta para o acampamento. Tinha atingido o seu objectivo, tinha o filme com fotografias únicas, tinha feito ir pelos ares um míssil como aviso... dali a três meses, talvez ninguém perturbasse mais a selva; o pedaço de terra que tinha sido desvirtuado iria renascer e ser redescoberto. Pois apenas restava uma alternativa: ou o próprio governo, devido a um protesto interno dos EUA, destruía a base dos mísseis de forma discreta, tal como ela tinha sido construída, ou um comando especial da CIA limpava brutalmente esta enorme ameaça... Igualmente de forma despercebida do resto do mundo, pois o mundo nunca deveria descobrir o que tinha nascido e sido exterminado ali, na selva a sul do Amazonas. Depois de três horas de corrida rápida, Cliff chegou ao lugar onde estivera o acampamento. Mesmo de longe, já ele gritava:


‑ Sou eu, crianças! Abracem‑me! Que raio de noite! - Mas ninguém lhe respondeu, à sua volta reinava um perfeito silêncio. Parou, baixou‑se atrás de uma árvore e tirou a sua pistola do bolso. Ainda trazia o fato de combate, o rosto escurecido e a rede sobre o cabelo.

‑ Ellen! ‑ gritou. ‑ Ellen!

Nenhuma resposta. O seu coração apertou‑se. Quando se baixou e saltou para a frente em pequenos passos, sempre escondendo‑se sentiu como a sua boca se contraía, como se tivesse uma cãimbra. "Ellen", pensou. "O que se passou? Meu Deus, não me deixes entrar no sítio à vontade e ela a jazer por ali, sem cabeça, rachada por um machado. Deus, não o permitas! Não sei o que faria, se visse a Ellen assim..." Mais três saltos... levantou a pistola e precipitou‑se para o lugar. As cabanas de folhas estavam vazias. Estavam duas latas por ali. Sopa de massa. Nenhum vestígio de luta, nada de sangue... apenas um lugar de descanso, asseado e arrumado.

‑ Ellen! ‑ gritou Cliff, sem sentido. Sabia que era uma loucura gritar assim na floresta. Mas tinha de o fazer, tinha a sensação de que: se não o fizesse, rebentava. ‑ Ellen!!! ‑ Depois bateu com os punhos nos tectos de folhas, gritando ao mesmo tempo: ‑ Diabo! Diabo! Mas eu vou apanhar‑te! Eu vou apanhar‑te! E mesmo que voes para a Lua... vou apanhar‑te! Ellen! Maldito mundo! Eu amo‑te! Por que é que te foste embora? Não podias ter feito isso! Nós pertencemos um ao outro! Ellen!

Quando já tinha destruído tudo, levantou a cabeça como um animal a tomar o faro, apanhou as duas latas vazias do chão e raspou com os dedos o resto da sopa de massa fria, que saboreou como deliciosas ostras... depois deu um pontapé nas latas e estendeu os braços.

‑ Eu já vou a caminho, Ellen! ‑ gritou ele. ‑ Não se foge de Cliff Haller!

 

Capitulo 4

Durante dois dias, Cliff Haller correu atrás da expedição de Ellen que fugia dele. Durante dois dias correu através do calor sufocante do inferno verde, através de pragas de mosquitos que caíam sobre ele como se o quisessem enterrar debaixo dos seus corpos, zunindo. O suor que lhe cobria todo o corpo, como se tivesse saído da água, atraía os mosquitos como mel. Quando a praga de mosquitos ficou demasiado grande e insuportável, lembrou‑se de um remédio que os índios tiravam de uma raiz... um sumo com que untavam o corpo, como se fosse óleo, e cujo cheiro expulsava as pragas de mosquitos. Rita Sabaneta tinha‑lhe indicado esse remédio. Donde é que ela o conhecia, não lhe tinha perguntado... naquele tempo estava demasiado apaixonado por ela para investigar o seu passado mais do que o necessário. Mas suspeitava que os primeiros vinte e quatro anos da vida de Rita tinham sido cheios de aventuras, e que se a observassem com atenção, o longo cabelo negro brilhante, o nariz afilado, os olhos escuros, ardentes, o corpo felino, insinuante, então descobririam nela incontestavelmente sangue índio. Cliff Haller interrompeu a sua perseguição a Ellen Donhoven e descansou durante cinco horas num afluente do rio Tefé, que eles, à ida, tinham atravessado sobre um tronco de árvore caído. Aqui, nesta ponte de emergência, Cliff procurou a tal raiz... crescia em zonas pantanosas, tinha uma casca verde rachada e impelia‑se directamente sobre a tona da água como raiz aérea. Com a sua faca de mato, Cliff cortou um grande pedaço, depois esmagou‑a entre duas pedras e esfregou o corpo todo com a papa repugnante e fétida. O efeito foi admirável. Sentiu como a sua pele ficou coriácea, como que curtida... mas a praga de mosquitos, embora ainda girasse à sua volta, não lhe caía em cima e seguia em frente para o rio. Até mesmo à noite, quando se sentou à pequena fogueira de acampamento e os mosquitos para ela se precipitavam, não se agarravam a ele, mas apenas giravam à volta, a uma distância segura do clarão da fogueira. Com isto, Cliff perdeu muito tempo e a distância de Ellen ficou ainda maior. Mas isso não o preocupava; sabia que a iria alcançar. Muito maior era o perigo de Ellen cair na grande armadilha que tinha sido agora montada, A busca ao agente americano tinha alarmado toda a selva desde o rio Tefé até ao rio Juma. Uma vez por outra, ouvia, bastante fracos, trazidos pelo vento, os avisos dos tambores dos índios, e no primeiro dia da sua fuga, os helicópteros e os aviões de reconhecimento circularam tão baixo sobre a floresta que quase fizeram mover as copas das árvores. Voaram sobre todos os veios de água, aquele enredado de rios, ribeiros, afluentes e pântanos, pois ali nas margens anda‑se mais facilmente para a frente do que na mata espessa, enredada e muitas vezes impenetrável de lianas, fetos gigantescos, matagais de espinhos, árvores amareladas e murchas, arbustos da altura de casas, que ali estavam como um muro. Cliff Haller apressou‑se a ir em frente, depois de se ter esfregado, mais uma vez, com a papa fétida da raiz. "Tenho de a alcançar", dizia ele a si próprio sempre de novo. "Eles correm cegamente para a morte. No rio Tefé estão à espera deles... e será uma morte silenciosa, uma morte pelas zarabatanas dos índios. Apenas se sentirá uma pequena picada... e depois o veneno actua com uma rapidez de segundos, paralisa a respiração, comprime o coração, aperta o cérebro. Para os índios será uma boa caçada. Seguramente, prometeram‑lhes dinheiro pelas cabeças deles. Não em dinheiro mesmo, pois o que se faz com o dinheiro na selva? As ferramentas são mais valiosas: catanas, machados, alicates, perfuradores, serras... com elas podem‑se construir aldeias totalmente novas, numa fracção do tempo que de outra forma se teria de gastar. Um machado para um índio é mais valioso do que bens em ouro, e muito mais valioso do que a vida de uma pessoa! Para a frente! Para a frente! Não podem chegar ao rio Tefé! Eu tenho de a alcançar antes! Ellen, maldita, mais uma vez, por que foges de mim? Será que eu sou um monstro? Admito que tratei Cascal e Rita brutalmente, mas o que sabes tu do que está em jogo, baby? Segundo as nossas leis da guerra, eu deveria tê‑los morto à socapa... deixei‑os viver, e isso verificou‑se ser um erro, que nos pode partir o pescoço a todos. Na nossa profissão, não se deve ter compaixão, nem escrúpulos, nem sentimentos humanos, nem moral cívica! Como é que o coronel Hodkins disse na instrução em Fort Disdale? Jovens, quando mais tarde estiverem em acção, totalmente dependentes de vocês próprios, sozinhos, terão de ter a maior dureza que corre no ser humano! Tudo o que está na Bíblia, já não é válido para vós. Recebem uma missão, e apenas ela é importante. A forma como é cumprida, é convosco... mas tendes de a cumprir! Os métodos não têm importância. Habituem‑se a terem uma chapa de aço na cabeça e uma bola de aço cromado no lugar do coração. Só assim conservam a vossa vida, nesta maldita ocupação suja! Em frente... Em frente... Eu agora corro pela tua vida, Ellen! Os índios estão à vossa espera no rio Tefé!"

 

O regresso ao rio decorria mais rapidamente do que Ellen tinha esperado. Voltaram pelo mesmo atalho que tinham aberto na mata espessa na ida. Apesar de terem passado apenas alguns dias, a selva já tinha começado a fechar a pequena ferida aberta no seu grande corpo verde. Afastavam os ramos novos da abertura com os braços, como que a tactear, dobravam os fetos gigantescos e fechavam parcialmente, de novo, o estreito atalho já pisado. Ellen Donhoven parecia estar cheia de uma energia, parecia não conhecer qualquer cansaço. O objectivo: o rio... a perspectiva de seguir em frente à deriva, na água amarelo‑esverdeada e gorgolejante, e deixar este inferno atrás dela enchia o seu corpo gracioso de uma tal força, que mais nenhum dos homens podia conter. Apenas o Dr. Forster estava inquieto em relação a esta rapariga. Durante as curtas pausas na marcha, os homens caíam em volta e deitavam‑se no solo mole da selva cheirando a podre, como se fossem bonecos de trapo sem firmeza. Dormiam uma hora, e depois Palma arrastava‑se para o lado, no enredado da selva, trazia com ele umas espécies estranhas de raízes e frutos nunca vistos nem conhecidos e com eles cozinhava pratos que todos sabiam notavelmente a mofo, como aromáticas papas de aveia. Mas tiravam a sensação de fome e tinham, notava‑se uma hora depois, um efeito estimulante.

‑ Que diabo de coisa é que você nos cozinha? ‑ perguntou Forster no segundo dia. ‑ Actua como um estupefaciente num viciado.


‑ É mamaliko. ‑ Palma, cujo pé inchado parecia acinzentado e que, aparentemente, também só conservava as forças através destes rebentos de raiz, para ir em frente com os outros, descreveu ao Dr. Forster e a Ellen esta raiz mole, vermelha cintilante. - Os índios fazem uma bebida anestesiante a partir dela. É muito parecida com um estupefaciente. ‑ Palma sorriu embaraçado para os outros. ‑ A senhora acha que nós já estaríamos aqui, se não tivéssemos comido mamaliko?

Acocoraram‑se debaixo de um arbusto, para se protegerem parcialmente da chuva que caía, e fixaram o olhar na meia escuridão verde da selva que se fechava sobre eles. Palma dormia de novo, Campofolio sonhava com os olhos notavelmente fixos, abertos e brilhantes. Mamaliko... a raiz da felicidade.

‑ Será que o nosso barco ainda está no rio? ‑ perguntou Ellen. O Dr. Forster, a quem se tinha encostado, levantou um pouco os ombros.

‑ Se os índios não o levaram...

‑ Como é que voltaríamos sem um barco?

‑ Também já pensei nisso, Ellen. A solução mais fácil seria construir uma jangada.

‑ Sem ferramentas?

‑ Existe madeira à deriva suficiente no rio. E para as atar umas às outras, usamos lianas.

‑ Já tem alguma ideia disso?

‑ Não. Mas vou tentar. ‑ O Dr. Forster sorriu tristemente. Para além disso, temos Palma. Ele conhece todos os truques da selva.

‑ Estou preocupada com ele. A perna...

O Dr. Forster acenou com a cabeça afirmativamente.

- Eu admiro‑o. Como ele suporta aquilo. Deve ter dores até à raiz dos cabelos! E aqui estão dois médicos sentados sem o poderem ajudar! Isso tira‑me o raio do ânimo todo. Para que serviram doze semestres de medicina, exames estatais e provas de especialidade cirúrgica?!

‑ Será que Palma consegue ir até Tefé?

‑ Não sei. Ele digere o antibiótico que eu lhe injectei como se fosse água açucarada. Quando tiver passado, acho que eles têm de lhe amputar o pé em Manaus.

Ellen Donhoven olhou, calada, Palma a dormir. Sorria durante o sono, sonhava com coisas lindas. Mamaliko.

‑ Eu sei o que você pensa, Rudolf ‑ disse ela de repente, com uma voz oprimida.

‑ Não estou a pensar em nada, Ellen.

‑ Pelo contrário. Você está a pensar: "será que isto foi necessário?!" E pensa mais: "ela tem tudo o que se passou até agora na consciência! A morte de Alexander Jesus e Fernando Paz, o misterioso desaparecimento de Moco... e a morte de Palma, em breve... tudo culpa dela! Tudo isto, só porque uma mulher excêntrica e obstinada teve a mania de que tinha de penetrar no interior da selva, sem falta, para descobrir os venenos desconhecidos. Por uma quimera, pôs as vidas das pessoas em jogo, em vez de ser uma boa rapariga, que casasse e criasse filhos como milhões de companheiras suas de sexo."

‑ Não se pode falar de culpa, Ellen.

‑ Rudolf, seja sincero, agora! Eu sei que fiz tudo errado. Mas agora é demasiado tarde para arrependimento.


‑ Nunca é demasiado tarde para arrependimento, Ellen. Ninguém a pode condenar. Você tinha um objectivo, e quis impô‑lo com a sua própria energia. Você não tem a culpa de ter falhado. Quem podia supor que encontrávamos um Cliff Haller, que com a sua missão faria malograr tudo o mais à sua volta?

‑ Também o seu amor por mim, Rudolf? ‑ disse Ellen, em voz baixa. O Dr. Forster abanou a cabeça.

‑ Não. Isso nem o Cliff Haller o consegue. Isso você sabe com toda a certeza, Ellen.

‑ Comportei‑me muito mal em relação a si, Rudolf.

‑ Por que é que está agora a falar nisso?

‑ Quero pôr tudo em pratos limpos. ‑ Lançou a cabeça em volta. os seus olhos azuis estavam plenos de uma tristeza comovente.

‑ Sete dias até ao rio Tefé, depois talvez não haja mais barco, e depois uma jangada que se parte por debaixo de nós... e os índios nas margens do rio... Rudolf, tenho a impressão que este inferno não nos larga!

Encostou a cabeça no ombro dele, e subitamente começou a chorar. Era a primeira vez que ele a via chorar, soava de uma forma infantil e desamparada. Ele pôs o braço à volta do seu corpo confrangido e apertou‑a contra si. Passada uma hora, quando a chuva tinha parado e a selva fumegava debaixo do sol, continuaram em frente. Palma coxeava atrás deles, apoiado num pau resistente. O Dr. Forster tinha‑lhe dado, mais uma vez, uma injecção analgésica.

‑ Já só temos seis ampolas ‑ tinha ele segredado a Ellen, quando ela examinara o pé de Palma. Estava grosso e deformado, como um a pata de elefante. ‑ No barco está a outra embalagem...

No barco. No rio. à distância de sete dias de marcha. "Meu Deus, deixa‑nos chegar lá. Dá‑nos força e fé."

 

Mamaliko... só ele era a força que ainda os ajudava, quando o quarto dia chegou ao fim e a noite da selva caiu. Mamaliko, a raiz maravilhosa de Palma, era o último céu que lhes tinha restado. Mamaliko era o esquecimento e o atordoamento, era a cegueira Perante a verdade e o domínio de um desespero incompreensível. Mamaliko... só ele era ainda a vida. A noite, que os surpreendeu numa pequena clareira, era misericordiosa e escura. Mesmo sem a fogueira para os apoiar, Palma e Campofolio adormeceram. O Dr. Forster bebeu meio cantil de água da chuva, que tinha recolhido numa lona de tenda durante o aguaceiro diário, e depois engarrafado nos cantis. Não se sentia abatido, mas sim assombrosa e alegremente activo, e elogiava discretamente, a força daquela maldita raiz mágica. Também Ellen parecia mudada por esta droga. Sentou‑se junto à fogueira extinta durante um bocado, calada, e olhou o Dr. Forster, que examinava o seu rosto, como que uma mancha pálida na escuridão. Mas então aquela mancha cresceu, alargou‑se e aumentou. Forster abanou a cabeça, pois pensava que era uma alucinação... mas a imagem, que se aproximava devagar, ficou e consolidou os contornos, e movia‑se na sua direcção cada vez mais nitidamente. Um corpo nu e branco. Pernas elegantes e longas, que se ajoelhavam perante ele, um corpo toscamente brilhante com pequenos seios firmes, que se curvava para ele, um rosto com um sorriso desfigurado, como se estivesse a ver interiormente um mundo indescritível e belo.

‑ Ellen! ‑ disse o Dr. Forster com a garganta seca. ‑ Você está acordada...


‑ Estou acordada, bem acordada... - A voz dela estava totalmente normal, mas embargada pelo tremor da expectativa. ‑ Abrace‑me!

‑ Ellen! Ele apoderou‑se dela, ela envolveu‑o com os braços e foi de um arrebatamento que varreu para o Inferno toda a razão. Rolaram no chão da selva como duas feras, agarraram‑se um ao outro e perderam‑se um no outro. Mamaliko... o deus do encantamento. Mais tarde, depois da embriaguês da luxúria e da consumação, ficaram deitados perto um do outro arquejando e evitando tocarem‑se ou até apenas olhar‑se. Odiavam‑se de repente. A desilusão depois do êxtase foi tão grande que cerraram os punhos na escuridão e poderiam ter‑se morto um ao outro sem se arrependerem. O que tinham feito durante a embriaguês do mamaliko não os aproximou de vez, mas afastou‑os ainda mais. Um abismo invencível abriu‑se entre eles: o conhecimento assustador de que os seus corpos apenas se poderiam juntar através de um veneno.

‑ Quando tivermos chegado a Manaus, não nos voltaremos a ver ‑ disse o Dr. Forster, rouco, dentro do silêncio.

‑ Não. ‑ A voz de Ellen estava dura, quase fria. ‑ Tu nunca deverias ter feito isto!

‑ Eu não podia fazer outra coisa.

‑ Estávamos como animais. - Estas foram as últimas palavras que trocaram um com o outro naquela noite. Cada um rolou para o seu lado e dormiu sozinho ao abrigo de um arbusto. Naquela noite, Cliff Haller já estava apenas à distância de uma hora...


Na tarde do quinto dia, Cliff Haller alcançou a expedição das quatro pessoas. Dormira bem, mais uma vez, protegido de todos os mosquitos através da sua papa de raízes fétida, e tinha continuado em frente, na manhã seguinte, com uma nova força. Não vivia de bolos e raízes como Ellen e os seus companheiros, Cliff apanhava animais desconhecidos, parecidos com porcos, nos laços das lianas, que deixava cozinhar muito bem nas cinzas quentes. Sem condimentos, sabiam a lulas estufadas, mas enchiam o estômago. No quarto dia degolou uma serpente de tamanho médio, cortou‑a em grossas fatias e assou‑as bem tostadas, como já tinha feito na sua preparação especial nos pântanos da Florida. Por volta das nove horas da noite, encontrou o acampamento de Ellen... viu o montinho das cinzas da fogueira, um bolo atirado fora e uma ampola de um analgésico. Queria ter podido gritar de alegria, atirou o monte de cinzas através do ar, como um futebolista faz com a sua bola e viu, então, no seu mapa, onde se encontravam. Até ao rio Tefé eram uns bons três dias de marcha... apenas um escasso período até à morte certa. Cliff Haller dobrou o seu mapa e passou‑o pelo rosto. Uma barba selvagem escondia‑lhe o queixo e as bochechas. Era tão loura como o seu cabelo. "Como é que faremos, Ellen", pensava ele, enquanto continuava a correr. "Tu vieste pela direcção errada! Temos de ir para oeste, para o grande rio Juruá. Atravessar a floresta, independentemente do que esteja à nossa espera. Um contacto está à minha espera no rio Juruá, no miserável lugarejo índio Carababa. Ele vai dar a instrução por rádio para nos virem buscar. O rio Juruá é o único rio largo aqui no interior da selva onde um avião pode pousar na água sem problemas. Não é um helicóptero, baby... um avião autêntico, que então nos irá levar para o lado do Peru, para Iquitos, no Amazonas... para a liberdade, darling, para a nossa liberdade, que também significa uma nova vida. Mas até lá ainda há um longo caminho. Trezentos quilómetros através do inferno, trezentos quilómetros a pé por um atalho que nós próprios temos de abrir. Loucura, dirás tu. Louco! Eu não vou contigo. Mas é o único caminho para a vida..."

A aparição de Cliff teve lugar durante uma pequena pausa para descansar. Palma e Campofolio vagueavam pelas redondezas, em busca de algo comestível. Tinham visto uma porca a amamentar quatro crias que fugiam deles.

‑ Uma porca! ‑ gritou Palma. ‑ Deus nos abençoe! Uma Porca e quatro leitões! Aqui à frente! Não nos podem escapar!

Arrancou a arma ao Dr. Forster antes de ele a poder agarrar mais firmemente, e contra todas as determinações, Palma disparou imediatamente.

‑ Encontraram‑na? ‑ gritou, saltando em volta no seu pé sadio.

‑ Apanhei‑a. Vamos procurá‑la... depressa, depressa!

‑ Com o seu tiro você pode ter posto os índios atrás de nós ‑ vociferou Forster. ‑ Mas que estupidez!

Mas Palma e Campofolio já ali não estavam. Corriam atrás da porca que sangrava e desapareceram na floresta. Dez minutos depois, Cliff andava às apalpadelas fora do arbusto. Agiu como uma aparição de um mundo desconhecido. Ellen soltou um grito estridente, quando o viu ali em pé, alto, largo, com os braços estendidos, um sorriso no rosto bronzeado, inteiramente coberto por uma barba. O Dr. Forster apoderou‑se de uma arma e apontou‑a para Cliff. Sentia como que uma frieza terrível a atravessá‑lo, estava preparado, sem hesitar, para matar este homem que odiava como a mais ninguém no mundo, com uma pressão do dedo.

‑ Fique quieto, Cliff ‑ disse duramente. ‑ Nem mais um passo! Levante os braços no ar! Vai ficar assim quieto, até Campofolio voltar e o desarmar.

Cliff Haller levantou as mãos lentamente.

‑ Ficou maluco, doc? ‑ gritou de imediato. ‑ É assim que se cumprimenta um salvador de vidas?

‑ O que quer daqui? Não o chamámos, não fizemos nada pela sua presença. Se você não se quer afastar de nós de livre vontade, vou fazer consigo o que você fez com Cascal.

‑ Cascal está muito bem, presumo eu. Melhor do que nós! Homem, doc, não seja idiota! Eu voltei em boa hora. Vocês estão a correr para a vossa morte. Querem ir para o rio Tefé... e lá estão os índios prontos para fazerem de vocês uma graciosa cabeça mirrada. Vocês estão a andar na direcção errada. Acreditem em mim! Ellen, se ele é um imbecil, então acredita tu em mim. Eu corri atrás de ti para te salvar. Eu...

Deu um passo em frente. O Dr. Forster levantou a sua arma, o dedo curvado no gatilho. Cliff viu isso e ficou imediatamente quieto de novo. Apenas os olhos ficaram fixos.

‑ Três passos para trás! ‑ ordenou o Dr. Forster. ‑ Para aquela árvore, além. E os braços levantados, acima da cabeça!

Cliff obedeceu. E então aconteceu algo com que ninguém tinha contado: Ellen também lançou os braços para cima, correu para o Dr. Forster, precisamente para a linha de tiro, Forster deixou a arma descer e desviou‑se... e Ellen continuou a correr, lançou‑se nos braços de Cliff, pendurou‑se no seu pescoço e beijou‑o, balbuciando o nome dele, deixou‑se levantar e também beijar e estava como que embriagada de felicidade por tornar a ver o Cliff e a tê‑lo de novo.


‑ Você ganhou, Cliff ‑ disse o Dr. Forster, quando ambos vieram ter com ele, mais tarde, de mão dada, um feliz par amoroso.

‑ Tenho muita pena, doc... ‑ disse Cliff, sério.

‑ Desejo‑vos muitas felicidades.

‑ Obrigado. ‑ Cliff estendeu a mão ao Dr. Forster. ‑Você é bom perdedor, doc. Por que razão não podemos ser camaradas?

‑ Há demasiadas coisas a separar‑nos, Cliff.

‑ E apesar disso tem de ir agora connosco pelo meio do quarto de dormir de Satanás. Para o rio Juruá. Ainda nos temos de aturar por muito tempo.

‑ E tu, Ellen? ‑ O Dr. Forster olhou para Ellen. Lia‑se tristeza no seu olhar. ‑ Queres ir com ele para o incerto?

‑ Sim.

‑ Tu não sabes o que irá acontecer lá?

‑ Não! Só sei que sou feliz. Tão feliz... Não quero saber de mais nada.

‑ Você tem de tomar a responsabilidade, Cliff. ‑ O Dr. Forster olhou Haller nos olhos firmemente. ‑ Eu vou‑me esforçar por viver tanto tempo como você. Pois se a nossa aventura falhar, tem de sobrar um que lhe peça contas.

‑ Isso pode você fazer, doc. ‑ Cliff Haller abraçou Ellen e puxou‑a para si. ‑ Por uma mulher destas, eu arrisco a minha vida.

‑ E pelos filmes que tem no bolso. ‑ Também pelos filmes. Existem homens, doc, que bebem cerveja com as duas mãos... um copo em cada mão!

Riu, e era um riso tão pleno, tão seguramente vitorioso, que Ellen também começou a rir e, ao mesmo tempo, rodeou‑o com ambos os braços. Um riso em que o medo crescia. Duas horas mais tarde, continuaram em frente, para sudoeste, para o desconhecido. Com os machados, cortavam um novo atalho através do muro verde.

‑ Devagar ‑ disse Cliff, quando Campofolio bateu nas lianas como um selvagem. ‑ Devagar, Pietro... agora temos muito tempo... muito tempo... estamos a nadar contra a corrente...

Tinham perante eles trezentos quilómetros de selva inexplorada, que no mapa aparecia como terra branca. Estavam a entrar num mundo que até então também não tinha conhecido o tempo.

 

Durante três semanas acamparam através da selva. Três semanas de calor e chuva, de vapor febril e solo podre. Três semanas de semiescuridão, de coberturas onduladas de folhas, passando Peque. nas correntes de rio em que crocodilos gigantescos nadavam indolentemente. Três semanas de pântanos com serpentes da grossura de um braço e de miríades de mosquitos, rodeados por pássaros de cores cintilantes e espiados por feras invisíveis. Três semanas de caminhada seguindo apenas uma bússola e um mapa fotográfico, que tinha sido tirado quase a vinte mil metros de altitude, de um avião especial. Ao vigésimo dia de caminhada no inferno, Rafael Palma ficou louco, A loucura apareceu subitamente, como se um relâmpago tivesse destruído o seu cérebro. O veneno da raiz de mamaliko tinha‑lhe roído o interior lentamente. De repente, durante uma pausa numa estreita margem de rio, que não estava assinalada em nenhum mapa e que Cliff tinha marcado escrupulosamente no seu mapa fotográfico, Palma saltou, dançou em volta com o seu pé sadio, como um folião no carnaval do Rio, rindo estridente e horrivelmente ao mesmo tempo, valsou depois no solo, gritou como um cavalo ferido. Da boca saía‑lhe espuma, e antes que Cliff o pudesse agarrar, Palma saltou de novo e correu para o rio, batendo em si próprio.

‑ Palma! ‑ gritou Cliff, levantando a sua arma. Campofolio e o Dr. Forster também atiraram ao mesmo tempo que ele ao que pareciam ser troncos de árvore apodrecidos e subitamente tornados vivos, que indolentemente se encontravam na água amarela. Agora mostravam as goelas escancaradas e precipitavam‑se com uma rapidez inesperada em direcção a Palma, que corria para a água.

‑ Para trás, Palma!

O louco já não ouvia nada. Rindo, atirou‑se à água, fez sinais para o céu cintilante e azul... e então os crocodilos alcançaram‑no de vez e apanharam‑no. Um grito de fazer gelar o sangue cortou o curto silêncio, paralisante de horror e desamparo. Depois, Forster, Campofolio e Cliff atiraram de novo aos répteis, mas a embrulhada de corpos de couraças córneas, de membros humanos, de sangue e de sons abafados e horripilantes de respirar e mastigar já não se dissolveu mais. Acertaram em três crocodilos, mas do enredado do pântano e da selva deslizaram outras feras para dentro de água e esfarraparam o corpo de Rafael Palma. Após escassos minutos, apenas uma mancha de sangue se encontrava ainda no rio, na qual as couraças dos crocodilos atingidos e igualmente despedaçados boiavam como jangadas planas. Ellen tinha‑se afastado e comprimido as duas mãos contra os ouvidos. Tinha a boca aberta num grito silencioso. Só quando Cliff lhe afastou devagar as mãos dos ouvidos é que ela se virou e enterrou o seu rosto no peito largo dele.

‑ Já passou... ‑ disse Haller hesitante.

‑ E assim morreremos nós todos! ‑ gritou Campofolio, perto dele. ‑ Meu Deus, por que é que eu não atirei em si, naquela altura, quando você tornou a aparecer?! Por que razão se é simplesmente tão decente?!

‑ Se vocês tivessem continuado em direcção ao rio Tefé, há muito que jazeriam na margem do rio como uns esqueletos sem cabeça. O nosso único caminho é para o Peru.

‑ Nunca lá chegaremos!

‑ Com o seu pessimismo, não. ‑ Cliff Haller carregou a sua arma, enchendo os carregadores vazios com novos cartuchos. ‑ A única coisa, agora, que ainda nos pode acontecer, é um alarme dos índios. Ouviram‑se os nossos tiros. Não pensem que estamos aqui sozinhos com os animais.

Os maus pressentimentos de Cliff tornaram‑se verdadeiros. No dia seguinte, apareceram três helicópteros a circular sobre a região que os importunava a cada passo, à medida que prosseguiam. Zumbiam cerradamente, como vespas gigantescas sobre as copas das árvores, e desapareciam depois do campo visual. Cliff e o Dr. Forster ouviam, contudo, como as hélices trovejavam nas proximidades, não se distanciando. Haller e Forster olharam‑se rapidamente. Entendiam‑se sem uma palavra. Estavam a desembarcar tropas. Algures mais à frente, nas proximidades, havia algumas clareiras na selva, onde podiam baixar os helicópteros tão profundamente que podiam fazer saltar de pára‑quedas soldados instruídos para o combate na selva. Ouviam o trovejar monótono das hélices à frente e atrás deles.


‑ Eles estão a cercar‑nos ‑ disse Cliff rouco para o Dr. Forster.

‑ Querem‑nos dar caça como se fossemos lebres numa batida. Ellen... ‑ Pousou o braço no ombro dela. Ela olhou‑o e viu nele um homem estranho. Toda a juventude tinha desaparecido do seu rosto, Cliff parecia anguloso, como se fosse talhado toscamente num rochedo. ‑ Sabes disparar?

‑ Sim, e até bem, Cliff.

‑ Pega na automática. Tu e o doc vão para diante... eu fico para trás com Campofolio e detenho‑os.

- Não! ‑ Ellen empertigou‑se. Era O gesto com que ela exprimia que ninguém a podia obrigar mais a ir noutra direcção. ‑ Fico contigo.

‑ Diabo! Tu fazes o que eu te digo! ‑ gritou‑lhe Cliff. ‑ Depressa! Doc, pegue você no mapa. Se nos perdermos... Vocês têm de ir até ao rio Juruá, até Carababa. Lá, perguntem por Ricardo Peres. É um homem que compra cauchu em bruto aos índios. Digam‑lhe que O avô Jaime manda cumprimentos. Assim, ele saberá quem os mandou.

De repente apareceu uma bola de luz vermelha brilhando por baixo do céu azul e desaparecendo imediatamente. Estava terrivelmente próxima. O anel dos soldados da selva apertava‑se silenciosamente.

O perigo mortal estava cada vez mais perto.

‑ Vem! ‑ O Dr. Forster agarrou em Ellen e empurrou‑a à sua frente. ‑ Vamos tornar a ver o Cliff.. ele move‑se melhor sem nós.

Antes que mergulhasse no enredado de fetos, lianas, arbustos e na vegetação das árvores, Ellen ainda olhou mais uma vez para trás. Cliff e Campofolio também se separaram... entraram pelos lados da floresta.

‑ Cliff. ‑ disse Ellen baixinho. ‑ Cliff, eu amo‑te... ‑ Depois virou‑se e correu atrás do Dr. Forster, que abria o caminho através de um emaranhado de fetos. Depois de uma escassa hora encontraram os outros. Campofolio foi o primeiro a descobrir, na mata espessa, os camuflados às manchas verdes e amarelas da tropa especial brasileira. Avançavam em fila indiana, marchando distanciados uns dos outros, de maneira a que pudessem abranger bem com a vista os intervalos. Como batedores numa caçada. Caçadores de humanos, tinham uma única missão: exterminar. Campofolio nunca tinha sido soldado, e também não tinha estofo para ser herói, e, até estes minutos, nunca teria acreditado que alguma vez teria de realizar um acto heróico. Agora, porém, apenas pensava em Ellen Donhoven e na sua grande oportunidade de ficar aprovado, chamando a atenção dos soldados sobre si. Não queria mortes, apenas os queria deter, e, contra a opinião de Cliff, ele achava que a ele o matariam, desde que só disparasse para o ar. Era um cientista que pensava normalmente... perante soldados que apenas têm uma missão definida. Campofolio fez o que considerava ser bom e não perigoso: lançou‑se para o abrigo e atirou para o ar. Imediatamente os uniformes desapareceram e uma saraivada de balas cercou Campofolio, que se protegia deitado. Cliff Haller aproveitou esta oportunidade: rastejou lateralmente através da abertura entre dois soldados atiradores, ficou deitado ao mesmo nível deles em fetos altos e esperou. Espantado, ouviu, terminada a primeira troca de tiros, a voz de Campofolio:


‑ Soldados! ‑ gritou ele do seu esconderijo. ‑ Não disparem! Sou um amigo! Eu deito a arma fora! Sou um membro de uma expedição. Não disparem!

‑ Este idiota! ‑ disse Cliff Haller, rangendo os dentes. ‑ Este pobre idiota!

Campofolio aparecia agora na clareira, desarmado, com os braços erguidos. Cliff ouviu alguns soldados rirem... depois fizeram as metralhadoras crepitar um pouco, sobrepondo‑se ao grito de morte de Campofolio. Cliff ficou deitado até os soldados perto dele correrem em frente e se juntarem à volta do fuzilado. Depois continuou a rastejar devagar, até estar seguro de que já não o podiam ouvir, e correu em curva na direcção que Ellen e o Dr. Forster tinham tomado. Pareciam ter tido sorte, na zona deles estava tudo calmo. O Dr. Forster deixara‑se pura e simplesmente ultrapassar pelos soldados. Ele e Ellen tinham‑se deitado muito juntos, num arbusto espesso, numa cova com água apodrecida, e tinham ouvido os disparos atrás deles, mal se atrevendo a respirar. A menos de três metros deles tinham surgido dois soldados da mata espessa, indivíduos baixos e musculados com gorros às manchas e com metralhadoras.

‑ Desta vez correu bem... ‑ sussurrou o Dr. Forster, depois de a linha do grupo de busca ter passado por cima deles. ‑ Mas eles não vão desistir. Não existe nenhum cão de caça que volte para trás depois de ter cheirado a pista.

Esperaram mais de uma hora antes de continuarem a rastejar e depois, finalmente, seguiram através da selva, a pé de novo. à noite, depois de uma grande chuvada e de uma tarde ardente e húmida, deitaram‑se junto a uma árvore derrubada pelo vento e adormeceram uns segundos mais tarde, esgotados. Serpentes? Gatos selvagens? Aranhas venenosas? Escorpiões? Tudo, tudo era indiferente. Apenas dormir... dormir... O corpo parecia de chumbo. O sol da manhã, de cor âmbar, acordou‑os. Cheirava a fumo perto deles; levantaram‑se ao mesmo tempo e olharam em volta. O Dr. Forster empunhou a arma. Cliff Haller estava sentado, um pouco afastado deles, em frente de lima pequena fogueira, assando um pedaço de carne. Era uma grande ave, quase tão grande como uma galinha.

‑ Bom dia ‑ disse Cliff, bem disposto. ‑ Não sabia que ressonavas, Ellen. Assim fico mais descansado... é que eu também ressono.

‑ Cliff ‑ Ela saltou, precipitando‑se para os seus braços. ‑ Cliff... tu... tu...

Não conseguia continuar a falar. A sua voz estrangulou‑se em soluços. O Dr. Forster olhava‑os. Cliff levantou os ombros e acenou afirmativamente por cima da cabeça de Ellen.

‑ Campofolio foi apanhado ‑ disse ele. ‑ Dispararam sobre ele, quando saiu do esconderijo de braços bem levantados. Assim já sabem, o que nos esperava!

‑ Agora já só somos três. ‑ O Dr. Forster esfregou o rosto. Tal como Cliff, tinha agora também uma barba desalinhada. ‑ Quem será o próximo?

‑ Ninguém. ‑ Cliff Haller acariciou a cabeça palpitante de Ellen, ‑ Garanto‑lhe, doc... vamos conseguir passar!

 

No rio Juma, José Cascal tomou conhecimento imediatamente na hora, através do rádio, de que a busca a Cliff Haller tinha decorrido em vão. Tinham morto Campofolio, naturalmente por engano. Os soldados tinham ficado nervosos, informara o comandante das tropas. E além disso, o homem tinha disparado primeiro. Se tinha sido para o ar ou não... isso, definitivamente, era difícil de se confirmar na selva.

‑ De qualquer modo, agora sabemos a direcção que ele tomou - disse Cascal na sua cabana junto do rio Juma.

Estava em pé junto ao mapa, indicando a um jovem tenente o caminho que Cliff teria tomado, pela força da lógica.

‑ Ele virou‑se para oeste e vai passar o rio Repartimento. É evidente que quer ir para o rio Juruá. Diabo, eu podia ter pensado nisso! No Juruá ele pode mergulhar, pode comprar um barco e deslocar‑se até Fonte Boa, no Amazonas, sem entraves. Estamos aqui sentados no extremo completamente errado, tenente!

Durante duas horas, as informações entre o rio Juma e o governo militar em Manaus voaram de trás para diante. Os aparelhos cantaram durante duas horas. Depois, o general Aguria montou outra zona de bloqueio: todos os sítios no rio Juruá foram informados, duas companhias voaram em pequenos e rápidos hidroaviões para Carauari, a maior colónia no meio do Juruá, lanchas a gasolina faziam o controlo do sector entre Carauari e Vista Alegre, os índios que lidavam amigavelmente com os brancos foram atraídos com uma cabeça a prémio e observavam o rio metro por metro. Em Fonte Boa todos os barcos saídos da floresta eram revistados. Um segundo‑sargento aquartelou‑se, com sete soldados, em casa do comprador de cauchu Ricardo Peres. Foi um acaso, e Peres evitou protestar. Ele tinha a maior casa do rio e passava de tal maneira por indígena que não levantava qualquer suspeita. "Estes cães americanos!", costumava ele insultar. De noite, porém, transmitia para o seu contacto mais próximo: "O meu irmão foi‑se embora. Ficou muito cansado."

Em texto claro significava: "Cliff vai ser desviado. Aguarde mais informações. Não há pedidos de informação." As medidas tácticas de Cascal punham uma rede sobre Cliff Haller. Cascal voou com Rita Sabaneta, no dia seguinte, para o lado do rio Juruá e montou o seu posto de comando em Xué, a aldeia de recolha de cauchu, que ficava antes da nascente do rio Repartimento. No quarto dia depois do rompimento através do anel de soldados, foram novamente cercados. Cliff Haller foi o primeiro a notar, quando à sua volta a floresta ficou viva e surgiram, como fantasmas, vultos nus, castanho‑avermelhados, com zarabatanas e flechas. Ellen soltou um grito estridente, o Dr. Forster levantou a arma, mas Cliff empurrou‑lhe o cano para baixo.

‑ Nenhum movimento! ‑ sibilou ele. ‑ Nenhuma resistência. Por amor de Deus, controle os nervos! Podemos matar dez deles e ter quinze setas envenenadas no corpo. Eles não nos querem matar, vêm com intenções pacíficas.

‑ Como é que você sabe isso? ‑ O Dr. Forster pôs‑se à frente de Ellen. Escondeu‑a com o seu corpo. Era um gesto de cavalheirismo sem sentido, que não podia realmente protegê‑la.


‑ Se eles nos quisessem matar, isso teria acontecido muito antes de saírem dos seus esconderijos. Querem‑nos levar com eles. Derribar‑nos com o sopro deixou de ser uma arte. ‑ Um índio alto e musculado saiu do círculo dos homens nus e levantou as duas mãos. Mostrou as palmas das mãos e Cliff acenou com a cabeça afirmativamente. O sinal de estar desarmado, de negócio. Mostrou igualmente as suas mãos e o alto guerreiro veio ao seu encontro. Cliff não percebeu o que o índio disse. Mas interpretou bem os sinais que ele fazia apontando com o dedo... um círculo, uma indicação para a floresta, a imagem de uma cabana... Cliff sorriu e deu a mão ao índio.

‑ Ele está‑nos a convidar para a sua aldeia ‑ disse a Ellen e ao Dr. Forster. ‑ Não deve mostrar medo. Está a oferecer‑nos um abrigo.

‑ Assim como se apanha um rato na armadilha com toucinho.

‑ O Dr. Forster estava ainda à frente de Ellen, protegendo‑a. ‑ Não! Nós estamos aqui na selva, doc, não se esqueça disso. Aqui não se conhece o civilizado pensamento duplo. Aqui, a única moral é a honestidade; na morte, como na hospitalidade. Vamos com eles.

‑ E se, no entanto, eles nos matarem?

‑ Como quer você ainda evitar isso? ‑ Cliff Sorriu, azedo. - Podemos acreditar em surpresas...

Rodeados de índios, atravessaram durante horas uma selva quase tão escura como a noite num túnel que os índios tinham aberto através do tecto de folhas. O atalho acabava num rio, no qual estavam dez grandes barcos... imponentes pirogas que tinham até vinte lugares para guerreiros. Cliff apontou satisfeito para a frota da selva.

‑ Eu não disse?... eles vão‑nos levar para a aldeia como convidados. Para fazerem de nós cabeças mirradas, não precisavam de se dar ao trabalho de nos arrastar com eles.

A viagem pelo rio indolente contra a corrente durou até à noitinha. Silenciosas, as canoas deslizavam através do rio, apenas as batidas dos remos e as estocadas das varas quebravam o silêncio gelado e húmido. Depois, o rio alargou‑se, as margens ficaram mais luminosas e, num planalto talhado fora da floresta, viram as cabanas da aldeia, construções redondas terminadas em bicos, cobertas por folhas enormes e ramos entrançados. Porcos e cães corriam na margem para a frente e para trás, a chegada dos barcos foi anunciada pelo vigia, as mulheres correram para o barco saindo das cabanas e dos pequenos jardins à volta das paredes, todas nuas, com uma pele brilhante castanho‑dourada, elegantes, bonitas, figuras maravilhosamente proporcionadas. Os outros guerreiros juntaram‑se num pontão de desembarque feito de placas de madeira, que quase lembrava as europeias, e nos troncos abalroados no rio. Uma floresta de penas e lanças, um muro de músculos e peles pintadas e brilhantes. Na frente dos homens, junto à ponte, estava um índio cujo toucado de penas de aves do paraíso abanava ao vento do fim da tarde... uma coroa de penas de preciosidades vermelhas, douradas, azuis e de cores cambiantes. A pena da cauda de uma ave do paraíso dourada é mais valiosa do que dez cabeças de estranhos.

‑ O chefe... ‑ disse Cliff Haller, erguendo a mão em saudação. O guerreiro com o rico toucado de penas retribuiu o cumprimento. Os barcos atracaram cuidadosamente. Mãos solícitas ergueram Ellen Donhoven e levaram‑na quase até ao chefe.


‑ Não é possível... ‑ balbuciou ela, quando o homem com o enfeite de penas se aproximou dela e lhe estendeu a mão. ‑ Isto não é verdade! ‑ E então lançou os braços ao alto e abriu‑os, e o seu grito foi tão alto que Cliff e o Dr. Forster acorreram espantados. ‑ Moco! ‑ gritou Ellen. ‑ Moco! És tu!

‑ Seja bem‑vinda, senhorita, à minha terra ‑ disse Moco, dobrando‑se sobre a mão de Ellen e beijando‑a, como tinha visto os brancos distintos fazerem em Manaus. ‑ O meu povo dá‑lhe as boas‑vindas.

 

Capitulo 5

Depois de ter dominado a perplexidade inicial, rapidamente Cliff Haller era de novo o homem a quem nada abalava. Enquanto o Dr. Forster fixava o olhar, incrédulo, no selvagem pintado e enfeitado de penas e parecia ainda não compreender que debaixo daquela máscara se encontrava o outrora aluno da missão, Moco, Cliff foi ao encontro do chefe com as mãos estendidas. O Dr. Forster foi tirado do barco e posto em terra por vinte braços solícitos.

‑ Isto é o que se chama uma surpresa! ‑ exclamou Haller. ‑ Eu pensava que você jazia digerido nas barrigas das piranhas!

O Dr. Forster fez uma careta. "Como ele se acomodou tão depressa", pensou. "Antes, Moco era um índio sujo... agora trata‑o por você. Até o próprio Moco parece reparar nisso... não se dá conta da mão esticada de Cliff."

‑ Já estavam saciados naquela altura os peixes ‑ disse ele reservado.

‑ De facto a selva ainda tem segredos! ‑ riu Cliff. Olhou em volta.

O caminho desde a margem até à aldeia era formado por alas de guerreiros, mulheres e crianças. A maioria estava nua. Bem dispostas, as crianças cor de ferrugem riam‑se para os brancos, sobejos de uma raça primitiva por sobre a qual os séculos se desenrolaram sem deixarem vestígios. Numa clareira aberta na selva, estavam as grandes cabanas redondas, pequenos porcos pretos brigavam e caldeirões de madeira estavam pendurados sobre as brasas de uma fogueira já consumida. Cheirava a peixe assado e batatas cozidas.

‑ Isto a mim não me agrada ‑ disse Cliff em voz baixa para o Dr. Forster, quando Moco e Ellen foram para a aldeia. ‑ Por um lado, estamos certamente seguros aqui... mas por outro, não existe ninguém mais indiscreto do que um índio. Não vai demorar muito que não se saiba nos outros rios e nas tribos vizinhas que Moco tem visitas de brancos! E igualmente depressa saberão os nossos perseguidores! Para mim, teria sido melhor se atravessássemos sozinhos a selva.

‑ Uma ajuda dos índios experientes da selva não pode nunca ser prejudicial, penso eu. ‑ O Dr. Forster parou. A aldeia perante eles era maior do que se supunha a partir do rio. As cabanas estavam juntas umas às outras, na orla da floresta tinham sido construídos os grandes currais da comunidade. ‑ Moco foi sempre nosso amigo... prova está ele a apresentá‑la agora.

‑ Vamos aguardar, doc! ‑ Cliff Haller continuou a andar e em grandes passos subiu para mais próximo de Ellen. ‑ Você não sabe o que acontece nesta maldita terra! Aqui existem três espécies de procura: uma de cauchu, a segunda de orquídeas e a terceira de índios. E a última é a que tem mais sucesso. Para os caçadores brasileiros de índios não tem importância se a tribo de Moco também for exterminada até à última criança de colo. Não seria nada de novo, nem digno de ser mencionado. Pelo contrário, neste caso teriam um fundamento para matarem esta gente como macacos selvagens.


‑ Vocês vão ficar connosco até estar tudo calmo ‑ disse Moco, quando estavam na aldeia e lhes foi atribuída uma cabana. Estava asseadamente varrida, coberta de folhas de palmeira e de esteiras de lianas entrançadas. A luz apenas caía pela porta de entrada, mas a semiescuridão era agradavelmente fresca, contra o calor sufocante, abafado, lá fora ao sol.

‑ Serve bem! ‑ gemeu o Dr. Forster, deixando‑se cair na cama de folhas. Esticou‑se e abriu os braços para o lado. ‑ Vou ficar aqui deitado e não me mexo mais nas próximas vinte e quatro horas. Meu Deus, poder dormir uma vez, finalmente, como deve ser. Dormir sem despertar... vocês ainda sabem o que é isso? Apenas dormir? Ellen, Cliff, não sei o que se vai ainda passar hoje... eu só quero dormir!

Moco deixou‑os sozinhos. Lá fora ouviram gritos e correrias... soava como se tivessem caído todos uns sobre os outros e se dilacerassem.

‑ Suponho que agora vão dar uma festa. ‑ Cliff sentou‑se no chão e desapertou as botas. Só agora Ellen e o Dr. Forster viam, que os seus pés estavam cobertos de bolhas.

‑ Isso parece estar muito mau! ‑ exclamou Ellen, ajoelhando‑se perto de Haller. Ela levantou‑lhe os pés e olhou para Forster. ‑ Ainda temos pó, Rudolf

‑ Pó? Bastante. ‑ O Dr. Forster endireitou‑se. ‑ Cliff, andou assim a correr dias inteiros? Louco! Você deveria estar a gritar de dores!

‑ Foi‑se aguentando... pode‑se aguentar muito, doc.

‑ Onde está o pó? ‑ perguntou Ellen.

‑ No barco. Na bagagem. Eu vou buscar...

O Dr. Forster levantou‑se e encaminhou‑se para a porta. Haller segurou‑o pelas calças.

‑ Agora tem de me aturar, doc.

‑ Sou médico, Cliff. Você pode suportar as dores porque é um aventureiro... eu alivio a dor sempre que a encontro porque fiz o juramento de ajudar todos aqueles que precisassem de um médico, sem entender à aparência e à pessoa. Até você eu ajudo...  

Haller esperou até Forster ter deixado a cabana. Depois lançou a mão a Ellen, puxou‑a para cima dele e beijou‑a longamente na boca. Depois, disse:

‑ Ele poderia eliminar‑me, não? Na verdade, ele é um tipo fino. Apenas um pouco demasiado sensível a ti, baby! ‑ Puxou a camisa de dentro das calças, rasgou‑a em algumas tiras na parte de baixo e esperou até Forster voltar com as poucas bagagens, que ainda arrastavam com eles. A mais importante era a pequena farmácia de urgência.

‑ E mesmo que eu a tivesse em cima do meu pescoço como um burro de carga, seria a última coisa que deitaria fora! ‑ disse Forster. E tinha sido assim ao longo de toda a longa caminhada através do inferno verde: tinham deitado tudo fora, peça após peça, para ficarem mais leves pelo caminho através do infinito verde e fumegante. A farmácia tinha ficado às costas de Forster. Com Forster vieram seis raparigas para dentro da cabana. Traziam grandes alguidares de casca de abóbora com água morna e começaram a lavar os convidados. Agora não havia tempo para terem vergonha, e também perante quem a deveriam ter? Cliff, o Dr. Forster e Ellen Donhoven deixaram‑se despir e empurrar para trás, para as folhas de palmeira, pelas pequenas mãos castanhas, e então a água escorreu sobre os corpos nus e as mãos esfregaram a sujidade e o suor que tinham atormentado a pele durante semanas.


‑ Já tinha passado por algo assim parecido uma vez no Japão ‑ grunhiu Cliff agradavelmente, esticando‑se por debaixo dos pequenos dedos massajantes. ‑ A seguir fica‑se cansado como um maratonista, mas depois sente‑se como que uma vida nova a correr através das veias. Diabo, não posso esquecer que estamos deitados no cano de uma espingarda...

Ellen Donhoven também fechou os olhos. Percorria‑a um sentimento agradável. As mãos ligeiras e pequenas passavam pelo seu corpo e pareciam enfeitiçá‑lo. Um bem‑aventurado cansaço, nunca experimentado, levantou‑a como uma pena e deixou‑a suspensa. Os seus últimos pensamentos foram: "como este descanso é maravilhoso", depois adormeceu. Acordaram quase ao mesmo tempo. O som de tambor penetrava surdamente na cabana, no meio de gritaria e de um som alto e estridente, que de vez em quando durava segundos, aumentava e diminuía como uma sirene. Cliff olhou para os seus pés. A farmácia estava fechada, na parede redonda e entrançada. Os seus pés estavam embrulhados em grandes folhas, e quando ele mexeu os dedos dentro dessa ligadura reparou que lhe tinham esfregado os pés densamente com um bálsamo.

‑ Moco não parece acreditar nada na medicina moderna... aparentemente, viu demasiadas coisas na missão ‑ disse Haller, sarcástico.

‑ Você aposta, doc, que este processo de cura natural é melhor? - Sentou‑se e olhou em redor. As mãos solícitas que os tinham massajado durante o sono deviam‑nos ter de novo vestido mais tarde, pois já não estavam nus, mas sim usando novamente as suas roupas.

‑ Como é que vocês se sentem?

‑ Maravilhosamente! ‑ disse Ellen, espreguiçando‑se. ‑ Uma hora de sono assim faz maravilhas.

O despertar deles parecia ter sido anunciado. Algures na aldeia havia observadores que viam e seguiam tudo o que acontecia na cabana. Moco entrou e riu. Já não trazia o seu toucado de penas de aves do paraíso, mas apenas uma banda na testa, de pele de pantera.

‑ Bom dia, senhorita e senhores ‑ disse, ficando à porta parado, sorrindo. ‑ Tivemos de cozinhar a comida três vezes até vocês acordarem finalmente.

‑ Bom dia? ‑ Cliff passou as mãos pelo rosto. ‑ Moco, quanto tempo é que estivemos a ressonar?

‑ Um dia e meio...

‑ O quê? ‑ Ellen saltou. ‑ Eu disse uma hora!

‑ Porquê olhar para o relógio, senhorita? ‑ Moco fez um movimento com as mãos através do ar. ‑ Nós esquecemos o tempo... mas infelizmente o tempo não nos esquece.

‑ Aprendeu muito com o pastor, Moco.

‑ E muita coisa errada, senhor. ‑ Moco baixou a cabeça e a sua boca comprimiu‑se. ‑ Aprendi: ama os teus inimigos... será que se pode amar realmente? Pode‑se amar alguém que persegue uma pessoa só porque tem outra cor? Sabe, Sr. Haller, que nos últimos dez anos mataram mais de trinta mil índios? Mortos simplesmente porque eram índios. E não apenas os homens, também as mulheres. e crianças! Fizeram‑se caçadas a eles, como a animais. Havia prémios por cada índio morto. E se encontravam cauchu ou uma quinta fértil na região da tribo, então a tribo era exterminada, e um grande‑proprietário branco tomava posse da terra vazia e embebida de sangue. Mas ninguém fala nisto, não aparece nada escrito em nenhum jornal, nenhum parlamento trata do assunto, abafa‑se a morte com silêncio... pois, são apenas índios!


‑ Você aprendeu muito, Moco ‑ disse Cliff mais uma vez, apoiando‑se em Ellen. Deu alguns passos com os sapatos de folhas e descobriu que os seus Pés já não ardiam e que podia andar, como se nunca tivesse tido as Plantas dos pés cheias de bolhas em sangue.

‑ Foi só por este motivo, que eu fui para os brancos. - Gaio Moco dirigiu‑se para fora da cabana. Lá fora as fogueiras ardiam de novo... um porco inteiro estava a assar sobre a lenha crepitante. Algumas mulheres estavam ocupadas a moer uma farinha de um fruto desconhecido, enquanto outras coziam bolos delgados e estaladiços dessa farinha acinzentada, em pedras planas e quentes. Moco abrangeu a aldeia e as pessoas com um amplo movimento de braços. ‑ Eu sei ‑ disse ele, sombriamente ‑ que nós também vamos perder a nossa terra e ser mortos, quando os fazendeiros chegarem a saber como esta terra é fértil. Por isso eu me tornei um aluno da missão, aprendi a vossa língua e observei o vosso modo de vida. Eu vi como vocês saem para a caça aos índios, como desportistas que querem ganhar uma medalha. Eu conheço‑os todos... esses assassinos... à igreja vão eles, ajoelham baixo e rezam, deixam‑se abençoar e depois sobem para os seus carros, para viajarem para matar. E eu aprendi para defender o meu povo deste perigo.

‑ Eles conhecem o mais alto grau da civilização ‑ disse Cliff sarcasticamente. ‑ Moco, uma pergunta: por que razão não nos mata?

‑ Vocês sempre me trataram como uma pessoa igual.

‑ Mas é o que você é! ‑ exclamou Ellen Donhoven.

‑ Não! ‑ Moco abanou a cabeça tristemente. ‑ Para a maioria dos brancos nós somos bicharada. ‑ Apontou para o lugar onde as cabanas se agrupavam. ‑ O meu povo quer cumprimentá‑los. Venham, por favor...

Mais tarde sentaram‑se em esteiras de palmeira, comeram a carne de porco e os bolos e beberam uma espécie de cerveja que tinha um sabor adocicado e que era espremida do sumo de rebentos de palmeira. Vinte raparigas nuas, magnificamente desenvolvidas, dançavam perante eles... estavam em pé num meio círculo, balançavam as ancas e os ombros e batiam com as suas elegantes pernas no chão. Para além disso, algumas mãos tamborilavam no tambor e quatro homens sopravam em flautas que tinham entalhado em bambu. Era tudo como outrora se via nos filmes coloridos em que povos desconhecidos aparentemente não faziam outra coisa, para além de festas e de dançarem. Mas aqui, no meio da selva brasileira, rodeado da amplidão inexplorada de rios, pântanos e mato, apesar de toda a felicidade, havia algo triste nos movimentos das bonitas raparigas nuas, um medo, um pressentimento da morte do seu paraíso.

‑ Nós todos pensámos que você estivesse morto, Moco ‑ disse Ellen. ‑ Foi empurrado para o rio?

‑ Sim, senhorita.

‑ E quem foi?

‑ Cascal.

‑ A minha suspeita! ‑ Cliff bateu com o punho no chão. ‑ Ele tentou tudo para obrigar a expedição a regressar. Como é que você saiu simplesmente do rio outra vez?


‑ As piranhas só atacam quando cheiram sangue. Eu não estava ferido ... mergulhei fundo e nadei para a margem, tão depressa quanto pude. Cascal ficou convencido de que eu tinha sido puxado para o fundo...

As raparigas na frente deles tinham parado de dançar. Sorriram amigavelmente e desapareceram para dentro das cabanas. Os tocadores de tambor e de flauta levantaram‑se e retiraram‑se. Os guerreiros colocaram‑se num círculo largo no sítio dos festejos. No rio, três barcos compridos fizeram‑se ao largo. Deslizaram silenciosa e rapidamente dali, impelidos pelas varas.

‑ Todos os dias eu envio patrulhas ‑ disse Moco. ‑ A nós não nos vão surpreender.

Ellen Donhoven cruzou as pernas e envolveu os joelhos. "Aqui estamos realmente seguros", pensou ela. "E eu no fundo atingi o objectivo da minha viagem. Ninguém me julgou capaz disto, todos a consideravam uma loucura e uma quimera, riram‑se de mim e escarneceram. Mas agora estou sentada aqui na selva inexplorada, numa tribo índia que ainda vive como as pessoas da Idade da Pedra... isto é tão fantástico que mal se pode acreditar." E então pensou nas mortes que tinham custado a este percurso e levantou os ombros, arrepiando‑se.

‑ Não havia uma rapariga, Moco? ‑ perguntou ela. ‑ Como é que ela se chamava? Ynama... não é?

‑ Sim. ‑ Moco olhou para a fogueira, sério.   

‑ Já a encontrou de novo?

‑ Sim.  

‑ Não parece estar alegre ‑ achou o Dr. Forster.

‑ Ynama está doente! ‑ O rosto castanho‑acobreado de Moco estava como uma máscara. ‑ Há meses que está deitada e não se consegue mexer.

‑ E só agora nos diz isso? ‑ Forster saltou. ‑ Onde é que ela está? Eu quero examiná‑la. Então quem é que a examinou e tratou dela?

Moco levantou a mão, na defensiva.

‑ Obrigado, doutor. Está um espírito maligno dentro dela...

‑ Moco! Você diz isso sendo um aluno da missão? Como pessoa esclarecida? Espírito maligno, tal coisa não existe!

‑ Não com vocês... mas aqui na floresta.

‑ Estupidez! Eu quero examinar a Ynama, Moco.

‑ Não! O feiticeiro está com ela. Há quatro semanas que ele fala com os espíritos. Não adianta nada. Ela não se pode mover. Mas vê e ouve tudo.

O Dr. Forster olhou para Ellen rapidamente. Ela percebeu esse

olhar e pousou a mão no ombro de Moco.

‑ E se fosse eu a examinar a Ynama? ‑ perguntou ela.

‑ Não, oh não! ‑ Moco saltou, parecendo horrorizado. ‑ Nenhuma mulher pode aproximar‑se dela. O espírito poder‑se‑ia dividir e saltar para si. Jatupua sabe isso com toda a certeza.

‑ Quem é Jatupua? ‑ perguntou Cliff Haller.

‑ O feiticeiro.

‑ Sempre o mesmo. O feiticeiro e o seu poder dos espíritos. Moco, lá fora enviam‑se foguetões à Lua, e vocês acreditam em espíritos malignos! ‑ Haller levantou‑se e puxou Ellen do chão. ‑ Isto é a vossa queda, Moco. Um dia, todos vocês ir‑se‑ão despedaçar nela. Vocês baixam a cabeça perante os espíritos malignos, e os brancos acertam‑vos no crânio! Onde está Ynama?

‑ Jatupua não vos deixa entrar na cabana.

‑ Deixe isso ser preocupação nossa.

‑ Querem causar a discórdia?


‑ A Ynama tem de ficar deitada rígida, até ao fim da sua vida na terra? ‑ Ellen Donhoven viu como a ideia trabalhava no cérebro de Moco, como ele lutava contra a crença nos deuses e se colocava contra a sabedoria da sua civilização. Ele tinha vivido e aprendido durante três anos entre os brancos... mas aqui na selva, era índio novamente, apanhado nas crenças místicas do seu povo.

‑ Tente... ‑ disse ele finalmente em voz baixa. ‑ Jatupua não poderá dominá‑la... e o espírito também não...

No caminho para a cabana do feiticeiro, Moco informou como Ynama tinha sido atacada pelo espírito maligno. Estava a cavar na horta, quando de repente, antes de começar a chover, fora atirado um raio ardente da nuvem e caíra na terra junto de Ynama. Depois seguira‑se um trovão enorme, Ynama tinha‑se baixado e querido fugir, mas então uma dor aguda tinha‑a atravessado, queimando‑lhe as costas, caíra por terra e não se conseguira mexer mais. E foi assim que Moco contou o que tinha acontecido, com um profundo respeito na voz. Era evidente que sabia que tinha sido uma trovoada, com relâmpagos e trovões... mas nunca tinha visto uma trovoada a paralisar uma pessoa. O Dr. Forster e Ellen olharam‑se e pensaram o mesmo. Cliff Haller tinha a sua própria opinião.

‑ Um choque, não? ‑ disse ele.

‑ Uma coisa assim pode acontecer. Já uma vez li uma coisa do género.

‑ Eu acredito antes numa transposição dos discos vertebrais. Esse estremecimento repentino, quando se endireitou, por causa do susto, uma rotação errada na espinha dorsal, e imediatamente salta para fora uma coisa que apanha determinados nervos. Pode chegar à anquilose e, em último caso, a uma paralisia como esta!

‑ Isso a mim parece‑me evidente. ‑ Cliff parou. Moco, que tinha corrido à frente deles, apontou para uma cabana particularmente grande e lindamente entrançada.

‑ E o que querem vocês empreender? Fazerem de "endireita"? Endireitar a vértebra?

‑ Algo parecido. ‑ O Dr. Forster acenou com a cabeça afirmativamente.

‑ Bom proveito, doc! Lavo daí as mãos. Ellen, suplico‑lhe... neste caso, dê ouvidos também a Moco. Se nós mexermos nesta Ynama e ela gritar, a tribo inteira cairá em cima de nós! Eles devem acreditar nos espíritos deles.

‑ Cliff, isso é impossível! ‑ Ellen soltou‑se da mão de Cliff comum safanão. ‑ Eu sou médica. Sei que a posso ajudar, e vou ajudá‑la!

‑ Mesmo havendo o perigo de se tornar uma cabeça mirrada?

‑ Isso seria a última coisa de que eu julgaria Moco capaz.

‑ A crença na Humanidade e na educação! Ellen, isso é que é um disparate! Mesmo que o Moco tivesse sido educado dez anos na civilização... no momento em que ele vive de novo com a sua tribo, é um índio! Isso deu‑nos ele a entender claramente.

‑ E se eu curar a Ynama, eles respeitar‑nos‑ão como deuses... isto é o outro lado da lógica.

‑ Se ... ! Estás assim tão segura?

‑ O diagnóstico será o primeiro a dizê‑lo.


Moco entrou na cabana. O grande quarto redondo estava iluminado por alguns pequenos recipientes de barro em que o óleo ardia. O cheiro fétido dispersava‑se através de um buraco na parede, mas deixava ficar um ar corroído na garganta. Ynama estava deitada ao comprido numa cama de peles de pantera. Era uma bonita rapariga, elegante e alta como as outras mulheres da tribo. O seu longo cabelo negro estava espalhado por baixo da cabeça como um pano. Perto dela, acocorado num tronco de madeira, estava o feiticeiro, Jatupua. Na mão, segurava um pedaço de madeira comprido com penas de ave do paraíso coladas e passava‑o constantemente sobre o corpo nu da doente. Assim que os brancos entraram levantou os olhos por um pouco e continuou depois o exorcismo silencioso. Moco dirigiu‑se a ele respeitosamente, curvou‑se e falou‑lhe depressa numa língua gutural. Jatupua abanou a cabeça. Moco endireitou‑se. "Como um a aceno de cabeça é internacional", pensou Ellen antes de Moco dizer qualquer coisa.

‑ Esclareça‑o, de que nós também somos feiticeiros. Nós também lidamos com os espíritos...

Moco hesitou, depois traduziu. Jatupua interrompeu o acariciar do corpo com a haste de penas e respondeu.

‑ Ele diz ‑ disse Moco deprimido ‑ que os vossos espíritos não são os nossos espíritos. E além disso vocês são brancos.

‑ Ah! ‑Cliff riu asperamente. ‑ Estão a ver, amigos, o problema da raça não é uma invenção dos fanáticos da pureza! Até na selva desconhecida está em jogo a cor da pele!

Ellen aproximou‑se de Ynama. Jatupua observava‑a com a cabeça baixa, e quando ela estendeu a mão, bateu com a haste no braço de Ellen. Ela estremeceu, saltou para trás e olhou em volta. O Dr. Forster tinha aberto a farmácia e procurava a penúltima injecção de anestesia. Moco impeliu o lábio inferior para a frente e segurou a mão de Forster.

‑ Você quer dar‑lhe uma injecção?

‑ Sim. Ynama não sentirá o encaixe da vértebra.

‑ Ela nunca apanhou uma injecção. Vai gritar.

‑ Esclareça‑os antes do que está a acontecer. E antes de mais, afaste o feiticeiro.

‑ Isso é impossível, doutor. Jatupua é mais poderoso do que um chefe. A mim pertencem‑me as pessoas, a ele os deuses.

‑ Então diga a Ynama que ela o deve mandar embora.

‑ Ele vai amaldiçoá‑la.

‑ Ela vai sobreviver.

‑ E ele vai odiar‑vos.

‑ Isso também se suporta. ‑ O Dr. Forster tinha encontrado a ampola, cortou‑lhe o topo e puxou a injecção. ‑ Moco, você quer, apesar de tudo, que a Ynama possa correr outra vez.

‑ Por isso, sacrifiquei‑me eu aos deuses todos os dias.

‑ E diz isso sendo um baptizado de Cristo?

‑ Aqui estamos na selva, doutor, aqui o mundo é diferente de Manaus.

Moco dirigiu‑se de novo a Jatupua e falou com ele. Depois falou com Ynama e ela gritou qualquer coisa ao feiticeiro, que soava como uma ordem. Jatupua levantou‑se: era baixo e gordo e chegava apenas ao peito de Cliff Haller. Mas os seus olhos cintilavam como carvão em brasa, e o seu rosto largo não era apenas uma careta devida à pintura selvagem. Soltou um som arrulhado e levantou depois a haste de penas, apertou‑a com as mãos e partiu‑a no ar. Ynama soltou um grito estridente... Moco recuou até à parede.

‑ Agora começou ‑ disse Cliff seriamente. ‑ Eu avisei‑os!


‑ Ele está a amaldiçoar‑nos ‑ balbuciou Moco. ‑ O rosto dele reflectia um medo real. ‑ Chamou o deus maior para a vingança.

‑ Então nós esperamos por ele, Moco! Como é que ele vem até nós? Como serpente gigantesca? ‑ O Dr. Forster ajoelhou‑se perto de Ellen com a injecção.

‑ Não faça troça ‑ segredou Moco. ‑ Ele faz cair mosquitos venenosos sobre nós...

‑ O nosso doc será um herói! ‑ Cliff não perdia Jatupua de vista.

O feiticeiro estava parado à porta, soltando sons como grunhidos. E a cada som, Moco ficava mais pequeno, até ter‑se deitado na terra, o rosto apertado contra o chão, fulminado pelo apelo à vingança dos deuses. Ynama olhava o Dr. Forster e Ellen Donhoven com olhos trémulos. Mas não soltou qualquer grito quando Forster enfiou a agulha na sua coxa e lhe injectou a anestesia. Depois sorriu subitamente, foi o momento no qual ela pairou na não gravidade, no qual se sentiu como uma pena, para depois mergulhar no esquecimento.

‑ Leve o velho daqui para fora, Cliff ‑ disse Forster. ‑ Se ele vê o que nós temos de fazer a Ynama, julga que a queremos matar.

- É assim tão mau?

- Já alguma vez assistiu a um encaixe de uma vértebra da espinha? É segundo a lei da alavanca. No local onde a vértebra saltou para fora, eu tenho de dobrar o corpo de tal maneira e comprimi‑lo contra a espinha dorsal até ela se fechar bem outra vez. Para o leigo, isto parece uma tortura.

Ellen Donhoven tinha virado Ynama de barriga para baixo. Apalpou‑lhe as costas e bateu com os dedos do meio num determinado sítio.

‑ Aqui ‑ disse ela. ‑ A sexta vértebra lombar. Bem distintamente sensível. Temos de tentar.  

‑ Tentar... isso soa a incerto! ‑ Cliff Haller agarrou Jatupua, que emitia os sons semelhantes a grunhidos, pelo ombro e empurrou‑o para fora da cabana. O feiticeiro não se defendeu... mas os seus sons quase animalescos aumentaram e atraíram os outros homens. Corriam para aquele lado armados de zarabatanas e flechas e cercaram a cabana. Haller deixou o velho parado à porta e foi para dentro do quarto redondo outra vez.

‑ Tu tiveste a ideia maluca de investigar os venenos índios ‑ disse ele a Ellen, que acabava de virar Ynama de lado. ‑ Podes experimentá‑los daqui a pouco, se a vossa terapia fracassar. Lá fora estão duzentos guerreiros que nos querem inundar completamente com o suco desconhecido.

‑ Moco. ‑ O Dr. Forster endireitou‑se. ‑ Fale com esta gente. Diga‑lhes que estamos a ajudar a Ynama.

Moco ficou calado e abanou a cabeça. Ainda estava deitado por terra, com o rosto para baixo. Cliff entendia‑o... um chefe apenas é poderoso quando os deuses o querem. Irritando‑os ele, toda a população tinha o direito de o matar.

‑ Bem, então vamos lá ‑ disse o Dr. Forster. Ajoelhou‑se em frente a Ynama, comprimiu o seu joelho contra corpo dela torceu-lhe o corpo


como uma corda. Ao mesmo tempo comprimiu a mão espalmada contra a vértebra deslocada. Ellen segurava a cabeça de Ynama anestesiada ao alto e mantinha‑lhe a língua fora da boca, para que não sufocasse na anestesia. Não era uma bonita visão, e Cliff exprimiu‑se da seguinte maneira:

‑ Ouve‑se sempre dizer como os médicos trabalham elegantemente. Quando vos vemos, pensa‑se que estamos sentados a assistir a luta livre!

O Dr. Forster abanou por três vezes o corpo dobrado de Ynama, parecia que queria parti‑la como uma vara, depois ouviu‑se um estalo nitidamente, e Forster deixou a rapariga deslizar cuidadosamente na esteira.

‑ Parabéns, Rudolf... ‑ disse Ellen, baixo. Começou a suar subitamente, e sabia que era de puro medo.

‑ Esperemos que os nervos também estejam libertos de novo.

‑ As vértebras estão bem. - Forster apalpou, ainda mais uma vez, a espinha dorsal.

‑ Quando ela acordar da anestesia, deve poder‑se mover.

‑ Isso seria fabuloso. ‑ Cliff enfiou as mãos nos bolsos. ‑ Depois podemos fazer dos índios o que quisermos. Vão‑nos obedecer cegamente.

Deixaram a cabana e ficaram parados lá fora. O anel dos guerreiros que olhava para eles sombriamente já não lhes metia medo. Até Jatupua estava agora calado. Esperava a derrota dos brancos. Esperava a vingança dos deuses. No interior da cabana, Moco tinha‑se arrastado para junto de Ynama e levantou‑lhe a cabeça para o seu colo. Acariciou‑lhe o cabelo e o rosto e falou‑lhe suavemente. Beijou‑a e abraçou‑a, e ela acordou com o seu aperto, mexeu‑se e abriu os olhos.

‑ Gaio ‑ sussurrou ela. ‑ Gaio, eu estava com os deuses.

‑ E estás curada? Podes mexer‑te, podes andar outra vez?

‑ Não sei. Ele levantou‑a e ela pendurou‑se nos seus braços, a poucos centímetros do chão. Os olhos dela chamejavam de medo.

‑ Tenta, Ynama...

‑ Tenho medo, Gaio.

Ele deixou‑a deslizar até assentar os pés, sempre segurando‑a ainda.

‑ Sentes o chão?

‑ Sim.

‑ Mexe as pernas.

Ynama assim fez ‑ tinha um grito preso na garganta ‑, lançou a cabeça para trás e abriu os braços:

‑ Eu sinto o chão ‑ balbuciou ela. ‑ Eu sinto‑o. Consigo estar em pé...


‑ E andar... Ynama... e andar... ‑ Moco soltou‑a e deu três passos para trás. Ynama balançou, procurou apoio, não o encontrando. Então enrijou o seu corpo e, cuidadosamente, tacteando muito devagar, impeliu um pé à frente do outro. E depois mais uma vez e outra vez... quatro, cinco vezes... até ela andar em volta, cambaleante, sempre em círculo, ao longo da parede da cabana, e Moco parou à porta, juntou as mãos e rezou ao deus branco, que ninguém conhecia aqui na selva e que era mais poderoso do que todos os deuses. Depois tomou a mão de Ynama e saiu com ela para o ar livre. Calados, os homens fixaram o olhar em Ynama e Moco. Observavam o seu passeio, e ela dava voltas à frente deles como se nunca tivesse estado paralisada, rindo e batendo as palmas Ao mesmo tempo. Jatupua, o feiticeiro, deixou o círculo de cabeça caída e afastou‑se. Já ninguém lhe dava atenção, ninguém falava com ele. Os deuses tinham‑no expulsado, o seu poder tinha‑se evaporado como nevoeiro. Mesmo quando pegou num pequeno barco e se afastou da margem, ninguém perguntou onde ia... sozinho, embrulhado no seu manto de penas, acocorou‑se numa piroga e deixou‑se ir à deriva. Tinha‑lhe acontecido a grande tragédia do insucesso... aqui, na selva, onde apenas a força era válida, a sua queda no escuro duplicava rápida e profundamente. Apenas Moco se dirigiu para baixo, para o rio e olhou o barco à deriva. Bastante pensativo, voltou para junto de Cliff, do Dr. Forster e de Ellen.

‑ Ynama está curada, mas Jatupua tirou‑lhe a alma. Ele vai vingar‑se ‑ disse ele. ‑ Um feiticeiro derrotado é um homem morto... ele vai ter de viver como um escaravelho. Vou deixar matar Jatupua.

‑ Não! ‑ Ellen segurou Moco. ‑ Não deve fazer isso. Seria assassínio.

‑ Aqui existem outros conceitos, senhorita. Se não matarmos Jatupua, vamos nós morrer. Ele vai pôr os brancos atrás de nós.

‑ Apenas por que foi desacreditado uma vez? ‑ O Dr. Forster riu.

‑ Moco, ele não vai sacrificar o povo dele inteiro por isso. Eu acho que ele vai construir uma cabana, um pouco abaixo da aldeia, e continuar a viver como eremita.

‑ Acredita nisso, doutor? Eu conheço melhor a minha raça. Seremos todos odiados por ele, porque o afastámos. As pessoas aqui pensam como os animais... devora, senão és tu o devorado. É uma moral diferente da vossa, ‑ Moco sorriu debilmente. ‑ Vamos esquecer‑nos do que vai ser. Queremos estar alegres e festejar a nova vida de Ynama.

Uma hora mais tarde dois barcos seguiram secretamente a piroga de Jatupua. Cliff deu por isso, mas ficou calado. "Oxalá ainda o encontrem", pensou ele friamente. "Como este paraíso se pode tornar facilmente um inferno..." à noite sentaram‑se na sua cabana e beberam a cerveja de palmeira adocicada em copos de argila. Ellen já estava deitada na sua cama de folhas e viu como Cliff esvaziava os bolsos: Uma pistola. Três carregadores com munições. Carregadores vazios. O mapa aéreo todo amarrotado. Uma faca com uma protecção. Uma máquina fotográfica minúscula, do tamanho de um dedo. Cliff balançou‑a na mão, lançou‑a ao ar e apanhou‑a de novo.

‑ Isto é a coisa mais valiosa que uma pessoa pode trazer consigo nos últimos anos ‑ disse ele, pensativo. ‑ Diabo, eu tinha de a trazer Para a floresta, mesmo que custasse cem vidas. O que aqui está dentro, meus amigos, é o valor da vida de alguns milhões... assim deixa‑se de ser melindroso. Percebem?

‑ Apenas limitadamente. ‑ O Dr. Forster esticou‑se. ‑ Eu proponho, Cliff, que você se faça à Caminhada sozinho, como o Pobre Jatupua. Você tem a sua missão e é injusto intrometer‑se noutra coisa.

‑ O que é que você diz, Rudolf? ‑ Ellen Donhoven virou‑se para o Dr. Forster. ‑ Eu fico com o Cliff, já sabe isso...

‑ É a coisa mais louca em que você jamais pensou.

‑ Ainda está livre para voltar pelo mesmo caminho ‑ disse Cliff.

‑ Você bem sabe que eu não posso fazer isso. Eu só deixo a Ellen sozinha consigo quando estivermos todos em segurança. Talvez você fique mais razoável num outro ambiente.

‑ Vai ser sempre um aventureiro, Cliff.


‑ Disparate. Este vai ser o meu último job. ‑ Cliff Haller também se deitou. Enfiou a máquina fotográfica numa bolsa de cabedal que trazia ao pescoço, num cordel de nylon. ‑ Quando entregar o filme e a informação, vou deixar a CIA e dar um passo para a última porta, para que ela se possa fechar bem.

‑ E que é que você quer fazer então? Vai viver de quê?

‑ Da minha profissão certa. Sou professor.

‑ É o quê!?

‑ Professor numa faculdade. ‑ Cliff tossicou. ‑ Ensinava História Moderna.

 

Ficaram três semanas junto de Moco e do seu povo. Enquanto Cliff Haller ia caçar com os seus novos amigos vermelhos e praticava o disparo com a zarabatana, a morte silenciosa que ali na selva era mil vezes mais perigosa do que as metralhadoras que largavam três mil tiros por minuto, Moco mostrava aos seus outros dois convidados, com orgulho, diversos venenos desconhecidos com que eram preparadas as setas e as lanças. Demonstrou o seu efeito assustador em animais. Mandou disparar sobre porcos e aves, arranhou a pele dos peixes com lascas de madeira envenenadas, mandou apanhar uma pantera e abriu a pele, apenas ligeiramente, com uma faca envenenada. O efeito era sempre mortal. às vezes era a rapidez de segundos, outras vezes a luta dos animais com a morte durava minutos. Ellen dominava‑se e fazia crer a si própria que os animais eram sacrificados em prol da investigação... mas, apesar disso, era assustador assistir como os animais perdiam toda a força, davam voltas de lado e morriam contraídos. Durante dez dias, o Dr. Forster e Ellen dissecaram os cadáveres e averiguaram a modificação nos órgãos. Não encontraram nada. De vez em quando, Cliff estava com eles e abanava a cabeça.

‑ Agora já sabem que são venenos dos nervos ‑ disse ele. ‑ E então? O que concluem daí? Os vossos venenos químicos são igualmente bons. Valeu a pena penetrar na selva para isto? Numa noite, depois da refeição, Cliff Haller disse:

‑ Não vos quero dizer sempre a mesma coisa, mas não se encontrou o Jatupua. Ele como que desapareceu pelo chão adentro. Procurámo‑lo desde há doze dias. Já é tempo de partirmos, gente. Estou a sentir o perigo a formar‑se. Moco também se preocupa. Só que ele não fala sobre isso. Metade dos seus guerreiros está em patrulha permanente. Examinam uma zona de trinta quilómetros quadrados. O que na selva é monstruoso. Observam o rio num comprimento de cinquenta quilómetros. Ontem, um helicóptero sobrevoou o curso inferior. Os homens pensaram que era um insecto gigantesco que os deuses tinham enviado, e esconderam‑se. Agora está lá o Moco a esclarecê‑los sobre que tipo de armamento que têm os brancos. Hoje de manhã habituei quatrocentos guerreiros aos estampidos dos tiros das armas... custou‑me vinte e quatro carregadores... sinto um aperto no coração... temos que sair daqui, antes que seja demasiado tarde.

‑ E Moco e a sua tribo? ‑ perguntou Ellen.

‑ Ele está a fazer um plano de evacuação da aldeia. Quer povoar uma região nova e ir com a sua tribo para lá.

‑ E tudo por nossa causa. Cliff, acho que trago má sorte onde quer que apareça.


‑ Que ideia, baby! ‑ Haller deu um beijo rápido na testa de Ellen. Havia semanas que era o único carinho que trocavam. Beijos fugidios, apenas um toque nos lábios, um mero contacto: "Nós pertencemos um ao outro." ‑ A cura de Ynama pôs tudo a rolar, e para Moco a saúde de Ynama é merecedora de uma caminhada para uma nova região, num outro rio desconhecido.

‑ E quando é que devemos partir? ‑ perguntou Forster.

‑ O Moco acha que dentro de seis dias. Quer viajar com setenta barcos. Separamo‑nos dele nas proximidades do rio Juruá. Ele continua para sul, para o rio Baboná, na região dos Xeroanes. Vai dar em luta sangrenta, mas os homens de Moco têm umas óptimas setas envenenadas; vocês já as conhecem. - Cliff tentou um sorriso irónico, mas falhou.

‑ Sempre o mesmo, minha querida. Quer seja no velho mundo, quer seja no inexplorado: matam‑se uns aos outros pelo espaço vital.

 

Nessa semana, o general Aguria construiu uma rede contínua em toda a região entre o rio Repartimento e o rio Juruá. José Cascal e Rita Sabaneta interrogavam todos os índios que vinham da floresta ao rio para fazerem negócios de troca. Os índios, nus na maioria, Por vezes também vestidos com farrapos, recebiam cigarros e uma pequena garrafa de cachaça de Cascal; para o caso de verem três brancos, dois homens e uma mulher prometia‑lhes uma caixa inteira cheia de cigarros e quatro garrafas grandes de cachaça. Mas a floresta calava‑se. Cliff e os seus companheiros pareciam ter sido sugados pelo inferno verde. O general Aguria, que tinha aterrado no rio Juruá num hidroavião, estava de visita a Cascal, sempre inquieto.

‑ Oxalá a sua suposição esteja certa ‑ disse ele preocupado. ‑ Se o Cliff nos prega outra partida, isso para nós é mortal. As suas fotografias são dignas de uma autêntica guerra!

‑ Onde é que ele estará? ‑ Cascal pôs o dedo no mapa. ‑ Para sul, seria uma loucura completa. Aí, levaria dois anos a atravessar a floresta. Regressar pelo caminho antigo? Impossível, pois deve calcular que aqui já não há mais nenhum buraco para se escaparem. Então, apenas lhe resta o caminho para o rio Juruá. É como se tivesse sido apanhado do ar.

‑ Já tinha pensado nisso, precisamente.


‑ Mas isso não é possível. Como é que ele indicava a sua posição sem aparelho de rádio? Onde é que o helicóptero o podia procurar de noite? Não se trata aqui de um pedaço de prado, mas de algumas centenas de quilómetros quadrados. Oh, não, general, Cliff Haller vai sair da floresta no rio Juruá! Temos apenas de ter paciência. E ele conta com a nossa impaciência. Agora tem tempo. Pode desperdiçar semanas. E pensa "Cada semana que passa eles vão ficar mais relaxados." Depois de um mês, de dois meses, já estão a dormir em pé. Depois de três meses já ninguém sabe mais, de modo algum, por que razão os empurram para a vigilância. E quando estivermos prontos, então ele vem, e lá se vai ele embora! ‑ Cascal bebeu um golo de sumo de fruta. ‑ Tomemos cuidado com o sossego, general, pense nos gatos que podem ficar sentados, imóveis, em frente de um buraco de rato durante horas e depois atacar com as unhas afiadas. Mesmo com estas trocas de impressões, a vida no rio Juruá era como habitar num paraíso. Rita era uma amante da qual ele, Cascal ‑ isso tinha‑se ele proposto ‑, tão pouco se separaria, quando tivesse cumprido o seu trabalho ali. "Vou levá‑la comigo para Manaus", pensava. "Talvez case mesmo com ela. Sou um homem de trinta e cinco anos, já é tempo de pensar nisso, em ter um lar firme e uma mulher que cozinhe, lave e aí lime o dia‑a‑dia sombrio. Quem o poderá fazer melhor que a Rita?"

 

Num domingo, trabalhadores de uma equipa de levantamentos topográficos que atravessavam a selva para emparcelar a terra informaram que tinham apanhado um índio velho e enfraquecido numa piroga no rio. Não sabia uma palavra de português, e o intérprete índio traduziu que se chamava Jatupua, vinha de um rio, o Numumu, um rio que não estava assinalado nos melhores mapas, e que três brancos o tinham expulso da sua tribo. Dois brancos e uma mulher. Mágicos brancos, que tinham ofendido os deuses. Cascal deu um pulo quando o comandante militar em Carauari lhe trouxe o radiograma.

‑ São eles! ‑ gritou Cascal, beijando Rita em frente de todos os presentes. ‑ São eles! No rio Numumu... onde é isso?

‑ Não faço ideia. Mas deve ser um rio mais perto do Coari do que do Repartimento.

‑ Ah, sim! ‑ exclamou Cascal, curvando‑se sobre o mapa. ‑ Cliff Haller descreveu um arco e andou para o Juruá. O único caminho que tinha! ‑ Olhou para cima. ‑ O general sabe disto?

‑ Telefonaram‑lhe há dez minutos.

‑ E que disse ele?

‑ Pouca coisa. ‑ O capitão sorriu irónica e amplamente.

‑ Apenas uma palavra: Alarme!

‑ Isso já é suficiente.

Atrás de Cascal, o telefone tocou. Voltou‑se e atendeu. Calado, ouvia a voz vinda da outra extremidade do fio. Os seus olhos brilhavam como se tivesse febre. Depois desligou e olhou o capitão, Rita e os outros soldados com um rosto desfigurado de alegria.

‑ Era o general Aguria. As companhias de pára‑quedistas II e III estão prontas a embarcar e vão voar para a região de helicóptero. Montaram flutuadores e portanto podem pousar no lendário rio Numumu. Eu mesmo vou ser apanhado dentro de meia hora e vou voar até à zona de combate.

‑ Parabéns ‑ disse o capitão. ‑ É um grande êxito para si. Apenas tem de se conseguir pensar com lógica. ‑ Cascal olhou para Rita. Os olhos dela ardiam, os lábios cheios e sensuais tremiam‑lhe.

‑ Vou trazê‑lo vivo ‑ disse Cascal rouco. ‑ Depois podes despedaçá‑lo, fera...

 

Vinham de todos os lados. Os espias de Moco informaram que uns homens brancos pairavam suspensos de uns mosquitos gigantescos que zumbiam e que tinham umas grandes asas redondas. Outros sentinelas no rio informaram através de batidas de tambor que os "mosquitos" tinham aterrado no rio e partido devagar.

‑ Agora é que está feito ‑ disse Cliff. ‑ Têm‑nos cercados. Vieram três dias mais cedo... dentro de três dias teríamos submergido e deixado a aldeia.

‑ E agora vai dar outra vez em morte ‑ disse Ellen, arrepiando‑se.


‑ Vão chover mortos. ‑ Cliff viu como Moco dividia os seus guerreiros em grupos isolados. As mulheres e as crianças foram postos nos barcos, os homens idosos dirigiam e remavam. Depois, Moco dirigiu‑se a Cliff e Ellen. O Dr. Forster estava em baixo, na margem a aplicar ligaduras em dois índios que se tinham ferido em espinhos afiados por causa da rápida retirada.

‑ Vamos levar as mulheres e as crianças até ao rio Danauri - disse Moco. Tinha envelhecido anos, naquelas horas. Rugas profundas atravessavam o seu rosto ainda jovem. ‑ Este rio é um rio muito grande e caudaloso em que ninguém os pode seguir. Lá, eles vão esperar por nós.

Estavam sempre a chegar espias novos dos arbustos. Três pequenos barcos estavam atracados. Trocavam‑se palavras apressadas. Moco acenava sempre de novo com a cabeça afirmativamente e fazia sinais ferozes no ar.

‑ Eles cercaram‑nos ‑ disse. - Mas vêm numa larga fila indiana. Isso é um erro. Vou colocar os meus guerreiros nas árvores e de lá vão matar com a zarabatana cada soldado que virem. Na floresta não há perigo que nos ameace, lá não vão mais para a frente. Mas o avião no rio... Não o podemos atacar com os nossos barcos.

‑ Do helicóptero encarregamo‑nos nós. ‑ Cliff Haller enfiou o dedo na boca e lançou um forte assobio. O Dr. Forster, na margem, deu uma volta. Pegou na sua mala de farmácia e correu para a aldeia.

‑ Temos duas espingardas e três pistolas ‑ disse Haller. ‑ Tem de se conseguir acertar no motor com tiros certeiros. Então ficarão desamparados. É a nossa única oportunidade. ‑ Queria dizer ainda mais qualquer coisa, mas a palavra ficou‑lhe entalada na boca. Ynama apareceu por entre as cabanas, com uma zarabatana comprida e à sua frente tinha uma aljava cheia de setas envenenadas.

‑ Então o que significa isto? ‑ perguntou Cliff. ‑ Moco, mande a Ynama ter com as outras mulheres.

‑ Ela não quer, Cliff. ‑ Os olhos de Moco faiscavam. ‑ A senhorita Ellen não fica também connosco, com a pistola na mão? Ynama é como Ellen. Não me abandona.

‑ Correm‑me as lágrimas perante tanto heroísmo! ‑ gritou Cliff. ‑ Não estamos aqui a realizar nenhum filme de Hollywood; trata‑se do raio da própria vida! Moco, pegue na sua Ynama e afaste‑a. O vosso povo ainda precisa de vocês. Eu assumo o comando aqui.

‑ Eu teria de cuspir em mim próprio, senhor ‑ disse Moco, solenemente ‑,se corresse agora para junto das mulheres. Esta luta também é com o meu povo, e eu sou o seu chefe!

‑ E foi para isso que você frequentou três anos a escola da missão? - Cliff riu bruscamente. ‑ Moco, agradeço‑lhe.

‑ De quê?

‑ Pela sua maldita estupidez, de se pôr agora à frente dos cães com uma amizade sincera.


Ao longe ouviam‑se tiros isolados, depois um estalar estridente: metralhadoras. Moco acenou aos seus guerreiros. Os vultos pintados desapareceram na selva como espíritos. Todos tinham a sua missão, todos sabiam o que havia a fazer: matar! Matar todos aqueles que viam. Matar silenciosamente... com umas setas sopradas cujos bicos eram envenenados. Uma seta que era disparada para baixo, para a sua vítima, do nada, do tecto verde da floresta. Lentamente, com um crepitar forte, três helicópteros aproximaram‑se do rio. Impeliram‑se esforçadamente através da água com os seus flutuadores. Esta era a última informação que tinha chegado à aldeia. Depois quebrou‑se a união dos guerreiros no rio.

‑ Com que então três helicópteros. ‑ Cliff Haller levantou as sobrancelhas. ‑ Nunca vamos conseguir. Eu proponho que a Ellen e você, doc, acenem com qualquer coisa branca quando os indivíduos estiverem por cá e se deixem encontrar e levar. A vocês ninguém fará nada, e a ti muito menos ainda, baby... eles querem é a minha cabeça.

‑ E tu? ‑ perguntou Ellen.

‑ Eu vou tentar avançar sozinho através da selva.

‑ És doido ‑ disse ela. ‑ És totalmente doido. Ficamos todos juntos.

Do rio ouvia‑se o estalar dos motores no ar. Quase ao mesmo tempo, as chamas crepitaram nas cabanas atrás de Moco. Moco queimava a sua aldeia.

 

Capitulo 6

Cascal estava acocorado no segundo helicóptero, na cabina de vidro à prova de bala, atrás de uma metralhadora, observando a margem do rio. Eram aviões especiais, construídos e preparados para a selva e para a luta com os índios. Tinham uma pintura de disfarce, com manchas verdes e amarelas, e trabalhavam como insectos gigantescos. Junto de Cascal e à sua frente estavam ainda sentados cinco soldados brasileiros; um jovem segundo‑sargento da aviação pilotava o helicóptero. Cascal tinha o aparelho transmissor preso à cintura e estava em contacto com todas as tropas. Nos seus auscultadores cruzavam‑se as informações dos diversos grupos... pára‑quedistas que avançavam lentamente ao encontro do acampamento dos índios, os outros dois helicópteros, que com as suas metralhadoras pesadas passavam a pente fino a selva que chegava até à margem, um grupo de especialistas que tinham sido postos no solo para cortarem a retirada. Eram guerrilheiros experientes, que estavam na selva como em casa. De todos os lados, chegavam relatos aos ouvidos de Cascal.

‑ Estamos a ver uma série de barcos com mulheres e crianças. Querem fugir para um afluente do rio. Vamos persegui‑los.

‑ Movimento inimigo a trezentos metros à frente do acampamento. Nove mortes certas com setas envenenadas. Os indivíduos estão acocorados nas árvores, mal se conseguem ver.

‑ Aqui o tenente Correires. Não avançamos mais. à nossa frente está um pântano. Na tentativa de o atravessar, dois homens afogaram‑se, sete foram mortos com setas. Ao longo de nós está um forte grupo de índios! Vamos tentar afastá‑los com granadas.

‑ Aqui, grupo III. Fizemos dois prisioneiros. Dizem, que o chefe deles se chama Moco.

Os olhos de Cascal ficaram maiores, depois praguejou.

‑ Isso não é possível ‑ murmurou ele, passando a mão pela testa molhada de suor. ‑ Moco? As piranhas devoraram‑no. Eu próprio vi isso. ‑ Premiu o interruptor e estabeleceu ligação dali com todos os aparelhos. ‑ Ouvi agora mesmo ‑ gritou pelo intercomunicador ‑ que esta tribo é de um tal Moco. Eu conheço Moco. É o homem mais perigoso de todo o rio. Autorizado pelo general Aguria, ordeno que esta tribo seja exterminada. Não se vão fazer nenhuns prisioneiros.

Uma ordem de morte. Um apelo ao extermínio. E ninguém no mundo se iria preocupar. Ninguém chegaria a saber. E se alguém chegasse a saber, calava‑se e fechava vergonhosamente os olhos. Nenhuma ONU se ocuparia disso, nenhum conselho de segurança, nenhuma comissão dos direitos do homem, eram meros índios! Apenas uma voz respondeu a Cascal de onde vinha, não se podia confirmar. Cascal presumiu que fosse o grupo no afluente.

‑ Ordem entendida. Também as mulheres e as crianças?

Cascal olhou fixamente para o rio. Sobre a margem desbravada estavam nuvens de fumo da aldeia a arder, as chamas lançavam‑se a metros de altura no céu azul. "Se há extermínio, então que seja total", pensou.

‑ Sim! ‑ disse, clara e sobriamente para o intercomunicador. ‑ Também as mulheres e as crianças. Também são índios!

E a voz na selva:


‑ Começaram a movimentar os barcos. Vamos começar o extermínio.

Cascal desligou. Com olhos ardentes olhou para o cais de embarque, em baixo, que estava igualmente em chamas. "Não me escapam",pensou. "Agora já não. Têm à sua volta um anel de armas. E vou colocar o Cliff Haller aos pés de Rita, como lhe prometi. Então ela poderá fazer com ele o que quiser. Por isso, como ela o odeia, vai primeiro castrá‑lo a sangue‑frio, antes de o matar". Encolheu os ombros e olhou a margem através da mira da metralhadora. Lentamente, o helicóptero passou sobre a ponte em chamas. Então começou a disparar, a disparar totalmente ao acaso pelas cabanas dentro, mas agora era uma satisfação para ele ouvir o crepitar das MG. Embriagava‑o, participar neste extermínio. .

 

Cliff Haller e o Dr. Forster ocuparam um lugar no emaranhado da margem do rio. Moco e Ynama tinham desaparecido... correram para junto dos guerreiros na floresta, quando os helicópteros desceram para o rio. Ellen Donhoven escondeu‑se num buraco atrás das cabanas em chamas. Era uma cova onde as mulheres índias tinham enterrado antes grandes cântaros com vinho de palmeira, para que fermentassem com todo o sossego. Agora servia de abrigo para uma pessoa e Cliff ordenou que Ellen ali permanecesse, totalmente indiferente ao que acontecesse à sua volta.

‑ Pela última vez! ‑ gritou, quando ela abanou a cabeça numa oposição muda. ‑ Tu vais‑te esconder no buraco... ou, mais uma vez que diabo, eu tenho de te pôr KO. Põe‑te lá dentro! O que preferes? Obedecer, ou um forte murro nos queixos?!

Ellen fixou o olhar em Cliff, como se o mundo estivesse a acabar. Também à sua volta não parecia outra coisa. Depois lançou‑se ao pescoço de Cliff, beijando‑o hesitante, virou‑se, abraçou o Dr. Forster e beijou‑o igualmente. Haller sorriu ironicamente.

‑ Quando se trata de morrer, todos são boas pessoas! ‑ deu um empurrão para o lado de Forster. ‑ Se sobrevivermos a esta porcaria aqui, temos de esclarecer, finalmente, qual de nós os dois vai ficar com a Ellen. ‑ olhou para Ellen, mas ela saíra a correr dali e já se acocorava na cova atrás das cabanas em chamas. ‑ Vamos, doc... ao trabalho. Dos pára‑quedistas não tenho medo, eles vão andar na floresta... mas os malditos helicópteros... Rebentam com o lado fraco. Você sabe mesmo disparar bem?

‑ Eu estive dois anos na infantaria.

‑ Ali, então...

Correram para a margem, sempre ao longo da orla da floresta, de cujo muro verde não estavam seguros. No rio lançaram‑se imediatamente à água por baixo de um arbusto suspenso e de um tronco grosso caído. Matéria‑prima para uma nova canoa, que nunca mais seria acabada.

‑ Ah! ‑ disse Cliff, quieto, quando o primeiro aparelho surgiu com os seus flutuadores na curva do rio. - São 14. Botes de fabrico antigo. Valem ouro nas acções contra os índios... foram sacados há sete anos do activo da Luftwaffe. Têm o depósito atrás, onde acaba a cabina e começa a cauda de libelinha. Está a ver o sítio, doc! Um metro depois da frente, onde está calculado o ponto de quebrar.

‑ Estou a ver, Cliff.


‑ Aponte para aí. É o ponto vulnerável da fera. Dificilmente explodirá, seria por acaso, mas vamos esgotar‑lhe o combustível. Atenção!

Esperaram com as espingardas apontadas até os dois primeiros helicópteros estarem bem colocados na mira. Então dispararam ao mesmo tempo... quatro vezes, um depois do outro, sempre no mesmo ponto.

‑ óptimo! ‑ disse Cliff. ‑ óptimo, doc! Estão a baixar!

Naquele momento, uma labareda cresceu para fora da traseira do primeiro helicóptero. Cliff Haller e o Dr. Forster mergulharam involuntariamente... depois, uma explosão despedaçou o primeiro aparelho, com uma detonação indescritível; rodopiaram vidros, pedaços de aço e farrapos de corpos humanos através do ar quente. Os outros dois helicópteros pararam imediatamente a viagem... o último virou e continuou a deslizar para a outra margem, o segundo ficou parado e moveu‑se desamparado para o meio dos destroços e dos cadáveres despedaçados. A água começou a fervilhar... milhares de piranhas precipitaram‑se sobre os pedaços humanos e cobriram‑nos. No helicóptero número dois, Cascal fixava o olhar horrorizado no extermínio dos homens da frente.

‑ Foi o Haller! ‑ gritou ele ao piloto. ‑ Está atrás de nós! Fez girar a sua MG em volta e disparou uma rajada mortal, ceifou a margem e bateu então com os punhos na MG, pois o helicóptero não se movia. Por cima dele, a rotação da hélice extinguiu‑se. A vibração da fuselagem morreu. Um silêncio quase sinistro envolveu‑o.

‑ O que é que se passa? ‑ gritou Cascal. ‑ Para a margem, estou a mandar!

‑ Estamos parados. ‑ O segundo‑sargento, atrás da alavanca, voltou‑se. ‑ Eles atingiram o depósito, está a esvaziar...

‑ Isso quer dizer que estamos abandonados no rio? ‑ vociferou Cascal.

‑ Sim.

‑ Não há depósito para emergências?

‑ Não.  

‑ Temos de ir para a margem! Nem que seja a nado!

Os soldados não responderam. Cascal também não, e continuou a vociferar. Viu que era impossível nadar. No sítio em que o helicóptero número um estava a boiar, a água borbulhava e os corpos brilhantes como prata dos peixes assassinos precipitavam‑se das ondas oleosas. Até caíam sobre os pedaços de chapa que flutuavam, porque estavam salpicados de sangue e cheiravam a comida.

‑ Então vamos a remar! ‑ gritou Cascal depois de recuperar do horror inicial. ‑ Vão disparar sobre nós, nos flutuadores, como se estivéssemos numa carreira de tiro. Sois todos cobardes? ‑ vociferou Cascal.


‑ Não. Mas também não fazemos nada absurdo ‑ disse o segundo‑tenente, alto. Rangendo os dentes, Cascal sentou‑se atrás do vidro à prova de bala e fixou o olhar na margem. Além, a aldeia de Moco ruía em chamas crepitantes, algures estava Cliff Haller à espera de novos alvos, e ele, Cascal, estava ali sentado numa couraça de vidro, condenado à imobilidade e obrigado a ver como Cliff, provavelmente, arranjava uma possibilidade de se escapar ao inimigo. Se conseguisse romper através do anel, por enquanto podia mergulhar novamente nas florestas, depois começava a perseguição de novo, a procura durante semanas, a tortura da incerteza. E o escárnio de Rita!

"Ele é mais esperto que vocês todos", diria ela. "É um homem que vos mete a todos no bolso! No fundo, só se pode amar um homem assim!" E os olhos negros dela ficariam brilhantes, e bater‑lhe‑ia na mão quando ele a quisesse acariciar. Cascal rangeu os dentes e ligou novamente o aparelho de transmissão. As informações vindas de todos os lados cruzavam‑se nos seus auscultadores.

‑ Grupo I está parado. Grandes baixas. Estas malditas setas envenenadas! Vêm do nada, e uma leve fenda é suficiente. Ao fim de cinco minutos está‑se acabado.

‑ Aqui o grupo III. Matámos vinte e nove índios. Também não continuamos. Estou parado, para pouparmos gente.

‑ Aqui bombeiros!

Cascal pôs‑se à escuta. Os "bombeiros", como se designavam a si próprios, eram uma tropa especial, o grupo experiente na luta de guerrilha.

‑ Eles chegaram ao rio por outro lado. Os rapazes da vizinhança dão muito trabalho. Já foram afundados trinta e quatro barcos com mulheres e crianças. Mas isto aqui está a formigar de índios. Vamos intervir. Vamos juntá‑los...

‑ Não, nada de os juntar! ‑ A voz de Cascal estava esganiçada de ódio e raiva. - Matar! Matar! Matem‑nos a todos! Ninguém deve sobreviver! É uma ordem do general Aguria!

‑ Entendido. Mas as crianças...

‑ Que diabo! As crianças também! ‑ Cascal tinha espuma na boca. ‑ As crianças são os inimigos de amanhã! Exterminem‑nos!

Nunca ninguém tinha assistido ao que se passou no afluente. E os soldados que ali estavam a disparar para as mulheres e crianças do fundo dos seus corações. Quando o primeiro barco foi aniquilado e as mulheres e as crianças se viram cercados, quando também na margem surgiram os guerrilheiros e montaram lançadores de granadas, como se estivessem a exercitar‑se numa carreira de tiro, aconteceu algo de sinistro no rio. Os barcos juntaram‑se numa massa compacta. Um homem idoso com um toucado de penas de ave do paraíso pôs‑se em pé na sua canoa e abriu os braços. Gritou algo por cima das cabeças das mulheres... e, então as mulheres índias curvaram‑se sobre as suas crianças, puxaram‑nas para si e mataram‑nas. Tudo aconteceu silenciosamente... os soldados, na margem, estavam como que paralisados, a assistirem a um espectáculo cruel. As mães rasgavam as suas crianças com punhais envenenados, depois cravavam‑nos no seu próprio peito. Nenhum grito pairou sobre o rio, vindo dos barcos, nenhum gemido, nem o menor som... assim que as crianças, mortas em segundos pelo veneno, jaziam nos barcos, as suas mães morriam sobre elas com a muda coragem que até hoje permanece incompreensível para os brancos. Nasceu uma montanha de cadáveres no meio do rio, silenciosamente... trazida pelas ondas indolentes, empurrando rio abaixo a massa compacta de barcos.

‑ Uma coisa assim, eu nunca tinha visto ‑ gaguejou o comandante dos guerrilheiros, o primeiro‑tenente Lukaneiros. ‑ Não vou poder esquecer isto em toda a minha vida, um povo inteiro matou‑se a si próprio.

‑ Se não tínhamos nós feito isso ‑ disse um sargento atrás dele.

‑ São como escorpiões. Os escorpiões também se matam a si próprios, quando não vêem mais nenhuma saída.


‑ Isso é um conto de fadas, sargento. ‑ Lukaneiros abriu com força a camisa no peito. ‑ Você era capaz de se matar?

‑ Não sei.

‑ Sei eu. Eu não conseguia. Teria sempre esperança!

‑ Os índios ainda tinham esperança?  

Lukaneiros olhou para o rio. A enorme pilha de mortos movia‑se indolentemente, ainda fechada, como se se tivessem juntado os barcos.

‑ Vamos ‑ disse asperamente. ‑ Aqui, a nossa tarefa está executada. Agora vamos aos homens! Pensem que eles se conseguem movimentar nas árvores como macacos.

Os soldados mergulharam novamente na floresta. A caça ao guerreiro Moco começara. Um exército contra um homem, armas automáticas contra setas envenenadas. A civilização descobrira um paraíso perdido e trouxera as bençãos do século XX.

 

A aldeia estava queimada, apenas brilhavam ainda os montes de cinza. Em volta, na floresta, os tiros faziam ricochete, no rio os dois helicópteros boiavam, um estava incapaz de se mover, o outro estava a uma distância segura da margem, e nenhum ousava entrar mais em acção. Cascal estava verde de raiva... mas para além da transmissão para as unidades isoladas, em que tinha podido dar a ordem, estava condenado à inactividade. Estava acocorado na sua cabina de vidro e sentia‑se como um prisioneiro numa prisão de luxo. Nesses minutos, Moco deixou‑se cair perto de Cliff Haller e do Dr. Forster atrás do grande tronco de árvore na margem e apoiou a cabeça no abrigo. Todo o seu corpo tremia como se tivesse uma cãimbra. Surgira repentinamente, brilhante de suor, quase despido, com a pele rasgada em vários sítios por espinhos, de onde o sangue corria.

‑ Têm de ir embora! ‑ disse ele ofegante, deixando‑se cair de costas. ‑ Imediatamente! Têm de salvar a Ellen! Ela ainda está na cova. Os meus guerreiros ainda conseguem demorar os soldados até ela estar na selva. Mas vocês tem de ir agora...

Cliff Haller olhou Moco, interrogando‑ se. Ocorreu‑lhe um pensamento assustador, que o estrangulou.

‑ Onde está Ynama? ‑ perguntou. Os olhos de Moco velaram‑se.

‑ Morta.

‑ Não! ‑ O Dr. Forster deixou cair a sua espingarda. ‑ Onde?

‑ No rio...

‑ Você não queria levá‑la para junto das mulheres e crianças...

‑ Era lá que ela estava.

Cliff Haller sentiu como que um calafrio nas costas.

‑ Moco ‑ disse ele suavemente. ‑ Meu Deus, Moco, o que aconteceu no pântano?

‑ O meu povo inteiro já não vive mais. ‑ Moco fechou os olhos. A sua boca contraiu‑se violentamente. ‑ Mataram‑se... todos... todas as mulheres e crianças e os anciãos... é melhor do que cair nas mãos dos brancos...

‑ São loucos? ‑ gaguejou o Dr. Forster. O horror apertava‑o como pinças em brasa. Mulheres e crianças... todos exterminados... encontrados pelo chefe... ‑ Ninguém lhes faria tal coisa!

O rosto de Moco desfigurou‑se.


‑ O que sabe você no outro lado, na Europa, do que aqui, nas selvas, acontece?! Eu conheço tribos que foram chacinadas porque possuíam bom solo para plantações. Os homens são fuzilados, as mulheres são violadas e depois assassinadas. Foram encontradas algumas com as pernas atadas entre árvores, a cabeça pendendo para trás, e os corpos rasgados como que por porcos. As crianças foram agarradas pelos pés e arremessadas as cabeças contra as árvores. Os seus cérebros colavam‑se nas cascas. E nenhum destes assassinos brancos foi castigado... nenhum! Não se fala nisto nem sequer uma vez. ‑ Moco abriu as pálpebras. Os seus olhos negros estavam sem brilho, como que quebrados. ‑ O meu povo também devia morrer assim? Não! Eles morreram como índios corajosos. E todos nós vamos parecer como guerreiros, não como cobardes. ‑ Moco endireitou‑se, seu rosto era uma máscara rígida. ‑ Vocês têm de continuar. Uma hora de vantagem já é muito!

Cliff Haller olhou para baixo, para os dois helicópteros no rio.

‑ Moco, o que vai fazer? Também vem connosco?

‑ Não, eu fico aqui. ‑ A máscara do rosto de Moco era como pedra vermelha.

‑ Quer morrer com os seus guerreiros?

‑ Sim.

Cliff acenou com a cabeça.

‑ Então para que é que você passou três anos na missão? Teve algum sentido?

‑ Sim. ‑ Moco acenou ligeiramente com a cabeça. ‑ Aprendi a morrer com uma oração.

‑ E com isso é mais fácil, acha você?

‑ Não sei. Mas vou sabê‑lo em breve...

Impeliram‑se para baixo, para fora do abrigo, e correram pela orla da floresta, agachados e saltando como animais selvagens para a aldeia destruída pelas chamas. Encontraram Ellen Donhoven ainda na cova, acocorada, a espingarda a postos, pronta a disparar imediatamente. Apenas o grito de Cliff lhe salvou a vida:

‑ Sou eu, Ellen! Para fora! ‑ gritou Haller. Rastejou até à cova e estendeu os braços para puxar Ellen. O Dr. Forster e Moco estavam ajoelhados na orla da floresta e perscrutavam a margem. Apenas podia vir perigo dali... nos outros lados, os índios conseguiam deter os soldados. Para evitarem mais baixas devido às setas envenenadas, as tropas brasileiras estavam nos arbustos, à espera da noite. Era a única possibilidade de se juntarem. Enquanto estivesse claro, os índios invisíveis disparariam as suas setas envenenadas para tudo o que se movesse. Ellen arrastou‑se para fora da cova e chegou sem ser vista à orla da floresta.

‑ Deus do céu, vocês estão todos vivos! ‑ exclamou ela, desconhecendo a real situação. ‑ O ataque foi repelido?

‑ Não. ‑ Cliff fixou o olhar à sua frente. ‑ Temos de continuar. Moco vai‑nos indicar um caminho.

‑ Outra vez através da floresta?

‑ Sim, é o único caminho! Temos de entrar em terreno montanhoso e depois ir para o rio Coari. Lá construímos uma jangada e viajamos pelo rio abaixo até ao Amazonas. Não pode ser de outra maneira, temos de cruzar o inferno a torto e a direito outra vez.

Ellen Donhoven olhou Moco interrogativamente. O índio baixou e abanou a cabeça, calado. O Dr. Forster também encolheu os ombros sem forças.


‑ E... quanto tempo vai durar esta caminhada? ‑ perguntou Ellen baixo.

‑ Suponho que três meses. ‑ Cliff falou sem entoação, como se dissesse simplesmente as horas.

‑ Três meses... não lhes vamos sobreviver.

‑ Vamos sobreviver, baby! Vamos cerrar os dentes até eles se partirem. O que acha, doc, vamos conseguir?

O Dr. Forster encolheu os ombros. Ele nunca tinha sido um homem fraco, mas agora tinha de se animar a si próprio desesperadamente.

‑ Não sei, Cliff. Só sei uma coisa: temos de arriscar!

‑ E Moco fica com a sua tribo? ‑ perguntou Ellen. O rosto de Moco endureceu de novo.

‑ Sim ‑ disse ele asperamente. Cliff olhou o Dr. Forster com desespero. "Controle os nervos, doc! Não se traia! A Ellen não deve saber o que aconteceu lá em cima, no afluente, nas últimas horas. Mesmo que ela seja a mulher mais corajosa que eu já conheci, é, no entanto, uma mulher!"

‑ A sua tribo conseguiu salvar‑se? Isso é óptimo. Parabéns, Moco.

‑ Obrigado, senhora ‑ respondeu Moco roucamente.

‑ Onde é que vão construir a vossa nova aldeia?

‑ Num rio mais bonito, senhora.

Até Cliff Haller sentiu um calafrio nas costas, quando ouviu tal coisa. Fez sinais a Moco com os olhos.

‑ Como é que saímos daqui? ‑ perguntou ele alto. Moco apontou para a selva.

‑ Está um barco além. É um afluente do rio. Há pântanos à esquerda e à direita... portanto, os soldados não conseguem chegar a vocês. Com o barco podem atravessar o anel do cerco silenciosamente e sem serem notados, aqui ele não está fechado. Mas têm de o fazer depressa!

Moco foi em frente. Ao fim de duzentos metros, aproximadamente, começou o pântano. Moco conhecia todos os sítios firmes... guiou Ellen, Cliff e o Dr. Forster aos ziguezagues pelo meio da lama fedorenta, muitas vezes metidos até às ancas na água podre. Mas tinham sempre terra firme sob os pés... o atalho mal devia ter um metro de largura, pois quando Cliff tacteou, uma vez, com o pé o terreno mais ao lado, afundou‑se logo numa papa que o sugou. Depois já apareceu o pequeno afluente, serpenteando, amarelo‑esverdeado, através da selva fumegante. Na margem estava um barco comprido. Cliff parou, respirando dificilmente.

‑ Isto é um milagre ‑ disse, honestamente. ‑ Moco, como é que você consegue encontrar um caminho neste pântano de Satanás? E agora ainda este barco.

- É, de certo modo, um barco de salvamento ‑ disse Moco, sombrio. ‑ Já não preciso dele. Ofereço‑lhes.

‑ Moco, este barco é seu? ‑ gritou Ellen.

‑ Sim, senhora.

‑ Não o podemos levar.

‑ Que diabo, podemos sim! ‑ exclamou Cliff duramente. ‑ Não estamos aqui numa conversa de mexericos de café, a partir uma torta de natas. Vamos levá‑lo e... Moco, você sabe o quanto lhe agradecemos!


‑ Eu sei. - Moco levou Ellen para o barco e sentou‑a numa caixa. Seguiram‑se Cliff e o Dr. Forster. A lama tinha começado a secar‑se no corpo deles até à barriga e começava a feder repugnantemente.

‑ Vão encontrar tudo o que precisam. ‑ Moco apontou para a bagagem no barco. ‑ Armas, munições, água fresca, veneno, armadilhas, zarabatanas, pederneiras e mechas de musgo... para um índio, não falta nada.

A despedida de Moco foi breve. Beijou Ellen mais uma vez na mão e afastou‑se depois com grandes passos para trás, para o pântano, antes de Cliff e o Dr. Forster poderem dizer ainda mais alguma coisa. A selva fechou‑se sobre Moco, como se o tivesse devorado. Ao longe ouviram‑se tiros novamente. Lembraram‑se, então, de que a liberdade à sua volta era uma miragem. A morte espreitava por toda a parte. Ellen seguiu Moco com os olhos até ele ter desaparecido no pântano. Depois, voltou‑se para Cliff Haller.

‑ Ele estava tão estranho, Cliff Era um outro Moco, completamente.

‑ Isso admira‑te? Perdeu metade dos seus homens... - Ellen fixou o olhar em Cliff com os olhos muito abertos.

- É... é verdade?

- Sim ‑ respondeu o Dr. Forster no lugar de Cliff. - E nós... nós somos culpados da morte deles. Cliff, se não tivéssemos aqui aparecido eles ainda estavam vivos, a aldeia não teria sido queimada, as mulheres e as crianças não precisariam de procurar um novo lugar. Só nós, nós...

‑ Cala a boca, baby! ‑ gritou Haller, grosseiramente.  

‑ Que diabo! Cala aboca! Se! Se! A vida inteira infestada por esses "ses?" Aconteceu agora uma vez, mais uma maldita vez! E nós somos os culpados dela. Eu... eu nunca o irei esquecer!

‑ Por mim, tudo bem! ‑ Os nervos de Cliff recusavam‑se a obedecer‑lhe. ‑ Não o esqueças, mas cala a boca! Doc! Empurre a canoa da margem. Está bem assim! Crianças, estámos a boiar de novo! Isso vale por si, isso é importante! Doc, pegue no remo. Acompanhe‑me. sempre no mesmo ritmo, e assim avançaremos mais depressa. Eu marco o compasso. Depressa, então. Um, dois e, um e dois a um. a dois. e... sim, vai estupendamente! O barco movia‑se no meio do pequeno afluente e impelia‑se para oeste contra a fraca corrente. Metro a metro. Para dentro do novo inferno verde. A floresta fumegava e estalava. Os papagaios e as outras aves guinchavam. Vindos do pântano, os mosquitos precipitavam‑se sobre as três pessoas. Há uma hora que os jacarés nadavam ali perto deles. Os seus pequenos olhos frios examinavam‑nos cheios de interesse.

Quando será que o barco se vira finalmente, quando é que eles irão cair à água? Para a frente! Para a frente! Rio acima, para o desconhecido. Para um mundo que não existe no mapa. As margens juntavam‑se. árvores apodrecidas jaziam na água, as lianas lançavam os seus braços entrelaçados muito longe sobre o rio.

A água tornava‑se esverdeada e grossa como um caldo. Depois, a selva crescia de ambos os lados sobre o pequeno rio, formando um tecto firme. Remaram por baixo dele numa meia escuridão.

‑ Nunca mais vamos sair daqui! ‑ disse Forster de repente. Haller deu uma volta, como que picado por uma tarântula.

‑ Cala o bico, doc! Temos o anel atrás de nós, somos pessoas livres... isso é a coisa mais importante. ‑ Voltou‑se para Ellen. Estava sentada na parte detrás do barco a olhar fixamente para o enredado verde da selva. ‑ Tudo bem, baby?


‑ Estou a pensar em Moco ‑ disse Ellen. ‑ Quanta infelicidade nós lhe trouxemos.

Haller continuou a remar. "É uma sorte, ela não saber de tudo", pensou. "Acho que também não lhe devemos dizer mais tarde. Na realidade, ela iria carregar isso com ela durante toda a vida."

Moco atravessou o pântano de volta à sua aldeia queimada. Andou sozinho pelos destroços e ficou parado perto do monte de cinza, do que tinha sido, outrora, a sua cabana grande, e onde tinha vivido apenas alguns dias de felicidade com Ynama. Subitamente, assaltou‑o a lembrança do Padre Josephus, o missionário da ilha no Amazonas, Pananim, que durante três anos lhe tinha ensinado que o amor era a maior coisa ao cimo da Terra. O amor, pelo qual uma pessoa de nome Jesus se tinha deixado crucificar, para salvar os seus semelhantes. Gaio Moco ajoelhou‑se perto da pilha de cinzas da sua cabana e rezou como tinha aprendido com o Padre Josephus. Rezou fervorosamente durante meia hora, depois sentiu‑se mais leve do que nunca e percebeu Jesus, o homem que tinha morrido pelo seu povo. De cabeça levantada, as mãos levemente comprimidas nas ancas, dirigiu‑se aprumado para a margem do rio através da aldeia queimada. Viu os dois helicópteros sobre a água, e também viu como o cano de uma metralhadora girava na sua direcção, no primeiro helicóptero. Moco sorriu sonhadoramente. Para ele, a morte era algo compreensível. Ficou parado na margem e espreguiçou‑se. "Dispara agora", pensou. "Dispara!" Na sua cabina envidraçada, José Cascal soltou um grito enorme quando apareceu o homem solitário saído da aldeia.

‑ Moco! ‑ exclamou Cascal. ‑ Está ali o Moco! O que quer ele? Quer negociar? ‑ girou a MG e apontou para a figura de Moco. O ódio e a raiva embriagavam Cascal como cachaça. Como que embriagado, começou a balbuciar palavras para si próprio, pressionando depois o dedo indicador. O feixe da metralhadora crepitou solto, o corpo de Moco foi rasgado pelos impactes e foi projectado dois metros mais para trás. Ainda se moveu acima do chão por um segundo, depois caiu, como se não tivesse ossos, um pequeno monte, uma mancha na tira de areia da margem. Cascal suspirou profundamente, deixando‑se cair para trás. Ele pressentia que a morte de Moco era, em contrapartida, o sinal de que ele também tinha perdido o jogo, agora, novamente.

‑ Para terra! ‑ ordenou. ‑ Remar para terra. Ninguém nos incomoda mais. A morte está saciada... engoliu‑o.

 

Durante oito dias andaram à procura de Cliff Haller, de Ellen Donhoven e do Dr. Forster. Tinham sido como que engolidos pelos Pântanos. Dez helicópteros sobrevoaram toda a região da selva desde o alvorecer até ao anoitecer. Não encontraram nada. Catorze prisioneiros foram interrogados. Eram o que restava dos índios. Torturaram‑nos, queimaram‑lhes as solas dos pés, espetaram‑lhes paus afiados nos músculos, esmagaram‑lhes os testículos... e eles calados. Talvez não soubessem nada, realmente, mas Cascal tinha dúvidas.

‑ Vamos estender‑vos entre as árvores como peles curtidas - vociferou Cascal. ‑ Eu conheço os vossos métodos! Vocês vão falar!


Na manhã seguinte os catorze índios estavam mortos... tinham‑se morto com espinhos envenenados que traziam escondidos entre os dedos dos pés. Cascal parou a busca ao fim de oito dias. Envergonhado, deprimido, tão ferido no seu orgulho que sangrava interiormente, volveu ao rio Juruá, de volta a Carababa. Primeiro fez o seu relatório em Carauari, onde o general Aguria o esperava. O resto dos soldados já lá se encontrava; tinham trazido também os mortos. Sessenta e sete cadáveres. Tinham um aspecto assustador... o veneno tinha decomposto os seus corpos.

- Eu sei tudo ‑ disse o general Aguria, quando Cascal quis começar o seu relatório. ‑ Exterminámos uma tribo... sempre é alguma coisa! E o senhor estava certo quanto à sua suposição de que Haller sairia da selva nesse lugar. Isso já é um êxito, meu querido Cascal. O seu azar: Haller é mais esperto que você. Escapou‑se de novo. Não vamos fazer nenhuma repreensão por isso, os nossos rapazes fizeram o que podiam. Sessenta e sete mortos, isso sim é uma verdadeira batalha! ‑ Aguria virou‑se para o mapa da grande região do Amazonas que estava pendurado na parede. ‑ Cascal, se Haller não valesse mil mortos, seria um escândalo. Mas cada vítima está justamente preparada para isso. Qual acha ser o caminho que ele agora tomou?

‑ Não sei, general. ‑ Cascal olhou fixamente para o mapa. "Maldita terra", pensou. "Terra de Satanás!" ‑ Só lhe resta o caminho para oeste ou para sul. Mas isso é uma loucura, general. Ele nunca sairá de lá. Não se consegue atravessar a pé um continente inteiro de selva! Isso ultrapassa o poder de realização humana, mesmo quando, se chama Cliff Haller!

‑ Então ele vai tentar de novo aqui?

‑ Não sei. ‑ Cascal levantou‑se, cansado. ‑ General, eu estou pronto a render‑me a este problema.

 

Rita Sabaneta esperava o regresso de Cascal à frente da cabana do rio Juruá. Ele já a tinha visto de longe, junto ao rio, ali em pé. "Vestiu o seu vestido de domingo", pensou ele. "Enfeitou‑se como uma noiva. Ainda não sabe da nossa derrota, apenas ouviu que voltámos da floresta. E voltar, para ela, quer dizer: Cliff está comigo." Parou o jipe e desceu para a cabana a pé. Rita correu ao encontro dele, com os braços abertos, caiu‑lhe no pescoço, beijou‑o com lábios ardentes, os olhos chamejantes quase loucos olhando depois sobre o ombro dele para a estrada, lá em cima.

‑ Onde está Cliff?‑ perguntou. A voz dela soava frágil. ‑ Está no carro? Ainda está vivo? Não... Fica aqui, José! Quero ir ter com ele sozinha. Mesmo sozinha! Mas vais‑me ouvir rir, quando eu lhe cuspir!

Soltou‑se dele e quis correr para a estrada. Cascal ainda conseguiu agarrá‑la pela saia. "O que está a acontecer agora, é pior do que a minha derrota com os índios", pensou. "Ela vai ter uma fúria."

‑ Cliff não está no carro ‑ disse ele, com voz encoberta.

‑ Não está? ‑ Rita girou em volta. ‑ Entregaste‑o ao general?!

‑ Também não.

‑ O que quer isso dizer? ‑ Os olhos de Rita começaram a faiscar perigosamente. ‑ As pessoas falam disto por toda a parte, que os soldados tinham conquistado uma grande vitória!

‑ Conquistaram, sim. Uma tribo foi exterminada.


‑ E Cliff! O que foi feito de Cliff! ‑ Os seus olhos faiscantes esperavam, afectados. ‑ Vocês mataram‑no, não é verdade?! Vocês mataram‑no simplesmente! Vocês eliminaram‑no como aos índios! Seus assassinos! Assassinos! Assassinos!! ‑ precipitou‑se sobre Cascal, batendo‑lhe com os punhos contra o peito dele, custando‑lhe a ele manter a cabeça fora do alcance dos golpes dela.

‑ Cliff está vivo! ‑ gritou ele, quando os gritos dela pararam. - Diabo, ele anda livre por aí!

‑ Livre? ‑ A sua boca distorceu‑se como que com nojo. ‑ Vocês não o encontraram?

‑ Não! Ele escapou‑se‑nos.

‑ E a médica e o médico alemão, também?  

‑ Sim.  

‑ Seus vermes miseráveis. ‑ Afastou‑se de Cascal. A raiva e também um triunfo secreto desfiguraram o seu rosto. ‑ Duas companhias foram enviadas para apanharem um homem... e ele escapou! E vocês ainda vêm de cabeça erguida, ainda estão à luz do sol, em vez de se esconderem em buracos para onde vos deviam atirar como lixo? ‑ Subitamente começou a rir alto, histericamente, penetrantemente, um riso que cortou o coração de Cascal, pois compreendeu que ela o estava a cobrir de escárnio, e aquele riso humilhava‑o mais do que mil bofetadas na cara. Lançou‑lhe a mão, puxou‑a para si, mas ela então colocou‑se atrás dele, libertou‑se com um puxão e correu de volta para a cabana. Foi mais rápida do que Cascal. No momento preciso em que ele alcançou a entrada, indo atrás dela, ela enfiou‑se dentro de casa e trancou a porta. Cascal bateu com os punhos na madeira.

‑ Abre! ‑ gritou. ‑ Maldita, abre a porta. Vou contar até três, depois vou arrombá‑la.

‑ Tenta! ‑ gritou Rita de dentro. ‑ Eu tenho a tua espingarda, na mão. Abato‑te como a um cão raivoso!

Cascal deu um passo para trás. "Que fazer?", perguntou a si próprio. "Arrombar mesmo a Porta? Arriscar‑me a que ela dispare realmente?"

‑ Abre ‑ disse ele suavemente, quando a noite se arrastou sobre o rio Juruá. ‑ Rita, favorita... abre! Reconheço ter falhado. Para mim é um enigma como ele se pôde escapar. Mas um dia a floresta há‑de libertá‑los, um dia eles irão sair dela... e onde isso acontecer, em qualquer lado na região inteira, estaremos preparados. Todos os postos da selva receberão o mandato de captura, serão pagos cem mil cruzeiros pela cabeça dele. Cascal falou com língua de anjo e, ao mesmo tempo, tremia de raiva. Finalmente Rita abriu a porta e Cascal precipitou‑se para dentro da cabana.

‑ Eu podia matar‑te! ‑ sibilou ele. ‑ Oh, se tivesse a coragem de te torcer o pescoço! Mas não consigo fazê‑lo... quando olho para ti... maldito seja... mas amo‑te!

De noite, ficou muito tempo junto dela sem conseguir adormecer. Entre eles, afazer de estreita mas eficaz fronteira, estava a espingarda. Podia‑se vencê‑la, de certo modo, com um golpe de mão, mas Cascal por enquanto não o tentava de maneira nenhuma. "Neste momento os aparelhos de rádio estão a funcionar em todo o lado", pensou ele. "No Rio, em Manaus, em Pará, em São Luís, em Cuiabá, em Brasília, em São Paulo. Em todas as tendas nos rios da selva. Em todas as emissoras de ondas curtas dos destacamentos de levantamento topográfico e de engenharia que atravessam a selva. Em todas as plantações."


Era um radiograma esmerado. Dizia assim: "Procura‑se a médica alemã Dra. Ellen Donhoven, de vinte e oito anos de idade, cabelo louro, curto, magra, um metro e sessenta e oito centímetros de altura, olhos azuis. Fala o inglês e um pouco de português. Na sua companhia encontra‑se Cliff Haller, cidadão americano, um metro e oitenta e cinco centímetros de altura, forte, cabelo louro, cerca de trinta e cinco anos de idade. Haller tem uma estreita cicatriz no lado esquerdo do pescoço, até ao ombro. A Dra. Donhoven e Haller encontram‑se numa expedição através da floresta na região das selvas. Desapareceram há algumas semanas. O governo oferece cem mil cruzeiros a quem os encontrar, e metade pela descoberta dos seus corpos."

Este elegante radiograma também apareceu na edição da manhã de todos os jornais do Rio de Janeiro. Em Brasília, a capital nova, os redactores colocaram‑no na primeira página. Duas horas depois da saída dos jornais tinha lugar uma discussão na sala do adido militar da embaixada americana. O tenente‑coronel Finley fez uma careta muito preocupada.   

‑ Gentlemen ‑ disse ele sem rodeios ‑, o nosso amigo Cliff parece ter tido sucesso. Estão a persegui‑lo usando todos os meios. Não é esta Ellen que é a felizarda, mas sim ele! Mas é notável que Cliff já tenha outra vez uma mulher no seu arrasto! Ele não consegue desistir! Garanto que já estaríamos na posse das informações de Cliff se ele não tivesse ficado novamente pendurado a uma saia! Vai ter dificuldade em esclarecer a central sobre isso. Cook? ‑ O tenente‑coronel Finley olhou para um homem baixo e seco, o oficial que estava colocado como secretário para os assuntos económicos na embaixada ‑ O que podemos fazer para auxiliar Cliff?

‑ Esperar e beber uísque ‑ respondeu Cook, mal humorado.    

‑ Isso é monstruosamente muito, Cook. Por detrás disto tudo, está de facto, toda a potência dos E. U. A.! Uma potência de biliões!

‑ Todos os homens são instruídos ‑ disse o pequeno e seco Cook, a quem precedia a lendária reputação de ser o melhor organizador de redes de espionagem. ‑ Se Cliff não aparecer e cumprir as instruções que tem, é porque está cinquenta por cento seguro. Sempre pressupondo que ele o consiga e que esta Ellen lhe deixe a cabeça para ele pensar logicamente. ‑ Cook fez uma careta azeda e puxou a sua gravata. - Já fiz uma proposta há dois anos de Cliff se deixar castrar à força. Desde que conheço o nome de Cliff Haller, não leio outra coisa nas informações que não sejam histórias de mulheres. Quando o tipo inspira profundamente, as calças rebentam‑lhe imediatamente para a frente!

Os homens riram‑se. O tenente‑coronel Finley olhou quase tristemente para o pequeno Cook.

‑ Respeito o seu humor, Cook... mas cem mil cruzeiros põem toda a gente no Amazonas desenfreada. Na verdade, o Cliff ainda tem alguma hipótese?

‑ Se estiver sozinho, terá sempre!

‑ E com a mulher, não?

‑ Muito poucas, Finley! ‑ Cook tamborilou com os seus dedos

secos na mesa. ‑ Pode‑se não reparar num homem sozinho, mas não com semelhante mulher! Cliff será sempre reconhecido pelo seu reboque. Aqui sim, está a estupidez!


‑ Sim, são boas perspectivas. ‑ O tenente‑coronel Finley puxou de um maço de Camel e passou‑o em volta. ‑ Então não podemos fazer nada?

‑ Nada. ‑ Cook soprou o fumo para as pás do ventilador no tecto.

‑ Apenas podemos rezar para que Cliff perca essa Ellen algures na selva.

 

Quando Deus criou a Terra, assim contam as pessoas no Amazonas, e olhou para tudo, disse para si próprio:

‑ Saiu‑me bem feito. Mas as pessoas vão ficar doidas de alegria, tenho de lhes criar um inferno especial na Terra. E assim aconteceu no oitavo dia da criação. Deus criou a selva. Cliff, Ellen e o Dr. Forster não conheciam esta lenda, mas tê‑la‑iam aceite como verdadeira sem replicarem. A seiva verde devorava‑os. Havia quatro dias que remavam no estreito e transbordante rio da selva. Quatro dias em que o calor húmido lhes tirava as forças até à exaustão. A respiração tornou‑se um tormento, o ar estava denso e saturado de cheiros de podridão. Ofegavam em cada aspiração como peixes atirados para terra. Trincar um pedaço de ar, como dizia Cliff... humor macabro, de uma raiva saturada de desespero. De vez em quando, emergiam para fora deste túnel feito de raízes aéreas e paredes de lianas crescendo em conjunto, saíam para água descoberta, viam o céu azul e o maldito sol ardente. Então permitiam‑se uma pausa e respiravam como um fole. Por duas vezes lhes aconteceu estarem à espera da água gratuita da chuva... arrancaram as roupas do corpo e dançaram em volta das gotas que caíam, como loucos. Ellen também não abria excepção... nua, deixava‑se regar pela chuva, os braços esticados para cima, e aconteceu‑lhe até a sua pele largar vapor e sibilar, como uma placa de fogão quente, com as primeiras gotas. Depois deitaram‑se no caudal de água extasiante, perto uns dos outros, nus, parecendo absorver a humidade com todos os poros. Sentiam‑se a abrir como esponjas secas. O sol vinha de novo, sabiam‑no. Vinham as horas do crepúsculo quente, debaixo do tecto de folhas. E o corpo iria dar tudo o que agora tinha sugado.

"Quanto tempo vamos nós aguentar?"   

"Quando acabará a nossa força?"

"Quando ficaremos nós satisfeitos por morrer?"     

Três meses através do inferno? Quatro meses? Quanto tempo demora um caracol de Hamburgo até Moscovo? Não era nenhuma pergunta para brincar... era a pura verdade. Pois tinham‑se tornado caracóis que rastejavam para o infinito... De noite, dormiam no barco, todos debaixo de um mosquiteiro que se encontrava no apetrechamento de Moco. Uma vez por dia, Cliff ou o Dr. Forster apanhavam um peixe com a rede e assavam‑no num espeto de madeira. Para isso, Forster tinha feito uma invenção genial: o fogão de bordo. Construiu um sítio para o lume na popa do barco, feito de laje e de pedras do rio, que era seguro contra as faíscas. Quando não estava a cozinhar, secava lenha para o próximo lume. Na maior parte das vezes, era Ellen que assumia esse trabalho; apenas o atear da chama a partir das pedras era por conta de Cliff. Forster e Ellen não tinham jeito para isso. As faíscas deles nem sequer ateavam o musgo seco. No quinto dia, Cliff tentou disparar com a zarabatana uma seta. Ali perto deles, corriam pequenos porcos negros pelas margens havia horas, cobertos de lama, grunhindo alto, de uma fealdade imediatamente comovedora.


‑ Uma raça totalmente nova ‑ disse Cliff, carregando pela primeira vez a zarabatana com a seta envenenada. ‑ Mas são porcos. isso é o principal. A floresta deve estar a formigar de feras. Aqui, ao que parece, os caniches foram substituídos. Ellen, baby... o pensamento de um bife de porco faz‑me crescer um oceano na boca!

Remaram para mais perto da margem, e os porcos olharam‑nos fixamente com os pequenos olhos zangados, mas não fugiram. Uma pessoa? O que era isso, uma pessoa? Ainda não tinham visto nenhuma. No rio só conheciam os jacarés e os peixes assassinos. Cliff Haller soprou com as bochechas cheias. Silenciosamente, a seta sibilou para fora do tubo e ficou cravada nas costas do porco da frente. O animal olhou em volta, admirado, largou um som abafado e quis sair dali... mas então o veneno actuou, paralisou‑lhe as pernas, o porco caiu de joelhos, revolveu o focinho no solo pantanoso, impotente, e caiu, então, para o lado.

‑ Tiro certeiro! ‑ disse Cliff alegremente. - Um veneno terrível!

O Dr. Forster remou para próximo da margem. Os outros porcos trotaram dali para fora sem pressa, apesar de terem farejado o seu companheiro morto.

‑ Não consigo imaginar que não deixe nenhuns vestígios na carne assada.

‑ Os índios apenas caçam com veneno e sobrevivem a toda a doença.

‑ Eles estão habituados, Cliff.

‑ Então nós também temos de nos habituar. Depressa, vamos Para mais perto... eu salto para lá e estendo‑vos o porco.

Nesta manobra, aconteceu um azar. Cliff estendeu o porco morto, pesando cerca de vinte quilos, para cima. Ellen e o Dr. Forster ficaram em pé no barco oscilante e receberam‑no. A pele do porco estava escorregadia de sujidade e de lama, e enquanto Forster agarrava a cabeça, Ellen quis prender as patas traseiras. Pegou‑lhes com as duas mãos, mas as patas escorregaram‑lhe entre os dedos; o corpo, cuja cabeça o Dr. Forster segurava, bateu contra ela, actuando como uma moca, e arremessou‑a para fora do barco. Com um grito, caiu na água pantanosa, embateu com a perna esquerda no costado e afundou‑se então, como se tivesse ficado impotente. Cliff e o Dr. Forster saltaram ao mesmo tempo atrás dela, levantaram‑na para o alto e deixaram‑na cair sobre a borda do barco. Depois puxaram‑na para cima e rolaram‑na para dentro. Um segundo mais tarde, a menos de três metros deles, um tronco rugoso tinha começado a movimentar‑se, deslizando insinuante para o barco. Aí, abriu a extremidade da frente. Uma goela gigantesca com dentes fulminantes e afiados. Pequenos olhos verdes e faiscantes por baixo de saliências córneas. Cliff pegou num dos remos e bateu com toda a força na cabeça do jacaré. Mas a espessa couraça não deixava passaras pancadas. Preguiçosamente a fera afastou‑ se. Ellen estava sem sentidos, mas quando Cliff a quis levantar, contraiu‑se no seu desmaio, como se os seus nervos estivessem a reagir a dores fortes. O Dr. Forster apalpou rapidamente o corpo dela. Quando chegou à perna esquerda, soltou um som assustado. à sua frente, a perna jazia notavelmente torcida, o pé vergado para o lado. Quando ele tocou na parte inferior da coxa, sentiu nitidamente a fractura.


‑ Meu Deus! ‑ balbuciou. ‑ Agora mais isto! Está partida. Cliff limpou a lama verde fedorenta do rosto:

‑ Tem a certeza?

‑ Então veja você mesmo! Quando ela caiu na água, bateu com a perna na borda. O osso está absolutamente quebrado, como um pedaço de madeira. ‑ Afastou tudo o que estava no barco, debaixo e junto de Ellen, e apalpou a perna mais uma vez. Começara já a inchar. Cliff Haller agiu imediatamente. Saltou mais uma vez para terra e desapareceu na mata de arbustos espessa. Ao fim de poucos minutos apareceu de novo, acompanhado pela gritaria dos macacos assustados e por diversos guinchos de aves. Com os dois braços puxava uns ramos grossos e secos, lançou‑os para o barco e limpou o suor do rosto com os dois antebraços.

‑ Chega, doc?

O Dr. Forster tinha preparado a perna de Ellen. As botas tinham sido tiradas, tinha posto a perna partida no seu colo e apalpava mais uma vez a fractura.

‑ É madeira suficiente para uma tala. Mas isso é o menos. O desmaio está a dissipar‑se, em breve Ellen estará lúcida, e temos o pior à nossa frente: tenho de endireitar a fractura!

‑ Que diabo, então faça‑lhe isso, doc!

‑ Já alguma vez alguém lhe endireitou um osso partido sem anestesia?

‑ Não.

‑ Ela sobe pelas paredes, Cliff. Vai gritar de tal maneira que até faz cair o reboco do tecto.

‑ Aqui não há nenhum reboco, doc! Endireite‑a!

‑ Impossível. ‑ O Dr. Forster envolveu a perna, apoiando‑a. - Ela está a vir novamente a si.

Ellen abriu os olhos. Olhou‑se admirada até compreender o que lhe tinha acontecido, mas, depois quis‑se levantar. Forster empurrou-a para trás.

‑ O que se passa? ‑ perguntou ela, admirando‑se que os seus dentes batessem como se estivesse deitada no gelo. ‑ Caí na água porque o porco me escorregou das mãos. O que aconteceu depois?

‑ Fica deitada sossegada, baby. ‑ Cliff sorriu embaraçado.

‑ O doc e eu estamos precisamente a pensar como é que te podemos atordoar de novo.

‑ Atordoar? Porquê?

‑ A perna esquerda está partida, Ellen.

‑ A esquerda?

‑ Sim. ‑ O Dr. Forster moveu‑lhe muito ligeiramente o pé. Ellen gemeu alto e o seu rosto ficou branco: Haller cerrou os punhos e olhou fixamente para Forster, envenenado.

‑ Deixe‑a, seu idiota! ‑ vociferou.

‑ E você acha que se pode tratar a fractura sem narcóticos! Ellen levantou a cabeça e olhou para a sua perna. Depois deitou‑se para trás e fixou o olhar no céu azul e ardente. Tinha os dedos cravados na borda do barco.

‑ Tente!

‑ Impossível! ‑ Forster abanou energicamente a cabeça. "Se ela gritar, eu descontrolo‑me", pensou. "E ela vai gritar..., é uma dor desumana."

‑ Mas ela não pode segurar sempre a perna com as mãos, durante semanas! ‑ gritou‑lhe Cliff. ‑ Quanto tempo é que leva então a endireitar?


‑ Com raios X seria uma insignificância.

‑ Então! ‑ Cliff Haller encolheu os ombros. ‑ Então ligue lá o seu aparelho de raio X, doc! Tem de se lhe segurar a cabeça! ‑ Ajoelhou‑se perto de Ellen no fundo do barco e abraçou o rosto pálido dela com as duas mãos. ‑ Dores, baby?

‑ Sim, Cliff ... agora é que elas começam. Arde‑me a perna inteira.

‑ Vamos fazer‑te uma bonita tala. A mais bonita em todo o Amazonas. De madeira de ébano e de folhas gigantes verde‑escuras. Nunca uma perna ficou tão valiosamente tratada. Baby, só não podes é ter medo.

‑ Eu não tenho medo! Rudolf é especialista de fracturas de ossos. Esteve dois anos na cirurgia de acidentes.

‑ Então. ‑ Cliff olhou de soslaio para Forster. ‑ Sê bem valente, baby, e não nos leves a mal.

Inclinou‑se sobre ela e beijou‑a antes de ela poder dar uma resposta. O Dr. Forster tocou Cliff levemente nas costas.

‑ Um atordoamento desses não chega para uma fractura! Não tem mais nada para fazer do que namorar agora?

‑ Espere aí, doc! ‑ resmungou Cliff. Acariciou Ellen mais uma vez nos olhos, olhou‑a ternamente, depois levantou o punho e bateu‑lhe com ele no queixo. Ouviu‑se um som abafado, e Ellen esticou‑se.

‑ Seu bruto! ‑ balbuciou o Dr. Forster. ‑ Seu bruto maldito!

‑ Agora comece de vez! ‑ gritou Cliff, abraçando a cabeça de Ellen de novo, ternamente. ‑ Não o faço segunda vez!

Impeliu o braço por debaixo dos ombros dela e segurou‑a. O Dr. Forster agarrou no pé de Ellen, virou‑o, e tacteou o lugar da fractura com a mão esquerda. Cliff Haller estremeceu.

‑ Seu merdas! ‑ disse, ofegante. ‑ A perna está dobrada.

‑ Mas agora está direita. ‑ Forster segurou a perna. O suor corria‑lhe para os olhos e para a boca. ‑ Acabe lá de uma vez de brincar ao terno anjinho de sonho. Traga‑me os ramos e as folhas. E as lianas para atar...

Cliff obedeceu sem replicar. Soltou Ellen e partiu os ramos no comprimento de que o Dr. Forster precisava. Puseram a tala na perna, ligaram‑na com as folhas refrescantes e carnudas de um arbusto que ninguém conhecia; mas Cliff pensou para consigo que a humidade absorvida das folhas actuaria como calmante. Depois ataram tudo com lianas. Na outra margem, nos arbustos, uns pequenos homens castanhos olhavam para eles. Estavam acocorados perto do rio, imóveis, como se fossem cepos apodrecidos. Tinham presos à volta dos seus corpos nus umas correntes entrançadas. No cinto balouçavam formas do tamanho de punhos. Pareciam ser pequenos cocos com cabelos negros. Mas eram cabeças humanas. Cabeças mirradas.

 

Capitulo 7

A anestesia provocada pela pancada desesperada de Cliff Haller durou precisamente o tempo de que o Dr. Forster precisou para endireitar a perna partida de Ellen. Só acordou quando a estavam a ligar, mas não se mexeu. Forster olhou rapidamente para Cliff, que tinha posto a perna de Ellen no seu colo.

‑ Uma anestesia brilhante e regulamentar ‑ disse Forster sarcasticamente. ‑ No hospital não nos podemos remediar desta maneira. ‑ Curvou‑se sobre Ellen e notou um medo trémulo no fundo dos seus olhos. ‑ Como é que se sente, Ellen?

‑ Como alguém se sente depois de um KO, Rudolf. Tenho a cabeça a zumbir.

‑ E a perna?

‑ De momento nada. Mas sim... quando puxo o músculo... pica.

‑ Fica sossegada, baby ‑ resmungou Haller. ‑ Diabo, ainda vai dar mais dores, quando continuarmos a viagem. ‑ Pousou a perna cuidadosamente num embrulho. Era uma rede enrolada que Moco tinha posto na canoa como artigo de primeira necessidade.

‑ Quanto tempo demora uma fractura assim a sarar, até que se possa andar novamente?

‑ Seis semanas.

‑ Merda!

‑ Então, então, Cliff ‑ O Dr. Forster abanou a cabeça, sorrindo ironicamente. ‑ Está aqui uma senhora.

‑ Mesmo assim... ‑ Haller arrastou‑se para a frente do barco e pegou no remo. ‑ Seis semanas... nessa altura já eu queria estar no Rio. E só é seis semanas se a perna estiver totalmente quieta.

Forster sentou‑se atrás de Ellen Donhoven na popa do barco e mergulhou o seu remo na água esverdeada.

‑ O que é que você tenciona fazer, Cliff?

‑ Vamos procurar um lindo lugarzinho onde possamos apodrecer durante seis semanas.

‑ Aqui no rio?

‑ Um rio na selva é tão valioso como para vocês, médicos, é, uma injecção cardíaca forte. Onde há água há vida! Vamos então... vamos procurar uma margem baixa!

‑ E a mim, ninguém me pergunta nada? ‑ Ellen ergueu‑se, mas o Dr. Forster inclinou‑se imediatamente para a frente e empurrou‑a para baixo com o remo achatado.

‑ Fique deitada! ‑ mandou ele. ‑ Ellen, você não se pode mexer, sabe‑o bem.

‑ Não há ninguém mais desobediente do que os médicos, quando estão doentes ‑ gritou Cliff, da frente.

‑ Tudo o que dizem aos seus doentes esquecem quando se trata deles próprios! ‑ virou a cabeça para Ellen e riu. Era novamente o riso irresistível e juvenil, que sempre tinha desarmado Ellen e que consolidava nela a certeza: "Meu Deus, eu amo‑o... tanto que eu própria me defendo dele."

‑ Tens outra proposta, baby?

‑ Não. Apenas sei uma coisa: nunca mais irei para uma selva!

‑ Um desejo piedoso. ‑ Haller riu alto. ‑ Nos próximos dois meses estaremos mesmo no meio dela!

‑ Dois meses ... uma eternidade ‑ disse Ellen. Parecia resignada.


O Dr. Forster entrou no ritmo de Haller. Ligeira e quase silenciosa, a canoa deslizava pelo rio acima. Tornou‑se mais estreito, as margens juntaram‑se, a água fedia a putrefacção.

‑ Você faz alguma ideia, Cliff, de para onde é que estamos a ir?

‑ Apenas aproximada, doc. Para noroeste. ‑ Haller encolheu os ombros. ‑ Eu vou ficar surpreendido se o rio acabar‑ e tivermos de continuar por terra.

Na margem, os pequenos homens castanhos deslizavam pela floresta como macacos. Soltavam sons notáveis e animalescos, que se ouviam à distância. Soavam como os guinchos dos papagaios afugentados e furiosos. Haller deixou‑se enganar por estes sons.

‑ Papagaios! ‑ exclamou, quando os guinchos voaram perto deles e os acompanharam. ‑ Vêem algum?

‑ Não. Os pequenos homens castanhos corriam para junto do barco, como se não conhecessem o cansaço. Um atalho estreito na margem servia‑lhes de caminho. De vez em quando guinchavam e punham então as mãos erguidas em frente da boca como um funil e acenavam com a cabeça rindo, quando um outro guincho lhes respondia de longe. Depois corriam de novo, avançando com saltos notavelmente rápidos, que deviam ter aprendido com os felinos. Estavam completamente nus e apenas tinham o sexo protegido por um baraço de lianas. Depois de cerca de uma hora de viagem, o rio estreitou‑se de tal maneira que Cliff e Forster quase podiam tocar na margem com os remos esticados e as raízes aéreas das árvores penduravam‑se sobre eles como grinaldas. E era exactamente aqui, na parte mais estreita do rio, que estava esticada de margem a margem, de árvore a árvore, uma rede de malhas espessas... uma gigantesca teia de aranha que não deixava passar nada maior do que um rato. Cliff Haller estendeu imediatamente o remo no rio a fazer de travão, a canoa parou e voltou‑se na corrente indolente da água fedorenta. O Dr. Forster atirou o remo para dentro do barco e lançou a mão à espingarda. Cliff Haller também tinha colocado a arma pronta a disparar no seu joelho. Ellen Donhoven, que valentemente continuava deitada de costas sem se mexer, bateu com o punho na parede do barco.

‑ O que está a acontecer? ‑ gritou ela.

‑ Transformámo‑nos em moscas prontas a serem sugadas por uma aranha! ‑ respondeu Cliff com um humor amargo. ‑ Está uma rede esticada à nossa frente, e estamos quase pendurados nela. Doc, não dispare! Está a ver os indivíduos?

‑ Não, Cliff ‑ O Dr. Forster observou, fatigado, a margem próxima, que quase podia tocar. Não via nada; à sua volta apenas estavam os guinchos dos papagaios.

‑ São pequenos indivíduos castanhos. ‑ Haller não se moveu, estava sentado como que petrificado. ‑ Uma espécie de pigmeus. Isto é um a novidade, doc. Até agora só se conheciam pigmeus na áfrica Central. Nunca tinha ouvido falar de povos de pigmeus sul‑americanos. E você, já?

‑ Eu ainda nunca me tinha interessado em profundidade por brasileiros até esta maldita expedição. ‑ Forster olhou em volta.

‑ Não consigo identificar nada.

‑ Você está a olhar muito para cima, doc! ‑ exclamou Haller sarcasticamente. ‑ Os tipos estão acocorados no chão como raízes...


Os guinchos pararam de repente. O silêncio caiu sobre eles tão inesperadamente que estremeceram. Estendia‑se sobre os seus corações, oprimindo‑os.

‑ Quais papagaios! ‑ disse Haller rangendo os dentes. ‑ São os anões. Ali, veja, doc! Se Deus quiser, eles vão ficar sentados quietos. Têm tanto medo como nós. Nunca tinham visto uma pessoa branca.

Isso é o que você supõe, Cliff. É de certeza, senão já há muito que estaríamos furados pelas setas envenenadas!

Os pequenos homens castanhos apareceram nas duas margens. Saíam da floresta em grandes quantidades, como um exército de formigas a marchar sobre o caminho. Era mais de uma centena de homens que estavam parados na margem, nus e tímidos, com as suas zarabatanas longas nas mãos, e olhavam fixamente para a canoa com amplos sorrisos nos pequenos rostos achatados. Um homem idoso, que para além de usar uma corrente de cabeças mirradas na barriga, também usava uma ao pescoço, fazia sinais com os dois braços e saltava em volta, como se estivesse a pisar agulhas havia muito tempo. Cliff Haller encolheu os ombros.

‑ Um belo homem ‑ disse Cliff com um humor macabro. ‑ Sobretudo as jóias dele, são de confiança. Como os tipos arreganham os dentes! Como se tivesse chegado o Pai Natal!

O Dr. Forster respirou aliviado.

‑ Cliff, seu niilista miserável, é isso mesmo! Eles vêem espíritos em nós. Querem‑nos agradar. Estão‑se a submeter. Dispare!

‑ Seu louco! Mesmo que não conheça nada... lá matar, isso sabe você.

‑ Disparar para o ar, Cliff. Só o estampido já os deitará abaixo. Nós somos os deuses que trazem o trovão.

‑ Você até pode ter razão, doc! ‑ Cliff olhou em volta, reconhecido. ‑ E se fracassar?

‑ Então estaremos mortos em alguns segundos. Está a ver outra saída?

Cliff Haller não respondeu. Hesitante, levantou a sua espingarda, apontou o cano para o céu e olhou para o lado dos homens dançantes com as muitas cabeças mirradas. Os pigmeus interromperam os seus saltos e ficaram em pé na margem, de braços abertos.

‑ Agora! ‑ gritou Cliff. A sua voz estava quase irreconhecível de tanta excitação. ‑ Se o encherem de setas, fuzile primeiro a Ellen, antes de morrer! Resta‑lhe sempre esse segundo!

Forster acenou afirmativamente, calado. Pôs o cano da sua espingarda nas têmporas de Ellen. Ela olhou‑o, com olhos grandes de despedida, e era um olhar que Forster sentia queimar em si como uma chama. Ouviu‑se um barulho esquisito à sua volta, e só quando inspirou é que soube que tinha sido o bater dos seus dentes. Cliff Haller disparou. O tiro trovejou para fora da espingarda e ecoou no silêncio da floresta. Depois soou ainda três vezes, de todos os lados, como se tivessem disparado de direcções diferentes. Um eco que assustou até o próprio Cliff.

Para os pequenos homens castanhos nas margens, os deuses tinham chegado. Mal o tiro tinha soado, deitaram‑se com o rosto por terra como se tivessem sido apanhados por um raio e ganiram como cães espancados. Tremiam com os membros todos e pareciam querer revolver o solo mole. Cliff virou‑se, rindo para Forster e Ellen.


‑ Foi uma boa ideia, doc! ‑ gritou ele. Tinha de gritar, pois a pressão dentro de si procurava uma saída. ‑ Desta vez você salvou‑nos a vida. Vamos, vamos disparar mais uma vez... quatro vezes... primeiro você, depois eu e assim por diante. ‑ Levantaram as espingardas e dispararam por cima dos homens deitados na floresta. As balas vibraram nas árvores, arrancando ramos que caíram algures. Por quatro vezes, os pequenos homens castanhos revolveram‑se sobre o solo, ganiram horripilantemente após cada tiro, depois ficaram deitados na margem, perto uns dos outros como pérolas escuras num colar. Não se mexeram mais, pareciam estar petrificados.

‑ Para terra! ‑ exclamou Cliff alegremente. ‑ Se eu batesse no chefe com as suas jóias da Tiffany, ele ia considerar isso como uma benção. Crianças, encontrámos o lugar onde podemos curar a perna de Ellen. Vamos brincar aos deuses!

Remaram para terra e saltaram para a margem. Os pigmeus ainda estavam deitados sobre o rosto, e quando Cliff tocou num deles, ele contraiu‑se como uma minhoca. Não ousavam olhar para os olhos dos deuses que seguravam o trovão do céu.

Cliff Haller andou em volta por entre eles, como se estivesse num tropel de ouriços, pisou ligeiramente um ou outro pigmeu de lado, provocando assim um claro gemido.

‑ Isto assim também não é nada! ‑ exclamou. ‑ Vamos! Levantar! Não devoramos ninguém. ‑ Inclinou‑se, agarrou o chefe com a sua corrente de cabeças mirradas ao pescoço, e puxou‑o para cima. Pôs o pequeno homem, que o fixava medroso, nas pernas e bateu‑lhe no peito nu e contraído. O pigmeu piscou os olhos. Quando Cliff lhe deu duas bofetadas, pestanejou. Parecia entender esta forma de comunicação.

- Certamente que ele é casado! ‑ afirmou Cliff. ‑ É em todos os lados o mesmo!

O chefe fixava Cliff com os olhos muito abertos. Depois notou que o deus de pele branca estava a sorrir, e ele por sua vez também sorriu timidamente.

‑ Então! ‑ disse Cliff, fazendo festas na face do chefe. ‑ Os chefes entendem‑se sempre de algum modo. ‑ Abraçou o pigmeu, apertou‑o contra si e deu‑lhe um beijo na testa. O pequeno homem pareceu sentir aquilo como algo assustador. Caiu de joelhos e ganiu de novo livremente, mas Cliff puxou‑o do chão e fez um grande movimento com o braço sobre o rio. O chefe pareceu entender. Arrancou a sua corrente de cabeças mirradas do pescoço e pô‑la em volta de Cliff, desapertou a corrente da anca, levou‑a ao Dr. Forster e gritou alguns sons numa língua que soava como um arrotar gutural. Arrepiando‑se, Forster pôs a corrente ao pescoço.

‑ Não seja tão melindroso, doc! ‑ disse Haller, metendo uma nova carga de cartuchos na sua espingarda. ‑ Em anatomia, quando estava a estudar, você tinha de trepanar cabeças pelo seu próprio punho, e agora está‑se a arrepiar?

‑ Estas aqui são assassinadas, Cliff

‑ Em compensação, agora também estamos a viver na Idade da Pedra. Venha, vamos tirar a Ellen do barco. Ela deve é ter ficado doida de medo.


Meia hora mais tarde, oito pigmeus levaram Ellen para o interior da selva, numa espécie de esteira suspensa feita de lianas, agarrada por dois ramos compridos e grossos. O Dr. Forster e o chefe seguiram‑nos, a centena dos outros pigmeus nus formigava atrás deles. Cliff ia no fecho, a espingarda nas mãos pronta a disparar. Não confiava na paz. Para ele, o entusiasmo era demasiado selvagem. "Também se pode levar assim para casa um assado de domingo", pensou ele com raiva. Mas, enganava‑se. O povo dos pigmeus Ulurari estava feliz e orgulhoso. Os deuses do relâmpago e do trovão iam para a sua aldeia. Os deuses distinguiam‑nos. Os deuses faziam‑nos invencíveis. As cabeças das outras tribos iriam pertencer‑lhes. Os deuses tinham‑nos escolhido para serem senhores da floresta e do rio. Apenas havia uma coisa que Cliff, o Dr. Forster e Ellen Donhoven não sabiam: os Ulurari já não estavam dispostos a entregarem os seus deuses de volta. Tinham vindo até eles, e também deviam ficar ali. Algumas centenas de olhos iriam vigiá‑los, para que não fossem também para as outras tribos. Constatava‑se que os deuses também têm os seus problemas.

 

A aldeia dos pigmeus consistia em pequenas cabanas redondas. Pareciam montículos de terra levantados por toupeiras, e Cliff disse logo:

‑ Num bungalow daqueles fico com claustrofobia. Nós, os deuses, vamos mostrar de uma vez aos pequenos como é que se constróem casas. Preste atenção, doc, quando eu começar a trabalhar com O machado, isto vai ser um novo milagre.

Em primeiro lugar foi arranjado um alojamento para Ellen. Cliff escolheu, para esse efeito, a maior cabana, que era a morada do feiticeiro. O velho, que agora tinha de se mudar, parecia não estar de acordo com a troca de morada. Dançava à volta da cabana e sacudia a bolsa de couro, na qual estavam ossos humanos. Cliff resolveu o conflito à maneira dos deuses: apontou para um grande pedaço de carne, que estava pendurada numa liana a secar em pleno sol, pegou na espingarda, fez pontaria e desejou não disparar para o lado. Mas o tiro foi certeiro. A liana foi cortada, e o pedaço de carne caiu no chão. Um milagre daqueles convenceu o feiticeiro e regularizou o problema da habitação. Os pigmeus empurraram Ellen para dentro da cabana, e o Dr. Forster arrastou‑se atrás.

‑ Quando é que eles vão notar que somos pessoas como eles? ‑ segredou Ellen. Tacteou à procura do Dr. Forster. Ele pegou‑lhe na mão e não a largou.

‑ Oxalá só daqui a seis semanas... Temos o dobro do tamanho e comparados com eles, somos mais brancos que a areia do rio. Isso eles nunca vão compreender. ‑ O Dr. Forster acariciou a mão de Ellen, acalmando‑a. ‑ E além disso eu vou curar alguns deles nos próximos dias. Isso irá arrebatá‑los para novas venerações.

‑ Sem medicamentos, Rudolf

‑ Ainda tenho a minha bolsa da cintura, Ellen.

‑ E o que há lá dentro?

‑ Penicilina, pomada oftálmica, sal amoníaco, gotas para a tosse, gotas para o estômago, remédio para as cãimbras, aspirinas e um frasco de água de colónia.

‑ Incrível, Rudolf. Com isso não se pode brincar aos deuses.

‑ Pode‑se, Ellen. Apenas com sal amoníaco e água de colónia!


A noitinha, Cliff Haller já tinha realizado completamente um novo milagre dos deuses. Em vinte minutos, tinha feito cair uma árvore grossa, com o machado de Moco. Quando o tronco enorme caiu, os pequenos homens deitaram‑se, rasando o solo de novo, com as suas mulheres e as crianças, de aspecto bastante diminuto. A força destrutiva dos deuses era incompreensível para eles.

 

Em quatro dias, a casa para Cliff, o Dr. Forster e Ellen ficou em pé. Para os pigmeus era uma espécie de arranha‑céus, um templo gigantesco, no qual apenas entravam, respeitosamente, de gatas, como os cães. Trinta mulheres cobriram o tecto de ramos e de folhas. Cliff estava no seu elemento, sentia‑se completamente como um deus, dava ordens em volta, e se ninguém o entendia, os seus sinais eram internacionais. Quando gritava livremente com a sua voz profunda para os pigmeus era como se a trovoada ribombasse novamente nas nuvens. O Dr. Forster andava, entretanto, à procura de doentes, Para demonstrar à sua maneira a sua responsabilidade como deus. O que ele viu era assustador. Crianças com os sinais típicos de doenças por carências, raquíticas e cobertas de úlceras. Famílias em que a morte por tuberculose gritava nos olhos encovados. Doenças dos olhos devidas a infecções de picadas de insectos... quase em cada duas cabanas vivia um cego. Em volta rastejavam crianças em cujas órbitas dos olhos supurados, os mosquitos e as moscas pousavam como bolas zumbidoras.

O Dr. Forster viu rapidamente que, na maioria dos casos, não podia ajudar com os medicamentos da sua bolsa. Limpou algumas órbitas de olhos supurados, untou‑as por dentro com pomada de penicilina e ,deixou as crianças correrem outra vez. Durante o tratamento, ficavam penduradas nos seus braços, como gatos anestesiados, e não se mexiam; depois, quando as afastava de si, corriam dali chorando, eram apanhadas pelas suas mães e arrastadas com elas. O Dr. Forster admirava‑se de ele, mais tarde, não voltar a ver as crianças e disse‑o a Cliff:

‑ É como se escondessem as crianças.

‑ Talvez os alimentem porque uma mão divina lhes mexeu.

à noitinha Cliff entrou em casa e olhou fixamente para o Dr. Forster, com a boca contida.

‑ Doc, se eu lhe disser aquilo por que passei, você não vai mexer em mais nenhum doente ‑ disse ele rouco. ‑ Sabe onde é que estão as crianças que você tratou? Nunca o adivinhará. Os próprios pais mataram‑nas e penduraram as suas cabeças na parede das cabanas.

‑ Isso... isso não é verdade ‑ balbuciou o Dr. Forster, horrorizado. O rosto dele torceu‑se de horror.

‑ O grande deus tratou das cabeças deles. O que fazer então? Corta‑se a cabeça e pendura‑se como uma coisa sagrada. Para os pigmeus é pensar logicamente.

‑ Isso... isso... Tem de se lhes fazer perder o costume ‑ gaguejou Forster.

‑ Não se torne em missionário, doc! ‑ Haller esfregou o rosto com as duas mãos. ‑ Temos de passar o tempo até à cura de Ellen, mais nada. E se eles cortarem os seios às mulheres deles e os trouxerem de presente, aceitamo‑los, doc! Temos de fazer tudo para ter sossego e brincar aos deuses.


A fractura na perna de Ellen, aparentemente, estava a sarar bem. Não apareceram complicações, a tala segurava melhor do que o Dr. Forster tinha esperado, as lianas e as folhas grandes, que depois de secarem cercavam a perna como uma ligadura de gesso, eram melhores do que todos os materiais de ligaduras normais. O grande perigo de que a fractura estivesse mal encaixada e que se tivesse de, mais tarde, tornar a partir a perna para a endireitar, parecia estar banido. Sem raios X, apenas controlado pelo sentido do tacto dos seus dedos, era um grande êxito do Dr. Forster. Cliff Haller deu a sua opinião sobre o assunto:

‑ Para que é que você é cirurgião, doc? Todos têm de perceber do seu oficio. Você cura ossos, eu desenterro segredos.

Os pigmeus faziam tudo para manterem os seus deuses bem dispostos. Levavam‑lhes carne em quantidades gigantescas, frutas e rebentos de raízes, suco fermentado de palmeira, e água. Cliff era cuidadoso com a água. Primeiro fervia‑a, antes de a dar a beber à vontade. Mas não era só na boa alimentação que a pequena gente castanha se preocupava com os seus deuses. Desde que Cliff e o Dr. Forster ficassem na casa grande, eles estavam tranquilos... Só que quando saíam, eram sempre seguidos à distância de três metros por seis ou oito guerreiros, como se fossem guarda‑costas que deviam proteger a propriedade mais preciosa da tribo. Na verdade eram vigias, que tinham de prestar atenção para que os deuses permanecessem sempre na zona da tribo, e que tinham a ordem de atingir imediatamente com setas envenenadas todas as tribos estranhas, mal se aproximassem dos deuses. Cliff apercebeu‑se disso rapidamente e fez uma careta.

‑ Têm uma estranha espécie de hospitalidade ‑ disse para Forster. ‑ Até os próprios deuses eles consideram como sua propriedade. Vai ser um problema quando a Ellen puder andar novamente e deixarmos os anões.

Na segunda semana todos os indícios mostravam que os pigmeus queriam fazer uma festa. Os homens enfeitaram‑se com penas de aves, as mulheres pintaram‑se com cinza amarela. Duas raparigas jovens, pequenas como crianças, mas de corpo totalmente desenvolvido, foram untadas com barro vermelho e enfeitadas com grinaldas de flores. Na casa do chefe, um rapaz foi preparado ao mesmo tempo. O feiticeiro pintou‑lhe o corpo com tintas de plantas, pinceladas grosseiras; dedicou‑se com especial atenção ao órgão sexual... foi Pincelado à volta com uma cor vermelha luminosa. E depois os tambores de árvores, compridos e côncavos, ribombaram abafados, os homens formaram um bloco de corpos nus que estremeciam, em frente do bloco de mulheres nuas besuntadas de cinza; três cantores entoavam uma horripilante gritaria perto do tambor, que aumentava e diminuía como uma sirene. Cliff e o Dr. Forster, que saíam da cabana a correr assustados, engatilhando as espingardas, fitaram pasmados as duas filas humanas, que se agitavam em contracções ritmadas. O rapaz nu dançava com o seu sexo vermelho luminoso em frente dos homens, em frente das mulheres saltavam as duas raparigas na sua couraça de barro, que apenas deixava livres os seios e o baixo‑ventre.

‑ Diabo... ‑ disse Cliff, encostando‑se à sua espingarda. ‑ Isto dá a impressão de eles quererem fazer‑nos alguma coisa de bom. As raparigas são para nós... o rapaz para a Ellen. Então, viva! ‑ disse o Dr. Forster sarcasticamente.

‑ Tem de se perceber os homenzinhos. Os deuses também amam, pensam eles.

‑ E as raparigas e o rapaz vão ser mortos posteriormente.

‑ Com toda a certeza. Mas eles sabem‑no, e é uma honra para eles.


Os pigmeus dançavam agora em volta da cabana grande dos deuses. As duas raparigas ajoelharam‑se perante Cliff e Forster, enquanto o rapaz esperava em frente deles. "Levem‑me até ela", dizia o seu olhar. "Eu quero fazer a deusa branca feliz!"

‑ Pensa, meu filho! ‑ disse Cliff, sorrindo ironicamente. Levantou a mão e abanou‑a. Os pigmeus perceberam automaticamente este não. Começaram a guinchar e precipitaram‑se sobre o rapaz, querendo despedaçá‑lo. No último momento, Cliff disparou para o ar, os pequenos homens caíram outra vez no solo, as mulheres rastejaram em conjunto amontoando‑se como vermes. Cliff agarrou o perturbado rapaz pela mão e empurrou‑o para a cabana.

‑ Tu agora ficas aqui ‑ disse‑lhe. Sentou‑o num canto e indicou‑lhe o lugar. ‑ Aqui! E nem um movimento. ‑ E virando‑se para Ellen, que ainda não tinha percebido tudo, gritou: ‑ Baby, se ele se mexer do lugar, dispara uma vez para a frente dos pés dele. Os queridos anfitriões destacaram‑no para lavrar o teu baldio sexual. Eles realmente fazem tudo pelos seus deuses.

Ellen endireitou‑se e colocou a sua pistola à mão, perto dela.

‑ Então o que é que se passa lá fora, Cliff?

‑ Uma festa absurda. Duas donzelas estão aprontadas para nós.

‑ Também as queres segurar na cabana?

‑ Isso traria complicações. ‑ Cliff sorriu ironicamente e andou de volta para a porta. Ali apareceu o Dr. Forster acenando.

‑ Acabou tudo. Eles suspenderam a festa.

‑ Isso é mau sinal ‑ Cliff olhou, muito sério, para Ellen. ‑ Cobrimos o presente deles de vergonha. Só o diabo sabe o que os anões da Idade da Pedra estão agora a inventar! Saíram da casa e olharam em volta. O sítio estava vazio. Os homens e as mulheres tinham‑se escondido nas suas cabanas, apenas o chefe e o feiticeiro estavam sentados na beira do campo de dança como pequenos montes de terra. Atrás deles, entre duas árvores, pareciam estar peles estendidas. Cliff Haller ficou pálido e agarrou o Dr. Forster pelo braço.

‑ Doc... veja só.... atrás dos tipos... ‑ A sua voz perdera todo o som. ‑ Mataram as infelizes raparigas e penduraram‑nas nas árvores. Venha... vamos mostrar‑lhes o que pensamos disto.

Carregaram as espingardas, entalaram‑nas debaixo dos braços e dirigiram‑se devagar para o sítio horrivelmente assinalado. O chefe e o feiticeiro curvaram‑se profundamente com as cabeças por terra. Cliff deu um pontapé aos dois e eles rolaram no solo como bonecos de madeira, por uma distância de alguns metros. As raparigas estavam horrivelmente maltratadas; uma visão junto da qual o próprio Cliff foi assaltado por vómitos. O rosto de Forster estremeceu.

‑ Vamos enterrá‑las, doc... ‑ disse Haller em voz baixa. ‑ Segure na pá de Moco.

Durante uma hora cavaram a dupla sepultura, meteram os corpos despedaçados das duas raparigas lá dentro e taparam novamente a cova. Depois, o Dr. Forster espetou uma cruz no pequeno monte; tinha‑a feito com dois ramos grossos e, com fios de liana. Na manhã seguinte a cruz estava enfeitada. Na travessa estavam penduradas algumas cabeças recentemente cortadas, como que penduradas para secarem. Os guerreiros pigmeus tinham‑nas trazido de uma incursão à região vizinha.

‑ É difícil ser‑se missionário ‑ disse Cliff para o Dr. Forster, sarcasticamente. ‑ A sua cruz tornou‑se um sítio novo de culto.


Na quinta semana, Ellen fez a primeira tentativa para andar. Apoiada em Cliff e Forster, coxeou à volta da cabana, andou depois algumas vezes sobre a perna e deixou‑se cair novamente, esgotada, sobre a cama.

‑ Numa semana estás a correr como uma corça! ‑ disse Cliff, elogioso. ‑ E dentro de uma semana vamos continuar o caminho. Estive a estudar o mapa. ‑ Aqui devemos estar nas proximidades do rio Coari. O nosso rio de esterco deve nascer onde o Coari também nasce. Se conseguirmos chegar até ele, viveremos de novo. Depois flutuamos directamente para o Amazonas e para Manaus.

‑ E para os braços de Cascal ‑ disse Ellen.

‑ Não. Para as pessoas que estão lá no ar livre nós estamos desaparecidos, arrumados, mortos! Devorados pela selva. Vamos flutuar pelo Amazonas abaixo, como viajantes em férias, e ninguém vai reparar em nós. Só em Manaus é que vai ser perigoso.

Em mais oito dias Cliff estava pronto para a partida. Tinha ensinado tanto ao rapaz, que andava à sua volta como um escravo que lhe conseguia explicar o que desejava, através de desenhos e de sons. Com um ramo, desenhou uma canoa no chão, com lugar para quatro pessoas, Depois apontou para Ellen, para ele próprio, para o Dr. Forster e para o jovem pigmeu. O pequeno rapaz acenou com a cabeça afirmativamente, receoso. Estava a entender. Os deuses brancos queriam seguir viagem. A grande honra da tribo estava a extinguir‑se. Ajoelhou‑se no seu canto humildemente e observou como Cliff e o Dr. Forster atavam a sua bagagem. Depois esperaram pela noite. Sobre eles, estava um céu brilhante de estrelas, quando deixaram, sem ruído, a cabana grande e pararam primeiro que tudo, na sombra da parede.

A aldeia dormia. Não havia nenhuma fogueira a arder, apenas os diversos sons nocturnos da selva cercavam a miserável cabana redonda.

O rapaz fez um sinal. Levou‑os por um outro caminho para o rio, diferente do que tinham tomado à ida. Descreveu um semicírculo maior, trotava à frente deles por um atalho estreito e agitou os braços no ar quando Cliff parou reservado, perscrutando a noite.

‑ Temos de confiar nele totalmente ‑ sussurrou para Ellen e Forster. ‑ Ele agora tem‑nos na mão.

O atalho desembocava novamente no caminho que ia para o rio. E ali, talvez à distância de trezentos metros da aldeia, ouviram subitamente gritos agudos e viram então um brilho de fogo que iluminou o céu nocturno.

‑ Descobriram a nossa fuga! ‑ gritou Cliff. Agarrou em Ellen e empurrou‑a à sua frente.

‑ Rudolf! ‑ chamou Ellen, puxando Cliff com uma mão dura como um gancho de ferro. ‑ Onde está o Rudolf. Ele já não vem connosco!

‑ Está atrás de nós! Diabo... adiante! Não faz sentido ficar parado!

‑ Rudolf?

Ellen fincou as pernas no chão. Cliff puxou‑a para a frente, e quando ela se quis defender e libertar‑se, bateu‑lhe no rosto com a mão livre.

‑ Ele ficou para trás! ‑ gritou ela. ‑ Não podemos deixar o Rudolf sozinho!


o caminho para o rio. Ainda mais cem metros. Será que a canoa ainda está na margem? Depois de seis semanas? Ou será que os pigmeus a destruíram? Estará apodrecida na água? A rede ainda estará estendida no rio? Será que tinham de fugir para o inferno desconhecido, desta vez a pé? Cliff Haller puxava Ellen atrás de si. Por duas vezes ela caiu e nas duas vezes ele puxou‑a para cima novamente, atirou de novo a bagagem para as costas dela e continuou a correr. Já não viram nem ouviram mais o Dr. Forster. Ele tinha tropeçado, e tinha torcido bastante o pé quando tinham chegado ao caminho principal para o rio. Coxeando, dilacerado pelas dores, vacilou para a frente, apoiado no pequeno rapaz, que tinha ficado com ele, e soube nesse minuto que a sua vida tinha acabado ali. Ouviu Ellen chamar o seu nome, mas não lhe deu resposta. "Corre, Ellen", pensou. "Corre... não te preocupes comigo... salva‑te com o Cliff, sê feliz com ele... eu sei que é a ele que tu amas e não a mim... eu não tenho hipótese contra esse homem, sou apenas um pateta de um cientista, um companheiro bonacheirão... Corre, Ellen, corre ... "

Vinham a correr da aldeia como macacos selvagens. Os seus guinchos dilaceravam o coração de qualquer um. Agitavam ramos em chamas. Parou e deu um empurrão no peito do rapaz.

‑ Vai! ‑ gritou. ‑ Põe‑te a salvo. - Apontou para afrente, onde Cliff e Ellen tinham desaparecido na escuridão. ‑ Por que não foges daqui para fora?!

O rapaz abanou a cabeça, calado. Sentou‑se no chão em frente do Dr. Forster e juntou as mãos. Cliff e Ellen chegaram ao rio nesse momento. A canoa já não estava no desembarcadouro, apenas alguns barcos de cascas de árvores dos pigmeus oscilavam na água, graciosos como os barcos dos anões dos contos de fadas. A rede tinha sido tirada, o rio estava livre.

‑ Para dentro! ‑ gritou Cliff, empurrando Ellen para os barcos.

‑ Rudolf? Não podemos fugir sem ele. Cliff, suplico‑te... vamos esperar! ‑ lutou quando Haller a levantou para um dos pequenos barcos e arrancou a corda da estaca com um forte puxão.

‑ Ele vai pegar num outro barco! ‑ disse, ofegante, empurrando o barco da margem. ‑ Está imediatamente atrás de nós. Ali...

Ouviram‑se alguns tiros vindos da floresta. Ellen levantou‑se e pôs as duas mãos em funil em frente da boca.

‑Rudolf ‑ gritou ela estridentemente. ‑ Aqui! Aqui! Estão aqui barcos!


O Dr. Forster encostou‑se a uma árvore e esperou pelo bando de pigmeus que gritavam. Não podia dar mais um passo, a articulação do tornozelo estava a inchar, e cada passo era como mergulhar em água a ferver. Sabia agora que apenas lhe restavam alguns minutos e aproveitou‑os com um sangue frio que ninguém o teria julgado ser capaz de ter. "Ellen já está no rio", pensou, quase feliz. "Estão salvos. Vão continuar a viver, quando a selva os libertar de novo. Eu cumpri a minha promessa: proteger a Ellen, enquanto me foi possível." Era um sentimento notável, que se arrastava através das veias até ao coração e ao cérebro, agora que a sua vida contava ainda e apenas alguns minutos... O Dr. Forster levantou a espingarda. "Vou‑vos ainda arranjar mais alguns minutos de vantagem", pensou. "Aproveitem‑nos, Cliff e Ellen. Não esperem por mim. Ponham‑se a salvo!" Apontou, quando a massa aglomerada dos pequenos seres que guinchavam rolou para ele. As chamas dos archotes iluminavam, oscilantes, os rostos desfigurados. Os deuses estavam a deixar a aldeia. "Detenham‑nos! Enquanto estiverem entre nós, somos invencíveis. Vão buscá‑los!" O Dr. Forster fez pontaria. Depois disparou e varreu o primeiro guerreiro do caminho. Assim que a bala atingiu o pequeno corpo castanho e brilhante e fez o homem rodopiar para o lado, os outros pararam, formando uma parede imóvel como paus cravados no chão. O Dr. Forster disparou ainda mais seis vezes, e os atingidos caíam como se os tivessem serrado. Depois Forster pôs a espingarda na terra, encostou o seu peito ao cano e disparou. O percussor fez plop, mas o tiro não saiu. O carregador estava vazio.

‑ Meu Deus, porquê isto agora? ‑ balbuciou o Dr. Forster com os olhos muito abertos e horrorizados. O seu rosto torcia‑se de uma infindável dor. Via, à sua frente, o horripilante quadro das duas raparigas caídas, que tinham sido estendidas entre as árvores como peles, e fitou o muro silencioso, castanho e chamejante dos clarões dos archotes, dos pequenos seres, que agora tinha começado a pôr‑se em andamento como numa procissão. Forster fechou os olhos. Propunha‑se morrer calado e rezava interiormente para que isso acontecesse depressa. Um bulício de mãos agarrou‑o, arrancou‑o da árvore, o seu pé torcido impeliu a dor até à raiz dos cabelos, rangeu os dentes de sofrimento... mas depois notou, que ninguém o rasgava, que nenhuma faca de pedra afiada se enterrava no seu corpo, mas que, pelo contrário, o erguiam; que seis, ou oito ou dez pequenos corpos castanhos se acocoraram por baixo dele, o carregavam, o levavam embora e caminhavam com ele às costas, solenemente, de volta para a aldeia. Ali pousaram‑no na sua cama da cabana grande e deixaram‑no então, sozinho. Ainda foi incomodado mais uma vez, o feiticeiro entrou e colocou‑lhe uma cabeça aos pés. A cabeça do rapaz. Uma aldeia prestava homenagem ao deus que tinha ficado com eles. O Dr. Forster bateu com as duas mãos em frente do rosto. Podia continuar a viver, mas a selva tinha‑se tornado o seu destino.

Nunca mais se ouviu falar dele. Nunca mais tornou a aparecer. Mesmo mais tarde, quando se passou a pente fino esta região desconhecida, não se registou vida alguma na selva. Os anões não foram encontrados. Mas supõe‑se que o Dr. Forster ainda hoje viva como deus dos pigmeus. Tinha apenas trinta e um anos de idade.

 

Dois meses mais tarde, um homem e uma mulher apareceram no rio Coari, saídos da escuridão do inferno verde. Cambalearam no grande rio como fantasmas, caíram na areia da margem e ali ficaram deitados, como se tivessem morrido de alegria ao verem a liberdade. Ficaram deitados na margem até à manhã seguinte, num sono de esgotamento total, que se assemelhava mais a um desmaio. Cliff Haller foi o primeiro a acordar, arrastou‑se para a água e rolou no rio como um animal. Era uma baía pouco profunda e limpa, sem piranhas e jacarés, apenas duas grossas cobras de água estavam indolentemente deitadas ao sol. Cliff não as estorvou na sua saudade de água refrescante... nadaram até à margem e cederam‑lhe o charco. Depois de ter estado mais de dez minutos a rolar na água, caminhou para terra, deixou‑se cair no chão junto de Ellen, abraçou‑a, levantou‑lhe a cabeça e beijou‑a. Beijou‑a até ela acordar e lançar‑lhe os braços ao pescoço com um grito estridente.

‑ Salvos! ‑ gritou Cliff, rolando com ela através da areia. Comportava‑se como um louco, ria e beijava‑a, depois saltou e puxou‑a para cima, para si. Com um amplo movimento de braços abrangeu a selva e o rio imponente e largo. ‑ A vida! ‑ gritou ele. ‑ Ellen, baby,‑ é assim a imagem da vida! Nascemos de novo!

Nos dias seguintes, construíram uma cabana de folhas, e começaram então a deitar árvores abaixo e a construir uma jangada.

Cliff descobriu um grupo de árvores de balsa, cuja madeira era tão leve como a cortiça e passava por nunca se afundar. Primeiro, construiu uma pequena jangada com grandes remos e fez uma viagem de reconhecimento pelo rio Coari abaixo. Voltou ao fim de seis horas extenuado, esgotado, vencido pela corrente do rio.

‑ A seis quilómetros daqui há uma pequena colónia ‑ disse, quando, depois de ter comido, estava deitado junto de Ellen debaixo do tecto de folhas. ‑ Índios civilizados e alguns brancos. Suponho que sejam topógrafos. Lá o rio fica tão largo que, se se é arrastado pela corrente, pode‑se fazer o que se quer. Isso é bom, baby. Vamos chegar ao Amazonas numa viagem sem paragens.

Depois de três semanas a jangada grande estava pronta. Cliff cortou as lianas, pôs o braço por cima de Ellen e levou a mão direita à cabeça.

‑ Vamos chamar‑lhe Rudolf ‑ disse ele, solenemente, quando a jangada resvalou para o rio e a água a sepultou antes de aparecer novamente. Era a primeira vez que o nome de Forster era mencionado de novo. Ellen acenou a cabeça afirmativamente em silêncio e pressionou a cabeça no peito de Cliff. Precisaram de três dias para carregarem a jangada de víveres, água fresca, e lenha. Cliff apanhou porcos selvagens numa armadilha, retalhou‑os e Ellen assou‑os em lume aberto para que a carne se conservasse. Cliff fez panelas e recipientes para a água, de abóboras escavadas, fez as caixas dos mantimentos a partir de troncos de madeira, que atou com lianas e nas quais empilharam a carne assada. Depois chegou finalmente a hora em que empurraram a jangada da margem e a impeliram para o meio do rio Coari. Cliff dirigia, com o seu grande remo no garfo da popa da jangada, e aconteceu‑lhes irem para a corrente mais depressa do que tinham pensado. Precipitaram‑se pelo rio abaixo a grande velocidade, como se estivessem num barco a motor. Ellen andou para trás até Cliff, abraçou‑o e beijou‑o. De repente, começou a chorar e pôs‑se de cócoras aos seus pés.

‑ Eu nunca teria acreditado que alguma vez saíssemos de novo da floresta ‑ soluçou. - Eu já tinha concluído, Cliff.. que estava morta!

‑ Ela olhou em redor, viu o rio largo, a margem verde deslizante junto deles, o céu azul e o raio do maldito, amado, odiado, adorado Sol.

‑ E agora estamos de viagem... estamos a viajar, Cliff, estamos realmente a viver... e tudo já passou!


‑ Tudo, baby. ‑ Cliff cerrou os dentes. "Ainda não temos Manaus para trás de nós", pensou ele. "Ainda não estamos no Rio. Ainda não estamos a voar para a Flórida." Ainda tenho os dois filmes comigo... tive‑os comigo o tempo todo, numa bolsa de couro ao peito. Os filmes que valem milhões, que podem abalar um estado. Os filmes que valem duas vidas como as nossas. A caçada, baby, ainda não acabou. Apenas regressámos de um perigo, para ir para outro perigo. E é mais perigoso do que os pequenos pigmeus, atrás de tudo estão milhares de cérebros que trabalham como um computador. Só quando nós estivermos novamente no outro lado, na Flórida, é que a nossa vida nos pertence de novo".

 

Flutuaram durante três semanas pelo rio, até chegarem finalmente ao Lago Coari do Amazonas. Viajavam apenas de noite... Durante o dia, dormiam nas margens solitárias, debaixo de árvores pendentes, refaziam as suas provisões de comida e recolhiam água da chuva para matarem a sede. Por duas vezes, Cliff acostou perto de uma colónia, foi a terra e voltou, depois, carregado de coisas. Trouxe um machado, dois cobertores, uma pequena tina de zinco, uma garrafa de gás para cozinhar, sal e pimenta, duas facas de cozinha e um envelope com dois mil cruzeiros. No Amazonas também se deixaram levar apenas de noite, até irem a terra, à pequena cidade da selva, Codajás. Num armazém que fornecia os exploradores de cauchu e outros aventureiros, Cliff comprou com o dinheiro roubado um novo fato colonial para ele e, para Ellen, umas calças e uma camisa larga de linho. Pela primeira vez em meses, fumou novamente um cigarro. Foi como uma festa. Sentou‑se sozinho, num banco lá fora, em frente ao armazém, e inalou o fumo como se fosse um remédio. "Só agora", pensou ele, "estou realmente de volta. Estou a fumar um cigarro americano".

Flutuaram mais um pouco até Manaus como turistas, apenas um pouco desconfortavelmente, mas, por outro lado, abastecidos de tudo. A jangada nunca foi abaixo, as ligações das lianas estavam seguras. De dia, reinava um animado tráfego de barcos no Amazonas... a proximidade da grande cidade de Manaus fazia‑se notar. Batelões de carga com valiosas madeiras exóticas flutuavam indolentemente pela corrente abaixo, pequenos barcos a motor circulavam à sua volta como mosquitos; De noite, porém, o Amazonas estava sossegado, sonhador como um rio de contos de fadas no qual a lua se espelhava. Foi o tempo mais bonito da viagem deles... deslizavam com a sua jangada, como através de prata líquida. Manaus. A fervilhante cidade da selva. De solo calcorreado pelos cavaleiros da fortuna como as cidades dos pesquisadores de ouro na Califórnia e no Alasca. Uma cidade cuspida da selva, na confluência do Amazonas com o Rio Negro.

Cliff Haller e Ellen entraram em Manaus de uma maneira completamente discreta. Tinham deixado a jangada em Salgada e afundado todos os víveres ainda existentes e utensílios, na corrente. Cliff libertara as lianas e deixara os troncos flutuarem isoladamente. Depois compraram duas mulas e um largo chapéu de palha para cada um e foram ao encontro da cidade, tal como centenas de outros habitantes. A primeira cabina de telefone que viram puxou Cliff como que por magia. Sentia‑se agora tão seguro que não podia conter mais o seu triunfo pessoal. às quinze horas e quarenta e três minutos o telefone do general Aguria tocou. Aguria olhou para o relógio involuntariamente, porque a telefonista lhe tinha dito que um indivíduo aparentemente louco lhe queria falar.


‑ O que se passa? ‑ gritou Aguria ao auscultador. ‑ Quem é você?

‑ Aqui fala Haller ‑ disse Cliff, cheio de prazer. ‑ Cliff Haller, Eu ganhei a corrida, general. As fotos estão a caminho de Washington. Quero‑lhe dizer só mais uma coisa: Não vou voltar para a sua maldita selva outra vez! Passe muito bem, general!

Aguria pousou o auscultador devagar, como se fosse de chumbo. Esfregou o rosto, suspirou profundamente e levantou o auscultador de novo.

‑ Sargento ‑ disse para o interfone. ‑ O ministério no Rio, o chefe da defesa e o Sr. Cascal. Você tem os números. Primeiro Cascal ...

Esperou cerca de quatro minutos, depois o telefone tocou. A voz insípida de Cascal fez‑se anunciar.

‑ O que se passa, Sr. General? ‑ perguntou. ‑ Quer que eu vá aí para jogar às cartas?

‑ Sim, José. Tenho aqui uma cartada de póquer magnífica. Cliff Haller está em Manaus ...

Aguria ouviu como Cascal, do outro lado, ofegava alto e depois, sem dizer uma palavra, cortava a ligação. O caçador tinha encontrado de novo a sua caça.

 

Capitulo 8

Thomas Callao conhecia toda a gente em Manaus. Mais tarde ou mais cedo entrava‑se em contacto com ele, pois Callao era agente funerário e coveiro. A sua loja, em cuja montra estava um caixão de luxo de mogno comalmofadas de seda branca, impressionava bastante e era garantido que apenas lá entrava quem tinha alguém para enterrar. Quem iria a uma loja funerária sem ser forçosamente? Assim, Thomas Callao vivia feliz e proscrito na cidade da selva, fazia o seu trabalho com dignidade, amortalhava e enfeitava as capelas do cemitério, exprimia a sua profunda compaixão aos familiares do falecido e consolava‑os com dizeres da Bíblia, o que era recebido com contínuos agradecimentos. Tratava todos os políticos por tu, conhecia os oficiais da guarnição amazónica, o presidente da câmara, as pessoas ricas da cidade, o juiz e os advogados estatais, era membro do clube de golfe, promotor da associação de futebol e um dos apoiantes da reinauguração da grande ópera de Manaus. Thomas Callao pertencia à cidade de Manaus, tal como o rio Amazonas, e se alguém perguntasse há quanto tempo ele já ali vivia, receberia a resposta: "Quem é que sabe isso? Ele esteve sempre aqui." Não era verdade, Thomas Callao apenas vivia na orla da selva havia sete anos, e na realidade não se chamava de modo algum Thomas Callao, mas sim Robert Carpenter, não tinha nascido em Belém, mas sim num pequeno lugarejo no Utali, tinha estudado em Massachusetts e fora mais tarde para a CIA o que uma freira é para uma criança. Pelo menos era assim que ele o explicava. Por um mero acaso, tinha ajudado a desmascarar um agente japonês, e isso tinha‑lhe agradado tanto que tinha ficado na organização. Aprendeu tudo o que era necessário para se tornar outra pessoa, e veio a ser Thomas Callao, foi para Manaus e a partir dali conduzia a acção da espionagem em toda a América do Sul. O disfarce de funerário tinha‑se verificado ser a melhor ideia... quem enterra cadáveres é, para um pensador normal, totalmente inofensivo, e é igualmente compreensivo que entrem e saiam permanentemente pessoas estranhas da sua loja, pois onde se nasce, também se morre, e familiares do falecido há sempre em grande quantidade. Bob Carpenter não ficou muito admirado quando nesse dia entraram na sua loja um homem e uma mulher elegante, de longos cabelos louros e, contra o que era habitual, não se dirigiram de imediato para os caixões alinhados segundo os preços, mas olharam em redor discretamente, fecharam a porta da loja atrás deles e penduraram no vidro ao lado da porta o letreiro "FECHADO TEMPORARIAMENTE". A gente em Manaus troçava então sempre: "Os nossos doutores estão a trabalhar outra vez diligentemente."

‑ Essa agora! ‑ disse Carpenter à porta do seu escritório, instalado nas traseiras. ‑ Já é meio‑dia?

‑ Faltam cinco! ‑ Cliff Haller tirou o grande chapéu de palha da cabeça. ‑ Fecha a boca... não pareces lá muito sexy nessa atitude!


‑ Cliff ‑ gaguejou Carpenter. ‑ Meu Deus, Cliff, és tu! ‑ Correu para Haller, abraçou‑o e comprimiu‑o contra si. Era tão alto como Cliff, apenas um pouco mais magro, e a sua postura adequada mais elegante, com a sua camisa branca e o seu fato azul médio. ‑ Cliff, eu enterro mortos, mas não sou competente em ressurreições! A igreja mais próxima, com um cura que faz milagres, é três ruas mais à frente. São José!

Cliff riu alegremente, empurrou Carpenter e virou‑se para Ellen.

‑ É meu amigo ‑ gritou. ‑ Diabo, sinto‑me outra vez como em casa. ‑ Puxou Ellen pela mão até Carpenter, e acenou‑lhe com a cabeça afirmativamente. ‑ Bob, não faças má cara; sê amoroso e bom, se queres passar o domingo sem um olho negro: Esta aqui é a futura Mrs. Haller.

‑ Estou a rebentar de entusiasmo. ‑ Carpenter estendeu a mão a Ellen. ‑ Seja bem vinda ao nosso círculo, lady. Ainda estão a crescer mais algumas orquídeas na selva tão magníficas como você?

‑ Pára! ‑ Cliff pôs a mão rente à boca de Carpenter.‑ Ellen é médica. Dra. Ellen Donhoven. Eu recolhi a expedição dela, quando ela estava para ser uma vítima da intriga de um sacana dos serviços secretos brasileiros.

‑ Cascal!?

‑ Conhece‑lo?

‑ Desde o teu desaparecimento, tenho recebido todos os elementos da central. ‑ Carpenter sorriu ironicamente. ‑ Sabes que, oficialmente, estás morto há quatro semanas? Condecoraram‑te mesmo post mortem, com a medalha de mérito. Como eu conheço os velhos de Washington, não terás de a devolver. Só quando a gente morde o pó é que se sabe lá em cima que espécie de tipos é que nós éramos. Vem para o escritório ‑ disse Carpenter.

Saiu, tirou sumo de laranja de um recipiente de bebidas geladas e empurrou os copos para Cliff e Ellen sobre a mesa. Para eles era uma sensação invulgar e magnífica estarem sentados numa poltrona novamente.

‑ Vou transmitir à central que Cliff` Haller está comigo e perguntar se a sua promoção a tenente‑coronel já chegou. Se não, ele vai de novo para a selva.

‑ Cala‑te! ‑ Cliff levantou a mão. Desatou a sua bolsa de couro fora da camisa e abriu‑a. Pousou dois pacotes, pequenos rolos de filme, na mesa. Carpenter olhou‑os com as sobrancelhas levantadas.

‑ Isto tem de ir imediatamente para a central, Bob.

‑ Fotografias de papa‑formigas?

‑ Fotografias, meu velho, pelas quais os nossos políticos rodopiam há um ano. Estas são as imagens mais quentes dos últimos anos.

‑ Daí a caçada! O general Aguria mobilizou toda a guarnição, até que constou que tu tinhas morrido na floresta. A gente do Rio e da central perguntava continuamente o que é que, em nome de Deus, se estava a passar. Como é que eu posso saber, era a minha vez de perguntar. Mas todos nós suspeitávamos que tu tinhas algo na manga.

O que é?

‑ Uma base de mísseis no meio da selva. Direcção: E. U. A.!

Carpenter arregalou os olhos.

‑ Tu és doido, Cliff!

‑ Nos filmes está a verdade, Bob! Fiz duas rampas irem pelos ares... como cartão de visita, para saberem que lá estava.


‑ Isto não é típico? ‑ Carpenter olhou para Ellen, desaprovador. ‑ Ellen, desembarque ainda hoje, nunca case com ele, com este louco. Você não vai ter um minuto de descanso na sua vida! Qualquer um, num caso destes, entra furtivamente na zona do inimigo e safa‑se de novo, como um sopro de vento... mas o que faz ele? Deixa o seu cartão de visita. Faz um lumezinho! E depois brinca à mosca morta e desaparece durante meses. ‑ Carpenter pegou nos pequenos filmes, tirou uma lata do armário, com o rótulo "A boa marmelada de Gonzales" e atirou os preciosos rolos lá para dentro. Cliff Haller sorriu ironicamente.

‑ Ellen, olha para ele. Ele põe as imagens, que significam a segurança para duzentos milhões de americanos, numa lata de marmelada! E afirma ele que eu é que sou doido.

‑ A mim parece‑me que todos da vossa espécie são assim - disse Ellen. ‑ Mas, Mr. Carpenter, para seu descanso: eu já me habituei a isso. Bocejaria e morreria de aborrecimento se Cliff de repente fosse outra coisa. Eu amo‑o.

‑ Vamos beber a isso. ‑ Bob Carpenter bateu as palmas. ‑ Até às três horas tenho tempo. Depois tenho de enterrar um avô. Meninos, vocês não sabem como eu estou contente por o Cliff ter saído desta floresta de porcaria.

às três horas da tarde acompanharam Carpenter até ao seu carro funerário preto, enfeitado com palmas de folhas prateadas. Cliff tinha bebido demasiado uísque e cambaleava ligeiramente, apoiando‑se em Ellen. Estava tão feliz por estar novamente no mundo normal que fazia uma porção de disparates, como um rapaz pequeno. Carpenter piscou os olhos a Ellen.

‑ Leve‑o para a cama ‑ disse‑lhe em voz baixa. ‑ A euforia dele pode facilmente ficar perigosa. Amanhã será tudo diferente. Cascal está em Manaus...

‑ Deus do céu! ‑ Ellen encolheu os ombros. ‑ E ele que telefonou ao general Aguria, antes de vir ter consigo.

‑ Este super‑homem! ‑ gritou Carpenter. Voltou‑se para Cliff, que oscilava de um lado para o outro e puxou‑o para si. ‑ Tem de ser assim, Cliff! Queres acossar outra vez a matilha atrás de ti?

‑ Sim. ‑ Haller acenou com a cabeça afirmativamente várias vezes. ‑ Para os desviar dos filmes. Bob... providencia que cheguem seguros a Washington. Eu trato de Cascal sozinho.

‑ Ele não é mesmo um herói? ‑ disse Carpenter, amargo.

‑ Ellen, se você quer realmente casar com ele, trate de fazer com que seja tirado da circulação. Senão, terá pouca alegria na sua lua‑de‑mel...

 

O general Aguria já tinha telefonado para o Rio, para o comando‑geral e para a Defesa, quando Cascal apareceu no governo militar. Aguria cumprimentou Cascal com um sorriso de lado.

‑ Cliff Haller está, portanto, em Manaus ‑ disse Aguria, quando Cascal já se tinha sentado e acendido um cigarro. ‑ Já enviou os filmes. Cascal, eu sei o que você quer objectar, mas desta vez eu acredito em Cliff. Ele estava tão seguro ao telefone. Não é bluff! Perdemos a corrida.


‑ O que significam os filmes, general? ‑ Cascal sorriu, soprando o fumo do cigarro. ‑ Em qualquer estúdio de desenhos animados pode‑se montar uma base de mísseis. E então os mísseis são tão grandes como um dedo, mas na imagem do filme são do tamanho de uma casa. Quando os americanos nos mostrarem as imagens, vamos rir e vamos dar‑lhes como provado que a firma Walt Disney fez um bom trabalho. Perigoso será apenas, e ainda, Cliff Haller. Ele sabe, como é a aparência daquilo, é uma testemunha ocular! Para nós, Cliff juntamente com os filmes é mortal... os filmes sozinhos são caso para rir.

Aguria fitou Cascal pensativo. Nos seus olhos podia‑se ler o seu cérebro a trabalhar.

‑ Então, você quer dizer, Cascal... ?

‑ Sim, eu quero dizer que temos de liquidar Cliff.

‑ Sabe quem está por trás dele? Agora está tudo em estado de alerta... desde Washington até à embaixada, desde o Pentágono até às unidades especiais. Se nós agora agarrarmos Cliff, já não há mais desculpa!

‑ General, dão‑se acidentes em qualquer situação, sempre foi e há‑de ser assim em todos os tempos.

‑ Ninguém acredita em nós com mais um acidente. Cliff está lá no clarão da glória do seu sucesso. E de tal maneira que não há acidente que lhe chegue.

‑ E se o acidente for com Ellen?

‑ A médica alemã? O que significa isso?

‑ Cliff é amante dela. Se matarmos Ellen, atingimos Cliff no meio do coração!

‑ Você é um Satanás, Cascal!

‑ Eu apenas penso com sensatez. ‑ Cascal sorriu pensativamente. ‑ É o caminho mais lógico: vamos eliminar Ellen Donhoven através de um acidente. Um acidente em que Cliff perceba que foi apanhado. O que fará Cliff? Como reagirá um apaixonado? Vai pensar em vingança e sair da reserva. Vai comportar‑se precisamente de maneira a que, quando o selvagem for abatido, tenhamos agido em legítima defesa! Vamos poder provar: meus amigos, ele começou. Nós apenas nos defendemos.

‑ E onde é que você quer representar a peça de teatro?

‑ Em Manaus ou no Rio, como é que eu o posso saber agora? ‑ Cascal cruzou as pernas. Parecia um grande industrial, elegante, cuidadoso, inteligente, reservado. ‑ Primeiro tenho que o encontrar.

‑ Isso, a curto prazo, não será problema. ‑ Aguria atirou‑se para a sua poltrona com um gemido. Ainda estava a pensar no ministério no Rio. "Eles vão‑me mandar para o deserto", pensou, profundamente preocupado com os planos do seu camarada general. "Primeiro a base de mísseis, depois a perseguição... e mais nada para além de fracassos. Existem pessoas que arrastam o azar em volta, Como Uma constipação prolongada." ‑ Todos os hotéis, estalagens e pensões vão ser vigiados e têm instruções para darem informações imediatamente sobre os novos hóspedes. A saída para a costa vai ser controlada. O aeroporto está cercado. Nenhum percevejo pode levantar voo sem ser visto, todos os passaportes vão ser examinados, para se identificarem falsificações. Mais não se pode fazer. ‑ Apertou o queixo gordo e encarou o silencioso Cascal. ‑ Supondo que descobrimos onde Pára Cliff nos próximos minutos, o que é que você fará, então?

‑ Nada.

‑ Isso é uma piada, não? ‑ Aguria torceu o rosto. ‑ E uma piada de mau gosto, pois não consigo rir.

‑ Não. Não vou fazer nada. ‑ Cascal juntou as mãos sobre o seu joelho dobrado. ‑ Vou dar mais informações à Rita. É tudo. Sabe quem é que ultrapassa um diabo?

‑ Uma mulher que odeia...


‑ Muito bem, general. Rita é um vulcão que odeia! Isso era o que eu queria dizer, quando, antes, estava a falar de um "acidente". Cliff Haller vai perecer devido a um ciúme ardente e, com ele, esta médica alemã. Uma tragédia puramente passional, totalmente a política. Não vai haver político que intervenha, se uma mulher está na origem de decisões pouco ortodoxas. Haller não será vítima do seu trabalho, mas sim do seu baixo‑ventre!

Aguria inspirou fortemente e transpirava como que numa sauna. Com um puxão desapertou o colarinho do uniforme.

‑ Cascal, seu cão do inferno, você já treinou a rapariga para isso, não?

‑ Não. Isso fez o próprio Cliff. Por isso é que eu também o odeio. Pois... não ria, general, eu amo a Rita. E só a vou poder ter totalmente para mim quando não houver nenhum Cliff Haller.

O toque do telefone interrompeu‑o. Aguria levantou‑se gemendo, e dirigiu‑se para a secretária.

‑ Sim? ‑ disse ele ao telefone. Depois calou‑se, os seus olhos começaram a luzir e tornou a pousar o auscultador com um profundo suspiro. ‑ Cascal... a sua representação teatral já começou. O grande rival está em cena!

Cascal inclinou‑se para a frente. As suas mãos tremiam, quando as pousou no copo de conhaque.

‑ Cliff?

‑ Sim. Não pessoalmente, mas mesmo assim... O balcão do aeroporto informou que Cliff Haller e a Dra. Ellen Donhoven reservaram dois lugares para o Rio, para amanhã. Voo 4, às dez horas e vinte e cinco minutos, primeira classe. Sempre distinto. ‑ Aguria afundou a cabeça. ‑ Onde é que ele arranjou o dinheiro? Será que os cruzeiros crescem nas árvores da selva? E onde diabo é que ele se encontra agora?!

‑ Com o seu contacto daqui ‑ respondeu Cascal jovialmente. - Não vale a pena contar os agentes que vivem em Manaus. Mas descobri‑los, só por acaso. Então, amanhã, às dez horas e vinte e cinco. ‑ Cascal saltou repentinamente. Era como se dentro dele corresse agora um mecanismo de relógio, como numa bomba ‑ Eu vou estar no mesmo avião.

‑ Com Rita? ‑ acrescentou o general Aguria.

‑ Com Rita! Ela vai ser o mais lindo anjo vingador que jamais existiu.

 

O voo 4 foi chamado. Um DC‑6 da Air‑Brasília, com destino ao Rio de Janeiro. Rita Sabaneta encostou‑se à parede do átrio e fitou as portas que davam para o parque de estacionamento. Cascal estava junto dela, fumando calmamente uma cigarrilha comprida e torta. Um par bonito, elegante e aparentemente em viagem de recreio para a cidade, que devia ser como nos contos de fadas. Rio de Janeiro.

‑ Onde está ele? ‑ sibilou Rita, quando a voz se fez ouvir no altifalante pela segunda vez: "Todos os passageiros para o voo 4, por favor queiram dirigir‑se ao aparelho." ‑ Ele notou qualquer coisa. Fugiu!

‑ Não há nenhumas participações de desistência.

‑ O avião descola daqui a dez minutos, José. ‑ Ainda são dez eternidades. Tu sabes que o Cliff pode fazer tudo em dez minutos.


‑ Eu rebento. José, eu estoiro! ‑ Rita Sabaneta cerrou os punhos e escondeu‑os atrás das suas costas. Raspou a parede com eles, como se os quisesse cravar num buraco. Cascal olhou rapidamente para ela, mascando o filtro da sua cigarrilha.

‑ Compõe‑te! ‑ disse rudemente. ‑ Tu sabes como tens de te comportar. Nada de escândalos no aeroporto! Tu és a grande senhora que Cliff Haller não conhece!

‑ Eu não me vou abaixo, José. ‑ Rita soprou através do nariz como um puma enfurecido. ‑ Quando o vir, vou arranhar‑lhe a cara até sangrar. Para o marcar.

‑ Não vais fazer nada disso. Vais liquidá‑lo, como combinámos. Ele não te vai escapar mais!

Os passageiros passavam para a pista de voo através da saída VI. O aparelho estava parado, reluzindo ao sol. Duas hospedeiras cumprimentavam os passageiros no topo da escada. Os pequenos carros eléctricos corriam de um lado para o outro com as bagagens.

‑ Lá está ele! ‑ disse Cascal. Ele próprio sentiu como a sua voz soava rouca e trémula nesse momento. Cliff Haller atravessou a porta da entrada com grandes passos. Ao seu lado, Ellen Donhoven, num moderno saia‑casaco justo, vermelho‑claro. O cabelo louro, comprido, que ondulava sobre os seus ombros, fazia um contraste magnífico. Cliff trazia um fato branco novo, como os que outrora eram preferidos pelos fazendeiros ricos. Parecia tão másculo como só um homem podia ser. Quando Cascal olhou rapidamente para Rita, o seu coração parou de bater. Aquele era mais do que um olhar de uma mulher que odiava ... eram os olhos de uma hipnotizada a quem tinham ordenado: "Estás a ver um anjo! Estás no paraíso! Alegra‑te!" Cliff atravessou o portão VI, atrás de Ellen, depois de ter mostrado o seu bilhete; atirou a bagagem para um dos carrinhos que rolavam junto dele e pôs o braço nos ombros de Ellen já a correr.

‑ Vou matá‑lo ainda na escada de acesso ‑ disse Rita, rangendo os dentes e afastando‑se da parede.

‑ Vais fazer o que eu te disse. ‑ Cascal segurou‑a pelos braços. ‑ Eu entreguei‑te o Cliff.. agora tens que manter a tua promessa.

Ela acenou com a cabeça afirmativamente, calada, depois libertou‑se e correu atrás de Haller. Cascal mal a conseguia seguir, e eles também tinham de se apressar, pois eram os últimos passageiros. Atrás deles, a voz da direcção de voo ribombava mais uma vez no altifalante.

‑ Voo 4 para o Rio de Janeiro parte dentro de cinco minutos. Os passageiros atrasados já não poderão ir para o aparelho. Atenção! Atenção! Voo 4!

Cliff e Ellen já estavam no aparelho quando Rita e Cascal chegaram à escada e correram para cima. Assim que entraram no avião, viram que Cliff estava sentado na segunda fila da frente. Procuraram os seus lugares na última fila, do outro lado do corredor central, onde podiam observar bem Cliff. Estava sentado, encostado para trás no seu assento estofado e a conversar com Ellen.

‑ Vamos ficar três dias no Rio ‑ dizia ele nesse preciso momento. ‑ Depois voamos para os Estados Unidos. Dentro de quatro semanas serás Mrs. Haller. Ainda consegues aguentar tanto tempo, baby?


- Dificilmente. Apenas com uma força de vontade superior. ‑ Ellen sorriu para ele. Era inacreditável que tivesse atravessado, durante meses, a selva numa piroga e numa jangada e tivesse enfrentado a morte centenas de vezes.

‑ És terrivelmente bonita‑ disse Cliff, beijando a palma da mão de Ellen. ‑ Tenho uma grande vontade de ir contigo para trás do compartimento das bagagens!

‑ Cliff!

‑ Se eu desse quinhentos cruzeiros à hospedeira‑chefe, ela não ouviria nem veria nada!

‑ Cliff, pára com isso! ‑ Ela sorriu‑lhe e deu‑lhe um ligeiro puxão na orelha. ‑ Dentro de algumas horas estaremos no Rio e teremos um quarto...

Ele abanou a cabeça afirmativamente, beijou‑a na boca e pediu um uísque à hospedeira, que sorria, compreensiva. Um pouco mais tarde, Cliff levantou‑se e dirigiu‑se para trás, para o toilette. Tinha de passar obrigatoriamente junto de Cascal e de Rita. Viu‑os três filas antes, e soube de imediato que o Rio de Janeiro não seria o fecho da grande aventura, mas seria, sim, apenas mais um acto do drama. Olhou em volta, rapidamente; Ellen lia uma revista ilustrada americana. Depois deu três passos em frente e ficou parado perante Rita e Cascal.

‑ Vocês ‑ disse em voz baixa ‑ também estão em viagem de núpcias para Copacabana?

‑ Não. ‑ O nariz de Rita Sabaneta tremia. Os pedaços do lenço de papel caíram à frente dela, no chão. ‑ Para uma festa de mortos.

‑ Não lhe dê ouvidos, Cliff ‑ interrompeu Cascal. ‑ Ela deixou‑se dominar pelo ódio. Também é difícil esquecer o que você lhe fez.

‑ E você está junto dela, Cascal, e agarra‑lhe na mãozinha. Que par tão íntimo! ‑ Cliff encostou‑se ao assento de Rita. Admirou Cascal nesse momento. Como teria sido fácil disparar pelas costas. E em vez disso, estava a voar no mesmo aparelho para o Rio, expondo‑se ao seu inimigo e dando‑lhe oportunidade de se preparar para um confronto futuro, do qual só podia haver uma saída. Não era nenhuma prova de coragem ou de sangue‑frio, mas devia ter, com certeza, um outro fundamento.

‑ Vou viver na embaixada americana. Cascal, você quer assaltar as instalações?

‑ Espere por isso, Cliff. ‑ Os olhos de Cascal estavam turvos de raiva. ‑ Aparentemente, você não sabe do que nós somos capazes.

Cliff saiu dali pensativo, ficou mais tempo do que era habitual no toilette, reflectindo na Sua Situação. Quando foi para a frente de novo, através do corredor por entre os assentos, já não prestou atenção a Rita e Cascal e passou junto deles como se fossem estranhos. Sentou‑se lentamente junto de Ellen e afastou‑lhe a revista ilustrada. Ela olhou para ele, espantada. Os olhos dele fizeram‑lhe lembrar novamente as situações cheias de perigo da selva, tinham a expressão de um animal determinado a tudo. Assustada, ela agarrou na mão dele.

‑ Cliff, o que se passa?

‑ Cascal e Rita estão no avião. Nove filas atrás de nós. Não, não te voltes. Faz como se eu não te dissesse nada. Eles acompanham‑nos para o Rio.


‑ Vou dar o alarme. Cliff, vou chamar o comandante! A polícia deve estar no avião, quando nós pousarmos no Rio. ‑ Ellen quis‑se levantar de um pulo, mas Cliff empurrou‑a para trás, para o assento.

‑ Isso seria absurdo! O que é que nós alegaríamos? Cascal e Rita far‑se‑iam passar por viajantes inofensivos. Ele negaria, com todo o direito, que pertence aos serviços secretos brasileiros. E eu nunca posso reconhecer que pertenço à CIA... Seria como estarmos a picar um balão, baby!

‑ Mas sempre temos de fazer qualquer coisa!

‑ Está certo! Vamos ficar quietos.

Ellen acenou com a cabeça afirmativamente. A sua garganta estava seca devido ao medo.

‑ Eles querem‑te matar, não é?

‑ Parece que sim.

‑ Eu vou gritar, Cliff. Eu vou gritar por ajuda! ‑ gaguejou Ellen. ‑ Não serve de nada. Cascal é um brasileiro num avião brasileiro. Quanto muito, levar‑te‑iam embora, como uma mulher com um acesso de histerismo.

O aparelho voava, zumbindo calma e silenciosamente, para sul. Estava tudo tão normal como em milhares de outros voos, e, no entanto, não era bem assim. Só que ninguém suspeitava. A morte estava sentada no avião. Comia frango e bebia vinho, fumava uma cigarrilha e lia um romance policial inglês. Cliff Haller e Ellen Donhoven tinham dificuldade em engolir a sua comida. Até os nervos mais fortes falham, quando a morte pesa sobre a cabeça.

O aparelho de Manaus deslizou numa curva suave sobre o aeroporto do Rio, pousou e rolou com os motores desligados para os edifícios brancos e compridos do aeroporto. As saídas estavam já preparadas, e os carrinhos das malas de viagem corriam para junto do aparelho. Uma grande limousine preta estava estacionada um pouco afastada da pista de cimento. Um automóvel do governo. Aparentemente, um alto funcionário tinha voado incógnito. Para Cascal, muito dificilmente se gastaria tanto. Cliff Haller soltara o seu cinto e o de Ellen, quando o aparelho pousara. Depois meteu a mão no bolso do casaco, agarrou na pequena pistola e, com o polegar, empurrou para trás a patilha de segurança. Oferecia‑se a primeira oportunidade para as intenções de Cascal: se disparasse agora, não punha mais ninguém em perigo. Mas Cascal não pensava, de modo algum, em provocar um escândalo. Quando a porta se abriu, ele e Rita foram os primeiros a deixar o avião. Cliff Haller agarrou Ellen pela mão e correu para a porta. Quando pisaram a escada de saída, viram três homens de fatos brancos lá em baixo. Tinham os seus chapéus de palha empurrados para o pescoço e um deles, um homem pequeno e seco com um rosto encovado, abanava‑se refrescando‑se com um lenço de bolso. Estavam perto de quarenta e cinco graus ao sol.

‑ Ah! ‑ exclamou Cliff alegremente. ‑ Está ali o bando todo. O bondoso Finley e até o liliputiano Cook. Ellen! ‑ pôs o braço por cima dos ombros dela e puxou‑a para ele. ‑ O que tu vês lá em baixo, são os tipos que me disseram uma vez: "Cliff, meu velho, vai para a selva a sul de Tefé e dá uma olhadela" e isso soou como se eu fosse buscar cigarros na esquina mais próxima! Hello! ‑ acenou e Finley e Cook também responderam. O terceiro homem, um certo capitão Leeds, era novo no Rio. Ele devia substituir Cliff Haller, que necessitava urgentemente de férias e repouso. Interessado, olhava o homem que vinha ao seu encontro, de quem a CIA contava aqueles prodígios.


‑ Bem‑vindo ao Rio! ‑ disse o pequeno Cook, quando Haller parou à sua frente. Mas o rosto de Finley, todo ele irradiava, como se tivesse vindo buscar o seu filho.

‑ Meu velho! ‑ disse ele com comoção na voz. ‑ Quando Bob Carpenter transmitiu por rádio que tu estavas vivo, eu embebedei‑me. Em Washington já tinham começado a gravar o teu nome numa placa de honra... tinham ido até "Cliff Ha...", quando chegou a ordem: "Parem, o tipo está vivo!" De qualquer maneira, agora já sabes o que o velho acha de ti! Tu és o primeiro ser vivo que está numa placa, mesmo que só metade.

O pequeno Cook, entretanto, tinha cumprimentado Ellen Donhoven. Beijou‑a na mão formalmente e apresentou‑se. Tinham sido informados de tudo por Carpenter, de Manaus, e também que Cliff queria abandonar o seu ilustre trabalho por causa daquela mulher. "Ainda vamos falar disso", dissera o tenente‑coronel Finley. "Você consegue imaginar Cliff como um lavrador? Ao fim de seis semanas devorava o chapéu, de aborrecimento."

Finley e Leeds trataram Ellen como uma velha conhecida.

- Vocês já têm muita fama ‑ disse Finley na sua maneira directa.

‑ Quem atravessou a selva com Cliff e lhe resistiu, pode ser considerado uma pessoa prodígio. Quando a vemos assim... Miss Donhoven, donde é que tira a força?

‑ Eu amo o Cliff ‑ disse Ellen simplesmente. Finley acenou com a cabeça afirmativamente várias vezes.

- Não se pode imaginar o que uma pessoa descobre dentro de si nessa situação. Meus amigos, está um bufet frio em minha casa, à vossa espera, com tudo o que possam desejar. ‑ Agarrou Ellen e mandou Cliff embora, com a outra mão.

‑ Não, meu velho, Ellen agora pertence‑me! Premeia um velho celibatário aborrecido com algumas horas agradáveis!

Levou Ellen com ele imediatamente para o edifício do aeroporto. Cook, Leeds e Cliff seguiram‑nos.

‑ Ele está a dar‑lhe graxa ‑ disse Cook alegremente. ‑ Pelo menos, tenta.

Cliff olhou para baixo, para o pequeno homem que lhe chegava até ao peito.

‑ Carpenter deu o alarme. Queres deixar a organização?

‑ Sim.

‑ Por causa de Ellen?

‑ Sim.

‑ Por isso Finley está a dar graxa agora. Ele quer mostrar que todos nós somos bons tipos. ‑ Cook sorriu ironicamente. ‑ Tu, porém, nunca poderias cultivar tomates.

‑ Não, mas milho sim.

‑ Louco! Um Cliff Haller numa cadeira de balouço. Isso nem o Walt Disney se teria lembrado.

Haller parou e apontou para Rita e Cascal, que, à sua frente, se dirigiam devagar para a entrada do átrio do aeroporto.

‑ Ali vai o meu comando de liquidação ‑ disse ele sem alvoroço.

O pequeno Cook arregalou os olhos.

‑ Aquele é o Cascal. E junto dele, Rita.

‑ Uff ‑ Cook puxou o chapéu de palha mais para a nuca. ‑ A coelhinha do rio?


‑ Sim. Eles voaram connosco para o Rio, para me matarem. - Leeds fitou Cliff Haller. Era a primeira vez que presenciava uma pessoa que falava de uma ameaça à sua vida como se contasse uma anedota.

‑ E... e então, que providências tomaste? ‑ perguntou ele.

‑ Nenhuma. Estou à espera e deixo‑os vir.

‑ Em todo o caso, vamos seguir Cascal dia e noite. ‑ Cook parecia ter a situação tão meticulosamente calculada como Haller: ‑ Voas na próxima segunda‑feira para a Flórida ‑ disse ele. ‑ Está tudo tratado.

‑ Também o bilhete de avião para Ellen?

‑ Naturalmente. Não somos assim tão...

Cliff Haller observou como Cascal e Rita foram recebidos à entrada do átrio do aeroporto por um homem de fato escuro. A limousine preta passou através de um portão. Cliff calculou que o alto funcionário também estava relacionado com ele. O serviço secreto inimigo estava a concentrar‑se. Ele não o fazia mais no escuro, não se escondia, já se podia identificá‑lo com precisão. Era uma guerra aberta, da qual ninguém no mundo jamais chegaria a saber alguma coisa. Assim a luta também era sangrenta; cada um tomava a peito as regras do jogo: nenhum levantar de olhos. Nenhuma esperança. Os agentes morrem no nevoeiro...

‑ Na segunda‑feira? ‑ disse Cliff. Apressou o passo, para ficar ao lado de Ellen. Cook e Leeds seguiram‑no. ‑ Quatro dias ainda para Cascal me matar. Ele tem de se lembrar de qualquer coisa muito depressa.


Capitulo 9

No escritório central dos serviços secretos brasileiros, no Rio de Janeiro, a atmosfera era menos descuidada do que a dos americanos.

Enquanto Cliff Haller e Ellen se colocavam por baixo do duche na "villa" do pequeno Cook e tiravam de si o cheiro podre da floresta virgem e da selva dezenas de vezes e se ensaboavam, como se conseguissem dessa maneira lavar os meses anteriores, alguns homens estavam sentados a uma mesa oval, alguns milhares de metros mais à frente, fumando, calados, bebendo conhaque e ouvindo o relatório que Cascal lhes apresentava. Cascal tinha‑se preparado bem para esta cena. Cada palavra tinha sido ponderada com precisão. Atribuía a culpa da falha de todas as medidas de segurança ao próprio serviço secreto.

‑ É impossível que um projecto como a base de mísseis permaneça despercebido ‑ disse ele, à laia de conclusão da sua defesa.

‑ Os tempos em que se podia jogar às escondidas e em que os outros andavam às voltas já passaram. Quando há mais de dois olhos a verem alguma coisa, já não há segredo nenhum. O erro apenas está na dimensão, senhores: conseguia‑se encobrir mísseis isolados, distribuídos por regiões maiores, mas uma base inteira, com campo de aviação próprio... como é que se pode defender de alguma coisa?

Os generais olhavam calados para o mapa grande da região de Tefé, que cobria a mesa como uma toalha. O general Aguria mordeu o lábio inferior. Para ele, a carreira tinha acabado. Não estava à espera de nenhuma misericórdia. Um posto algures numa guarnição da selva, isso já seria uma condecoração, mais do que ele podia esperar. Oficiais incapazes tinham facilmente desaparecido, anteriormente. Para onde, depois ninguém perguntara, pois fazer muitas perguntas era perigoso.

‑ Eu apenas obedeci a ordens, mais nada ‑ defendeu‑se ele, cansado. ‑ Recebi os planos e realizei‑os.

‑ Senhores! ‑ O chefe dos serviços secretos, um homem que todos conheciam apenas pelo nome de Dariques, que todos sabiam ser falso, abanava‑se, refrescando‑se com uma folha de papel. ‑ A nós Só nos interessa o que vamos dizer aos americanos‑ abanou a folha de novo.

‑ Aqui está o protesto oficial de Washington. Lá, os rapazes trabalham com a rapidez de um relâmpago! Junto com a nota, enviaram já até algumas fotos da base ao nosso Ministério do Exterior. De resto, são fotografias boas e claras. Este Haller é um virtuoso absoluto! ‑ lançou um olhar de lado a Cascal. Sobre o rosto de Cascal, era como se estremecessem coriscos. O ódio roía‑o interiormente, como ácido. ‑ Esta é a situação: os E. U. A. exigem a destruição imediata da base e uma participação oficial da sua execução.

‑ Atinge‑nos tão fundo, que os nossos corações patriotas vão sangrar por isso... nós destruímos a base!

‑ E vamos tomar a nosso cargo a... a... esta desonra? ‑ balbuciou um dos generais. As comissuras dos lábios dele fremiam, como se reprimisse o choro com as últimas forças.


‑ Não. Essa será a parte da exigência dos americanos que nós não vamos satisfazer. A base vai pelos ares na próxima semana, em segredo; depois, por mim, a comissão pode aterrar e passar revista aos destroços. Vamos evitar que eles descubram a proveniência das armas. Esse será o nosso pequeno triunfo dentro da derrota!

‑ E o que é que vai acontecer a Cliff Haller? ‑ perguntou Cascal, rompendo o silêncio que se seguiu às palavras de Dariques. Um silêncio como o que se segue a uma oração fúnebre. Os minutos em memória do sonho perdido de poder e grandeza nacional.

‑ Haller? ‑ Dariques abanou a cabeça. ‑ Ele já não nos interessa mais. Os seus futuros adversários que se batam com ele.

‑ Ele sozinho prejudicou a nossa pátria!

‑ Atrás dele estão os E. U. A., Cascal. Tal como o Brasil está por detrás de si. Você perdeu. Não esqueça a nota desportista do nosso trabalho: no combate com o adversário, lutar com todos os meios... depois do combate, o justo reconhecimento do vencedor. ‑ Dariques encostou‑se para trás e bebeu um gole de conhaque. ‑ Eu desejava ter um Cliff Haller no meu serviço. Washington tem algumas centenas deste género.

‑ Eu vou matá‑lo! ‑ disse Cascal alto. As cabeças dos oficiais, que fumavam calados, viraram‑se para ele. Dariques inclinou‑se para a frente.

‑ Eu não lhe estou a dar isso como missão, Cascal!

‑ Isso já eu esperava. Apesar disso, eu vou matá‑lo.

‑ Você vai agir por conta própria?

‑ Sim.

‑ Vai praticar um homicídio, Cascal, um simples homicídio! Ninguém o vai proteger, quando o apanharem como criminoso. Vai ser, tratado como um assassino comum. E como ele é um cidadão americano, o assassino vai ser condenado à morte, para manter uma boa imagem nas relações diplomáticas. Isso, à partida será certo.

‑ Isso não me assusta, senhores. ‑ O rosto de Cascal estava lívido como que coberto de pó. Os olhos pretos ardiam. ‑ Não vão apanhar o assassino.

‑ Você tem a certeza disso, Cascal?

‑ Sim. Eu preciso da morte de Cliff, para eu próprio poder continuar a respirar. Percebem isso, senhores? Enquanto ele viver, é como uma pedra sobre o meu coração. ‑ Passou a mão pelo rosto. As mãos tremiam‑lhe e estavam mais pálidas do que a sua testa.

‑ Precisam mais de mim?

‑ Não. ‑ Dariques abanou a cabeça. ‑ Pode ir. Sabe que Haller só fica mais quatro dias no Brasil?

‑ Não. ‑ Cascal, que já ia a caminho da porta, virou‑se mais uma vez. ‑ Só mais quatro dias?

‑ Sim. E vai ser vigiado como um diamante de dez quilates. Engula a sua vingança, Cascal, e digira‑a como uma coisa indigesta.

‑ Impossível, general. ‑ Cascal abanou a cabeça. ‑ Quatro dias são suficientes para matar, mesmo que seja um Cliff Haller. Deixou a sala de conferências com passos rápidos. Dariques ficou calado, até a porta estar fechada. Depois, disse lentamente:

‑ Ele vai arruinar‑se com isto, senhores. Mas é o caminho mais fácil... Cascal vai‑nos poupar, assim, alguns transtornos.


Havia dois dias que Cliff e Ellen viviam como num perfeito paraíso. A "villa" do pequeno Cook estava situada numa encosta de montanha, rodeada por um parque com arbustos floridos e sussurrantes e palmeiras de sonho. Uma piscina tinha sido enterrada num prado fértil, e quando se estava no terraço, à noite, tinha‑se uma vista fantástica sobre os milhões de luzes do Rio, que a esta distância fazia o efeito de um jardim encantado. Ellen Donhoven estava tão comovida pela beleza da cidade que na primeira noite se tinha sentado no terraço, não se podendo arrancar deste quadro de cintilante fascinação. Feliz, encostou‑se a Haller, quando ele apareceu por detrás dela e pôs os braços à volta dos seus ombros.

‑ Nós estivemos realmente no inferno? ‑ perguntou, em voz baixa. ‑ Cliff, não consigo acreditar muito bem nisso. Ficou tudo tão distante lá atrás.

‑ Ontem ainda estávamos em Manaus, no Amazonas. Há apenas dez horas que a morte voou no mesmo avião que nós.

‑ Cascal! Ele também está agora tão longe... - Haller calou‑se. "às vezes, ela ainda é como uma criança", pensou, ternamente. "Ela tem o seu título de doutora, é o diabo de uma pessoa corajosa que avançou para a selva inexplorada sozinha, para descobrir venenos e os analisar. Tem uma maldita teimosia e sabe disparar como um homem, e quando o seu amigo, Dr. Forster, ficou na selva, ela foi mais corajosa do que eu talvez tivesse sido. Deus do céu, é uma mulher extraordinária, a mais singular e bonita, a mais selvagem e terna que jamais conheci, mas neste momento, é como uma criança, sentada junto de uma árvore de Natal, a admirar as velas."

‑ Ele está bem próximo, o nosso amigo José ‑ disse Cliff, beijando os olhos de Ellen. Ela tinha inclinado a cabeça muito para trás.

‑ Impossível. Nós estamos, sim, é no paraíso, Cliff.

‑ Que está envolvido por um muro cujo arame farpado está carregado com corrente de alta tensão.

‑ Tu achas que ele ainda nos está a perseguir, Cliff? ‑ perguntou Ellen.

‑ Enquanto estivermos nesta terra, não teremos sossego. A Rita já está a tratar disso.

‑ Tu amaste‑a, não é verdade, Cliff?

‑ Ainda não te conhecia ‑ esquivou‑se ele.

‑ Se tu nunca me tivesses visto, como é que teria continuado a ser contigo e com a Rita?

‑ Não sei. Talvez como sempre...

‑ Um aperto de mãos, algumas palavras de amor inúteis, um "passa bem, foi maravilhoso" e depois o grande esquecimento. É sempre assim?

‑ Sim. Se cada flirt se tornasse um caso... diabo, o choro e o ranger dos dentes seriam mais altos do que o som do trânsito, às cinco horas, em Nova Iorque.

‑ E o que vai ser de nós, Cliff?

‑ Que pergunta, Ellen. Vamos casar... - Cliff acariciou o corpo dela, que lhe respondeu por baixo do vestido fino com um tremor palpitante. Ellen Donhoven sentiu uma onda de calor ardente a inundar‑lhe o corpo.

‑ Queres ficar sentada aqui fora toda a noite a ver o Rio? ‑ perguntou ele.

‑ Não, Cliff. ‑ Ela levantOu‑se e esticou‑se. As mãos dele ainda abarcavam os seios dela.

‑ Amo‑te, Cliff.


‑ Não esperava Outra coisa. ‑ Ele riu com o seu riso Pueril e desarmado, levantou‑a nos seus braços e levou‑a para casa. Com os pés, abriu e fechou as portas, e não trocaram mais nenhuma palavra até se agarrarem um ao outro, na cama, e se incendiarem numa chama comum. Havia certas noites no Rio que podiam tirar a razão. Para Cliff e Ellen o paraíso era perfeito.

A noite seguinte encontrou Cliff Haller e Ellen Donhoven na casa do embaixador. O Brasil festejava um dia comemorativo da sua história agitada e o embaixador Ralf Pitters tinha convidado para a sua residência o melhor da sociedade do Rio de Janeiro, como prova da solidariedade amigável entre o Brasil e os Estados Unidos. Os generais destacavam‑se pelo seu brilho, entre os quais também o general Aguria. Guarnecidos de condecorações cintilantes, como saídos de um livro ilustrado, estavam junto dos outros diplomatas estrangeiros em pequenos grupos e discutiam sobre as coisas sem importância do dia‑a‑dia. Nem uma sílaba se ouviu sobre a base de mísseis na selva de Tefé, nenhuma palavra referiu um problema político. O pequeno Cook, que se encontrava em toda a parte e de modo igualmente rápido desaparecia de novo, tinha libertado Ellen. de Cliff, logo que tinha entrado na embaixada americana.

‑ Querias arrastar contigo a mulher mais bonita da noite, como uma corrente de relógio! ‑ disse o pequeno homem. Fez uma vénia à esquerda, em frente de Ellen, afastou o braço dela do punho de Cliff e desapareceu com ela, atónita. Cliff, entretanto, vagueou para o lado da piscina, deixou que um dos numerosos criados lhe trouxesse um copo de champanhe, girou à volta dos grupos que riam ou "flirtavam" à luz mortiça dos lampiões, nas suas fundas poltronas de jardim, parou algumas vezes para observar uma mulher particularmente bonita e depois prosseguiu, lentamente, pelo parque dentro, onde os sussurros e risos abafados dos pares ocultos saíam da escuridão, por detrás de arbustos, dando uma nova melodia à noite morna. De repente, parou. O seu corpo ficou rígido, o rosto petrificou‑se. As mãos nos bolsos do seu fato cerraram‑se.

‑ Cliff Haller ‑ disse uma voz atrás dele. Ao mesmo tempo, um objecto redondo e metálico comprimia‑se contra as costas de Cliff. Não precisava de perguntar o que era. ‑ Conserve as mãos nos bolsos à boa e antiga maneira americana e continue em frente.

‑ Cascal. ‑ Cliff olhou para o céu mais magnificamente estrelado que jamais tinha visto. ‑ Uma noite tão bonita e você a fazer coisas tão odiosas. Como é que você conseguiu entrar?

‑ O problema de sair, desta vez consigo, é sensivelmente maior. ‑ A voz de Cascal soava calma e segura. Encontravam‑se numa parte do enorme parque em que os lampiões e as lanternas garridas e trémulas enfiadas na relva já não os atingiam.

‑ Tem de ser? ‑ perguntou Cliff Haller.

‑ Tem.

‑ Você também pode abater‑me dez passos mais à frente, Cascal. Ali está totalmente escuro, e suponho que você, como profissional que é, tem um silenciador no cano.

‑ Exactamente como você faria, Cliff. Só que agora a sorte está do meu lado. Posso precisar dele depois do acidente para a eternidade. Você sabe que eu sou um fora da lei?

‑ Como é que eu devo interpretar isso?


‑ Não o vou eliminar em missão dos serviços secretos; para eles, você é o vencedor desportista. O nosso ajuste de contas é absolutamente privado. ‑ Cascal comprimiu mais duramente o cano da sua pistola na espinha dorsal de Cliff. ‑ Continue a andar devagar e assobie uma melodia divertida.

‑ Faz favor... O que é que pode ser? O que é que gosta de ouvir? Alguma coisa da West Side Story? Ou de Old Man River? Mas eu aviso‑o, Cascal: eu não sou manifestamente musical. Nem sempre encontro o tom certo.

‑ Isso é uma especialidade sua? ‑ A voz de Cascal tremia de escárnio. Sentia‑se seguro, agora era ele o vencedor. Avançaram através do parque lentamente, em passos certos, como dois soldados em exercícios de castigo. Chegaram ao muro que cercava o terreno da residência, uma parede de três metros de altura, cuja borda estava lardeada por pontas de ferro. Cliff Haller sorriu ironicamente e abanou a cabeça afirmativamente com o queixo levantado.

‑ Carregado electricamente. Você nunca vai chegar lá acima, Cascal.

‑ Espere. Neste sítio, o muro só tem um centímetro de espessura. Fizemos um buraco por fora e tivemos de deixar o reboco por dentro, para que as sentinelas, na sua ronda, não notassem nada. Quando eu der o sinal, o reboco desmorona‑se.

‑ Depois você toca o grande sinal do desfecho, Cascal. Eu só me pergunto uma coisa: porquê nestas condições? Curve o dedo e quando se tiver ouvido o plop abafado, já não tem mais problema nenhum.

‑ Eu tenho uma promessa a cumprir, Cliff. ‑ A cara de Cascal torceu‑se numa careta. ‑ Acredite em mim: sem esta promessa já você estaria há muito tempo caído por terra. ‑ Soltou um assobio, estridente, que provocou em Haller um amplo sorriso irónico. "Isto é tudo tão irreal", pensou. "Tão divertido. Tão indiscreto. E apesar disso, é o átrio da morte." Reflectiu no que podia empreender para Se libertar desta precária situação. Cliff ouvia agora ruídos do outro lado da parede.

Um leve martelar e raspar, depois uma pancada... o muro abateu‑se quase um metro de altura, dali resultando um buraco através do qual uma pessoa se podia enfiar confortavelmente. Cascal fez um sinal com a pistola.

‑ Para fora, Cliff. - Haller saltou através do buraco no muro. Mas do seu plano, de com um salto enorme mergulhar no abrigo da noite, não resultou nada. Junto do buraco estava uma rapariga. Longo cabelo negro, entrelaçado com flores vermelhas, como para uma festa. Olhos grandes, ardentes, de olhar firmemente fixo em Cliff. Um corpo trémulo de excitação, magro, mas exuberante. Uma mão que estendia uma pistola. Lábios pintados de vermelho vivo, que estavam abertos como num grito calado.

‑ Rita! ‑ deixou escapar Cliff. Ficou parado. Um segundo, uma palavra, com os quais ofereceu a sua vida.

‑ Sim ‑ disse Rita. Um empurrão nas costas fez com que Haller tropeçasse para a frente. Cascal tinha aparecido atrás, através do buraco no muro. ‑ Então, aqui estás. Eu tinha desejado isto como o melhor presente que o José podia trazer para o nosso casamento. Ele manteve a palavra... Por isso vou casar com ele.


‑ Sejam felizes e tenham muitos filhos. ‑ Cliff encostou‑se ao muro. O pressentimento de um fim assustador provocou‑lhe então um nó na garganta e fez a sua voz soar distorcida. ‑ Não achas, que isto é um estranho convite de casamento?

‑ Vem ‑ ordenou Rita, fazendo sinais com a pistola. Foi à frente. Cliff seguiu‑a calado e sem mais demora.. Ele sabia que, nas suas costas, estava a arma pronta a disparar de Cascal. Dez passos à frente estava um automóvel sem iluminação, à espera no atalho que serpenteava através da mata iluminada. Rita abriu a porta e olhou para Haller com os olhos a piscar.

‑ Sobe!

‑ Vão dar pela minha falta, o mais tardar numa hora.

‑ Não vai durar tanto, Cliff ‑ disse Cascal. ‑ Além disso vão pensar que você estaria com uma bonita rapariga no parque.

‑ Especulação errada, Cascal. Eu tenho a Ellen comigo.

Rita deu‑lhe um encontrão, ele caiu no assento estofado e bateu com a cabeça na porta contrária. O ataque foi tão repentino que não conseguiu cuidar mais do seu equilíbrio.

‑ Eu odeio‑a! ‑ gritou‑lhe Rita no rosto. O hálito quente dela flutuou sobre ele. Com a mão aberta, ela bateu‑lhe quatro vezes nos olhos, até ele agarrar nos braços dela e a repelir. ‑ Isto é para ela. Para ela! Essa puta loura e com olhos de vaca! Oh, como ela vai gritar e lamentar‑se, quando te encontrar, Cliff. Eu queria estar lá ao pé, quando ela se for abaixo, quando ela chamar pelo teu nome, mas tu já não poderás dar nenhuma resposta, pois serás apenas um esqueleto, um esqueleto nojento, roído e liso...

Cliff Haller endireitou‑se. A voz de Rita esganiçou‑se e morreu num soluço. Cascal pôs o braço à volta dela, não se esquecendo, contudo, de ao mesmo tempo apontar a arma a Haller.

‑ Sossega ‑ disse ele ternamente. ‑ Meu Deus, sossega. Já o tens, agora. Podes fazer com ele o que quiseres. Controla os teus nervos, favorita...

‑ Eu, no seu lugar, levá‑la‑ia a um bom médico ‑ disse Cliff com a garganta apertada. ‑ Ela ficou louca.

‑ Isso é verdade... louca de ódio. E só você a poderá curar. O remédio para ela, Cliff, será o seu grito de morte. - Cascal sentou‑se junto a Haller e comprimiu‑lhe a pistola contra as têmporas. Cliff olhou de soslaio para o dedo de Cascal, que estava dobrado até ao ponto de disparo. O automóvel desfilava a toda a velocidade em redor da cidade, pela colina suja do Pico da Tijuca, em cujas encostas se colavam as cabanas miseráveis de chapa ondulada e cartão, alojamentos dos mais pobres dos pobres do Rio de Janeiro. A escória do paraíso.

‑ As flores no teu cabelo fazem‑me lembrar o rio Tefé ‑ disse Cliff pensativo. ‑ E numa madrugada, a floresta e o rio fumegavam ao sol da manhã, vim eu, então do outro lado do rio e trouxe‑te um ramo de flores desconhecidas. Eram vermelho‑sangue e tinham manchas brancas nas suas folhas interiores, que pareciam lábios abertos. Eu despi‑te...

‑ Calado! ‑ gritou Rita. A voz dela esganiçou‑se novamente.

‑ Tu, seu maldito cão, calado!

‑ ... eu despi‑te, pousei‑te na erva molhada da margem e espalhei as flores sobre ti. Depois fizemos amor. Diabo, foi uma hora ardente... e quando nos separámos, as flores estavam esmagadas, tu estavas como que friccionada por uma Papa vermelha, e cheiravas como uma rosa única e gigantesca.


‑ Tapa‑lhe a boca, José! ‑ disse Rita, ofegante. O automóvel derrapou muito perigosamente nas curvas apertadas da estrada da montanha. ‑ Ele tem de parar! Parar! Parar!

Cascal golpeou Cliff na boca, sem uma palavra. O lábio rompeu‑se e Cliff lambeu o sangue que dali tinha brotado.

‑ Eu vou devolver‑lhe isto ‑ disse ele, entretanto.‑ Foi um golpe indecente e injusto.

A partir de então fez‑se um pesado silêncio no automóvel, que rolava desenfreadamente através da noite. Os quarteirões miseráveis ficaram para trás deles; agora começavam de novo as "villas" dos ricos. Residências de Verão aos ventos das alturas. Jardins semelhantes a parques, em que corriam ribeiros. Um esplendor de árvores e arbustos frondosos, fertilidade de sol e água. Quietude elegantemente nobre. Algumas lanternas nos jardins e nas entradas. Nada incomodava o céu estrelado, o segundo motivo de orgulho do Rio, a seguir ao Pão de Açúcar. Rita parou o automóvel em frente de uma "villa" escura e desceu. Cliff inclinou‑se e olhou fixamente pela janela.

‑ Você ganhou na roleta, Cascal? ‑ perguntou ele. ‑ Este casarão custou, a preço de amigos, dois milhões de dólares! Ou será que ainda me espera mais alguma surpresa?

‑ Só a sua morte, mas isso já não deveria ser surpresa nenhuma. Desça.

Cascal destrancou a porta. Cliff desceu e esticou‑se como se tivesse estado curvado durante horas. Rita esperava‑o na estrada, olhando através dele para o vazio. Cascal abriu o portão de ferro forjado e convidou‑o a entrar com um movimento de mão. Cliff hesitou. Um medo louco apertou‑lhe o estômago. Por centenas de vezes ele tinha‑se encontrado em situações das quais escapar era uma questão de pura sorte. Mas tinha sempre aparecido de novo, tinha conseguido, com ganchos e colchetes e muitas vezes também com cadáveres, quando tinha de ser, e nunca, diabo, nunca ele tinha sentido este medo vulgar que agora o paralisava. Desta vez, a impossibilidade de fuga era total. Cada passo que dava, levava‑o para mais perto da morte certa. Quem tivesse sido presenteado com um conhecimento destes, tinha o direito de sentir medo. Cascal sorriu ironicamente. Pressentia como Cliff se estava a sentir mal. Rita estava em pé atrás de Haller, dissimulava‑se atrás das costas largas dele, escondia‑se como um cachorro. A lembrança da hora extasiante, feliz e tempestuosa nas margens do rio Tefé, debaixo do sol da manhã, na erva húmida, quando as flores foram esmagadas entre os corpos deles, aquela retumbante hora em que vociferaram como animais a acasalar, rasgou o seu ódio como um véu ralo e podre. Por detrás reluzia o amor, o amor louco por este homem, que apenas estava a exactamente cinquenta e quatro passos da sua morte.

‑ Cabeça para cima, Cliff ‑ disse Cascal maliciosamente. ‑ Morra como o homem que sempre viveu em si e cujo sangue‑frio sempre foi um modelo para os seus jovens. Você nunca teve medo de morrer.

‑ Não. Nunca. ‑ Haller andou devagar pelo parque escuro. Ouvia um ribeiro marulhar na escuridão. ‑ Mas podia sempre defender‑me. Nunca fui uma mera rês para abate, à qual você me está a degradar.


‑ Azar o seu, Cliff. Não se pode escolher a nossa morte. Subitamente, Cascal puxou‑lhe os braços para trás, as algemas fecharam‑se em volta dos seus punhos. "Isto é o fim", pensou Haller. "Irrevogável. Com os braços atados nas costas não posso fazer mais nada."

‑ Explique‑se com precisão, seu sacana ‑ disse ele, monocórdico.

‑ Esta moradia pertence ao Sr. Miguel de Sequillar. Ganhou os seus milhões com marijuana e mescalina. Mas ninguém sabe: oficialmente, negoceia com frutas tropicais e madeiras preciosas. E como é tão rico, vive na Riviera francesa metade do ano e põe o seu dinheiro entre as pernas de prostitutas. Assim, agora, a moradia também está vazia. Mas o Sr. Sequillar também é um grande amigo dos animais e uma pessoa que não gosta de deixar vestígios. Quem lida com estupefacientes provoca a indiscrição nas pessoas. Quando eles ficam demasiado indiscretos, o Sr. Sequillar fá‑los desaparecer de uma maneira simples: fá‑los andar numa ponte sobre um lago artificial... Estando o eleito no meio da ponte, abre‑se um alçapão, que se pode controlar do terraço da casa. Segundos depois, está morto. Consta que, no lago, vivem quatro mil piranhas. Como eu já disse... o Sr. de Sequillar é um grande amigo dos animais. Vamos.

- Para a ponte ‑ disse Cliff, rouco.

- Para o lago. Sobre a ponte vai você sozinho. Eu tenho de ligar o interruptor.

‑ Você é o indivíduo mais sujo que eu jamais conheci ‑ disse Cliff Haller, ofegante.

‑ Não me insulte. ‑ Cascal encolheu os ombros como que desculpando‑se, e apontou para Rita Sabaneta.

‑ A proposta veio dela, do seu amorzinho polvilhado de flores.

Rita voltou‑se e correu como que acossada de fúria, desaparecendo na noite impenetrável. Parou no terraço da "villa", comprimiu a testa contra a pedra fria e bateu com os punhos na parede. Cascal deu um empurrão a Haller. Esta foi a sua resposta.

- E agora, vamos. Ande, Cliff. Eu também posso dar cabo de si, arrastá‑lo para a ponte e pô‑lo no alçapão. Se é melhor para si...

Eram exactamente trinta e seis passos até à borda do lago. Um lago artificial de cerca de cinquenta metros de diâmetro. Na margem, botões de flor e nenúfares, juncos e arbustos exóticos. Uma ponte de madeira branca estendia‑se sobre a água num arco elegante, graciosa como nos jardins japoneses. "Matar em beleza", pensou Haller. "Este Sequillar deve ser uma fera sádica. Tem de se fixar o nome, para o caso de acontecer um milagre do céu, e eu ainda conseguir sobreviver agora".

‑ Ande, vamos! ‑ disse Cascal, lacónico. Cliff ficou parado. O suor pingava da sua testa, deslizando sobre o rosto até à boca.

‑ Você tem humor! ‑ disse ele, ofegante. ‑ Eu tenho de ir de livre vontade!...

‑ Isso é o atractivo da coisa. Você vai passear e não volta.

‑ Cascal, você também é louco!

‑ Então, quer ir ou não?

‑ Não.


‑ Seu tolo! - Cascal atingiu Haller com a coronha da pistola nas têmporas, antes deste se poder esquivar. A pancada foi tão rápida que não a viu de modo algum. Gemendo, caiu sobre os joelhos e depois para a frente, não completamente atordoado, mas paralisado e com os nervos vibrando. Notou como Cascal lhe atava os pés, desta vez com uma corda, não com algemas. Quando a paralisia diminuiu, levantou‑se, dobrou‑se e saltou para a frente, impelindo‑se com as pernas para Cascal, atingindo‑o na tíbia direita, e viu como este vacilou. Sabia que era uma resistência sem sentido, mas repugnava‑o simplesmente morrer sem lutar, ser apenas, de facto, um animal para abate. Cascal lançou‑se a ele, atingiu‑o no rosto, e arrastou‑o depois para a ponte. Deixou‑o exactamente sobre o alçapão e pisou‑o na espinha. Uma dor louca sacudiu Cliff, fez o céu explodir sobre ele e o mundo estalar em faíscas ardentes. Pela primeira vez na sua vida gritou de dor. Um berro enorme, como se o seu coração tivesse sido cuspido. Rita Sabaneta sucumbia na parede do terraço. Tapava os ouvidos e choramingava como uma criança.

‑ Acaba com isso ‑ gritou ela contra as pedras. ‑ Acaba com isso. Por favor, por favor... morre de uma vez, Cliff!

Cascal voltou do lago a correr. O seu rosto tinha um aspecto assustador, medonho, horrível como uma máscara de sacrificado índio. Precipitou‑se para o interruptor do alçapão. Por baixo da alavanca acendeu‑se uma pequena lâmpada vermelha. O alçapão está ligado. Alavanca para baixo.

‑ Agora! ‑ gritou Cascal para Rita, em baixo. ‑ Agora! Agora é que ele vai cair! Não estás satisfeita?

Empurrou a alavanca até ao ponto final, a lâmpada vermelha apagou‑se. Cliff Haller sentiu como a sua cintura tinha ficado insensível, depois da dor indescritível no meio do corpo. "Ele pisou‑me as vértebras", pensou ele, absolutamente lúcido. "Tenho uma parte paralisada. E o alçapão vai logo... logo cair. Quatro mil piranhas. Uma dor de apenas segundos... mas esta repugnância, este último asco, que vai connosco como última lembrança para sempre: as bocas escancaradas dos peixes, as filas de dentes afiadas como navalhas..."

Jazia imóvel sobre o alçapão. O seu cérebro tinha parado. Tudo o que se tinha escrito sobre os últimos segundos de uma pessoa era um disparate. Nenhuma lembrança da mãe, da infância, das bonitas horas de vida, nem um filme a toda a pressa, chamado A Vida de Cliff Haller... Não, nada, vazio, um vácuo, silêncio nas mensagens da alma. Por baixo dele, algo rangia: o mecanismo, o contacto da corrente. Quatro mil piranhas esperavam por ele! Fincou os cotovelos e cravou os dentes no lábio inferior. "Não grites, Cliff, Não grites! Não..." Então a portinhola caiu, e ele afundou‑se.

 

Cascal e Rita viajavam de volta ao Rio de Janeiro, lentamente. Estavam sentados um ao lado do outro, calados. Cascal conduzia o automóvel, Rita olhava fixamente para a estrada bem iluminada. Dentro dela estava um vazio absoluto. Estava a escutar o interior e não ouviu bater o seu próprio coração, nem mais uma vez. Quando Cascal falou com ela, olhou‑o com uns olhos que já não faiscavam.


‑ Ele morreu instantaneamente ‑ disse Cascal rouco. ‑ Eu ouvi o alçapão fechar‑se, claramente. Não gritou nem uma vez. Meu Deus, eu não consigo ver mais piranhas! ‑ Andou um pouco mais devagar, esgueirando‑se através das avenidas largas, nas quais se espelhava o brilho da cidade de milhões, para poder olhar melhor Rita. ‑ Isto era necessário, favorita? Reconheço, ele venceu‑me, ele custou‑me a minha carreira... mas vendo bem, era uma pessoa única! Era uma daquelas pessoas a quem se pode partir a cara e, apesar disso, respeitar. Um dos últimos aventureiros do nosso tempo.

‑ Tinha de ser! - disse Rita, secamente. ‑ E agora não menciones mais o nome dele, senão eu mato‑te a ti!

Foi uma boa hora de viagem até à casa de Cascal. Só no quarto grande, com o sofá‑cama, é que Rita retomou a palavra. Tirou as roupas, Pousou‑as sobre as almofadas e esticou a sua beleza nua e sedutora a Cascal.    

‑ Eu pago‑ disse ela. ‑ Abre uma garrafa de champanhe, duas, três, dez garrafas. Quero tomar banho em champanhe! Quero fazer a festa mais selvagem da minha vida! Quero ficar louca, louca, louca... ‑ Gritou, esperneou e guinchou histericamente, quando Cascal abriu a primeira garrafa de champanhe e despejou o líquido espumante sobre o corpo dela, que estremecia. ‑ Mais! ‑ gritou ela. ‑ Mais! Espreme uma nuvem cheia de champanhe! Ele tem que chover por mim abaixo! Quero esquecer... esquecer...

Nessa noite Cascal tombou como um louco sobre o corpo de Rita, tremente e ardente, agridoce de champanhe. Não sabia o que fazia... tornou‑se num animal, viu sangue por entre a neblina da sua paixão e lambeu‑o, ouviu gritos e gemidos, sentiu como as unhas lhe fendiam as costas e os dentes lhe mordiam o peito, e continuou a flutuar na neblina vermelha e depois explosiva, até rolar para fora do corpo fremente e perder a consciência, ainda antes de tocar o chão. Na manhã seguinte, depois de uma longa busca, Cascal encontrou Rita Sabaneta na varanda. Tinha‑se envenenado. O seu seio esquerdo estava ensopado em sangue, Cascal tinha‑a mordido sob o efeito da bebedeira... e com o seu próprio sangue, antes do veneno a salvar, tinha escrito nas paredes brancas da varanda, com o dedo indicador: "Cliff.. I love you..." Jazia de lado, o olhar vazio para o lado do cabeço do Pico da Tijuca. José Cascal cambaleou de volta para o quarto e embriagou‑se absurdamente.

 

A paralisia desapareceu de uma forma admirável. As pernas e a parte inferior do corpo estavam, na verdade, insensíveis, penduradas, como dois chouriços, mas o seu cérebro começou a trabalhar de novo. "Estou vivo", pensou Cliff. "Como é que isto é possível? O alçapão abriu‑se, por baixo de mim estavam quatro mil piranhas à espera, caí para o lago, mas estou vivo... Isto é uma loucura, uma loucura total. Eu nem cheguei a entrar na água, não há uma gota de água no meu corpo, sem ser suor de medo, em que fiquei alagado nos últimos minutos." Abriu e fechou os olhos algumas vezes, sacudiu a cabeça como um cão molhado, afastando assim a restante paralisia do cérebro. A primeira coisa que ouviu com total clareza foi um patinhar e rumorejar por baixo dele. Puxou um pouco o joelho e admirou‑se de ter conseguido, apesar de não sentir nada nas pernas. A posição de Cliff era desconfortável: quando o alçapão se abrira, ele instintivamente cravara os cotovelos. Então tinha ficado livremente pendurado sobre a abertura rectangular, apenas seguro por eles, as solas dos seus sapatos mal tocando a superfície da água, água essa que fervilhava de pequenos corpos de peixe agitados. Subiram de repente, abrindo a boca para as pernas... um mar de dentes fulminantes e olhos enormemente arregalados, sem misericórdia. Cliff Haller cerrou os dentes. Contraiu os músculos das costas e dos braços, concentrou toda a força nos seus ombros, puxou novamente as pernas e impeliu‑se, então, para cima. Tentou‑o por duas vezes: músculos esticados, pernas puxadas, depois empurrar as pernas e do impulso aproveitar para se lançar com os ombros para o lado, sobre o solo da ponte. à terceira vez, conseguiu. Cliff rolou de lado e fixou o olhar através do alçapão, sobre o lago borbulhante, por baixo dele. "Não vou poder comer mais peixe ao longo de toda a minha vida", pensou, reprimindo os vómitos de nojo. Continuou a rolar, chegou à obliquidade da ponte curva e rolou para baixo até à borda. Ali ficou deitado novamente, e fez força para não ceder ao impulso de adormecer. Com as mãos movendo‑se nas algemas, desatou a corda dos pés e experimentou dar alguns passos. Andou cambaleando de um lado para o outro na borda, vacilou depois para a casa escura apalaçada, e sentou‑se num dos bancos de pedra. "Ainda há realmente milagres", pensou, olhando para cima, para o céu salpicado de estrelas. "Nunca acreditei em ti, tu, o Deus do livro de orações... mesmo assim agradeço‑te!" Um quarto de hora mais tarde, Cliff Haller corria pela estrada da montanha abaixo, procurando um táxi. Por quatro vezes aconteceu parar um, mas assim que os condutores viam as suas mãos algemadas atrás das costas, aceleravam imediatamente e corriam a toda a pressa. Só o quinto é que parou. Um mestiço arreganhou‑lhe os dentes amplamente.

‑ Para onde? ‑ perguntou.

‑ Para a embaixada americana. ‑ Cliff atirou‑se para o assento ao lado do condutor. O mestiço reparou nas algemas.

‑ Donde?

‑ Não faças tantas perguntas... anda! ‑ Cliff pousou a cabeça atrás no apoio do pescoço do assento.

‑ Isto custa‑lhe cinquenta dólares, mister.

‑ Receberás cem, se calares o bico e andares finalmente!

O mestiço grunhiu, fez O motor roncar e rolou a toda a pressa para baixo, em direcção ao Rio de Janeiro.

 

A festa da embaixada americana encontrava‑se num dos seus primeiros pontos altos: o tenor brasileiro Raffael Trulljo da ópera do Rio cantava árias de Puecini e Verdi. O adido para a cultura da embaixada acompanhava‑o ao piano. Os convidados tinham‑se agrupado num vasto círculo em volta do cantor, no terraço, sorviam champanhe e cocktails e suportavam pacientemente esta cena fora do programa.

Também se tinha de fazer alguma coisa pela cultura, já que tinham milhões nas contas correntes. Enquanto Trulljo adorava as mãos geladas da Mimi, Cook, Finley e o capitão Leeds estavam, sem serem notados pelos convidados, em estado de prevenção. Uma sentinela tinha descoberto o buraco no muro. Imediatamente o oficial de segurança convocou uma reunião na sala do adido militar. Três funcionários da embaixada montaram sentinela na abertura do muro. Ao pequeno Cook ocorreu‑lhe imediatamente o pensamento correcto:

‑ Onde está Cliff Haller? ‑ perguntou. Começou discretamente a procura de Cliff entre os convidados e no parque. Ellen Donhoven estava sentada, sem saber de nada, na primeira fila dos ouvintes das árias. Ao seu lado estava o primeiro‑secretário da embaixada, que tinha recebido a ordem: "Distraia a Dra. Donhoven. Preocupe‑se exclusivamente com ela. Ela não deve perguntar por Cliff nas próximas horas."

‑ Haller desapareceu ‑ informou o comando de busca. ‑ Não foi esquecido nenhum canto da casa e do parque.


‑ O caso é evidente ‑ afirmou Cook. ‑ Eles raptaram o Cliff.

‑ Dirigiu‑se ao telefone, marcou um número e sorriu azedo, quando o interlocutor se apresentou. ‑ Meu querido amigo Dariques ‑ disse ele. ‑ Por que motivo é que você raptou o Cliff! Você quer uma batalha campal?! Então vai tê‑la! Amanhã liquidaremos um dos seus colaboradores nosso conhecido. Isto não é uma boa política, meu caro.

Cook ouviu o que Dariques lhe contrapunha. A voz chilreava ao telefone, sem interrupção, como se tivesse uma falha de contacto no relé. Cook não o interrompeu. Quando a voz finalmente parou, apenas acenou afirmativamente com a cabeça, calado, e desligou. Finley e Leeds não puderam dissimular mais a sua agitação.

‑ O que é que ele disse? ‑ gritaram ao Mesmo tempo. Cook abanou a cabeça cansado.

‑ Ele não tem o Cliff. Não tem nada a ver com o caso. Ignora totalmente.

‑ E você acredita nele? ‑ gritou Finley.

‑ Sim. Eu acredito nele. Toda a questão é um conflito pessoal entre Cascal e Haller. ‑ O pequeno Cook olhou para o seu relógio de pulso. Dez minutos para a meia‑noite. ‑ Dariques revelou‑me até a morada de Cascal...

‑ Então vamos até lá! ‑ exclamou Leeds. ‑ E se ele torceu um só cabelo de Cliff!...

‑ Fez mais do que torcer. Não podemos fazer mais nada por Cliff. Não deitemos areia para os olhos, rapazes. O caso está despachado. Quem é que se compromete com o problema de informar a Ellen disto?

‑ Eu ‑ disse Finley, rouco.

‑ De imediato?

‑ Apenas quando ela perguntar por Cliff.

Cook pôs a palma da mão no lado esquerdo do seu peito. Ali o smoking abaulava‑se um pouco, mal perceptível para um leigo. Cook não dava um passo sem o seu coldre no ombro.

‑ Dentro de uma hora vamos ter com Cascal. Acho difícil ele agora estar em casa.

‑ E não podemos fazer nada, mesmo nada por Cliff? ‑ queixou‑se Leeds. Como substituto de Haller, encarava a impotência dos serviços secretos como um começo não muito bom.

‑ Absolutamente nada! ‑ O pequeno Cook olhou para o canto. ‑ Cada profissão tem o seu risco. Vamos voltar para junto dos outros e vamos ouvir as árias de Trulljo...

 

Dez minutos mais tarde, Leeds, Finley e Cook saíram novamente do grupo dos convidados. Cook tinha feito uns sinais nervosos e correu depois para dentro de casa.

‑ Cliff está ali! ‑ gritou ele, como se estivesse quase a sufocar devido a um ambiente carregado. ‑ Ele está à espera na garagem. O tipo veio de táxi normalmente!

Cliff Haller estava sentado num monte de pneus velhos, quando Cook, Finley e Leeds se precipitaram para dentro da garagem. O mestiço estava junto dele e estendeu a mão de imediato.

‑ Ele prometeu‑me cem dólares! ‑ disse. ‑ Quem é que me paga os cem dólares?

‑ Hello, Cliff ‑ disse Cook, chegando‑se ao pé dele.

‑ Hello, boys! ‑ Haller sacudiu as algemas. ‑ Alguém pode procurar de uma vez um martelo e um escopro para me tirar as pulseiras?


‑ Cem dólares! ‑ gritou o mestiço. ‑ E eu não ouvi nem vi nada.

‑ Isso é bom, meu rapaz. ‑ Finley apertou‑lhe duas notas de cinquenta dólares na mão, o mestiço arreganhou os dentes, girou depois e correu para fora da garagem, para o pátio da embaixada. Pouco depois, lá fora, o automóvel roncou e distanciou‑se.

‑ Isso não é bonito, manter‑nos assim na expectativa ‑ disse Cook, segurando o escopro, enquanto Finley batia com o martelo.

‑ Queres tornar‑te artista de circo?

‑ Tenho um novo emprego como comida para peixe.

O capitão Leeds sentiu um arrepio nas suas costas.

‑ Estou a perceber. ‑ O pequeno Cook acariciou as faces de Cliff.

‑ Mas tu és intragável. Cuspiram‑te de volta! Por que é que ninguém nos perguntou antes? Poderíamos ter‑lhes dito!

A corrente soltou‑se. Finley começou a arrombar o fecho das algemas.

‑ Cascal? ‑ perguntou ele nessa altura.

‑ Sim.

‑ Vamos ripostar. Podes contar com isso.

‑ Mas deixa‑me primeiro estar nos Estados Unidos. ‑ Haller esfregou os pulsos libertos. Cook mandou Leeds buscar um grande copo de uísque puro. Ele sabia de que maneira saberia bem agora a Cliff. ‑ E nem uma palavra a Ellen. Os nervos dela já estão suficientemente estafados. Amanhã estará tudo esquecido... para sempre!

‑ Então continuas a pensar comprar o raio da quinta em Tentown?

Cook sentou‑se junto de Cliff, em cima dos pneus dos automóveis.

- Sim.

- E pensas que te vais manter firme lá, durante muito tempo?

‑ Até ao fim da minha vida.

‑ Eu aposto mil dólares que não.

‑ Dá‑os cá já... já os perdeste, Cook! ‑ Haller riu. Era outra vez o homem grande, forte e que não se deixava abalar por nada, um indivíduo firme como um rochedo ‑ A Ellen perguntou por mim?

‑ Ainda não.

‑ Então é tempo de eu me ocupar dela. ‑ Deu um empurrão ao pequeno Cook e deixou a garagem, rindo.

Raffael Trulljo tinha atacado o Rigoletto, quando Cliff Haller se colocou atrás de Ellen e lhe pousou as mãos nos ombros. Ela levantou o casaco rapidamente e encostou os dedos na boca. Cliff acenou com a cabeça afirmativamente, dobrou‑se um pouco e beijou o cabelo dela.

‑ Onde estavas? ‑ segredou Ellen, segurando a mão direita de Cliff.

‑ A passear um pouco, através do parque...

‑ Ele não canta bem?

‑ Muito bem, baby.


‑ Psst! ‑ ela pôs novamente as mãos nos lábios. Cliff acariciou os ombros dela e escutou obedientemente. Viu Cook, Finley e Leeds em pé à sua frente, que lhe sorriam ironicamente e lhe piscaram o olho. "Amanhã já terá tudo acabado, finalmente", pensou ele. "Vou‑lhes lançar aos pés a merda toda. Mas eles ainda não acreditam nisso. No fundo, não me conhecem de todo. Vou ser um óptimo agricultor em Tentown..."

Dois dias mais tarde, os jornais brasileiros publicaram forçosamente, porque a imprensa mundial já estava cheia delas, notícias sobre a chacina total de uma tribo índia no interior da selva amazónica. Uma testemunha ocular, tinha sido Cliff Haller, relatou o desaparecimento de Gaio Moco e do seu povo. O espanto espalhou‑se pelo país. O governo, até aí hábil em fechar os olhos, foi obrigado a exprimir o seu horror e a dar ordens para punir os culpados. Na ONU, a chacina dos índios brasileiros foi estabelecida como ordem do dia, o papa interveio, as primeiras imagens provocaram um horror que correu mundo. O Brasil perdeu a sua imagem, cunhada de religiosidade e liberalidade. Subitamente, todos reconheciam que tinha sido apenas uma máscara. Os protestos de todo o mundo amontoavam‑se no Rio e na capital, Brasília, até serem verdadeiras montanhas. Habilmente, a CIA deixou escapar o nome de José Cascal no relato sobre a carnificina dos índios. Cascal... era subitamente o nome com que se defendiam de tudo. Era o grande culpado, a fera, o exterminador. Quando foi preso, ainda jogava com a esperança de se safar de um processo judicial público e poder passar o fim da sua vida pacatamente algures nos confins da Terra. Apenas tinha obedecido a ordens, não tinha feito nada que os seus serviços superiores não soubessem e aprovassem. Considerava‑se completamente inocente. Mas a alta política precisava de uma vítima. E essa vítima chamava‑se José Cascal. Um tribunal do Rio condenou‑o à morte, perante os olhos do público mundial. Cascal suportou a sentença firmemente. "Eles não me vão eliminar", pensou. "Tudo isto não passa de uma hábil peça de teatro." Ainda estava assim convencido, quando, depois, numa manhã o tiraram da cela e o levaram para o pátio do presídio. "Agora vão‑me pôr daqui para fora", pensou ele. "Estou morto por saber para que parte do país é que eles me vão enviar. Talvez Manaus? Lá já ninguém se preocupa mais comigo. O que é que o mundo sabe de Manaus no Amazonas?" Só quando ficou em pé encostado ao muro desguarnecido e o pelotão de fuzilamento desfilou é que compreendeu que o queriam realmente matar.

‑ Vocês não podem fazer isso! ‑ gritou ele, quando dois soldados o ataram e lhe puseram uma venda nos olhos. ‑ Eu não fiz nada! Eu a penas obedeci a ordens! Os culpados estão sentados nos comandos militares, nas comissões de agricultura, nas fazendas dos grandes proprietários! Irmãos, não me podem matar... vocês não podem... eu sou apenas uma roda muito pequena da engrenagem... Eu apenas obedeci a ordens... Eu.. Mãe do céu... eu...

Cascal morreu com a primeira descarga. Sete tiros foram mortais.

O tiro de misericórdia na têmpora foi um mero desperdício de munições. No dia seguinte, os jornais brasileiros traziam uma curta notícia sobre a execução de Cascal. Pouca gente a leu, a viagem da Apollo 12 à Lua era muito mais importante. Apenas Dariques reagiu. Telefonou para o pequeno Cook.

‑ Parabéns ‑ disse ele. ‑ Foi um trabalho em grande. Vou ter de me esforçar muito para me desforrar.

‑ Para a próxima vez. ‑ Cook riu alegremente ao telefone.

‑ Posso convidá‑lo para uma bebida em minha casa, Dariques?


‑ Com muito gosto. Quando?

‑ Amanhã, às oito horas. Há rum com vodka.

‑ Lá estarei!

Quatro dias mais tarde, a base de mísseis na selva de Tefé foi arrasada. Apenas a central de energia eléctrica continuou de pé... a corrente eléctrica também pode ser utilizada para uma conquista pacífica do inferno verde...

A quinta em Tentown era um abençoado lugarzinho na Terra. Um vale verde com um riozinho, pastagens em colinas férteis, um bosque com árvores antiquíssimas, uma casa de campo de estilo colonial, de beirado levantado e incorporando cavalariças compridas e grandes currais nos quais as reses se aglomeravam. Cliff Haller, juntamente com quatro cowboys, não tinha mãos a medir para conservar esta propriedade em ordem. Havia quatro meses que Cliff e Ellen tinham casado em frente do juiz da paz de Tentou, sem qualquer pompa, em completo silêncio. Apenas o pai Donhoven tinha recebido um telegrama e dito em resposta que iria para lá logo que a agenda lhe permitisse. "Felizmente que Cliff é um homem que te segura!", escreveu ele. "Já é tempo de tu te lembrares de ser mulher!"

‑ E que mulher! ‑ riu Cliff, carregando Ellen através da casa. - A mais feminina que jamais me veio parar às mãos.

Em Setembro, Cliff recebeu uma visita de Washington. Um tal Mr. Dreher falou durante duas horas a sós com ele e depois foi‑se embora. Cliff bebeu três uísques duplos e apareceu na sala de estar como um rapaz que tivesse quebrado um vidro. Sentou‑se, quieto, a um canto do sofá e entalou as mãos entre os joelhos. Ellen observava‑o atentamente.

‑ O que queria este Mr. Dreher? ‑ perguntou ela.

‑ Veio de Washington.

‑ Isso já eu sei. Uma pessoa descortês. Tocou ao de leve no chapéu e passou simplesmente por mim.

‑ O seu comportamento é inadmissível. ‑ Cliff saltou e procurou por alguma coisa. Como não a encontrou, olhou para Ellen como um cão miserável. ‑ Ainda posso aguentar mais um uísque, Ellen.

‑ Desgosto?

‑ Conforme. ‑ Ele virou‑se e olhou fixamente através da janela para os currais. ‑ Ele vinha em missão.

‑ Quer comprar reses?

‑ Não. Eu tenho de ir a Moscovo...

‑ Cliff ‑ Foi um grito que o deixou a atordoado. Ellen tinha comprimido as mãos na boca e olhava‑o fixamente. Nos seus olhos lia‑se um espanto incrédulo. ‑ Cliff.. tu prometeste‑me... ‑ balbuciou ela.

‑ Claro que prometi. Mas ouve‑me sossegada, baby...

‑ Não! Não! Não quero ouvir nada. Nenhuma explicação, nenhum argumento, nada dessa maldita lógica, que tudo tem de ser assim, como calha... ‑ Ela apertava as mãos contra os ouvidos e abanava a cabeça. ‑ Acaba com isso! Acaba! Tu não tens mais nada a ver com Washington! Tu és o agricultor Cliff Haller!

Cliff tinha encontrado o uísque e bebido um grande gole directamente da garrafa. Encostara‑se à parede e evitava olhar para Ellen.


‑ Moscovo ‑ disse ele lentamente. ‑ Ellen, os russos desenvolveram um novo comando automático de mísseis, que é melhor que o nosso. Eles vão‑nos crucificar, se nós não conseguirmos ter um desses comandos na mão. Eu... eu... que diabo, Ellen, eu sou americano e amo o meu país.

‑ Eles não têm mais ninguém para além de ti?! ‑ gritou Ellen desesperadamente. ‑ Será que a CIA inteira é constituída apenas por Cliff Haller?

‑ Não. Mas confiam em mim para apanhar um desses aparelhos. Eu sei que te prometi nunca mais me misturar com estes negócios sujos, e também não o quero, mas... Ellen, mesmo assim, compreende... Quando os russos construírem estes novos mísseis ... Eu... não me faças isto mais difícil, baby... eu não sei o que devo fazer!

No fim de Setembro, Cliff Haller voou para Moscovo. Chamava‑se agora Jeff Chandler e tinha um passaporte de especialista de beterraba. Na escada de acesso parou junto da porta do avião e olhou mais uma vez para baixo, para a barreira de madeira, que separava a passadeira rolante dos edifícios do aeroporto, levantou os dois braços e acenou. Uma mulher magra e sozinha, de cabelo louro e curto acenou também. Estava em pé contra o vento que soprava do avião, segurando‑se à grade, como se pudesse ser levada pelo vento. ‑ Passa bem, Ellen ‑ disse Cliff em voz baixa. Depois virou‑se de repente e entrou rapidamente no aparelho. Atrás dele a porta fechou‑se, o fecho correu. A escada de acesso rolou para o lado. A mulher solitária agarrou‑se ao corrimão e fixou o olhar no pássaro gigantesco, dourado e brilhante, que se virava lentamente e rolava para a pista de descolagem.

‑ Volta, Cliff... ‑ balbuciou ela. ‑ Meu Deus, permite que ele volte de novo e dá‑me a força para aguentar os próximos meses.

Depois o pássaro gigantesco subiu no ar, trovejando por cima dela. Ela penteou‑se com os dedos muito abertos entre o cabelo revolto que rodopiava, dirigindo‑se lentamente para a saída. Ali estava um homem baixo, sorrindo embaraçado, que ela não tinha notado anteriormente. Estava à sua espera.

‑ Mr. Cook ‑ disse Ellen, rígida e completamente na defensiva.

‑ O que é que o senhor quer ainda de mim? Cliff foi‑se embora... eu não preciso das suas palavras.

O pequeno homem coçou o nariz e acompanhou Ellen até ao parque de estacionamento, onde estavam os seus carros.

Quero oferecer‑lhe uma coisa, Ellen ‑ disse ele. ‑ Mil dólares. Cliff perdeu‑os numa aposta. Não precisou de os pagar. Ele não queria acreditar que houvesse algo mais forte do que o seu amor. ‑ Cook levantou os braços. Parecia agora um morcego. ‑ Um equívoco, minha cara... Os agentes amam o perigo. É de meter nojo, mas é mesmo assim!

Sobre eles, o avião, qual ponto pequeno e prateado, desapareceu por entre as nuvens.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades