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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMAZÔNIA / James Rollins
AMAZÔNIA / James Rollins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

25 de julho, 18h24
Local de uma missão de padres jesuítas na América do Sul
Amazonas, Brasil
O padre Garcia Luiz Batista debatia-se com a enxada para arrancar ervas daninhas na horta da missão, quando o homem surgiu da selva a cambalear. O desconhecido vestia calças de ganga pretas, nada mais do que isso. De tronco nu e descalço, caiu de joelhos no meio das plantas de mandioca. A pele, profundamente bronzeada, estava coberta de tatuagens azuis e vermelhas.
Confundindo a figura com um dos índios ianomâmis, o padre Batista levantou a aba do amplo chapéu de palha e cumprimentou-o naquela que seria a sua língua nativa.
— Eou, shori — disse. — Bem-vindo, amigo, à missão de Wauwai.
O desconhecido ergueu o rosto, e Garcia apercebeu-se imediatamente do seu equívoco. Os olhos do homem eram azuis, cor nada natural entre as tribos indígenas, e as faces encontravam-se cobertas por uma barba escura.
Nunca poderia tratar-se de um índio local, mas, sim, de um homem branco.
— Bem-vindo — repetiu o padre, desta vez em português e acreditando que o sujeito seria um vulgar camponês de uma cidade costeira, aventurando-se na floresta, como tantos outros, em busca de riquezas e de uma vida melhor. — Bem-vindo à nossa missão, amigo.

 


 


Aos olhos do padre, parecia evidente que aquela pobre alma passara uma longa temporada na selva. Tinha a pele repuxada sobre os ossos, as costelas visíveis a olho nu. Os cabelos pretos estavam emaranhados e o corpo exibia múltiplos cortes e chagas. As moscas zumbiam-lhe em volta, pousando nele e alimentando-se das feridas abertas.

Ao tentar falar, os lábios gretados do homem romperam e uma gota de sangue fresco escorreu pelo queixo. Ergueu um braço suplicante e, meio a rastejar, avançou na direção do padre. As palavras, porém, não passavam de sons guturais, quase animalescos.

O primeiro instinto de Garcia foi recuar, mas a devoção a Deus nunca lho permitiria. O bom samaritano não virava costas aos necessitados. Curvando-se, ajudou o homem a levantar-se. De tão débil, era como segurar uma criança nos braços. Pelo calor que irradiava da pele, o padre percebeu que o homem ardia em febre.

— Vem, vamos procurar um abrigo e tirar-te do sol.

Garcia conduziu o homem na direção da igreja da missão, cuja torre branca se erguia contra o azul do céu. Para lá do edifício, um aglomerado de cabanas de palma entrelaçada e casas de madeira espalhava-se ao longo da clareira.

A missão de Wauwai fora erguida cinco anos antes, mas contava já com perto de oitenta habitantes, oriundos de diferentes tribos indígenas. Algumas habitações tinham sido construídas sobre estacas, como era típico nos índios Apalaí, enquanto outras, integralmente feitas de palma, abrigavam elementos das tribos Wayana e Tirió. Ainda assim, os residentes da missão eram na maioria ianomâmis, circunstância essa assinalada pela enorme casa circular comum.

Garcia estendeu o braço livre e fez sinal a um ianomâmi, um sujeito chamado Henaowe. O índio de baixa estatura, assistente do padre, vestia calças e uma camisa de manga comprida. Largou o que estava a fazer e correu na direção do missionário.

— Ajuda-me a levar este homem para casa.

Henaowe anuiu vigorosamente com a cabeça e posicionou-se no outro lado do desconhecido. Com o homem febril pendurado nos ombros de ambos, o índio e o padre atravessaram o portão da horta e contornaram a igreja até ao edifício de madeira adjacente, no lado sul. A residência do missionário era a única que dispunha de um gerador a gasolina. Alimentava a iluminação da igreja, o frigorífico e o único aparelho de ar condicionado. Por vezes, Garcia interrogava-se se o êxito da missão não se devia unicamente ao milagre do interior climatizado da igreja, em vez da crença genuína na salvação através de Jesus Cristo.

Assim que chegaram à residência, Henaowe inclinou-se e abriu a porta. Arrastaram o desconhecido pela sala de jantar até a uma divisão nas traseiras. Apesar de ser uma habitação para acólitos, encontrava-se desocupada. Dois dias antes, os missionários mais jovens tinham partido numa expedição evangélica a uma aldeia vizinha. O pequeno quarto lembrava uma pequena cela escura, mas pelo menos era fresco e resguardado do sol.

Garcia pediu a Henaowe para acender o candeeiro a gás, visto que não havia eletricidade nas divisões mais pequenas. As baratas e as aranhas que por ali rastejavam fugiram do brilho da chama.

— Ajuda-me a tirar-lhe a roupa — disse Garcia, depois de deitarem o desconhecido na cama. — Tenho de lhe limpar as feridas.

Henaowe anuiu e estendeu a mão para os botões das calças do homem. Detendo-se subitamente, saltou para trás, assustado, como se fugisse de um escorpião.

— Weti kete? — perguntou Garcia. — O que se passa?

Henaowe arregalou os olhos. Parecia genuinamente aterrorizado. Apontou para o peito do homem, falando rapidamente na sua língua nativa.

Garcia franziu o sobrolho.

— O que têm as tatuagens? — perguntou, observando os desenhos azuis e vermelhos no tronco do homem, na maioria formas geométricas, como círculos, floreados vibrantes e triângulos. No entanto, uma espiral vermelha irradiava do centro das tatuagens, lembrando sangue a rodopiar num sorvedouro. Uma palma de mão azul ocupava o centro do remoinho, logo acima do umbigo.

— Shawara! — exclamou Henaowe, recuando na direção da porta. — Espíritos maus!

O padre olhou de soslaio para o assistente. Pensava que, por aquela altura, o homem tinha já abandonado as crendices.

— Chega! — disse com alguma rispidez. — Não passa de tinta. Não é obra do diabo. Vem mas é ajudar-me.

Henaowe não arredou pé. Estava demasiado assustado para se aproximar sequer da cama.

Irritado, Garcia desviou a atenção para o homem, que começara a gemer e a debater-se em cima dos lençóis. Os olhos estavam vidrados de febre, delirantes. Garcia pousou a mão na testa. A pele queimava. Virou-se de novo para Henaowe.

— Traz-me ao menos o estojo de primeiros socorros e a penicilina do frigorífico.

Aliviado, o índio correu para fora do quarto.

Garcia suspirou. Uma década passada na Amazónia conferira-lhe competências médicas obrigatórias, como imobilizar ossos partidos, limpar e desinfetar feridas ou tratar febres. Era até capaz de realizar cirurgias simples, como aplicar suturas, ou assistir a partos difíceis. Enquanto padre da missão, não lhe competia apenas ser o guardião das almas nativas, mas também conselheiro, comandante e médico.

Despiu as roupas imundas do homem e colocou-as de parte. O corpo nu do desconhecido espelhava bem até que ponto a selva podia ser inclemente. Larvas rastejavam no interior das feridas abertas, infeções fúngicas tinham devorado as unhas dos pés e uma cicatriz no calcanhar assinalava uma antiga mordidela de cobra.

Enquanto trabalhava, o padre interrogou-se acerca da identidade do homem. Qual será a sua história? Terá família aqui perto? Qualquer pergunta que lhe dirigisse, porém, era respondida com uma algaraviada delirante.

Muitos dos camponeses que tentavam fazer vida na selva encontravam fins violentos às mãos de nativos hostis, ladrões, traficantes de droga, ou mesmo de predadores naturais. No entanto, a principal causa de morte continuava a ser a doença. Na natureza remota da floresta tropical, a ajuda médica podia encontrar-se a semanas de distância. Uma gripe comum podia matar.

O som de passos desviou a atenção do padre para a porta. Henaowe regressara com o estojo médico e um balde de água limpa. Mas não vinha sozinho, o que explicava o tempo que demorara a voltar. A seu lado encontrava-se Kamala, um xapuri de cabelos brancos, o xamã da tribo. Henaowe devia ter ido buscar o velho curandeiro.

— Haya — disse Garcia. — Avô. — Era a maneira típica de cumprimentar um ancião ianomâmi.

Kamala não respondeu. Limitou-se a entrar no quarto, dirigiu-se à cama e lançou um olhar compenetrado ao homem que ali jazia. Virou-se para Henaowe e fez-lhe sinal para largar o balde e o estojo médico. O xamã ergueu então os braços sobre o desconhecido e começou a entoar um cântico. Garcia era fluente em muitos dialetos indígenas, mas não distinguiu uma palavra.

Terminada a cantoria, Kamala virou-se para o padre.

— Este nabe foi tocado pelos shawara — disse em português —, os espíritos maléficos da floresta profunda. Vai morrer esta noite. O corpo tem de ser queimado antes do amanhecer.

Posto isto, virou costas, preparando-se para sair.

— Espere! O que significa este símbolo?

Kamala olhou por cima do ombro.

— É a marca da tribo dos Ban-ali. Os jaguares de sangue. Este homem pertence-lhes. Ninguém deve ajudar um ban-yi, o servo do jaguar. O castigo é a morte.

O xamã fez um gesto de proteção contra espíritos maléficos, soprando por entre as pontas dos dedos, depois abandonou a divisão, seguido por Henaowe.

Sozinho no quarto mal iluminado, Garcia sentiu uma aragem fria que não provinha do aparelho de ar condicionado. Ouvira rumores dos Ban-ali, uma das míticas tribos-fantasma da floresta profunda. Um povo assustador que procriava com jaguares e possuía poderes inomináveis.

Garcia beijou o crucifixo que levava ao pescoço e pôs de parte tais pensamentos supersticiosos. Virando-se para o balde e os remédios, ensopou uma esponja com a água tépida e levou-a aos lábios do homem.

— Bebe — sussurrou-lhe. Na selva, a desidratação, mais do que tudo o resto, fazia a diferença entre a vida e a morte. Apertou a esponja, fazendo escorrer a água sobre a boca ressequida do homem.

Como um bebé perante os seios da mãe, o desconhecido reagiu à presença da água e sorveu-a, tossindo e engasgando-se. Garcia levantou-lhe um pouco a cabeça. Minutos mais tarde, o delírio dissipou-se ligeiramente do olhar do homem, que procurou a esponja, ávido de mais um pouco do líquido milagroso. Garcia, porém, afastou a mão. Beber demasiada água era contraproducente em casos de extrema desidratação.

— Descansa — disse o padre. — Deixa-me tratar-te das feridas e dar-te antibióticos.

O homem não parecia entender uma palavra. Lutou para se sentar e alcançar a esponja, gritando de forma incompreensível. Garcia empurrou-lhe os ombros contra a almofada; o homem escancarou a boca, e só então o padre percebeu o motivo que o impossibilitava de falar.

O homem não tinha língua. Cortaram-lha.

Chocado, Garcia preparou uma seringa de ampicilina e rezou pelas almas dos monstros que tinham sido capazes de fazer aquilo a outro ser humano. O prazo de validade do antibiótico expirara, mas não havia mais. Espetou a agulha nas nádegas do homem, premiu o êmbolo, e depois começou a limpar as feridas com água e uma pomada.

O estado de consciência do desconhecido oscilava entre momentos de lucidez e delírio. Sempre que estava lúcido, debatia-se para alcançar as roupas, como se tencionasse prosseguir a jornada pela selva. Garcia empurrava-lhe os braços para baixo e aconchegava-lhe a manta.

O Sol pôs-se e a noite caiu sobre a floresta; Garcia foi-se deixando estar sentado à cabeceira da cama, a segurar uma Bíblia e a rezar pelo homem. No seu íntimo, sabia que as preces não seriam atendidas. Kamala, o xamã, avaliara corretamente a situação. O desconhecido não sobreviveria à noite.

Garcia não sabia se estava na presença de uma alma cristã e, precavendo-se, executara o ritual da extrema-unção uma hora antes. O homem agitara-se quando lhe marcara a testa com óleo, mas não tinha acordado. A pele ainda queimava da febre. O antibiótico não produzira efeito contra as infeções no sangue.

Conformado com a morte iminente do homem, o padre manteve-se em vigília. Era o mínimo que podia fazer por aquela pobre alma. Porém, tendo chegado a meia-noite e com o despontar dos sons da selva, entre eles o cantar dos gafanhotos e o coaxar das rãs, Garcia acabou por adormecer com a Bíblia no colo.

Acordou horas depois ao som de um choro abafado. Acreditando que o homem exalava o último estertor, Garcia levantou-se e a Bíblia caiu-lhe do colo. Ao curvar-se para apanhá-la, encontrou o homem a fitá-lo fixamente. Os olhos continuavam vidrados, mas o delírio desvanecera-se. O desconhecido ergueu a mão trémula e apontou para a roupa.

— Não podes sair daqui — disse o padre.

O homem fechou os olhos por um momento, abanou a cabeça e, lançando um olhar suplicante, apontou de novo para as calças.

Garcia fez-lhe a vontade, sabendo que não devia recusar o último desejo de um moribundo. Caminhou até aos pés da cama, agarrou nas calças e entregou-as ao homem.

O desconhecido pegou nas calças e começou imediatamente a apalpar ao longo da costura interior da perna. Por fim, parou num determinado ponto, como que a indicar aquela secção do tecido, e, com os braços trémulos, tentou devolver as calças ao padre.

Garcia julgou que o desconhecido estaria de novo a delirar. Em bom rigor, a respiração dele tornara-se mais forçada e cavernosa. Mesmo assim, fez-lhe a vontade. Aceitou as calças e apalpou o tecido onde lhe indicara.

Para sua surpresa, encontrou algo rígido sob a ganga, alguma coisa escondida por trás da costura. Um bolso secreto.

Curioso, o padre tirou um par de tesouras do estojo médico. Na cama, o homem deixou cair a cabeça na almofada, nitidamente aliviado por ter conseguido passar a mensagem.

Garcia cortou o tecido ao longo da costura e abriu o bolso secreto. Enfiou o dedo e retirou uma medalhinha de bronze. Segurou-a junto ao candeeiro. Havia um nome gravado na medalha.

— Gerald Wallace Clark — leu em voz alta. — É o teu nome, meu filho?

Desviou o olhar para a cama.

— Meu Deus...

O homem tinha os olhos cravados no teto, a boca aberta, o peito imóvel. A sua alma partira por fim.

— Descansa em paz, Gerald Wallace Clark.

O padre voltou a examinar a medalha e virou-a. Assim que leu as palavras gravadas na outra face, sentiu a boca seca de apreensão.

Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos da América.

1 de agosto, 10h45

Quartel-general da CIA

Langley, Virgínia

George Fielding não estava à espera daquele telefonema. Enquanto diretor-adjunto da CIA, era comum ser convocado para reuniões urgentes com os responsáveis de várias divisões, mas receber uma chamada de «prioridade um» de Marshall O’Brien, o diretor do Centro Ambiental, era coisa rara e nunca vista. Estabelecido em 1997 como uma divisão dos Serviços de Inteligência, o centro dedicava-se aos assuntos do meio ambiente, porém, até à data, nunca tinha sido feita uma chamada prioritária para a direção da Agência. Tais emergências estavam reservadas a assuntos urgentes de segurança nacional. O que poderia ter levado o Velho Pássaro — como Marshall O’Brien era conhecido — a emitir semelhante alerta?

Fielding encaminhou-se em passo rápido pelo longo corredor que ligava o velho edifício, o original, às novas instalações. Estas tinham sido construídas no final dos anos oitenta e albergavam a maioria das emergentes divisões da Agência, incluindo o Centro Ambiental.

Pelo caminho, ia admirando as fotografias emolduradas que decoravam o corredor, uma galeria com os rostos dos antigos diretores da CIA desde a época do major-general Donovan dos Serviços Estratégicos, a primeira versão da Agência, nascida nos tempos da Segunda Guerra Mundial. O atual diretor teria um dia o seu retrato naquela parede, e se Fielding jogasse bem as cartas, talvez pudesse encontrar-se nessa posição no futuro.

Com essa ideia em mente, entrou no novo edifício e percorreu os corredores até aos gabinetes do Centro Ambiental. Assim que atravessou a porta principal, foi imediatamente recebido por uma secretária.

— Diretor-adjunto — disse ela, levantando-se —, o senhor O’Brien está à sua espera no gabinete.

A secretária dirigiu-se a uma porta de mogno, bateu a anunciar a sua presença, abriu e convidou-o a entrar.

— Obrigado — disse Fielding.

No gabinete, uma voz profunda cumprimentou-o.

— Diretor-adjunto Fielding, obrigado por ter vindo.

Marshall O’Brien levantou-se da cadeira. Era um homem enorme, de cabelo grisalho. A mesa de trabalho, que não era pequena, parecia minúscula ao pé dele. Indicou uma cadeira em frente.

— Por favor, sente-se. Sei que o seu tempo é precioso, por isso, não tenciono desperdiçá-lo.

Sempre direito ao assunto e sem papas na língua, pensou Fielding. Quatro anos antes, haviam corrido rumores de que Marshall O’Brien poderia assumir a direção da CIA. Na realidade, o homem ocupara o cargo de diretor-adjunto antes de Fielding, mas irritara uns quantos senadores ao demonstrar pouca tolerância para jogos de bastidores e queimara outros tantos apoios devido ao rígido sentido de retidão. Não era assim que se fazia política em Washington, e O’Brien acabara relegado para a atual condição de figura decorativa no Centro Ambiental. O telefonema urgente era provavelmente uma tentativa de chamar a atenção e de se manter relevante na Agência.

Fielding sentou-se.

— O que se passa?

O’Brien ocupou o seu lugar à secretária e abriu um dossiê cinzento.

O dossiê pessoal de alguém, reparou Fielding.

O’Brien aclarou a garganta.

— Há dois dias, um corpo foi entregue ao consulado americano em Manaus, no Brasil. O homem foi identificado pela pequena medalha alusiva à antiga unidade das Forças Especiais a que pertencia.

Fielding franziu o sobrolho. As medalhas alusivas a divisões das forças armadas eram comuns entre militares. Constituíam mais uma tradição do que uma forma válida de identificação. Um militar que fosse apanhado sem a medalha, e independentemente de se encontrar ainda no ativo ou não, era obrigado a pagar uma rodada aos companheiros.

— E porque é que essa história nos diz respeito?

— O homem em questão não era apenas um antigo membro das Forças Especiais. Era um dos meus operacionais, Gerald Clark.

Fielding pestanejou duas vezes.

O’Brien prosseguiu.

— O agente Clark estava a trabalhar infiltrado numa equipa de cientistas, com vista a investigar denúncias de estragos ambientais perpetrados por operações mineiras de ouro e reunir informações acerca do transporte de largas quantidades de cocaína boliviana e colombiana através da bacia do Amazonas.

Fielding endireitou-se na cadeira.

— E foi assassinado? É disso que se trata?

— Não. Há seis dias, o agente Clark apareceu numa aldeia missionária nas profundezas da selva amazónica, a morrer de febre e de exposição aos elementos. O padre responsável pela missão ainda tentou salvá-lo, mas o agente Clark acabou por morrer poucas horas depois.

— Bom, sem querer desvalorizar o facto de se tratar de uma tragédia, será mesmo um assunto de segurança nacional?

— Acontece que o agente Clark se encontrava desaparecido há quatro anos. — O’Brien entregou a Fielding uma cópia de um recorte de jornal.

Confuso, Fielding aceitou o documento.

— Quatro anos?

EXPEDIÇÃO DESAPARECE NA SELVA AMAZÓNICA

Associated Press

MANAUS, BRASIL — As persistentes buscas para descobrir o paradeiro do magnata da indústria, Carl Rand, e da sua equipa de trinta cientistas internacionais e guias foi cancelada ao fim de três meses de trabalho intenso. A equipa, um esforço conjunto do Instituto Nacional do Cancro, dos Estados Unidos, e da Fundação Nacional do Índio, desaparecera na floresta tropical sem deixar rasto.

O objetivo da expedição, que deveria durar um ano, era a realização de uma exaustiva estatística sobre o número de nativos e tribos indígenas ainda a viverem na selva amazónica. Contudo, três meses depois de a equipa deixar Manaus, os relatórios diários, emitidos do terreno via rádio, terminaram sem aviso. Todas as tentativas de contactar os cientistas falharam. Helicópteros de resgate e equipas de terra foram enviados para a última localização conhecida, mas não encontraram nada. Duas semanas depois, uma última mensagem foi recebida: «Enviem ajuda, não aguentamos muito mais. Oh, meu Deus, eles estão por toda a parte.» Nada mais se soube. A equipa foi engolida pela vastidão da selva.

Agora, após três meses de buscas envolvendo esforços internacionais e muita publicidade, o comandante Ferdinand Gonzales, líder do grupo de resgate, declarou os membros da expedição «perdidos e possivelmente mortos», pondo fim aos trabalhos.

A opinião geral dos envolvidos é de que os cientistas foram atacados por uma tribo hostil ou depararam-se com uma base secreta de traficantes. Em todo o caso, a esperança de um resgate com êxito morreu hoje com a retirada dos grupos de busca. Resta referir que, a cada ano que passa, centenas de investigadores, exploradores e missionários desaparecem na selva amazónica, para nunca mais ser vistos.

— Meu Deus...

O’Brien retirou o artigo dos dedos atordoados de Fielding e prosseguiu.

— Depois do desaparecimento da expedição, nunca mais soubemos nada dos cientistas ou do nosso homem. O agente Clark foi dado como morto.

— Mas temos a certeza de que se trata do mesmo homem?

O’Brien anuiu.

— Os registos dentários e as impressões digitais coincidem com o ficheiro pessoal.

Fielding abanou a cabeça, o choque inicial desvanecera-se.

— Por muito trágico que tudo isto seja, e da trabalheira burocrática que representa, continuo sem perceber como pode isto ser um assunto de segurança nacional.

— E eu concordaria consigo, não fosse um pormenor.

O’Brien folheou o dossiê e retirou duas fotografias. Entregou a primeira a Fielding.

— Esta foi tirada dias antes do início da expedição.

Fielding olhou para a imagem granulada de um homem vestido com umas Levi’s, uma camisa havaiana e um chapéu de safari. Exibia um grande sorriso e segurava uma bebida tropical.

— É o agente Clark?

— Sim, a foto foi tirada por um dos cientistas durante uma festa de despedida. — O’Brien passou-lhe a segunda fotografia. — E esta foi tirada na morgue de Manaus, onde se encontra o cadáver.

Fielding aceitou a fotografia um tanto contrariado. Não lhe apetecia ver imagens de cadáveres, mas não tinha escolha. O corpo na imagem estava despido e deitado numa marquesa de aço inoxidável. Parecia um monte de ossos embrulhado em pele, decorado com bizarras tatuagens. Mesmo assim, Fielding reconheceu as feições. Era o agente Clark, mas havia uma diferença impossível de não ser notada. Pegou na primeira fotografia e comparou as duas imagens.

Ao reparar na palidez que tomou conta do rosto de Fielding, O’Brien verbalizou o que o diretor-adjunto estaria a pensar.

— Dois anos antes do desaparecimento, durante uma missão de reconhecimento no Iraque, o agente Clark foi alvejado no braço esquerdo por um atirador especial. A gangrena instalou-se antes que ele pudesse alcançar uma base americana, e os médicos foram obrigados a amputar-lhe o braço pela altura do ombro. Foi o fim da sua carreira nas Forças Especiais.

— Mas... este cadáver tem os dois braços!

— Exatamente. As próprias impressões digitais deste «novo» braço coincidem com as do ficheiro anterior à amputação. Ao que parece, o agente Clark viajou para a Amazónia com um braço e voltou de lá com dois.

— Isso é impossível! Que raio aconteceu por lá!?

O’Brien fitou o diretor-adjunto com o seu olhar de falcão, razão pela qual lhe chamavam Velho Pássaro. Fielding sentiu-se como um rato diante de uma águia. A voz de O’Brien tornou-se mais profunda.

— É o que tenciono descobrir.


PRIMEIRO ATO

A MISSÃO

CURARE

Família: Menispermaceae

Género: Chondrodendron

Espécie: Tomentosum

Nome comum: Curare

Partes utilizáveis: Folhas, raiz

Propriedades: Diurético, febrífugo, relaxante muscular, tónico, veneno


1

ÓLEO DE SERPENTE

6 de agosto, 10h11

Selva amazónica, Brasil

A anaconda enrolou-se à volta da menina indígena, e esta foi arrastada aos gritos na direção do rio. Nathan Rand largou a sacola repleta de espécimes para acorrer em seu auxílio. Ouvira os primeiros gritos quando caminhava pelo trilho estreito de volta à aldeia ianomâmi, tendo passado a manhã a colher plantas medicinais. Enquanto corria, agarrou na caçadeira de canos serrados que trazia pendurada ao ombro. Uma pessoa não se aventura sozinha na selva sem uma arma.

Abriu caminho pela densa folhagem e avistou a serpente e a menina. A anaconda, a maior que já tinha visto, com pelo menos doze metros de comprimento, encontrava-se metade dentro de água e a outra metade na margem barrenta. As escamas negras reluziam. A criatura devia estar à espreita quase à tona quando a menina fora buscar água ao rio. Não era invulgar as serpentes gigantes atacarem animais que iam beber ao rio: javalis, capivaras, roedores, veados. Mas raramente atacavam humanos.

Mesmo assim, trabalhando há mais de uma década como etnobotânico nas selvas da bacia amazónica, Nathan aprendera uma regra básica: quando um predador tem fome, não há regras que se apliquem. Naquele interminável mundo verde, «comer ou ser comido» era o nome do jogo.

Nathan semicerrou os olhos ao alinhar a mira da arma e reconheceu a menina. Oh, meu Deus... Tama! Era a sobrinha do chefe da aldeia, uma menina de nove anos, sorridente e feliz, que um mês antes lhe oferecera um ramo de flores quando ele chegara à selva. A partir daí, Tama ganhara o hábito de se divertir a puxar-lhe os pelos dos braços — uma raridade aos olhos dos Ianomâmis, que têm pele de bebé —, chamando-lhe Jako Basho, «Irmão Macaco».

Mordendo o lábio, fez pontaria, mas não conseguia obter uma linha de tiro limpa. Não com a menina envolvida pelo corpo musculado do predador.

— Rai’s partam! — gritou. Atirou a caçadeira para o chão e levou a mão ao machete que trazia à cintura. Desembainhando-o, correu para a margem, mas a serpente enrolou-se sobre si mesma e mergulhou nas águas negras com a menina. Os gritos de Tama silenciaram-se, convertendo-se em bolhas que rebentaram à superfície.

Sem pensar duas vezes, Nathan mergulhou atrás dela.

Na Amazónia, um curso de água é o ambiente mais perigoso. Inúmeros perigos escondem-se sob a superfície plácida. Cardumes de piranhas patrulham as profundezas, enquanto as raias aguardam enterradas na lama e as enguias-elétricas escondem-se por entre raízes e troncos submersos. No entanto, a pior de todas as criaturas é o verdadeiro assassino de homens, o jacaré-açu, um réptil verdadeiramente gigante. Com todos estes perigos, os índios da Amazónia não se aventuram em águas desconhecidas.

Mas Nathan Rand não era índio.

Sustendo a respiração, Nathan perscrutou as águas lamacentas e avistou as curvas negras e poderosas da serpente um pouco mais à frente. No meio delas, um pálido e frágil membro. Batendo as pernas, Nathan esticou o braço, agarrou na pequena mão e puxou com força. Os dedos da menina apertaram os seus em desespero. Tama estava viva. E consciente!

Puxou o braço dela para se aproximar o mais possível da serpente e, com a outra mão, desferiu um golpe com o machete, que resvalou inconsequentemente nas escamas rijas da criatura. Tendo passado o dia a abrir caminho pela selva e a recolher plantas para a coleção, a lâmina perdera o gume.

Mesmo assim, recusou-se a desistir. Desferiu outro golpe, batendo os pés para se manter no seu lugar, sem largar a mão da menina.

Então, as águas negras agitaram-se e deu por si a olhar diretamente para os olhos vermelhos da grande serpente. A criatura apercebera-se da ameaça que tentava roubar-lhe a refeição. Abriu as mandíbulas e atacou.

Nate desviou-se, lutando para não largar o braço de Tama. Não podia permitir que a menina pensasse que a tinha abandonado.

A poderosa boca da anaconda fechou-se à volta do seu antebraço como um torno, ameaçando partir-lhe o pulso a qualquer instante. Ignorando a dor e o pânico, Nate puxou o outro braço atrás e, desta vez, apontou o machete aos olhos da serpente.

No derradeiro instante, a anaconda gigante rolou sobre si mesma, arrastando-o para o fundo lamacento e prendendo-o debaixo do seu peso. Nate sentiu o ar ser drenado dos seus pulmões, à medida que os cento e oitenta quilos de músculo o aprisionavam contra o leito do rio. Bolhas de oxigénio precioso subiram para a superfície. Lutou para se libertar, mas o leito lamacento apenas dificultava a tarefa.

A serpente contorceu-se de novo e Nate sentiu a mão da criança ser arrancada da sua.

Tama... não!

Largou o machete e empurrou o peso da criatura com as duas mãos. Os ombros afundaram-se na lama macia, mas continuou a fazer força. Por cada espiral escamosa que afastava, outra tomava o seu lugar. Os braços começaram a fraquejar, os pulmões gritavam por ar.

Naquele momento, Nathan Rand soube que estava condenado. Não ficou surpreendido. Sabia que aconteceria um dia. Era o seu destino, a maldição que corria na família. Em apenas duas décadas, a floresta amazónica roubara-lhe a mãe e o pai. A mãe sucumbira de febre quando ele tinha onze anos, num pequeno hospital missionário, e o pai desaparecera na selva quatro anos antes. Nunca se soube o que lhe aconteceu.

A lembrança do desaparecimento do pai alimentou-lhe a raiva. Amaldiçoado ou não, nunca permitiria que a selva o engolisse.

Mais importante, não perderia Tama.

Recorrendo à última réstia de ar nos pulmões, empurrou o corpo da serpente com as pernas. Livre por um instante, cravou os pés na lama, afundando-os até aos tornozelos, e impulsionou-se em direção à superfície.

A cabeça irrompeu das águas, e Nathan aspirou uma preciosa golfada de ar, mas foi de novo puxado para o fundo. A serpente ainda o mantinha preso pelo antebraço nas poderosas mandíbulas.

Desta vez, Nathan não lutou contra a força do monstro. Mantendo o antebraço colado ao peito, rolou sobre si mesmo até ficar numa posição onde conseguia enrolar o outro braço à volta do pescoço da serpente. A seguir, espetou-lhe o polegar num olho.

A anaconda sacudiu-se, projetando momentaneamente Nate para fora de água e fazendo-o cair de novo. Sentiu o corpo girar quando a criatura se enrolou à volta da barriga e das pernas.

Sacudido de um lado para o outro, conseguiu um vislumbre da menina ainda aprisionada noutra secção das curvas escamosas da serpente.

Desiste, maldita! Desiste!

Dobrou o braço preso o suficiente para espetar o outro polegar no outro olho da anaconda. Fez força de ambos os lados, rezando para que aquilo que aprendera sobre a fisiologia dos répteis fosse verdade. A pressão sobre os olhos devia provocar um reflexo de vómito por via dos nervos óticos.

Cravou ainda mais os dedos, sentindo o martelar do coração nos ouvidos.

Então, subitamente, a pressão sobre o braço desapareceu e ele viu-se arremessado com tamanha força que deslizou pela água e foi embater com o ombro contra a margem. Virou-se e avistou uma forma pálida que emergia no meio do rio.

Tama!

Tal como esperava, o reflexo visceral da serpente obrigara-a a libertar ambas as presas. Nathan avançou pelo rio dentro, agarrou a menina pelo braço e puxou-a para si. Atirou-a para cima do ombro e saiu rapidamente da água.

Deitou o corpo encharcado na margem. Tama não respirava. Os lábios estavam roxos. Verificou-lhe o pulso: fraco, mas ainda batia.

Olhou em volta à procura de ajuda, que ele sabia não existir. Não havendo ninguém por perto, cabia-lhe a si reanimar a menina. Recebera treino de primeiros socorros antes de se aventurar na selva, mas não era médico. Ajoelhando-se, virou a menina de barriga para baixo e aplicou pressão nas costas. Uma pequena quantidade de água escorreu-lhe da boca e do nariz.

Satisfeito, virou-a de barriga para cima e fez-lhe respiração boca a boca. Naquele instante, um dos elementos da tribo dos Ianomâmis, uma mulher de meia-idade, surgiu da selva. Era pequena, como todos os índios, com pouco mais de um metro e meio de altura. O cabelo preto estava cortado no habitual formato de tigela, as orelhas adornadas com pedaços de bambu e penas. Os olhos negros arregalaram-se diante da visão de um homem branco curvado sobre a menina.

Nathan sabia o que a mulher devia estar a pensar e endireitou-se no preciso instante em que Tama despertou a tossir água e a debater-se, assustada. Em pânico, a menina começou a bater-lhe com os pequenos punhos, ainda a viver o pesadelo do ataque da serpente.

— Calma, estás salva — disse Nathan no dialeto dos Ianomâmis, tentando segurar-lhe as mãos. Virou-se para a mulher com intenção de se explicar, mas ela simplesmente largou o cesto que carregava e desapareceu por entre o denso matagal na margem do rio. Ouviu-se um som de alarme a acompanhar a fuga da mulher. Nathan conhecia aquele chamamento. Servia para avisar que um dos nativos se encontrava em perigo. Fechou os olhos e suspirou.

— Lindo serviço. Só me faltava esta.

Quatro semanas antes, quando chegara à aldeia com o propósito de registar os conhecimentos medicinais do xamã da tribo, o chefe da comunidade instruíra-o para se manter longe das mulheres. Tinha havido ocasiões em que homens brancos se aproveitaram das nativas. Nathan honrara o pedido do chefe, embora algumas mulheres tivessem revelado interesse em partilhar a sua cama. Com um metro e oitenta de altura, os olhos azuis e os cabelos castanho-claros, constituía uma novidade aos olhos das nativas daquela tribo isolada.

À distância, o sinal de alerta da mulher na beira do rio foi atendido por outros índios, muitos outros. O nome «ianomâmi» significava qualquer coisa como «o povo feroz». Estes indígenas eram tidos como implacáveis guerreiros. Os huyas, os homens mais novos da aldeia, estavam sempre envolvidos em disputas de honra ou a reclamarem de alguma maldição lançada sobre eles; tudo o que servisse de desculpa para se envolverem numa luta com tribos vizinhas ou entre eles próprios. Eram conhecidos por aniquilarem aldeias inteiras por ninharias como um simples insulto.

Nathan fitou o rosto da menina. O que diriam os huyas acerca daquilo? Uma criança da tribo atacada por um homem branco. A sobrinha do chefe, ainda por cima.

Tama começou a acalmar-se, mas apenas para cair numa sonolência incerta. A respiração mantinha-se regular, porém, quando Nathan lhe pousou a mão na testa, percebeu que ardia em febre. Também se apercebeu da extensa nódoa negra no lado direito do tronco. Apalpou a zona. A anaconda, com a sua força esmagadora, partira-lhe duas costelas. Sentou-se sobre os calcanhares, a morder o lábio. Tama só sobreviveria se recebesse cuidados médicos imediatos.

Curvando-se, pegou na menina ao colo. O hospital mais perto situava-se a catorze quilómetros rio abaixo, na pequena cidade de São Gabriel. Precisava de a levar para lá.

Contudo, havia um problema. Os Ianomâmis. Nunca teria hipótese de fugir com a criança sem ser apanhado. Estava em território indígena, e embora conhecesse bem o terreno, não era um deles. Havia um ditado conhecido na floresta: «Na boesi, ingi sabe ala sani.» Na selva, o índio sabe tudo. Os Ianomâmis eram caçadores de excelência, mestres no uso do arco e flecha, da zarabatana, lança e moca.

Nunca conseguiria escapar.

Afastando-se do rio, apanhou a caçadeira caída entre os arbustos e pendurou-a ao ombro. Aconchegou a menina nos braços e partiu na direção da aldeia. Tinha de arranjar maneira de eles lhe darem ouvidos, tanto para o seu bem como para o de Tama.

Mais à frente, a aldeia indígena em que assentara durante o último mês cobrira-se de silêncio. Nathan estremeceu enquanto caminhava. Não se ouvia nada, nem sequer o chilrear e o uivo constantes de pássaros e macacos.

Sustendo a respiração, contornou uma esquina e deu de caras com uma parede de índios a barrar-lhe o caminho com flechas e lanças prontas a disparar, os rostos pintados de vermelho. Sentiu movimento atrás de si, olhou por cima do ombro e vislumbrou outros tantos.

Nate sabia que havia apenas uma hipótese de se salvar a si e à menina, algo que preferia não ter de fazer, se tivesse escolha.

— Nabrushi yi yi! — gritou, determinado. — Exijo um julgamento por combate!

6 de agosto, 11h38

Arredores de São Gabriel da Cachoeira

Manuel Azevedo sabia que estava a ser perseguido. A respiração cavernosa do jaguar fez-se ouvir por entre a vegetação enquanto fugia pelo trilho da floresta. Exausto e encharcado em suor, continuou a descer a encosta íngreme do monte do Caminho Sagrado. Mais à frente, uma brecha na folhagem permitiu-lhe avistar a cidade de São Gabriel. Situava-se numa curva do rio Negro, um dos afluentes do poderoso rio Amazonas.

Estou tão perto... talvez perto o suficiente...

Manny parou e olhou para trás à procura de um sinal do jaguar — o estalar de um ramo, o restolhar de folhas —, mas não ouviu nada, nem sequer a respiração profunda. O predador sabia que esgotara a sua presa. O grande felino preparava-se agora para a matança.

Manny manteve-se atento. Os únicos sons provinham do zumbido dos gafanhotos e do canto distante dos pássaros. À escuta, imóvel, um arrepio percorreu-lhe a espinha. Uma gota de suor desceu-lhe pelo pescoço. Sentiu os músculos retesarem-se e a mão procurou instintivamente a faca pendurada à cintura. A outra mão apertou o cabo do chicote curto.

Semicerrou os olhos ao aperceber-se de movimento à esquerda. Um macaco-esquilo atravessou o trilho com a longa cauda a balançar. Por norma barulhento, o macaco não fez um único som. Será que pressentira a presença do jaguar?

Manny perscrutou o chão manchado da floresta. Lianas e arbustos frondosos obstruíam ambos os lados do trilho. De onde surgiria o animal?

Um sorriso nervoso estreitou-lhe os lábios.

Aparece, maldito...

Um vulto à esquerda.

Manny virou-se nessa direção e agachou-se. Tentou ver para lá da densa folhagem. Nada.

Sei que estás aí.

Mais à frente, mesmo no meio do trilho, uma figura avançou na sua direção, uma miragem de pelagem preta e cor de laranja. Estivera sempre ali, a não mais de três metros, deitado rente ao chão com as patas dobradas sob o corpo. O felino era um jovem macho, com cerca de dois anos, um dos maiores que Manny alguma vez encontrara na floresta tropical. Bem alimentado, devia pesar perto de noventa quilos.

Apercebendo-se de que fora descoberto, abanou a cauda com movimentos vigorosos, sacudindo a folhagem. Como todos os grandes felinos, estava a desafiar a presa a fugir, o que apenas lhe incendiaria o apetite por sangue fresco.

Manny manteve-se agachado, preparado para o ataque.

— Vá, estou à tua espera! — gritou-lhe.

Com um ronco profundo, o jaguar saltou para a frente com a bocarra arreganhada.

Manny sentiu o ar escapar-se dos pulmões quando o animal o abalroou, e os dois rolaram pelo trilho abaixo. O mundo dissolveu-se numa mancha confusa de tons de verde, raios de luz, pelo e dentes.

Garras perfuram-lhe a roupa quando o animal o agarrou com as poderosas patas dianteiras. Um par de presas cravou-se-lhe no ombro. Apesar de o jaguar possuir a segunda mandíbula mais forte de todos os animais terrestres, os dentes não fizeram mais do que segurá-lo.

Acabaram por parar alguns metros à frente, numa secção nivelada do trilho. Manny encontrou-se em cima do jaguar, deitado sobre a barriga da grande besta. Rolou com ele e olhou diretamente para os olhos ferozes do adversário, que rosnava e lhe estraçalhava a camisa.

— Já acabaste, Tor-tor? — perguntou, quase sem fôlego. Batizara o felino com a palavra dos índios aruaques para fantasma. Naquele momento, com o peso bruto do animal a esmagar-lhe o peito, o nome parecia-lhe algo desajustado.

Ao ouvir a voz do dono, o jaguar parou de morder a camisa e ficou especado a olhar para ele. Depois, estendeu a língua quente e lambeu-lhe a testa suada.

— Sim, também gosto muito de ti. Agora, faz-me o favor de tirar esse rabo felpudo de cima de mim.

Manny deu um estalido com a língua, vocalizando um comando, e o jaguar obedeceu de imediato. As garras retraíram-se e Manny sentou-se. Olhou para o estado da camisa e das calças e suspirou. Ensinar o jovem jaguar a caçar começava a pesar no guarda-roupa.

Pondo-se de pé, soltou um gemido e endireitou as costas. Já com trinta e dois anos, começava a ficar velho para aquelas coisas.

O jaguar estendeu as patas e espreguiçou-se, como que a imitar o dono. Depois, com um abanar de cauda, começou a cheirar o ar.

Manny riu-se e fez-lhe uma festa no cachaço.

— Acabou-se a caça por hoje. Está a ficar tarde e tenho muito que fazer no escritório.

Tor-tor soltou um rugido de protesto, mas seguiu atrás dele.

Dois anos antes, Manny salvara o jovem animal quando este era ainda uma cria. A mãe tinha sido morta por caçadores furtivos por causa da pelagem, um tesouro que continuava a render bom dinheiro no mercado negro. Diziam as estimativas que a população de jaguares se encontrava reduzida a quinze mil espécimes espalhados pelas vastas selvas da bacia do Amazonas. Os esforços de conservação de pouco serviam para dissuadir os camponeses que viam na caça furtiva um meio de escapar à miséria. Um estômago vazio não se coadunava com preocupações de natureza ecológica.

Manny conhecia bem essa realidade. De ascendência índia, crescera sozinho nas ruas de Barcelos nas margens do rio Amazonas. Nesses tempos, sobrevivia do que conseguia arranjar, pedindo esmola aos turistas e roubando quando não havia outra solução. Acabou por se cruzar no caminho de um missionário salesiano, o que lhe permitiu licenciar-se mais tarde em Biologia pela Universidade de São Paulo com uma bolsa da FUNAI, a Fundação Nacional do Índio. Como forma de retribuição, começou a trabalhar com as tribos indígenas locais, protegendo os seus interesses, o modo de vida e ajudando-os a reclamar legalmente as suas terras. Graças a isso, aos trinta anos encontrou-se a viver em São Gabriel, como responsável pelo escritório local da FUNAI.

Foi no decurso de uma investigação sobre caçadores furtivos no território dos Ianomâmis que Manny encontrou Tor-tor, órfão como ele. A pata traseira direita encontrava-se fraturada no sítio onde um caçador o pontapeara. Manny não podia abandonar a pequena criatura, por isso envolvera a cria chorosa num cobertor e cuidara dela desde então.

Manny observou Tor-tor, que caminhava à sua frente. Ainda exibia um ligeiro coxear da antiga fratura. Em menos de um ano, o animal atingiria a maturidade sexual. Os instintos predatórios tornar-se-iam mais fortes, e seria altura de o devolver à natureza. Antes que isso acontecesse, Manny queria certificar-se de que o jaguar se encontrava à altura do desafio. A selva não era um lugar para iniciantes.

Mais à frente, o trilho curvou por entre a última secção das encostas verdejantes do monte do Caminho Sagrado. A cidade de São Gabriel revelou-se diante de si, uma mistura de cabanas e estruturas de cimento ao longo das margens do rio Negro. Alguns edifícios e hotéis novos pontilhavam a paisagem. Haviam sido construídos na década anterior para acomodar o fluxo crescente de turistas que acorriam à região. Outro sinal desse fenómeno era o novo aeroporto, cuja pista de alcatrão se impunha como uma cicatriz negra na selva. Ao que parecia, nem os sítios mais remotos estavam imunes ao progresso.

Manny enxugou a testa encharcada de suor, e depois tropeçou em Tor-tor, quando este se deteve subitamente. O jaguar soltou um rugido profundo.

Um aviso.

— O que se passa? — perguntou. E também ele ouviu.

Ecoando pelo manto verde da selva, um troar repetitivo aumentou de volume. Parecia que chegava de todas as direções. Manny estreitou os olhos. Reconhecia o som, embora raramente o ouvisse naquelas paragens. Tratava-se de um helicóptero. A maior parte das pessoas que viajava para São Gabriel chegava de barco ou em pequenos aviões a hélice. A base local do exército brasileiro, inclusive, possuía um único helicóptero, por norma usado para missões de resgate e evacuações.

O som continuou a aumentar, e Manny percebeu que não se tratava de um helicóptero apenas. Perscrutou o céu, mas não havia nada para ver.

Então, Tor-tor estremeceu de repente e fugiu para o meio da vegetação.

Um grupo de três helicópteros surgiu logo acima deles, passando pela encosta do monte e descrevendo uma curva em direção à cidade, como um enxame de vespas. Vespas camufladas.

Os robustos aparelhos — UH-1 Hueys — eram sem dúvida militares.

Esticando o pescoço, Manny viu passar um quarto helicóptero, mas, ao contrário do trio anterior, este era preto e bastante mais aerodinâmico. Como que sussurrava por cima da selva. Um RAH-66 Comanche, um helicóptero de ataque e reconhecimento.

Passou suficientemente perto para Manny distinguir a pequena bandeira americana na lateral. As copas das árvores estremeceram com a força do sopro dos rotores. Macacos fugiram aos gritos, histéricos, e um bando de araras-vermelhas levantou voo como uma coluna de fogo erguendo-se contra o azul do céu.

Tal como os aparelhos anteriores, também este desapareceu tão depressa como surgira, voando na direção dos campos abertos em redor da base militar brasileira, para se juntar aos outros.

Franzindo a testa, Manny assobiou para chamar Tor-tor. O jaguar emergiu do esconderijo, os olhos muito abertos.

— Está tudo bem — disse para o felino.

O ruído dos rotores desvaneceu-se à medida que os helicópteros pousavam nos campos.

Manny aproximou-se do animal, que tremia, e pousou-lhe a mão no dorso. Parte do nervosismo de Tor-tor passou para si próprio.

Que raio se passa aqui?

Continuou a descer o trilho, sempre com a mão apoiada na pega do chicote pendurado à cintura.

O que faz o exército americano em São Gabriel?

De boxers, Nathan aguardou de pé no meio da praça central da aldeia. À sua volta erguia-se o shabano dos ianomâmis, ou grande casa circular, uma estrutura redonda do tamanho de meio campo de futebol com o centro do telhado aberto, de modo a ver-se o céu. Os nativos mais velhos ocupavam camas suspensas do teto feito com folhas de bananeira, enquanto os mais jovens, os huyas, empunhando lanças e arcos, garantiam que Nathan não tentava fugir.

Momentos antes, ao ser conduzido para o acampamento sob a ameaça de lanças, tentara explicar como tudo se tinha passado e mostrara até as marcas que a anaconda lhe deixara no braço, mas nenhum dos nativos acreditara na história. O próprio chefe da aldeia, que lhe retirara a menina dos braços, fizera mesmo um gesto de desagrado ao ouvir as suas palavras, como se as considerasse ofensivas.

Nathan sabia que ninguém lhe daria ouvidos até ao final do julgamento. Era o modo dos Ianomâmis. Exigira o combate como forma de ganhar tempo, e agora ninguém o ouviria até a batalha terminar. O que só aconteceria se os deuses lhe concedessem a vitória.

De pé e descalço, aguardava no centro da praça de terra que um punhado de huyas decidisse qual deles aceitaria o desafio e que armas seriam usadas. Por norma, um duelo tradicional era travado com nabrushis, varas de madeira com cerca de dois metros e meio que os combatentes usavam para praticar. No entanto, em duelos mais sérios eram usadas armas letais, como machetes ou lanças.

No outro lado da praça, o grupo dividiu-se e um índio avançou. Mais alto que os demais, quase do tamanho de Nathan e bastante musculado, tratava-se do pai de Tama, Takaho, o irmão do chefe. Usava apenas um fio entrelaçado à volta da cintura, sob o qual trazia entalado o prepúcio do pénis, tal como era típico nos homens ianomâmis. O peito encontrava-se desenhado com linhas de cinza e, por baixo da badana de cauda de macaco que trazia na cabeça, o rosto estava pintado de vermelho-vivo. O lábio inferior acomodava um enorme pedaço de tabaco, o que lhe dava um ar ameaçador.

Takaho estendeu a mão e um dos huyas correu a entregar-lhe um machado. O cabo era feito de madeira e terminava numa cabeça de metal pontiaguda. Com um aspeto especialmente perverso, era uma das armas mais brutais para ser usada em duelo.

Nate recebeu um machado semelhante.

No outro lado da praça, outro huya avançou com um pote de barro cheio de um líquido viscoso, onde Takaho mergulhou a lâmina.

Nate reconheceu a substância. Tinha visto o xamã da tribo preparar aquela porção de woorari — ou curare —, um veneno paralisante feito a partir de uma planta trepadeira. Os Ianomâmis usavam aquele veneno para caçar macacos, mas naquele momento destinava-se a um propósito mais sinistro.

Nathan olhou em redor. Ninguém lhe ofereceu um pote semelhante para também untar a sua lâmina. Ao que parecia, o duelo não decorreria debaixo das mesmas regras para ambas as partes.

O chefe ergueu o seu arco no ar e deu ordem para a batalha começar.

Takaho avançou de imediato pela praça, a brandir o machado com evidente destreza.

Nathan ergueu também o seu. Mas que hipóteses tinha? Bastava-lhe sofrer um arranhão para morrer. E, mesmo que derrotasse Takaho, o que ganhava com isso? A ideia era salvar a vida de Tama, e, para o conseguir, precisava agora de lhe matar o pai.

Preparando-se para o impacto, ergueu o machado à altura do peito. Fitou os olhos raivosos do oponente e gritou-lhe:

— Eu não fiz mal à tua filha!

Takaho cerrou os maxilares. Ouvira as palavras de Nate, mas não acreditava nelas. Lançou um olhar para onde Tama se encontrava a ser tratada pelo xamã da aldeia. O ancião esguio estava debruçado sobre a criança, a entoar um cântico enquanto queimava um punhado de ervas secas. Nathan conseguia sentir o odor acre do incenso, uma forma de sais aromáticos derivados da folha de cânhamo. A menina, porém, não se mexia.

Takaho fitou Nate. Soltou um grito rouco e atacou, brandindo o machado na direção da sua cabeça.

Tendo praticado luta livre quando jovem, Nate sabia antecipar um ataque. Baixou-se e rolou para o lado, atingindo em simultâneo a perna de Takaho com o seu machado.

O índio caiu com estrondo no chão, batendo com o ombro na terra batida e perdendo a badana, mas não sofreu ferimentos. Nate atingira-o com a parte de trás da lâmina, recusando-se a desferir um golpe que o pudesse mutilar.

Com o oponente no chão, Nate saltou para cima dele e tentou prender-lhe os braços. Se ao menos conseguisse segurá-lo...

Reagindo com os reflexos de um gato, Takaho rolou para o lado e desferiu outro golpe.

Nate esquivou-se ao alcance mortal da arma. A lâmina envenenada passou-lhe a milímetros do nariz e embateu na terra entre as mãos. Aliviado por ter escapado, Nathan não foi suficientemente rápido para evitar um pontapé direto à cabeça. Rebolou pelo chão, atordoado, com os ouvidos a zunir. O machado fugiu-lhe da mão e foi parar aos pés dos nativos que assistiam ao espetáculo.

Cuspindo sangue e saliva, levantou-se rapidamente.

Takaho encontrava-se já de pé, e quando se curvou para soltar o machado cravado na terra, Nathan reparou no xamã à distância. O ancião estava agachado junto a Tama, a soprar-lhe fumo para a boca, uma forma de afastar os espíritos malignos antes da morte.

Ao redor, os outros huya clamavam por sangue.

Takaho ergueu o machado com um grunhido e virou-se para Nate. O rosto do índio era uma máscara de raiva vermelha. Ato contínuo, avançou a brandir a lâmina.

Desarmado, Nate recuou.

É assim que vou morrer...

Sem escapatória, foi imediatamente encurralado pelas lanças dos outros índios. Takaho ergueu o machado bem acima da cabeça, preparando-se para desferir o golpe final.

Ao recuar, Nathan sentiu então a ponta das lanças nas costas.

Takaho fez descer a lâmina.

— Yulo! — O grito sobrepôs-se ao cântico dos huyas. — Para!

Nathan encolheu-se diante do golpe que nunca chegou a acontecer. Olhou para cima. A lâmina do machado de Takaho vacilava a um centímetro do seu rosto. Uma gota de veneno caiu-lhe sobre a maçã do rosto.

O xamã, que acabara de gritar, avançou pela praça.

— A tua filha está acordada! — Apontou para Nate. — Falou de uma cobra gigante e do homem branco que a salvou!

Todos os rostos se viraram na direção de Tama, que bebia água de uma cabaça empunhada por uma mulher.

Nathan olhou para Takaho quando o índio se voltou de novo. A raiva dera lugar a uma expressão de alívio. Takaho desviou o machado e deixou-o cair no chão. Uma mão vazia pousou no ombro de Nate.

— Jako — disse o índio, puxando Nathan para si e dando-lhe um forte abraço. — Irmão.

E com esse gesto, tão depressa como tinha começado, o pesadelo terminou. Enquanto estrangeiro, as palavras de Nathan nunca seriam ouvidas até serem reconhecidas como válidas em combate, mas Tama encontrava-se acima de qualquer suspeita. A tribo não tinha razões para não acreditar nela.

O chefe avançou, de peito cheio.

— Enfrentaste a grande susuri, a anaconda, e arrancaste a filha da nossa tribo do seu ventre.

O chefe retirou uma pena da orelha e enfiou-a nos cabelos de Nate. Era a pena da cauda de um gavião, um tesouro de grande valor simbólico.

— Já não és um nabe, um estrangeiro. És um jako, irmão do meu irmão. Um dos nossos.

Ouviram-se gritos de aprovação por toda a praça.

Nathan sabia que aquilo era uma honra acima de todas as honras que lhe podiam ser concedidas. Ao mesmo tempo, porém, a sua preocupação persistia.

— A minha irmã — disse, apontando na direção de Tama. Sabia que os Ianomâmis não se tratavam pelo nome; em vez disso, usavam parentescos, mesmo que não fossem exatos ou verdadeiros. Deitada na cama, Tama continuava a gemer. — A minha irmã continua doente. Sofreu ferimentos que os médicos em São Gabriel podem ajudar a curar. Peço que me concedam autorização para levá-la ao hospital.

O xamã da aldeia avançou. Nathan receou que ele decidisse argumentar que seria capaz de salvar a menina. Os xamãs eram figuras orgulhosas. Em vez de levantar objeções, o ancião limitou-se a pousar-lhe a mão no ombro.

— A nossa pequena irmã foi salva da susuri pelo nosso novo jako. Devemos atender à vontade dos deuses que o escolheram como salvador dela. Não há nada que eu possa fazer.

Nathan limpou a gota de veneno da cara e agradeceu ao ancião. O xamã fizera o suficiente. A sua medicina natural reanimara e mantivera a menina viva até então. Virou-se para Takaho.

— Quero pedir-te a canoa para a viagem.

— Tudo o que tenho é teu — respondeu Takaho. — Irei contigo a São Gabriel.

Nathan anuiu.

— É melhor apressarmo-nos.

Em menos de nada, Tama foi colocada numa maca de bambu e palma e levada para a canoa. Takaho, que vestia agora uma t-shirt sem mangas e uns calções Nike, convidou Nathan a sentar-se na proa da embarcação. A seguir, usou o remo para se afastar da margem e navegar ao encontro da corrente principal do rio, que os levaria até São Gabriel.

Fizeram a viagem de dezasseis quilómetros em silêncio. Nathan ia verificando o estado da criança, reconhecendo a preocupação nos olhos do pai. A menina deslizara de novo para um torpor, tremendo e gemendo de vez em quando. Nathan pegou num cobertor e cobriu-lhe o corpo franzino.

Com destreza, Takaho manejou a pequena canoa através de secções de rápidos e evitando ramos de árvores caídas e outros obstáculos. Parecia possuir um instinto natural para descobrir as melhores correntes.

À medida que desciam o rio, passaram por uns quantos nativos de uma aldeia vizinha que pescavam com lanças. Nate observou uma mulher numa canoa que lançava um pó negro para as águas. Sabia o que ela estava a fazer. Aquilo era pó de timbó, uma planta. Ao dissolver-se na corrente, atordoava os peixes, trazendo-os à superfície para os homens os espetarem com as lanças. Tratava-se de um método de pesca ancestral, ainda usado por todo o Amazonas.

Mas quanto tempo podiam aquelas tradições persistir? Uma geração? Duas? Depois seriam esquecidas para sempre.

Nathan recostou-se no seu lugar. Algumas batalhas nunca venceria. Para o bem ou para o mal, a civilização continuaria a sua marcha inexorável pela selva.

Fitou as paredes de folhagem densa que se estendiam ao longo das margens. Em toda a parte, a vida manifestava-se através de zumbidos, chilreios, guinchos, uivos e grunhidos.

Em ambos os lados, grupos de macacos bugios-vermelhos gritavam em coro e saltavam agressivamente no cimo de ramos. Ao longo dos baixios, garças de penas brancas apanhavam peixes com os longos bicos cor de laranja, enquanto os focinhos meio submersos dos jacarés assinalavam os territórios de nidificação. Muito mais perto, nuvens de mosquitos acompanhavam o avanço da canoa, competindo por cada centímetro de pele exposta.

Naquela parcela do mundo, a selva reinava suprema em todas as suas formas. Parecia infinita, impenetrável, recheada de mistério. Constituía uma das regiões do planeta ainda por explorar na totalidade. Nos dias que corriam, uma população inferior em número à da cidade de Nova Iorque ocupava uma floresta quase do tamanho do território dos Estados Unidos. Existiam ali longas extensões de terra que nunca haviam sido pisadas pelo homem. Esse mistério, esse fascínio atraíra os pais de Nathan até à selva, contagiando assim o único filho com o amor pela grande floresta.

Nathan continuou a admirar a paisagem. Os sinais de que se aproximavam de São Gabriel surgiram por fim. Pequenos aglomerados de casinhas começaram a pontilhar as margens, onde algumas crianças acenavam à distância ao verem passar a canoa. Os próprios sons da selva tinham-se silenciado para dar lugar aos ruídos da vida moderna: o ronco dos tratores a trabalhar nos campos, o gemido dos barcos a motor que aceleravam rio acima e rio abaixo, até a música de um rádio a tocar algures.

Então, após uma curva, a selva terminou finalmente. A pequena cidade de São Gabriel surgiu em toda a extensão, como uma espécie de cancro que corroera as entranhas da floresta. Junto ao rio, São Gabriel mostrava-se um amontoado confuso de cabanas apodrecidas e edifícios de betão governamentais. Mais longe da água, casas grandes e pequenas estendiam-se pelas colinas circundantes. Mais perto, os cais e pontões encontravam-se apinhados de barcos de turistas e barcaças decrépitas.

Nathan virou-se para orientar Takaho em direção a uma secção da margem onde podiam desembarcar. Deparou-se com o índio a olhar horrorizado para a cidade, as mãos a apertarem o remo contra o peito.

— É do tamanho do mundo — murmurou.

Nathan desviou de novo o olhar para o amontoado de casas. Tinham passado duas semanas desde a última vez que ali estivera para comprar mantimentos, e o barulho e a agitação eram um autêntico choque para os sentidos. Imaginou como seria aquilo para alguém que nunca deixara a selva.

Fez sinal com a cabeça na direção do local onde podiam desembarcar.

— Não há aqui nada que um grande guerreiro deva temer — disse. — Vamos, temos de levar a tua filha para o hospital.

Takaho anuiu. O rosto assumiu a expressão estoica de sempre, mas os olhos mantiveram-se atentos à estranheza daquele mundo. Dirigiu a canoa na direção indicada, e depois ajudou Nathan a retirar a maca com o corpo letárgico de Tama.

Ao ser movida, a menina gemeu e pestanejou, mostrando o branco dos olhos. Estava bastante mais pálida do que no início da viagem.

— Não podemos perder tempo.

Carregaram a maca pela zona ribeirinha, atraindo olhares curiosos dos habitantes locais e os flashes das máquinas fotográficas dos turistas. Takaho vestia roupas «normais», mas a badana na cabeça, as penas nas orelhas e o cabelo cortado à tigela marcavam-no como um indígena das tribos da Amazónia.

Felizmente, o pequeno hospital com um único piso ficava perto do rio. A única coisa que o distinguia dos outros edifícios era a cruz vermelha pintada sobre a porta principal, mas Nathan já ali estivera antes, para falar com um dos médicos, um sujeito natural de Manaus. Depressa se encontraram fora das ruas e a conduzir a maca pelo interior do hospital, que tresandava a lixívia e amoníaco, mas pelo menos tinha ar condicionado. O ar frio atingiu o rosto quente de Nate como uma toalha molhada.

Dirigiu-se à sala de enfermagem e explicou rapidamente o que se passava. Uma enfermeira franziu o sobrolho, sem entender uma palavra, e só então Nathan percebeu que estava a falar no dialeto dos Ianomâmis.

— Esta menina foi atacada por uma anaconda — disse, desta vez em português. — Tem algumas costelas partidas, mas penso que os ferimentos internos devem ser mais graves.

— Sigam-me — respondeu ela, e conduziu-os através de uma série de portas duplas, lançando de vez em quando um olhar desconfiado à figura de Takaho.

— É o pai da criança — explicou Nate.

A enfermeira acenou com a cabeça.

— O doutor foi fazer uma consulta ao domicílio, mas posso ligar-lhe e dizer-lhe que se trata de uma emergência.

— Sim, ligue-lhe.

— Talvez eu possa ajudar — disse uma voz nas costas de Nate.

Nathan virou-se.

Uma mulher alta e esguia, com cabelo arruivado, levantou-se das cadeiras de madeira desdobráveis que equipavam a sala de espera. Encontrava-se parcialmente escondida por uma pilha de caixotes identificados com o símbolo da Cruz Vermelha. Aproximou-se com um andar tranquilo e confiante, avaliando-os. Debaixo daquele olhar tão atento, Nathan sentiu uma súbita vontade de entalar a camisa nas calças.

Em vez disso, apenas endireitou as costas.

— Chamo-me Kelly O’Brien — disse ela. Falava um português fluente, mas Nate detetou um nadinha do sotaque de Boston. Sacou de uma credencial com o familiar caduceu médico. — Sou uma médica americana.

Vestida com uma camisa florida e calças de ganga, a mulher não dava ares de médica, mas, naquelas circunstâncias, Nathan não ia perder tempo com perguntas desnecessárias.

— Doutora O’Brien — disse, falando então inglês —, agradeço muito a sua ajuda. Esta criança foi...

Na maca, Tama arqueou subitamente as costas. Os calcanhares começaram a bater contra as folhas de palma entrelaçadas. Em menos de nada, todo o corpo se sacudia na maca.

— Uma convulsão! — disse a médica. — Levem-na para dentro!

A enfermeira rechonchuda abriu as portas para a maca passar e indicou o caminho. Kelly O’Brien acompanhou em passo rápido, enquanto Nate e Takaho levavam a menina para uma das quatro camas disponíveis na modesta enfermaria das urgências. Pegando num par de luvas cirúrgicas, a médica berrou para a enfermeira:

— Dez miligramas de Diazepam!

A enfermeira acenou com a cabeça e correu para o armário dos medicamentos. Em segundos, uma seringa cheia de um líquido cor de âmbar foi depositada na mão de Kelly. A médica tinha já colocado um torniquete no braço de Tama.

— Segurem-na — ordenou a Nate e Takaho.

Outra enfermeira e uma auxiliar juntaram-se ao grupo, despertado que estava o pequeno hospital para a emergência em curso.

— Preparem um cateter e um saco de soro — disse Kelly. Procurou com os dedos uma veia no braço franzino da menina e, com inegável destreza, inseriu a agulha da seringa e injetou a droga. — É Valium — explicou. — Vai parar as convulsões até descobrirmos o que se passa com ela.

As palavras revelaram-se acertadas. As convulsões diminuíram de intensidade. Os braços e as pernas deixaram de sacudir-se e relaxaram sobre os lençóis. Apenas as pálpebras e o canto dos lábios tremiam ainda. Kelly examinou-lhe as pupilas com uma lanterna.

A auxiliar afastou Nate para preparar o cateter no outro braço. Nate olhou por cima do ombro dela e viu o pânico nos olhos de Takaho.

— O que lhe aconteceu? — perguntou a médica, prosseguindo o exame a Tama.

Nathan descreveu o ataque.

— Ela tem estado a alternar entre períodos de consciência e inconsciência. O xamã da aldeia foi capaz de a reanimar por pouco tempo.

— Além das costelas partidas, os ferimentos parecem superficiais. Não encontro uma explicação para as convulsões e as perdas de consciência. Ela teve convulsões a caminho do hospital?

— Não.

— Existe algum historial de epilepsia na família?

Nate virou-se para Takaho e repetiu a pergunta no dialeto dos Ianomâmis.

O índio assentiu com a cabeça.

— Ah-de-me-nah gunti.

Nate franziu o sobrolho.

— O que foi que ele disse? — perguntou Kelly.

— Ah-de-me-nah significa enguia-elétrica. Gunti é doença.

— Doença da enguia-elétrica?

Nate encolheu os ombros.

— Foi o que ele disse. Mas não faz sentido. A vítima do ataque de uma enguia-elétrica pode ter convulsões, mas é uma reação instantânea. A Tama encontra-se fora de água há horas. Não sei... talvez «doença da enguia-elétrica» seja o mesmo que epilepsia no dialeto deles.

— E ela tem sido tratada? Toma alguma medicação?

Nate obteve a resposta de Takaho.

— Ele diz que o xamã da aldeia tem tratado dela uma vez por semana com fumo de cânhamo.

Kelly suspirou, nitidamente exasperada.

— Por outras palavras, ninguém tem feito nada por ela. Não admira que o stresse provocado pelo ataque tenha desencadeado uma crise tão aguda. Faça-me o favor de levar o pai para a sala de espera, sim? Tentarei parar as convulsões com uma medicação mais forte.

Nate olhou de relance para a cama. Tama parecia tranquila.

— Acha que vai ter outro ataque?

Kelly fitou-o.

— Ainda está a ter um — respondeu. Apontou para os pequenos espasmos faciais. — Ela encontra-se em estado epilético; um ataque continuado, se quiser. Um paciente que sofra uma crise tão prolongada dará a ideia de que se encontra num estado de dormência, gemendo e apresentando falta de coordenação. As convulsões mais fortes a que assistimos há pouco serão intercaladas. Se não fizermos nada, a menina vai morrer.

Nate fitou Tama.

— Quer dizer que ela tem estado com convulsões este tempo todo?

— Pelo que descreveu, diria que sim.

— Mas o xamã da aldeia conseguiu reanimá-la.

— Duvido muito. — Kelly olhou para a menina. — Ele nunca teria medicação suficientemente forte para quebrar o ciclo.

Nate recordou o instante em que viu Tama beber água de uma cabaça.

— Mas a verdade é que conseguiu. Não cometa o erro de pensar que os xamãs tribais são meros feiticeiros. Há anos que lido com eles. Considerando os meios à disposição, posso garantir-lhe que são bastante sofisticados.

— Bom, sábios ou não, nós temos o que ela precisa. Medicina verdadeira. — Kelly fez sinal com a cabeça na direção de Takaho. — Porque não leva o pai para a sala de espera? — Dito isto, virou costas a Nate, ignorando-o.

Nate não gostou da atitude da médica, mas fez-lhe a vontade. Durante séculos, a medicina ocidental habituara-se a escarnecer do real valor dos praticantes de xamanismo. Nate conduziu Takaho para fora da enfermaria até à sala de espera. Sentou-o numa cadeira e disse-lhe para esperar. Depois saiu para a rua.

O calor da Amazónia atingiu-o mal cruzou a porta do hospital. Quer a médica americana acreditasse nele ou não, sabia o que tinha visto quando o xamã reanimara Tama. Além do mais, conhecia alguém que podia ter uma ideia do que se passava com a menina.

Estugando o passo debaixo do intenso calor da tarde, seguiu para os arredores da parte sul da cidade. Dez quarteirões depois, passou pela base de exército brasileiro. Por norma tranquila, a base fervilhava de atividade. Nate não pôde deixar de reparar nos quatro helicópteros americanos pousados. Um punhado de habitantes locais encontrava-se junto à vedação a conversar animadamente e a admirar os aparelhos, uma novidade naquelas paragens.

Ignorou aquela cena invulgar e continuou em direção do edifício de cimento que se erguia no meio de uma fila de cabanas decrépitas. A palavra FUNAI decorava a fachada do edifício. Tratava-se do escritório local da Fundação Nacional do Índio, a única fonte de ajuda, educação e representação legal para as tribos locais, os Baniwa e os Ianomâmis. Além do escritório, o pequeno edifício funcionava também como abrigo para os índios que haviam deixado a floresta em busca da prosperidade do homem branco.

A FUNAI dispunha ainda de um conselheiro médico, um amigo de longa data da família de Nate e mentor do seu pai nas selvas da Amazónia.

Nate entrou no edifício e atravessou o átrio em direção às escadas. Rezou para que o amigo se encontrasse no gabinete. Ao aproximar-se da porta aberta, ouviu os acordes do Concerto para violino n.º 5 de Mozart.

Graças a Deus!

Bateu na ombreira e chamou.

— Professor Kouwe?

Atrás da secretária, um pequeno índio ergueu os olhos por cima de uma pilha de papéis. Tinha cinquenta e poucos anos, cabelo grisalho pela altura dos ombros e uns óculos de leitura na ponta do nariz. Kouwe tirou os óculos e sorriu ao reconhecer o homem à porta do gabinete.

— Nathan! — disse o médico, contornando a secretária e dando-lhe um abraço que lhe lembrou a anaconda no rio. Para um homem daquele tamanho, Kouwe era forte como um touro. Em tempos, um xamã da tribo dos Tiriós, do sul da Venezuela, Kouwe conhecera o pai de Nate três décadas antes. O índio deixara a floresta e, com a ajuda do pai de Nate, ingressara na Universidade de Oxford, onde se licenciara em Linguística e Paleoantropologia. Kouwe era também um eminente especialista da flora local.

— Meu rapaz, nem acredito que estás aqui! O Manny contactou-te?

Nathan franziu o sobrolho quando ele o largou.

— Não, porquê?

— Está à tua procura. Passou por aqui há uma hora, para ver se sabia do teu paradeiro.

— Sim, mas para quê?

— Não me disse, mas vinha acompanhado de um executivo da Tellux.

Nathan revirou os olhos.

A Tellux Pharmaceutical era uma multinacional que financiava o seu trabalho.

Kouwe apercebeu-se da expressão azeda do amigo.

— Tu é que decidiste fazer um pacto com o diabo.

— Até parece que tinha escolha depois da morte do meu pai.

Kouwe franziu a testa.

— Não devias ter desistido de acreditar em ti tão depressa, sempre foste...

— Ouça — disse Nathan, cortando-lhe a palavra. Não queria ser recordado daquele período negro da sua vida. A verdade é que tinha feito a própria cama onde agora se deitava. — Tenho problemas maiores do que a Tellux. — Explicou rapidamente o que se passava com a criança indígena. — Estou preocupado com o tratamento que lhe estão a ministrar. Talvez pudesse dar uma palavrinha à médica.

Kouwe pegou numa caixa de pesca que tinha numa prateleira.

— Nunca mais aprendem! — disse, e saiu porta fora.

Nathan seguiu-o pelas escadas até à rua. Tinha de correr para acompanhar a passada enérgica do velho professor. Em menos de três minutos, os dois cruzavam já as portas do hospital.

Takaho levantou-se ao ver Nathan.

— Jako...

Nate fez-lhe sinal para se sentar.

— Trouxe alguém que pode ajudar a tua filha.

Kouwe não esperou e seguiu direito à enfermaria das urgências. Nathan foi atrás dele.

O que encontrou lá dentro foi nada menos do que um absoluto caos. A médica americana estava debruçada sobre Tama, com o rosto encharcado em suor, enquanto a menina se sacudia violentamente na cama. As enfermeiras pareciam baratas tontas às ordens da médica.

Kelly ergueu o olhar por cima do corpo convulsivo da menina.

— Estamos a perdê-la! — disse, nitidamente aflita.

— Talvez eu possa ajudar — disse Kouwe. — Que medicamentos lhe deram?

Kelly enumerou uma lista rápida de drogas enquanto afastava madeixas de cabelo da testa húmida.

Acenando com a cabeça, Kouwe abriu a caixa de pesca e tirou uma pequena bolsa de um dos muitos compartimentos individuais.

— Preciso de uma palhinha — disse.

Uma das enfermeiras obedeceu-lhe tão depressa como obedecera à doutora O’Brien. Nathan calculou que não fosse a primeira visita do professor Kouwe ao hospital. Não havia ninguém mais conhecedor das doenças indígenas e respetivas curas.

— O que está a fazer? — perguntou Kelly, com o rosto afogueado. Os longos cabelos arruivados encontravam-se agora presos num rabo de cavalo.

— A doutora tem estado a trabalhar com base num diagnóstico errado — explicou Kouwe, com toda a calma do mundo, enquanto enchia a palhinha com um pó misterioso. — A natureza convulsiva da doença da enguia-elétrica não é uma manifestação de um distúrbio do sistema nervoso central, como a epilepsia. Deve-se a um desequilíbrio químico no líquido cefalorraquidiano. A doença é exclusiva de um punhado de tribos ianomâmis.

— Uma condição metabólica hereditária?

— Exato, como o favismo entre certas famílias do Mediterrâneo ou a paniculite nas tribos quilombolas da Venezuela.

Kouwe aproximou-se da menina e fez sinal a Nathan.

— Segura-a.

Nathan segurou a cabeça de Tama.

Kouwe enfiou a ponta da palhinha numa narina da menina e soprou o pó lá para dentro.

Nas costas do professor, a doutora O’Brien perguntou:

— O senhor é o responsável clínico do hospital?

— Não, minha querida — disse Kouwe, endireitando-se. — Sou o feiticeiro local.

Kelly lançou-lhe um olhar incrédulo e horrorizado, mas, antes que pudesse manifestar o seu desagrado, as convulsões de Tama diminuíram.

Kouwe examinou as pálpebras da menina. A pele macilenta começava a ganhar cor.

— Descobri que certas drogas são mais bem absorvidas pelas mucosas do nariz do que por via endovenosa.

Kelly não conseguia acreditar no que via.

— Está a resultar.

Kouwe passou a pequena bolsa a uma das enfermeiras.

— O doutor Rodriguez vem a caminho?

A enfermeira consultou o relógio.

— Eu liguei-lhe, professor. Não deve demorar mais que dez minutos.

— Certifiquem-se de que a criança recebe meia palhinha de pó a cada três horas durante as próximas vinte e quatro. Depois disso, uma vez por dia. Deverá estabilizá-la o suficiente para tratar o resto dos problemas.

— Sim, professor.

Na cama, Tama abriu lentamente os olhos. Observou os estranhos em redor, nitidamente confusa e assustada, mas depois apercebeu-se da presença de Nate.

— Jako Basho — murmurou.

Nate acariciou-lhe a mão.

— Sim, o teu irmão macaco está aqui. E o teu pai também. Vai correr tudo bem.

Uma das enfermeiras foi buscar Takaho. O homem caiu de joelhos quando encontrou a filha acordada e a falar. A expressão estoica abandonou-lhe o rosto e ele começou a chorar de alívio.

— Ela vai ficar bem — assegurou-lhe Nate.

Kouwe pegou na caixa de pesca e abandonou a enfermaria. Nathan e Kelly seguiram-no.

— Que pó era aquele? — perguntou a médica americana.

— Ku-nah-ne-mah seco.

Nate encarregou-se de traduzir.

— Cânhamo. A mesma planta que o xamã da aldeia queimou para reanimar a menina na aldeia. Tal como lhe disse antes.

— Acho que lhe devo uma desculpa — disse Kelly, um pouco envergonhada. — Nunca pensei... quero dizer, nunca poderia imaginar que...

Kouwe salvou-a do embaraço com uma palmadinha nas costas.

— Etnocentrismo ocidental... há muito disso por aqui. Não vale a pena martirizar-se. — Piscou-lhe o olho. — Estamos sempre a aprender.

Nate, por seu turno, não se sentia tão compreensivo.

— Da próxima vez tenha mais abertura de espírito!

Kelly mordeu o lábio e virou costas.

Nathan arrependeu-se de imediato. As emoções das últimas horas tinham-lhe esgotado a paciência que lhe sobrara. A médica só tentara fazer o melhor que sabia. Não devia ter sido tão ríspido. Abriu a boca para pedir desculpa.

Porém, antes que pudesse dizer uma palavra, a porta da rua abriu-se e um homem alto e ruivo, vestido de caqui e com um velho boné dos Red Sox, entrou no hospital. O homem avistou a médica.

— Kelly, se terminaste a entrega, precisamos de ir andando. Espera-nos um barco para nos levar rio acima.

— Sim, estou despachada — respondeu ela. — Virou-se para Nathan e Kouwe. — Obrigada.

Nathan apercebeu-se das parecenças físicas entre a médica e o desconhecido: as sardas no rosto, as mesmas rugas em torno dos olhos, o sotaque de Boston. Irmãos, calculou.

Nathan seguiu o par até à rua, mas o que encontrou lá fora fê-lo recuar instintivamente. Deu um passo atrás e foi bater contra o professor Kouwe.

Havia um grupo de dez soldados alinhado ao longo da estrada, todos equipados com espingardas M16 com coronhas retráteis, pistolas à cintura e pesadas mochilas. Nate reconheceu as insígnias que traziam ao ombro. Rangers. Um deles disse qualquer coisa para um rádio e mandou o grupo avançar na direção do rio. O par de americanos seguiu atrás.

— Esperem! — gritou alguém para lá da linha de soldados.

Os soldados pararam e um rosto familiar apareceu. Era Manny Azevedo. O homem atarracado avançou por entre os militares. Vestia umas calças roçadas e o bolso da camisa estava desfeito em farrapos. Trazia o habitual chicote pendurado à cintura.

Nathan sorriu-lhe e foi ao seu encontro. Dando-lhe um abraço rápido, puxou-lhe o bolso esfarrapado.

— Andaste a brincar com o Tor-tor, pelo que vejo.

Manny sorriu.

— Aquele monstro ganhou dez quilos desde a última vez que o viste.

Nathan riu-se.

— Como se não fosse grande o suficiente!

Nate reparou que os Rangers os observavam atentamente, bem como Kelly e o irmão. Fez sinal com a cabeça na direção dos militares e aproximou-se do ouvido de Manny.

— E esta gente, sabes o que se passa? Para onde vão?

Manny olhou para os Rangers, que por esta altura se encontravam rodeados por uma multidão de curiosos.

— Ao que parece, o Governo americano decidiu financiar uma equipa de reconhecimento para uma expedição na selva profunda.

— Porquê? Andam à caça de traficantes?

Kelly foi ao encontro dos dois. Manny cumprimentou-a com um aceno de cabeça e depois estendeu o braço na direção de Nate.

— Apresento-lhe o doutor Nathan Rand.

— Bom, a verdade é que já nos conhecemos — disse ela, com um sorriso envergonhado. — O doutor Nathan é que nunca chegou a dizer o nome.

Nathan pressentiu que lhe estava a escapar qualquer coisa.

— Querem dizer-me o que se passa? O que vão procurar rio acima?

Kelly fitou-o com os seus olhos cor de esmeralda.

— Na verdade, íamos procurá-lo a si, doutor Rand.


2

A REUNIÃO

6 de agosto, 21h15

São Gabriel da Cachoeira

Nate abandonou o gabinete de Manny nas instalações da FUNAI, atravessou a rua e encaminhou-se na direção da base militar brasileira. Seguia acompanhado pelo seu bom amigo biólogo, o professor Kouwe. Este acabara de regressar do hospital. Nate ficou aliviado por saber que Tama estava a recuperar bem.

De banho tomado, barba feita e vestido com roupas lavadas, sentia-se um homem diferente de quando chegara, horas antes, com a menina à cidade. Era como se, juntamente com a sujidade e o suor que lhe cobrira o corpo, se tivesse livrado da selva. Em poucas horas, deixara de ser o mais recente membro da tribo dos Ianomâmis para tornar a assumir-se como cidadão americano. O poder transformador de um sabonete perfumado era uma coisa espantosa. Enquanto caminhava, ergueu o braço e cheirou a fragrância que ainda emanava da pele.

— Depois de tanto tempo na selva, é quase enjoativo, não achas? — disse o professor, soltando uma nuvem de fumo do cachimbo. — Quando deixei a minha casa nas selvas da Venezuela, o que me custou mais foi o ataque cerrado aos sentidos: os sons, os cheiros, a fúria desenfreada da civilização.

Nathan baixou o braço.

— É estranho adaptarmo-nos tão rapidamente a uma existência simples na floresta. Ainda assim, há uma coisa que compensa todos os problemas da vida moderna.

— Qual é?

— O papel higiénico.

Kouwe riu-se.

— Porque achas que deixei a selva?

Cruzaram a rua em direção ao portão iluminado da base. A reunião estava marcada para dali a dez minutos. Só então Nate obteria respostas.

Pelo caminho, lançou um olhar à cidade adormecida e estudou aquele pequeno bastião de civilização. A lua cheia flutuava sobre o rio, o brilho refletido na superfície plácida das águas e um tanto desfocado pela neblina que avançava na direção da cidade. A noite era a única altura em que a selva parecia engolir São Gabriel. Depois de o Sol se pôr, os sons urbanos suprimiam-se para dar lugar ao gorjear dos curiangos, ao coaxar estridente das rãs e ao cricrilar dos grilos. Nas ruas, o bater das asas dos morcegos e o zumbido dos mosquitos sedentos de sangue substituíam as buzinas dos carros e as vozes das pessoas. Apenas nos restaurantes abertos, onde a presença animada dos clientes noctívagos transbordava para o exterior, se notava a existência humana. Fora isso, à noite, a selva reinava.

Nathan acompanhou a passada rápida de Manny.

— Então, o que se passa? O que quererá o Governo dos Estados Unidos de mim?

Manny encolheu os ombros.

— Como te disse, não faço ideia. Mas acho que tem que ver com os teus financiadores.

— A Tellux Pharmaceutical?

— Sim. Chegaram acompanhados de alguns executivos da empresa. Pelo aspeto, devem ser advogados.

Nate franziu a testa.

— Não se pode dizer que seja uma surpresa quando toca a qualquer coisa em que estão envolvidos.

Kouwe ajeitou o cachimbo entre os dentes.

— Ninguém te torceu um braço para lhes venderes a Eco-Tek — comentou.

Nate suspirou.

— Professor...

O xamã ergueu a mão.

— Desculpa, bem sei que é um assunto sensível.

Nathan não teria escolhido aquela palavra, «sensível». Fundada doze anos antes, a Eco-Tek era uma criação do seu pai. Um laboratório especializado, que visava usar os conhecimentos xamânicos para descobrir novos medicamentos à base de plantas. O pai desejava preservar a sabedoria quase extinta dos curandeiros da bacia do Amazonas, certificando-se ao mesmo tempo de que as tribos locais lucravam com a exploração comercial desses conhecimentos, ao garantir-lhes a propriedade intelectual dos mesmos. O projeto não só constituía o sonho e o propósito de vida do pai, mas também o culminar de uma promessa feita à mãe de Nate, Sarah. Enquanto voluntária do Corpo da Paz, ela dedicara a vida ao povo indígena da Amazónia, e a sua paixão era contagiosa. Após a morte de Sarah, o pai de Nate prometeu dar seguimento à sua causa, o que resultaria anos mais tarde no nascimento da Eco-Tek, um modelo empresarial de ponta que era também uma organização sem fins lucrativos.

Mas tudo se perdera, e o que restava do legado dos pais de Nate havia sido engolido e desmantelado pela Tellux.

— Parece que vais ter direito a escolta — disse Manny, chamando a atenção de Nate para o portão.

Junto à guarita, dois rangers americanos aguardavam rígidos atrás de um soldado brasileiro, que aparentava algum nervosismo.

Nathan reparou nas pistolas à cintura. Sentiu-se aliviado por ter convencido os O’Brien a permitir que Manny e Kouwe fossem com ele.

Mal alcançaram o portão, o soldado brasileiro verificou as identificações. Um dos Rangers avançou.

— Estamos aqui para o acompanhar. Siga-me, por favor.

Dito isto, rodou sobre os calcanhares e pôs-se em movimento.

Nathan olhou para os amigos e, por fim, cruzou o portão. O segundo ranger tomou posição nas costas do grupo. Nathan sentiu-se como um prisioneiro que acabara de ser capturado e, à distância, avistou os quatro helicópteros militares pousados no campo de futebol da base. O olhar fixou-se no helicóptero Comanche. Lembrava uma ave de rapina preta, esguia, ameaçadora. Sentiu o estômago apertar-se de ansiedade.

Nada daquilo parecia afetar o professor Kouwe, que continuava a fumar tranquilamente o cachimbo enquanto caminhava. Manny também parecia mais distraído do que preocupado.

Continuaram a ser conduzidos para lá dos enormes barracões metálicos temporários que serviam de caserna para os soldados brasileiros, na direção da ponta mais afastado da base, onde existia um velho armazém de madeira com as janelas pintadas de preto.

O ranger que liderava o grupo abriu a porta enferrujada. Nathan foi o primeiro a entrar. Contava encontrar um interior sombrio e infestado de teias de aranha, mas ficou surpreendido ao deparar-se com um espaço amplo e bem iluminado por projetores de halogénio e luzes fluorescentes no teto. O chão de cimento encontrava-se coberto de cabos, alguns da grossura de um pulso. Ouvia-se um gerador elétrico a funcionar num dos três gabinetes alinhados na parede mais afastada.

Boquiaberto, Nate estudou o sofisticado equipamento eletrónico existente no armazém: computadores, rádios, televisões e monitores. No meio daquele caos organizado, uma enorme mesa de reuniões aguardava com o tampo coberto por documentos vários, desde mapas, gráficos e até uma pilha de jornais. Homens e mulheres, em roupas militares e civis, atarefavam-se de um lado para o outro. Alguns depositavam resmas de documentos na mesa, incluindo Kelly O’Brien, a médica americana de cabelo arruivado.

Que raio se passa aqui?

— Peço desculpa — disse o ranger, apontando para o cachimbo do professor —, mas não pode fumar cá dentro.

— Percebo. — Kouwe abaixou-se e bateu com a boca do cachimbo na soleira de cimento da porta, despejando-o.

O ranger usou o calcanhar para apagar o montículo de tabaco incandescente.

— Obrigado.

A porta de um dos escritórios nas traseiras abriu-se, e a figura alta de cabelos ruivos que de lá saiu, que parecia ser o irmão da doutora O’Brien, avançou. Acompanhava-o um homem que Nate conhecia bem e detestava ainda mais. Este vestia um fato azul-escuro, cujo casaco trazia dobrado sobre um braço. Nate tinha a certeza de que o casaco exibia o logótipo da Tellux. Um pouco mais baixo que Nate, exibia uma barriguinha proeminente e, como habitual, os cabelos castanhos apresentavam-se meticulosamente penteados com gel, a combinar com a barbicha aparada ao milímetro. O sorriso que esboçou ao aproximar-se de Nathan e dos amigos era tão artificial como tudo o resto.

O irmão de Kelly, por sua vez, estendeu a mão e, com uma expressão genuinamente calorosa, disse:

— Doutor Rand, obrigado por ter vindo. Creio que já conhece o doutor Richard Zane.

— Sim, já nos conhecemos — respondeu Nathan friamente. Apertou-lhe a mão, cujos dedos pareciam ter a força de um torno mecânico.

— Chamo-me Frank O’Brien, sou o chefe de operações. Já conheceu a minha irmã. — Lançou um olhar na direção de Kelly, que se encontrava debruçada sobre a mesa de reuniões. Ela ergueu a cabeça e acenou ao grupo. — Agora que já cá estamos todos, podemos dar início à reunião.

Frank conduziu Nate, Kouwe e Manny até à mesa, e depois fez sinal ao resto dos homens e mulheres no armazém para que ocupassem os respetivos lugares.

Um sujeito de rosto empedernido com uma longa cicatriz na garganta sentou-se no outro lado da mesa, ladeado por um ranger cujo olhar frio e as duas insígnias prateadas sugeriam que se tratava do capitão das forças americanas ali presentes.

À cabeceira da mesa, Richard Zane sentou-se entre Kelly e Frank. À esquerda encontrava-se outro funcionário da Tellux, uma pequena e discreta mulher asiática, vestida com um fato azul. O olhar inteligente parecia absorver tudo em redor, quando olhou para Nate, sorriu e acenou ligeiramente com a cabeça.

Estando toda a gente sentada, Frank aclarou a garganta.

— Primeiro que tudo, doutor Rand, quero dar-lhe as boas-vindas ao nosso centro de comando da Operação Amazónia, um esforço conjunto do Centro Ambiental da CIA e do Comando das Forças Especiais do Exército. — Frank acenou com a cabeça na direção do capitão dos Rangers. — Esta operação conta ainda com o apoio do Governo brasileiro e a assistência da divisão de investigação da Tellux Pharmaceutical.

Kelly ergueu a mão no ar, interrompendo o irmão. Apercebera-se da expressão confusa de Nate.

— Doutor Rand, de certeza que tem muitas perguntas a fazer. A começar pelo motivo de o termos trazido até aqui.

Nathan desviou o olhar para Manny e anuiu.

Kelly pôs-se de pé.

— O principal objetivo da nossa missão é descobrirmos o que aconteceu na última expedição do seu pai.

Nathan ficou boquiaberto, incapaz de acreditar no que ouvia. Sentia-se como se lhe tivessem dado um murro. Gaguejou até conseguir responder.

— Mas... mas isso foi há mais de quatro anos.

— Sim, nós sabemos, porém...

— Não! — Nate deu por si a levantar-se de repente; a cadeira deslizou pelo chão de cimento. — Eles estão todos mortos. Mortos!

O professor Kouwe pousou-lhe a mão no cotovelo.

— Nathan...

Nate sacudiu o braço. Lembrava-se do telefonema como se o tivesse recebido no dia anterior. Acabara de terminar a tese de doutoramento em Harvard e apanhara o primeiro avião para o Brasil, a fim de se juntar às buscas pela equipa desaparecida. A recordação dos acontecimentos tomou conta dele, ali de pé: o medo paralisante, a raiva, a frustração. Abandonadas as buscas, ainda assim recusara-se a desistir. Como podia baixar os braços? Suplicara aos responsáveis da Tellux para o ajudarem a nível particular. A farmacêutica era um dos financiadores da expedição do pai, juntamente com a Eco-Tek. O objetivo a dez anos: determinar exaustivamente o número de indígenas e tribos locais, e iniciar um catálogo completo dos seus conhecimentos medicinais, antes que se perdessem para sempre. A Tellux, porém, não acedera ao pedido de Nate. A empresa limitara-se a aceitar a opinião geral de que a equipa havia sido morta por uma tribo hostil ou por traficantes de droga.

Nate, por sua vez, nunca se convencera disso. Ao longo do ano anterior, tinha gasto um dinheirão para dar continuidade às buscas, revolvendo a selva à procura de qualquer sinal do que acontecera ao pai. Todo esse esforço se traduzira num buraco financeiro que sorvera grande parte dos ativos da Eco-Tek, destabilizando ainda mais a precária situação da empresa criada pelo pai. O primeiro golpe veio de Wall Street, quando as ações da Eco-Tek caíram a pique ao saber-se do desaparecimento do seu presidente nas selvas da Amazónia. Como seria de esperar, a fonte secou. Nessa altura, a Tellux avançara com uma proposta de compra hostil, mas Nate encontrava-se já demasiado ferido e cansado para lutar. A Eco-Tek, os seus ativos, e o próprio Nathan, tornaram-se propriedade da multinacional.

Seguiu-se um período ainda mais negro da sua vida, um vórtice nebuloso de álcool, drogas e desilusão. Foi apenas através do apoio de amigos como o professor Kouwe e Manny Azevedo que Nate acabou por se reencontrar. Descobriu que, na selva, a dor era menor. Que podia sobreviver um dia de cada vez. Seguiu em frente o melhor que pôde, dando continuidade ao trabalho do pai junto dos índios, financiado pelas esmolas que a Tellux lhe atirava.

Até àquele momento...

— Estão mortos! — repetiu, debruçado sobre a mesa. — Passados tantos anos, não existe a mínima possibilidade de descobrirmos o que aconteceu.

Kelly fitou-o, à espera de que ele se acalmasse. Estudou-o com aqueles olhos penetrantes, cor de esmeralda.

— Gerald Mitchell Clark — disse por fim, calmamente. — Sabe quem é?

Nathan abriu a boca para dizer que não, mas lembrou-se de que conhecia o nome. Era um dos elementos da equipa do pai. Depois de tanto tempo obcecado com o assunto, era natural que assim fosse. Humedeceu os lábios.

— Sim, era um antigo soldado. Comandava uma força militar de cinco homens responsável pela segurança da expedição.

Kelly respirou fundo.

— Bom, acontece que, há doze dias, Gerald Mitchell Clark emergiu da selva pelo seu próprio pé.

Nate arregalou os olhos.

— Meu Deus — disse Manny, sentado a seu lado.

O professor Kouwe, que pegara na cadeira tombada de Nate, ajudou-o a sentar-se.

Kelly prosseguiu.

— Infelizmente, o Gerald Clark morreu numa aldeia missionária antes de poder contar o que lhe acontecera ou de onde viera. O objetivo da nossa operação é reconstituir os seus passos. Sendo o Nate quem é, tínhamos esperança de que estivesse interessado em juntar-se a nós.

O silêncio caiu sobre a mesa.

Frank aclarou a garganta.

— Doutor Rand, escusado será dizer que o seu conhecimento das tribos locais e da região seria valioso para nós, mas a verdade é que, além disso, ninguém conhece melhor o seu pai e a sua equipa. Constituiria uma vantagem inestimável para esta viagem à selva profunda.

Nathan continuava demasiado atordoado para falar ou responder. O mesmo não se podia dizer do professor Kouwe.

— Compreendo o interesse da Tellux Pharmaceutical neste assunto — disse, com toda a calma do mundo. Acenou com a cabeça na direção de Richard Zane, que retribuiu o sorriso. — Não é o tipo de empresa que vire as costas a uma oportunidade de lucrar com outra tragédia.

O sorriso de Zane esfumou-se.

Kouwe prosseguiu, desta vez focando-se em Frank e Kelly.

— Mas qual é o interesse do Centro Ambiental da CIA? Ainda mais quando se fazem acompanhar de uma unidade de Rangers? — Virou-se para os militares e ergueu a sobrancelha. — Talvez um dos senhores queira explicar-nos?

Confrontado com a rápida avaliação do professor, Frank franziu a testa. Os olhos de Kelly brilharam.

— Além de ex-soldado e especialista em armas, o Gerald Clark era também um operacional da CIA — explicou a médica. — Ele juntou-se à expedição para reunir informações acerca das rotas do tráfico de cocaína na bacia do Amazonas.

Frank lançou um olhar à irmã, como que dizendo que aquela informação fora oferecida de bandeja.

Kelly ignorou a repreensão muda e prosseguiu.

— De qualquer modo, só posso fornecer mais explicações se o doutor Nathan se juntar a nós. Caso contrário, o que sabemos continuará a ser do domínio exclusivo das pessoas envolvidas.

Kouwe lançou um olhar de aviso a Nathan.

Nate respirou fundo.

— Se houver uma esperança de descobrir o que aconteceu ao meu pai, não tenho como recusar. — Virou-se para os dois amigos. — Vocês sabem que não.

Nathan levantou-se e fitou os rostos sentados à mesa.

— Vou convosco.

Manny também se levantou.

— E eu vou com ele. — Olhou em volta e, antes que alguém protestasse, acrescentou: — Já falei com os meus superiores em Brasília. Enquanto representante local da FUNAI, tenho o poder de colocar as restrições que entender a esta expedição.

Frank anuiu.

— Foi o que nos disseram há cerca de uma hora. Bom, a decisão é sua, mas também não tenho nada a apontar. Li o seu ficheiro pessoal. As suas competências enquanto biólogo ser-nos-ão certamente úteis.

O professor Kouwe pôs-se de pé e pousou a mão no ombro de Nate.

— Nesse caso, talvez queiram também contar com um perito em linguística.

— Agradeço a disponibilidade — retorquiu Frank, acenando na direção da mulher asiática —, mas estamos bem servidos nesse particular. A doutora Anna Fong é uma antropóloga especializada em tribos indígenas. Fala meia dúzia de dialetos.

Nathan riu-se.

— Sem querer menosprezar as competências da doutora Fong, o professor Kouwe fala mais de cento e cinquenta. Não existe maior especialista na matéria.

Anna interveio pela primeira vez.

— O doutor Rand tem razão — declarou, com uma voz suave. — O professor Kouwe é conhecido em todo o mundo pelo extenso conhecimento das tribos da Amazónia. Nada tenho a objetar contra a sua participação na expedição.

— E, ao que parece — acrescentou Kelly, acenando respeitosamente com a cabeça na direção do homem mais velho ali presente —, o professor é também um perito em plantas medicinais e doenças indígenas. — Virou-se para o irmão. — Na qualidade de responsável clínica da expedição, não vejo nenhuma desvantagem em tê-lo connosco.

Frank encolheu os ombros.

— Mais um, menos um, que diferença faz? — Virou-se para Nathan. — As condições são aceitáveis para si?

Nathan olhou para os amigos.

— Claro.

Frank assentiu com a cabeça e elevou o tom de voz.

— Nesse caso, vamos lá voltar ao trabalho. A circunstância de termos encontrado o doutor Rand na cidade acelerou os preparativos da missão. E há ainda muito a fazer para podermos partir às primeiras horas de amanhã. — Enquanto os outros começavam a regressar aos seus afazeres, Frank virou-se para Nathan. — Quanto a nós, vamos lá ver se conseguimos satisfazer mais algumas das suas perguntas.

Acompanhado pela irmã, Frank encaminhou-se na direção dos gabinetes.

Nate, Manny e Kouwe seguiram atrás.

Manny olhou por cima do ombro e apreciou a agitação no armazém.

— Só gostava de saber para o que acabámos nós de nos voluntariar...

— Para uma coisa fantástica! — retorquiu Kelly mais à frente, já a segurar a porta do gabinete. — Entrem e vejam com os próprios olhos.

Nathan pegou nas fotografias do agente Clark e passou-as aos dois amigos.

— Está a dizer-me que este homem entrou na selva com um braço e saiu de lá com dois? Não ouvi mal, pois não?

Frank contornou a secretária e sentou-se.

— Parece que sim. Foi tudo confirmado pelas impressões digitais. A morgue de Manaus enviou hoje o cadáver para os Estados Unidos. Será examinado amanhã, num laboratório privado financiado pela MEDEA.

— MEDEA? — perguntou Manny. — Não sei porquê, mas esse nome diz-me qualquer coisa.

Kelly, que examinava alguns mapas topográficos afixados na parede, encarregou-se de explicar.

— Desde que foi criada, em 1992, a MEDEA tem contribuído ativamente para a conservação da floresta tropical.

— Sim, mas quem são, ao certo? — perguntou Nathan, pousando as fotografias na secretária.

— Três anos antes, em 1989, o Congresso decidiu averiguar se os dados recolhidos pelos satélites de espionagem ao serviço da CIA podiam ser úteis no estudo e monitorização de alterações ambientais globais. Para o efeito foi criada a MEDEA. A CIA recrutou mais de sessenta cientistas ligados a diferentes áreas de estudo ambiental e juntou-os numa única organização, com o propósito de analisarem informações confidenciais relacionadas com preocupações ecológicas.

— Compreendo — disse Nathan.

Frank interveio.

— A nossa mãe foi um dos membros fundadores da MEDEA. Enquanto médica, estudava os riscos para a saúde associados a desperdícios tóxicos. Foi contratada pelo meu pai quando ele era diretor-adjunto da CIA, e é quem vai supervisionar a autópsia do agente Clark.

Manny franziu o sobrolho.

— O seu pai é o diretor-adjunto da CIA?

— Era — corrigiu Frank, com alguma tristeza na voz.

Kelly desviou o olhar dos mapas.

— Atualmente, o nosso pai é o diretor do Centro Ambiental. Uma divisão da Agência ao serviço da MEDEA, fundada em 1997 por Al Gore. O Frank também trabalha nessa divisão.

— E a Kelly? — perguntou Nathan. — Também pertence à CIA?

Kelly não respondeu.

— A minha irmã é a mais recente contratação da MEDEA — disse Frank, orgulhoso. — Uma grande honra, digo-vos. Por isso é que fomos escolhidos para liderar esta expedição. Eu represento a CIA. Ela, a MEDEA.

Kouwe riu-se.

— Nada como manter tudo em família.

— Quanto menos pessoas souberem da expedição, melhor — acrescentou Frank.

— E qual é o papel da Tellux nisto tudo? — perguntou Nathan.

Kouwe encarregou-se de responder pelos irmãos O’Brien.

— Não te parece óbvio? A expedição do teu pai foi financiada pela Eco-Tek e pela Tellux, que agora são a mesma coisa. Qualquer descoberta resultante desse trabalho pertence-lhes. Se a equipa tiver descoberto qualquer droga com propriedades regenerativas, escusado será dizer que a Tellux tem todo o interesse em deitar-lhe a mão.

Nathan virou-se para Kelly, que se limitou a olhar para os pés.

Frank anuiu.

— O professor tem razão. Mas a verdade é que, mesmo na Tellux, apenas um punhado de pessoas sabe qual é o verdadeiro objetivo desta missão.

Nathan abanou a cabeça.

— Estupendo, simplesmente estupendo.

Kouwe pousou-lhe a mão no ombro.

— Bom, posto isto — disse Manny —, por onde começamos?

— Eu mostro-vos — retorquiu Kelly. Virou-se de novo para a parede e apontou para o mapa principal. — Tenho a certeza de que o doutor Rand será capaz de identificar o que está aqui desenhado.

Nathan estudou o mapa. Era-lhe tão familiar como as palmas das mãos.

— Isso é a rota conhecida da expedição do meu pai.

— Exatamente — confirmou Kelly, passando o dedo ao longo do tracejado que parecia estender-se aleatoriamente desde Manaus, passando pelo rio Madeira e até à cidade de Porto Velho, para depois seguir na direção do coração da bacia do Amazonas. A partir desse ponto, a equipa dera uma série de voltas até alcançarem a pequena região explorada entre os afluentes norte e sul do rio. O dedo de Kelly deteve-se no X que assinalava o final do percurso. — Foi aqui que terminaram as comunicações de rádio, e onde se iniciaram as buscas, tanto as organizadas pelo Governo brasileiro como as patrocinadas por fundos privados. — Lançou um olhar demorado a Nathan. — O que nos pode dizer acerca destas buscas?

Nate contornou a secretária e estudou o mapa. Sentiu uma familiar pontada de desespero.

— Estávamos em dezembro, no pico da estação das chuvas — murmurou. — Duas enormes tempestades fustigavam a região. Era uma das razões pela qual, de início, ninguém se mostrou preocupado. Porém, passada uma semana sem notícias da equipa, e já depois de as tempestades passarem, os alarmes começaram a soar. Não se pode dizer que houvesse uma preocupação genuína. Estamos a falar de pessoas habituadas a uma vida inteira na selva. Portanto, o que podia correr mal? No entanto, à medida que as buscas se intensificaram, depressa percebemos que todos os possíveis sinais da expedição haviam desaparecido, levados pelas chuvas torrenciais e pelas florestas alagadas. Este local — Nathan colocou o dedo em cima do X — encontrava-se totalmente submerso quando a primeira equipa de resgate lá chegou.

Nate virou-se para os outros.

— Passou-se uma semana, e depois outra. Nada. Não havia pistas, notícias... até que nos chegou uma última mensagem frenética: «Enviem ajuda... não aguentamos muito mais... oh, meu Deus, eles estão por toda a parte.»

Nate respirou fundo. Aquelas palavras ainda o atormentavam.

— A mensagem encontrava-se tão carregada de estática que era impossível reconhecer a voz de quem falava. Talvez se tratasse do agente Clark.

No seu íntimo, porém, Nathan sabia que tinha sido o pai. As suas últimas palavras, que ouvira repetidamente, até à exaustão. Fitou as fotografias e os documentos espalhados na secretária.

— Nos três meses seguintes, a equipa de busca varreu a região a pente fino, mas as tempestades e as cheias dificultavam o trabalho. Não havia maneira de descobrir a direção que o meu pai tinha tomado: leste, oeste, norte, sul. — Encolheu os ombros. — Era simplesmente impossível. Estamos a falar de uma região maior que o estado do Texas e, inevitavelmente, todos desistiram.

— Exceto o Nathan — disse Kelly.

Nate cerrou um punho.

— E não haja dúvida de que me serviu de muito. Nunca mais se ouviu falar deles.

— Até agora — respondeu Kelly. A médica chamou-lhe de novo a atenção para o mapa e apontou para um círculo vermelho em que Nate não reparara. Situava-se a cerca de trezentos quilómetros a sul de São Gabriel, junto ao rio Japurá, um ramo do Solimões, o poderoso afluente sul do rio Amazonas. — Este círculo representa a missão de Wauwai, onde o agente Clark morreu. É para lá que vamos amanhã.

— E depois, o que se segue? — perguntou Manny.

— Reconstituímos os passos dele. Ao contrário das buscas anteriores, temos uma vantagem.

— E qual é? — perguntou Manny.

Nathan observou o mapa mais de perto.

— Estamos no final da época seca — disse. — Não chove há um mês. — Olhou por cima do ombro. — Devemos ser capazes de lhe apanhar o rasto.

— Daí a urgência em organizar esta expedição — disse Frank. Levantou-se da cadeira e apoiou a mão na parede que tinha os mapas. — Temos esperança de apanhar quaisquer pistas antes da chegada das chuvas. Também temos esperança de que o agente Clark estivesse suficientemente lúcido para deixar alguns sinais para trás, marcas nas árvores, montículos de pedras, qualquer coisa que nos possa conduzir ao local onde esteve desaparecido tantos anos.

Frank virou-se na direção da secretária e pegou numa enorme folha de papel dobrada.

— Além disso, contratámos a Anna Fong para que possamos comunicar com os habitantes locais, sejam eles camponeses, índios ou caçadores. Para sabermos se alguém viu passar um homem com estas marcas no corpo. — Abriu a folha de papel em cima da secretária, revelando um desenho feito à mão. — O agente Clark tinha o peito e a barriga cobertos com estas tatuagens. Talvez alguém se lembre de o ter visto.

Ao ver o desenho, o professor Kouwe recuou instintivamente, um gesto que não passou despercebido aos outros.

— O que se passa? — perguntou Nate.

Kouwe apontou para a folha. Exibia uma espécie de padrão em espiral, com a palma de uma mão no centro.

— Isto não é bom. Nada bom. — O professor enfiou a mão no bolso e sacou do cachimbo. Lançou um olhar a Frank, como que a perguntar-lhe se o podia acender.

Frank anuiu.

Kouwe pegou na pequena bolsa de tabaco, retirou uma porção e preparou o cachimbo. Riscando um fósforo, acendeu-o. Nate não pôde deixar de reparar nos dedos trémulos do professor. Nunca o tinha visto tão nervoso.

— O que foi?

Kouwe soltou uma baforada de fumo.

— Isto é o símbolo dos Ban-ali — explicou por fim. — Os Jaguares de Sangue.

— Conhece essa tribo? — perguntou Kelly.

O professor suspirou e abanou a cabeça.

— Ninguém conhece essa tribo. Exceto pelo que é sussurrado entre os anciões das aldeias, histórias passadas de geração em geração. Lendas de uma tribo que acasala com jaguares e cujos membros possuem a habilidade de se esfumar no ar. Trazem a morte aos que se atravessam no seu caminho e uma maldição para quem os desafia. Diz-se que são tão antigos quanto a floresta, e que a própria selva se verga à sua vontade.

— Nunca ouvi falar de semelhante tribo — disse Nate —, e trabalhei com povos indígenas de toda a Amazónia.

— A doutora Fong também não reconheceu o desenho — sublinhou Frank.

— Não me surpreende — explicou Kouwe. — Por muito que um homem branco seja aceite numa tribo, será sempre visto como um pananakiri, alguém que não pertence à floresta. Eles nunca vos diriam uma palavra acerca dos Ban-ali.

Nate sentiu-se um tudo-nada insultado.

— Mas eu...

— Não, Nathan. Não digo isto para menosprezar o teu trabalho ou competência. Mas, tal como acontece em muitas tribos, os Ianomâmis não pronunciam nomes. Os nomes têm poder entre os povos indígenas. Poucos ousarão pronunciar o nome dos Ban-ali. Têm demasiado medo de chamar a atenção dos Jaguares de Sangue. — O professor apontou para o desenho. — Se levarem este desenho convosco, devem mostrá-lo com conta, peso e medida. Muitos índios seriam capazes de vos matar por possuírem esta folha de papel. Não existe maior tabu do que permitir a entrada deste símbolo numa aldeia.

Kelly franziu a testa.

— Então, é pouco provável que o agente Clark tenha passado por alguma.

— Se o tivesse feito, dificilmente sairia de lá com vida.

Kelly e Frank trocaram um olhar preocupado. Por fim, a médica virou-se para Nate.

— O seu pai andava a fazer um levantamento exaustivo dos povos indígenas do Amazonas. Se tivesse ouvido falar desta tribo misteriosa, é provável que tentasse encontrá-los.

Manny dobrou o desenho.

— E quem sabe se não os encontrou?...

Kouwe fitou a boca incandescente do cachimbo.

— Rezem para que não tenha acontecido isso mesmo.

Um pouco mais tarde, com a maioria dos pormenores acertados, Kelly viu os três convidados abandonarem o armazém, uma vez mais escoltados pelos rangers. O irmão, Frank, encontrava-se já de volta do portátil com ligação satélite, a enviar o relatório diário aos seus superiores, incluindo o pai de ambos.

Porém, Kelly deu consigo a observar Nathan Rand, enquanto este se afastava. Não sabia bem o que pensar daquele homem. Ainda se encontrava vagamente aborrecida pela maneira como ele a tratara no hospital. No entanto, a pessoa que estivera no armazém nada tinha que ver com o fulano de cabelo oleoso e malcheiroso que lhe aparecera a carregar aquela menina numa maca. Não podia negar que, barbeado e vestido com roupas lavadas, Nate era um homem atraente. Os cabelos castanho-claros, a pele morena, os olhos azuis... até a maneira como erguia uma sobrancelha quando intrigado lhe conferia um inegável encanto.

— Kelly — chamou o irmão, ainda diante do computador —, há uma pessoa que quer falar contigo.

Soltando um suspiro cansado, Kelly juntou-se ao irmão. Por todo o armazém concluíam-se os últimos preparativos e a verificação do equipamento. Pousou as mãos na secretária e fitou o ecrã onde aguardavam duas figuras familiares. Um sorriso enternecedor iluminou-lhe o rosto.

— Mãe, a Jessie não devia estar acordada a esta hora. — Olhou de relance para o relógio e fez as contas de cabeça. — Deve ser quase meia-noite.

— Na verdade, querida, passam já uns minutos.

A mãe de Kelly parecia sua irmã. Tinha cabelo arruivado como o seu, e o único sinal da idade eram as rugas ligeiramente mais pronunciadas no canto dos olhos e os óculos de leitura na ponta do nariz. Ficara grávida de Kelly e Frank aos vinte e dois anos, quando ainda frequentava a faculdade. No que tocava a constituir uma família, um par de gémeos fora o suficiente para a estudante de Medicina e para o jovem engenheiro de vigilância da Marinha. Os pais de Kelly não tiveram mais filhos.

No entanto, isso não impediu Kelly de seguir os passos da mãe, ao também engravidar no decurso do quarto ano do curso de Medicina da Universidade de Georgetown. Ao contrário da mãe, que permaneceu casada com o pai dos filhos, Kelly divorciou-se de Daniel Nickerson quando o apanhou na cama com uma colega. Ele tivera pelo menos a decência de não contestar a custódia da pequena Jessica, na altura com um ano.

Agora com seis anos, Jessica estava de pé ao lado da avó, enfiada no seu pijama com a figura da princesa Pocahontas da Disney. Os cabelos ruivos emaranhados sugeriam que acabara de saltar da cama. Acenou para o ecrã.

— Olá, mamã!

— Olá, meu amor. Estás a divertir-te com a avó e o avô?

A menina acenou vigorosamente com a cabeça.

— Hoje fomos ao Chucky Cheese!

Kelly sorriu.

— Que bom. Gostava de ter ido com vocês.

— Guardámos uma fatia de piza para ti.

Ao lado, a mãe de Kelly revirou os olhos com a expressão comum a todos os avós depois de um encontro com o roedor gigante que era o símbolo da cadeia de restaurantes Chucky Cheese.

— Viste algum leão, mamã?

Kelly riu-se.

— Não, querida. Os leões vivem em África.

— E gorilas?

— Não, esses também vivem em África. Mas encontrei alguns macacos.

Jessica arregalou os olhos.

— Podes trazer-me um? Sempre quis ter um macaco!

— Acho que o macaco não iria gostar disso. Ele tem a sua mamã aqui.

A avó colocou um braço por cima dos ombros da neta.

— E eu acho que está na altura de deixarmos a tua mamã dormir. Ela tem de se levantar cedo, como tu.

Jessica fez beicinho.

Kelly aproximou o rosto do ecrã.

— Amo-te muito.

Jessica acenou-lhe.

— Adeus, mamã.

— Porta-te bem, querida — disse a mãe. — Gostava de estar aí contigo.

— Tens trabalho que chegue — retorquiu Kelly. Olhou de relance para a filha. — A... a encomenda chegou bem?

A expressão da mãe tornou-se mais séria.

— Passou na alfândega de Miami às seis da tarde, chegou aqui à Virgínia por volta das dez da noite e seguiu direta para o Instituto Instar. Na verdade, o teu pai ainda lá se encontra, a certificar-se de que está tudo em ordem para os exames de amanhã.

Kelly anuiu, aliviada por saber que o corpo de Clark chegara aos Estados Unidos sem percalços.

— Tenho de ir deitar a Jessie, mas dou-te notícias amanhã à noite. Promete-me que tens cuidado por aí.

— Não te preocupes. Estão dez rangers a tomar conta de mim. Estou mais segura aqui do que em qualquer rua da baixa de Washington.

— Mesmo assim, tomem cuidado os dois, sim?

Kelly olhou para Frank, que conversava com Richard Zane.

— Prometo.

A mãe mandou-lhe um beijo.

— Amo-te.

— Também te amo, mãe.

Dito isto, o ecrã apagou-se.

Kelly fechou a tampa do portátil e deixou-se cair sentada numa cadeira. Sentia-se subitamente exausta. Olhou para os outros. O seu equipamento encontrava-se já arrumado no helicóptero. Livre de responsabilidades por enquanto, a mente vagueou ao encontro do desenho da espiral vermelha em torno da palma da mão azul, o símbolo dos Ban-ali, a tribo-fantasma da Amazónia.

Tinha duas perguntas na cabeça. Poderá uma tribo destas, com semelhantes poderes mágicos, existir? E se existir, dez rangers armados são suficientes para dar conta do recado?


3

O MÉDICO E A BRUXA

6 de agosto, 23h45

Caiena, Guiana Francesa

Louis Favre era frequentemente descrito como um sacana e um bêbedo, mas as pessoas nunca lho diziam na cara. Nunca. O desgraçado que cometera o erro de o fazer encontrava-se agora estendido de costas no beco nas traseiras do Hotel Seine, um enorme e decadente edifício colonial situado numa colina com vista para a capital da Guiana Francesa, Caiena.

Momentos antes, no sombrio bar do hotel, o miserável aos seus pés metera-se com um velho amigo, um sujeito de oitenta anos, sobrevivente da temível colónia penal da ilha do Diabo. Louis nunca falara do assunto com o homem, mas ouvira a história da boca do empregado do bar. Como acontecia com muitos dos condenados que eram para ali enviados de França, o homem recebera uma sentença dupla. Por cada ano de pena na ilha infernal a dez milhas da costa, tinha de permanecer igual tempo na Guiana Francesa. A medida constituía uma maneira de os franceses continuarem a marcar presença no território e, tal como o Governo francês esperava, muitos acabavam por ficar ali até morrerem. Que tipo de vida podiam encontrar em França depois de tanto tempo fora?

Louis observara várias vezes este homem, seu semelhante, outro expatriado. Ficava a vê-lo beberricar whisky puro, sem gelo, estudando as rugas que lhe marcavam o rosto envelhecido e desprovido de esperança. Louis valorizava esses momentos de quietude.

Assim sendo, quando aquele inglês embriagado tropeçou e esbarrou contra o cotovelo do velho, entornando-lhe a bebida e seguindo o seu caminho sem ao menos pedir desculpa, Louis levantara-se e confrontara-o.

— Vai-te foder, franciú — fora a resposta do inglês.

Louis continuou a barrar-lhe a passagem.

— Ou paga outra bebida ao meu amigo, monsieur, ou vamos conversar lá fora.

— Desampara-me a loja, bêbedo de merda!

Louis suspirou e, quando o homem tentou forçar a passagem, deu-lhe um murro no nariz e agarrou-o pelas lapelas do fato barato. Os outros clientes do bar continuaram a beber e não deram mais importância à cena. Louis arrastou o jovem rufia, ainda atordoado do murro e do álcool que ingerira a noite inteira, até ao beco nas traseiras.

Tratou então de lhe arrancar a desculpa que não ouvira lá dentro — embora o inglês não pudesse dizer grande coisa com a boca toda ensanguentada. Depois de o espancar, Louis deixou o sujeito estendido numa poça de urina e sangue. Louis não se coibiu de lhe dar um último pontapé, só para ouvir o estalar satisfatório de um par de costelas. Acenando com a cabeça, pegou no chapéu panamá que pousara em cima de um caixote de lixo e ajeitou o fato de linho. Olhou para os sapatos de pele branca. Franzindo a testa, retirou um lenço do bolso e limpou o sangue nas biqueiras. Lançou um último olhar ao inglês. Esteve tentado a dar-lhe mais um pontapé, mas decidiu que não valia a pena sujar outra vez os sapatos.

Ajeitando o chapéu na cabeça, tornou a entrar no bar e fez sinal ao empregado.

— Mais uma bebida para o meu amigo — disse, apontando para o velho.

O empregado espanhol anuiu e pegou numa garrafa de whisky.

Louis lançou-lhe um olhar de poucos amigos e abanou o dedo.

Apercebendo-se do passo em falso, o empregado mordeu o lábio. Louis era o tipo de homem que escolhia sempre o melhor, mesmo quando se tratava de oferecer uma bebida a um amigo. Embaraçado, o empregado retirou uma garrafa de Glenlivet da prateleira, o melhor whisky escocês da casa.

— Merci. — Com o assunto resolvido, Louis encaminhou-se para o átrio do hotel, onde quase esbarrou com o rececionista.

O homem franzino desfez-se em desculpas.

— Doutor Favre! Estava à sua procura — disse, esbaforido. — Tenho uma chamada internacional para si. — Entregou um bilhete dobrado a Louis. — A pessoa não adiantou pormenores. Disse apenas que é urgente.

Louis abriu o bilhete e leu o nome que constava nele: «St. Savin Biochimique Compagnie». Um laboratório farmacêutico francês. Tornou a dobrar o bilhete e guardou-o no bolso.

— Vou atender a chamada.

— Tem uma cabina privada onde...

— Eu sei onde é — disse Louis. Atendera muitos telefonemas de negócios nesse espaço.

Com o rececionista a seguir-lhe os passos, Louis encaminhou-se para o pequeno cubículo à esquerda do balcão da receção. Deixou o homem à porta e sentou-se na poltrona almofadada que tresandava a bolor e a uma mistura de água de colónia e suor. Recostou-se e pegou no auscultador.

— Doutor Louis Favre — disse.

— Bonjour, doutor Favre — cumprimentou a voz no outro lado da linha. — Queremos requisitar os seus serviços.

— Se tem este número, calculo que conheça a minha tabela de preços.

— Sim.

— E posso perguntar qual é o serviço que pretende?

— Première.

Aquela simples palavra fez com que os dedos de Louis se apertassem em torno do auscultador. Première classe significava um pagamento na ordem dos seis dígitos.

— Local?

— Amazónia. Brasil.

— O objetivo?

A voz falou rapidamente. Louis escutou sem tirar notas. Memorizou cada número e cada nome, sobretudo um. Semicerrou os olhos e endireitou as costas.

— A equipa americana tem de ser localizada, e o que quer que descubram tem de ser obtido — concluiu a voz.

— E a outra equipa?

Não houve resposta, apenas estática.

— Compreendo e aceito — disse Louis. — Necessito de metade do pagamento depositado na minha conta até amanhã ao final do dia. Toda a informação detalhada acerca da equipa americana deve ser enviada por fax para a minha linha privada o mais rápido possível. — Louis forneceu o número.

— Terá tudo dentro de uma hora.

— Très bien.

A chamada terminou. Nada mais havia a discutir.

Louis pousou o auscultador e recostou-se outra vez. Não pensou em dinheiro nem no trabalho que daria montar uma equipa. Naquele momento, a mente fervilhava com um único nome. O novo empregador proferira-o assim, sem mais nem menos, totalmente alheado do seu significado. Se soubesse do que estava a falar, a oferta seria certamente mais baixa. Em bom rigor, Louis aceitaria aquele serviço em troca de uma garrafa de vinho corrente. Murmurou o nome para si mesmo, saboreando-o.

— Carl Rand.

Sete anos antes, Louis Favre encontrava-se a trabalhar como biólogo ao serviço da Base Biologique Nationale de Recherches, a mundialmente reconhecida fundação científica francesa. Especializado em ecossistemas da floresta tropical, Louis trabalhara um pouco por todo o mundo, desde Austrália, Bornéu, Madagáscar, Congo. Durante quinze anos, porém, estivera totalmente dedicado à floresta da Amazónia. Viajara extensivamente por toda a região, conquistando uma reputação à escala mundial.

Até que o destino lhe colocou Carl Rand no caminho.

O empreendedor e cientista americano considerara os métodos de Louis pouco ortodoxos, ao esbarrar com uma sessão de interrogatório do francês a um xamã local. O doutor Rand acreditava que cortar dedos não constituía uma forma viável de sacar informações ao teimoso índio, e não havia dinheiro suficiente no mundo que o convencesse do contrário. Escusado será dizer que a quantidade de peles de jacarés-açus e de jaguares encontrada na aldeia, ambos espécies protegidas, também não tinha ajudado. O doutor Rand parecia incapaz de compreender como é que um cientista era capaz de recorrer ao mercado negro para conseguir algum rendimento extra.

Para mal dos pecados de Louis, Carl e os militares brasileiros que o acompanhavam superavam a sua equipa em número, e aquele foi capturado e encarcerado. Por sorte, Louis tinha bons conhecimentos em França e dinheiro suficiente para untar as mãos corruptas de alguns responsáveis brasileiros, e conseguiu escapar com pouco mais do que uma palmada no pulso.

Contudo, foi a palmada na cara que lhe doeu mais. O incidente manchou-lhe a reputação de forma irreparável. Falido, viu-se obrigado a procurar refúgio na Guiana Francesa. Ali, com a ajuda da própria engenhosidade e dos contactos anteriores no mercado negro, montou uma equipa de mercenários. Ao longo dos cinco anos seguintes, o grupo dedicou-se à proteção de carregamentos de droga enviados da Colômbia, à caça de espécies ameaçadas para colecionadores privados, à eliminação de um regulador brasileiro que queria dificultar a vida a uma operação de prospeção de ouro, e até à destruição de uma pequena aldeia de camponeses que lutava contra a intromissão de uma empresa madeireira nas suas terras. Serviço após serviço, o negócio prosperara.

Agora surgira esta oferta: seguir uma equipa militar dos Estados Unidos que procurava localizar a expedição perdida de Carl Rand, e apropriar-se de tudo o que encontrassem. Isto para ser o primeiro a deitar a mão a uma qualquer droga regenerativa, que teoricamente teria sido descoberta pela equipa de Rand.

Aquele tipo de pedido não era invulgar. Nos anos mais recentes, a corrida a novas drogas da floresta tropical tornara-se mais e mais frenética, constituindo uma indústria multibilionária. Apelidada de «ouro verde», a procura pela próxima droga milagrosa incendiara uma «corrida ao ouro» na Amazónia. E nas profundezas da floresta, onde milhões de dólares eram lançados numa economia constituída por camponeses pobres e índios iletrados, traições e atrocidades eram cometidas diariamente. Não havia quem controlasse o que se passava, ninguém que denunciasse. A cada ano, a selva engolia milhares de vidas, quer por doença, ataques ou acidentes. Que diferença faria mais um biólogo? Mais um etnobotânico? Mais um investigador?

Aquilo era uma terra de ninguém, onde se podia ganhar rios de dinheiro e cada um fazia o que queria. E Louis Favre estava prestes a entrar em campo, financiado por uma farmacêutica francesa.

Sorrindo, levantou-se. Lembrava-se de como o desaparecimento de Carl Rand o deixara feliz quatro anos antes. Embebedara-se nessa noite, festejando o triste destino do homem. Agora teria oportunidade de lhe cravar o derradeiro prego no caixão, roubando-lhe a hipotética descoberta e juntando mais umas quantas almas à sua cova.

Abriu a porta do cubículo e saiu.

— Espero que tudo tenha sido do seu agrado, doutor Favre — disse o rececionista ao balcão.

— Sem dúvida, Claude — respondeu com um aceno de cabeça. — Muito.

Atravessou o átrio em direção ao elevador, cuja cabina antiga, feita de madeira e ferro, não comportava mais de duas pessoas. Premiu o botão para o sexto andar, onde se localizava a sua suíte. Estava desejoso de partilhar a notícia.

O elevador chocalhou e gemeu durante toda a subida. A porta abriu-se e Louis apressou-se pelo corredor estreito até ao quarto mais afastado. Tal como um punhado de outros hóspedes que viviam permanentemente no hotel Seine, Louis alugara uma suíte constituída por dois quartos, uma cozinha apertada, uma sala ampla que abria para uma varanda em ferro forjado e um pequeno escritório forrado de prateleiras. Não se podia dizer que fossem aposentos requintados, mas ajustavam-se às necessidades. O pessoal do hotel era discreto e estava habituado às excentricidades daquela dupla de hóspedes.

Louis abriu a porta e entrou. Apercebeu-se imediatamente de duas coisas. Primeiro, o odor familiar que enchia a divisão. Provinha de um pequeno tacho em cima do fogão, onde ferviam folhas de ayahuasca que serviam para produzir o poderoso chá alucinogénio conhecido como natem. A bebida costumava ser-lhe preparada em noites em que a sua atenção era exigida.

Segundo, ouviu o gemido do aparelho de fax a funcionar no escritório. Os novos empregadores eram sem dúvida eficientes.

— Tshui! — chamou Louis.

Não contava ouvir resposta, porém, tal como era tradição entre os nativos da tribo Shuara, uma pessoa devia anunciar sempre a sua presença. Reparou na porta entreaberta do quarto. Sorrindo, encaminhou-se na direção do escritório a tempo de ver outra folha ser cuspida do fax e cair na pilha já existente. Tratava-se dos pormenores da missão.

— Tshui, tenho notícias fantásticas.

Pegou e deu uma vista de olhos na última folha recebida. Eram as identidades dos elementos que integravam a expedição americana.

22h45. Atualização do Acampamento Alfa

I. Operação Amazónia: Membros civis.

1) Kelly O’Brien, médica — MEDEA

2) Francis J. O’Brien — Centro Ambiental, CIA

3) Olin Pasternak — Centro de Ciência e Tecnologia, CIA

4) Richard Zane, diretor de investigação — Tellux Pharmaceutical

5) Anna Fong — Tellux Pharmaceutical

II. Operação Amazónia, Apoio militar: 75.º Batalhão de Rangers do Exército

Capitão: Craig Waxman

Sargento: Alberto Kostos

Cabos: Brian Conger, James DeMartini,

Rodney Graves, Thomas Graves,

Dennis Jorgensen, Kenneth Okamoto,

Nolan Warczak, Samad Yamir

III. Operação Amazónia: Elementos recrutados localmente

1) Manuel Azevedo — FUNAI, brasileiro

2) Resh Kouwe — FUNAI, representante indígena

3) Nathan Rand — Etnobotânico, americano

Louis por pouco não reparava no último nome da lista. Os dedos apertaram a folha de papel. Nathan Rand, o filho de Carl Rand. Fazia sentido, claro. O rapaz nunca permitiria que a equipa americana fosse procurar o pai sem ele. Fechou os olhos, saboreando aquela dádiva inesperada. Era como se os deuses da selva se alinhassem a seu favor. A vingança que não exercera sobre o pai recairia agora sobre a cabeça do filho. Parecia uma coisa retirada das páginas da Bíblia.

Enquanto ali permaneceu, de pé, a segurar a folha, ouviu um pequeno ruído no quarto adjacente, o quarto principal. Devolveu a folha à pilha. Tinha tempo para estudar os pormenores e elaborar um plano de ação. Por enquanto, queria apenas desfrutar da alegria do momento.

— Tshui! — chamou de novo, e encaminhou-se na direção do quarto.

Empurrou a porta e encontrou a divisão iluminada por velas. Um pau de incenso ardia a um canto. A sua amante estava deitada na cama de dossel, totalmente nua em cima dos lençóis de seda branca e com os véus mosquiteiros recolhidos. O tom de pele profundamente moreno da pequena mulher shuara cintilava à luz das velas. Os longos cabelos espraiavam-se nas almofadas em todas as direções, e ela mantinha os olhos fechados do efeito do chá natem. Havia duas chávenas em cima da mesa de cabeceira. Uma cheia, a outra vazia.

Como sempre, Louis sentiu o ar ser-lhe arrancado dos pulmões diante da beleza da sua amada. Conhecera-a no Equador, três anos antes. Ela tinha sido mulher de um chefe shuara, até ao momento em que se fartara das infidelidades do marido. Matara-o com o próprio machete. Embora esses atos — tanto a infidelidade como o homicídio — fossem comuns entre o povo Shuara, Tshui foi banida da tribo e enviada nua para a floresta. Ninguém, nem os parentes próximos do chefe, ousara tocar-lhe num fio de cabelo pelo crime cometido. Tshui era bastante conhecida na região como uma das raras xamãs femininas, uma praticante de wawek, feitiçaria maligna. Os conhecimentos em elaboração de venenos, de métodos de tortura e da arte perdida de tsantsa — encolher cabeças — eram igualmente respeitados e temidos. Na verdade, o único adorno que trouxera consigo quando abandonara a aldeia fora a cabeça encolhida do marido, pendurada num fio entrançado ao pescoço.

Foi nessa figura que Louis a tinha encontrado, uma bela e selvagem criatura da selva. Embora tivesse mulher em França, Louis tomara Tshui como sua. Ela não se recusara, sobretudo depois de os mercenários de Louis matarem todos os homens, mulheres e crianças da aldeia, assinalando assim a sua vingança.

Desde então, os dois tornaram-se inseparáveis. Tshui acompanhava-o em todas as missões, quer na qualidade de interrogadora de excelência quer como profunda conhecedora da selva. Ao lado de Louis, continuara a colecionar troféus.

No quarto, dispostas em prateleiras ao longo das quatro paredes, viam-se quarenta e três tsantsa, cada uma do tamanho de uma maçã. Todas exibiam os olhos e as bocas cosidas com fio, os cabelos pendendo das prateleiras como barba-de-velho numa árvore. A habilidade de Tshui no que tocava a encolher cabeças era impressionante. Louis assistira uma vez ao processo. E uma vez bastara-lhe. Com a habilidade de um cirurgião, Tshui retirava a pele do crânio da vítima, muitas das vezes ainda viva e a gritar. Tshui era uma artista. Depois de ferver a pele em água, com cabelos e tudo, e de a secar sobre cinzas quentes, usava uma agulha de osso para coser a boca e as pálpebras. A seguir, enchia o interior com pedras e areia quente. À medida que a pele secava e encolhia, Tshui moldava-a com os dedos. A habilidade para recriar as feições originais da vítima era realmente impressionante.

Louis desviou o olhar para a última criação da mulher. Repousava em cima da mesa de cabeceira mais afastada. A cabeça pertencia a um oficial do exército boliviano que tentara chantagear um distribuidor de cocaína. Do bigode aparado à franja sobre a testa, o pormenor do trabalho de Tshui era extraordinário. Aquela coleção teria lugar no melhor dos museus. Em abono da verdade, o pessoal do hotel Seine pensava que Louis era um antropólogo cujo trabalho consistia em recolher aqueles espécimes para museus. Se desconfiavam de mais qualquer coisa, eram discretos o suficiente para manter a boca calada.

— Mon chéri — disse Louis, recuperando por fim o fôlego. — Tenho ótimas notícias.

Tshui rolou na sua direção. Gemeu suavemente, como que a convidá-lo a deitar-se com ela. Raramente dizia uma palavra. Na maior parte do tempo, à semelhança de um grande felino da selva, Tshui era toda ela olhares, gestos sensuais e gemidos.

Louis não conseguia resistir. Tirou o chapéu e o casaco. Numa questão de segundos, estava totalmente despido. Tinha um corpo magro e musculado, marcado por múltiplas cicatrizes. Bebeu o chá que lhe estava reservado, enquanto Tshui lhe passava um dedo ao longo de uma cicatriz que se estendia do umbigo à parte interior da coxa. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.

À medida que a droga fazia efeito, aprimorando-lhe os sentidos, deixou-se cair sobre o corpo dela. Tshui recebeu-o dentro de si, e Louis afundou-se no seu calor, beijando-a com sofreguidão enquanto ela lhe cravava as unhas nas costas.

Em menos de nada, cores e luzes dançaram diante dos seus olhos. O quarto rodopiou ligeiramente ao ritmo do efeito crescente dos alcaloides no chá. Por um momento, pareceu-lhe que as cabeças os observavam, todos aqueles olhos dos mortos cravados em si, enquanto se afundava no corpo da mulher. Ter aquela plateia excitou-o para lá da razão. Segurou Tshui debaixo de si, as ancas investindo contra o seu corpo uma e outra vez, tentando conter o grito que explodia no peito.

Em toda a volta havia olhos que o observavam.

Um último pensamento materializou-se antes de se consumir por inteiro naquele delírio de paixão e dor. O derradeiro troféu para agraciar aquelas prateleiras, uma recordação do filho do homem que o arruinara.

A cabeça de Nathan Rand.


SEGUNDO ATO

SOB A COPA DAS ÁRVORES

PERVINCA

Família: Apocynaceae

Género: Vinca

Espécie: menor, maior

Nome comum: Pervinca, congossa

Partes utilizáveis: Planta inteira

Propriedades: Analgésico, antibacteriano, antimicrobiano, anti-inflamatório, adstringente, cardiotónico, carminativo, depurativo, diurético, emenagogo, febrífugo, hemostático, hipotensivo, lactante, protetor hepático, sedativo, sialagogo, espasmolítico, estomáquico, tónico, vulnerário


4

WAUWAI

7 de agosto, 08h12

Algures sobre a selva amazónica

Nathan olhou pela janela do helicóptero. Mesmo com os auscultadores nos ouvidos, o rugido dos rotores era ensurdecedor, isolando cada passageiro no seu casulo de ruído. Lá em baixo, um vasto mar de verde espalhava-se em todas as direções. Daquele ponto de observação, o mundo inteiro parecia uma gigantesca floresta. As quebras no manto de copas infinitamente igual eram assinaladas por ocasionais árvores gigantes, chamadas emergentes. Estes monstros espreitavam acima de todas as outras, servindo de local de nidificação para gaviões e tucanos. As únicas quebras adicionais na paisagem provinham do curso sinuoso e preguiçoso dos rios que cruzavam a floresta. Fora isso, a selva apresentava-se suprema, impenetrável, infinita.

Nathan encostou a cabeça ao vidro. Estaria o seu pai ainda lá em baixo? E se não estivesse, haveria ao menos respostas? No seu íntimo existia uma semente de ansiedade e amargura. Seria capaz de lidar com aquilo? Depois de anos no escuro, aprendera uma coisa. O tempo curava, de facto, todas as feridas, mas deixava uma cicatriz, um filamento inflexível de tecido fibroso, duro, adormecido.

Após o desaparecimento do pai, mantivera-se isolado do mundo, primeiro no fundo de uma garrafa de Jack Daniel’s, e depois no abraço de drogas potentes. Nos Estados Unidos, o psicólogo que o acompanhara usara expressões como «problemas de abandono», «conflitos de confiança» e «depressão clínica». Aos olhos de Nate, tratava-se mais de uma questão de ausência de fé na vida. Com a exceção de Manny e Kouwe, nunca mais forjara amizades duradouras. Tornara-se demasiado impenetrável, adormecido, marcado. Só quando regressou à selva é que se sentiu em paz consigo mesmo. E agora isto...

Estaria em condições de reabrir as velhas feridas? De enfrentar de novo a dor?

O auricular emitiu um clique, seguido de um instante de estática. A voz do piloto fez-se ouvir por cima do rugido dos rotores.

— Estamos a vinte quilómetros de Wauwai. Mas há uma mancha de fumo no horizonte.

Nathan esticou o pescoço, mas tudo o que conseguia ver era o terreno em baixo e dos lados. Wauwai serviria como base secundária, um ponto de partida para a expedição, onde podiam abastecer e monitorizar o avanço da equipa que entraria na floresta. Duas horas antes, os três Hueys e o Comanche haviam descolado de São Gabriel, transportando os primeiros mantimentos, equipamento, armas e pessoal. Mais tarde nesse dia, quando a equipa desse início à missão de busca, os Hueys fariam a rota de abastecimento entre Wauwai e São Gabriel. O Comanche permaneceria estacionado em Wauwai e apenas descolaria em caso de emergência. O armamento e o longo alcance do aparelho protegeriam a equipa a partir do ar, se necessário.

Era esse o plano, pelo menos.

— O fumo parece ter origem no nosso destino — disse o piloto. — A aldeia está a arder.

Nathan afastou-se da janela. A arder? Olhou em volta da cabina. Além dos irmãos O’Brien, partilhava o habitáculo com o professor Kouwe, Richard Zane e Anna Fong. O sétimo e último passageiro era o homem de rosto empedernido que se sentara à frente de Nate durante a reunião no armazém. Fora apresentado nessa manhã como Olin Pasternak, agente da CIA em funções na Divisão de Ciência e Tecnologia. Nate deu com o homem a fitá-lo com aqueles olhos azuis gélidos, a expressão estoica, indecifrável.

A seu lado, Frank encostou o pequeno microfone aos lábios.

— Podemos aterrar, mesmo assim?

— A esta distância, não tenho forma de saber, senhor — respondeu o piloto. — O capitão Waxman vai avaliar a situação.

Nathan viu um dos helicópteros deixar a formação e ganhar velocidade em relação aos restantes. Enquanto aguardavam, o Huey descreveu uma curva e Nathan avistou finalmente a coluna de fumo que se erguia à distância. Os outros passageiros moveram-se na direção da janela desse lado, a fim de melhor observarem o que se passava.

Kelly O’Brien inclinou-se sobre o ombro de Nate, os olhos cravados no fumo. Nate viu a boca dela mover-se, mas o ruído e os auscultadores impediram-no de ouvir uma palavra. No entanto, pela forma como semicerrava os olhos e comprimia os lábios, dava para perceber que a americana não estava contente. Ela recostou-se e apanhou-o a olhar fixamente para a cara dela, o que a fez desviar o olhar, envergonhada.

A voz do piloto fez-se ouvir de novo nos auriculares.

— O capitão diz que podemos prosseguir. O local onde vamos aterrar encontra-se contra ao vento em relação ao incêndio. Preparem-se para descermos.

Todos se recostaram nos respetivos lugares e apertaram os cintos de segurança. No instante seguinte, os três helicópteros pairavam já sobre a aldeia. Os pilotos esforçaram-se por não deixar que o sopro dos rotores deslocasse o fumo na direção do campo de aterragem. Em virtude disso, Nate não conseguia distinguir a origem das chamas, apenas a fila de pessoas a passarem baldes de água tirada do rio.

Quando desciam, a torre esbranquiçada de uma igreja de madeira surgiu à vista de todos. A origem do incêndio situava-se para lá do edifício. Ainda assim, alguém lançava naquele momento água no telhado.

Os patins do helicóptero tocaram no chão com um pequeno solavanco e as portas abriram-se. Frank fez sinal a todos para desembarcarem.

Nathan retirou os auscultadores dos ouvidos e sentiu-se esmagado pelo rugido dos rotores. Desapertou o cinto de segurança e saiu. Uma vez longe do alcance das pás, endireitou as costas e olhou em volta. O último Huey pousou numa ponta afastada do campo. As marcas no solo sugeriam que ali houvera uma horta ou um jardim.

No lado contrário, os rangers estavam já em ação. Um punhado deles descarregava o equipamento e os mantimentos, enquanto outros corriam na direção da igreja, a fim de ajudarem a combater o incêndio.

Pouco a pouco, o barulho dos helicópteros diminuiu de intensidade, dando lugar a uma cacofonia de ordens, gritos e conversas.

Kelly aproximou-se acompanhada por Frank.

— É melhor procurarmos o padre que encontrou o agente Clark — disse para o irmão. — Quanto mais depressa falarmos com ele, mais depressa nos pomos a caminho.

Frank assentiu com a cabeça e os dois encaminharam-se na direção da igreja.

Nate sentiu alguém tocar-lhe no ombro.

— Anda, vamos ajudar esta gente — disse o professor Kouwe, apontando para a coluna de fumo.

Nathan seguiu o professor pelo campo. Os dois contornaram a igreja e, do outro lado, encontraram o caos absoluto. Pessoas corriam de um lado para o outro com pás e baldes de água, o fumo e as labaredas espalhavam-se em todas as direções.

— Meu Deus — disse Nate.

Havia uma aldeia constituída por uma centena de casas entre a igreja e o rio. Três quartos das habitações estavam a arder.

Nate e o professor correram a juntar-se aos esforços para controlar o incêndio.

Lutavam contra as chamas índios de pele castanha, missionários brancos e rangers de uniforme, porém, depois de uma hora de trabalho, os rostos cobertos de fuligem tornara-os iguais, apenas um punhado de figuras enegrecidas que tossiam e sufocavam no meio do fumo.

Nathan continuou a correr com os baldes, apagando as chamas que conseguia, concentrando-se em manter uma linha de contenção em torno do coração do incêndio. Cabia a todos fazer os possíveis por manter as chamas controladas. No interior do perímetro, o fogo consumira todas as estruturas de madeira e palma, convertendo as pequenas habitações em tochas ardentes numa questão de segundos. No entanto, aquela ajuda adicional permitiu que a situação não demorasse a ficar controlada. Circunscritas, as chamas morreram sem mais casas para as alimentar. Apenas as brasas incandescentes pontilhavam o cenário de destruição e fumo.

No meio da confusão, Nate perdera o rasto do professor. Deu por si sentado a descansar ao lado de um brasileiro encorpado. O homem tentava conter as lágrimas e murmurou qualquer coisa em português, porventura uma oração. Nate calculou que fosse um dos missionários.

— Lamento muito — disse Nathan em português, retirando o lenço que lhe cobria o nariz e a boca. — Houve mortes?

— Cinco. Tudo crianças. — A voz do homem falhou-lhe. — Mas há muita gente intoxicada pelo fumo.

— Como é que isto aconteceu?

O missionário limpou a fuligem no rosto com um lenço.

— Fui eu que fiz isto... Já devia calcular... — Olhou por cima do ombro, na direção da igreja. Além de manchada pelo fumo e pela cinza, não tinha sofrido danos. Cobriu os olhos com as mãos e começou a soluçar. Ficou assim uns segundos, até conseguir falar de novo. — A decisão de enviar o corpo para Manaus foi minha...

Nathan apercebeu-se subitamente da identidade do homem com quem estava a falar.

— Padre Garcia?

Era o padre que tinha encontrado Gerald Clark.

O brasileiro anuiu.

— Que Deus me perdoe.

Nate pegou no braço do padre e conduziu para fora das ruínas enegrecidas até se encontrarem em campos verdes. Apresentou-se rapidamente e continuou a encaminhá-lo na direção da igreja. Encontrou um ranger pelo caminho, coberto de fuligem e suor, e pediu-lhe que fosse chamar os irmãos O’Brien. O soldado assentiu e foi à procura de Kelly e Frank.

Nate guiou o padre pelos degraus de madeira e entrou na igreja. O interior era fresco e sombrio. As filas de bancos envernizados estendiam-se pelo caminho até ao altar e ao gigantesco crucifixo de mogno. O espaço encontrava-se praticamente vazio, com exceção de alguns índios que descansavam exaustos nos bancos e no chão. Nate continuou a avançar e sentou o padre na primeira fila a contar do altar.

Garcia deixou-se ficar com os ombros descaídos, os olhos cravados no crucifixo.

— A culpa é toda minha — murmurou. Depois baixou a cabeça e começou a rezar.

Nathan ficou em silêncio, concedendo ao padre aquele momento privado. Ouviu a porta da igreja abrir-se e olhou por cima do ombro. Frank e Kelly entraram, acompanhados pelo professor Kouwe. Também eles vinham cobertos de fuligem da cabeça aos pés. Nate levantou-se e acenou-lhes.

O padre Garcia interrompeu a oração ao aperceber-se da chegada daquelas três pessoas. Nathan fez as devidas apresentações. Voltando a sentar-se, perguntou:

— Diga-me o que aconteceu, padre. Como começou o incêndio?

Garcia olhou em volta, suspirou profundamente e tornou a baixar a cabeça.

— Foi a minha incapacidade de compreender as coisas...

Kelly sentou-se junto ao padre, do outro lado.

— O que quer dizer com isso? — perguntou, calmamente.

Garcia demorou uns segundos a responder.

— Na noite em que aquele homem saiu da floresta, um xamã dos ianomâmis avisou-me para eu não o receber na missão. Que devia queimar o seu corpo. — O padre fitou Nathan. — Como podia eu fazer uma coisa dessas? O homem tinha uma família algures, certamente. Talvez fosse até cristão.

Nathan deu-lhe uma palmadinha na mão.

— Claro.

— Mas não devia ter ignorado as superstições índias com tanta displicência. Depositei demasiada fé na conversão deles ao catolicismo. — O padre abanou a cabeça. — Quero dizer, eles até foram batizados.

Nate compreendia perfeitamente o que o padre estava a dizer.

— A culpa não é sua. Algumas crenças estão demasiado enraizadas. O batismo não muda nada.

O padre encolheu os ombros.

— Tudo parecia bem, de início. O xamã continuava zangado com a minha decisão de não queimar o corpo, mas aceitou a ideia de que pelo menos tinha despachado o cadáver da aldeia. Isso pareceu apaziguá-lo. Pensei eu.

— O que mudou, entretanto? — perguntou Kelly.

— Uma semana depois, algumas crianças da aldeia adoeceram com febre. Não era novidade nenhuma, e até acontece amiúde, mas o xamã pôs na cabeça que era um sinal de uma maldição causada pelo homem morto.

Nate anuiu. Presenciara situações semelhantes. Em boa parte das tribos, as doenças não eram vistas apenas como males do corpo, mas frequentemente como feitiços lançados por xamãs de aldeias rivais. Tais acusações conduziam por vezes a guerras.

— Não o consegui dissuadir de semelhante ideia e, em poucos dias, adoeceram outras três crianças, uma delas do shabano dos ianomâmis. A aldeia em peso começou a ficar convencida de que se passava alguma coisa de errado. Famílias inteiras partiram assustadas, e não havia uma noite em que não soassem cânticos e tambores. — Garcia fechou os olhos. — Enviei uma mensagem de rádio a pedir ajuda, porém, quando por fim chegou um médico vindo de Junta, nenhum dos índios permitiu que as crianças fossem examinadas. O xamã controlava-os totalmente por essa altura. Ainda implorei, mas eles recusaram qualquer ajuda médica. Em vez disso, entregaram as crianças ao cuidado daquele feiticeiro.

Nathan não gostou da escolha de palavras do padre. Lançou um olhar de relance ao professor Kouwe, que se limitou a abanar a cabeça, indicando-lhe que não dissesse nada.

O padre prosseguiu.

— Então, ontem à noite, uma criança morreu. A comoção foi geral e, para disfarçar o seu falhanço, o xamã declarou que a aldeia estava amaldiçoada. Disse que todos deviam partir quanto antes. Fiz o possível para controlar o pânico, mas era tarde demais. Um pouco antes da madrugada, o xamã e os ianomâmis pegaram fogo à própria casa comunitária e fugiram para a selva. — Garcia começou a chorar. — Aquele monstro... ele deixou as crianças doentes lá dentro. Foram queimadas vivas.

O padre cobriu o rosto com as mãos.

— Com tão pouca gente ainda na aldeia para combater o incêndio, as chamas alastraram-se rapidamente. Se vocês não tivessem chegado, teríamos perdido tudo. A minha igreja, o meu rebanho...

Nathan pousou a mão no ombro do padre e olhou para o irmão de Kelly.

— Não desespere. Ajudamo-lo a reconstruir o que se perdeu.

Frank aclarou a garganta.

— Sim. Uns quantos permanecerão aqui depois de partirmos para a selva. Sendo convidados, não faremos mais do que a nossa obrigação se usarmos os helicópteros para trazer materiais e ajudarmos a erguer a aldeia das cinzas.

O padre sentiu-se mais animado ao ouvir as palavras de Frank. Limpou as lágrimas e o nariz com um lenço.

— Deus vos abençoe — disse.

— Faremos o que pudermos para ajudar, padre — assegurou Kelly. — Mas todos os minutos são cruciais para nós. Precisamos de procurar o rasto do homem, antes que se perca de vez.

— Claro, claro... — anuiu Garcia, com voz cansada. Pôs-se de pé. — Venham, vou contar-lhes tudo o que sei.

A conversa foi rápida. O padre explicou por poucas palavras o que se passara enquanto conduzia o grupo para lá do altar, até às salas comuns da igreja. A sala de jantar fora convertida numa enfermaria para as vítimas de inalação de fumo, mas a maior parte das pessoas não parecia necessitar de grandes cuidados. Garcia contou que convencera um punhado de índios a seguir o rasto do homem morto, pois podia haver outros como ele ainda na selva. O rasto conduzia a um dos afluentes do rio Japurá. Não foi encontrado nenhum barco, mas as pegadas pareciam continuar para oeste, na direção das secções mais remotas da selva. Os batedores índios tiveram medo de ir mais longe.

Kelly espreitou pela janela que dava para o jardim nas traseiras da igreja.

— Quem nos pode mostrar esse afluente?

Garcia acenou com a cabeça. O padre lavara o rosto e parecia mais calmo. A voz tornara-se mais firme à medida que o choque inicial se desvanecia.

— Posso pedir ao meu assistente, Henaowe, para vos mostrar. — Apontou para um pequeno índio.

Nathan ficou surpreendido ao ver que o índio pertencia à tribo dos Ianomâmis.

Garcia suspirou.

— O Henaowe foi o único que ficou. O amor de Jesus Cristo conseguiu salvar ao menos um deles.

O padre fez sinal ao seu assistente e falou rapidamente em ianomâmi. Nathan ficou surpreendido pelo modo como dominava o dialeto.

Henaowe anuiu, mas Nathan conseguia perceber o medo no seu olhar. Tivesse ou não encontrado a salvação em Jesus Cristo, as velhas superstições continuavam a fazer parte de quem era.

O grupo encaminhou-se de volta para o exterior. O calor húmido envolveu-os como um cobertor de lã molhado. Contornaram os helicópteros e encontraram os rangers reunidos. Os homens tinham estado ocupados. Havia uma fila de pesadas mochilas no chão. Um soldado aguardava atrás de cada uma.

O capitão Waxman passava revista aos homens e ao equipamento. Avistou o grupo de Nate e endireitou as costas.

— Podemos partir a qualquer momento — anunciou. Com quarenta e poucos anos, Waxman era o típico militar de carreira: rosto empedernido, ombros largos, o uniforme impecavelmente engomado, o cabelo castanho cortado rente.

— Estamos prontos — disse Frank. Apontou com o queixo na direção do pequeno índio. — E temos alguém para nos indicar o caminho.

O capitão assentiu e virou-se para os homens.

— Preparem-se para partir! — berrou.

Kelly conduziu o grupo na direção de outra fila de mochilas, estas com metade do tamanho das que equipavam os rangers. Ali, Nathan reencontrou os últimos membros da equipa. Anna Fong conversava com Richard Zane, ambos vestidos com calças e camisas caqui com o logótipo da Tellux nos ombros. Olin Pasternak também estava com eles. O homem marcado por cicatrizes usava um macacão cinzento bastante usado, embora limpo, e umas botas pretas. Agachou-se para pegar na mochila maior. Nate sabia que continha o equipamento de comunicação via satélite. Porém, ao endireitar-se, a atenção dele não estava focada no conteúdo frágil da mochila, mas no último membro da expedição. Melhor dizendo, nos dois últimos membros.

Nate sorriu. Não via Manny desde que tinham deixado São Gabriel. O biólogo brasileiro voara noutro helicóptero. O motivo para viajar separado da equipa era óbvio. Manny acenou a Nate. Segurava o chicote numa das mãos e uma trela na outra.

— Então, como é que o Tor-tor se portou? — perguntou Nate.

Manny fez uma festa no jaguar de noventa quilos.

— Como um gatinho. Não há nada que a química moderna não resolva.

Nate observou o animal. Parecia ainda meio zonzo do tranquilizante. Todo ele era músculo, com a pelagem cor de laranja a reluzir sob o sol matinal. Tor-tor esticou o pescoço para cheirar as calças de Nate. Reconhecendo o cheiro, esfregou o focinho contra o tecido.

— O que se há de fazer? — disse Manny, rindo-se. — Ele sempre gostou de ti.

Nate agachou-se e afagou o pescoço e o queixo do animal, o que lhe mereceu um rugido de apreço.

— Está muito maior desde a última vez que o vi.

Olin Pasternak, que observava a cena, franziu a testa e murmurou qualquer coisa entre dentes, nitidamente pouco impressionado com o novo elemento da equipa.

Nathan pôs-se de pé. A presença do jaguar na expedição não fora uma decisão pacífica, mas Manny insistira em levá-lo. Tor-tor encontrava-se no limiar da maturidade sexual e precisava de passar tempo na selva. A longa caminhada seria benéfica para o felino. Além disso, encontrava-se bem treinado por Manny e podia revelar-se útil, tanto em termos de proteção como para detetar rastos.

Nathan apoiara a decisão. Se a equipa desejava conseguir qualquer tipo de ajuda dos nativos, a presença de Tor-tor podia constituir um fator determinante para lhes conquistar a confiança. Os jaguares eram venerados pelos índios. A equipa só tinha a ganhar com a inclusão do animal na expedição.

Anna Fong concordara. Frank e o capitão Waxman tinham oferecido mais resistência, mas acabaram por ceder.

À distância, Kelly lançou um olhar ao felino.

— É melhor prepararmo-nos.

Nathan anuiu e pegou na mochila. Continha apenas o essencial: cama de rede, mosquiteiro, rações secas, muda de roupa, machete, cantil e filtro de água. Conseguia viajar meses na selva com pouco mais que aquilo. Com toda a riqueza de recursos disponíveis na floresta — fruta variada e bagas, raízes e plantas comestíveis, animais para caçar e pescar —, não havia necessidade de transportar comida adicional.

Ainda assim, havia algo que Nathan não podia dispensar naquele ambiente. Pegou na caçadeira de canos serrados e pendurou-a ao ombro. Embora a equipa contasse com a proteção dos rangers, sentia-se mais descansado se levasse a sua arma.

— Vamos — disse Kelly. — Já perdemos boa parte da manhã por causa do incêndio. — A americana colocou a mochila aos ombros, e Nate não evitou reparar nas suas longas pernas, no modo como enchiam as calças caqui. Forçou-se a desviar o olhar para cima. A mochila exibia uma cruz vermelha, assinalando a posição de Kelly enquanto responsável médica da expedição.

Frank passou em revista uma última vez os elementos civis da missão, certificando-se de que estavam prontos. Parou em frente a Nate, retirou um velho boné do bolso traseiro das calças e enfiou-o na cabeça.

Nate reconheceu o boné. Frank usava-o quando os dois se conheceram no hospital de São Gabriel.

— Adepto?... — perguntou, apontando para o logótipo dos Boston Red Sox.

— Sim, e é também o meu boné da sorte — respondeu Frank. Virou-se para o grupo. — Vamos a isto!

De forma ordeira, a equipa de dezoito elementos pôs-se em movimento, conduzidos temporariamente pelo pequeno índio de olhos arregalados.

Kelly nunca tinha estado na selva. Preparara-se para a expedição lendo livros e uma coleção de artigos variados, mas a primeira impressão da floresta não foi a que esperava.

Enquanto caminhava atrás dos quatro rangers que seguiam à frente, não conseguia deixar de se sentir fascinada com o ambiente. Ao contrário do que se via nos filmes, a realidade da floresta Amazónica em nada se assemelhava com uma massa intransponível de lianas e vegetação exuberante. Em vez disso, tinha-se a sensação de caminhar ao longo de uma imensa catedral verde. As copas das árvores entrelaçavam-se umas nas outras, formando um teto compacto que absorvia quase totalmente a luz solar e mergulhava tudo numa espécie de negrume e brilho esverdeado. Kelly lera que menos de dez por cento da energia solar conseguia perfurar aquele teto e atingir o chão da floresta. Como tal, o nível inferior da selva, onde se encontravam, era surpreendentemente despojado de vegetação. Ali em baixo, a selva era constituída por um mundo de sombra e decomposição, o domínio de insetos, fungos e raízes.

Ainda assim, a ausência de vegetação não tornava a caminhada mais fácil. Os troncos e os ramos apodrecidos multiplicavam-se cobertos de bolor amarelado e cogumelos brancos. Uma camada escorregadia de folhas podres dificultava cada passo, ao mesmo tempo que as raízes serpenteantes que suportavam as gigantescas árvores potenciavam o risco de torcer um pé a qualquer instante.

O facto de a vegetação ser escassa não queria dizer que fosse inexistente. Por todo o lado despontavam fetos, bromeliáceas, orquídeas e palmas, a que se juntavam as omnipresentes cortinas de lianas.

Um estalar súbito fê-la olhar para trás.

O irmão esfregou o pescoço.

— Malditas moscas!

Kelly enfiou a mão no bolso e entregou ao irmão uma embalagem de repelente de insetos.

— Põe mais um pouco.

Frank esfregou o produto nos braços e no pescoço.

Nathan foi ao encontro dos dois. Trazia na cabeça um chapéu australiano que lhe dava um ar de Indiana Jones com um toque de Crocodile Dundee. Os olhos azuis cintilavam de divertimento.

— Esse repelente não lhe serve de nada — disse para Frank. — Tudo o que puser na pele desaparece numa questão de minutos com a transpiração.

Kelly não podia contrariar aquela afirmação. Em quinze minutos de caminhada, sentia-se a escorrer suor da cabeça aos pés. O nível de humidade no ar devia situar-se perto dos cem por cento.

— O que sugere, então?

Nate encolheu os ombros e sorriu.

— Ignorem os insetos. Aceitem o inevitável. É uma batalha que não podem vencer. Neste mundo impera a regra de comer ou ser comido, e por vezes não temos alternativa senão pagar o preço.

— Com o meu sangue? — perguntou Frank.

— E não se queixe muito. As moscas são o menor dos seus problemas. Existem aqui insetos muitos piores, e não estou a falar apenas dos grandes, como as tarântulas comedoras de aves ou os escorpiões pretos. São os mais pequenos que nos tramam a sério. Já ouviu falar do inseto assassino?

— Não creio — disse Frank.

Kelly também abanou a cabeça.

— Bom, este bicharoco tem o péssimo hábito de morder e defecar em simultâneo. Quando a vítima esfrega o local da mordida, introduz as fezes contaminadas com o protozoário Trypanosoma cruzi na corrente sanguínea. Um a vinte anos depois, a vítima morre de ataque cardíaco ou de acidente vascular cerebral.

Frank empalideceu e parou imediatamente de coçar a picada da mosca.

— E também temos o mosquito-negro, ou borrachudo, que transmite vermes capazes de causar cegueira, e o mosquito-palha, claro, que provoca a leishmaniose, uma doença semelhante à lepra.

Kelly franziu o sobrolho. Nate estava nitidamente a tentar assustar o irmão.

— Estou a par de todas as doenças transmissíveis que aqui existem — disse. — Febre-amarela, dengue, malária, cólera, tifo... — Ajustou a mochila nos ombros. — Vim preparada para o pior.

— Ah, sim? E veio preparada para o candiru?

A pergunta apanhou Kelly em contrapé.

— Que doença é essa?

— Não é uma doença — explicou Nate. — É um peixe minúsculo, bastante comum nestas águas. Há quem lhe chame peixe-palito. É uma criatura esguia, com cerca de cinco centímetros de comprimento, e costuma viver como parasita nas guelras de peixes maiores. O passatempo preferido deste peixe é enfiar-se e alojar-se na uretra de um homem.

— Desculpe? — disse Frank, contraindo o rosto.

— Ele abre as barbatanas e fixa-se aí, bloqueando a bexiga, e uma pessoa morre em vinte e quatro horas, num sofrimento atroz.

— E como é que o podemos retirar?

Por aquela altura, Kelly já tinha reconhecido a descrição do pequeno peixe e dos respetivos hábitos tenebrosos. Lembrava-se de ter lido sobre o assunto. Virou-se para o irmão e, sem fazer cerimónia, disse:

— Se não houver um hospital por perto, a única solução é cortar o pénis da vítima.

Frank estremeceu, levando instintivamente as mãos às virilhas.

— Cortar o pénis?

Nate encolheu os ombros.

— Bem-vindo à selva.

Kelly lançou um olhar a Nate. Sabia que ele estava a querer assustar o irmão, mas reconhecia que não passava de uma brincadeira.

— Naturalmente — prosseguiu Nate —, não nos podemos esquecer das cobras.

— E eu acho que já ouvimos o suficiente — disse o professor Kouwe, juntando-se aos irmãos e salvando-os de continuarem a assistir à palestra do doutor Nathan Rand. — Embora a selva tenha de ser respeitada por todos os seus perigos, tal como o Nate explicou tão eloquentemente, é também um lugar de grande beleza. A sua capacidade para nos curar é tão prodigiosa como a de nos infligir doenças.

— E é por isso que aqui estamos — disse uma voz nas costas de todos.

Kelly virou-se e encontrou o doutor Richard Zane. Anna Fong e Olin Pasternak conversavam mais atrás e, para lá destes, Manny Azevedo acompanhava o jaguar, seguido pelo punhado de rangers que fechava o grupo.

Kelly virou-se de novo para a frente e apercebeu-se de que o sorriso de Nate desaparecera. A sua expressão endurecera diante do representante da Tellux.

— E pode saber-se o que conhece da selva? — perguntou Nate. — Há quatro anos que não o vejo colocar um pé fora dos escritórios da Tellux em Washington. Desde a altura em que o meu pai desapareceu, se não estou em erro.

Zane coçou a barbicha, mantendo uma postura corporal descontraída, mas Kelly apercebeu-se da centelha de raiva no olhar.

— Sei o que pensa de mim, doutor Rand. Foi uma das razões por que me ofereci para esta expedição. Sabe, eu era muito amigo do seu...

Nathan deu um passo na direção dele, o punho erguido no ar.

— Não se atreva! — gritou-lhe. — Não se atreva a dizer que era amigo do meu pai! Eu fui ter consigo, supliquei-lhe para continuar as buscas mesmo tendo o Governo desistido de o fazer. E o senhor recusou. Li o memorando que enviou de Brasília para os Estados Unidos. «Não vejo benefícios na contínua aplicação de recursos da Tellux numa busca infrutífera pelo paradeiro do doutor Carl Rand. O nosso dinheiro deve ser gasto em novos projetos.» Lembra-se destas palavras? São as palavras que condenaram o meu pai! Se tivesse pressionado a direção, talvez...

— O resultado seria exatamente o mesmo — disse Zane, cerrando os maxilares. — Não seja ingénuo, a decisão foi tomada muito antes de eu enviar esse memorando.

— Isso é mentira! — ripostou Nathan.

— A Tellux foi alvo de mais de trezentas ações judiciais por causa do que aconteceu. Ações movidas por familiares, investidores, companhias de seguros, Governo brasileiro e NSF. Fomos atacados de todos os lados ao mesmo tempo. Foi por causa disso que fizemos a fusão com a Eco-Tek. Ajudou-nos a suster o ataque de farmacêuticas rivais, que nos rondavam como tubarões pela sangria financeira a que estivemos sujeitos. Não podíamos continuar a financiar uma busca que nunca daria em nada. Deparávamo-nos com problemas bem maiores.

Nate não parecia minimamente apaziguado pela explicação.

— A decisão já tinha sido tomada — repetiu Zane.

— Perdoe-me por não verter lágrimas por causa da preciosa Tellux.

— Se tivéssemos perdido essa batalha, milhares de pessoas ficariam sem emprego. Não vou pedir desculpa pelas decisões difíceis que foram tomadas no processo.

Nate e Zane continuaram a fitar-se um ao outro.

O professor Kouwe procurou acalmar os ânimos.

— Por enquanto, deixemos o passado onde está. Se quisermos ter êxito, calculo que teremos de trabalhar juntos. Sugiro umas tréguas.

Houve um momento de impasse. Por fim, Zane estendeu a mão.

Nate desviou o olhar para a mão estendida e limitou-se a virar as costas.

— Vamos continuar — disse.

Zane abanou a cabeça e baixou o braço. Virou-se para o professor.

— Obrigado por tentar.

Kouwe ficou a ver Nate afastar-se.

— Dê-lhe tempo. Ele tenta disfarçar, mas ainda está a sofrer muito. Acho que nem sequer digeriu o que descobriu ontem. — O professor suspirou. — As coisas hão de melhorar com o tempo.

Kelly também observava Nathan, o modo rígido como caminhava, com os ombros tensos. Tentou imaginar como seria ficar sem o pai e a mãe, mas era uma perda que nunca conseguiria compreender. Aquilo era um poço de dor do qual não sabia se seria capaz de escapar. Sobretudo sozinha.

Olhou para o irmão, sentindo-se feliz de o ter ali consigo.

Ouviu-se um grito mais à frente. Um ranger chamava-os.

— Chegámos ao rio!

À medida que o grupo seguia paralelo ao rio, Nathan foi-se deixando ficar para trás. À direita, apanhava vislumbres da água por entre os arbustos que acompanhavam as margens do pequeno afluente. Há quatro horas que seguiam o curso do rio, e Nathan calculava que deviam ter percorrido cerca de dezanove quilómetros. Avançavam lentamente, o que permitia a um dos rangers, um cabo chamado Nolan Warczak, um batedor experiente, mantê-los no caminho certo.

Um guia índio seria capaz de avançar com mais confiança e imprimir um ritmo mais forte ao grupo, porém, depois de alcançarem o rio, o pequeno ianomâmi recusara-se a prosseguir, limitando-se a apontar para as pegadas bem marcadas que seguiam na direção da floresta profunda.

— Vocês continuar — murmurara num português tosco. — Eu ficar com padre Garcia.

E assim continuaram, determinados a cobrir o máximo de terreno antes de anoitecer. O problema era que o cabo Warczak não gostava de se precipitar e avançava a passo de caracol. O ritmo lento proporcionava a Nathan a oportunidade de refletir sobre a discussão acalorada com Richard Zane. Levou quatro horas a acalmar-se para digerir as palavras do homem da Tellux com mais lucidez. Interrogou-se se, durante anos, a raiva lhe permitira considerar todos os fatores envolvidos.

À esquerda, os estalidos de ramos secos a partirem-se anunciaram a presença de Manny. O amigo guardara alguma distância do grupo. Os rangers não gostavam de estar demasiado perto de Tor-tor, o que se notava pelo modo como os dedos nervosos teimavam em repousar sobre os gatilhos das M16. O único que mostrara alguma curiosidade com o jaguar fora o cabo Dennis Jorgensen, pelo que caminhava ao lado de Manny, procurando saber mais sobre o grande felino.

— Quanto é que ele come num dia? — perguntou. O ranger, que era bastante alto, tirou o chapéu e limpou o suor da testa. Os cabelos louros eram quase brancos e tinha olhos azul-claros, o que denunciava a sua ascendência nórdica.

Manny deu uma palmadinha no dorso do jaguar.

— À volta de quatro quilos de carne, mas tem uma vida bastante sedentária. Na natureza, teria de comer o dobro.

— E como vai alimentá-lo aqui?

Manny acenou com a cabeça ao juntar-se a Nate.

— Vai ter de caçar. Foi por isso que o trouxe.

— E se não conseguir?

Manny apontou com o queixo para os soldados que seguiam mais atrás.

— Nesse caso, terá de encontrar outras fontes de proteína.

A expressão de Jorgensen alterou-se por completo, mas depois percebeu que Manny estava a brincar e deu-lhe um toque com o cotovelo.

— Essa foi boa — disse, e regressou para junto dos companheiros.

Manny virou-se para Nate.

— Como vai isso? Ouvi dizer que tiveste uma troca de mimos com o Zane.

Nate suspirou.

— Está tudo bem. — Tor-tor deu-lhe uma pancadinha com o focinho, e Nate esfregou-lhe o cachaço. — Sinto-me apenas um pouco tolo.

— Não tens razão para isso. Confio tanto nele que, se necessário fosse, em última instância, deixaria que o Tor-tor o comesse vivo. O que, acredita, não seria difícil. Viste a fatiota que traz vestida? Achas que faz alguma ideia do que é a selva?

Nate riu-se.

— Já a doutora Fong — prosseguiu Manny —, parece-me muito bem naquela roupa. — Ergueu a sobrancelha. — Tenho a certeza de que não a expulsava da minha cama por comer bolachas. E aquela Kelly O’Brien...

Uma agitação súbita interrompeu Manny. Mais à frente, vozes elevaram-se e o grupo deteve-se junto a uma curva do rio. Manny e Nate correram ao encontro dos companheiros.

Nate encontrou a doutora Fong e o professor Kouwe agachados junto a uma canoa. A embarcação fora arrastada para a margem e coberta com folhas de palmeira.

— O rasto termina aqui — disse Kelly, a seu lado.

Nathan olhou para ela. O rosto da médica brilhava com gotas de suor, e os cabelos encontravam-se puxados para trás com um lenço verde a servir de badana.

O professor levantou-se. Segurava uma folha de palmeira.

— Estas folhas foram arrancadas de uma palmeira mwapu. — Mostrou a ponta do caule aos companheiros. — Vejam, não foi cortada.

Kelly anuiu.

— O agente Clark não tinha facas quando foi encontrado.

O professor examinou as pontas secas e amareladas da folha.

— Pelo que vejo, diria que foi arrancada há duas semanas, mais ou menos.

Frank aproximou-se para ver melhor.

— Foi aproximadamente nessa altura que o agente Clark apareceu na missão.

— Exato.

— Não há dúvida de que deve ter usado a canoa para aqui chegar — disse Kelly, excitada com a descoberta.

Nathan estudou a secção do rio. Ambas as margens exibiam densas muralhas de vegetação: videiras, palmas, arbustos, musgo, figueiras mata-pau e fetos. O próprio rio tinha uns dez metros de largura, uma torrente castanha opaca. Mais perto das margens, a água era suficientemente cristalina para se ver o leito lamacento e rochoso, mas a visibilidade diminuía em pouco mais de um metro.

Só Deus sabia o que se escondia naquelas águas: cobras, jacarés, piranhas. Talvez até houvesse um peixe-gato grande o suficiente para arrancar um pé à dentada a uma pessoa.

O capitão Waxman interveio.

— Bom, o que se segue? Podemos pedir para nos enviarem uns botes insufláveis, mas e depois? Não temos forma de saber de onde veio o agente Clark.

Anna Fong ergueu a mão no ar.

— Acho que posso responder a essa pergunta. — Afastou algumas folhas de cima da canoa. — Pela maneira como esta canoa foi esculpida, e pelas bordas pintadas de vermelho, diria que pertence aos Ianomâmis. Só eles constroem canoas assim.

Nate ajoelhou-se e passou os dedos pela parte de dentro da embarcação.

— A doutora Fong tem razão. O agente Clark deve ter obtido esta canoa dos índios, ou roubado. Se viajarmos rio acima, podemos perguntar a qualquer uma das tribos ianomâmis se viram passar um homem branco ou se deram por falta de uma canoa. — Virou-se para Kelly e Frank. — A partir daí, podemos procurar outra vez o rasto.

Frank virou-se para o líder dos rangers.

— Disse que podia pedir uns botes insufláveis.

O capitão anuiu.

— Vou transmitir a nossa posição e pedir para os Hueys nos trazerem os barcos. Vamos perder o resto do dia, por isso, mais vale ficarmos por aqui.

Com um plano definido, o grupo atarefou-se a montar o acampamento junto ao rio. Foi preparada uma fogueira. Kouwe colheu cajás e nozes da floresta em redor, enquanto Manny, tendo libertado o jaguar para caçar, usou uma vara e uma rede para pescar um punhado de trutas.

Ao longo de uma hora, o rugido dos rotores dos helicópteros agitou a floresta, espantando aves e macacos. Três enormes caixotes foram descidos até à água e puxados para a margem com cordas. Lá dentro encontravam-se os barcos insufláveis equipados com motor, os Zodiacs, a que os Rangers chamavam «assaltantes de borracha». Pela altura em que o Sol começara a descer no horizonte, as três embarcações pretas estavam já ancoradas na margem e prontas para a viagem do dia seguinte.

Enquanto os rangers trabalhavam, Nathan montara a cama suspensa e estendia agora o mosquiteiro. Olhou na direção de Kelly e percebeu que ela não sabia bem como fazer aquilo.

— O mosquiteiro não pode tocar na cama — explicou Nate. — Caso contrário, a bicharada consegue morder-lhe através do tecido.

— Eu consigo fazer isto — disse Kelly, embora a expressão frustrada indicasse o contrário.

— Espere, deixe-me mostrar-lhe.

Nate pegou numas pedrinhas e em ramos secos e usou-os para fixar o rebordo do mosquiteiro no chão, em volta da cama, como uma espécie de tenda diáfana.

Ao lado, Frank lutava com o mesmo problema.

— Não sei porque não podemos usar os sacos-cama. Nunca me deram problemas de todas as vezes em que acampei.

— Isto é a selva — respondeu Nate. — Se dormir no chão, vai acordar acompanhado de todo o tipo de criaturas desagradáveis. Cobras, lagartos, escorpiões. Mas sinta-se à vontade de fazer como entender.

Frank resmungou qualquer coisa, mas continuou a debater-se para fazer as coisas à sua maneira.

— Pronto, eu durmo na porcaria da cama de rede. Mas de que serve o mosquiteiro? Passamos o dia inteiro a ser mordidos pelos mosquitos.

— À noite, os mosquitos são mil vezes piores. E se não lhe sugarem o sangue até à última gota, os morcegos-vampiros encarregam-se disso.

— Morcegos-vampiros? — perguntou Kelly.

— Estão por toda a parte. À noite, precisamos de ter cuidado até para ir à casa de banho. Eles atacam mal cheiram sangue quente.

Kelly arregalou os olhos.

— Está vacinada contra a raiva, certo? — perguntou Nate.

A médica fez que sim lentamente com a cabeça.

— Menos mal.

Kelly olhou para a cama e para o mosquiteiro que ele ajudara a montar, depois virou-se e ficou com o rosto a centímetros de Nate, quando ele se pôs de pé.

— Obrigada.

Uma vez mais, Nathan ficou como que hipnotizado pelos olhos dela, aquele verde-esmeralda, com uma centelha de dourado.

— De... de nada — balbuciou. Desviou o olhar na direção da fogueira. Os outros preparavam-se para jantar. — Bom, e se fôssemos ver o que há para comer?

Junto à fogueira, o fogo não era a única coisa inflamada. Nathan encontrou Manny e Richard Zane envolvidos numa acesa discussão.

— Como é que alguém pode ser contra as restrições à indústria madeireira? — disse Manny, agitando a frigideira ao lume com os filetes de peixe. — A exploração desenfreada das florestas é um flagelo mundial. Na Amazónia perde-se um hectare de floresta por segundo.

Richard Zane encontrava-se sentado num tronco. Despira o casaco caqui e arregaçara as mangas da camisa, como que preparado para se envolver numa luta a punhos a qualquer momento.

— Essas estatísticas são manifestamente exageradas pelos ambientalistas. São baseadas em má ciência e servem mais para assustar do que educar. As imagens de satélite, que representam uma forma de prova muito mais realista do que se passa, mostram que noventa por cento da floresta amazónica permanece intacta.

Manny sentiu-se prestes a explodir.

— Mesmo que o ritmo de destruição não seja aquele que os ambientalistas apregoam, o que está perdido está perdido para sempre. Estamos a matar em média cem espécies de plantas e animais por dia. São danos irreparáveis.

— É você que o diz — respondeu Zane, com toda a calma do mundo. — A ideia de que a floresta não se regenera a si mesma é um mito ultrapassado. Ao fim de oito anos de exploração comercial das florestas tropicais da Indonésia, a taxa de recuperação de plantas e animais autóctones supera todas as expectativas. E aqui passa-se o mesmo. Em 1982, empresas de minério arrasaram uma boa secção de floresta no oeste do Brasil. Quinze anos depois, os cientistas descobriram que a floresta rejuvenescida era em tudo igual à restante. Estes exemplos confirmam a ideia de que a exploração comercial sustentável é possível, e que o homem e a natureza podem coexistir em lugares como este.

Nathan deu por si arrastado para a discussão. Como é que este idiota pode defender a destruição da floresta tropical?

— E o que tem a dizer dos agricultores que queimam secções de floresta para culturas? Calculo que também os defenda?

— Claro — respondeu Zane. — Nos Estados Unidos, acreditamos que os fogos em florestas amadurecidas até são úteis. Em ocorrências periódicas, servem para baralhar as coisas. Não vejo razão para aqui ser diferente. Quando as espécies dominantes são removidas, isso oferece uma oportunidade de crescimento às chamadas «espécies suprimidas», os arbustos e as plantas mais pequenos. Em bom rigor, é nestas espécies que encontramos as melhores características medicinais. Portanto, não vejo mal nenhum nisso.

A voz de Kelly rompeu o silêncio.

— Isso era tudo muito bonito se não estivesse a ignorar as implicações globais, como o efeito de estufa. As grandes florestas tropicais são os proverbiais pulmões do planeta, a nossa maior fonte de oxigénio.

— Receio que isso seja outro mito — retorquiu Zane, com um certo ar de pesar. — Os dados mais recentes de satélites de meteorologia mostram que as grandes florestas tropicais contribuem pouco ou nada para o fornecimento de oxigénio no planeta. São sistemas fechados. Embora as árvores produzam abundantes quantidades de oxigénio, é na maioria absorvido pelos processos de decomposição ao nível do solo, o que se traduz num resultado nulo. Uma vez mais, os únicos locais onde se assiste a resultados positivos de criação de oxigénio são precisamente aqueles onde existe rejuvenescimento da floresta, e isso deve-se à abundância de árvores novas. Como se vê, a desflorestação controlada é benéfica para a atmosfera do planeta.

Nathan ouviu os argumentos de Zane, sentindo-se dividido entre a incredulidade e a raiva.

— E as pessoas que habitam as florestas? Nos últimos quinhentos anos, o número de tribos indígenas diminuiu de dez milhões para duzentos mil. Calculo que isso também seja bom?

Zane abanou a cabeça.

— Claro que não. E essa é a verdadeira tragédia. Quando um xamã morre sem ter oportunidade de transmitir o seu conhecimento, o mundo inteiro sofre uma perda irreparável. É uma das razões por que tenho lutado para que o Nate continue a receber financiamento para o seu trabalho com estes povos indígenas. A meu ver, a sua pesquisa é preciosa.

Nate lançou-lhe um olhar desconfiado.

— Mas a floresta e estes povos estão intimamente interligados. Mesmo que tudo isso seja verdade, a desflorestação destrói algumas espécies. Esse facto é indiscutível.

— Verdade. Mas os movimentos ecológicos tendem a exagerar no que toca aos números.

— Mesmo assim, a perda de uma única espécie pode ser crucial. Dou-lhe o exemplo da vinca-de-madagáscar.

Zane sentiu-se apanhado em contrapé.

— Bem, essa é sem dúvida uma rara exceção. Descobertas dessas não ocorrem todos os dias.

— Vinca-de-madagáscar? — perguntou Kelly, confusa.

— Esta pequena planta endémica de Madagáscar é a fonte de dois poderosos medicamentos anticancerígenos, a vimblastina e a vincristina.

Kelly arregalou os olhos.

— Substâncias usadas no tratamento da doença de Hodgkin, linfomas e numerosos cancros na infância.

Nate anuiu.

— Estas drogas milagrosas salvam milhares de crianças todos os anos. Mas a planta que as gerou encontra-se atualmente extinta. E se não tivéssemos descoberto estas propriedades a tempo? Quantas crianças teriam morrido?

— Como fiz questão de salientar, estamos a falar de uma descoberta rara — insistiu Zane.

— E como é que sabe isso? Estatísticas, imagens de satélite, nada disso invalida um único facto: todas as plantas têm um potencial para curar, e cada espécie é preciosa. Quem poderá dizer quais as drogas que corremos o risco de perder por causa da desflorestação? Que planta rara poderá guardar a cura para a sida? Para a diabetes? Para os milhares de cancros que atormentam a humanidade?

— Ou até para a regeneração total de um braço perdido? — acrescentou Kelly, oportunamente.

Richard Zane franziu o sobrolho e fitou as chamas.

— Sim, quem sabe?

— Exatamente — concluiu Nate.

Frank aproximou-se da fogueira, alheio à discussão que acabara de ocorrer.

— Está a queimar o peixe — disse, apontando para o fumo negro que subia da frigideira esquecida ao lume.

Manny riu-se e retirou a frigideira.

— Graças a Deus pelo sentido de oportunidade do senhor O’Brien, ou jantávamos rações frias.

Frank deu um toque de cotovelo a Kelly.

— O Olin já conseguiu estabelecer a ligação com o satélite. Devemos poder ligar para os Estados Unidos dentro de uma hora.

— Ótimo. — Kelly olhou na direção onde Olin Pasternak se ocupava de volta de uma pequena antena parabólica e de um computador portátil. — Talvez consigamos algumas respostas da autópsia ao agente Clark. Qualquer coisa que nos ajude.

Nate escutou as palavras da médica. Talvez tivesse que ver com o facto de se encontrar a fitar as chamas, mas tinha o pressentimento de que, se calhar, deviam ter dado ouvidos ao xamã no que tocava a queimar o cadáver. Tal como discutira com Richard Zane momentos antes, não havia ninguém mais conhecedor dos mistérios da selva que os índios. Na boesi, ingi sabe ala sani. Na selva, o índio sabe tudo.

Fitou a floresta ensombrecida à medida que o Sol se escondia no horizonte. Ali sentado, a ouvir a selva acordar num coro de guinchos e chamamentos solitários, os mitos da floresta profunda ganhavam forma e substância.

Incluindo a maldição dos Ban-ali.


5

PESQUISA DE CÉLULAS ESTAMINAIS

7 de agosto, 17h32

Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren O’Brien encontrava-se debruçada sobre o microscópio quando chegou a chamada do laboratório de autópsias.

— Rai’s partam — murmurou, incomodada pelo tocar do telefone. Endireitou-se, fez deslizar os óculos de leitura da testa para a ponta do nariz e premiu a tecla de alta-voz. — Histologia — disse.

— Doutora O’Brien, penso que é melhor vir aqui ver isto.

A voz era de Stanley Hibbert, o patologista forense da Universidade Johns Hopkins e colega da MEDEA. Stanley fora requisitado para acompanhar a autópsia de Gerald Clark.

— Estou ocupada com as amostras de tecidos. Ia precisamente começar a examiná-las.

— Confirmou as minhas suspeitas acerca das lesões orais?

Lauren suspirou.

— Sim, parece que estava certo. Carcinoma de células escamosas. Pelo elevado grau de mitose e perda de diferenciação, classificaria a malignidade como «tipo um», uma das piores que já encontrei.

— Quer dizer que a língua da vítima não foi cortada. Limitou-se a apodrecer por causa do cancro.

Lauren sacudiu um arrepio pouco profissional. A boca do homem estava minada de tumores. A língua não passava de um cepo ensanguentado, completamente devorada pelo carcinoma. E não era o único mal de que o homem padecia. Durante a autópsia verificara-se que o corpo inteiro apresentava vários tipos de cancro em diferentes estádios de desenvolvimento. Havia tumores nos pulmões, rins, fígado, baço, pâncreas. Lauren olhou de relance para a pilha de lamelas preparadas pelo laboratório de histologia, cada uma contendo secções dos diferentes tumores e amostras de medula óssea.

— Alguma estimativa de quando terá surgido o cancro oral? — perguntou o patologista.

— É difícil dizer com certeza, mas apontaria para umas seis ou oito semanas antes da morte.

Ouviu-se um assobio no outro lado da linha.

— Isso é muito rápido.

— Eu sei. E pelo que observei até agora nas outras lamelas, os tipos de malignidade são idênticos. Não consigo encontrar um único tumor com mais de três meses. — Lauren pousou o dedo na pilha de lâminas de vidro. — Por outro lado, ainda falta examinar umas quantas.

— E os teratomas?

— A mesma coisa. Entre um a três meses, mas...

O doutor Hibbert cortou-lhe a palavra.

— Valha-me Deus, isso não faz sentido nenhum. Nunca vi tantos tumores num único sujeito. Sobretudo teratomas.

Lauren compreendia o espanto do patologista. Os teratomas eram tumores císticos das células estaminais embrionárias, as raras células germinativas capazes de se desenvolver em qualquer tipo de tecido, desde músculo, cabelo, osso. Os tumores nesse tipo de célula estavam por norma circunscritos a órgãos como o timo ou os testículos. No caso de Gerald Clark, encontravam-se por toda a parte, e esse nem era o pormenor mais invulgar.

— Stanley, não estamos a falar apenas de teratomas. Na verdade, são teratocarcinomas.

— O quê? Todos eles?

Lauren acenou com a cabeça, depois apercebeu-se de que estava a falar ao telefone.

— Todos eles — disse.

O teratocarcinoma constituía a versão mais maligna de um teratoma, um tipo de cancro desenfreado que se desenvolvia sob a forma de músculo, cabelo, dentes, osso ou nervos.

— Nunca observei amostras como estas. Encontrei secções de fígados parcialmente formados, tecido testicular, até gânglios nervosos.

— Nesse caso, isso poderá explicar o que encontrámos — disse o patologista.

— Como assim?

— Volto a dizer, é melhor vir aqui ver com os seus olhos.

— Está bem — suspirou Lauren, contrariada. — Vou já.

Lauren desligou a chamada, levantou-se e esticou as costas. Há duas horas que se encontrava de volta das amostras de tecidos. Pensou em ligar ao marido, mas calculou que estivesse tão ocupado no quartel-general da CIA quanto ela. Além disso, teriam oportunidade de falar quando se juntassem à videoconferência com Frank e Kelly, o que deveria acontecer dentro de uma hora.

Agarrando na bata branca, encaminhou-se na direção da porta e desceu as escadas até ao laboratório de autópsias do instituto. Sentiu um arrepio na espinha. Embora fosse médica e tivesse trabalhado no serviço de urgências durante dez anos, as autópsias ainda lhe faziam impressão. Preferia as instalações assépticas da histologia às serras de osso, marquesas de aço inoxidável e balanças do laboratório de autópsias. Mas não tinha escolha.

Percorrendo o longo corredor em direção às portas duplas do laboratório, deu por si a pensar no misterioso caso entre mãos. Gerald Clark estava desaparecido há quatro anos quando emergiu da selva com um braço novo, o que constituía uma cura milagrosa. Por outro lado, trazia o corpo minado por tumores, um ataque cancerígeno iniciado três meses antes. O que podia ter causado aquilo? Como se explicava a invulgar existência dos monstruosos teratocarcinomas? Por fim, por onde andara Gerald Clark durante quatro anos?

Abanou a cabeça. Era demasiado cedo para obter respostas. Acreditava, porém, na medicina moderna. Entre a sua pesquisa e o trabalho de campo dos filhos, o mistério acabaria por ser resolvido.

Parou no vestiário, calçou os protetores de calçado e aplicou uma porção de Vicks Vaporub sob o nariz, o que servia para disfarçar os maus cheiros no laboratório de autópsias. Por fim, colocou a máscara cirúrgica e entrou.

O que encontrou parecia saído de um filme de terror. O corpo de Gerald Clark estava estendido numa marquesa. O modo como fora aberto lembrava uma rã dissecada numa aula de biologia. Metade dos órgãos encontrava-se enfiada em sacos de desperdícios biológicos ou em cima de balanças de aço inoxidável. No outro lado da divisão guardavam-se amostras de tecidos em recipientes com formol e nitrogénio líquido. Mais tarde, Lauren receberia o resultado daquele trabalho na forma de lamelas prontas para ser examinadas ao microscópio — mais de acordo com as suas preferências.

Assim que entrou na divisão, alguns dos odores mais intensos — lixívia, sangue, intestinos e gases necróticos — sobrepuseram-se aos vapores mentolados do Vicks. Concentrou-se em respirar apenas pela boca.

Homens e mulheres em batas ensanguentadas andavam por ali numa azáfama, indiferentes ao horror da cena. Tratava-se de uma operação eficiente, uma dança macabra executada por profissionais.

Um homem alto e esquelético ergueu o braço e chamou-a. Lauren acenou com a cabeça e foi ao seu encontro, cruzando-se com uma mulher que despejava uma bandeja com o fígado de Gerald Clark para um saco de desperdícios biológicos.

— Bom, o que tem para me mostrar? — perguntou quando chegou perto dele.

O doutor Hibbert apontou para a marquesa.

— Quero que veja isto antes de o retirarmos — disse o patologista com a voz abafada pela máscara cirúrgica.

Encontravam-se junto à cabeceira da marquesa onde repousava o cadáver. Bílis, sangue e outros fluidos corporais escorriam pela superfície de aço inoxidável e pingavam para o interior de um balde de recolha no chão. O crânio de Clark fora aberto para expor o cérebro. A serra elétrica e a secção de osso retirada repousavam numa mesa de apoio.

— Encontrámos isto quando nos preparávamos para retirar o cérebro.

O patologista separou os dois hemisférios do cérebro. Entre as duas secções encontrava-se uma massa de tecido do tamanho de uma noz. Parecia estar aninhada em cima do corpo caloso, o canal esbranquiçado de nervos e vasos sanguíneos que ligava os dois hemisférios do cérebro.

— É outro teratoma... ou talvez um teratocarcinoma, a julgar pelos outros. Seja como for, veja por si mesma. Nunca encontrei nada parecido.

O doutor Hibbert usou a ponta de um fórceps para tocar na estranha massa de tecido.

— Meu Deus! — exclamou Lauren, sobressaltando-se quando o tumor reagiu ao toque. — Está... está a mexer-se!

— Incrível, não é? Foi por isso que a chamei. Já tinha lido acerca desta particularidade de alguns destes tumores, uma estranha capacidade de reagir a estímulos externos. Houve um caso em que um teratoma bem diferenciado possuía músculo cardíaco suficiente para pulsar como um coração.

Lauren tentou recompor-se.

— Mas este homem está morto há duas semanas.

Stanley encolheu os ombros.

— Calculo que, devido à localização, o tumor seja rico em células nervosas. Uma boa parte delas deve continuar viável o suficiente para responder a estímulos. Seja como for, esta habilidade deverá desvanecer-se assim que os nervos perderem energia e os pequenos músculos esgotarem as reservas de cálcio.

Lauren respirou fundo, ainda sem acreditar no que via.

— Mesmo assim, o tumor tem de ser extraordinariamente organizado para ter desenvolvido este tipo de reflexos.

— Oh, sem dúvida. Vou preparar-lhe as lamelas quanto antes, mas achei que gostaria de observar o fenómeno ao vivo e a cores.

Lauren anuiu. Desviou o olhar do tumor para o braço do cadáver. Uma ideia sobreveio-lhe subitamente ao pensamento.

— Será possível? — murmurou.

— O quê?

Lauren visualizou a forma como o tumor se mexera.

— Tendo em conta o número de teratomas, e em particular o desenvolvimento maduro deste tumor, talvez isto ajude a explicar o mecanismo que permitiu o crescimento do braço deste homem.

Stanley ergueu a sobrancelha.

— Não estou a perceber.

Lauren fitou o patologista, satisfeita por fixar o olhar noutro ponto que não no cadáver mutilado.

— O que quero dizer, e isto não passa de uma teoria, claro, é se o braço não poderá ser apenas outro teratoma que se desenvolveu a ponto de se tornar um membro funcional?

A sobrancelha do patologista subiu mais um pouco.

— Como uma espécie de cancro controlado? Um tumor vivo e funcional?

— Porque não? Não é muito diferente de como todos nós nos desenvolvemos. De uma única célula fertilizada, os nossos corpos formaram-se por rápida proliferação celular. O processo é em tudo semelhante ao que ocorre no cancro. A única diferença é que esta proliferação de células culmina no desenvolvimento dos tecidos certos. Quero dizer, não é este o objetivo da maioria das pesquisas de células estaminais? Descobrir o mecanismo por detrás deste crescimento controlado? O que leva uma célula a converter-se em osso, a célula vizinha em músculo e a outra em nervo? — Lauren desviou de novo o olhar para o cadáver de Gerald Clark. O horror convertera-se em fascínio. — Podemos estar a dar o primeiro passo para a resolução deste mistério.

— E se descobríssemos o mecanismo...

— Podia significar o fim do cancro e uma revolução no universo da medicina.

Stanley abanou a cabeça e virou-se para regressar ao seu trabalho sangrento.

— Nesse caso, rezemos para que a expedição dos seus filhos seja bem-sucedida.

Lauren acenou com a cabeça e encaminhou-se para a saída do laboratório. Consultou o relógio. Estava quase na hora da videoconferência com Frank e Kelly. Quase na altura de comparar notas. Ao alcançar a porta, lançou um último olhar ao corpo retalhado de Gerald Mitchell Clark.

— Passa-se alguma coisa naquela selva — disse para si mesma. — Resta-nos saber o quê.

20h32

Selva amazónica

Longe do grupo, Kelly fez o possível por assimilar o que a mãe lhe contara. Fixou o olhar na negritude da selva, embalada pelo coro interminável dos gafanhotos e das rãs no rio. A luz da fogueira não penetrava mais do que uns metros entre as árvores. Mais além, a selva mantinha escondidos os seus segredos.

Ali perto, um punhado de rangers montava um perímetro de segurança constituído por sensores de movimento de raio laser. Os dispositivos, fixados a poucos centímetros do chão e ao longo de uma linha imaginária entre o acampamento e a floresta, serviam para evitar a aproximação furtiva de grandes predadores.

Kelly continuou a fitar as sombras para lá dos militares.

O que teria acontecido ao agente Clark?

Uma voz atrás de si sobressaltou-a e interrompeu-lhe os pensamentos.

— São notícias macabras, de facto.

Kelly olhou por cima do ombro e encontrou o professor Kouwe, de pé, a seu lado. Estaria ali há quanto tempo? Nem sequer o ouvira aproximar-se. Não havia dúvida de que o homem não perdera a habilidade de se mover silenciosamente como um índio.

— Sim... — retorquiu. — Muito estranhas.

Kouwe sacou do cachimbo, encheu-o de tabaco e acendeu-o com o riscar de um fósforo. O odor pungente envolveu-os.

— E o que pensa da teoria da sua mãe, de que os tumores e o braço regenerado poderão estar relacionados?

— É no mínimo intrigante, mas não desprovida de sentido.

— Porquê?

Kelly coçou a ponta do nariz, organizando as ideias.

— Antes de deixar os Estados Unidos fiz pesquisa sobre o tema da regeneração. Calculei que seria boa ideia preparar-me para o que pudéssemos encontrar aqui.

— Muito sensato. No que toca à selva, o conhecimento e a preparação podem significar a diferença entre a vida e a morte.

Kelly lançou um olhar de relance ao professor, apenas para se certificar de que aquilo não era um comentário indireto à forma como lidara com a criança índia no dia anterior. Kouwe simplesmente observava a floresta e fumava o cachimbo numa postura relaxada.

Sentindo-se meio tola, Kelly prosseguiu. Sabia-lhe bem poder partilhar os seus pensamentos com alguém.

— Na minha pesquisa deparei-me com um artigo interessante na revista da Academia Nacional de Ciências. Em 1999, uma equipa de investigadores na Filadélfia que estudava os efeitos da esclerose múltipla e da sida criou uma série de ratos com sistemas imunitários deficientes. Porém, quando começaram a trabalhar com os roedores, registaram um fenómeno inesperado.

Kouwe virou-se para ela e ergueu uma sobrancelha.

— E que fenómeno foi esse?

— Os investigadores tinham perfurado as orelhas dos ratos, o que é uma forma comum de se marcar animais de teste, e descobriram que os furos saravam rapidamente, não deixando sequer vestígios de alguma vez terem existido. As feridas não tinham apenas cicatrizado. Havia uma regeneração total da cartilagem, da pele, dos vasos sanguíneos, até dos nervos. — Kelly fez uma pausa, permitindo que Kouwe absorvesse a informação. — Depois desta descoberta, a investigadora responsável, a doutora Ellen Heber-Katz, realizou algumas experiências. Amputou as caudas de alguns ratos, e elas cresceram novamente. Cortou nervos óticos, e eles reconstruíram-se. Até a excisão de uma secção de medula espinal resultou numa regeneração completa em menos de um mês. Um fenómeno desse calibre nunca fora observado em mamíferos.

Kouwe tirou o cachimbo da boca, os olhos arregalados.

— E o que estava a causar isso?

Kelly abanou a cabeça.

— A única diferença entre estes ratos extraordinários e os outros era o sistema imunitário comprometido.

— E qual foi o alcance real dessa descoberta?

Kelly esboçou um sorriso, contente por discutir o assunto com um interlocutor que parecia à altura da importância do tema.

— Sabemos pelo estudo de animais com esta capacidade de regeneração, como é o caso das estrelas-do-mar, de anfíbios e répteis, que todos eles apresentam sistemas imunitários rudimentares. Assim sendo, a doutora Heber-Katz desenvolveu uma teoria de que os mamíferos fizeram uma escolha evolucionária há milhões de anos. Para nos defendermos de doenças como o cancro, renunciámos à capacidade de nos regenerarmos. Os nossos sistemas imunitários, bastante mais complexos, estão concebidos especificamente para eliminar qualquer proliferação anormal de células, como é o caso do cancro. Isto funciona a nosso favor, claro, mas também impede qualquer tentativa de o corpo gerar um novo membro, por exemplo, visto que o nosso sistema imunitário identificaria a proliferação de células necessária como cancerígena, eliminando-a.

— Portanto, essa complexidade do nosso sistema imunitário tanto nos protege como nos condena.

Kelly franziu a testa.

— A não ser que houvesse uma maneira «segura» de desligar temporariamente o sistema imunitário. Como no caso dos ratos.

— Ou como no caso do Gerald Clark... — O professor fitou-a. — Está a sugerir que alguma coisa desligou-lhe o sistema imunitário, o que permitiu o crescimento de um novo braço. Por outro lado, o mesmo fenómeno também permitiu o surgimento de dezenas de tumores por todo o corpo.

— Talvez. Mas a explicação tem de ser mais elaborada que isso. Qual foi o mecanismo? Por que razão os tumores surgiram e se desenvolveram tão depressa? — Kelly abanou a cabeça. — Mais importante, o que terá desencadeado o processo?

Kouwe apontou com a cabeça na direção da floresta.

— A existir uma resposta, talvez esteja ali. Atualmente, três quartos de todos os medicamentos para o tratamento do cancro derivam de plantas da floresta tropical. Não vejo razão para não existir uma planta que faça exatamente o contrário.

— Um cancerígeno?

— Sim, mas com efeitos secundários benéficos, como a regeneração completa de um braço.

— Parece-me improvável, mas, considerando o estado do agente Clark, tudo é possível. Nos próximos dias e a meu pedido, os investigadores na MEDEA irão examinar de perto o estado do sistema imunitário do agente Clark e os diferentes tumores. Talvez descubram qualquer coisa.

Kouwe soltou uma nuvem de fumo.

— Seja qual for a resposta, não a encontrarão num laboratório. Disso tenho a certeza.

— Onde, então?

Em vez de responder, Kouwe limitou-se a apontar a boca incandescente do cachimbo na direção da floresta.

Poucos minutos depois da meia-noite, um vulto contornou a zona que servia de casa de banho do acampamento adormecido. Esperou que os dois guardas armados se encontrassem em lados opostos, com a fogueira entre si e os homens.

Precisava de agir depressa, e passou por cima do perímetro invisível estabelecido pelos sensores de movimento dos rangers. Os dispositivos haviam sido instalados a poucos centímetros do chão, servindo essencialmente para acusar a presença de grandes predadores que decidissem tentar a sorte. Porém, se uma pessoa soubesse onde podia pôr os pés...

Ultrapassados os sensores, consultou o mostrador luminescente do relógio. Atrasara-se sete minutos, mas não conseguira evitá-lo. Por uma questão de segurança, vira-se forçado a esperar que todos estivessem a dormir e que ao ressonar dos membros da equipa se juntasse o coro de insetos e o restolhar das folhas. Depois, levantara-se da cama e limitara-se a caminhar descontraidamente até à zona das latrinas junto ao rio.

Sentindo o coração bater perto da boca, avançou pela floresta enegrecida. A luz da Lua e das estrelas não conseguia perfurar a copa das árvores; era como se percorresse um labirinto subterrâneo. Porém, não havia tempo para medos ou hesitações.

Em volta, a floresta fervilhava de vida. Os mosquitos zumbiam aos ouvidos. Não conseguia distinguir o que se passava a pouco mais de uns passos em frente, mas sentia movimento por toda a parte. Pirilampos do tamanho de um polegar revoluteavam no ar, procurando atrair parceiros para acasalar. Os troncos das árvores rangiam sob o peso de um qualquer animal a passar — talvez um macaco, um gambá ou, quem sabe, uma preguiça. Não havia maneira de saber. A floresta escura nunca revelava os seus segredos, ou assim esperava ao avançar por entre as árvores.

Alcançou finalmente a margem do rio umas dezenas de metros mais abaixo do local do acampamento longe da vista. Agachando-se, suspirou de alívio. Em posição, sacou da pequena lanterna e apontou-a à outra margem. Premiu o botão e começou a fazer sinais de luzes. Apagou-a e aguardou a resposta.

Será que ainda lá estão? Terei chegado tarde demais?

A margem oposta permaneceu às escuras. Passado um momento, vislumbrou uma centelha de luz. Ficou muito quieto, mas tratava-se de um falso alarme, apenas mais um pirilampo.

— Rai’s partam! — murmurou entre dentes. — Onde estão eles?

Subitamente, viu surgir outra luz entre as árvores, desta vez um pouco mais intensa. Não seria maior que uma lâmpada de uma árvore de Natal, mas, na escuridão, tinha força suficiente para se refletir na superfície da água.

Olhou por cima do ombro. Receava que o brilho pudesse ser visto no acampamento, mas não ouviu vozes de alarme. Satisfeito, desviou de novo a atenção para a margem oposta. Tendo estudado o código antes de se juntar à expedição, não teve dificuldade em compreender a mensagem: «estamos prontos». Seguiu-se uma sequência de cinco números.

Com a mensagem entregue, a luz extinguiu-se, engolida pela escuridão da selva. Fechou os olhos e limpou o suor da testa. Estava feito. Encontrava-se agora comprometido com aquela decisão. Não havia volta atrás.

Pondo-se de pé, começou a recuar com os olhos ainda cravados na margem oposta. Nem sinal dos outros. Estariam ali quantos? Ninguém lho dissera. Apenas sabia que os mercenários contratados eram eficientes e implacáveis. Tinha lido o dossiê pessoal do líder, Louis Favre, e a lista de atrocidades cometidas por esse homem gelara-lhe os ossos. Ficara aliviado por ter queimado a informação depois de memorizar o que precisava de saber para comparecer naquele encontro: «Meia-noite. Duzentos metros rio abaixo do local do primeiro acampamento.»

Fosse como fosse, para o melhor e para o pior, a sua lealdade encontrava-se agora do lado daquele assassino impiedoso. Estava na expedição para servir de olhos e ouvidos a Favre. Tinha um rádio transmissor, pouco maior do que um telemóvel, escondido na mochila. A sequência de cinco dígitos era o código para ativar o aparelho, que se encontrava sintonizado numa frequência codificada para comunicar diretamente com Favre.

Enquanto retrocedia os passos para o acampamento, recordou a extensa lista de torturas, violações e assassínios atribuídos à organização de Louis Favre. Custava-lhe acreditar que estava a colaborar com um monstro daqueles. A única consolação era o depósito avultado que, uma semana antes, engrossara a sua conta bancária na Suíça. Além do mais, havia a hipótese de o depósito ser apenas uma prestação inicial. A farmacêutica francesa prometera-lhe um bónus: «Um quarto de ponto de percentagem dos lucros provenientes de qualquer droga resultante das descobertas da expedição.» Em abono da verdade, fora esta oferta que o convencera a alinhar. O potencial era incalculável. Se descobrissem uma droga milagrosa com propriedades regenerativas, não havia limite para o dinheiro que podia ganhar com a sua comercialização.

Com essa ideia em mente, completou o caminho de volta ao acampamento, evitando uma vez mais os sensores de movimento. Lançou um olhar aos rangers que patrulhavam o perímetro. Os militares acenaram com a cabeça, sem fazerem a mais pálida ideia do que tinha acontecido.

Descalçou as botas e enfiou-se na cama. Sorriu e permitiu que um suspiro de alívio se escapasse dos lábios. Estava feito. As engrenagens haviam sido postas em movimento. Deitado, aconchegado pelo brilho da fogueira, recordou as palavras codificadas.

Estamos prontos.

Mais tranquilo, enrolou-se nos cobertores, orgulhoso do trabalho bem feito.

Embrenhada nas sombras para lá da luz da fogueira, a figura despida manteve-se imóvel e agachada na escuridão da selva. O corpo esguio encontrava-se pintado da cabeça aos pés com uma mistura feita com cinzas e fruto de meh-nu, um padrão complexo de azul e preto que o convertia numa sombra viva.

Espiava aqueles forasteiros desde o cair da noite. A selva ensinara-o a ser paciente. Todos os teshari-rin, batedores tribais, sabiam que o sucesso dependia menos das ações e mais do silêncio entre passos. Assim, quando o estranho regressara do rio e passara a menos do alcance de um braço de onde se encontrava escondido, deixara-se ficar quieto. Apenas os olhos, escuros como a noite, haviam seguido o homem de volta até à fogueira.

Manteve o posto de observação nas horas seguintes, um vigilante negro de olhar fixado no acampamento. Estudou os homens gigantes que tresandavam com os seus odores estranhos e que caminhavam em torno do local. Falavam numa língua desconhecida e envergavam roupas que nunca vira.

Mesmo assim, deixou-se ficar a observar, estudando o inimigo.

A dada altura, um grilo rastejou por cima da mão apoiada no chão. Manteve um olho nos forasteiros, enquanto o outro observava o pequeno inseto a sacudir as patas traseiras, projetando a canção característica dos grilos.

Uma promessa de madrugada.

Não se atreveu a esperar mais. Registara tudo o que podia. Levantou-se silenciosamente, o movimento tão suave que o grilo se manteve em cima das costas da mão, ainda a tocar as últimas notas da canção da noite. Ergueu o braço e soprou a criatura surpreendida do seu pouso.

Lançando um último olhar ao acampamento, desapareceu por entre as árvores. Fora treinado para se mover pela floresta sem deslocar uma única folha no chão. Ninguém iria saber que ele ali estivera.

Além do mais, o batedor sabia qual era o seu dever.

A morte chegava a todos, exceto aos escolhidos.


6

O «FATOR AMAZÓNIA»

11 de agosto, 15h12

Selva amazónica

Nate manteve o dedo firme no gatilho da caçadeira, o cano apontado em frente. O animal não se encontrava a mais de seis metros, um espécime enorme do Melanosuchus niger, o jacaré-açu, o rei dos crocodilos que habitavam os rios da selva amazónica. Repousava na margem lamacenta, a armadura de escamas pretas a reluzir sob o sol da tarde. Tinhas as mandíbulas ligeiramente abertas, onde se alinhavam dentes amarelados e pontiagudos, maiores do que a palma da mão. Os olhos proeminentes eram pretos, frios e mortos. Um verdadeiro monstro pré-histórico. Completamente imóvel, tornava-se impossível perceber se a besta se apercebera sequer da presença dos três barcos.

— Irá atacar-nos? — sussurrou Kelly.

Nate encolheu os ombros sem olhar para trás.

— São animais imprevisíveis, mas, se o deixarmos em paz, não haverá problemas.

Nate ocupava a proa do Zodiac. Partilhava o barco com os irmãos O’Brien, Richard Zane e Anna Fong. Um único militar, o cabo Okamoto, manobrava o pequeno motor na popa. O soldado asiático passava a vida a assobiar, um hábito que, após quatro dias de viagem rio acima, se revelara uma tortura para os ouvidos. O monstro na margem tivera o condão de o calar.

O barco que seguia na frente passou pela criatura, mantendo-se junto da margem oposta. A estibordo, os militares no terceiro Zodiac nunca deixaram de apontar as M16 ao animal.

Cada barco transportava seis pessoas. O que seguia na frente levava três militares e três civis: o professor Kouwe, Olin Pasternak e Manny, que ocupava o centro da embarcação com o jaguar. Não era a primeira vez que Tor-tor viajava de barco, e parecia apreciar aquele meio de transporte, balançando preguiçosamente a cauda com as orelhas atentas aos ruídos e os olhos semicerrados.

O barco que fechava a formação transportava os restantes seis rangers, incluindo o capitão Waxman.

— Eles deviam abater o raio do bicho — disse Frank.

Nate lançou-lhe um olhar dos dele.

— Os jacarés-açus são uma espécie protegida. Os caçadores furtivos levaram-nos à beira da extinção no último século. Essa situação só se reverteu nos últimos anos.

— E isso é uma boa notícia? — murmurou Frank, observando as águas. Ajeitou a pala do boné, como se pretendesse esconder-se debaixo dela.

— Os jacarés matam centenas de pessoas todos os anos — comentou Zane, sentado num dos flutuadores. — Atacam barcos... tudo o que se mexa, na verdade. Li que, uma vez, encontraram um jacaré-açu com dois motores de barco no estômago. O monstro engoliu-os inteiros. Sou da mesma opinião que o senhor O’Brien, alguns tiros bem colocados e...

Por essa altura, o barco que seguia na frente encontrava-se já para lá do local onde repousava o crocodilo, e o barco de Nate avançava lentamente contra a corrente, ainda alinhado com a criatura na margem.

— Maravilhoso — disse Nate, fitando o animal. O jacaré era, de facto, gigantesco. Parecia pertencer a outra era. — É simplesmente magnífico.

— É um macho, não é? — perguntou Anna Fong, nitidamente impressionada.

— Pelo perfil do focinho e das narinas, diria que sim.

— Chiu! — avisou Frank.

— Está a mexer-se! — guinchou Kelly, saltando de onde estava sentada para o lado do barco oposto à margem. Richard Zane seguiu-lhe o exemplo.

O jacaré virara a poderosa cabeça e acompanhava o avanço do barco.

— Está a acordar — disse Frank.

— Nunca esteve a dormir — corrigiu Nate, em tom de gozo, enquanto o barco deslizava em segurança. — Está apenas tão curioso como nós.

— Tenho a certeza de que não está nada curioso — disse Frank, aliviado por deixar o monstro para trás. — Se querem saber, ele pode beijar o meu...

O jacaré gigante saltou de repente, rápido como um relâmpago, deslizando pela margem lamacenta e desaparecendo nas águas turvas. O terceiro barco aproximava-se nesse instante. Os militares dispararam alguns tiros, mas a velocidade do animal apanhara-os de surpresa e tinha já desaparecido quando as balas perfuraram a lama.

— Não disparem! — gritou Nate. — Está apenas a fugir!

Sem ter onde se esconder, a reação inicial do jacaré fora pôr-se em fuga. Isso se não se sentisse provocado... ou ameaçado.

Um ranger, um cabo alto chamado Rodney Graves, levantou-se no meio do barco de arma em punho, a perscrutar as águas.

— Não consigo ver...

Aconteceu demasiado depressa. A traseira do Zodiac foi projetada um metro no ar. Nate ainda conseguiu um vislumbre da cauda grossa. O militar de pé caiu de cabeça no rio. Os outros seguraram-se às pegas de borracha nos flutuadores. O barco bateu com força na água.

O capitão Waxman agachou-se junto ao motor.

— Graves!

O militar caído emergiu uns metros atrás do trio de barcos, arrastado pela corrente. Tinha perdido o chapéu, mas ainda empunhava a arma. Começou a nadar na direção do Zodiac mais próximo.

Nas suas costas, a cabeça do jacaré irrompia à tona como um submarino, os olhos eram dois periscópios.

Os rangers apontaram as armas à criatura, mas, uma vez mais, o animal mergulhou antes de conseguirem disparar um único tiro.

Nate visualizou o animal gigante a agitar a cauda e a deslizar pelas profundezas lamacentas ao encontro do soldado, atraído pelo chapinhar frenético.

— Oh, não — murmurou entre dentes, para depois berrar a plenos pulmões: — Cabo Graves! Pare de nadar! Fique quieto!

Mas foi em vão. Por aquela altura, toda a gente gritava para o homem nadar mais depressa, o que apenas fez com que se debatesse com mais intensidade. O capitão Waxman deu meia-volta com o barco para ir ao seu encontro.

Nate continuou a gritar.

— Pare de nadar!

Por fim, num gesto que tinha mais que ver com a frustração de não ser ouvido do que com coragem, Nate largou a caçadeira e atirou-se ao rio. Deslizou suavemente pela água turva, com os olhos muito abertos, mas não conseguia ver um metro à frente do nariz. Bateu as pernas com força, seguido de um único movimento de braços, e permitiu que o impulso e a corrente fizessem o resto. Debaixo de água, ouviu o motor do Zodiac de Waxman passar uns metros à esquerda.

Arqueou as costas e irrompeu à superfície. Graves encontrava-se à direita, a pouco mais de um braço de distância.

— Cabo Graves! — gritou de novo, virando-se de costas e deixando-se flutuar. — Não se mexa! Finja-se morto!

O soldado olhou para ele, em pânico.

— Nem pensar! — respondeu entre fôlegos, e continuou a tentar alcançar o barco. O Zodiac de Waxman encontrava-se agora a cerca de três metros. Os companheiros estendiam os braços, prontos para o puxarem da água.

Nate sentiu uma força deslocar-se contra a corrente. Passou entre os dois. Alguma coisa grande e rápida.

Oh, meu Deus...

Gritou uma última vez.

— Graves!

Um ranger — o irmão de Graves, reconheceu Nate — esticou-se sobre o flutuador. Dois companheiros seguravam-no pelo cinto. O homem lançou-se para a frente, com uma expressão horrorizada, tentando projetar o corpo ao máximo ao encontro do irmão.

Rodney bateu as pernas e esticou um braço.

Tom agarrou-lhe a mão e os músculos do antebraço retesaram-se como fio de aço.

— Apanhei-o! — gritou.

Os dois companheiros que o seguravam pelo cinto puxaram-no para trás ao mesmo tempo que içava Rodney da água. Com a mão livre, Tom cravou os dedos no uniforme molhado do irmão, a fim de o segurar melhor, caindo depois de costas no meio do barco. Rodney voou da água e aterrou de barriga sobre o flutuador.

Soltou uma gargalhada nervosa.

— Maldito crocodilo!

Virou-se para recolher os pés que ainda se encontravam dentro de água quando um par de mandíbulas abertas rompeu a superfície e se fechou sobre as pernas, engolindo-as até à cintura. Fileiras de dentes fincaram-se na presa capturada, e o animal submergiu de novo.

A besta de uma tonelada não podia ser combatida. Rodney foi arrancado das mãos do irmão ao som de gritos.

O corpo desapareceu de imediato nas águas turvas, mas a sua voz continuou a ecoar à superfície. Ajoelhados, os soldados empunhavam as armas prontas a disparar, mas ninguém premiu o gatilho. Um tiro às cegas tanto podia atingir o animal como o companheiro. Ainda assim, pelas expressões destroçadas, Nate sabia que compreendiam o que acabara de acontecer. Não havia nada a fazer. Tinham visto o tamanho do monstro, o poder das mandíbulas que o haviam levado. E essa era a realidade.

O jacaré arrastaria o militar até às profundezas, onde o manteria até este se afogar. Depois, devorá-lo-ia de imediato ou guardaria o corpo aprisionado entre as raízes dos mangais, onde apodreceria e se tornaria mais fácil de digerir. Não havia hipótese de salvarem aquele homem.

Sem mexer um músculo, Nate deixou-se ficar a flutuar. Aquele jacaré estaria satisfeito com a refeição, mas podia haver outros nas redondezas, sobretudo com as águas tingidas de sangue. Não estando disposto a correr riscos, limitou-se a esperar até sentir um par de mãos puxá-lo para dentro do barco.

Deu consigo deitado de costas, a olhar para o rosto desolado de Tom Graves. O militar fitava as próprias mãos, como que culpando-se por não ter tido força suficiente para salvar o irmão.

— Lamento muito — disse Nate.

O militar ergueu o rosto, e Nate ficou chocado ao aperceber-se da raiva contida no seu olhar. Raiva pelo simples facto de Nate ter sobrevivido, em lugar do irmão.

Com um movimento rígido, Tom desviou o olhar.

Outro membro da unidade não esteve com meias-medidas.

— Que raio lhe passou pela cabeça!? — A voz era do capitão Waxman. Parecia furioso. — O que estava a tentar fazer? A ver se morria também?

Nate afastou o cabelo molhado dos olhos. Numa semana, era a segunda vez que mergulhava no Amazonas para salvar alguém. Começava a tornar-se um péssimo hábito.

— Estava a tentar ajudar — murmurou.

O capitão moderou o tom de voz, embora ainda irritado.

— Estamos aqui para vos proteger. Não o contrário.

Por aquela altura, o Zodiac de Nate colara-se ao dos rangers. Pôs-se de pé e passou uma perna por cima dos flutuadores, regressando ao seu barco.

Com toda a gente nos devidos lugares, o capitão deu ordem para prosseguirem viagem. O ruído dos motores subiu de intensidade.

Nathan ainda ouviu a voz de Tom Graves, que protestava.

— Meu capitão... o corpo do meu irmão... não podemos...

— Desapareceu, cabo. O seu irmão desapareceu.

Assim, o trio de barcos continuou a subir o rio. Nate cruzou o olhar com Kouwe. No outro Zodiac, o professor abanou a cabeça, expressando pesar pela morte do soldado. Quando a selva queria alguém, apanhava-o. Chamava-se o «fator Amazónia». Os que atravessavam a poderosa floresta ficavam à mercê dos seus caprichos.

Nate sentiu alguém tocar-lhe no joelho. Virou-se e deparou-se com Kelly sentada a seu lado. A médica suspirou, sem desviar os olhos da paisagem. Depois disse:

— Foi uma coisa estúpida de se fazer, disso não tenho dúvidas, mas... — Kelly fitou-o. — Ainda bem que tentou.

Abalado pela inesperada tragédia, Nate respondeu com um simples aceno de cabeça. As palavras dela, porém, confortaram-no. Kelly retirou a mão do joelho dele.

O resto da viagem fez-se em silêncio. Não se ouviu mais o assobio do cabo Okamoto enquanto manobrava o barco. Avançaram até o Sol descer no horizonte, como se procurassem distanciar-se o mais possível do local onde morrera Rodney Graves.

Enquanto montavam o acampamento, as notícias do sucedido foram enviadas para o campo base em Wauwai. A disposição sombria acompanhou-os durante o jantar de peixe e arroz, a que juntaram uma travessa de inhame recolhido ali perto pelo professor Kouwe.

O único tema de conversa foi precisamente acerca destes tubérculos açucarados. Nathan mostrou-se intrigado com a aparente abundância da planta.

— Não é costume haver tantos — disse, ao ver o professor regressar com mais um carregamento aos ombros transportado numa cesta improvisada com folhas de palma.

Kouwe apontou com o queixo na direção da floresta.

— Acho que o local onde os encontrei foi em tempos uma horta indígena. Havia também abacateiros e plantas de abacaxi.

Kelly endireitou-se com o garfo na mão.

— Uma horta indígena?

Há quatro dias que não se deparavam com sinais de presença humana. Se o agente Clark obtivera a canoa numa aldeia ianomâmi, verdade seja dita que continuavam sem fazer ideia de onde se localizava.

— Pareceu-me estar abandonada há bastante tempo — explicou Kouwe, desfazendo a breve centelha de esperança no olhar de Kelly. — São plantações comuns em toda a Amazónia. As tribos indígenas, sobretudo os Ianomâmis, tendem a ser nómadas. Plantam estas hortas, permanecem um ano ou dois no local e depois mudam-se. Receio, portanto, que não nos ajude em nada.

— Não deixa de ser alguma coisa — retorquiu Kelly, tentando retirar algo positivo da descoberta. — Sempre é um sinal de que não estamos sozinhos.

— Além do mais, estas coisas são deliciosas — acrescentou Frank, com a boca cheia de inhame. — Já estava enjoado de tanto arroz.

Manny sorriu, afagando a pelagem do jaguar. Tor-tor banqueteara-se com um enorme bagre e estava agora refastelado, a apreciar o conforto da fogueira.

Os rangers tinham acendido outra fogueira a umas dezenas de metros, onde haviam realizado uma pequena homenagem ao companheiro caído durante o pôr do Sol. Agora, e à semelhança do que acontecia no grupo de Nate, mal se dava por eles, com exceção de meia dúzia de palavras murmuradas. O cenário era muito diferente do que se verificara nas noites anteriores. Das bocas dos soldados não saíam gargalhadas nem piadas obscenas enquanto montavam as camas ou ocupavam os postos de sentinela. Pelo menos naquela noite.

— Talvez seja melhor irmos dormir — disse Kelly, pondo-se de pé. — Temos mais um dia longo pela frente.

Ao som de murmúrios de concordância, o grupo dispersou e cada um encaminhou-se na direção da respetiva cama. Quando regressava de uma ida à casa de banho, Nate encontrou Kouwe à espera, a fumar o cachimbo.

— Professor — disse, pressentindo que o outro queria falar com ele em privado.

— Anda, vamos dar um passeio — retorquiu o professor. — Antes que os rangers ativem os sensores de movimento.

O xamã conduziu-o para o interior da floresta.

— O que se passa? — perguntou Nate.

Kouwe não respondeu e continuou a caminhar até os dois se encontrarem totalmente envoltos pela escuridão da selva. As duas fogueiras do acampamento não passavam de pontos esverdeados a brilhar por entre a vegetação. Por fim, o professor deteve-se e deu uma longa baforada no cachimbo.

— O que estamos aqui a fazer? — insistiu Nate.

Kouwe acendeu uma pequena lanterna.

Nate olhou em volta. O terreno adiante era uma espécie de clareira com um punhado de árvores de fruta-pão, laranjeiras e figueiras. Arbustos e plantas rasas cobriam invulgarmente o chão. Nate reconheceu a paisagem. Tratava-se da horta indígena abandonada. Existia até um par de paus de bambu enfiados entre as plantações, com as pontas queimadas. Por norma, aquelas tochas eram enchidas com pó tok-tok e acesas durante a altura das colheitas, funcionando como repelente contra os insetos esfomeados. Não havia dúvida de que aquilo fora feito pelos índios, e tão-pouco era a primeira vez que se deparava com uma plantação semelhante. Encontrara muitas outras nas suas viagens pela Amazónia. No entanto, estar ali de noite, com a horta ao abandono, provocava-lhe arrepios. Era como se estivesse a ser observado pelos olhos de nativos mortos.

— Estamos a ser seguidos — disse Kouwe.

As palavras do professor apanharam Nate de surpresa.

— De que raio está a falar?

Kouwe conduziu-o pela horta, apontou a lanterna na direção de um pé de maracujá e agarrou num dos ramos mais baixos.

— Arrancaram os frutos todos. Quando estávamos a ancorar os barcos, diria eu. As pontas de alguns caules ainda estão húmidas de seiva.

— Como reparou nisto?

— Já estava à espera. Ontem de manhã e no dia anterior, enquanto recolhia frutos para a viagem, reparei que alguém passara por alguns sítios onde eu tinha estado antes. Encontrei ramos partidos, uma cajazeira meio despida de frutos.

— Podem ter sido animais.

Kouwe assentiu com a cabeça.

— Assim pensei de início, e por isso fiquei calado. Não encontrei pegadas, nada que constituísse uma prova definitiva das minhas suspeitas. Em todo o caso, a regularidade destas ocorrências convenceu-me do contrário. Estamos a ser seguidos.

— Por quem?

— Índios, provavelmente. Estas florestas pertencem-lhes. Além do mais, não teriam qualquer dificuldade em seguir-nos sem ser detetados.

— Ianomâmis?

— Provavelmente.

Aos olhos de Nate, o professor parecia pouco convicto do que dizia.

— Quem mais poderia ser?

Kouwe franziu a testa.

— Não sei. Apenas me parece estranho que não tenham sido mais cuidadosos. Um verdadeiro batedor dificilmente deixaria sinais da sua presença. Não acredito que um índio pudesse ser tão descuidado.

— Mas o professor é índio. Não acredito que nenhum de nós repararia nestas pistas. Nem os rangers.

— Talvez — anuiu Kouwe, ainda não totalmente convencido.

— É melhor contarmos ao capitão Waxman.

— Foi por isso que decidi falar primeiro contigo. Achas que devemos contar-lhe?

— Como assim?

— Se forem índios, a última coisa de que precisamos é de uma unidade de Rangers a bater a selva à procura deles. Eles simplesmente desapareceriam sem deixar rasto. Se quisermos estabelecer contacto, devemos deixá-los vir até nós. Deixá-los acostumarem-se à nossa presença. O primeiro passo tem de ser deles, nunca o contrário.

Nate pretendia contrariar a necessidade de tanta precaução. Estava desejoso de ver algum avanço na expedição, de encontrar uma explicação para o desaparecimento do pai após tantos anos. A paciência era uma coisa difícil de engolir naquelas circunstâncias. A época das chuvas começaria em breve. As águas inundariam e varreriam a esperança de reconstituírem os passos de Gerald Clark.

Por outro lado, e disso mesmo o lembrara o ataque do jacaré, a Amazónia era senhora do seu nariz. Na selva, as pessoas dançavam ao seu ritmo. Tentar combatê-la constituía um convite à derrota. A melhor forma de sobreviver era deixar-se levar pela corrente.

— O melhor é esperarmos uns dias — prosseguiu Kouwe. — Primeiro, para vermos se estou certo. Talvez tenhas razão e sejam apenas animais. Porém, se não forem, gostava de dar uma oportunidade aos índios, em vez de os assustar ou de os forçar a revelarem-se sob a ameaça de armas. Ficaríamos na mesma, num caso ou no outro.

Nate acabou por concordar, mas com uma condição.

— Mais dois dias. Depois avisamos os outros.

Kouwe anuiu e apagou a lanterna.

— É melhor voltarmos.

Percorreram a curta distância até ao acampamento. Nate pesou as palavras do professor, o que pensava de tudo aquilo. Lembrava-se de como ele franzira a testa e se interrogara se estavam, de facto, a lidar com índios. Mas quem mais poderia ser, senão índios?

De volta ao acampamento, Nate encontrou os companheiros quase todos deitados. Alguns soldados patrulhavam o perímetro. Kouwe desejou-lhe boa noite e encaminhou-se para a sua cama. Enquanto Nate descalçava as botas, ouviu os gemidos que se escapavam da boca de Frank O’Brien. Depois da tragédia no rio, era natural que muitos tivessem uma noite agitada.

Deitou-se e cobriu os olhos com o braço, a fim de bloquear a claridade da fogueira. Podia não gostar, mas sabia que não havia maneira de contrariar a selva. Ela tinha um ritmo próprio, uma fome que era apenas sua. Uma pessoa apenas podia rezar para não se tornar a próxima vítima. Com essa ideia em mente, não teve outro remédio senão aguardar pelo sono, que tardou em chegar. O último pensamento: Quem será o próximo?

Se havia coisa de que o cabo Jim DeMartini estava certo era de que odiava cada vez mais a selva. Depois de quatro dias a subir o rio, estava farto daquilo tudo: a eterna humidade, as picadas das moscas e mosquitos, os guinchos constantes dos macacos e dos pássaros. Depois havia o bolor, que parecia crescer em toda a parte — nas roupas, nas camas, nas mochilas. O equipamento tresandava a peúgas suadas esquecidas num cacifo durante um mês. E isto quando haviam decorrido apenas quatro dias de viagem.

De sentinela, DeMartini encontrava-se encostado a uma árvore junto à zona das latrinas, com a M16 repousando confortavelmente nos braços. Jorgensen estava de serviço com ele e fizera uma pausa para ir à casa de banho. A poucos metros de distância, DeMartini ouvia o companheiro de armas assobiar enquanto despia as calças.

— Não podias ter escolhido melhor altura — resmungou.

Jorgensen ouviu-o.

— A porcaria da água deu-me a volta à barriga.

— Certo. Menos conversa e despacha-te.

DeMartini sacou de um cigarro. A mente regressou ao momento em que o trágico destino de Rodney Graves foi selado. DeMartini ocupava o barco que seguia na frente com alguns civis, mas suficientemente perto para ver o jacaré gigante saltar das águas e arrancar Graves da outra embarcação. Sacudiu um arrepio. Não era um tipo impressionável e tinha visto homens morrerem — tiros, acidentes de helicóptero, afogamentos —, mas nada se comparava ao que assistira no rio. Aquilo pertencia ao domínio dos pesadelos.

Lançando um olhar por cima do ombro, amaldiçoou Jorgensen. Que raio está este gajo a fazer? Deu uma longa passa no cigarro. A bater uma, se calhar. Se fosse o caso, verdade seja dita que não podia censurar o companheiro. A presença das duas mulheres dava azo a essas coisas. Depois de montarem o acampamento, ele próprio dera por si a espiar a cientista asiática enquanto ela despia o casaco caqui. A blusa encharcada de suor revelara de forma convidativa o formato dos seios pequenos. Sem sutiã, os mamilos eram nitidamente percetíveis através do tecido delicado.

Afastou a imagem da cabeça, apagou o cigarro no chão e endireitou-se. A única luz que rompia a escuridão provinha da pequena lanterna fixada por baixo do cano da arma. Manteve-a apontada em frente, na direção do rio.

Nas profundezas da floresta, para lá dos sensores de movimento, pequenas luzes piscavam e esvoaçavam. Pirilampos. Crescera no sul da Califórnia, onde não existiam aqueles insetos. Aquelas luzes apenas serviam para o enervar anda mais, e continuaram a prender-lhe a atenção, enquanto a selva suspirava com o restolhar das folhas. Alguns ramos maiores estalavam como as articulações de um velho. Era como se a selva fosse uma gigantesca criatura que o engolira inteiro.

Rodou a lanterna na direção oposta. Acreditava piamente no sistema de pares, o que se aplicava a dobrar naquele maldito sítio. Havia um velho ditado nos Rangers: «O sistema de pares é essencial para a sobrevivência, visto que oferece ao inimigo um alvo alternativo.»

Desejoso que o companheiro regressasse, voltou a chamá-lo.

— Vá lá, Jorgensen!

— Deixa-me em paz! — gritou o outro, irritado.

Quando se virou, sentiu uma picada na bochecha. Deu uma palmada no local da mordida para esmagar o inseto, e foi quando sentiu uma segunda picada, esta mais forte, um pouco abaixo da linha do maxilar. Contraindo o rosto, repetiu o gesto, mas dessa vez os dedos encontraram algo cravado na pele, que se apressou a sacudir.

— Que raio!? — sibilou, assustado, dando um passo atrás. — Malditos bichos sanguessugas!

Jorgensen ouviu o desabafo e riu-se.

— Pelo menos não te apanharam de rabo ao léu!

Lançando um olhar de repúdio à selva, DeMartini ajeitou a gola do camuflado de modo a deixar o mínimo de pele exposta aos insetos famintos de sangue. Ao virar-se, o feixe da lanterna revelou um pequeno objeto caído na lama, junto aos pés. Baixou-se para o apanhar. Tratava-se de um pequeno dardo com penas. A ponta estava molhada de sangue. O seu sangue.

Merda!

Agachou-se e abriu a boca para alertar o companheiro, mas da garganta apenas se escapou um gorgolejar silencioso. Tentou respirar fundo e logo percebeu que não conseguia mover o peito. Os braços e as pernas pareciam feitos de chumbo. Demasiado fraco, tombou para o lado.

Fui envenenado, percebeu, em pânico. Estou paralisado.

Ainda detinha algum controlo nas mãos, e os dedos tatearam o corpo da arma como um aranhiço, tentando alcançar o gatilho. Se ao menos conseguisse disparar a M16... avisar Jorgensen...

Então, sentiu que alguém o observava no escuro. Não conseguia virar a cabeça para ver quem era, mas o vestígio de algum instinto primitivo enviou-lhe avisos que foram sentidos em todo o corpo.

Com aflição crescente, lutou para alcançar o gatilho. Um dedo tocou finalmente no metal frio e curvo. Teria libertado um suspiro de alívio, se conseguisse, e, à beira da inconsciência, canalizou a última réstia de energia para aquele único dedo, premindo o gatilho.

Nada aconteceu.

Em desespero, apercebeu-se de que não soltara a patilha de segurança. Uma lágrima de derrota correu-lhe pelo rosto tombado na lama. Estava de tal modo paralisado que não conseguia sequer fechar os olhos.

A presença que o observava avançou finalmente. À luz da lanterna fixada na arma, o que viu não fazia sentido.

Tratava-se de uma mulher. Uma mulher nua. Uma criatura esguia de uma beleza assombrosa, com pernas longas e suaves, curvas delicadas que conduziam a ancas cheias, a seios redondos e firmes. No entanto, foram os olhos, grandes e negros — carregados de mistério, de fome —, que lhe prenderam a atenção enquanto sufocava. A mulher curvou-se sobre ele, com os longos cabelos pretos a tocarem-lhe no rosto imóvel. Como uma qualquer criatura celestial que emergira da floresta, beijou-lhe suavemente os lábios.

Por um instante, teve a sensação de que ela o ajudava a respirar, e sentiu qualquer coisa descer-lhe pela garganta, uma espécie de fumo quente.

Só então a consciência o abandonou.

Kelly acordou sobressaltada, ao som de gritos. Sentou-se tão depressa que caiu da cama, batendo com os joelhos no chão.

— Rai’s partam!

Olhou em redor. Alguém avivara as fogueiras e as chamas subiam furiosas, espalhando fumo e luz por todo o acampamento. À distância, feixes de lanternas rasgavam a escuridão da floresta, à procura de qualquer coisa. Alguém berrava ordens, que ecoavam de todas as direções.

Pondo-se de pé, Kelly debateu-se para se livrar do mosquiteiro. Avistou Nate e Manny a poucos metros. Estavam ambos descalços, vestidos apenas com calções e t-shirts. O jaguar encontrava-se sentado entre os dois.

— O que se passa? — gritou-lhes, desembaraçando-se por fim do mosquiteiro.

Os restantes companheiros de expedição juntavam-se uns aos outros igualmente meio despidos e em diferentes estados de confusão. Kelly apercebeu-se rapidamente de que todas as camas dos rangers se encontravam vazias. Havia um único militar no acampamento. Ocupava a sua posição entre as duas fogueiras, com a arma em riste, pronta a disparar.

— Desapareceu um soldado — respondeu Nate, enquanto calçava as botas. — Disseram-nos para ficarmos aqui até novas ordens.

— Quem? Como?

— O cabo DeMartini.

Kelly lembrava-se do homem: cabelo preto escorrido, nariz largo, olhar desconfiado.

— O que aconteceu?

Nate abanou a cabeça.

— Ninguém sabe. Simplesmente, desapareceu enquanto fazia a patrulha.

Alguém gritou junto ao rio. A maioria dos feixes das lanternas convergiu nessa direção.

O professor Kouwe juntou-se ao grupo. Kelly reparou no olhar que ele trocou com Nate, como se partilhassem um segredo.

Frank surgiu no outro lado do acampamento e correu na direção do grupo de lanterna na mão. Chegou sem fôlego, as sardas no rosto contrastando com a palidez da pele transpirada.

— Encontrámos a arma dele — disse, olhando à vez para Nate, Manny e Kouwe. — Vocês os três conhecem a selva melhor que ninguém. O capitão Waxman mandou chamar-vos. Quer mostrar-vos uma coisa.

O grupo avançou em peso. Frank ergueu a mão no ar.

— Só os três.

Kelly não fazia tenção de ficar para trás.

— Se o homem estiver ferido, eu posso ajudar.

Frank hesitou, depois acenou com a cabeça.

Richard Zane tentou aproveitar o momento e preparava-se para argumentar, mas Frank não lhe deu hipótese.

— O capitão Waxman não quer mais ninguém no local. Para não correr o risco de destruir eventuais indícios do que aconteceu.

Com a questão resolvida, o grupo apressou-se na direção do rio. O jaguar manteve-se ao lado de Manny, acompanhando-o com ligeireza. Atravessaram a densa vegetação que cobria a margem. Era tal qual o cenário da selva que se via nos filmes: um emaranhado de lianas, arbustos e árvores. Em fila indiana, o grupo abriu caminho com os olhos postos nas múltiplas lanternas que brilhavam mais à frente.

Kelly seguia atrás de Nate. Pela primeira vez, apercebeu-se da largueza de ombros dele, no modo desembaraçado como se movia naquele ambiente. Parecia-lhe fascinante como um homem tão alto e encorpado deslizava com aquela facilidade por baixo das lianas e à volta dos arbustos. Seguiu-lhe cada passo, tentando imitar os seus movimentos ágeis, mas dava por si a tropeçar constantemente.

A dada altura, o calcanhar escorregou em qualquer coisa. O pé voou para a frente e ela abriu os braços para amparar uma queda inevitável.

Nate virou-se e apanhou-a no último instante.

— Cuidado.

— Obrigada... — Envergonhada, Kelly estendeu a mão para alcançar uma liana e levantar-se, mas Nate puxou-a com força. Apenas as pontas dos dedos tocaram na liana.

— O que está a... Merda!

Os dedos começaram a arder subitamente. Sem saber o que fazer, Kelly esfregou-os na camisa, mas isso apenas piorou as coisas. Parecia que tinha os dedos em chamas.

— Esteja quieta! — disse Kouwe. — Esfregar intensifica o ardor.

O professor arrancou um punhado de folhas de uma árvore esguia. Esmagou-as entre as mãos, agarrou no pulso de Kelly e esfregou-lhe a mão e os dedos com a pasta oleosa.

O alívio foi imediato. Kelly ficou boquiaberta.

— Ku-run-yeh — explicou Nate. — Um poderoso analgésico da família das violetas.

Kouwe continuou a massajar-lhe os dedos até o ardor se desvanecer por completo.

Debaixo do brilho da lanterna de Frank, Kelly observou as bolhas que se haviam formado nas pontas dos dedos.

— Estás bem? — perguntou o irmão.

Sentindo-se estúpida, Kelly anuiu.

— Continue a aplicar o remédio e isso passa num instante — disse Kouwe, dando-lhe uma palmadinha condescendente no braço.

Nate ajudou-a a levantar-se.

— Chama-se liana-de-fogo, e por uma boa razão — explicou, apontando para a liana que pendia dos ramos de uma árvore e caía enrolada junto ao tronco. Se Nate não tivesse agarrado Kelly, ela teria caído com o corpo inteiro em cima daquele emaranhado vegetal. — Esta planta liberta uma substância cáustica para manter os insetos à distância.

— Uma forma de guerra química — acrescentou Kouwe.

— Exato. — Nate indicou a Frank que prosseguisse e depois fez um gesto largo com o braço. — É o que se passa à nossa volta a cada instante. É o que torna a selva um armazém medicinal com tanto potencial. A engenhosidade e a variedade dos químicos e compostos postos em uso nesta guerra excedem qualquer coisa que os humanos pudessem inventar num laboratório.

Kelly escutou as palavras de Nate. Não se podia dizer que se sentisse grata por ter sido apanhada no meio daquela guerra.

Avançaram mais uns metros até alcançarem os rangers. Os militares estavam reunidos em círculo. Alguns mantinham-se à parte, de arma em riste e óculos de visão noturna postos.

O cabo Jorgensen encontrava-se em posição de sentido diante do comandante.

— Como lhe expliquei, meu capitão, fui à latrina. O DeMartini estava à minha espera.

— E isto? — perguntou Waxman, estendendo a mão com uma beata de cigarro.

— Sim, eu ouvi-o acender um cigarro, mas nunca pensei que se fosse embora. Quando regressei, já lá não estava. Ele não me disse que ia passear à beira-rio.

— E tudo por causa de um cigarro! — resmungou o capitão. Acenou com o braço. — Desapareça-me da frente, cabo.

— Sim, senhor.

Respirando fundo, o capitão Waxman desviou a atenção para o grupo de Nate. Continuava danado.

— Preciso da vossa ajuda — disse, focando o olhar em Nate, Kouwe e Manny. Virou-se e apontou a lanterna para uma zona de vegetação que parecia ter sido pisada. — Encontrámos a arma do DeMartini neste local, bem como esta beata, mas nenhum sinal do que terá acontecido. O cabo Warczak confirmou se havia pegadas. Não há. Tudo o que temos são estas ervas esmagadas que se estendem até à água.

Kelly olhou para o chão. Parecia haver de facto um rasto que se estendia até ao rio. As ervas mais altas estavam dobradas em direções opostas.

— Gostava de ver mais de perto — disse Kouwe.

O capitão anuiu e passou-lhe a lanterna.

Nate e Kouwe avançaram. Manny seguiu-lhes os passos, mas o jaguar deteve-se no limiar das ervas pisadas, cheirou-as e rugiu.

Com a mão no chicote, Manny encorajou o felino.

— Anda, Tor-tor.

O jaguar recusou-se a avançar, chegando até a retroceder um passo.

Nate olhou por cima do ombro. O professor agachara-se e examinava algo nas ervas. Cheirou os dedos.

— O que foi? — perguntou Nate.

— Fezes de jacaré. — O professor limpou a mão nas ervas e apontou com o queixo na direção do jaguar. — E tenho a impressão de que o Tor-tor concorda comigo.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Kelly.

Manny encarregou-se de explicar.

— Os felinos conseguem determinar o tamanho de um animal pelo cheiro da urina ou dos excrementos. Na verdade, a urina de elefante é comercializada nos Estados Unidos como repelente de pumas. Eles não se aproximam de um sítio marcado com urina de elefante. Nunca se chegariam perto de um animal tão grande.

Kouwe avançou até à beira de água. Afastou cuidadosamente algumas das ervas altas e chamou o capitão Waxman. Kelly foi ao seu encontro.

Kouwe apontou a lanterna para o chão lamacento, revelando umas impressões bem visíveis.

— Jacaré.

Kelly não deixou de reparar num certo tom de alívio na voz do professor. Tão-pouco no olhar que trocou com Nate. Não era a primeira vez que os apanhava a fazer aquilo.

— Os jacarés caçam muitas vezes nas margens — explicou Kouwe, levantando-se. — Atacam tapires, javalis ou qualquer animal que venha beber ao rio. O vosso homem deve ter-se aproximado demasiado da água, e foi apanhado.

— Pode ser o mesmo animal que matou o Graves? — perguntou Waxman.

Kouwe encolheu os ombros.

— O jacaré-açu é um animal bastante inteligente. O facto de agora saber que os nossos barcos são uma fonte de comida pode tê-lo levado a seguir o barulho dos motores até aqui, onde ficou à espera de uma oportunidade.

O capitão cerrou os punhos.

— Filho da mãe! Dois homens num dia!

O sargento Kostos aproximou-se. O ranger alto e moreno exibia uma expressão rígida.

— Posso pedir reforços, meu capitão. Os Hueys estarão aqui pela manhã com mais homens.

— Trate disso! — disparou Waxman. — A partir de agora, quero duas patrulhas por turno. Dois homens em cada patrulha! E não quero ninguém, civil ou militar, a andar por aí sozinho. Além disso, nos próximos acampamentos os sensores de movimento passam a ser colocados também no lado do rio, não apenas no lado da selva, entendido?

— Sim, senhor!

O capitão Waxman virou-se então para o grupo de Nate. Não houve um pingo de simpatia na voz, apenas indiferença.

— Obrigado. É tudo.

O grupo retrocedeu pelo mesmo caminho. Kelly sentia-se entorpecida. Outro homem morto, e acontecera tudo tão rápido. Ao passar novamente pelas lianas-de-fogo, lançou-lhes um olhar cauteloso. Não se encontravam apenas no meio de uma guerra química, mas no meio de um frenesi predatório, onde os fortes devoravam os fracos.

Ficou aliviada por se ver de novo envolvida pelo calor das fogueiras do acampamento. Em certa medida, as chamas tranquilizavam-na ao afastarem temporariamente o coração negro da floresta.

Os olhares dos outros companheiros de expedição perscrutaram o grupo à chegada. Anna Fong encontrava-se junto de Richard Zane. O colega de Frank, Olin Pasternak, aquecia as mãos perto de uma fogueira.

Manny explicou em poucas palavras o que acontecera. Anna cobriu a boca com a mão e virou o rosto. Richard abanou a cabeça. Como era habitual, Olin permaneceu impávido e limitou-se a fitar as chamas.

Kelly mal se apercebeu da reação dos outros. De pé, junto à fogueira, manteve a atenção focada em Nate e Kouwe. Tinham-se afastado do grupo e, pelo canto do olho, Kelly observava-os junto à cama de Nate. Não trocavam palavras, mas a pergunta silenciosa na expressão do professor falava mais alto.

Nate respondeu abanando a cabeça.

Com a questão resolvida entre os dois, Kouwe sacou do cachimbo e afastou-se, nitidamente a precisar de um momento a sós com os seus pensamentos.

Kelly desviou o olhar, concedendo-lhe privacidade, e deu com Nate a olhar para si.

Virou-se na direção da fogueira. Sentiu-se estúpida e estranhamente assustada. Engoliu em seco e mordeu o lábio inferior, recordando o momento em que os braços fortes de Nate a apanharam, salvando-a. Sentia que ele ainda a fitava, um olhar que lhe aquecia a pele como um raio de sol, quente, profundo, causando-lhe uma espécie de formigueiro.

Pouco a pouco, a sensação desvaneceu-se.

Espreitou por cima do ombro. Nate ajoelhara-se e ajeitava o mosquiteiro em redor da cama.

Franziu a testa, interrogando-se sobre aquele homem.

O que está ele a esconder?


7

RECOLHA DE DADOS

12 de agosto, 06h20

Langley, Virgínia

Lauren O’Brien ia chegar atrasada ao trabalho.

— Jessie! — chamou da cozinha, enfiando uma laranja na lancheira junto com uma sanduíche de geleia e manteiga de amendoim. — Querido, tens de te despachar...

A escola ficava a uns vinte minutos fora de caminho, a que se seguia a habitual luta contra o trânsito matinal até chegar a Langley.

Consultou o relógio e revirou os olhos.

— Marshall!

— Estamos a descer — respondeu uma voz firme.

Lauren espreitou pela porta da cozinha. O marido descia as escadas com a neta pela mão. Jessie vinha vestida e pronta para sair, embora trouxesse uma meia de cada cor. Podia ser pior, pensou Lauren. Já não se lembrava de como era ter uma criança em casa. Implicava uma mudança de hábitos e de horários.

— Eu posso levá-la — sugeriu o marido. — Só depois das nove é que tenho uma reunião.

— Deixa estar, eu levo-a.

— Lauren... — Marshall aproximou-se e deu-lhe um beijo na cara. — Posso ajudar-te?

Lauren virou costas e fechou a lancheira.

— Precisas de estar na Agência quanto antes — respondeu-lhe, esforçando-se por não acusar a tensão na voz.

Marshall apercebeu-se na mesma.

— Jessie, vai buscar o casaco.

— Está bem, avô. — A menina saltitou na direção da porta da rua.

Marshall virou-se para Lauren.

— O Frank e a Kelly estão bem. Se tivesse acontecido alguma coisa, já o saberíamos.

Lauren acenou com a cabeça, mas manteve-se de costas viradas para o marido. Não queria que Marshall percebesse que estava prestes a chorar. Tinha ficado a saber, na noite anterior, que um dos rangers fora morto por um crocodilo. Então, já de madrugada, o telefone voltou a tocar. Pelo tom de voz de Marshall, percebeu que se tratava novamente de más notícias. Um telefonema àquela hora só podia significar uma coisa: acontecera algo de terrível a Frank ou a Kelly. Tinha a certeza. Depois de Marshall desligar a chamada e lhe explicar que morrera mais um soldado, chorara aliviada. Escusado será dizer que fora uma reação egoísta, mas, no seu íntimo, ficara plantada uma semente que não podia ignorar. Dois mortos... quantos mais se seguirão? Não conseguira pregar olho o resto da noite.

— Juntaram-se mais dois rangers à expedição — prosseguiu Marshall. — Eles estão bem protegidos.

Lauren anuiu novamente, ainda a conter as lágrimas. Talvez estivesse a ser um pouco lamechas. Tinha falado com os filhos. Encontravam-se obviamente perturbados pela tragédia, mas continuavam determinados a levar a expedição até ao fim.

— Eles são rijos — disse Marshall. — Desenrascam-se bem e tomam cuidado. Não vão correr riscos desnecessários.

— Riscos desnecessários? — murmurou, ainda de costas voltadas. — Eles estão lá, não estão? É o suficiente.

Marshall pousou-lhe a mão no ombro, afastou-lhe o cabelo do pescoço e deu-lhe um beijo.

— Vai correr bem — murmurou-lhe ao ouvido. Virou-a para si, encostou-a contra a mesa e fitou-a.

Aos cinquenta e quatro anos, Marshall continuava a ser um homem atraente. Embora de ascendência irlandesa, tinha cabelos pretos que exibiam madeixas grisalhas nos lados. O queixo era forte e angular, suavizado por lábios cheios. Os olhos, uma mistura de azul e castanho, prenderam a atenção de Lauren, transmitindo-lhe uma sensação de segurança.

— A Kelly e o Frank estão bem. Quero ouvir-te dizê-lo.

Lauren tentou baixar a cabeça e desviar o olhar, mas Marshall endireitou-lhe o queixo com a ponta do dedo.

— Quero que o digas. Por mim. Também preciso de ouvir.

Lauren notou a mesma angústia nos olhos dele.

— A Kelly e o Frank estão bem — repetiu.

Embora tenha murmurado as palavras, o facto de conseguir pronunciá-las ofereceu-lhe algum conforto.

— Os nossos filhos estão em segurança. Criámo-los bem, não foi? — Marshall sorriu-lhe, a angústia desvanecendo-se. — Criámo-los bem.

— Sem dúvida. — Lauren colocou os braços à volta do marido e abraçou-o. Ambos se sentiram reconfortados pelo toque um do outro. Ficaram assim uns segundos; então, Marshall beijou-a na testa.

— Eu levo a Jessica à escola.

Lauren não levantou objeções. Depois de se despedir da neta com um longo abraço à porta da rua, deixou-se levar pelo braço até ao BMW. Os quarenta e cinco minutos de viagem até à baixa da cidade pareceram não ter existido, e soube-lhe bem agarrar na pasta e cruzar as portas codificadas do edifício principal do Instituto Instar. Após uma noite tão agitada, o trabalho era a melhor maneira de se abstrair das preocupações.

Encaminhou-se para o gabinete, cumprimentando os rostos conhecidos pelo caminho. O relatório imunológico completo estaria concluído nesse dia, o que comprovaria ou não a teoria de Kelly de uma qualquer alteração no sistema imunitário de Gerald Clark. Os resultados preliminares, que começavam a chegar a conta-gotas, não ajudavam muito. A quantidade de processos cancerígenos no corpo do homem tornava a avaliação complicada.

Ao chegar ao gabinete, Lauren deparou-se com um estranho junto à porta.

— Bom dia, doutora O’Brien — disse o homem, estendendo a mão. Não teria mais de vinte e cinco anos, magro, cabeça rapada e vestido com bata e calças azuis.

Enquanto responsável máxima do projeto MEDEA, Lauren conhecia todos os investigadores envolvidos na pesquisa, mas nunca vira aquele sujeito.

— Sim?

— Hank Alvisio, prazer em conhecê-la pessoalmente.

Lauren apertou-lhe a mão. O nome dizia-lhe qualquer coisa.

— Epidemiologia — disse o jovem investigador, apercebendo-se da confusão na cabeça de Lauren.

Lauren anuiu.

— Claro. Desculpe, doutor Alvisio. — Hank era epidemiologista em Stanford. Lauren nunca o vira antes. A sua principal área de estudo era a transmissão de doenças. — Como posso ajudá-lo?

— Quero mostrar-lhe uma coisa — disse ele, exibindo uma pasta arquivadora.

Lauren consultou o relógio.

— Tenho uma reunião com o Departamento de Imunologia daqui a dez minutos.

— Mais uma razão para ver isto.

Lauren abriu a porta do gabinete com o cartão magnético e convidou o investigador a entrar. Acendeu as luzes e dirigiu-se à secretária. Já sentados os dois, perguntou:

— O que tem para me mostrar?

— Algo em que tenho estado a trabalhar — respondeu Hank, de volta da pasta com os documentos. — Deparei-me com uns dados invulgares e queria partilhá-los consigo.

— Que dados são esses?

Hank ergueu o olhar.

— Estive a rever ficheiros médicos brasileiros. Tentava encontrar casos semelhantes ao do Gerald Clark.

— Casos de regeneração milagrosa?

Hank sorriu timidamente.

— Claro que não. Procurava uma estimativa da prevalência de casos de cancro nas populações da floresta tropical brasileira, sobretudo na região onde o Gerald Clark morreu. Pensei que, se olhasse para estes índices, podia tentar estabelecer por onde ele andou, ainda que de forma indireta.

Lauren endireitou-se na cadeira. A abordagem do doutor Alvisio era intrigante, engenhosa até. Não admirava que tivesse sido contratado. Se descobrisse uma aglomeração de cancros idênticos, isso poderia estreitar os parâmetros de busca, o que por sua vez ajudaria Kelly e Frank.

— E o que descobriu?

— Nada do que esperava — declarou o investigador, com um olhar preocupado. — Contactei hospitais, centros médicos e clínicas da região. Têm estado a enviar-me toda a informação referente aos últimos dez anos. Demorei este tempo todo a processar os dados no computador.

— E descobriu tendências nos tipos de cancro na região? — perguntou Lauren, esperançosa.

Hank abanou a cabeça.

— Nada parecido com o que observámos no agente Clark. Parece ser um caso único.

Lauren fez o possível por esconder a desilusão, mas não evitou um certo desagrado no tom de voz.

— O que descobriu, então?

Hank entregou-lhe uma folha de papel. Ato contínuo, Lauren deitou a mão aos óculos de leitura.

Tratava-se de um mapa do noroeste brasileiro. Múltiplos cursos de água serpenteavam através da região, convergindo para o mesmo destino, o rio Amazonas. Cidades e aldeias espalhavam-se ao longo do rio, a maioria junto à água. O mapa a preto-e-branco estava assinalado com cruzinhas vermelhas.

O jovem investigador apontou para umas quantas cruzes com a ponta da caneta.

— Estas são as instalações médicas que forneceram os dados. Fui contactado por um médico residente de um hospital perto de Barcelos. — A caneta pousou numa cidadezinha nas margens do Amazonas, a cerca de trezentos e vinte quilómetros de Manaus. — Esse médico informou-me que o hospital se encontra a braços com um surto viral que atinge sobretudo as crianças e os idosos. Ao que tudo indica, trata-se de uma forma de febre hemorrágica, cujos sintomas incluem febre alta, vómitos e úlceras orais. Uma dúzia de crianças perdeu a vida. O médico disse-me que nunca viu nada parecido e pediu a minha ajuda. Naturalmente, aceitei ajudá-lo.

Lauren ergueu uma sobrancelha. O epidemiologista fora contratado e viajara para o instituto para trabalhar exclusivamente naquele projeto. Em todo o caso, não fez comentários e deixou-o continuar.

— Uma vez que eu tinha já estabelecido uma rede de contactos na região, enviei um pedido urgente para confirmar a ocorrência de casos idênticos noutros locais. — O doutor Alvisio sacou de outra folha de papel. Parecia ser o mesmo mapa com os rios e as cruzes vermelhas. No entanto, algumas cruzes estavam assinaladas com um círculo azul e tinham datas escritas. — Estes locais acusaram a presença do surto.

Lauren arregalou os olhos. Eram bastantes. Uma dúzia de locais diferentes, pelo menos.

— Consegue ver a tendência? — perguntou o investigador.

Lauren estudou o mapa, depois abanou a cabeça.

O epidemiologista apontou para uma cruz com círculo azul.

— Apontei as datas das ocorrências. Esta foi a primeira. — Ergueu o olhar e bateu com a ponta do dedo no mapa. — Trata-se da aldeia missionária de Wauwai.

— Onde o Gerald Clark apareceu?

Hank anuiu.

Lauren lembrou-se de ter lido o relatório da expedição a dar conta de que a aldeia fora incendiada pelos índios. Isso acontecera porque algumas crianças tinham adoecido inexplicavelmente.

— Confirmei com as autoridades locais — prosseguiu o investigador, batendo com o dedo ao longo das várias cruzes com círculos azuis. — O barco que transportou o corpo do Gerald Clark fez escala nestas povoações. A doença surgiu em todos os sítios por onde o cadáver passou.

— Meu Deus — murmurou Lauren. — Acha que o cadáver transportava algum agente patogénico?

— Estas coisas nunca são tão simples. A doença podia ter-se espalhado de várias maneiras. O rio serve de principal via de transporte na região. Em virtude disso, qualquer doença contagiosa podia apresentar um padrão semelhante de disseminação. Por si só, não constitui prova definitiva de que o cadáver foi a fonte de contágio.

Lauren suspirou, aliviada.

— Não pode ter sido o corpo. A minha filha supervisionou os exames a que foi submetido antes de ser enviado do Brasil. Foram feitas análises para diferentes agentes patogénicos: cólera, febre-amarela, dengue, malária, febre tifoide, tuberculose. O processo foi minucioso. Nada foi deixado ao acaso. O cadáver estava limpo.

— Receio que não — retorquiu o doutor Alvisio.

— Como assim?

— Recebi este fax hoje de manhã. — O investigador retirou uma última folha de papel. Tratava-se de um relatório do Centro de Controlo de Doenças em Miami. — O corpo do agente Clark foi inspecionado na alfândega do aeroporto. Agora, temos três casos de doença em crianças locais. Todas familiares de funcionários do aeroporto.

Lauren afundou-se na cadeira, atingida pelo horror daquelas palavras.

— Isso significa que a doença está aqui, seja ela qual for. Trouxemo-la para cá. É o que está a dizer?

O investigador anuiu.

— Qual é o grau de contágio? Elevado?

— É difícil dizer...

Lauren conhecia a reputação do seu interlocutor. Apesar da idade, era uma referência na área.

— Mas tem uma ideia preliminar, certo?

O doutor Alvisio engoliu em seco.

— Pelo estudo inicial das taxas de transmissão e do período de incubação, estamos a falar de um vírus que poderá ser cem vezes mais contagioso do que a gripe comum... e tão virulento como o ébola.

Lauren ficou lívida.

— E a taxa de mortalidade?

O investigador baixou o olhar e abanou a cabeça.

— Hank? — insistiu Lauren, a voz a falhar-lhe.

O doutor Alvisio ergueu o rosto.

— Até ao momento, ninguém sobreviveu.

12 de agosto, 06h22

Selva amazónica

Junto do rio, Louis Favre apreciava a paisagem ao amanhecer. Desfrutava daquele momento de quietude após uma longa noite. Raptar o militar do outro acampamento levara horas a preparar e executar, mas, como seria expectável, a equipa concluíra a missão com êxito.

Passados quatro dias, a tarefa de seguir os passos da expedição tornara-se uma rotina aborrecida. Todas as noites, os batedores antecipavam-se aos rangers e percorriam a selva profunda para montarem postos de observação camuflados nas árvores emergentes que se agigantavam na floresta. Enquanto espiavam, os batedores mantinham o contacto via rádio com a equipa de mercenários. Durante o dia, Louis e o grosso das suas forças avançavam rio acima em canoas, mantendo pelo menos uma distância de dez quilómetros dos alvos. Só se aproximavam durante a noite.

Louis virou as costas ao rio e adentrou-se na floresta. Escondido entre as árvores, o acampamento era quase impossível de detetar até ao momento em que uma pessoa se encontrava quase em cima dele. Pôs-se a observar a equipa de quarenta homens que levantava o acampamento e se preparava para seguir viagem. Tratava-se de um grupo eclético: índios de diferentes tribos do Amazonas, negros oriundos do Suriname, colombianos recrutados das operações de tráfico de droga. Apesar das diferenças, possuíam um traço em comum: eram homens rijos, forjados nas entranhas sangrentas da selva.

As armas repousavam alinhadas em lonas estendidas junto às camas. Eram tão variadas como os homens que as empunhavam: Heckler & Koch MP5 alemãs, Skorpion checas, metralhadoras compactas Ingram, Uzi israelitas, até um punhado de obsoletas pistolas-metralhadoras Sten, de fabrico inglês. Cada homem tinha uma arma de eleição. A favorita de Louis era a Mini-Uzi. Disponibilizava o mesmo poder de fogo da irmã mais velha, mas media apenas trinta e cinco centímetros de comprimento. Louis apreciava o desenho eficiente. Pequena e mortífera. À sua imagem e semelhança.

Além de prepararem as armas e munições, alguns homens afiavam machetes. O som de aço a raspar em pedra misturava-se com o canto matinal dos pássaros e o guincho dos macacos. Numa luta corpo a corpo, uma lâmina bem afiada funcionava melhor que uma arma de fogo.

Enquanto observava os homens, o seu braço-direito, um negro alto chamado Jacques, veio ao seu encontro. Aos treze anos, Jacques fora expulso da sua aldeia por ter violado uma rapariga de uma tribo vizinha. Ainda carregava marcas dessa jornada solitária pela selva. Faltava-lhe parte do nariz, o resultado de um ataque de piranhas. Acenou respeitosamente com a cabeça.

— Doutor.

— Sim, Jacques?

— A senhora Tshui pediu-me para dizer que está pronta.

Louis suspirou. Finalmente. O prisioneiro revelara-se difícil.

Enfiando a mão no bolso, retirou as chapas de identificação do cabo DeMartini e sentiu-lhes o peso. Encaminhou-se na direção da tenda solitária na outra ponta do acampamento. Por norma, partilhava a tenda camuflada com Tshui, mas tal não acontecera na noite anterior. Nessa longa noite, Tshui estivera ocupada com o novo convidado. Um dos eleitos, o orgulhoso...

Louis fez-se anunciar.

— Tshui, minha querida, o nosso convidado está pronto para receber visitas?

Afastou a aba da tenda e entrou. Estava insuportavelmente quente lá dentro. Um pequeno braseiro ardia a um canto. A amante encontrava-se ajoelhada a queimar um punhado de folhas secas, cujo fumo aromático subia em espiral. Levantou-se. A pele morena reluzia do suor. Apesar do calor, os mamilos encontravam-se eretos, denunciando a sua excitação.

Louis ficou a observá-la. Sentiu vontade de a possuir ali mesmo, mas conteve-se. Tinha um convidado naquela manhã.

Desviou o olhar para o homem nu estendido no chão de braços e pernas abertas. A única coisa que trazia no corpo era uma mordaça. Evitou focar-se demasiado na ruína sangrenta em que o homem se transformara e, ainda a segurar nas chapas de identificação, aproximou-se de uma cadeira desdobrável e sentou-se.

— Cabo James DeMartini — disse, lendo as chapas num inglês perfeito. Ergueu o olhar. — Disseram-me que está pronto para colaborar.

O soldado gemeu. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.

— Depreendo que isso foi um sim?

O ranger, como um cão espancado e torturado, anuiu dolorosamente com o focinho. Louis fitou-o. O que terá sido mais doloroso, interrogou-se, ou o momento em que teve de ceder?

Soltando um suspiro enfastiado, retirou-lhe a mordaça. Precisava de informações. Ao longo dos anos, aprendera que a diferença entre o êxito e o fracasso residia nos pormenores. Tinha resmas de dados sobre a equipa adversária, não só a informação que lhe fora fornecida pelo seu empregador, mas também de uma fonte bastante próxima.

Mesmo assim, não estava satisfeito.

Decidira raptar o jovem cabo porque as outras fontes não lhe tinham fornecido informações específicas sobre a unidade de Rangers, nomeadamente o poder de fogo de que dispunham, os códigos de rádio ou as rotinas. Além do mais, havia sempre a questão do derradeiro objetivo que perseguiam, as ordens secretas apenas do conhecimento dos militares. Por último, também planeara o rapto como um teste à capacidade dos seus homens.

A operação decorrera sem falhas. Munida de óculos de visão noturna, uma pequena equipa infiltrara-se no acampamento inimigo através do rio. Quando a oportunidade se apresentou, envenenaram um ranger com um dardo preparado por Tshui. De regresso ao rio, cobriram os rastos com um trilho falso de pegadas e dejetos de crocodilo. Tshui mantivera o prisioneiro vivo administrando-lhe um antídoto diretamente nos pulmões expelindo-o com a sua boca.

Foi durante a noite, porém, que os seus verdadeiros talentos foram bem aproveitados. A arte que aplicava no seu método de tortura não tinha rival, infligindo dor e prazer num estranho ritmo hipnótico que só terminava quando a vítima cedia.

— Deixem-me morrer — suplicou o soldado, com sangue a escorrer-lhe da boca.

— Em breve, mon ami. Primeiro, umas perguntinhas.

Louis recostou-se na cadeira enquanto Tshui caminhava à volta do soldado, espalhando o fumo do punhado de ervas secas. Reparou no pânico nos olhos dele, o modo aterrorizado como seguiam cada movimento de Tshui.

Louis achou aquilo terrivelmente excitante, mas manteve-se focado no assunto em mãos.

— Vamos lá ver se me pode ajudar com alguns números — disse, e nos minutos seguintes obteve do militar todos os códigos e horários dos rangers. Não precisou de apontar nada, registou tudo na memória. Aquelas informações facilitariam a tarefa de monitorizar as comunicações da outra equipa. A seguir, tratou de recolher os pormenores do poderio dos rangers: a quantidade e o tipo de armas, as competências individuais, fraquezas e meios de apoio aéreo.

O prisioneiro revelou-se bastante solícito. Falou sem parar, fornecendo até mais informações do que aquelas que haviam sido pedidas: «... o sargento Kostos tem uma reserva de whisky escondida na mochila... duas garrafas... e no barco do capitão Waxman existe um caixote com minibombas de napalm... e o cabo Conger tem uma revista Penthouse...»

Louis endireitou as costas.

— Um momento, monsieur. Volte atrás. Bombas de napalm?

— Minibombas... uma dúzia.

— Para quê?

O soldado pareceu confuso.

— James.

— Não... não sei dizer. Talvez para limpar uma zona da selva... qualquer coisa que bloqueie o nosso caminho.

— Uma bomba dessas consegue limpar uma área de que tamanho?

— Não tenho a certeza... — soluçou o militar. — Talvez um hectare...

Louis curvou-se com os cotovelos apoiados nos joelhos.

— Estás a dizer a verdade, James? — Fez sinal a Tshui, que se aborrecera com a conversa e se sentara no chão a alinhar um novo conjunto de ferramentas de tortura. Largou o que estava a fazer e gatinhou ao encontro do prisioneiro como um felino.

— Não! — gritou o cabo. — Não sei mais nada!

Louis recostou-se na cadeira.

— Posso acreditar em ti?

— Por favor...

— Sim, acho que vamos acreditar em ti. — Pondo-se de pé, Louis virou-se para a amante. — Terminei, mon cher. É todo teu.

Tshui deslizou na direção dos pés do soldado, oferecendo a face a Louis para que a beijasse.

— Não... — suplicou o homem no chão.

— Não demores — disse Louis. — O dia já nasceu e temos de ir andando.

Tshui sorriu e lançou-lhe um olhar lascivo, carregado de mistério. Ao sair da tenda, Louis ainda viu a amante pegar numa agulha de osso e num pedaço de fio. Nos últimos tempos, ela andava a experimentar uma nova abordagem na preparação das suas cabeças encolhidas. Consistia em coser as pálpebras das vítimas ainda vivas. Para melhor captar a essência da pessoa em questão, calculava Louis. Os xamãs shuaras davam uma importância especial aos olhos, que entendiam ser um caminho direto para a alma.

Ouviu-se um grito pavoroso no interior da tenda.

— Tshui, não te esqueças da mordaça! — avisou Louis. E depois cometeu o erro de olhar para trás.

Tshui estava sentada em cima do peito do soldado, prendendo-lhe a cabeça entre as coxas enquanto se atarefava com a agulha e o fio.

Louis ergueu uma sobrancelha. Ao que parecia, Tshui experimentava algo novo.

— Desculpa, mon cher — disse, virando de novo as costas.

Precipitara-se ao repreendê-la, visto que a mordaça não seria necessária.

Tshui começara já a coser a boca do homem.


TERCEIRO ATO

SOBREVIVÊNCIA DO MAIS FORTE

CASTANHA-DO-BRASIL

Família: Lecythidaceae

Género: Bertholletia

Espécie: Excelsa

Nome comum: Castanha-do-brasil, castanha-do-pará, noz

amazónica, tocari

Partes utilizáveis: Corpo, óleo das sementes

Propriedades: Emoliente, nutritivo, antioxidante, inseticida


8

A ALDEIA

13 de agosto, meio-dia

Selva amazónica

Franzindo o sobrolho, Nate agarrou na corda do barco e prendeu-a no tronco de uma mangueira.

— Cuidado — disse aos companheiros. — Esta zona é pantanosa. Vejam onde metem os pés.

Ajudou Kelly a saltar por cima do flutuador e aterrar num trecho sólido na margem. Ele próprio encontrava-se afundado em lama até aos joelhos e ensopado da cabeça aos pés.

Ergueu o rosto ao encontro dos pingos que caíam do céu cinzento. Formara-se uma tempestade durante a noite, que começara como uma borrasca intensa e depois se convertera, uma hora atrás, numa chuva miudinha. Até ao momento, a jornada revelara-se extenuante e deprimente. Tinham passado a manhã inteira a retirar água dos barcos com bombas manuais. Nate sentiu-se aliviado quando o capitão Waxman anunciou a pausa para o almoço.

Depois de ajudar os outros a saírem dos barcos, Nate subiu a margem enlameada até alcançar terreno mais elevado. A selva chorava com toda a água que escorria e pingava da copa das árvores.

O professor Kouwe não parecia nem um pouco incomodado. Munido da sua mochila improvisada com folhas de palma, caminhava já na direção da floresta à procura de comida, acompanhado pelo cabo Jorgensen. A expressão azeda do militar sugeria que estava pouco interessado no passeio, mas o capitão Waxman insistira que ninguém — nem mesmo o experiente professor Kouwe — podia andar sozinho na floresta.

No acampamento, o moral estava em baixo. Receberam na noite anterior a notícia de que uma eventual doença contagiosa estava associada ao corpo de Gerald Clark. Haviam sido estabelecidos protocolos de quarentena em Miami e no instituto onde o cadáver fora examinado. Além disso, o Governo brasileiro fora também informado e começavam a ser montados centros de quarentena na região da Amazónia. Os adultos saudáveis pareciam resistir ao vírus. Mas havia muito por descobrir: o agente causador, modos de transmissão, tratamento. Nos Estados Unidos tinham sido instauradas precauções de biossegurança Nível Quatro no Instituto Instar, com vista a responder a estas questões.

Nate olhou para Frank e Kelly. Frank tinha o braço à volta da irmã, pálida e abalada. Os familiares dos colaboradores do instituto tinham ficado em quarentena. Até ao momento, ninguém acusara os sintomas da doença, mas isso não atenuava a preocupação de Kelly.

Nate desviou o olhar, concedendo-lhes privacidade, e seguiu caminho.

A única boa notícia em quarenta e oito horas era que não tinham perdido mais ninguém às garras da selva. O nível de alerta mantinha-se elevado após o desaparecimento do cabo DeMartini. Os conselhos de Nate e Kouwe tinham sido ouvidos, e assistia-se a um renovado respeito em relação aos encantos e perigos daquele local. Antes de desembarcarem ou de tomarem banho no rio, todos verificavam os baixios à procura de raias ou enguias-elétricas escondidas. Kouwe ensinara que precauções ter face a cobras e escorpiões. De manhã, por exemplo, ninguém calçava as botas sem as sacudir.

Nate percorreu o perímetro do acampamento à procura de outros perigos: lianas de fogo, formigueiros, serpentes escondidas. Fazia tudo parte da nova rotina.

Avistou os dois novos membros da equipa, os substitutos dos militares mortos. Recolhiam lenha para as fogueiras. Eram ambos soldados de primeira classe e recém-chegados aos Rangers: Eddie Jones, um tipo corpulento com sotaque do Bronx e, surpresa das surpresas, uma mulher, Maria Carrera, uma das primeiras operacionais femininas ao serviço daquela unidade de elite do exército. As Forças Especiais só tinham aberto as portas às mulheres seis meses antes, depois de uma alteração à lei de bases das Forças Armadas norte-americanas. Ainda assim, as novas recrutas femininas continuavam impedidas de atuar em cenários de combate, sendo destacadas para missões como aquela.

Eddie e Maria tinham chegado naquela manhã num Huey, juntamente com bidões de combustível e outros mantimentos. Um carregamento essencial, dado que seria o último. Daquele dia em diante, a equipa passaria a estar fora do alcance dos Hueys — o mesmo era dizer que deixariam de contar com apoio aéreo. Tinham viajado seiscentos e cinquenta quilómetros desde o início da expedição, e o único helicóptero capaz de percorrer essa distância era o Comanche. O veloz helicóptero de combate apenas seria utilizado numa emergência, como a evacuação de um companheiro ferido, ou num ataque aéreo. Fora isso, a equipa estava entregue a si mesma.

Terminada a vistoria, Nate regressou ao centro do acampamento. O cabo Conger tentava acender a fogueira, mas a chuva miudinha teimava em apagar as chamas.

— Rai’s partam! — praguejou o jovem texano, atirando o fósforo para o lado. — Está tudo encharcado! Não vejo outra forma de acender isto sem ser com um sinalizador de magnésio.

— Ninguém toca nos sinalizadores! — ordenou o capitão Waxman. — Passamos o almoço sem fogueira, se for caso disso.

Manny resmungou entre dentes. Estava encharcado até aos ossos. O único elemento da equipa que parecia ainda mais desanimado era o jaguar. Tor-tor marcava passo ao redor do dono, de orelhas caídas, completamente ensopado. Não havia nada mais digno de pena do que um gato molhado. Mesmo que pesasse noventa quilos.

— Talvez possa ajudar — disse Nate, atraindo uns quantos olhares. — Conheço um velho truque indígena.

Encaminhou-se novamente na direção da floresta, à procura de uma árvore específica que avistara momentos antes. Manny e o capitão foram atrás dele. Não demorou a encontrar a árvore alta que exibia uma casca cinzenta e granulada. Sacou do machete e desferiu uns quantos golpes no tronco. Uma espessa resina começou a fluir. Nate tocou-lhe com a ponta do dedo e deu a substância a cheirar ao capitão Waxman.

— Cheira a terebintina — disse o capitão.

Nate deu uma palmada na árvore.

— Chama-se copal. O nome tem origem na palavra asteca para resina, copalli. As árvores desta família podem ser encontradas nas florestas da América Central e do Sul. A resina tem várias aplicações: curar feridas, tratar diarreias e constipações. Os dentistas de hoje em dia também a utilizam.

— Dentistas? — perguntou Manny.

Nate ergueu o dedo pegajoso no ar.

— Se alguma vez fizeste a reconstrução de um dente, é provável que tenhas isto na boca.

— Bom, e isso ajuda-nos como? — perguntou o capitão.

Nate ajoelhou-se e começou a afastar as folhas mortas na base do tronco.

— O copal é rico em hidrocarbonetos. Na verdade, tem sido estudado como uma fonte alternativa de combustível. Num motor de combustão normal, o copal arde com mais eficiência do que a gasolina, por exemplo. — Nate encontrou o que procurava. — Mas os índios conhecem este segredo há séculos.

Pondo-se de pé, Nate revelou um pedaço de resina solidificada, mais ou menos do tamanho de um punho. Espetou-a na ponta de um galho, como se fosse um marshmallow.

— Empresta-me um fósforo?

O capitão Waxman retirou um fósforo de um recipiente à prova de água.

Nate acendeu-o na casca da árvore e aproximou-o da bola de resina, que se incendiou, produzindo uma intensa chama azul. Segurou o galho como se fosse uma tocha e começou a regressar ao acampamento.

— Há séculos que os caçadores indígenas usam esta resina para acender fogueiras durante tempestades — explicou. — É capaz de arder durante horas, o que a torna perfeita para atear lenha húmida.

No acampamento, a bola de fogo atraiu os olhares dos outros. Frank e Kelly juntaram-se ao grupo enquanto Nate depositava a resina no aglomerado de folhas e galhos. Não demorou para que começassem a arder.

Frank estendeu as mãos para as aquecer no lume.

— Bom trabalho.

Nate olhou para Kelly e ela sorriu-lhe. Era a primeira vez que sorria nas últimas vinte e quatro horas.

Nate aclarou a garganta.

— Agradeça aos índios, não a mim.

— E talvez tenhamos oportunidade de o fazer — disse Kouwe, surgindo sem aviso nas costas do grupo.

Todos se viraram.

O professor e o cabo Jorgensen apressaram-se ao encontro dos companheiros. O cabo estava visivelmente excitado.

— Encontrámos uma aldeia! — disse. Apontou na direção de onde tinham vindo. — A uns quatrocentos metros rio acima. Está abandonada.

— Ou assim parece — disse Kouwe, fitando Nate.

Nate ergueu uma sobrancelha. Serão os índios que nos seguem às escondidas? Sentiu uma pontada de esperança. Tinha receio de que a tempestade tivesse apagado qualquer rasto deixado pelo agente Clark. E aquela seria apenas a primeira de muitas, assinalando o início da época das chuvas. O tempo esgotava-se. Mas agora...

— Devemos investigar imediatamente — disse o capitão. — Mas primeiro quero enviar uma equipa de três homens para fazerem o reconhecimento do local.

Kouwe ergueu um braço no ar.

— Talvez seja preferível uma abordagem menos agressiva. Por esta altura, os índios sabem que estamos aqui. Acredito que foi por esse motivo que encontrámos a aldeia deserta.

O capitão Waxman abriu a boca para discordar, mas Frank antecipou-se.

— O que sugere, então?

Kouwe acenou com a cabeça na direção de Nate.

— Nós os dois vamos lá primeiro. Sozinhos.

— Nem pensar! — exclamou Waxman. — Não vos deixo ir sem proteção.

Frank ajeitou o boné e limpou o suor da testa.

— Devíamos ouvir o professor. A presença de soldados armados apenas vai assustar os índios. Precisamos da colaboração deles. Dito isto, também não posso ignorar a preocupação do capitão em relação a irem sozinhos.

— Aceito levar um soldado connosco — sugeriu Nate. — Mas a arma não sai do ombro. Estes índios podem viver isolados, mas sabem muito bem o que são armas e para que servem.

— Eu gostava de os acompanhar — disse Anna Fong. A antropóloga tinha os longos cabelos pretos colados ao rosto e aos ombros. — A presença de uma mulher no grupo pode passar uma imagem menos hostil. Os índios não levam mulheres quando vão atacar um inimigo.

Nate anuiu com a cabeça.

— A doutora Fong tem razão.

O capitão Waxman franziu a testa, desagradado com a perspetiva de permitir que um punhado de civis assumisse aquele risco.

— Nesse caso, talvez eu seja a pessoa indicada para o papel. — A voz era de Maria Carrera, a única mulher na equipa de rangers, para a qual todas as atenções se viraram. Dirigiu-se a Waxman. — Se as mulheres são vistas como menos hostis, deveria ir eu com eles.

Waxman cedeu finalmente.

— Muito bem — resmungou. — Vou confiar na opinião do professor Kouwe. Por enquanto. Mas quero o resto da unidade a cem metros da aldeia. E em contacto permanente via rádio.

Frank, Nate e Kouwe trocaram olhares, depois acenaram afirmativamente.

Com a questão resolvida, Frank aclarou a garganta.

— Vamos a isso.

Kelly viu o grupo dividir-se em várias unidades. Nate, Kouwe e Anna Fong navegavam já contra a corrente, enquanto o capitão Waxman selecionava três homens e os conduzia para outro barco. Seguiriam o primeiro Zodiac a uma distância segura, mas suficientemente perto para responderem rápido. Adicionalmente, três outros rangers avançariam a pé, liderados pelo cabo Jorgensen. Esta equipa tomaria posição a cem metros da aldeia. Para tal, tinham pintado os rostos com as cores da selva, a fim de melhor se ocultarem entre a vegetação.

Manny tentara juntar-se ao último grupo, mas o capitão fora perentório:

— Os restantes civis ficam no acampamento.

Resolvida a questão, Kelly nada podia fazer senão ver os outros partirem. Dois rangers, o recém-chegado soldado Eddie Jones e o cabo Tom Graves, ficaram de guarda ao acampamento. Assim que se encontraram sozinhos, Kelly ouviu Jones resmungar com Graves:

— Gostava de saber por que raio ficámos nós a tomar conta das ovelhas.

O cabo Graves não lhe deu resposta e ficou a fitar o vazio. Ainda sofria pela morte do irmão.

Kelly foi ter com Frank. Enquanto líder da expedição, o irmão podia ter ido com os outros, mas escolhera ficar para trás. Não o fizera por medo, sabia Kelly, mas para ficar junto dela.

— O Olin tem o satélite em linha — disse Frank, pegando-lhe no braço. — Podemos estabelecer ligação com os Estados Unidos quando quiseres.

Kelly anuiu.

Não muito longe da fogueira e resguardado por uma lona impermeável, Olin encontrava-se curvado sobre o portátil e a antena de satélite. Os dedos movimentavam-se agilmente no teclado e o rosto exibia uma expressão concentrada. Atrás dele, Richard Zane observava-o a trabalhar.

Por fim, Olin levantou os olhos do ecrã.

— Estamos prontos — disse.

Kelly notou o ligeiro sotaque russo na voz dele. A maioria das pessoas não seria capaz de o detetar — a não ser que tivessem o ouvido treinado para essas coisas. Olin pertencera ao KGB e trabalhara no Departamento de Vigilância Informática antes da implosão do regime comunista. Desertara para os Estados Unidos seis meses antes da queda do Muro de Berlim. O passado ligado às tecnologias e o conhecimento dos sistemas informáticos russos tinham-lhe garantido uma posição de baixo nível de segurança na Diretoria de Ciência e Tecnologia da CIA.

Frank conduziu Kelly na direção de uma cadeira em frente ao ecrã.

— Conseguiu estabelecer ligação com o instituto? — perguntou ela a Olin.

— Claro.

Após ter sido informada do contágio, Kelly insistira em manter-se a par dos acontecimentos pelo menos duas vezes ao dia. Justificara a necessidade como uma maneira de manter ambas as partes constantemente informadas e em sintonia, mas, na realidade, precisava de saber se a família estava bem. A mãe, o pai, a filha... todos se encontravam na zona de impacto.

Lançando um olhar de desconfiança a Olin, Kelly sentou-se na cadeira depois de ele se desviar. Nunca se sentira à vontade perto daquele homem. Talvez pelo facto de ser um antigo elemento do KGB e de o pai dela desde longa data trabalhar na CIA. Ou talvez fosse por causa da cicatriz hedionda que lhe atravessava o rosto da orelha à garganta. Olin sempre dissera que não passava de um marrão informático que trabalhara para o KGB, mas, se isso fosse verdade, onde arranjara ele a cicatriz?

Olin apontou para o ecrã.

— Devemos estar em linha em trinta segundos.

Kelly observou a contagem decrescente no ecrã. Quando chegou a zero, abriu-se uma janela com o rosto do pai. Estava vestido de forma casual, com a gravata desapertada e sem casaco.

— Pareces um rato encharcado — começou por dizer o pai.

Kelly sorriu e tocou nos cabelos molhados.

— Começou a época da chuva.

— Bem vejo — retorquiu o pai, devolvendo-lhe o sorriso. — Como estão as coisas?

Frank juntou-se à conversa e relatou a descoberta mais recente. Enquanto o irmão falava, Kelly ouviu o barulho do barco de Nate. A água e a vegetação originavam estranhos efeitos acústicos, dando a ideia de que o barco se encontrava perto, mas depois o motor silenciou-se e percebeu que Nate e os outros já deviam ter chegado ao destino.

— Toma conta da tua irmã — disse o pai, terminando a conversa.

— Assim farei — assentiu Frank, dando a vez a Kelly.

— A mãe e a Jessie? — perguntou ela, apertando as mãos sobre o colo. — Como estão?

O pai sorriu-lhe.

— Estão bem e recomendam-se. Nós todos. O instituto inteiro. Não há notícias de novos casos. Fomos bem-sucedidos na implementação dos protocolos de segurança. A ala oeste foi convertida em habitação temporária para as famílias. Com tantos elementos da MEDEA aqui presentes, temos médicos disponíveis a toda a hora.

— E como está a Jessica a reagir a tudo isso?

O pai encolheu os ombros.

— Que queres que te diga? A Jessie tem seis anos. Ficou um pouco assustada de início, mas agora está a divertir-se imenso com as outras crianças. Aliás, porque não lhe perguntas tu?

Kelly endireitou-se e o rosto da filha surgiu no ecrã, a sua pequena mão acenando vigorosamente.

— Olá, mamã!

Kelly teve vontade de chorar.

— Olá, querida. Estás a divertir-te?

A filha fez que sim com a cabeça e saltou para o colo do avô.

— Comi bolo de chocolate e montei um pónei!

Marshall sorriu.

— Há uma quinta aqui perto — disse, falando por cima da cabeça da neta. — Fica dentro da zona de quarentena. Eles trouxeram um pónei para entreter as crianças.

— Que máximo, querida! Gostava de ter visto.

Jessie endireitou-se no colo do avô.

— E sabes que mais? Vamos ter um palhaço e ele vai fazer-nos animais com balões.

— Um palhaço?

— O doutor Emory, da histopatologia — segredou Marshall. — Consta que tem jeito para a coisa.

— Vou pedir-lhe para me fazer um macaco! — disse Jessie.

— Isso é maravilhoso. — Kelly inclinou-se para a frente, absorvendo por inteiro aquele momento com o pai e a filha.

Esgotado o tema dos palhaços e dos póneis, Marshall retirou a neta do colo.

— Está na hora de a senhora Gramercy te levar de volta para a sala de aula.

Jessie fez beicinho, mas obedeceu.

— Adeus, querida — disse Kelly. — Amo-te.

Jessie acenou novamente, desta vez com o braço inteiro.

— Adeus, mamã! Adeus, tio Frankie!

Kelly teve de se controlar para não tocar no ecrã.

Assim que Jessie se afastou, a expressão de Marshall tornou-se mais séria.

— Nem todas as notícias são boas, infelizmente.

— Como assim?

— É por isso que a tua mãe não está aqui a falar contigo. Embora as coisas estejam controladas no instituto, o surto na Florida está a espalhar-se. Ontem à noite foram reportados mais seis casos nos hospitais de Miami, e outros doze no município inteiro. A zona de quarentena foi ampliada, mas não nos parece que tenhamos agido a tempo. A tua mãe e outros colegas estão a acompanhar notícias de novos casos em todo o país.

— Meu Deus — murmurou Kelly.

— O número subiu para vinte e dois, e isto nas últimas doze horas. Há oito mortes a registar. Os cenários calculados pelos melhores epidemiologistas do país apontam para a duplicação destes números a cada doze horas. Na Amazónia contam-se quinhentos mortos.

O rosto de Kelly empalideceu quando se pôs a fazer cálculos de cabeça. Sentiu os dedos do irmão apertarem-lhe o ombro. Em poucos dias, o número de infetados nos Estados Unidos podia ascender às dezenas de milhares.

— O presidente acabou de assinar uma ordem para mobilizar a Guarda Nacional na Florida. A história oficial é que estamos perante um surto de uma gripe sul-americana. Os pormenores de como a doença chegou aqui não foram divulgados.

Kelly recostou-se na cadeira, como se a distância em relação ao ecrã pudesse atenuar o horror.

— Foi estabelecido algum protocolo de tratamento?

— Ainda não. Os antibióticos e antivirais parecem não ter efeito. Todas as terapias até ao momento visam exclusivamente o alívio dos sintomas: medicamentos para combater a febre e a dor, soro para hidratar... até descobrirmos o que causa a doença, não podemos fazer muito mais. — O pai aproximou-se do ecrã. — É por isso que o vosso trabalho no terreno é mais importante que nunca. Se souberem o que aconteceu ao agente Clark, talvez consigam descobrir a causa da doença.

Kelly anuiu.

— Vamos fazer o que pudermos — murmurou Frank.

— E eu vou deixá-los regressar ao trabalho — disse Marshall.

Feitas as despedidas, o pai terminou a videochamada.

Kelly olhou para o irmão. Encontrava-se ladeado por Manny e Richard Zane.

— Meu Deus, o que foi que fizemos? — disse Manny. — Devíamos ter dado ouvidos ao xamã dos ianomâmis. O cadáver tinha de ser queimado.

Zane abanou a cabeça.

— Não faria diferença. A doença encontraria uma maneira de sair da floresta. Tal como a sida.

— Como assim? — perguntou Kelly.

— A sida surgiu depois da construção de uma autoestrada na selva africana. Quando perturbamos estes ecossistemas antigos, arriscamo-nos a encontrar o que não queremos.

Kelly levantou-se.

— Então, cabe-nos a responsabilidade de resolver o problema. A selva pode ter-nos dado a sida, mas também nos ofereceu os melhores tratamentos para combater a doença. Setenta por cento dos medicamentos para o HIV derivam de plantas tropicais. Se esta nova doença saiu da selva, porque não a cura?

— Se a conseguirmos encontrar — disse Zane.

Um pouco mais ao lado, o jaguar de Manny rugiu subitamente. O grande felino virou-se e esparramou-se no chão, com as orelhas arrebitadas, os olhos cravados nas sombras da floresta.

Zane deu um passo atrás.

— O que se passa com ele?

Manny franziu a testa e olhou na mesma direção.

— Apanhou um cheiro... anda ali qualquer coisa.

Nate percorreu o trilho estreito que conduzia à aldeia indígena, constituída por uma única casa comunitária, aberta no centro, ao estilo dos Ianomâmis. Ao aproximar-se da estrutura, não ouviu nenhum dos sons habituais. Não havia huyas a discutirem uns com os outros, mulheres a pedirem mais bananas-da-terra, crianças a rirem-se. Em vez disso, reinava um inquietante silêncio fantasmagórico.

— A construção é sem dúvida ianomâmi — sussurrou Nate na direção de Kouwe e Anna Fong. — Mas é pequena. Não deve albergar mais do que trinta nativos.

A soldado Carrera caminhava atrás do trio. Carregava a M16 com o cano apontado para o chão e ia dizendo qualquer coisa para o microfone do rádio auricular.

Anna estudou a casa comunitária com os olhos arregalados.

Nate impediu-a de cruzar a pequena porta.

— Alguma vez lidou com os Ianomâmis?

Anna abanou a cabeça.

Nate levou as mãos à boca e gritou:

— Klock, klock, klock.

Baixou o tom de voz e explicou o que estava a fazer.

— Mesmo que pareça deserta, não devemos entrar numa aldeia ianomâmi sem nos anunciarmos. Caso contrário, é uma forma de levarmos com uma flecha nas costas. Eles tendem a disparar primeiro. As perguntas ficam para depois.

— Parece-me uma boa política — murmurou Carrera.

Aguardaram junto à entrada durante um minuto.

— Não está cá ninguém — declarou por fim Kouwe. Virou-se na direção do rio e fez um gesto largo com o braço. — Não há canoas, redes ou outro equipamento de pesca. Nenhum guincho de yebis.

— Yebis? — perguntou a militar.

— O jacamim-de-costas-cinzentas — explicou Nate. — Uma espécie de galinha, só que mais feio. Os índios usam estas aves como cães de guarda. Fazem um autêntico alvoroço quando alguém se aproxima.

Carrera anuiu.

— Portanto, se não há galinhas, não há índios. — Olhou em redor, atenta à floresta. Tão cedo não baixaria a guarda. — Eu vou primeiro.

Endireitando a arma, aproximou-se da porta, espreitou o interior e entrou, mantendo-se colada à parede. Passado um bocado, gritou:

— Desimpedido! Entrem, mas mantenham-se atrás de mim.

Carrera avançou para o centro da estrutura circular. Mantinha o dedo no gatilho, mas, tal como Nate aconselhara, segurava a arma com o cano virado para o chão. Entre os Ianomâmis, uma flecha engatada num arco e pronta a disparar era vista como um ato de guerra. Como Nate não fazia ideia de até que ponto aquela tribo em particular se encontrava familiarizada com armas modernas, mais valia evitar mal-entendidos.

Juntos, Nate, Kouwe e Anna entraram na pequena casa comunitária

Em volta, os espaços unifamiliares encontravam-se divididos por cortinas de folhas de tabaco, cabaças de água e cestos. As camas, todas elas vazias, pendiam das traves no telhado. Duas tigelas de pedra encontravam-se tombadas no centro da área a céu aberto, atrás de uma pedra de moagem, onde havia também alguma farinha de mandioca derramada pelo chão.

Uma explosão de cor sobressaltou-os quando um papagaio levantou voo. Encontrava-se pousado numa pilha de bananas maduras.

— Não gosto disto — disse Kouwe.

Nate sabia o que o professor queria dizer com aquilo e anuiu.

— Porquê? — perguntou Carrera.

— Quando os Ianomâmis se deslocam para outro sítio, costumam queimar a antiga casa, ou pelo menos levam tudo o que lhes é útil. — Kouwe olhou em redor. — Nunca deixariam para trás estes cestos, as camas e as coleções de penas.

— O que os levaria a partir tão à pressa? — perguntou Anna.

Kouwe abanou a cabeça.

— Pânico. Alguma coisa os assustou.

— Nós? — Anna olhou em volta. — Acha que sabiam que vínhamos a caminho?

— Se ainda aqui se encontravam, de certeza que estariam cientes da nossa presença. Eles vigiam atentamente a floresta. Em todo o caso, não creio que fosse esse o motivo.

— Porquê? — perguntou Nate.

Kouwe caminhou ao longo dos vários espaços familiares.

— As cinzas das fogueiras estão frias. — Tocou na pilha de bananas onde o papagaio estivera pousado. — Esta fruta está praticamente podre. Os Ianomâmis não desperdiçariam comida.

A explicação do professor fazia sentido aos olhos de Nate.

— Acredita que a aldeia foi abandonada há algum tempo.

— Pelo menos uma semana, diria eu.

— E para onde foram? — perguntou Anna.

Kouwe deteve-se e deu meia-volta.

— Não sei, mas há aqui outro pormenor que me parece relevante. — O professor lançou um olhar a Nate, como que a ver se ele também se apercebera.

Nate franziu a testa e estudou os despojos. Só então reparou.

— As armas desapareceram.

Entre os diferentes objetos não havia uma única flecha, um arco, uma moca ou um machete.

— O que quer que os tenha afugentado — disse Kouwe — também os fez temer pela vida.

Carrera aproximou-se.

— Se tiver razão e este sítio está realmente abandonado, talvez seja melhor chamar os meus companheiros.

Kouwe anuiu.

Carrera afastou-se, a murmurar para o auricular.

— Os ianomâmis que andavam a seguir o nosso grupo não eram estes — segredou o professor a Nate.

— Quem eram, então?

— Outro grupo... já nem tenho a certeza de que fossem índios. Está na altura de falarmos com o Frank e o capitão Waxman.

— Acha que quem nos segue foi quem assustou os índios?

— Não sei, mas se conseguiram afugentar os ianomâmis da própria casa, então será com certeza alguém ou algo a que devemos estar atentos.

A chuva parara. As nuvens começavam a apartar-se, permitindo a passagem de alguns raios de sol. A diferença de claridade era notória depois de tanto tempo mergulhados naquela penumbra húmida.

Nate ouviu um motor despertar à distância. O capitão Waxman e os rangers vinham a caminho.

— Tem a certeza de que devemos contar-lhes? — perguntou Nate.

Anna aproximou-se antes que Kouwe pudesse responder.

— Olhem para aqueles pássaros! — disse ela, apontando para os céus a sul.

Nate virou-se nessa direção. Terminada a chuva, várias aves levantavam voo para secarem as asas e procurarem comida. Porém, a uns oitocentos metros de distância, Nate viu um enorme bando de pássaros pretos agigantar-se sobre as copas das árvores como uma neblina negra. Eram aos milhares.

Oh, não...

Correu na direção de Carrera.

— Empreste-me os binóculos.

A militar também observava a estranha aparição dos pássaros pretos. Desprendeu os binóculos do colete tático e entregou-os a Nate. Suspendendo a respiração, Nate espreitou pelas lentes. Demorou um bocado a perceber o que via. O alcance das lentes permitiu-lhe identificar os pássaros, que pareciam lutar em pleno ar. Uns eram maiores que os outros, mas, apesar das diferenças, partilhavam uma característica comum.

— Abutres — disse Nate, baixando os binóculos.

Kouwe aproximou-se.

— Tantos...

— Urubus-de-cabeça-vermelha, da mata, e até reais.

— É melhor irmos ver o que se passa — disse Kouwe. O olhar do professor denunciava a preocupação partilhada por todos: os índios desaparecidos... os abutres... aquilo não era um bom presságio.

— Ninguém sai daqui até chegar a minha unidade — avisou a ranger.

Nas costas do grupo, o rugido do motor do barco cresceu de intensidade e depois silenciou-se. Numa questão de minutos, o capitão Waxman e três dos seus homens irromperam pelo shabano. Carrera contou-lhes o que se estava a passar.

— Mandei os homens que estavam na floresta de volta para o acampamento — disse o capitão. — Eles vão trazer toda a gente para aqui. Entretanto, vamos examinar o que se passa lá à frente — concluiu, apontando para Carrera, Conger e Kostos.

— Gostava de ir com eles — disse Nate. — Conheço esta selva melhor do que ninguém.

— E assim tem provado — suspirou o capitão. Fez sinal para o grupo se pôr em movimento. — Mantenham o contacto via rádio.

Enquanto se afastava, Nate ainda ouviu o professor dirigir-se ao capitão dos Rangers:

— Capitão Waxman, preciso de lhe contar uma coisa...

Nate sentiu-se aliviado por não ficar ali para ver qual seria a reação do militar. Ele não ficaria satisfeito de saber que fora deixado às escuras em relação aos hipotéticos visitantes noturnos nos acampamentos anteriores. O diplomático professor Kouwe era a pessoa certa para dar as explicações necessárias.

De volta à floresta, Conger e Kostos tomaram a dianteira, deixando a proteção da retaguarda a cabo de Carrera, que seguia atrás de Nate.

Apressaram-se pela selva húmida, atentos ao chão enlameado e às densas camadas de folhas ensopadas. Um pequeno riacho que corria na direção do rio atrás deles parecia indicar o caminho que precisavam de tomar. Encontraram um antigo trilho de caça e começaram a avançar mais depressa.

Nate reparou em pegadas ao longo do trilho. Pareciam antigas e quase apagadas pela chuva. Pés descalços, pensou. Chamou a atenção de Carrera para uma das pegadas.

— Os índios devem ter fugido por aqui.

Ela anuiu e fez-lhe sinal para continuar a andar.

Nate interrogou-se sobre a estranheza daquela opção dos índios. Porque é que fugiram a pé se podiam usar o rio?

O grupo subiu o trilho, sempre ao longo do riacho. Apesar do ritmo intenso imposto pelos rangers, Nate viu-se capaz de os acompanhar. A floresta estava estranhamente silenciosa. Parecia que velava a morte de alguém, ou simplesmente sustinha a respiração. Fosse como fosse, Nate arrependeu-se de ter deixado a caçadeira no acampamento.

Encontrava-se tão concentrado no terreno e nos eventuais perigos escondidos que por pouco não reparou. Parou de repente, soltando uma exclamação de espanto.

Carrera quase o abalroou.

— Eh, cuidado! — reclamou ela.

Os outros dois rangers nem se aperceberam de que eles tinham parado.

— Precisa de uma pausa? — perguntou a militar, com um tom de desdém.

— Não — retorquiu Nate, a ofegar. — Veja.

Havia um pedaço de um material amarelo, mais ou menos do tamanho de metade de uma carta de jogar, espetado num ramo. Nathan pegou-lhe.

— O que é? — perguntou Carrera. — Pertence aos índios?

Nate sentiu o material entre os dedos.

— Acho que não. Parece-me poliéster.

Inspecionou o ramo onde o quadrado de tecido estava espetado. Fora cortado, em vez de se ter partido naturalmente. Ao examinar a ponta, reparou numas estranhas marcas no tronco da árvore. O que é isto? Estendeu a mão e limpou a água da chuva do tronco.

— Meu Deus...

— O que foi?

Nathan desviou-se para que a companheira pudesse ver melhor. Havia uma mensagem codificada inscrita na casca do tronco.

Carrera inclinou-se e assobiou.

— O G e o C no fundo...

— Gerald Clark — disse Nate. — Ele assinou-a. A seta deve indicar a direção de onde veio... ou onde se encontra o marcador seguinte, pelo menos.

Carrera consultou a bússola.

— Sudoeste. A seta aponta na direção certa.

— E os números? Dezassete e cinco?

A ranger franziu a testa.

— Uma data escrita à maneira militar, talvez? O dia, seguido do mês?

— Nesse caso, a data seria dezassete de maio. Isso foi há três meses.

Virando-se, Nate preparava-se para contrariar a conclusão de Carrera, mas ela ergueu uma das mãos no ar, enquanto a outra ajustava o auricular na orelha.

— Afirmativo — disse a militar. — Estamos a caminho.

Nate ergueu uma sobrancelha.

— O Conger e o Kostos — explicou ela. — Encontraram corpos mais adiante.

Nate sentiu um nó no estômago.

— Vamos. Eles querem a sua opinião.

Nate anuiu e pôs-se de novo em movimento. Enquanto caminhavam, Carrera comunicou a descoberta ao capitão Waxman.

Nate olhou para baixo e apercebeu-se de que ainda segurava o pedaço de tecido amarelo. Lembrava-se de que Gerald Clark surgira da selva descalço, vestindo apenas umas calças. Teria usado a camisa para deixar aqueles quadrados de tecido pelo caminho? Como um trilho de migalhas?

Passados quatro anos, aquilo constituía a primeira prova tangível de que alguém da expedição do pai sobrevivera. Até à data, Nate não alimentara a esperança de que o pai pudesse estar vivo. Na verdade, recusara-se sequer a contemplar essa possibilidade. Sobretudo passado tanto tempo. E muito menos depois de ter aceitado a morte dele. Perder o pai uma segunda vez constituía um golpe devastador. Lançou um último olhar ao tecido e guardou-o no bolso.

Enquanto subia o trilho, interrogou-se se haveria mais pedaços espalhados pela floresta. Não tinha maneira de saber, mas uma coisa era certa. Não deixaria de procurar até descobrir o que acontecera ao pai.

Nas suas costas, Carrera praguejou.

Nate olhou por cima do ombro. A militar cobrira o nariz e a boca com o braço. Só então se apercebeu do fedor pútrido de carne e entranhas.

— Aqui! — gritou uma voz. Era o sargento Kostos. O ranger mais velho encontrava-se uns dez metros à frente. O uniforme camuflado tornava-o praticamente indistinguível da vegetação.

Nate encaminhou-se na sua direção. Foi imediatamente atingido pela tenebrosa visão que se apresentava diante de si.

— Oh, meu Deus! — exclamou Carrera.

O cabo Conger, o jovem texano, aguardava um pouco mais à frente, bem no centro da matança, com um lenço a cobrir-lhe o rosto. Enxotava os abutres com a M16 enquanto os enxames de moscas zumbiam por toda a parte.

Havia corpos em todo o lado: no trilho, na floresta, na margem do rio. Homens, mulheres, crianças. Todos índios, em princípio, mas não podia ter a certeza. Os rostos haviam sido desfeitos à dentada, os braços e a as pernas roídos até aos ossos, as entranhas arrancadas. Os animais carnívoros e os necrófagos tinham deixado a sua marca nos cadáveres, que agora eram reclamados pelas moscas e por outros insetos. Apenas o tamanho dos corpos sugeria que pertenceriam aos ianomâmis desaparecidos. Pelo número de indivíduos, tratar-se-ia da aldeia inteira.

Nathan fechou os olhos. Recordou os nativos com quem trabalhara e convivera: a pequena Tama, o nobre Takaho. Correu pelo trilho e curvou-se na margem do rio. Respirou fundo, tentando combater os vómitos, mas era inútil. Com um gemido, o estômago contraiu-se. O vomitado conspurcou as águas do rio, cujo caudal aumentara de forma substancial com a chuva. Nate permaneceu curvado e a ofegar, de mãos nos joelhos.

Kostos aproximou-se.

— Não temos o dia todo, Rand. O que acha que aconteceu aqui? Foram atacados por outra tribo?

Nate não se mexeu, com receio de vomitar outra vez.

A soldado Carrera juntou-se a ele e pousou-lhe a mão no ombro.

— Quanto mais depressa despacharmos isto, mais depressa saímos daqui.

Nate acenou com a cabeça, respirou fundo e obrigou-se a desviar o olhar na direção dos corpos. Estudou-os à distância, e depois aproximou-se.

— Qual é a sua opinião? — perguntou Carrera.

— Devem ter fugido durante a noite — disse Nate, com a boca ainda a saber a vómito.

— Porque diz isso? — perguntou Kostos.

Nate olhou para o sargento e apontou para um pau junto de um dos cadáveres.

— Aquilo é uma tocha usada. Eles fugiram durante a noite. — Continuou a estudar os cadáveres. Havia um padrão na matança. — Na altura do ataque, os homens tentaram proteger as mulheres e as crianças. Tendo falhado, as mulheres assumiram a segunda linha de defesa e tentaram fugir com os filhos. — Nathan apontou na direção do corpo de uma mulher que tombara uns metros à frente, mais no interior da floresta. Segurava ainda uma criança nos braços.

Nate desviou o olhar e prosseguiu:

— O ataque veio do rio. — A mão tremeu-lhe quando apontou para os corpos masculinos amontoados na margem. — Devem ter sido apanhados de surpresa, o que não deu tempo para montarem uma defesa adequada.

— Não estou interessado em saber a ordem em que morreram — respondeu Kostos. — Quem os matou?

— Não sei. Não vejo flechas ou lanças espetadas nos corpos. Por outro lado, os atacantes podem tê-las levado, quer para não desperdiçarem arsenal, quer para não deixarem provas incriminatórias. No estado em que se encontram os corpos, não há maneira de distinguir os ferimentos de armas dos estragos feitos pelos animais.

— Por outras palavras, não faz ideia do que aconteceu. — Kostos abanou a cabeça e deu meia-volta. Afastando-se uns metros, ativou o auricular.

Nate limpou o suor da testa e sacudiu um arrepio.

O que aconteceu aqui?

Kostos deu um passo em frente, elevou a voz e disse:

— Novas ordens! A doutora O’Brien quer um corpo para examinar. Um que esteja em melhor estado. Voluntários?

Ninguém respondeu. O sargento sorriu de forma mórbida.

— Muito bem, não esperava outra coisa. — Virou-se para a soldado Carrera. — Faz um favor a todos e leva o nosso frágil doutor de volta para o acampamento. Isto é trabalho para homens.

— Sim, senhor — assentiu Carrera. Fez sinal a Nate e começou a conduzi-lo na direção do trilho. Percorridas umas dezenas de metros, Nate ouviu-a resmungar entre dentes: — Saiu-me cá um idiota...

Nate assentiu, mas, na verdade, sentia-se aliviado por sair dali. Estava a marimbar-se para o que o sargento Kostos pensava. Em todo o caso, compreendia a raiva de Carrera. Não lhe era difícil imaginar o tipo de abusos a que as mulheres estariam sujeitas nas Forças Especiais, um mundo tradicionalmente masculino.

Fizeram o resto do caminho em silêncio. Ao chegarem à aldeia, ouviram as vozes que se escapavam da casa comunitária. Nate acelerou o passo, desejoso de se encontrar novamente entre os vivos. Esperava que alguém tivesse tido a ideia de acender uma fogueira.

Contornou o shabano e encontrou um ranger de sentinela junto à porta. Havia outros dois junto ao rio, cujas águas cintilavam depois de as nuvens terem dispersado.

O ranger que guardava a porta era Eddie Jones, o novo recruta. O soldado encorpado cumprimentou a companheira com um largo sorriso.

— Carrera, não vais acreditar no que encontrámos na selva.

Se o soldado Jones estava ali, apercebeu-se Nate, isso queria dizer que Manny, Kelly e os outros também deviam estar.

— O que foi que encontraram? — perguntou Carrera.

Jones apontou com o polegar na direção da porta.

— Vai ver com os teus olhos.

Carrera fez sinal para Nate entrar primeiro. Nate baixou a cabeça e entrou, mas ainda ouviu o comentário que Jones sussurrou à companheira de armas:

— Primeiro as senhoras.

— Vai-te foder, Jones!

Lá dentro, Nate encontrou os companheiros de expedição reunidos na área a céu aberto. Manny encontrava-se uns metros ao lado, acompanhado pelo jaguar. Ergueu o braço quando avistou Nate, mas não sorriu.

As vozes dos outros soavam exaltadas. Decorria uma discussão qualquer.

— Ele é meu prisioneiro! — vociferou o capitão Waxman. Estava acompanhado pelos restantes três militares, que apontavam as metralhadoras a alguém que se encontrava fora da linha de visão de Nate.

— Ao menos tire-lhe as algemas dos pulsos! — respondeu Kelly. — Tem os pés presos, e é apenas um velho.

— Esta não é a melhor forma de lhe arrancarem respostas — argumentou Kouwe.

— Oh, garanto-lhe que vai responder às minhas perguntas — ameaçou o capitão.

Frank colocou-se à frente de Waxman.

— Ainda sou o líder desta expedição, e não vou permitir que maltrate este prisioneiro!

Por essa altura, Nate juntara-se ao grupo. Anna Fong lançou-lhe um olhar assustado.

Richard Zane encontrava-se um pouco mais ao lado. Sorrindo, acenou com a cabeça para Nate.

— Encontrámo-lo escondido na selva. O jaguar do Manny ajudou-nos a apanhá-lo. Devia ter ouvido os gritos quando o animal o encurralou contra uma árvore.

Zane desviou-se, e o olhar de Nate pousou pela primeira vez no prisioneiro. O pequeno índio estava sentado no chão, com os tornozelos e os pulsos presos com abraçadeiras de plástico. Os cabelos brancos denunciavam a idade avançada, e caíam pela altura dos ombros, em vez de cortados à tigela, como era habitual nos nativos locais. Estava ali em exposição diante dos outros, a murmurar qualquer coisa entre dentes. O olhar alternava entre o grupo e o jaguar, que marcava passo de um lado para o outro.

Nate focou-se nas palavras que escapavam da boca do ancião. Ianomâmi. Aproximou-se. Aquilo era uma oração xamanista, uma proteção contra o mal. Nate percebeu que o prisioneiro devia ser um xamã. Pertencia a esta aldeia? Um sobrevivente do massacre?

Os olhos do índio cravaram-se em Nate.

— Transportas a morte contigo — disse, na sua língua nativa. — Tu sabes. Tu viste.

Nate calculou que o ancião devia ter notado o fedor da matança na sua roupa e na pele. Aproximou-se dele e ajoelhou-se.

— Haya — disse em ianomâmi. — Avô. Quem és? Pertences a esta aldeia?

O ancião abanou a cabeça e franziu a testa.

— Esta aldeia foi marcada pelos shawara. Espíritos maléficos. Vim aqui para me entregar aos Ban-ali. Mas cheguei tarde.

Ao redor, a discussão suspendera-se enquanto o grupo assistia à conversa.

Nas costas de Nate, Kelly sussurrou:

— Ele não disse uma palavra a ninguém. Nem sequer ao professor Kouwe.

— Porque procuras os jaguares de sangue, os Ban-ali?

— Para salvar a minha aldeia. Não atendemos à vontade deles. Não queimámos o corpo do nabe, o homem branco marcado como servo dos Ban-ali. Agora, as nossas crianças estão doentes devido à magia má.

Só então Nate compreendeu. O homem branco marcado pelos Ban-ali só podia ser o agente Clark. Assim sendo...

— Vieste de Wauwai.

O ancião anuiu e cuspiu para o chão.

— Maldito seja esse nome. Maldito o dia em que pusemos os pés nessa aldeia nabe.

Nate sabia agora com quem falava. Tratava-se do xamã que tentara curar as crianças da missão e depois incendiara a aldeia, numa tentativa de proteger os outros. Porém, e de acordo com o que dizia, a sua ação não resultara. A doença continuara a propagar-se às crianças ianomâmis.

— Mas qual a razão de teres escolhido esta aldeia? Como chegaste aqui?

— Segui o rasto do nabe até à canoa. Vi como estava pintada. Sabia que veio desta aldeia e conheço os caminhos que aqui existem. Vim à procura dos Ban-ali. Para me oferecer a eles e suplicar-lhes que levantem a maldição.

Nate anuiu. Consumido pela culpa, o xamã viajara até ali para se sacrificar.

— Mas cheguei tarde. Apenas encontrei uma mulher viva. — O xamã desviou o olhar na direção do local do massacre. — Dei-lhe água, e ela contou-me o que aconteceu.

Nate endireitou as costas.

— O que está ele a dizer? — perguntou o capitão dos Rangers.

Nate ignorou a pergunta.

— O que aconteceu?

— O homem branco foi encontrado por caçadores há três luas, doente e magro. Eles viram as marcas no corpo e, assustados, capturaram-no. Não o queriam perto da aldeia e enfiaram-no numa jaula, no meio da floresta, para o oferecerem aos jaguares de sangue. Os caçadores tomaram conta dele e alimentaram-no, receando maltratar o que pertencia aos Ban-ali. Mas o nabe continuava doente. Na lua seguinte, foi a vez de um filho dos caçadores.

Nate anuiu. A doença espalhara-se.

— O xamã desta aldeia declarou-os amaldiçoados e exigiu-lhes que matassem o nabe. Queimariam o corpo para aplacar a fúria dos Ban-ali, mas, quando regressaram à floresta, encontraram a jaula vazia. Pensaram que os Ban-ali o tinham levado e ficaram aliviados, mas depois descobriram que uma canoa desaparecera. Nessa altura, era já demasiado tarde.

O índio parecia agora mais calmo.

— Nos dias seguintes, o filho do caçador morreu, ao mesmo tempo que outros na aldeia começaram a aparecer doentes. Então, há uma semana, uma mulher que regressava de apanhar bananas na horta encontrou uma marca no exterior do shabano. — O índio apontou com a cabeça para o lado sudoeste da casa circular. — Ainda lá está. A marca dos Ban-ali.

Nate interrompeu o índio. Virou-se para os outros e explicou-lhes rapidamente o que fora dito. Os olhos dos companheiros arregalaram-se. O capitão Waxman não perdeu tempo e mandou Jorgensen inspecionar a parede que exibia a hipotética marca dos Ban-ali.

Enquanto aguardavam o regresso do militar, Nate convenceu o capitão a cortar as algemas nos pulsos do prisioneiro. Waxman concordou, mas apenas porque o índio parecia disposto a colaborar. O xamã estava agora sentado com um cantil nas mãos, do qual ia bebendo agradecido.

Kelly ajoelhou-se ao lado de Nathan.

— Do ponto de vista médico, a história faz sentido. A decisão de manterem o agente Clark aprisionado funcionou quase como uma medida de quarentena. Mas o nível de contágio deve ter piorado com a progressão da doença... ou talvez um dos caçadores, aquele cujo filho adoeceu, tenha sido contaminado. Seja como for, o mal chegou à aldeia.

— E instalou-se o pânico.

Nas costas do grupo, Jorgensen tornou a entrar no shabano. Parecia preocupado.

— O velho tem razão. Há um desenho na parede, idêntico às tatuagens do agente Clark. — O militar torceu o nariz. — Mas o raio do desenho parece que foi desenhado com fezes de porco ou qualquer coisa parecida. Tresanda que se farta.

Frank franziu o sobrolho e virou-se para Nate.

— Veja se lhe consegue sacar mais informações.

Nate anuiu e virou-se de novo para o velho índio.

— Depois de encontrarem o símbolo, o que aconteceu?

— A tribo fugiu nessa mesma noite... mas algo foi atrás deles.

— O quê?

O xamã contraiu o rosto.

— A mulher que falou comigo estava quase morta, delirante. Disse-me que o rio tinha vindo para os comer. Eles fugiram, mas aquilo seguiu pelo riacho e apanhou-os na mesma.

— Mas o quê? Quem os apanhou? Os Ban-ali?

O xamã bebeu um pouco de água do cantil.

— Não... não foi o que ela me disse.

— O que foi, então?

O índio fitou Nate, a fim de lhe mostrar que falava a verdade.

— A selva. Ela disse que a selva os atacou.

Nathan ficou em silêncio.

O índio encolheu os ombros.

— Não sei mais nada. A mulher morreu, e o espírito dela juntou-se aos dos seus. No dia seguinte, este dia, ouvi vocês chegarem pelo rio. Fui ver quem era... — Desviou o olhar para o jaguar de Manny. — E fui encontrado. O cheiro da morte agarrou-se a mim, tal como se agarrou a ti.

Nathan sentou-se sobre os calcanhares. Olhou para Manny. O biólogo tinha o jaguar preso pela trela, mas o animal estava visivelmente agitado, dando voltas sobre si mesmo com a pelagem das costas eriçada. Assustado.

Kouwe terminou de traduzir a conversa para os outros.

— E é tudo o que ele sabe.

Waxman fez sinal a Jorgensen e mandou-o cortar também as algemas nos tornozelos do índio.

— O que pensa disto tudo? — perguntou Kelly a Nate, ainda ajoelhada a seu lado.

Nate recordou os corpos estendidos ao longo do trilho.

— Não sei — murmurou. A sua primeira impressão fora de que o ataque tinha vindo do outro lado do rio, mas, a acreditar nas palavras da mulher, viera do próprio rio.

Kouwe juntou-se à conversa.

— A história é consistente com as lendas dos Ban-ali. Todas dizem que são capazes de vergar a selva à sua vontade.

— Mas o que podia ter saído do rio para matar aquela gente toda? — perguntou Kelly.

Kouwe abanou a cabeça.

— Não consigo sequer imaginar.

Uma agitação junto à porta chamou a atenção de todos. O sargento Kostos entrou a arrastar uma maca com um cadáver. Um dos índios massacrados.

— Eu pedi para me trazerem um dos mortos — explicou Kelly. — Pensei que podia descobrir a causa de morte.

Nas costas do grupo, o xamã gritou.

Nate virou-se.

— Não tragam a maldição para aqui! — avisou o xamã, recuando com os olhos arregalados. — Vão chamar os Ban-ali!

Jorgensen tentou controlar o ancião, que, apesar da idade, se mostrou surpreendentemente forte. Escapou das mãos do ranger, correu para uma das divisões unifamiliares e usou uma cama para subir até às traves que sustentavam o telhado da casa circular.

Um dos militares ergueu a arma.

— Não dispare! — gritou Nathan.

— Baixe a arma, cabo! — ordenou o capitão Waxman.

O xamã deteve-se por um instante, já no cimo do telhado.

— Os mortos pertencem aos Ban-ali! — gritou para o grupo. — Eles virão buscar o que é deles!

Dito isto, saltou do telhado para a floresta.

— Vão buscá-lo! — ordenou o capitão a dois rangers.

— Nunca o encontrarão — disse Kouwe. — Assustado como está, nunca mais torna a aparecer.

As palavras do professor revelaram-se acertadas. O xamã nunca mais foi visto. À medida que a tarde dava lugar à noite, Kelly refugiou-se a um canto e trabalhou no cadáver, procurando descobrir o que matara os índios. Nate levou o capitão Waxman e Frank para verem a árvore com as inscrições deixadas por Gerald Clark.

— Ele deve ter feito isto antes de ser capturado — disse Frank. — Que pouca sorte. Estava tão perto de alcançar a civilização quando os índios o aprisionaram. — Abanou a cabeça. — Durante quase três meses.

De regresso à aldeia, o resto da equipa ultimava os preparativos para a noite, acendendo as fogueiras, estabelecendo os turnos de sentinela e preparando as refeições. No dia seguinte, abandonariam o rio e continuariam a viagem por terra, seguindo os passos de Gerald Clark.

Com o Sol a desaparecer no horizonte e uma refeição de peixe e arroz pronta a ser servida, Kelly terminou finalmente o trabalho na morgue improvisada. Sentou-se numa cadeira, respirou fundo e fitou as chamas da fogueira, enquanto partilhava as conclusões da autópsia.

— Daquilo que observei, aquele homem foi envenenado. Encontrei sinais de uma morte convulsiva. A língua foi mordida e havia indícios de estenose espinal e dos membros.

— E foi envenenado com o quê? — perguntou Frank.

— Não posso responder a isso sem um exame de toxicologia. Nem sequer posso saber como foi administrado. Talvez com uma lança, uma seta ou um dardo. O mau estado do cadáver impede-nos de ter certezas nesse aspeto.

Nate escutou o que era dito com os olhos cravados no pôr do Sol. Recordou as palavras do xamã — eles virão buscar o que é deles — e refletiu sobre o massacre dos índios e a doença que se espalhava nos Estados Unidos. Não conseguia ignorar a nítida sensação de que o tempo se esgotava para todos.


9

ATAQUE NOTURNO

14 de agosto, 00h18

Selva amazónica

Kelly acordou a meio de um pesadelo. Sobressaltada, sentou-se na cama. Não se lembrava do sonho, apenas retinha uma vaga sensação de estar a ser perseguida e uma imagem de cadáveres. Consultou o relógio. Pelo mostrador luminescente, passavam poucos minutos da meia-noite.

Ao redor, a maioria dos companheiros dormia. Um ranger mantinha a sua posição junto à fogueira, enquanto outro guardava a entrada do shabano. Kelly sabia que devia haver outro par de militares no exterior, a patrulhar o perímetro. Os restantes dormiam depois de um dia longo e horrível.

Aos olhos de Kelly, não era de admirar que tivesse pesadelos. O massacre, o cadáver pútrido que examinara, a tensão constante... para não falar da preocupação com a situação da família. O subconsciente tinha muito com que se ocupar durante o sono.

O último relatório vindo dos Estados Unidos não fora mais animador que o anterior. Numa questão de horas, tinham sido comunicados mais doze casos de contágio e três mortes — duas crianças e uma idosa de Palm Beach. Entretanto, por toda a bacia do Amazonas, a doença e a morte espalhavam-se como um fogo descontrolado. Havia pessoas a barricarem-se em casa, outras a abandonarem as cidades. Havia corpos a serem queimados nas ruas de Manaus.

A mãe comunicara-lhe que continuava a não existir um único caso de contágio entre a equipa de investigadores do instituto, mas era demasiado cedo para respirar de alívio. Os novos dados, recolhidos maioritariamente de casos na Amazónia, apontavam para um período de incubação que podia variar entre três e sete dias. Tudo dependia do estado de saúde inicial das vítimas. As crianças com carências alimentares ou condições parasíticas adoeciam mais depressa, por exemplo.

Quanto à causa da doença, a ideia de um agente patogénico de origem bacteriana fora descartada pelo Centro de Controlo de Doenças, mas havia uma bateria de testes virais a decorrer. Por enquanto, não existia um organismo a que apontar o dedo.

E nem eram essas as piores notícias. O rosto da mãe empalidecera enquanto falava no ecrã do computador.

«Sabemos agora que a transmissão pode ser feita exclusivamente por via aérea», dissera ela. «Não há necessidade de contacto físico.»

Kelly sabia o que aquilo significava. Com tal facilidade de transmissão, o patogeno em questão era dos mais difíceis de conter. E com uma taxa de mortalidade extremamente elevada...

«Só existe uma solução», concluíra a mãe. «Precisamos de uma cura.»

Kelly pegou no cantil e bebeu um pouco de água. A mente fervia com o medo e a preocupação. Dificilmente tornaria a adormecer. Sem fazer barulho, levantou-se.

O ranger junto à fogueira apercebeu-se do movimento nas costas e virou-se. Ainda vestida com as roupas do dia anterior — uma t-shirt cinzenta e calças castanhas —, Kelly limitou-se a calçar as botas. Apontou na direção da entrada e comunicou que pretendia esticar as pernas sem correr o risco de acordar os companheiros.

O militar acenou com a cabeça.

Kelly prendeu o cabelo atrás das orelhas e encaminhou-se para a porta do shabano. Curvando-se, saiu e encontrou a soldado Carrera de sentinela.

— Preciso de apanhar ar fresco — sussurrou.

A militar anuiu e apontou na direção do rio.

— Não é a única.

Kelly avistou uma figura solitária alguns metros à frente, no caminho junto ao rio. Pela silhueta, percebeu que se tratava de Nathan Rand. Estava sozinho; apenas dois rangers patrulhavam a área um pouco mais acima, facilmente identificáveis pelas luzes das lanternas.

— Não se aproxime demasiado da água — avisou Carrera. — Não tínhamos sensores suficientes para cobrir o perímetro inteiro e o rio.

— Não se preocupe, assim farei. — Kelly lembrava-se muito bem do que acontecera ao cabo DeMartini.

A curta caminhada até ao rio foi feita ao som do zumbido dos gafanhotos e do suave coaxar das rãs. Era um som que emanava uma certa tranquilidade. À distância, os pirilampos dançavam graciosamente por entre os ramos e acima da superfície da água.

A chegada de Kelly não passou despercebida ao espectador solitário na margem do rio. Nathan virou-se. Tinha um cigarro aceso pendurado nos lábios.

— Não sabia que fumava — disse Kelly, aproximando-se e fitando a água.

Nate riu-se e expeliu uma baforada.

— E não fumo. Ou não costumo, pelo menos. Pedi este ao cabo Conger. — Apontou com o polegar na direção da dupla de militares. — Não tocava num cigarro há quatro ou cinco meses, mas... enfim, acho que precisava de uma desculpa para vir até aqui. Para andar um pouco.

— Sei como é. Também estava a precisar de ar fresco.

Kelly estendeu a mão e Nate passou-lhe o cigarro. Deu uma longa passa e expeliu o fumo, aliviando a tensão.

— Nada como o ar fresco...

Kelly devolveu o cigarro.

Nate deu uma última passa e apagou a beata no chão.

— Estas coisas matam, sabia?

Deixaram-se ficar em silêncio, embalados pelo suave fluir das águas. Um par de morcegos sobrevoou o rio à procura de peixes. Mais longe, uma ave noturna soltou um uivo solitário e melancólico.

— Ela vai ficar bem — sussurrou Nate.

Kelly fitou-o.

— O quê?

— A sua filha, Jessie... ela vai ficar bem.

Apanhada de surpresa, Kelly não foi capaz de responder.

— Desculpe, estou a meter-me onde não sou chamado...

Kelly tocou-lhe no cotovelo.

— Não, fico até agradecida pelo que disse. Mas nunca pensei que a minha preocupação fosse tão óbvia.

— A Kelly pode ser uma grande médica, mas primeiro que tudo é mãe.

Kelly não respondeu. Depois disse:

— Não se trata apenas de ser mãe. A Jessie é a minha única filha. A única que terei.

— Como assim?

Kelly interrogou-se porque é que estava a discutir um assunto íntimo com Nate, mas sentia que ajudava a espantar os seus medos.

— Houve umas complicações no parto da Jessie... fui submetida a uma cirurgia de emergência, que me deixou impossibilitada de ter mais filhos.

— Lamento.

Kelly sorriu. Um sorriso cansado.

— Foi há muito tempo. Aprendi a viver com essa realidade. Mas com tudo o que está a acontecer...

Nate suspirou e sentou-se num tronco caído.

— Compreendo o que quer dizer. Está aqui, enfiada nesta selva, preocupada com alguém que ama acima de tudo e obrigada a seguir em frente, a manter-se forte.

Kelly sentou-se junto dele.

— Como o Nate, quando o seu pai desapareceu.

Nate desviou o olhar para o rio.

— Não é apenas a preocupação e o medo, é também a culpa.

Kelly conhecia a sensação. O que fazia ela perdida na selva, quando a filha se encontrava em perigo? Mais valia apanhar o primeiro voo para casa.

Seguiu-se um momento de silêncio incómodo.

— O que está aqui a fazer? — perguntou por fim Kelly. Era algo que desejava perguntar desde o momento em que conhecera Nate.

— Como assim?

— Perdeu os seus pais neste lugar. O que faz aqui de novo? Não é demasiado doloroso?

Nate esfregou as mãos e baixou os olhos.

— Desculpe. Não é da minha conta...

— Não — disse Nate, erguendo os olhos e desviando-os de novo. — Eu... apenas me lamentava por ter apagado o cigarro. Mais umas passas calhavam bem.

Kelly sorriu.

— Podemos mudar de assunto.

— Não é preciso. A pergunta apanhou-me de surpresa. Apenas isso. Em todo o caso, a resposta não é fácil e nem sei se seria capaz de encontrar as palavras certas. — Nate endireitou as costas. — Quando perdi o meu pai, quando desisti finalmente de o procurar, abandonei a selva, prometendo a mim mesmo nunca mais voltar. Foi quando percebi que, nos Estados Unidos, a dor era igual. Tentei afogá-la em álcool, adormecê-la com drogas, mas nada resultou. Então, há cerca de um ano, encontrei-me novamente a bordo de um avião. Não sei explicar porquê, simplesmente entrei no aeroporto, comprei uma passagem no balcão da Varig e, quando dei por mim, estava a aterrar em Manaus.

Nathan fez uma pausa. Kelly conseguia ouvir-lhe a respiração pesada, carregada de emoção. Pousou-lhe a mão no joelho. Sem falar, Nate pousou a sua mão em cima da dela.

— De volta à selva, apercebi-me de que a dor se tornara mais fácil de suportar, menos esgotante.

— Porquê?

— Não sei. Os meus pais morreram aqui, mas também viveram, entende? Esta era a casa deles, onde pertenciam... — Nate abanou a cabeça. — Se calhar, não estou a fazer sentido.

— Pelo contrário. A selva faz com que se sinta mais perto deles.

A postura corporal de Nate tornou-se mais rígida. Seguiu-se um silêncio ainda mais prolongado.

— Nate?

— Nunca fui capaz de dizer isto, mas tem razão. Aqui, os meus pais estão em toda a parte. As recordações que tenho deles são mais vívidas. Vejo a minha mãe a ensinar-me a fazer farinha de mandioca, o meu pai a ensinar-me a identificar árvores pelas folhas. — Virou-se para Kelly; os olhos brilhavam. — Esta é a minha casa.

Kelly observou a mistura de alegria e perda naquele olhar, e deu por si a inclinar-se na direção de Nate, atraída pela profundidade das suas emoções.

— Nate...

Uma súbita explosão no rio sobressaltou ambos. A escassos metros da margem, um repuxo estreito ergueu-se um metro acima da superfície das águas. Uma forma volumosa emergiu e desapareceu no mesmo instante.

— O que foi aquilo? — perguntou Kelly, já a levantar-se, pronta a fugir.

Nate pousou-lhe a mão no ombro, incentivando-a a sentar-se novamente.

— Não precisa de ter medo. É apenas um boto-cor-de-rosa, um golfinho fluvial. São abundantes no rio, embora tímidos. Costumam ser vistos em zonas mais remotas, como esta, onde se deslocam em pequenos grupos.

Como que a confirmar as palavras de Nate, outro par de repuxos rompeu a superfície. Mais calma, desta vez Kelly conseguiu distinguir as pequenas barbatanas dorsais a deslizarem na água, para logo mergulharem de novo. Os animais moviam-se depressa.

— São rápidos!

— Devem estar a caçar.

Nate e Kelly mal se tinham sentado outra vez quando um enorme grupo de golfinhos desfilou diante deles. Todos expeliam repuxos e soltavam estalidos e guinchos frenéticos, cortando a superfície da água a toda a velocidade. Nate nunca assistira a uma coisa igual. Não tardou para que o rio estivesse cheio daqueles animais.

Desconfiado, Nate levantou-se.

— O que se passa? — perguntou Kelly.

— Não sei. — Um dos golfinhos nadou na direção da margem. Chegou tão perto que deu ideia de que seria capaz de avançar terra dentro. Depois, sacudindo a cauda, tornou a desaparecer em águas mais profundas. — Estão a fugir de alguma coisa.

Kelly também se levantou.

— A fugir do quê?

Nate abanou a cabeça.

— Nunca vi um comportamento destes. — Desviou o olhar para os rangers que patrulhavam a margem mais acima. Os militares também observavam o desfile de golfinhos. — Preciso de uma lanterna.

Nate correu pela margem. Kelly seguiu atrás dele, com o coração a bater mais depressa. Os dois soldados estavam posicionados onde um pequeno riacho confluía com o rio.

— Cabo Conger, empresta-me a lanterna? — perguntou Nate, quase sem fôlego.

— São apenas golfinhos — respondeu o outro ranger, o sargento Kostos. O militar moreno franziu o sobrolho. — Não é a primeira vez que os vemos quando fazemos a patrulha. Mas, claro, por esta altura vocês costumam estar a dormir confortavelmente, enquanto nós...

O militar mais novo mostrou-se mais acessível e passou a lanterna a Nate.

— Aqui tem, doutor Rand.

Murmurando um agradecimento, Nate apressou-se a apontar a lanterna na direção da água. Os golfinhos continuaram a passar, embora em menor número. Kelly olhou na direção do cone de luz.

— Oh, não — disse Nate.

Quase no limite do alcance da lanterna, a superfície do rio parecia fervilhar, como numa zona de rápidos. A diferença era que estes rápidos pareciam ter vida própria e acompanhavam a corrente.

— O que é aquilo? — perguntou Kelly.

Um dos golfinhos veio ao encontro da margem, mas, ao contrário do outro, não deu meia-volta e acabou por rolar sobre a lama, onde ficou momentaneamente atolado e a guinchar. Nate apontou a lanterna ao animal. Kelly não queria acreditar no que via e recuou, horrorizada.

A cauda do golfinho desaparecera por completo, e este tinha a barriga aberta, com os intestinos pendurados. A força da corrente arrastou o animal moribundo de volta para a água.

Nathan voltou a apontar a lanterna para o rio. A mancha fervilhante encontrava-se agora mais próxima.

— Que raio é aquilo? — perguntou o cabo Conger, o sotaque texano mais pronunciado. — O que está a acontecer?

O grito de um porco rompeu o silêncio a montante. Pássaros levantaram voo. Macacos agitaram-se nas árvores, sobressaltados e irritados.

— O que está a acontecer? — repetiu o texano.

— Preciso dos óculos de visão noturna — disse Nate.

Kelly espreitou por cima dos ombros dele.

— O que é aquilo?

Nate pegou nos óculos do ranger.

— Não é a primeira vez que vejo isto, mas nunca com esta dimensão.

— O quê? — insistiu Kelly.

Nate ergueu os óculos.

— Piranhas... num frenesi devorador.

Visto pelas lentes dos óculos de visão noturna, o mundo iluminava-se e dissolvia-se em tons de verde. Nate demorou alguns segundos a focar o ponto exato onde as águas fervilhavam. Manuseou as lentes telescópicas para ampliar a imagem. Por entre a espuma, distinguiu dezenas de barbatanas de golfinhos cercados pelos vorazes predadores, bem como clarões prateados, vislumbres das piranhas propriamente ditas lutando pela refeição.

— E qual é o problema? — comentou Kostos, com declarado desdém. — As piranhas que comam os golfinhos à vontade. Elas não nos apanham em terra, pois não?

O sargento estava certo, claro, mas Nate lembrou-se dos corpos dos índios massacrados... e do receio que manifestavam em relação ao rio. Estariam aquelas águas infestadas de piranhas, a ponto de os próprios índios sentirem medo de viajar à noite? E aquele comportamento, atacarem golfinhos fluviais? Não fazia sentido. Nunca ouvira falar de tal coisa.

Um movimento na margem oposta chamou-lhe a atenção. Desviou o olhar do frenesi na água e avistou o que parecia ser a carcaça estendida de um animal qualquer, provavelmente um porco-do-mato. Seria o mesmo que gritara momentos antes? Algumas criaturas mais pequenas saltavam em redor, como se fossem sapos, mas davam a impressão de que mordiam a carcaça e tentavam arrastá-la para dentro de água.

— Que raio? — murmurou Nate.

— O que foi? — perguntou Kelly. — O que está a ver?

Nate socorreu-se outra vez das lentes telescópicas dos óculos para ampliar a imagem. Viu mais umas quantas criaturas saltarem da água e atacarem a carcaça. Outras praticamente voaram por cima da margem e desapareceram na vegetação. Enquanto observava, uma enorme capivara irrompeu da selva e correu pela margem lamacenta. Parecia um porquinho-da-índia de quarenta e cinco quilos e, a dada altura, tropeçou nas próprias patas. O corpo começou a sacudir-se com convulsões. Uma vez mais, as criaturas saltaram do rio ao encontro da nova refeição.

Nate compreendeu finalmente o que via. Aquilo era como o massacre dos índios. Recordou as palavras do xamã: a selva emergiu do rio e atacou-os. A capivara parou de se mexer quando a morte já a reclamava. Kelly mencionara que o cadáver do índio que tinha examinado indicava sinais de um episódio convulsivo.

Tirou os óculos. A mancha de água borbulhante encontrava-se agora a pouco menos de trinta metros de distância.

— Precisamos de ficar longe do rio! De todos os cursos de água!

O sargento Kostos riu-se.

— De que raio está a falar?

O cabo Conger guardou os óculos.

— Se calhar, devíamos dar ouvidos ao doutor...

Algo atingiu o capacete do soldado. O som do impacto foi húmido e esponjoso.

— Meu Deus!

Nathan apontou a lanterna para o chão e encontrou uma estranha criatura, meio atordoada. Parecia um girino monstruoso, na fase de crescimento em que as patas traseiras se encontravam já desenvolvidas.

Antes que alguém pudesse reagir, a criatura saltou de novo e cravou os dentes na coxa do militar. Conger gritou e sacudiu a criatura com a coronha da metralhadora. Recuou uns passos, assustado.

— Esta coisa tem dentes!

Kostos levantou a perna e pisou o animal com o calcanhar, esborrachando-o até lhe fazer saltar as tripas.

— Agora já não tem!

Juntos, Nate, Kelly e os dois rangers correram pela margem acima. Conger tocou na perna. Tinha um buraco nas calças e, quando ergueu a mão, os dedos estavam sujos de sangue.

— Quase me arrancava um pedaço da perna! — disse, com um riso nervoso.

Em menos de nada, encontravam-se já na aldeia.

— O que aconteceu? — perguntou a soldado Carrera, assim que os viu.

Nate apontou na direção do rio.

— As criaturas que atacaram os índios... vêm atrás de nós! Temos de sair daqui!

— Mantenha o seu posto, Carrera — ordenou Kostos. — Conger, vá tratar dessa perna enquanto informo o capitão.

— O meu estojo médico está lá dentro — disse Kelly.

Conger encostou-se contra uma trave de bambu.

— Meu sargento... não me estou a sentir bem...

Os olhos de todos fixaram-se no cabo.

— Vejo tudo desfocado...

Kelly tentou amparar o militar. Nathan viu fios de baba começarem a escorrer dos lábios do homem. A cabeça tombou para trás, depois o corpo, já em convulsão.

O sargento Kostos agarrou-o.

— Conger!

— Levem-no para dentro! — gritou Kelly.

O ranger tentou arrastar o companheiro para o interior do shabano, o que não era fácil pelo modo como se contorcia. Carrera pendurou a espingarda ao ombro e tentou ajudar.

— Mantenha o seu posto, soldado! — berrou Kostos. Virou-se para Nate. — Agarre-lhe nas pernas!

Nate curvou-se e enganchou os tornozelos do militar debaixo dos braços. Era como tentar agarrar a ponta solta de um cabo de alta voltagem.

— Vamos!

Unindo esforços, Nate e Kostos carregaram o soldado pela entrada estreita.

Os companheiros que estavam a dormir vieram ao encontro do grupo.

— O que aconteceu? — perguntou Zane.

— Afaste-se! — berrou Kostos.

— Aqui! — chamou Kelly. Alcançara o estojo médico e segurava uma seringa.

Nate teve uma sensação de déjà-vu, lembrando-se do momento em que carregara Tama em convulsões para o hospital de São Gabriel.

— Deitem-no e segurem-no bem! — ordenou Kelly.

Assim que deitaram o militar, Nate foi afastado por dois rangers que tomaram o seu lugar, cada um segurando numa perna do companheiro.

Kostos ajoelhou-se e prendeu os ombros do cabo contra o chão, mas a cabeça continuou a saltar para cima e para baixo com violência; da boca soltava-se uma espuma branca que se misturava com sangue no ponto onde o soldado mordera o lábio.

— Raios partam! Conger!

Kelly cortou a manga do uniforme com uma lâmina e inseriu rapidamente a agulha no braço do soldado. Injetou o conteúdo da seringa e deixou-se cair sentada, a segurar-lhe o pulso e a assistir ao efeito da droga.

— Vá lá...

A forma contorcida do soldado relaxou por fim.

— Graças a Deus... — suspirou Kostos.

Kelly não se sentiu tão aliviada.

— Merda!

Debruçou-se sobre o soldado e verificou-lhe a pulsação no pescoço. Afastou toda a gente e começou a fazer-lhe manobras de reanimação no peito.

— Preciso que alguém lhe faça respiração boca-a-boca!

Atordoados, os rangers não se mexeram.

Nathan afastou Kostos, limpou a baba ensanguentada na boca do soldado e começou a insuflar-lhe ar nos pulmões em sintonia com os esforços de Kelly. Toda a sua atenção estava focada nas manobras de reanimação. Quase não ouvia os comentários preocupados em redor.

— Foi um bicho qualquer, que não era nem um peixe nem uma rã — explicou Kostos. — Saltou da água e mordeu-lhe a perna.

— Ele foi envenenado! — exclamou Kelly. — A criatura devia ser venenosa!

— Nunca ouvi falar de semelhante animal — disse Kouwe.

Nathan queria concordar com o professor, mas estava demasiado ocupado a tentar salvar a vida do soldado.

— Apareceram aos milhares — prosseguiu Kostos. — Atacam tudo o que encontram pela frente. E vêm nesta direção.

— O que fazemos? — perguntou Zane.

A voz do capitão Waxman abafou todas as outras.

— Primeiro, não vamos entrar em pânico! Graves e Jones... ajudem a Carrera a defender o perímetro.

— Espere! — exclamou Nate.

Waxman virou-se.

— O que foi? Tem alguma coisa para dizer?

— Estamos demasiado perto da água — respondeu Nate, entre fôlegos. — O riacho passa mesmo aqui ao lado.

— E então?

— É de onde vêm as criaturas... tal como aconteceu com os índios — explicou Nate, meio tonto de tanto hiperventilar. Respirou para a boca do cabo Conger e, ato contínuo, ergueu de novo o rosto. — Temos de sair daqui... afastarmo-nos dos cursos de água até o Sol nascer...

— Como assim?

O professor Kouwe encarregou-se de explicar.

— Os índios foram atacados de noite. E agora aconteceu isto. O Nate acredita que as criaturas devem ser noturnas. Se conseguirmos evitá-las até o dia nascer, estaremos a salvo.

— Mas aqui temos abrigo, uma área que podemos proteger. Estes bichos não passam de peixes, rãs ou qualquer coisa parecida.

Nate lembrou-se da imagem monocromática captada pelas lentes de visão noturna: as criaturas a saltarem do rio, algumas subindo quase à altura das árvores.

— Não estamos seguros aqui dentro! — exclamou. Curvou-se para respirar de novo, mas agarraram-no no ombro.

— Não vale a pena — disse Kelly, puxando-o. — Está morto. — Olhou para os soldados e abanou a cabeça. — Lamento. O veneno atuou demasiado rápido. Sem um antídoto...

Nate ficou a olhar para o corpo inerte do soldado.

— Rai’s partam... — Pôs-se de pé. — Temos de ir para longe daqui, para longe da água. Não sei qual a distância que conseguem percorrer em terra, mas aquele que vi mais de perto tinha guelras. Não acredito que consigam ficar muito tempo fora de água.

— O que sugere que façamos? — perguntou Frank.

— Vamos para terreno mais elevado. Evitamos o rio e o riacho. Acho que os índios acreditavam que apenas precisavam de temer o rio, mas os predadores seguiram pelo riacho e emboscaram-nos.

— Está a falar como se essas criaturas fossem inteligentes.

— Não, não consigo imaginar que sejam. — Nate visualizou o modo como os golfinhos tentavam escapar, ao contrário de todos os grandes peixes do rio, que pareciam não interessar às criaturas. Visualizou o ataque ao porco-do-mato e à capivara. Uma teoria emergiu no seu pensamento. — Talvez sejam apenas atraídos por animais de sangue quente. Talvez consigam detetar calor corporal, ou algo do género, enquanto patrulham as águas e as margens do rio em busca de presas.

Frank virou-se para Waxman.

— Devíamos dar ouvidos ao doutor Rand.

— Também acho — reforçou Kelly, levantando-se. Apontou para o cadáver. — Se isto é o resultado de uma única dentada, não podemos arriscar.

Waxman virou-se para Frank.

— O senhor pode ser o líder da expedição, mas, no que toca a questões de segurança, quem manda sou eu.

A cabeça da soldado Carrera surgiu na porta da casa circular.

— Passa-se qualquer coisa aqui fora. Qualquer coisa no rio. O flutuador de um dos barcos acabou de rebentar.

Para lá das paredes do shabano, a selva acordou com os guinchos de macacos e pássaros.

— Estamos a ficar sem opções! — exclamou Nate. — Se as criaturas subirem o riacho e nos flanquearem, cortam-nos o acesso a terreno elevado e muitos mais morrerão como o cabo Conger... como os índios.

Nate encontrou um aliado onde menos esperava.

— O doutor Rand tem razão — disse o sargento Kostos. — Eu vi as criaturas, aquilo de que são capazes. — Olhou em redor. — Este sítio não oferece segurança. Somos alvos fáceis aqui dentro.

Após uma pausa, Waxman acenou com a cabeça.

— Carreguem o equipamento.

— E os sensores de movimento? — perguntou Kostos.

— Deixem-nos. Não quero ninguém lá fora.

O sargento anuiu e virou costas.

Não tardou para que todos estivessem com as mochilas às costas. Dois rangers abriram uma cova rasa para o cadáver do cabo Conger.

Carrera continuava agachada junto à porta. Usava óculos de visão noturna e mantinha-se atenta a qualquer movimento no rio e na selva.

— A agitação no rio diminuiu, mas consigo ouvir qualquer coisa a deslocar-se na vegetação.

Para lá das paredes, a floresta cobrira-se de silêncio.

Nate foi ao encontro de Carrera e ajoelhou-se a seu lado. Estava pronto para partir e segurava a caçadeira na mão direita.

— Consegue ver alguma coisa?

Carrera ajustou as lentes.

— Nada. Mas a vegetação é demasiado densa para se ver mais do que uns metros à frente.

Nate pôs a cabeça de fora da porta e olhou em redor. Ouviu um ramo partir-se. Um pequeno veado saltou dos arbustos e passou a correr em frente à porta. Nate e Carrera saltaram para trás, antes de perceberem que não havia perigo.

— Credo! — disse Carrera, suprimindo uma gargalhada nervosa.

O veado parou uns metros à frente, com as orelhas espetadas.

— Sai daqui! — disse a ranger, brandindo a M16 para o enxotar.

Foi quando algo caiu das árvores e aterrou nas costas do animal, que de imediato guinchou de dor e medo.

— Volte para dentro! — ordenou Nate.

Enquanto Carrera recuava, Nate sacou da caçadeira. Outra criatura surgiu da selva em direção ao veado. Uma terceira saltou de um arbusto. O veado cambaleou durante alguns metros e caiu de lado, a espernear.

Da direção do rio, ouviu-se o alarme de um dos sensores de movimento.

— Já cá estão — murmurou Nate.

A seu lado, Carrera retirou os óculos e acendeu a lanterna. O feixe revelou o trilho que conduzia ao rio, porém, de um lado e do outro, a densa vegetação não permitia iluminar a floresta.

— Não vejo...

Alguma coisa saltou para o trilho, a poucos metros de distância.

Daquele ângulo, a criatura parecia toda ela feita de patas, com uma longa cauda a arrastar atrás de si. Deu um pequeno salto na direção da porta, com a boca escancarada e dois olhos negros proeminentes. Os dentes reluziram na luz brilhante. O estranho animal parecia o resultado do cruzamento de um girino com uma piranha.

— Que raio de coisa é esta? — murmurou Carrera.

A coisa saltou na direção da sua voz.

Nate não perdeu tempo e premiu o gatilho da caçadeira. A chuva de chumbos desfez a criatura, arremessando-a aos pedaços pelo ar. Era o que Nate apreciava naquela arma, e a razão de a considerar ideal para a selva. Uma pessoa não precisava de ter pontaria. Era perfeita para lidar com pequenas ameaças, como cobras venenosas, escorpiões e aranhas — e contra estranhos anfíbios venenosos, pelos vistos.

— Para trás! — disse Nate, fechando a porta, que era pouco mais que uma aba de folhas de bananeira entrelaçadas. Mesmo assim, seria o suficiente para bloquear momentaneamente o avanço das criaturas.

— Mas esta é a única saída — disse Carrera.

Nate levantou-se e sacou do machete com a mão esquerda.

— Não se preocupe — Apontou com a lâmina na direção da parede no lado oposto do rio e do riacho. — Num shabano podemos ter as portas que quisermos.

Frank e o capitão Waxman juntaram-se a ele enquanto atravessava o pátio central. Waxman dobrava um mapa.

— As criaturas já cá estão — disse Nate, e mal alcançou a parede, ergueu o machete e começou a golpear o painel de folhas entrelaçadas. — Precisamos de sair daqui imediatamente.

Waxman agitou um braço no ar.

— Vamos embora! — gritou. — Agora!

Nate acabou por abrir um buraco na parede e afastou os destroços com o pé.

Waxman fez sinal ao cabo Okamoto para tomar a dianteira. Nate reparou na arma que o soldado carregava.

— É um lança-chamas — explicou Okamoto. — Se for necessário, abrimos caminho a fogo por entre os malditos bichos. — Premiu o gatilho e o cano expeliu um ameaçador jato de chamas, como um dragão.

— Estupendo — disse Nate, dando uma palmadinha nas costas do soldado. Depois de tantos dias no rio, começara a simpatizar com o cabo asiático, que era também o piloto do seu barco; mesmo quando ele não parava de assobiar.

Okamoto piscou o olho e atravessou o buraco sem hesitações. Nate fitou o tanque de combustível que o soldado carregava às costas.

Foi seguido por quatro rangers: Warczak, Graves, Jones e Kostos. Todos carregavam as M16 equipadas com os lança-granadas e, mal se encontraram lá fora, posicionaram-se à esquerda e à direita, formando uma linha atrás de Okamoto. Ouviram-se mais alarmes à medida que os soldados ativavam os sensores de movimento.

— Agora os civis — ordenou Waxman. — Mantenham-se juntos, e sempre com um ranger de permeio com a floresta.

Richard Zane e Anna Fong passaram pelo buraco, seguidos por Olin, Manny e Tor-tor. Kelly, Frank e Kouwe foram os últimos.

— Venha — disse Kelly a Nate.

Nate anuiu e lançou um último olhar ao shabano. Waxman virou-se para os dois rangers que fechariam a formação. Os soldados estavam debruçados sobre qualquer coisa no meio do pátio.

— Demoram muito, minhas senhoras? — perguntou Waxman.

Os homens levantaram-se. Um deles, o cabo Samad Yamir, ergueu o polegar. Raramente dizia uma palavra, mas, quando o fazia, notava-se-lhe um sotaque paquistanês cerrado. Era também o especialista de demolições da unidade.

Nate fitou o engenho deixado no meio do pátio.

Waxman virou-se para ele e apontou com o cano da metralhadora na direção da abertura na parede.

— Está à espera de quê, doutor Rand? Um convite formal?

Nate passou a língua pelos lábios e seguiu atrás de Frank e Kelly.

Uma vez mais, Carrera marchou atrás de si. Carregava também um lança-chamas e estudava a floresta com um olhar atento. Atrás dela, Waxman e Yamir foram os últimos a abandonar a casa circular.

— Mantenham-se juntos! — berrou Waxman. — Matem tudo o que se mexa!

— Vamos tentar alcançar uma colina a uns cinco quilómetros daqui — disse Carrera nas costas de Nate.

— Como é que sabem que existe uma colina?

— Pelo mapa topográfico. — A voz dela não parecia confiante.

Nate lançou-lhe um olhar por cima do ombro.

Carrera baixou o tom de voz e acenou com a cabeça na direção do riacho.

— O riacho não constava do mapa.

Kelly olhou para os dois, preocupada, mas não disse nada.

Nate suspirou. A falta de rigor do mapa não o surpreendia. Na selva, os cursos de água eram imprevisíveis. Os limites dos lagos e dos pântanos variavam consoante os níveis de pluviosidade, mas os rios mais pequenos e os riachos eram muito mais inconstantes. A maioria não constava de mapas ou permanecia desconhecida.

— Mexam-se! — ordenou Waxman.

A equipa progrediu pela selva. Os olhos de Nate estudavam o ambiente, os ouvidos atentos a qualquer ruído suspeito. À distância, ouviu o som de água a correr e imaginou os índios precipitando-se pelo trilho que tinham abandonado, alheios ao perigo que espreitava tão perto e à morte que encontrariam adiante.

Nate continuou a caminhar atrás de Frank e Kelly. Na frente do grupo, o tremelicar de uma chama iluminava a selva à medida que o cabo Okamoto indicava o caminho. Quase não foram trocadas palavras enquanto subiam a pequena encosta que os afastava do rio. Todos os olhares se concentravam na floresta.

Após uns vinte minutos de subida, Waxman virou-se para o ranger que o acompanhava.

— Agora, Yamir.

Nathan olhou para trás. Yamir virou-se na direção de onde tinham vindo. Pendurou a M16 no ombro e sacou de um pequeno dispositivo.

— Transmissor — explicou Carrera.

Yamir ergueu o dispositivo e premiu um botão. Uma luz vermelha começou a piscar rapidamente.

Nate franziu o sobrolho.

— O que...

Ouviu-se uma explosão abafada. Uma secção de floresta converteu-se numa bola de fogo, que subiu pelo céu noturno e se espalhou em todas as direções.

Nate cambaleou para trás, assarapantado. Exclamações de espanto escaparam-se da boca dos restantes companheiros civis. A bola de chamas extinguiu-se, colapsando sobre si mesma, mas deixou uma parte considerável da floresta a arder. A clareira aberta pela explosão saltava à vista no meio do clarão infernal, com as árvores despidas de ramos e folhas ao longo de pelo menos um hectare. Não havia sinais do shabano, e os sensores de movimento tinham-se calado, consumidos pelas chamas.

Nathan estava demasiado atordoado para falar, o que não o impediu de lançar um olhar furioso a Waxman.

— Continuem — ordenou o capitão.

Carrera fez sinal para Nathan prosseguir.

— É só uma medida preventiva — disse. — Queimar tudo atrás de nós.

— O que foi aquilo? — perguntou Kouwe.

— Uma bomba de napalm — explicou o cabo. — Para utilização na selva.

Frank recuou uns passos.

— Porque não nos avisaram de que iam fazer isto? — perguntou, irritado.

— A decisão e a ordem foram minhas — retorquiu Waxman, continuando a andar. — E não quero discussões. A minha prioridade é a segurança.

— E agradeço-lhe por isso — disse Richard Zane, na frente do grupo. — Acho que fez muito bem, e espero que tenha sido o suficiente para nos livrarmos daquelas criaturas.

— Não me parece que tenha sido o caso — disse Olin, estreitando os olhos. Apontou na direção do riacho, cujo curso era agora bem visível devido ao clarão das chamas. Uma secção borbulhava com milhares das pequenas criaturas, que subiam a corrente como um cardume de salmões.

— Mexam-se! — berrou Waxman. — Temos de alcançar terreno elevado!

O grupo acelerou o passo. Continuaram a subir a encosta, menos preocupados com a floresta do que com a velocidade a que avançavam. As criaturas tentavam flanqueá-los no lado direito.

Jatos de chamas assinalaram a posição de Okamoto na dianteira do grupo.

— Há aqui água! — gritou.

Os outros convergiram naquela direção.

— Valha-nos Deus! — disse Kelly.

Havia outro riacho que cortava a passagem cinquenta metros à frente. Não tinha mais de dez metros de largura, mas as águas eram escuras e paradas. No outro lado, o terreno continuava a subir em direção à colina que pretendiam alcançar.

— É o mesmo riacho? — perguntou Frank.

Um ranger, Jorgensen, surgiu da floresta. Trazia os óculos de visão noturna na mão.

— Fui ver o que se passa mais abaixo. Este riacho comunica com o outro.

— Merda — praguejou Waxman. — Isto parece um labirinto aquático.

— É melhor atravessarmos enquanto podemos — sugeriu Kouwe. — As criaturas estarão aqui em menos de nada.

Waxman estudou a superfície das águas, preocupado. Foi ao encontro de Okamoto.

— Preciso de luz.

O cabo disparou o lança-chamas sobre o riacho, mas de nada serviu para revelar o que se escondia nas profundezas.

— Eu atravesso primeiro, meu capitão — disse Okamoto. — Para ver se é seguro.

— Tem cuidado, rapaz.

— Tenho sempre.

Respirando fundo, Okamoto beijou o crucifixo que trazia ao pescoço e entrou na água. Avançou devagar, com a arma à altura do peito.

— A corrente não é muito forte, mas puxa o suficiente — disse. Mais ou menos a meio da travessia, a água subira-lhe até à cintura.

— Despacha-te... — murmurou Frank, com a mão fechada junto ao peito.

Okamoto alcançou finalmente a outra margem e sorriu para o grupo.

— Parece ser seguro — disse.

— Por enquanto — retorquiu Kouwe. — É melhor despacharmo-nos.

— Vamos! — ordenou Waxman.

O grupo avançou ao mesmo tempo. Frank deu a mão a Kelly, enquanto Nate ajudava Anna Fong.

— Não sou grande nadadora — disse a asiática, sem se dirigir a ninguém em especial.

Os rangers seguiram atrás, com as armas levantadas acima das cabeças.

Alcançada a outra margem, o grupo começou a subir a encosta íngreme, o que não se revelou uma tarefa fácil com botas molhadas e o chão enlameado das chuvas. O ritmo tornou-se mais lento, e o grupo compacto começou a estender-se, à medida que uns se atrasavam em relação aos outros.

Jorgensen tornou a surgir mais à frente, de óculos na mão.

— Capitão, acabei de verificar o outro riacho. Não vi sinal das criaturas.

— Mas estão lá — disse Nate. — Quando muito, não se encontram naquele frenesi.

— Ou, agora que o incêndio se extinguiu, voltaram para o rio principal — sugeriu Jorgensen, esperançoso.

Waxman franziu o sobrolho.

— Acho que não devemos contar...

Um grito interrompeu o capitão. À esquerda, um corpo deslizou pela encosta lamacenta. Era um ranger. Eddie Jones. Os braços agitaram-se para amparar a queda, enquanto gritava de frustração. — Merda! Merda! — Tentou segurar-se a um arbusto, mas as raízes não aguentaram o peso. Bateu numa protuberância e foi atirado às cambalhotas, acabando por perder a arma, para depois aterrar desgovernado no meio do riacho.

Warczak e Graves correram em seu auxílio.

Jones emergiu da água a tossir.

— Rai’s partam! Estou farto desta selva! — Endireitou o capacete e cambaleou para fora de água, a vociferar obscenidades.

Warczak iluminou a figura ensopada do companheiro com a lanterna

— Uau, Jones. Dou-te um dez pela execução técnica e capacidade artística.

— Vai-te foder! — retorquiu o outro, curvando-se para retirar um pedaço de alga que trazia agarrado à perna.

O cabo Graves foi o primeiro a reparar. Havia qualquer coisa a mexer-se em cima da mochila do companheiro.

— Jones...

Ainda meio curvado, Jones ergueu o rosto.

— O que foi?

A criatura saltou da mochila e agarrou-se ao pescoço desprotegido do ranger, que se contorceu em reflexo e a sacudiu com uma palmada.

— Que raio?!...

O sangue começou a jorrar.

As águas do riacho borbulharam e, ato contínuo, expeliram meia dúzia de criaturas, que saltaram para cima do soldado, atacando-lhe as pernas. Jones caiu para trás, com o rosto contorcido em agonia. Aterrou desamparado na água.

— Jones! — gritou Warczak.

Outra criatura saltou e aterrou na lama aos pés do cabo, com as guelras a vibrarem. Warczak recuou aos tropeções, bem como Graves.

No riacho, Jones contorcia-se freneticamente. Parecia que fora atirado para dentro de água a ferver.

— Para trás! — gritou Waxman. — Todos cá para cima!

Warczak e Graves estavam já em movimento, perseguidos por mais criaturas.

O grupo deixou-se de cautelas e apressou-se encosta acima. Meio curvados, alguns tentavam com as mãos avançar mais depressa. Kelly escorregou. A mão suja escapou-se-lhe dos dedos do irmão e ela iniciou uma descida mortal.

— Kelly! — gritou Frank.

Nate, que se encontrava uns metros atrás, estendeu o braço e apanhou-a pela cintura, caindo em cima dela, ao mesmo tempo que tentava não perder a caçadeira. Manny veio em auxílio e ajudou os dois a levantarem-se. Tor-tor mantinha-se por perto, sem saber bem o que fazer.

O brasileiro fez sinal para o jaguar ir à frente.

— Mexe-me esse traseiro peludo!

Por essa altura, Manny, Kelly e Nate eram os últimos do grupo. Frank aguardava mais acima. Apenas Carrera se mantinha por perto, lançando jatos de fogo nas costas de todos.

— Mais rápido! Mexam-se! — berrou, incentivando-os a subir mais depressa.

— Obrigada — disse Kelly, lançando um olhar ao grupo.

Frank aguardou até ter a irmã ao alcance. Estendeu-lhe a mão.

— Não voltes a fazer isso.

— Não tenciono.

Nate lançou um olhar por cima do ombro. Carrera fitou-o. Havia medo nos olhos dela. O momento de distração foi o que bastou. Uma das criaturas furara a barreira de fogo e saltou da vegetação.

Carrera caiu de costas, expelindo um jato de chamas pelo ar.

A criatura agarrara-se ao cinto do uniforme, mas não tencionava ficar por ali.

Antes que alguém conseguisse reagir, ouviu-se um estalar agudo. A criatura foi arremessada para longe, o corpo dividido em dois. Boquiabertos, Carrera e Nate viraram-se a tempo de verem Manny recolher a ponta do chicote.

— Vão ficar aí a olhar para ontem? — perguntou Manny.

Carrera pôs-se de pé com a ajuda de Nate. Continuaram a subir até se encontrarem no cimo da colina. Nate rezou para que fosse o suficiente para se manterem a salvo das criaturas.

Os companheiros já lá estavam reunidos.

— É melhor continuarmos — disse Nate. — Mais vale guardarmos o máximo de distância das criaturas.

— É um bom plano — respondeu Kouwe —, só não sei se conseguimos pô-lo em prática.

O professor apontou na direção do outro lado da colina.

Nate observou o reflexo da Lua no riacho lá em baixo, perfeitamente visível àquela altura. Percebeu que era o mesmo curso de água que procuravam evitar a todo o custo. Rodou sobre si mesmo, compreendendo a verdadeira dimensão do problema. Tinham cometido um erro fatal.

O riacho que haviam atravessado minutos antes não era um afluente do rio, mas parte do mesmo rio.

— Estamos numa ilha — disse Kelly, consternada.

Nate olhou para montante e observou o ponto onde o rio se dividia e contornava a colina, para depois se unir de novo. Encontravam-se realmente numa ilha, cercados de água por todos os lados.

Foi como se tivesse levado um soco no estômago.

— Estamos encurralados.

02h12

Ala Oeste do Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren O’Brien ocupava uma mesa na cantina, onde permanecia em silêncio, debruçada sobre uma chávena de café. Àquela hora da noite, tinha o espaço só para si. Os outros colegas sujeitos a quarentena estavam a dormir nos quartos improvisados ou a trabalhar nos laboratórios principais.

Marshall, inclusive, deitara-se uma hora antes com a neta. Tinha uma videoconferência logo pela manhã com o CCD, dois chefes de gabinete e o diretor da CIA. O marido descrevera a iniciativa como mais um ataque preventivo antes da tempestade política que se avizinhava. Assim funcionava o governo: em vez de atacarem agressivamente o problema, as pessoas pareciam mais preocupadas em apontar o dedo e em salvar o pescoço. Marshall, por seu turno, tencionava aproveitar a ocasião para agitar as coisas. Estava na altura de avançar um plano de ação concreto, de uma reposta centralizada. Até ao momento, os quinze pontos no país a braços com surtos da doença continuavam a ser geridos de quinze maneiras diferentes. Aquilo era um caos, para dizer o mínimo.

Suspirando, Lauren fitou a pilha de documentos em cima da mesa. A sua equipa continuava à procura da resposta a uma simples pergunta: o que causava a doença?

Havia testes e pesquisas em curso em laboratórios espalhados pelo país, desde o CCD ao Instituto Salk de San Diego. Porém, o Instituto Instar tornara-se o epicentro científico da crise, o olho da tempestade.

Lauren afastou um relatório do doutor Shelby sobre a utilização de células renais de macacos como meio de cultura. A experiência falhara. Resposta negativa. Até ao momento, o agente contagioso iludia qualquer meio de identificação: culturas aeróbicas e anaeróbicas, ensaios fúngicos, microscopia de eletrões, hibridização em gotas, reação em cadeia da polimerase. Nenhum estudo registara progressos. Todos terminavam com as mesmas conclusões: resposta negativa, crescimento nulo, resultado indeterminado. Eufemismos sofisticados para fracasso.

Pousado ao lado da chávena de café frio, o pager de Lauren começou a vibrar e deslizou pelo tampo de fórmica. Lauren agarrou-o antes que caísse no chão.

— Quem será a esta hora? — murmurou. Não reconhecia o número, mas o dispositivo identificou a chamada como Large Scale Biological Labs. Não conhecia a empresa em questão, mas o código postal era do norte da Califórnia. Consultou o relógio e subtraiu três horas. Na costa oeste, passavam uns minutos da meia-noite.

Considerou a hipótese de devolver a chamada na manhã seguinte. O melhor que tinha a fazer era deitar-se e tentar dormir algumas horas. Além do mais, seria provavelmente um técnico qualquer a pedir o número de fax do instituto ou informações sobre os protocolos de submissão de testes. Porém...

Levantando-se, Lauren guardou o pager no bolso e encaminhou-se na direção do telefone de parede. No fim de contas, se lhe estavam a ligar, significava que havia alguém acordado na Califórnia, outro cientista com insónias, alguém como ela. E depois de passar a noite a ler pilhas de relatórios, a verdade é que não se importava de falar com uma pessoa de carne e osso, fosse ela quem fosse.

Ao levantar o auscultador, ouviu uma porta abrir-se atrás de si. Olhou por cima do ombro e, com grande surpresa, encontrou a neta de pijama, a esfregar os olhos.

— Avó...

Voltou a pousar o auscultador e foi ao encontro da neta.

— Jessie, o que estás a fazer aqui? Devias estar a dormir.

— Não sabia onde estavas.

Lauren ajoelhou-se.

— O que se passa, querida? Tiveste outro sonho mau?

Nas primeiras noites em que ali dormira, Jessie acordara várias vezes com pesadelos. Era uma resposta natural ao ambiente estranho e ao stresse da situação, mas, ainda assim, adaptara-se rapidamente ao fazer novas amizades com outras crianças nas mesmas circunstâncias.

— Dói-me a barriga — respondeu Jessie, com uma expressão chorosa.

— Estás a ver? É o que acontece às meninas que comem gelado antes de ir para a cama. — Lauren estendeu os braços e puxou a neta para lhe dar um abraço. — E se fôssemos buscar um copo de água e voltamos...

A voz morreu-lhe ao aperceber-se de como a neta estava quente.

Pousou-lhe a mão na testa.

Oh, não...

Jessie ardia em febre.

02h31

Selva amazónica

Junto à tenda, Louis aguardou que Jacques chegasse vindo do rio. O tenente carregava qualquer coisa embrulhada numa manta molhada. Não parecia ser maior do que uma melancia.

— Doutor — disse o negro.

— O que foi que encontraste, Jacques?

Momentos antes, Louis enviara o homem acompanhado de outros dois para investigar a explosão que ocorrera poucos minutos depois da meia-noite. Ao final da tarde, o cúmplice no outro acampamento comunicara via rádio a descoberta da aldeia indígena e o massacre dos habitantes. Fora a última vez que soubera alguma coisa dele e, três horas depois, dera-se a explosão.

Que raio se passará no outro acampamento?

O silêncio prolongado obrigara Louis a enviar Jacques à procura de respostas.

— A aldeia foi queimada — explicou o tenente. — Bem como a floresta em redor. Não pudemos chegar mais perto por causa das chamas. Talvez de manhã...

— E a outra equipa?

Jacques olhou para os pés.

— Desapareceram, senhor. Deixei o Malachim e o Toady à procura deles.

Louis cerrou os punhos e amaldiçoou o seu excesso de confiança. Tornara-se complacente após o rapto do soldado, e aquele era o resultado. Um dos batedores devia ter sido descoberto, e agora a raposa encontrava-se ciente da presença dos cães, o que só complicava a missão.

— Reúne os homens. Se os rangers fugiram, não podemos deixá-los ganhar terreno.

— Sim, senhor. Mas, se me permite, não estarão a fugir de nós.

— Como assim?

— Encontrámos um corpo perto da zona da explosão. Flutuava num riacho.

— Um corpo? — Louis receou que pudesse ser o seu cúmplice e que o cadáver fosse uma mensagem.

Jacques desenrolou a manta ensopada e deixou cair o conteúdo no chão. Uma cabeça humana.

— Encontrámo-la perto do corpo.

Louis franziu o sobrolho, agachou-se e examinou a cabeça, ou o pouco que restava dela. A carne do rosto fora comida, mas sobrava o suficiente para perceber que não era o seu homem. A cabeça rapada sugeria que se tratava de um ranger.

— O corpo encontrava-se no mesmo estado — disse Jacques. — Devorado até ao osso.

Louis ergueu o rosto.

— O que lhe aconteceu?

— Piranhas. É o que sugerem as feridas.

— Tens a certeza?

— Quase absoluta. — Jacques tocou no nariz deformado. Uma maneira de lembrar a Louis a experiência que ele próprio tivera em pequeno com os vorazes predadores.

— Comeram-no depois de morto?

Jacques encolheu os ombros.

— Espero que sim. Para bem dele.

Louis pôs-se de pé. Olhou na direção do rio.

— Que raio está a acontecer?


10

FUGA

14 de agosto, 03h12

Selva amazónica

No cimo da colina, Nate aguardou com os restantes companheiros civis, rodeados pela unidade de rangers, agora reduzida a oito elementos. Um soldado por cada um de nós, pensou. Como guarda-costas pessoais.

Frank dirigiu-se ao capitão Waxman.

— E se usássemos outra das vossas bombas para abrir caminho pelas criaturas? Atirávamos a coisa pela encosta abaixo e esperávamos pelo melhor.

— Morríamos todos — respondeu o capitão. — E se a onda de calor não nos fritasse, acabaríamos encurralados pelas chamas de um lado e pelas criaturas do outro.

Frank suspirou e fitou a escuridão da floresta.

— E as granadas? Não podíamos usá-las à medida que avançássemos?

Waxman franziu o sobrolho.

— Detoná-las tão perto seria demasiado arriscado, e algumas criaturas podiam sobreviver na mesma. A melhor opção é esperarmos pelo nascer do dia.

Frank cruzou os braços, insatisfeito com o plano.

Não muito longe, o cabo Okamoto e a soldado Carrera acionavam de vez em quando os lança-chamas. Passara meia hora desde a última vez que alguém avistara uma das criaturas, mas sabiam que os animais continuavam ali. A floresta silenciara-se. Não se ouviam macacos, pássaros, nada. Até os insetos pareciam ter-se evaporado. No entanto, nas sombras fora do alcance das lanternas, as folhas restolhavam ainda com a presença invisível das criaturas.

Quando apontadas na direção das águas circundantes, as lentes dos óculos de visão noturna revelavam os estranhos animais a entrarem e a saírem do rio. A teoria inicial de Nate revelara-se acertada. As criaturas, que apresentavam guelras, precisavam de regressar periodicamente a um ambiente aquático.

Não muito longe, ajoelhado no chão coberto de folhas, Manny trabalhava à luz de uma lanterna. Kelly e Kouwe espreitavam por cima do ombro dele. Momentos antes, Manny arriscara a vida na floresta para recuperar uma criatura apanhada pelos jatos dos lança-chamas. Parcialmente carbonizado, o espécime encontrava-se num estado razoável. Tinha cerca de trinta centímetros da ponta da cauda à boca repleta de dentes afiados. Os olhos, negros e protuberantes, proporcionavam um raio de visão de quase trezentos e sessenta graus. Os membros fortes, articulados e quase do tamanho do corpo terminavam em patas espalmadas dotadas de ventosas.

Perante o olhar dos outros, Manny procedera a uma rápida dissecação. O biólogo brasileiro trabalhava habilmente com um bisturi e uma pinça do estojo médico de Kelly.

— Esta coisa é fantástica — murmurou por fim.

Nate juntou-se ao grupo enquanto o biólogo partilhava as conclusões do exame.

— Não tenho dúvidas de que se trata de uma forma de quimera, uma mistura de várias espécies.

— Como assim? — perguntou Kelly.

Manny desviou-se e apontou com a pinça.

— O Nathan tinha razão. Embora não apresente escamas, está equipado com o aparelho respiratório de uma espécie aquática. Guelras em vez de pulmões. Como um peixe. Mas as pernas, e reparem nas riscas na pele, são sem dúvida características de um anfíbio. Este padrão listrado é o mesmo da Phobobates trivittatus, a rã-seta-venenosa-de-riscas, o maior e mais tóxico elemento desta família de anfíbios.

— Isso quer dizer o quê? — perguntou Nate. — Que estamos a olhar para uma mutação dessa espécie?

— Foi o que pensei, de início. Parece um girino cujo crescimento foi interrompido no momento em que as guelras ainda estão presentes e apenas as patas traseiras se formaram. Mas agora não tenho tanta certeza. A característica mais óbvia é o tamanho descomunal. Esta coisa deve pesar uns dois quilos. É gigantesca, mesmo para a maior espécie de rãs venenosas.

Manny rodou a criatura e chamou a atenção dos outros para os olhos e os dentes.

— Além disso, a estrutura do crânio é completamente anómala. Em vez de largo e achatado, como seria natural numa rã, o crânio é alongado, como o de um peixe. Na verdade, o formato da cabeça, as mandíbulas e os dentes são quase idênticos no tamanho e na forma a um predador comum do Amazonas, o Serrasalmus rhombeus. — Manny ergueu o rosto. — A piranha-preta.

Kelly endireitou-se.

— Impossível.

— E eu concordaria consigo, se não estivesse a olhar para esta coisa. Trabalhei toda a vida com espécies da Amazónia, e nunca encontrei nada igual. Uma verdadeira quimera. Uma criatura que partilha características biológicas de anfíbios e peixes.

Nate fitou o animal.

— Mas como pode isso ser possível?

Manny abanou a cabeça.

— Não sei. Como é que um homem recupera um braço amputado? Acho que a presença desta criatura sugere que estamos no caminho certo. Há qualquer coisa nesta selva. Qualquer coisa que a expedição do teu pai descobriu, algo com uma nítida capacidade de mutação.

Nate continuou a estudar o que restava da criatura.

Que prodígio se esconderá na floresta?

A voz da soldado Carrera interrompeu-lhe os pensamentos.

— Estão outra vez em movimento!

A ranger encontrava-se posicionada na vertente norte da colina.

Nate olhou nessa direção. O restolhar de folhas naquele lado da floresta tornara-se mais forte. Parecia que a selva inteira se agitava. O som distinto de corpos moles e pesados a saltarem acompanhava o estalar de galhos.

Carrera acionou o lança-chamas. Os jatos flamejantes romperam a escuridão, revelando centenas de olhos cintilantes no chão da floresta e nas árvores. Uma das criaturas saltou do ramo de uma palmeira. Uma saraivada de tiros de metralhadora desfez o animal em pedaços.

— Para trás! — gritou Carrera. — Eles vêm aí!

Às dezenas, os corpos viscosos começaram a saltar dos arbustos e das árvores, indiferentes às chamas e às balas. As criaturas pareciam determinadas a derrotá-los pela força do número.

A mente de Nate regressou ao local do massacre dos índios. Estava a acontecer de novo. Sacou da caçadeira, fez pontaria e desfez uma criatura em pleno voo, que saltara de um ramo por cima da cabeça de Carrera. Pedaços de carne ensanguentada caíram do céu como chuva.

Não tardou para que o grupo se visse forçado a abandonar o cimo da colina. Recuaram pela face sul, iluminados pelos lampejos das armas e pelos jatos de chamas. Os feixes das lanternas dançavam freneticamente, revelando e projetando formas e sombras em movimento.

A liderar a fuga, o cabo Okamoto abria caminho com o lança-chamas.

— Por aqui! Podemos passar!

Nathan arriscou olhar nessa direção. Conseguia avistar o riacho lá em baixo, a secção que contornava o flanco sul da colina.

— Porque é que não atacam deste lado? — perguntou Anna, esbaforida.

Zane encarregou-se de responder, enquanto recuava de olhos arregalados.

— A maioria deve estar do outro lado para a investida final!

Nate estudou a superfície lisa e tranquila do rio, mas já sabia. Recordou o instante em que a capivara surgira da floresta e correra pela margem ao encontro dos predadores.

— Estão a empurrar-nos... — murmurou. — Como se fôssemos um rebanho.

— O quê? — perguntou Kelly.

— Estão a empurrar-nos para a água. É uma armadilha!

Manny ouviu as palavras do amigo.

— O Nate tem razão. Apesar de também se deslocarem em terra, estas criaturas são aquáticas. Querem-nos o mais perto de água possível, para que possam desferir o ataque final.

Kelly olhou na direção dos rangers, que continuavam a tentar travar o avanço das criaturas.

— Que outra opção temos?

No fundo da colina, Okamoto abrandou junto à margem, pouco confortável com a ideia de atravessar o rio. Virou-se para o capitão Waxman.

— Eu atravesso primeiro. Como na última vez.

Waxman anuiu.

— Cuidado, cabo.

Okamoto avançou na direção da água.

— Não! — gritou Nate. — É uma armadilha!

Okamoto olhou para o capitão, que lhe fez sinal para prosseguir.

— Temos de sair daqui — disse Waxman.

Manny interveio.

— Espere... eu... eu posso enviar o Tor-tor à frente.

O grupo encontrava-se agora reunido na margem.

Waxman desviou o olhar para o jaguar.

— Muito bem. Faça-o passar primeiro.

Manny guiou o felino na direção da água.

Nate não queria acreditar que Manny se preparava para fazer aquilo. Entrar na água era suicídio. Sabia-o de ciência certa. Porém, o capitão tinha razão. Precisavam de atravessar o rio. Tentou pensar em várias soluções. Estender uma corda, por exemplo, mas depressa excluiu a hipótese. Mesmo que conseguissem fazê-lo, as criaturas eram capazes de saltar alturas consideráveis. A corda só faria com que se transformassem em iscos pendurados numa linha. Talvez pudessem atirar umas quantas granadas para dentro de água, mas o riacho era demasiado largo. As criaturas mortas pelas explosões seriam rapidamente substituídas por outras, que os atacariam mal pusessem os pés na água. Não, precisavam de algo que as aniquilasse de uma assentada. Mas o quê?

Então, lembrou-se. Dias antes, vira ser posta em prática a resposta que procurava.

Olhou na direção de Manny e Tor-tor, que se encontravam já a poucos metros da água. Okamoto acompanhava-os, abrindo caminho com o lança-chamas.

— Esperem! — gritou. — Tenho uma ideia!

Manny deteve-se.

— O que está a fazer? — perguntou o capitão.

— De acordo com o Manny, estas criaturas são essencialmente peixes — explicou Nate.

— E então?

Nate ignorou o capitão e virou-se para Kouwe.

— Tem pó de timbó consigo, certo?

— Sim, tenho, mas o que... — começou o professor, para depois arregalar os olhos quando percebeu a intenção de Nate. — Meu Deus! Claro! Já devia ter pensado nisso!

— Pensar no quê? — perguntou o capitão, cada vez mais frustrado.

Na base da colina, os rangers mantinham momentaneamente as criaturas à distância com as metralhadoras e o outro lança-chamas. O cabo Okamoto continuava a aguardar junto ao rio.

Nate explicou rapidamente o plano.

— Os índios usam o pó de timbó para pescar — disse, visualizando a cena que testemunhara quando descera o rio com Tama e Takaho: uma mulher a polvilhar a corrente com um pó negro, enquanto, mais abaixo, um grupo de homens recolhia os peixes com lanças e redes. — O pó desta planta contém uma poderosa toxina que sufoca o peixe. O efeito é quase instantâneo.

— E o que propõe, então? — perguntou Waxman.

— Conheço a substância. Subo um pouco o rio e despejo o pó na corrente. Será o suficiente para atordoar qualquer peixe nestas águas.

Waxman franziu o sobrolho.

— O tal pó é capaz de fazer isso?

— Desde que as criaturas respirem como peixes — retorquiu Kouwe, remexendo na mochila. O professor lançou um olhar a Manny.

O biólogo acenou com a cabeça, o olhar convicto.

— Tenho a certeza.

Suspirando, Waxman fez sinal para Okamoto e Manny se afastarem do rio. Quando o capitão se virou para Nate, ouviu-se uma explosão.

Terra, folhas e ramos foram lançados pelo ar. Alguém lançara uma granada.

— Estão a romper a nossa defesa! — gritou o sargento Kostos.

Waxman apontou para Nate.

— Mexa-se!

Nate virou-se. O professor retirou uma sacola de cabedal da mochila e entregou-lha.

— Tem cuidado.

Nate pegou no saco de pó e deu meia-volta com a caçadeira na outra mão.

— Carrera! — chamou Waxman, acenando na direção de Nate. — Mantenha-o em segurança.

— Sim, capitão! — A ranger desceu o resto da encosta com o lança-chamas, cedendo a posição a Okamoto.

— Quando virem peixes flutuar — explicou Nate ao grupo —, atravessem o rio. Embora a corrente seja fraca, não sei quanto tempo durará o efeito da toxina até se diluir.

— Eu certifico-me de que estamos prontos — retorquiu Kouwe.

Nate lançou um último olhar aos companheiros. Kelly fitou-o, com a mão sobre a garganta. Nate sorriu-lhe, confiante, e pôs-se a caminho.

Correu com Carrera rio acima, mantendo uma distância segura da água enquanto ela abria caminho com o lança-chamas. Olhou por cima do ombro. Os companheiros não passavam de um clarão distante no meio da escuridão.

— Os bichos devem saber que estamos a preparar alguma — disse a militar, ofegante. Apontou para o rio. Havia criaturas a sair da água, nitidamente com intenções de os perseguir.

— Continue — disse Nate. — Não falta muito.

O par apressou-se, perseguido pelo som das criaturas a saltar da água para a vegetação.

Alcançaram por fim o ponto onde o rio bifurcava para contornar a colina. A distância entre margens era mais curta, e a corrente mais forte, com algumas secções de rápidos. Mais criaturas irromperam à superfície, com os corpos viscosos a reluzir sob a luz das chamas.

Nate fez um compasso de espera enquanto Carrera expelia um jato de fogo preventivo. Alguns animais morreram na margem, outros fugiram de volta para o rio, ainda a fumegar.

— É agora ou nunca — avisou Carrera.

Nate pendurou a caçadeira ao ombro e avançou com o saco de pó, que abriu rapidamente.

— Atire tudo de uma vez! — recomendou a militar.

— Não posso, isto tem de ficar bem espalhado.

Nate deu mais um passo na direção da água.

Carrera seguiu-o, disparando jatos de chamas para desencorajar os predadores.

— Cuidado...

Nate encontrava-se agora a poucos centímetros do rio.

Carrera colocou um joelho no chão e lançou um último jato de chamas sobre a superfície das águas, a fim de incinerar qualquer criatura que ousasse emergir.

— Agora! — gritou.

Nate acenou com a cabeça, inclinou-se para a frente e estendeu os braços. Atraído pelo movimento, um dos animais saltou da água. Nate desviou-se a tempo de evitar que a criatura lhe mordesse o braço. Em vez disso, o bicho ficou pendurado pelos dentes no punho da camisa.

Nate sacudiu o braço, rompendo o tecido e atirando o animal pelo ar.

— Rai’s partam!

Sem esperar mais um segundo, virou o saco ao contrário e começou a verter o pó o melhor que podia.

Atrás dele, Carrera também dava o seu melhor para manter os dois a salvo. Os animais no rio convergiam na sua direção.

Nate sacudiu a última amostra de pó no saco e atirou-o para o rio. Vendo a corrente arrastar o saco rio abaixo, rezou pelo êxito do plano.

— Está feito — murmurou, antes de virar costas.

Carrera olhou para ele. Atrás dela, Nate viu dezenas de criaturas a saltarem da selva.

— Temos um problema — disse a ranger.

— Que problema?

Carrera disparou o lança-chamas na direção da selva. Nate viu o jato de fogo estender-se e esmorecer no cano da arma, como água na ponta de uma mangueira depois de fechada a torneira.

— Acabou-se o combustível.

Ao lado de Kelly, Frank estava mais preocupado com a segurança da irmã gémea do que consigo próprio. Os dois não podiam ser mais próximos. Na realidade, havia alturas em que Frank jurava ser capaz de ler os pensamentos da irmã. Como naquele momento. Kelly fitava o rio com Kouwe e Manny, à procura de indícios de que o plano de Nate resultara, porém, volta e meia, Frank reparava que o olhar dela se desviava para a floresta, na direção que o etnobotânico e a ranger haviam tomado. Frank também reparara no brilho nos olhos dela.

Uma nova explosão desviou-lhe a atenção. Outra granada. A chuva de destroços agitou as copas das árvores. Por aquela altura, o som do tiroteio era constante e chegava de todas as direções. A linha de rangers apertava-se lentamente em torno do grupo de civis. Não faltaria muito para que não tivessem outra alternativa senão recuar em direção ao rio e às criaturas que nele se escondiam.

Ali perto, Anna Fong estava acompanhada de Richard Zane, ambos protegidos por Olin Pasternak, que empunhava uma Beretta de 9 mm. A pistola não constituía a melhor defesa contra alvos tão pequenos e rápidos, mas era melhor que nada.

O jaguar de Manny rugiu subitamente.

— Olhem! — disse Kelly.

Frank virou-se. A irmã apontava a lanterna na direção do rio. Foi então que viu. Iluminados pelo cone de luz, dezenas de pontos reluzentes começaram a emergir das profundezas e foram arrastados, a boiar, pela corrente.

Kelly sorriu.

— Ele conseguiu! O Nate conseguiu!

Ao seu lado, o professor aproximou-se do rio. Uma das criaturas saltou da água para o atacar, mas aterrou de lado na lama, onde ficou a sacudir-se uns segundos. Depois, ficou quieta. Morta. O professor olhou para Frank.

— Não podemos perder a oportunidade. Temos de atravessar imediatamente.

Frank virou-se e avistou o capitão Waxman na base da encosta. Gritou para se fazer ouvir por cima do tiroteio.

— Capitão! O plano do Rand resultou! — Acenou na direção do rio. — Temos de atravessar! Agora!

Waxman assentiu com a cabeça.

— Unidade Bravo! — gritou. — Para o rio!

Frank ajeitou a pala do boné da sorte e aproximou-se de Kelly.

— Vamos.

Manny passou-lhes à frente.

— O Tor-tor e eu atravessamos primeiro. Este plano não existiria sem as conclusões do meu exame.

Manny não esperou pelas objeções. Conduziu o jaguar até ao rio, fez um compasso de espera e entrou na água. Aquela secção era bastante funda. A meio da travessia, a água chegava-lhe pela altura do peito. Tor-tor teve de nadar.

Mesmo assim, não tardou para que o biólogo se encontrasse no outro lado. Virou-se e acenou aos companheiros.

— Despachem-se! É seguro, por enquanto!

— Mexam-se! — ordenou Waxman.

Os civis atravessaram juntos e em linha contra a corrente. Frank seguiu de mão dada com Kelly. O rio estava agora cheio de criaturas que flutuavam inertes. As águas escondiam centenas delas, e tinham de afastar aqueles corpos de bocas descaídas e dentes reluzentes à medida que avançavam. Horrorizado, Frank não podia fazer mais do que suster a respiração e rezar para que os animais permanecessem adormecidos ou mortos.

Assim que alcançaram a margem, apressaram-se a sair da água. Os rangers avançaram a seguir, totalmente equipados e indiferentes aos corpos flutuantes na água. Assim que chegaram ao outro lado, um pequeno exército de criaturas surgiu na margem oposta, vindo da selva. Alguns dos bichos avançaram até à linha de água, mas pararam com as guelras a tremer.

Devem ter pressentido a morte dos outros, pensou Frank. Porém, os animais não tinham alternativa. Se ficassem em terra, acabariam por sufocar. Então, como que obedecendo a um sinal silencioso, a massa de criaturas saltou para o rio.

— Continuem! — ordenou Waxman. — Não sabemos se a toxina ainda faz efeito.

O grupo abandonou a margem e embrenhou-se na selva. As lanternas permaneceram apontadas ao rio e às margens, mas, após uns minutos, tornou-se evidente que a perseguição terminara. Ou as águas continuavam tóxicas, ou as criaturas haviam desistido.

Frank suspirou.

— Finalmente.

Preocupada, Kelly permaneceu em silêncio, com a mão fechada junto à garganta; a outra mão segurava a lanterna apontada na direção da margem oposta.

— Onde está a soldado Carrera? — murmurou. Depois, virando-se para o irmão: — Onde está o Nate?

Uma explosão ressoou na floresta a montante.

De olhos arregalados, Kelly fitou Frank.

— Eles estão em dificuldades.

Nate ergueu a caçadeira e abateu outra criatura que se aproximara demasiado. Carrera pousara o tanque de combustível do lança-chamas no chão e encontrava-se debruçada sobre ele.

— Falta muito? — perguntou Nate, procurando manter-se atento a tudo o que se mexia.

— Está quase...

Nate olhou por cima do ombro. A luz da lanterna de Carrera permitia-lhe ver que o veneno na água estava a atuar como esperava. Os corpos acumulavam-se à superfície, mas a corrente depressa os arrastava para longe. A secção do rio onde se encontravam estava livre de corpos, o que não constituía um bom indicador. Pela rapidez com que a água se movia, era mais que certo que o pó que ali espalhara fora levado com a força da corrente. Não podiam atravessar naquele ponto. Em vez disso, precisavam de retroceder pela margem até encontrarem uma secção de águas mais calmas, onde o veneno pudesse ainda estar presente e ativo. O problema era que entre os dois pontos havia uma legião de criaturas entrincheiradas na floresta, a bloquear-lhes a passagem.

Carrera levantou-se.

— Já está!

Pegou no tanque de combustível e apertou a tampa do bocal de reabastecimento, de onde pendia um pedaço de cordão detonante. Nate sentiu o cheiro dos vapores. O tanque continha uma quantidade de combustível insuficiente para alimentar a arma, mas suficiente para o que tinham em mente. Ou assim esperava, pelo menos.

Nate manteve a posição com a caçadeira.

— Tem a certeza de que isto vai resultar?

— Espero que sim.

Não era a resposta que Nate gostaria de ouvir.

— Indique outra vez o alvo — disse Carrera, atrás dele.

Nate desviou a caçadeira e apontou-a à árvore de casca cinzenta que se encontrava a uns trinta metros a jusante.

— Okay. — Carrera acendeu a ponta do cordão detonante. — Aqui vai disto! — Estendeu o braço e usou todo o impulso do corpo para atirar o tanque.

Nate prendeu a respiração e viu o tanque descrever um arco no ar e aterrar junto à árvore escolhida.

— Eu sabia que os anos em que joguei basebol feminino haviam de servir para alguma coisa — murmurou Carrera. — Agora, baixe-se!

Nate e Carrera atiraram-se para o chão. Nate caiu com a caçadeira apontada para a frente, e em boa altura o fez. Uma das criaturas saltou de um arbusto e aterrou a centímetros do seu nariz. Nate rolou sobre si mesmo e atingiu-a com o corpo da arma, arremessando-a para longe. Rolou de novo e olhou para Carrera.

— Basebol universitário — murmurou. — Também bati umas bolas.

Carrera estendeu a mão e forçou a cabeça dele contra o chão.

— Baixe-se!

A explosão foi ensurdecedora, projetando uma chuva de estilhaços incandescentes contra as árvores. Nate ergueu a cabeça. O plano de Carrera resultara. Ela conseguira transformar o tanque de combustível num gigantesco cocktail Molotov. As chamas incendiaram a noite.

A segunda explosão soou como um relâmpago: um lascar de madeira, acompanhado de um estrondo profundo. Um bocado de selva desfez-se em pedaços, a que se seguiu uma chuva de bolas de resina em chamas.

— Merda! — praguejou Carrera. Tinha a manga do uniforme a arder. Apagou-a contra o chão lamacento.

Nate endireitou-se. A árvore escolhida como alvo desaparecera pela base, de onde escapavam chamas azuladas. Tratava-se de uma espécie resinosa, igual à que Nate mostrara aos companheiros dias antes e cuja seiva era rica em hidrocarbonetos, um combustível viscoso, altamente inflamável. A explosão do tanque incendiara a árvore, convertendo-a numa bomba natural. Em resultado disso, aquela margem do rio transformara-se numa ruína ardente.

Nate levantou-se com Carrera.

— Vamos!

Juntos, correram pela floresta desfeita ao longo da margem, até alcançarem a secção do rio onde o veneno continuava ativo. Os corpos das criaturas e de outros peixes cobriam a superfície da água.

— Por aqui! — Nate entrou no rio, meio a nadar meio a caminhar. Carrera seguiu-lhe o exemplo.

Em menos de nada, encontravam-se já a subir a outra margem.

— Conseguimos! — exclamou a ranger.

Nate suspirou. Avistou as lanternas dos outros à distância. Os companheiros também tinham atravessado. Apontou na direção das luzes.

— Vamos ver se estão todos bem.

Ajudando-se um ao outro, afastaram-se do rio e puseram-se a caminho.

Assim que surgiram da floresta, foram recebidos com gritos entusiásticos. Os rangers felicitaram a camarada com palmadas nas costas. Aquilo parecia mais um ataque do que uma receção calorosa.

— Bom trabalho, Carrera — disse Kostos, exibindo um sorriso de verdadeiro apreço.

A receção de Nate não foi menos efusiva, e deu por si nos braços de Kelly, que o apertou com força.

— Conseguiu — murmurou ela. — Resultou.

— O... obrigado.

Frank também lhe deu uma palmada nas costas.

— Bravo, doutor Rand — disse o capitão Waxman, estoico como sempre. Virou-se para organizar as tropas. Com ou sem criaturas, ninguém queria ficar perto do rio.

Kelly largou Nate, mas não sem antes lhe dar um beijo na cara.

— Obrigada... obrigada por nos salvar. E por ter regressado inteiro.

Dito isto, a médica americana virou-lhe as costas. Nate ficou parado, sentindo-se enrubescer.

Carrera deu-lhe um toque com o cotovelo e revirou os olhos.

— Parece que alguém fez um amigo.

10h02

Selva amazónica

À beira-rio, Louis olhou em volta do local da grande explosão. Ainda sentia o cheiro de napalm no ar, um odor acre. Atrás de si, a equipa descarregava as canoas e preparava as mochilas. A partir dali, a viagem seria feita a pé.

A madrugada trouxera nuvens cinzentas e uma chuva miudinha, que apagara os fogos que ainda ardiam. Uma neblina densa e fantasmagórica agarrara-se àquele pedaço morto de selva.

Ali perto, Tshui vagueava pelo local com uma expressão ferida, como se os danos infligidos à floresta constituíssem um ataque pessoal. Contornou um pau espetado no chão com uma criatura empalada. Era um dos estranhos animais que atacara o outro grupo. Louis nunca vira tal coisa e, pela expressão de Tshui, a sua amada também não. Inclinando a cabeça, fitou a criatura, como um pássaro a estudar uma minhoca.

— Tenho uma chamada de rádio — disse Jacques, desviando a atenção de Louis. — Na frequência codificada.

Louis suspirou.

— Até que enfim...

Mais cedo, pouco antes da madrugada, um dos dois batedores regressara com uma expressão de pânico no rosto. Comunicara que o parceiro, um colombiano atarracado que dava pelo nome de Toady, fora atacado pelas criaturas, sofrendo uma morte horrível, e que ele próprio escapara por uma unha negra. Infelizmente, as informações de Malachim em relação ao paradeiro da outra equipa eram um tanto escassas. Ao que tudo indicava, o grupo dos rangers fora perseguido pelas mesmas criaturas e seguia agora para sudoeste. Mas para onde, ao certo?

Louis precisava de descobrir. Recebeu o rádio das mãos de Jacques, uma linha direta de comunicação com o cúmplice na outra equipa, a toupeira que fora colocada mesmo nas barbas dos rangers em troca de uma avultada soma de dinheiro.

— Obrigado, Jacques — disse, afastando-se uns passos. Recebera outra chamada naquela manhã, dessa vez dos financiadores franceses, os laboratórios St. Savin. Fora informado da doença que se espalhava na Amazónia e nos Estados Unidos, qualquer coisa relacionada com o cadáver de Gerald Clark. De repente, havia muito mais em jogo, e Louis aproveitara para subir os honorários, visto que a missão se tornara muito mais arriscada. Os empregadores aceitaram, claro, como esperava que fizessem. Uma cura para aquela doença valeria biliões, e o que eram mais uns francos no bolso comparados com isso?

Ergueu o rádio.

— Favre.

— Doutor Favre — respondeu a voz no outro lado, aliviada. — Graças a Deus. Pensei que não conseguia contactá-lo.

— Tenho estado à espera de notícias. — Louis permitiu que o tom de voz se tornasse um tudo-nada ameaçador. — Perdi um bom homem ontem à noite porque o meu amigo não se lembrou de me informar acerca destas simpáticas criaturas.

Houve uma longa pausa.

— Peço desculpa... não tive qualquer hipótese de escapar para falar consigo. Na verdade, esta foi a primeira oportunidade que tive para ir à casa de banho sozinho.

— Muito bem. Conte-me lá o que se passou ontem à noite.

— Foi horrível. — O homem falou três minutos seguidos, dando a Louis uma visão geral do ataque. — Se o Rand não se lembrasse daquele pó — concluiu —, tínhamos morrido todos.

Louis sentiu os dedos apertarem-se em torno do rádio quando ouviu o apelido Rand. Embora o outro não estivesse a falar do pai de Nathan, a menção daquele nome era o suficiente para lhe eriçar os pelos da nuca. O tom de voz tornou-se mais azedo.

— E agora, onde estão?

— Em marcha para sudoeste, à procura do próximo marcador deixado pelo Gerald Clark.

— Ótimo.

— Mas acontece que...

— O quê?

— Eu... eu quero desistir.

— Pardon, monsieur?

— Ontem à noite, eu... quase morri. Estava na esperança de que o doutor... enfim, não sei... pudesse vir buscar-me, por exemplo, se abandonasse o acampamento. Se for preciso, estou disposto a pagar pelo meu regresso à civilização são e salvo.

Louis fechou os olhos. Pelos vistos, o seu cúmplice começava a ficar assustado. Tinha de transmitir algum incentivo ao homem.

— Se abandonar o acampamento, pode ter a certeza de que o encontrarei.

— Oh, obrigado. Fico-lhe muito gra...

Louis cortou-lhe a palavra.

— E depois de o encontrar, vou certificar-me de que a sua morte será lenta, dolorosa e humilhante. Leu o meu ficheiro, tenho a certeza de que sabe até que ponto consigo ser criativo nessa matéria.

Houve mais um momento de silêncio. O outro lera de facto o ficheiro, e Louis conseguia imaginá-lo a perder a cor enquanto os testículos se encolhiam de medo.

— Compreendo — disse por fim a voz.

— Excelente, mon ami. Ainda bem que chegámos a um consenso. Passemos então a assuntos mais importantes. Parece que o nosso empregador francês solicitou um novo pedido. Algo que, receio eu, tenha de ser o meu amigo a fazer.

— Que pedido?

— Por razões de segurança, e de modo a garantir os direitos de propriedade do que se encontra adiante, temos de cortar as comunicações da equipa com o mundo exterior. E o mais rápido possível, de preferência, e sem levantar suspeitas.

— E como quer que faça isso? Tenho o vírus informático que me deram para instalar no computador e comprometer a ligação ao satélite, mas os rangers nunca perdem de vista o equipamento. Não tenho maneira de me aproximar sem...

— Pas de problème. O meu amigo planta o vírus e deixa os rangers comigo.

— Mas...

— Tenha fé. Acredite que nunca estará sozinho.

Uma vez mais, no outro lado da linha ouviu-se apenas silêncio. Louis sorriu. As suas palavras faziam tudo menos confortar o seu interlocutor.

— Contacte-me outra vez mais logo — disse Louis.

— Vou... vou tentar.

— Não tente, faça.

— Sim, doutor.

A chamada terminou.

Louis baixou o rádio e foi ao encontro de Jacques.

— Vamos continuar. A outra equipa leva um bom avanço.

— Sim, senhor. — Jacques virou costas e foi dar ordens aos homens.

Louis fitou a selva coberta de neblina e encontrou Tshui, que permanecia junto à criatura empalada. Seria capaz de jurar que havia medo no olhar da sua amada, mas talvez fosse impressão sua. Como podia ela ter medo? Nunca lhe observara esse tipo de emoção. Foi ao encontro dela e abraçou-a.

Tshui tremeu ligeiramente quando ele lhe tocou.

— Calma, mon cher. Não há que recear.

Tshui colou o corpo ao dele, mas tornou a desviar o olhar para a criatura. Louis abraçou-a com mais força. Um ligeiro gemido escapou-se dos lábios dela.

Louis franziu o sobrolho. Talvez devesse dar ouvidos àquele aviso silencioso. Dali em diante, precisavam de prosseguir com mais cuidado, ser mais furtivos. A outra equipa quase morrera no recontro com aquelas criaturas, nunca antes vistas, um sinal claro de que estavam no caminho certo. Mas, e se houvesse mais surpresas do género?

Ao ponderar o risco, compreendeu que possuíam uma vantagem. Na noite anterior, a equipa oponente necessitara de toda a astúcia e recursos à disposição para sobreviver ao ataque, uma batalha que, inadvertidamente, abrira um caminho mais seguro ao seu grupo. Assim sendo, porque não repetir o processo? Porque não deixar as hipotéticas futuras ameaças a cargo da outra equipa?

Louis deu por si a sorrir.

— E nós ficamos com a singela tarefa de caminhar por cima dos corpos deles para recolher o prémio — murmurou com os seus botões.

Mais confiante, inclinou-se e beijou a testa de Tshui.

— Nada temas, meu amor. Não podemos perder.

10h09

Ala hospitalar do Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren O’Brien estava sentada à cabeceira da pequena cama, com um livro esquecido no colo. Ovos Verdes e Presunto, do Dr. Seuss, o favorito de Jessie. A febre baixara durante a madrugada. O cocktail de anti-inflamatórios e antipiréticos resultara, reduzindo progressivamente a temperatura de 39 para 37 graus. Ninguém sabia se Jessie contraíra a doença — uma febre era algo comum nas crianças —, mas não havia margem para riscos.

A enfermaria onde dormia a neta era um sistema fechado. A divisão encontrava-se selada e ventilada contra a propagação de eventuais germes. Lauren usava um fato de proteção descartável, equipado com máscara de oxigénio. Recusara vestir aquilo, de início, com medo de assustar Jessie, mas as regras ditavam que todo o pessoal do hospital e visitantes usassem equipamento adequado.

Quando apareceu assim vestida na enfermaria, a neta mostrara realmente um bocadinho de medo, mas a placa transparente na zona do rosto e umas palavras carinhosas foram o suficiente para a tranquilizar. Durante a manhã, Lauren permanecera à cabeceira da cama sem arredar pé enquanto os médicos examinavam, recolhiam sangue e administravam medicamentos a Jessie. Com a resiliência típica das crianças, a neta dormia agora profundamente.

Um ruído anunciou a chegada de alguém à enfermaria. Lauren virou-se para ver quem era, com um movimento um pouco desajeitado por causa do fato, e reconheceu o rosto por detrás de outra máscara. Pousou o livro na mesa de cabeceira e levantou-se.

— Marshall.

O marido aproximou-se e abraçou-a por trás de uma camada de plástico.

— Li a ficha dela antes de entrar — disse, com uma voz que soava pequenina e distante. — A febre baixou.

— Sim, há umas horas.

— Já há resultados dos testes?

Apesar dos fatos, Lauren conseguia ouvir o medo na voz do marido.

— Não... é demasiado cedo para determinar se está infetada.

Sem saberem qual era o agente infeccioso, não havia um teste de diagnóstico rápido. Os médicos baseavam-se em três sintomas: ulcerações orais, petéquias nas superfícies mucosas e uma redução substancial de glóbulos brancos no sangue. O problema era que os sintomas apenas se manifestavam cerca de trinta e seis horas após o surgimento da febre. Lauren e Marshall tinham uma longa espera pela frente. A não ser...

Lauren tentou mudar de assunto.

— Como correu a videoconferência?

Marshall abanou a cabeça.

— Uma perda de tempo. Ainda vai demorar uns dias até que as politiquices habituais deem lugar a um verdadeiro plano de ação. A boa notícia é que o Blaine do CCD apoiou a minha ideia de encerrar a fronteira da Florida. Confesso que fiquei surpreendido.

— Não devias. Enviei-lhe dados a semana inteira, incluindo do que está a acontecer no Brasil. O cenário é assustador.

— Bom, parece que resultou. — Marshall apertou-lhe a mão. — Obrigado.

Lauren desviou o olhar para a cama e soltou um longo suspiro.

— Porque não vais descansar? Posso ficar com ela. Estiveste a pé a noite inteira.

— Não vale a pena. Nunca conseguiria dormir.

Marshall segurou-a pela cintura.

— Ao menos bebe um café e come qualquer coisa. Temos a videoconferência ao meio-dia com a Kelly e o Frank.

Lauren encostou-se ao marido.

— O que vamos dizer à Kelly?

— A verdade. A Jessie está com febre, mas não temos motivos para alarme. Não sabemos se está infetada.

Lauren anuiu. Ficaram em silêncio durante um momento, e depois Marshall conduziu a mulher para a porta da saída.

— Vamos.

Lauren cruzou as portas estanques e percorreu o corredor até ao balneário, onde despiu o fato protetor e vestiu a bata. Ao abandonar o balneário, fez uma curta paragem no balcão das enfermeiras.

— Os testes vieram?

Uma enfermeira asiática entregou-lhe um dossiê.

— O fax chegou há uns minutos.

Lauren abriu o dossiê e procurou a folha com os resultados das análises sanguíneas. Percorreu a longa lista de valores com o dedo. Parecia tudo normal, como seria de esperar. Então, o dedo deteve-se na parcela com a contagem de glóbulos brancos:

TGB: 2130 (L) VR: 6.000-15.000

O valor era baixo, bastante baixo, um dos sintomas associados à doença.

Com o dedo a tremer, Lauren passou à secção do exame que detalhava os valores das diferentes classes de glóbulos brancos. Havia um pormenor que o epidemiologista da equipa, o doutor Alvisio, mencionara na noite anterior, um possível padrão nos dados de laboratório que o modelo de computador detetara, e que se traduzia num aumento significativo de uma classe específica destas células, os basófilos. O aumento ocorria no estádio inicial da doença, à medida que a contagem total de glóbulos brancos diminuía. Embora fosse cedo para certezas, a alteração de valores parecia consistente em todos os casos diagnosticados. Podia ser uma forma precoce de detetar novos casos.

Lauren leu a última linha:

Basófilos: 12 (H) VR: 0-4

Oh, não...

Pousou o dossiê no balcão. Os valores de Jessie encontravam-se muito acima do normal.

Fechou os olhos.

— Doutora O’Brien? Sente-se bem?

Lauren não ouviu a enfermeira. A sua mente rodopiava, tentando processar a horrível descoberta.

A neta contraíra a doença.

11h48

Selva amazónica

Kelly seguiu os companheiros, completamente exausta, mas apostada em não desistir. O grupo caminhara a noite inteira, embora com paragens frequentes. Após o ataque, marcharam durante duas horas consecutivas e, pela madrugada, montaram um acampamento temporário, enquanto os rangers contactavam a base de Wauwai. Decidiram então que deviam continuar até ao final da manhã, existindo já condições de estabelecerem a ligação via satélite com os Estados Unidos. Depois disso, descansariam o resto do dia enquanto decidiam o passo seguinte.

Kelly consultou o relógio. Faltava pouco para o meio-dia. Graças a Deus, pensou. Waxman já se pronunciara sobre a escolha de um local para o acampamento. «O mais longe possível da água», ouvira-o dizer.

Desde o nascer do dia que a equipa se mantinha atenta a tudo o que eram cursos de água, contornando-os quando possível ou atravessando-os a correr. Mas não ocorreram mais ataques.

Manny adiantara uma explicação.

— Talvez as criaturas estejam confinadas a uma área específica da selva. Sempre explica o facto de nunca terem sido vistas até agora.

— Se assim for, não vou ter saudades delas — dissera Frank.

Avançaram determinados, enquanto o chuvisco matinal se convertia lentamente em neblina. A humidade tornava tudo mais pesado: roupa, mochilas, botas. Mas ninguém se queixava. Havia um alívio geral de se verem longe do horror da noite anterior. A rota traçada estendia-se para sudoeste, a direção da seta deixada na árvore por Gerald Clark.

Na frente do grupo, um ranger gritou:

— Uma clareira! — A voz era do cabo Warczak. Enquanto batedor da unidade, naquele momento desempenhava uma dupla função, dado que procurava igualmente indícios da passagem de Gerald Clark. — Parece perfeita para o acampamento!

Kelly suspirou.

— Já não era sem tempo...

— Certifiquem-se de que não há água por perto — avisou o capitão Waxman.

Kostos já estava em movimento.

— Sim, senhor!

— Cuidado — disse Nate, uns metros à frente de Kelly. — Pode haver...

Ouviu-se um grito.

Todos pararam, exceto Nate, que correu na direção da voz.

— Rai’s partam! Será que ninguém me ouve? — murmurou. Olhou para trás e fez sinal a Kelly e Kouwe. — Venham! Vou precisar da vossa ajuda!

Kelly começou a correr.

— O que se passa? — perguntou a Kouwe.

O professor indígena estava já a abrir a mochila.

— Supay chacra, calculo. O jardim do diabo. Vamos.

— Jardim do diabo? — Kelly não gostava da perspetiva que aquele nome prenunciava.

O capitão Waxman ordenou aos restantes militares para ficarem junto dos outros civis e seguiu atrás de Kelly e Kouwe com Frank.

Kelly avistou um par de rangers mais à frente. Pareciam lutar contra qualquer coisa. Um rebolava no chão, enquanto o outro lhe dava palmadas com a mão aberta.

Nate correu para os militares.

— Tira estas coisas de cima de mim! — gritou o ranger no chão, o sargento Kostos.

— Estou a tentar! — respondeu o cabo Warczak, ainda a dar-lhe palmadas.

Nate desviou o cabo.

— Esteja quieto! Só está a piorar as coisas! — Virou-se para o sargento. — Não se mexa!

— Estão a morder-me em todo o lado!

Kelly encontrava-se agora suficientemente perto para perceber que o militar estava coberto de formigas pretas gigantes, que mediam mais de dois centímetros.

— Não se mexa e elas deixam-no em paz — insistiu Nate.

Kostos lançou-lhe um olhar furioso, mas fez o que lhe era pedido e parou de se debater.

Kelly reparou nas bolhas nos braços e na cara. Dava a ideia de que o militar fora queimado com pontas de cigarro.

— O que aconteceu? — perguntou o capitão.

Nate fez sinal para ninguém se aproximar.

— Fiquem onde estão.

Kostos estava nitidamente em sofrimento, com lágrimas a correrem pelo rosto. Aquilo devia ser bastante doloroso, mas o conselho de Nate depressa deu frutos. Ao manter-se quieto, as formigas pararam de morder e começaram a sair de cima do soldado, desaparecendo na vegetação.

— Para onde vão? — perguntou Kelly.

— De volta para o ninho — disse Kouwe. — São os soldados da colónia. — Apontou para lá das árvores. Uns metros à frente, havia uma enorme clareira. Parecia totalmente vazia e estéril, como se alguém tivesse limpado a área com máquinas industriais. No centro erguia-se uma única árvore, um gigante solitário cujos ramos se estendiam em todas as direções, quase tocando o perímetro da clareira.

— É uma árvore de formigas — explicou o professor. — A colónia vive lá dentro.

— Dentro da árvore?

Kouwe anuiu.

— É um dos vários exemplos de como a floresta tropical se adaptou aos seus animais e insetos. Esta árvore evoluiu com ramos ocos que servem as formigas. Na verdade, alimenta a colónia, produzindo uma seiva especial açucarada. Por sua vez, as formigas também servem a árvore. Os detritos da colónia ajudam a fertilizar a árvore, mas as formigas também a protegem de outros animais. — Kouwe acenou com a cabeça na direção da clareira. — As formigas até destroem tudo o que cresça perto dela, impedindo quaisquer plantas trepadeiras de se fixarem no seu tronco. É por isso que estas clareiras se chamam supay chacra, o jardim do diabo.

— Que relação tão estranha...

— De facto. Mas é benéfica para as duas espécies. Em bom rigor, uma não podia viver sem a outra.

Kelly fitou a clareira, fascinada como a vida se interligava na selva. Dias antes, Nate mostrara-lhe uma orquídea cujas partes reprodutoras replicavam uma certa espécie de vespa. «Para atrair o inseto e levá-lo a polinizá-la.» Havia outras que ofereciam néctares para atrair diferentes polinizadores. E estas relações não se limitavam a insetos e plantas. O fruto de certas árvores tinha de ser consumido por uma ave específica. Só então, depois de passar pelo trato digestivo do pássaro, é que as sementes podiam ganhar raiz e crescer. Na selva, um mundo por demais estranho, eram muitas as vidas que dependiam dos vizinhos numa complexa rede evolucionária.

Nate ajoelhou-se ao lado do sargento, atraindo a atenção de Kelly. Por aquela altura, as formigas tinham desaparecido.

— Quantas vezes já avisei para terem cuidado com aquilo em que tocam ou onde se encostam?

— Não as vi — retorquiu Kostos, com cara de poucos amigos. — E precisava de urinar.

Kelly reparou na braguilha desapertada.

Nate abanou a cabeça.

— E decidiu fazer isso contra uma árvore de formigas?

— As formigas respondem a marcadores químicos — explicou Kouwe, remexendo na mochila. — O odor da urina foi interpretado como um ataque à colónia.

Kelly sacou de uma seringa com um anti-histamínico, enquanto Kouwe retirava umas folhas e as esfregava umas nas outras. Kelly reconheceu as folhas e o cheiro libertado pela pasta oleosa.

— Ku-run-yeh?

O professor sorriu.

— Isso mesmo. — Eram as mesmas folhas que usara para tratar as mãos de Kelly quando ela tocara na liana-de-fogo. Um potente analgésico natural.

Os dois médicos começaram a trabalhar no paciente. Enquanto Kelly administrava uma combinação de anti-histamínicos e anti-inflamatórios, Kouwe esfregava a pasta das folhas no braço do soldado, mostrando-lhe como devia ser aplicada.

A expressão do sargento refletiu o alívio sentido. Suspirou e agarrou no punhado de folhas.

— Eu faço o resto — disse, um tanto embaraçado.

Kelly reparou no olhar discreto que ele lançou à braguilha aberta. Calculou que fosse uma zona que o soldado preferia tratar sozinho.

O cabo Warczak ajudou o sargento a levantar-se.

— É melhor evitarmos esta área — disse Nate. — Não podemos acampar ao pé de uma árvore de formigas. A comida pode atrair os batedores.

O capitão assentiu.

— Nesse caso, vamos continuar. — Lançou um olhar dos dele ao sargento combalido. — Isto já nos custou demasiado tempo.

Ao longo da meia hora seguinte, o grupo manteve a marcha, acompanhado pelos chamamentos de macacos-pregos e macacos-barrigudos. Manny apontou a presença de um papa-formigas-pigmeu no cimo de um ramo. Paralisado pelo medo, o pequeno animal parecia um peluche com os olhos arregalados e a pelagem sedosa. Mais ameaçadora, mas parecendo igualmente artificial por causa das escamas verde-fluorescentes, foi a jararaca-verde que avistaram pendurada numa palmeira.

Kelly passou o mais longe possível da última criatura. Não gostava nada de cobras, venenosas ou não. E assim prosseguiram a viagem pela selva, perseguidos pelas irritantes moscas, que teimavam em mordê-los, e ensopados até aos ossos por causa do calor e da humidade.

Por fim, o cabo Warczak gritou de novo.

— Encontrei uma coisa!

Kelly rezou para que não fossem mais formigas.

— Acho que é outro marcador do Clark! — disse o militar.

O grupo convergiu na direção da voz. Após uma pequena subida, depararam-se com um enorme castanheiro. A copa projetava uma sombra considerável sobre uma área coberta de folhas mortas e nozes. No tronco, a cerca de dois metros de altura, havia outro pedaço de tecido pendurado.

O cabo Warczak fez sinal para ninguém se aproximar.

— Há pegadas de botas — avisou. — Não as pisem.

— Pegadas de botas? — murmurou Kelly, enquanto o soldado circundava a árvore, para depois se deter no outro lado.

— Consigo distinguir um rasto a partir daqui! — disse o cabo.

O capitão Waxman e Frank foram ao encontro dele.

Kelly franziu o sobrolho.

— O Gerald Clark não foi encontrado descalço?

— Foi — confirmou Nate. — Mas o xamã ianomâmi mencionou que os índios lhe tinham roubado tudo. Se calhar, levaram-lhe as botas.

Richard Zane apontou para a árvore.

— Será que deixou outra mensagem?

Continuavam à espera de autorização para se aproximarem. Waxman e Frank regressaram, deixando Warczak a estudar o trilho. O capitão fez sinal ao grupo.

— Acampamos aqui.

Ouviram-se suspiros de alívio, e a equipa avançou por cima das nozes e das folhas no chão. Kelly foi a primeira a alcançar a árvore. Uma vez mais, havia uma marca gravada no tronco.

— GC... Outra vez o Clark. — disse Nate. Apontou na direção da seta. — Oeste, tal como indica o rasto deixado. Sete de maio, é a data.

Olin encostou-se à árvore.

— Sete de maio? Levou dez dias a chegar à aldeia? Deve ter rastejado até lá.

— Calculo que não tenha feito o caminho mais curto — disse Nate. — Ao contrário de nós, deve ter perdido tempo às voltas, à procura de sinais de civilização.

— Sem esquecer que por essa altura estaria doente — acrescentou Kelly. — Segundo o exame da minha mãe, os cancros estariam já a espalhar-se. É provável que tivesse de descansar com frequência.

Anna Fong suspirou.

— Se ao menos tivesse saído da selva mais cedo... tinha conseguido informar por onde andou tanto tempo.

Olin afastou-se da árvore.

— Por falar em comunicação, vou preparar a ligação de satélite. Falta meia hora para a próxima videoconferência.

— Eu ajudo-o — disse Zane, seguindo atrás do russo.

O resto da equipa dispersou para preparar as camas, recolher lenha e apanhar fruta. Kelly ocupou-se da sua cama, estendendo o mosquiteiro como uma profissional.

Frank trabalhava ao lado da irmã.

— Kelly?

Pelo tom de voz, o irmão preparava-se para largar uma bomba.

— O que foi?

— Acho que devias regressar.

Kelly parou o que estava a fazer e virou-se.

— Regressar? Como assim?

— Falei com o Waxman. Depois de ele ter comunicado o ataque aos superiores, ordenaram-lhe que reduzisse a equipa ao pessoal essencial. A noite de ontem foi complicada, e não querem arriscar a perda de civis. Além disso, o grupo está a atrasar o avanço dos rangers. — Frank olhou por cima do ombro. — Para acelerar a missão, ficou decidido que vamos deixar para trás a Anna, o Richard, o Manny e o professor Kouwe.

— Mas...

— Eu, o Olin e o Nate somos os únicos que vamos continuar.

— Sou um elemento essencial, Frank. A única médica. E consigo andar tão depressa como tu.

— O cabo Okamoto tem treino médico.

— Não é bem a mesma coisa, pois não?

— Kelly...

— Não faças isso, Frank.

Frank desviou o olhar.

— Lamento. Está decidido.

Kelly desviou-se, a fim de o obrigar a olhar para ela.

— Tu decidiste. Tu és o líder da expedição.

Frank ergueu por fim os olhos.

— Pronto, a decisão foi minha. É o que queres ouvir? — Descaiu os ombros. — Não quero que corras perigo.

Kelly sentiu-se capaz de explodir. Infelizmente, sabia que a decisão pertencia de facto ao irmão.

— Vamos enviar as coordenadas desta posição e deixamos dois rangers convosco. Vocês serão evacuados assim que um helicóptero de abastecimento brasileiro, capaz de percorrer esta distância, seja despachado para aqui. Entretanto, nós os três e os seis rangers restantes iremos continuar.

— Quando?

— Esta tarde, depois de descansarmos um pouco. Tencionamos avançar até ao cair da noite. Agora que encontrámos o rasto do Gerald Clark, podemos deslocar-nos mais rapidamente se formos menos.

Frustrada, Kelly fechou os olhos e suspirou. O que o irmão dizia fazia sentido. Um grupo pequeno viajava mais depressa, e com a doença a espalhar-se, todos os minutos contavam. Além do mais, se encontrassem alguma coisa, podiam chamar uma equipa científica ao local para ajudar.

— Parece que não tenho alternativa...

Frank não respondeu e continuou a preparar a cama.

A voz de Olin fez-se ouvir do local onde preparava o computador e a antena.

— Podem vir!

Kelly seguiu o irmão até ao portátil.

Uma vez mais, Olin encontrava-se curvado sobre o teclado e tapado com uma lona de chuva. Os dedos moviam-se furiosos no teclado.

— Rai’s partam! A ligação está cada vez mais difícil — bufou. — A culpa é desta humidade e... ah, esperem, aqui está! — Endireitou as costas. — Estamos em linha!

O antigo agente do KGB desviou-se e concedeu o lugar a Frank e Kelly. O rosto que surgiu no ecrã encontrava-se desfocado e não aparecia todo.

— É o melhor que consigo — explicou o russo.

O rosto era do pai dos irmãos. Apesar das interferências, parecia exibir uma expressão carregada.

— Soube o que aconteceu ontem à noite — começou por dizer. — Fico feliz por ver que estão os dois bem.

Frank anuiu.

— Estamos bem, apenas cansados.

— Li o relatório do exército, mas gostava de ouvir das vossas bocas.

Frank e Kelly fizeram um resumo dos acontecimentos.

— Uma quimera? — perguntou o pai, franzindo o sobrolho. — Uma mistura de peixe e rã?

— Foi essa a conclusão do nosso biólogo — assentiu Kelly, lançando um olhar a Frank que dizia que até o brasileiro provara ser um elemento útil na expedição.

— Nesse caso, creio que isso arruma a questão. — Marshall endireitou as costas e cravou os olhos em Kelly. — Há uma hora, fui contactado pelo comando das Forças Especiais em Fort Bragg. Informaram-me do novo plano.

— Qual novo plano? — perguntou Zane nas costas dos irmãos.

Frank não lhe deu resposta.

O pai prosseguiu.

— Considerando o que está a acontecer com esta maldita doença, sou obrigado a concordar com o general Korsen. Precisamos de uma cura, e o tempo é crucial.

Kelly sentiu-se tentada a protestar contra a sua exclusão da equipa, mas ficou calada. Sabia que não teria o apoio do pai. Desde o início que ele nunca a quisera ali.

Frank aproximou-se do ecrã.

— Como estão as coisas por aí?

O pai abanou a cabeça.

— Vou deixar que a tua mãe responda. — Marshall desviou-se para dar espaço a Lauren.

A mãe de Kelly parecia exausta, com olheiras bem marcadas.

— O número de casos... — fez uma pausa e aclarou a garganta. — O número de casos triplicou nas últimas doze horas.

Kelly cerrou os maxilares. Tão rápido...

— A maioria na Florida, mas começamos a ter ocorrências na Califórnia, Georgia, Alabama e Missouri.

— E em Langley? — perguntou Kelly. — No instituto?

Houve uma troca de olhares entre Marshall e Lauren.

— Kelly — começou o pai. O tom de voz lembrava o de Frank momentos antes. — Não quero que fiques em pânico.

Kelly endireitou as costas. O coração batia já na garganta. O pai não queria que ficasse em pânico? Em que mundo é que aquelas palavras acalmavam alguém?

— O que se passa?

— A Jessie está doente...

Kelly não ouviu mais nada. A sua visão escureceu mal o pai pronunciou as palavras que receava ouvir desde que soubera do contágio. A Jessie está doente...

Marshall deve ter reparado no modo como ela se afundou na cadeira, pálida e a tremer. Frank colocou-lhe um braço à volta dos ombros, amparando-a.

— Kelly — disse o pai. — Ainda não sabemos se é a doença. Por enquanto, é apenas uma febre, e ela está a responder bem aos medicamentos. Quando a deixámos, estava bem-disposta e a comer gelado.

Lauren pousou a mão no ombro do marido. Marshall olhou para ela.

— Não deve ser nada. Pois não, Lauren?

Lauren sorriu.

— Sim, tenho a certeza de que não é nada.

Frank suspirou.

— Graças a Deus. Há mais alguém com sintomas?

— Ninguém — assegurou o pai.

Mas Kelly mantinha os olhos cravados na imagem da mãe. O sorriso parecia forçado. A mãe desviou o olhar.

Kelly fechou os olhos.

Oh, não...

Mal se apercebeu das despedidas.

— Vemo-nos em breve — concluiu o pai.

Frank apertou o ombro da irmã.

Kelly anuiu.

— Sim, em breve...

A voz de Richard Zane fez-se ouvir de novo nas costas dos dois.

— Que raio se passa aqui? Porque é que ele disse que se veriam em breve? E que história é essa de um novo plano?

— A Jessie está bem — murmurou Frank ao ouvido da irmã. — Vais vê-la quando chegares a casa. — Depois virou-se para responder à pergunta de Zane.

Kelly permaneceu congelada em frente ao ecrã, indiferente à discussão que despontava entre Frank e Zane. Reviveu o instante em que o sorriso da mãe se desvanecera, o olhar comprometido. Desde menina que a relação com a mãe sempre fora muito próxima, quase como se fossem irmãs. Conhecia os humores da mãe melhor que ninguém, melhor até que o pai. Sabia que ela lhe mentira. Conseguira perceber o que escondia por trás daquelas palavras tranquilizadoras.

A Jessie contraiu a doença. A mãe acreditava nisso. Kelly sabia-o com toda a certeza. E se a mãe acreditava...

Começou a tremer descontroladamente. Não conseguia evitá-lo. As lágrimas começaram a cair. Ao redor, ninguém se apercebeu.

Afundou o rosto nas mãos.

Oh, meu Deus... não...


11

ASSALTO AÉREO

14 de agosto, 13h24

Selva amazónica

Nate não conseguia dormir. Deitado na cama, sabia que devia descansar antes da jornada seguinte. O grupo partiria em menos de uma hora, mas havia perguntas por responder. Observou o acampamento. Metade dos companheiros dormia, enquanto a outra ainda esgrimia argumentos por causa da separação anunciada.

— Podemos simplesmente segui-los — disse Zane. — O que irão fazer? Matar-nos?

— Temos de respeitar as ordens — retorquiu Kouwe. Parecia em paz com a nova estratégia, mas Nate sabia que o professor estaria tão pouco satisfeito com a ideia de ficar para trás quanto o representante da Tellux.

Nate virou-se para o outro lado, ignorando a discussão. Compreendia a frustração dos companheiros. Se estivesse no lugar deles, teriam de o amarrar a uma árvore para o impedirem de continuar.

Naquela posição, avistou Kelly, que continuava deitada. Fora a única que não tinha contestado a decisão. A preocupação com a filha seria certamente a sua prioridade. Enquanto a observava, Kelly virou-se e os olhares dos dois cruzaram-se. Era evidente que também não conseguia dormir. Os olhos estavam inchados de tanto chorar.

Nate desistiu de forçar o sono e levantou-se. Foi ao encontro dela e ajoelhou-se ao lado da cama.

— A Jessie vai ficar bem — sussurrou-lhe.

Kelly fitou-o em silêncio.

— Ela tem a doença — retorquiu por fim, com uma voz pequenina, carregada de dor.

Nate franziu a testa.

— Isso é o medo a falar. Não há nenhuma prova de que ela...

— Eu vi nos olhos da minha mãe. Nunca foi capaz de me esconder nada. Ela sabe que a Jessie contraiu a doença. Está a tentar poupar-me.

Nate não sabia o que responder. Estendeu a mão por debaixo do mosquiteiro e tocou-lhe no ombro. Tentou confortá-la, dar-lhe ânimo, e depois falou-lhe com toda a sinceridade e convicção.

— Se for verdade, eu vou encontrar a cura. Prometo.

Aquelas palavras tiveram o condão de arrancar a Kelly um sorriso cansado. Os lábios moveram-se, mas não emitiram um som. Ainda assim, Nate compreendeu a mensagem. Obrigada. Uma lágrima correu solitária, antes de ela tapar o rosto e virar-se para o outro lado.

Nate levantou-se, deixando-a a sós com a dor. Deu meia-volta e encaminhou-se na direção onde Frank e Waxman estudavam um mapa aberto no chão. Se não conseguia dormir, mais valia ir ver o que discutiam. De caminho, lançou um último olhar a Kelly, repetindo a promessa em silêncio.

Hei de encontrar a cura.

Ao chegar perto dos homens, viu que o mapa aberto era um estudo topográfico do terreno. O capitão Waxman deslizou um dedo sobre o papel.

— O terreno eleva-se em direção a oeste, à medida que nos aproximamos da fronteira peruana. Mas é uma confusão de penhascos e desfiladeiros. Um autêntico labirinto. Não será difícil perdermo-nos.

— Temos de nos manter atentos aos sinais deixados pelo Gerald Clark — retorquiu Frank. Ergueu o rosto quando Nate se aproximou. — É melhor ir preparar as suas coisas. Estamos quase a partir. Precisamos de aproveitar a luz do dia.

Nate acenou com a cabeça.

— Estou pronto em cinco minutos.

Frank levantou-se.

— Vamos lá despachar-nos, então.

A equipa estava preparada para partir meia hora depois. Decidiram deixar o rádio de combate dos Rangers com os outros, para coordenarem a evacuação com o exército brasileiro. O grupo que ia partir em expedição levaria o equipamento de satélite para manter o contacto diário com os Estados Unidos.

Nate pendurou a caçadeira ao ombro e ajustou as alças da mochila. O plano consistia em cobrirem o máximo de terreno até ao cair da noite.

Waxman ergueu o braço e o grupo avançou liderado pelo cabo Warczak.

Ao partirem, Nate lançou um último olhar ao acampamento. Despedira-se dos amigos, Kouwe e Manny, mas atrás destes encontravam-se os dois rangers que também permaneceriam, o cabo Jorgensen e a soldado Carrera. A mulher ergueu a arma em despedida. Nate acenou-lhe de volta. Era provável que sentisse saudades da ranger, que conquistara a sua simpatia.

Originalmente, Waxman escolhera o cabo Graves para ficar no acampamento com Jorgensen, por causa da morte do irmão, mas ele contestara a decisão.

«A missão custou a vida ao meu irmão», argumentara Graves. «Com a sua permissão, meu capitão, gostava de prosseguir até ao fim. Em honra do meu irmão... de todos os meus irmãos.»

Waxman consentira que assim fosse.

Sem mais palavras, o grupo embrenhou-se na selva. O sol rompera finalmente as nuvens, o que transformara a selva numa estufa quente. Percorridos poucos metros, não havia ninguém que não estivesse a suar em bica.

Nate caminhava ao lado de Frank. A cada minuto ou dois, o homem tirava o boné e limpava a testa. Nate usava um lenço na cabeça, a fim de manter a transpiração longe dos olhos, mas isso de nada servia contra as moscas e os mosquitos, que, atraídos pelo sal e pelo odor, não lhe concediam um segundo de descanso.

Apesar do calor, da humidade e do constante zumbido nos ouvidos, o grupo manteve um bom ritmo. Nate calculava que deviam ter percorrido onze quilómetros em poucas horas. Warczak continuava a encontrar pegadas no chão. Eram quase impercetíveis depois das chuvas do dia anterior.

A caminhar uns metros à frente de Nate, o cabo Okamoto regressara ao velho hábito de assobiar.

Nate suspirou. Como se a selva não fosse suficientemente difícil...

À medida que avançavam, manteve-se atento aos perigos habituais: cobras, lianas-de-fogo, colónias de formigas — tudo o que pudesse atrasá-los. Embora não houvesse mais sinais das temíveis criaturas da noite anterior, cada riacho era atravessado com precaução. A páginas tantas, Nate avistou uma preguiça pendurada no ramo de uma árvore. Ao passar pelo animal, avançou com cuidado, olhando por cima do ombro. As preguiças pareciam lentas e dóceis, mas, quando feridas, eram conhecidas por estripar aqueles que se aproximavam demasiado. As garras funcionavam como navalhas. A criatura ignorou o grupo e continuou o seu passeio por entre as árvores.

Ao olhar para trás, Nate reparou num estranho brilho no cimo de uma árvore, a cerca de oitocentos metros.

Frank apercebeu-se de que ele parara.

— O que foi?

O brilho desapareceu e Nate abanou a cabeça. Talvez fosse apenas a luz do Sol refletida numa folha húmida.

— Nada — respondeu, fazendo sinal para Frank continuar.

Durante o resto da tarde, porém, deu consigo a olhar constantemente por cima do ombro. Não conseguia livrar-se da impressão de que estava a ser observado. A sensação tornou-se mais forte com o avançar do dia.

— Há uma coisa a incomodar-me — disse finalmente a Frank. — Algo que ignorámos depois do ataque na aldeia.

— O quê?

— Lembra-se de o professor Kouwe ter dito que estávamos a ser seguidos?

— Sim, mas ele não tinha a certeza. Além dos frutos apanhados e dos arbustos remexidos, nunca encontrou pegadas nem nada de concreto.

Nate olhou por cima do ombro.

— Vamos imaginar que o professor tinha razão. Quem poderia estar a seguir-nos? Não foram os índios da aldeia, porque esses estavam mortos muito antes de chegarmos à selva. Portanto, quem poderia ser?

Frank reparou no modo como os olhos de Nate pareciam procurar qualquer coisa.

— Está convencido de que continuamos a ser seguidos. Viu alguma coisa estranha?

— Nem por isso, apenas um reflexo numa árvore umas horas atrás. Não devia ter sido nada.

Frank anuiu.

— Mesmo assim, vou informar o capitão. Mais vale prevenir que remediar.

Frank deixou-se ficar para trás para falar com Waxman, que marchava ao lado de Olin Pasternak.

Sozinho, Nate fitou a floresta sombria. De súbito, teve sérias dúvidas de que a separação do grupo fora a melhor decisão.

17h02

Manny escovava a pelagem de Tor-tor. O gesto não era necessário, claro, dado que o jaguar conseguia tratar perfeitamente da sua higiene. Mas era algo que dava prazer a ambos. Um rugido suave escapou-se da boca do jaguar quando Manny lhe passou a escova na barriga. Manny também tinha vontade de rugir, mas não de contentamento. Detestava a ideia de ter ficado para trás.

Ouviu alguém aclarar a garganta. Levantou o rosto e deparou-se com a antropóloga asiática, Anna Fong.

— Posso experimentar? — perguntou ela, apontando para o jaguar.

Manny ergueu uma sobrancelha. Dera muitas vezes com a antropóloga a observar o felino, mas pensava que era mais por medo do que por interesse.

— Claro — assentiu, fazendo-lhe sinal para se sentar a seu lado. Anna ajoelhou-se e Manny passou-lhe a escova. — Ele gosta sobretudo quando lhe escovo a barriga e a parte de trás do pescoço.

Anna debruçou-se e estendeu o braço, atenta à reação de Tor-tor. Baixou a mão e começou a escová-lo devagar.

— É tão bonito — disse. — Em Hong Kong, vejo-os andarem para trás e para a frente nas jaulas do jardim zoológico. Criar um animal destes sozinho deve ser maravilhoso.

Manny gostava do modo como ela falava, com uma voz suave e uma dicção algo artificial, estranhamente formal.

— Maravilhoso? Este monstro tem-me dado cabo do orçamento. Destruiu-me dois sofás, e já perdi a conta aos tapetes.

Anna sorriu.

— Mesmo assim, de certeza que vale a pena.

Manny concordava, mas não gostava de o dizer em voz alta. Expressar o quanto gostava daquele monte de pelo parecia-lhe uma coisa pouco máscula.

— Vou ter de o libertar em breve.

Manny podia tentar esconder o que sentia, mas Anna apercebeu-se da pontada de mágoa no tom de voz. Ergueu o rosto e lançou-lhe um olhar solidário.

— Ainda assim, valerá a pena.

Manny sorriu.

Sem dúvida.

Anna continuou a escovar o jaguar sob o olhar atento de Manny, que lhe observava o perfil do rosto. Uma madeixa do cabelo sedoso estava presa atrás da orelha, a ponta do nariz ligeiramente enrugada enquanto se concentrava na tarefa.

— Atenção, pessoal! — disse uma voz, interrompendo aquele momento.

Ambos se viraram.

Não muito longe, o cabo Jorgensen baixou o rádio transmissor que tinha na mão e abanou a cabeça.

— Tenho boas e más notícias — anunciou. — O que querem ouvir primeiro?

A tentativa de humor do ranger foi recebida com olhares e comentários de descontentamento.

— As boas — prosseguiu o cabo — é que o exército brasileiro providenciou um helicóptero para nos vir buscar.

— E as más? — perguntou Manny.

Jorgensen franziu o sobrolho.

— Temos de esperar dois dias. Neste momento, a procura de transporte aéreo é elevada por causa da pandemia. A nossa evacuação não está no topo das prioridades.

— Dois dias?! — protestou Manny, indignado, enquanto Anna lhe devolvia a escova. — Nesse caso, mais valia termos seguido viagem com os outros.

Jorgensen encolheu os ombros.

— O capitão Waxman limitou-se a obedecer às ordens.

Richard Zane, que até ao momento fumegava de irritação no seu cantinho, perguntou:

— E o helicóptero que ficou em Wauwai? Serve para quê?

Entretida a limpar a arma, a soldado Carrera encarregou-se de responder.

— O Comanche é um helicóptero de combate. Só tem dois lugares. Além disso, os outros podem precisar dele a qualquer momento.

Manny abanou a cabeça e lançou um olhar de soslaio a Kelly. Sentada na cama, a americana exibia uma expressão vazia, derrotada. A espera seria pior para ela. Só veria a filha doente dali a dois dias.

Junto ao castanheiro, Kouwe examinava as marcas deixadas por Gerald Clark. Virou-se para o grupo, inclinando a cabeça.

— Não vos cheira a fumo?

Manny respirou fundo. Não lhe cheirava a nada.

Anna ergueu a sobrancelha.

— Cheira-me a qualquer coisa...

Kouwe contornou a árvore, com o nariz no ar. Há anos que deixara a floresta, mas os sentidos indígenas continuavam apurados.

— Além! — gritou do outro lado do castanheiro.

O grupo apressou-se ao seu encontro. Carrera montou rapidamente a M16 e correu também.

Pequenas chamas despontavam a uns trinta metros a sul do acampamento. Uma coluna de fumo ergueu-se por entre as copas das árvores.

— Vou ver o que se passa — disse Jorgensen. — Fiquem aqui com a Carrera.

— Vou consigo — disse Manny. — Se estiver por ali alguém, o Tor-tor será capaz de lhe sentir o cheiro.

Em resposta, o ranger sacou a pistola M9 do coldre e entregou-a a Manny. Juntos, embrenharam-se na selva. Manny fez sinal com a mão e o jaguar seguiu à frente dos dois.

Mais atrás, Carrera assumiu o comando do grupo.

— Mantenham-se atentos!

Manny seguiu o jaguar, caminhando a par do cabo.

— As chamas lavram rente ao chão — sussurrou. — Se calhar, alguém do outro grupo largou uma beata acesa enquanto estudavam a zona.

— O chão está demasiado húmido — retorquiu Jorgensen.

Ao aproximarem-se do local do incêndio, o ranger fez sinal para se manterem em silêncio. Abrandando o passo, ambos apuraram os sentidos, procurando qualquer movimento nas sombras, um ruído que denunciasse a presença de alguém escondido. O canto dos pássaros e os guinchos dos macacos dificultavam a tarefa.

Metros à frente, Tor-tor continuou a avançar com a curiosidade felina ao rubro. Quando se encontrava quase em cima das chamas, agachou-se e rugiu. Fitou o fogo e recuou lentamente.

Manny e Jorgensen pararam. O cabo ergueu a mão. O jaguar pressentira qualquer coisa. Fez sinal para Manny se baixar e tomar uma posição de cobertura, permitindo-lhe avançar. Manny susteve a respiração e viu o ranger deslizar furtivamente pela floresta, de arma em punho, atento a cada passo.

De olhos arregalados, Manny manteve-se quieto, à coca de movimentos ou sons. Tor-tor recuou até parar ao seu lado, com os pelos eriçados. Começou a cheirar o ar, e Manny lembrou-se da reação do felino à urina do jacaré na margem do rio.

Apanhou qualquer coisa... qualquer coisa que o assustou.

Com a adrenalina a inundar-lhe as veias, os sentidos de Manny apuraram-se. Influenciado pelo jaguar, reconhecia agora um odor subjacente ao fumo, um cheiro metálico, amargo. Aquilo não era apenas madeira queimada.

Endireitando-se, queria avisar Jorgensen, mas o soldado encontrava-se já no limite das chamas. Viu-o sobressaltar-se quando olhou para o chão, para depois contornar a área que ardia com a arma apontada em frente. Ninguém surgiu da floresta para ameaçá-lo. O ranger manteve a posição durante um par de minutos, e só depois mandou avançar.

Manny respirou fundo e foi ao encontro dele. O jaguar ficou onde estava, recusando-se a aproximar-se do fogo.

Jorgensen apontou para o chão.

— Quem fez isto já fugiu. Acho que foi para nos assustar.

Manny aproximou-se o suficiente para ver a mancha de chamas no chão. Não eram folhas e ramos que ardiam, mas uma pasta oleosa espalhada numa área limpa da floresta. Emanava um brilho forte e praticamente nenhum calor, ao mesmo tempo que libertava um fumo aromático, quase enjoativo, lembrando incenso.

Em todo o caso, não foi o fumo nem o estranho combustível que arrepiou Manny, mas o padrão desenhado por aquela pasta. Uma forma em espiral que reconheceu de imediato.

A marca dos Ban-ali.

Jorgensen tocou na substância com a biqueira da bota.

— Uma pasta inflamável — declarou, e depois usou o outro pé para atirar terra para cima das chamas. Percorreu a extensão de linhas de jogo e, com a ajuda de Manny, extinguiu-o.

Manny observou o fumo a dissipar-se no céu de final de tarde.

— É melhor regressarmos ao acampamento — disse Jorgensen.

Fizeram o caminho de volta até ao castanheiro, onde o ranger contou aos outros o que tinham encontrado.

— Vou ligar à base e comunicar o que aconteceu.

O militar dirigiu-se ao volumoso rádio transmissor de combate e pegou no auscultador. Durante uns segundos, aguardou pela ligação. Depois praguejou e arremessou o auscultador com violência.

— O que se passa? — perguntou Manny.

— Perdemos a janela de satélite por cinco minutos.

— Isso quer dizer o quê? — perguntou Anna.

Jorgensen acenou com o braço na direção do equipamento e depois para o céu.

— Os transmissores-recetores estão fora de alcance.

— Até quando?

— Até às quatro horas da manhã, pelo menos.

— E não podemos usar os rádios para contactar os outros? — sugeriu Manny.

— Já tentei. Os rádios têm um alcance de dez quilómetros. A equipa do capitão Waxman já se encontra para lá desse limite.

— Isso significa que estamos isolados? — perguntou Anna.

Jorgensen abanou a cabeça.

— Só durante umas horas.

— E depois disso? — disse Zane, que caminhava nervosamente para trás e para a frente. — Não podemos ficar aqui dois dias à espera de que nos venham buscar!

Kouwe franziu a testa.

— Sou obrigado a concordar com o senhor Zane. Os índios da aldeia encontraram o mesmo símbolo na noite em que foram atacados pelas criaturas.

— E o que sugere que façamos? — perguntou Carrera.

Os olhos do professor fixaram-se na nuvem de fumo à distância. O odor amargo continuava presente.

— Não sei. A única coisa de que tenho a certeza é que fomos marcados.

17h33

Frank nunca se sentiu tão feliz por ver o Sol descer no horizonte. A jornada terminaria em breve. Doíam-lhe todos os músculos de tantas horas de caminhada e de tão poucas horas de sono. Esforçou-se por continuar a acompanhar o ritmo do ranger que marchava à sua frente. Nate seguia imediatamente atrás.

Não muito longe, alguém gritou:

— Ei! Vejam isto!

O grupo estugou o passo. Frank subiu uma pequena elevação e deparou-se com o que motivara aquela reação. Quatrocentos metros à frente, a selva encontrava-se inundada. O chão dava lugar a um extenso lençol de água prateado, que refletia o sol a oeste. A mancha de água bloqueava-lhes o caminho, estendendo-se em todas as direções.

— É um igapó — explicou Nate. — Uma zona da selva que se mantém alagada na estação seca.

— Não aparece no mapa — disse Waxman.

Nate encolheu os ombros.

— As áreas pantanosas são comuns na bacia do Amazonas. Algumas surgem e desaparecem consoante as chuvas, mas esta dá a impressão de ser permanente, visto que continua aqui no final da época seca. Reparem como a selva se abre mais adiante. É um claro indicador de que a situação se mantém assim há anos.

Frank reparou como, de facto, o manto verde terminava abruptamente. O que restava da selva eram árvores dispersas que se erguiam da água e milhares de ilhotas e outeiros. O céu por cima do pântano era vasto e azul. Após tanto tempo enfiados na sombra, a súbita claridade fazia doer os olhos.

O grupo desceu cuidadosamente a extensa ladeira que conduzia ao pântano. O ar parecia mais fecundo e espesso. Bromeliáceas e orquídeas pontuavam as margens. Rãs e sapos coaxaram, competindo com o canto das aves, que pareciam determinadas em abafar o coro dos vizinhos anfíbios. Garças patrulhavam as águas rasas, à caça de peixe. Um punhado de patos levantou voo ao aperceber-se da chegada do grupo.

A uns quinze metros da água, o capitão Waxman ergueu a mão.

— Vejam se encontram mais marcadores nas margens, mas verifiquem se a água é segura. Não quero surpresas.

Nate avançou.

— Não deve haver problema. De acordo com o Manny, as criaturas eram em parte piranhas. Elas preferem os rios às águas paradas.

O capitão lançou-lhe um olhar dos dele.

— Que eu saiba, as piranhas também não costumam perseguir presas em terra.

Nate anuiu, sentindo-se um tanto estúpido.

Waxman virou-se para o cabo Yamir e mandou-o avançar.

— Vamos lá ver o que há por aqui.

O ranger paquistanês ergueu a M16 e disparou uma granada para o meio do pântano. A explosão levantou uma coluna de água, afugentando pássaros e macacos dos ramos das árvores. Água e pedaços de nenúfares caíram sobre a floresta.

O grupo aguardou dez minutos. Nenhum predador fugiu ou tentou atacar a partir do lago.

O capitão mandou avançar os homens para procurarem um novo marcador de Gerald Clark.

— Cuidado! Mantenham os olhos bem abertos e fiquem o mais longe possível da água!

Não tiveram de esperar muito tempo. Uma vez mais, a voz de Warczak, o batedor da unidade, fez-se ouvir:

— Encontrei-o!

O militar não se afastara mais do que dez metros para a direita.

No tronco de uma palmeira inclinada na direção da água, espetado com um espinho, encontrava-se outro pedaço do familiar tecido de poliéster. As marcas no tronco eram idênticas às anteriores. As iniciais e a seta apontavam para oeste, na direção do pântano. Apenas a data era diferente.

— Cinco de maio — disse Olin. — Dois dias antes do último marcador.

Warczak afastou-se uns passos.

— Parece que ele veio desta direção. Deve ter contornado o pântano.

— Mas a seta aponta para a água — disse Frank. Ajeitou a pala do boné para proteger os olhos da luz e estudou o pântano. Conseguia avistar à distância as terras altas que o capitão indicara no mapa topográfico, uma série de penhascos de faces vermelhas, intercalados com desfiladeiros e plataformas de selva exuberante.

O cabo Okamoto passou-lhe os binóculos.

— Experimente estes.

— Obrigado — agradeceu Frank. Nate também recebeu um par. Vistos através das lentes, os penhascos e as plataformas ganharam outra dimensão. Pequenas cataratas formavam-se nas alturas, enquanto mantos de neblina se agarravam à parte inferior das escarpas, escondendo os desfiladeiros que se estendiam desde o pântano às terras altas.

— Aquelas quedas de água devem alimentar isto tudo — disse Nate. — É por isso que a área se mantém inundada o ano inteiro.

Frank baixou os binóculos e encontrou o capitão Waxman a estudar o mapa.

Nate apontou para a palmeira e olhou em volta da massa de água.

— Aposto que este marcador indica a localização do próximo. Se o Clark contornou o pântano, deve ter demorado semanas.

Frank apercebeu-se do tom de desespero na voz de Nate. Se fossem obrigados a fazer o mesmo, iriam perder alguns dias.

Waxman ergueu os olhos da bússola.

— Se o marcador diz para irmos em frente, é o que faremos. Não demoramos mais de um dia a atravessar isto, em vez de uma semana inteira.

— Mas não temos barcos — disse Frank.

Waxman lançou-lhe um olhar condescendente.

— Temos cara de escuteiros, por acaso? Somos rangers do Exército! — O capitão fez um gesto largo com o braço. — O que não falta aqui são troncos caídos, hectares de bambu. Com a corda que temos e as lianas disponíveis, não vejo razão para não construirmos jangadas. Foi para isso que fomos treinados, doutor Frank, para improvisarmos com o que temos à mão. — Fitou a margem oposta. — Não será mais do que meia dúzia de quilómetros até ao outro lado.

Nate anuiu.

— Ótimo! São dias que não perdemos.

— Ao trabalho, então. Quero as jangadas prontas ao anoitecer. Partimos ao nascer do dia.

Waxman organizou o grupo em equipas: uma para recolher e transportar troncos para a margem, outra para abater paus de bambu, enquanto a última desfiava lianas para fazer corda.

Frank ficou surpreendido pela rapidez com que o material de construção se acumulou na margem. Não tardou para que houvesse o suficiente para construírem uma frota de jangadas.

A construção foi ainda mais rápida. Bastava alinhar dois troncos e colocar em cima um estrado de paus de bambu. Cordas e lianas amarravam os elementos no sítio.

Em menos de nada, a primeira jangada foi empurrada para a água, onde ficou a boiar ao som de um coro de festejos dos rangers.

Nate sorriu em aprovação, e continuou a construir um par de remos com pau de bambu e folha de palmeira.

A segunda jangada ficou igualmente concluída. O processo não demorara mais de duas horas.

Frank fitou as embarcações. Por aquela altura, o Sol descia no horizonte, pintando o céu a oeste com tons amarelos, vermelhos e roxos. O acampamento começara a ser montado. A fogueira estava acesa, as camas quase todas penduradas e a comida ao lume. Virou-se para se juntar aos companheiros, e foi quando notou uma mancha escura no céu. Franziu a testa. Não conseguia perceber o que era.

O cabo Okamoto passou por ele com uma pilha de lenha nos braços.

— Empresta-me outra vez os binóculos? — perguntou Frank.

— Claro. Pode tirá-los do meu colete.

O soldado afastou os braços. Frank agradeceu-lhe e sacou os binóculos. Erguendo-os, demorou uns segundos a localizar a mancha no céu. Erguia-se das terras altas. Será fumo? Um sinal de civilização?

— O que está a ver? — perguntou Nate.

— Não tenho a certeza — Frank apontou para o céu. — Parece fumo. Pode ser outro acampamento ou uma aldeia.

Nate pegou nos binóculos e espreitou. Franziu a testa.

— Seja o que for, está a deslocar-se nesta direção.

Mesmo à vista desarmada, Frank percebeu que Nate estava certo. A coluna de fumo parecia arquear-se na direção deles. Ergueu a mão.

— Não faz sentido. O vento sopra na direção contrária.

— Eu sei. Aquilo não é fumo. É qualquer coisa a voar.

— É melhor avisar o capitão.

No minuto seguinte, toda a gente tinha binóculos à frente dos olhos. A mancha negra, mais forma que substância, com as bordas a ondularem, continuava a aproximar-se.

— Que raio é aquilo? — murmurou alguém.

Em menos de nada, a nuvem negra estava já sobre o acampamento, bloqueando o sol acima das árvores. A equipa foi submersa por um zumbido ensurdecedor. Após dias na selva, tratava-se de um som familiar, porém amplificado mil vezes, a ponto de fazer vibrar os pelos nos braços de Frank.

— Gafanhotos — disse Nate. — Milhões deles.

O enxame sobrevoou o acampamento, quase a tocar a folhagem das árvores. A equipa baixou-se instintivamente, mas os insetos seguiram o seu caminho, em direção a leste.

Frank baixou os binóculos e ficou a vê-los afastarem-se.

— O que estão a fazer? A migrar?

Nate abanou a cabeça.

— Não gosto disto. Nunca os vi comportarem-se desta maneira.

O capitão Waxman parecia pouco impressionado com o espetáculo aéreo.

— Bom, já se foram embora, por isso...

Nate anuiu, mas lançou um olhar para leste, intrigado.

— Para onde vão?

Frank fitou Nate. Sabia o que havia no caminho dos insetos: os companheiros que ficaram para trás. Subitamente preocupado, engoliu em seco.

Kelly...

19h28

O Sol desaparecia no horizonte quando Kelly se apercebeu do estranho zumbido. Contornou o castanheiro, com os olhos semicerrados, tentando descortinar a origem do som.

Kouwe foi ao seu encontro no outro lado da árvore.

— Também está a ouvir?

Não muito longe, os dois rangers levantaram-se com as armas em punho. Ao redor da fogueira, os outros companheiros avivavam as chamas com ramos secos e paus de bambu. Sabendo da possibilidade de haver alguém a rondar o acampamento, queriam tirar o maior proveito do fogo e iluminar a maior área possível. Ao lado da fogueira havia lenha empilhada para a noite inteira.

— Este zumbido está cada vez mais forte — murmurou Kelly. — O que poderá ser?

Kouwe inclinou a cabeça.

— Não tenho a certeza...

Não tardou para que os outros também se apercebessem do zumbido, que cresceu de intensidade, fazendo com que todos olhassem para o céu.

Kelly apontou na direção das luzes do ocaso.

— Vejam!

Recortada pelo sol poente, uma mancha negra preencheu o céu. Avançava para o acampamento.

— Um enxame de gafanhotos — disse Kouwe, apreensivo. — Costumam fazer isto durante a época de acasalamento, mas não estamos nessa altura do ano. Além disso, nunca vi um enxame tão grande.

— É caso para nos preocuparmos? — perguntou Jorgensen.

— Nem por isso. Os gafanhotos são um problema sobretudo para os agricultores. Um enxame consegue devorar uma plantação inteira numa questão de minutos.

— E representam perigo para as pessoas? — perguntou Zane.

O professor fitou o enxame.

— Não. O pânico pode fazer com que mordam. A dentada não é nada de especial, mas...

— Mas o quê? — perguntou Kelly.

— Não gosto da coincidência de terem surgido depois do aparecimento da marca dos Ban-ali.

— Uma coisa não tem que ver com a outra — retorquiu Anna, ao lado de Richard.

Manny aproximou-se com Tor-tor. O jaguar circundava as pernas do dono, visivelmente intimidado e nervoso.

— Professor, não está a pensar que os gafanhotos podem ser como as criaturas? Que podemos estar prestes a ser atacados?

Kouwe fitou o biólogo.

— As criaturas surgiram após a marca na aldeia, e agora aparecem os gafanhotos depois de encontrarmos outra marca na floresta. — Encaminhou-se na direção dos companheiros. — São circunstâncias que não podemos ignorar.

Kelly gelou com a certeza de que o professor estava certo.

— O que fazemos? — perguntou Jorgensen, ao lado de Carrera. Os militares estavam prontos para o que fosse preciso. A dianteira do enxame desapareceu no lusco-fusco, uma sombra fundindo-se com a outra.

Kouwe olhou para o céu, procurando concentrar-se.

— Precisamos de encontrar abrigo. Estão quase em cima de nós. Corram para as camas, fechem os mosquiteiros e mantenham-se afastados do tecido.

Zane abriu a boca para protestar.

— Mas...

— Não perca tempo! — berrou o professor. Enfiou as mãos na mochila, à procura de qualquer coisa.

— Faça o que ele disse! — ordenou Jorgensen. O ranger colocou a arma ao ombro. A M16 não lhe serviria de nada.

Kelly estava já em movimento. Deslizou por baixo do mosquiteiro, agradecida por terem montado o acampamento cedo. Fechou a abertura da rede e colocou uma pedra em cima do excesso de tecido. Sem mais o que fazer, enfiou-se na cama e encolheu os braços e as pernas.

Olhou em volta. Todos faziam o mesmo, convertendo as camas em ilhas isoladas de tecido diáfano. Havia um único companheiro que permanecia exposto.

— Professor! — gritou Jorgensen da sua cama.

— Fique onde está! — ordenou Kouwe, ainda a remexer na mochila.

— O que está a fazer? — perguntou o ranger, sem saber se devia obedecer.

— A preparar-me para combater fogo com fogo!

Subitamente, começou a chover do céu limpo de nuvens. As copas das árvores sacudiram-se com milhares de impactos. O som podia ser familiar, mas não eram gotas de água que caíam. Enormes insetos negros rompiam o arvoredo.

O enxame alcançara-os.

Kelly viu um dos insetos aterrar no mosquiteiro. Tinha uns sete centímetros de comprimento, com uma carapaça preta que reluzia como petróleo à luz da fogueira. Agitou freneticamente as asas enquanto tentava manter-se agarrado ao tecido. Kelly encolheu-se o mais que podia. Tinha visto muitos gafanhotos e cigarras, mas nada parecido com o monstruoso inseto. A cabeça não tinha olhos, apenas mandíbulas que tentavam morder o ar.

Apesar de cego, não era desprovido de sentidos. Longas antenas perfuraram a rede, sondando o ar à procura de sangue. À medida que as antenas giravam, o inseto parecia não compreender porque não conseguia avançar mais. Outros tantos caíram sobre o tecido, agarrando-se com as longas pernas articuladas.

Um grito de dor desviou a atenção de Kelly na direção de Kouwe. O professor encontrava-se a uns cinco metros, agachado junto à fogueira. Sacudiu um gafanhoto do braço.

— Professor! — gritou Jorgensen, pronto a correr em seu auxílio.

— Fique onde está! — Kouwe debatia-se para desatar o nó de uma pequena bolsa de pele. Kelly reparou no sangue que corria do braço onde o inseto mordera. Percebeu que a ferida era profunda e rezou para que os gafanhotos não fossem venenosos, como as criaturas da noite anterior.

A transpirar, Kouwe aproximou-se da fogueira. As chamas e o calor pareciam manter o grosso do enxame à distância.

Os insetos zumbiam furiosamente pela floresta. A cada segundo, mais e mais preenchiam tudo quanto era sítio.

— Estão a roer a rede! — gritou Zane, em pânico.

Kelly desviou a atenção para os insetos no seu mosquiteiro. O primeiro que pousara recolhera as antenas e estava a morder a rede com as mandíbulas afiadas. Antes que rompesse o tecido, Kelly sacudiu-o com uma pancada. Não o matou, mas poupou a rede de mais estragos. Virou-se para sacudir os restantes.

— Afastem-nos das redes! — gritou para os outros. — Não os deixem furar o tecido!

Mais alguém gritou, desta vez mais perto.

— Merda!

Era Manny. Ouviu-se o som de uma chapada e outros dois ou três palavrões.

A localização da cama do brasileiro, nas costas de Kelly, não permitia que ela o visse bem.

— Tudo bem? — gritou.

— Um deles entrou por debaixo da rede! — respondeu Manny. — Tenham cuidado! A mordidela dói que se farta. A saliva deve libertar um ácido digestivo.

De novo, Kelly rezou para que os insetos não fossem venenosos. Virou-se para olhar na direção de Manny e encontrou o jaguar a circundar a cama do dono. Estava coberto de insetos, dando a impressão de que as manchas no pelo se mexiam. O felino não parecia muito incomodado. A pelagem grossa oferecia proteção suficiente. Um gafanhoto pousou-lhe no focinho, mas uma patada resolveu o assunto.

O zumbido intenso das asas dos insetos não parava de crescer, a ponto de Kelly sentir uma vibração nos dentes. O enxame parecia engrossar a cada segundo, dificultando cada vez mais a visão do que se passava no lado de fora do mosquiteiro. Então, a sua mente viajou ao encontro da imagem de Jessie numa cama de hospital, os braços pequeninos abertos enquanto chamava o seu nome. Recusando-se a desistir, combateu os insetos com redobrado vigor.

Não vou morrer aqui... vou voltar a ver a minha filha!

Sentiu uma picada forte na coxa. O gafanhoto que pousara na sua perna parecia um tumor negro. Esmagou-o com a mão aberta, horrorizada. Outro pousou-lhe no braço. Kelly sacudiu-o. Um terceiro pousou-lhe no cabelo.

Enquanto lutava, um grito cresceu-lhe dentro do peito como uma tempestade. Os insetos estavam dentro do mosquiteiro. Ouviram-se mais gritos pelo acampamento inteiro. Estavam todos a ser atacados. Tinham perdido a batalha.

— Jessie... — murmurou, sacudindo um gafanhoto do pescoço. — Perdoa-me...

Sentiu novas picadas na barriga das pernas e nos tornozelos. Pontapeou o ar em vão, com lágrimas de dor a correrem pelo rosto.

De repente, começou a ter dificuldade em respirar. Tossiu e engasgou-se, com os olhos a arderem. Um odor pungente encheu-lhe as narinas, doce, resinoso, como se alguém queimasse pinho verde numa lareira.

O que está a acontecer?

Com os olhos cobertos de lágrimas, viu o enxame dispersar, como que empurrado por uma rajada de vento. Diretamente em frente, as chamas da fogueira cresceram em intensidade, tornando-se mais brilhantes. No lado de lá das chamas, o professor Kouwe encontrava-se de pé a abanar um ramo de palmeira sobre o fogo, que agora expelia uma densa coluna de fumo. Tinha o corpo todo mordido.

— Pó de tok-tok! — gritou o professor. — Um remédio para as dores de cabeça, mas que é também um poderoso repelente de insetos quando o queimamos!

Os gafanhotos agarrados ao mosquiteiro de Kelly levantaram voo, afugentados pelo odor. Lembrou-se de Nate lhe ter contado que os índios cravavam tochas de bambu nas hortas, onde queimavam um pó que lhes permitia protegerem as colheitas das pragas de insetos. Silenciosamente, Kelly agradeceu aos índios e à floresta pela sua engenhosidade.

Com o enxame reduzido a umas centenas de insetos dispersos, Kouwe chamou os companheiros.

— Venham! Rápido!

Kelly levantou-se da cama e, após um segundo de hesitação, esgueirou-se por baixo do mosquiteiro esfarrapado e correu agachada na direção da fogueira. Os restantes companheiros fizeram o mesmo.

O fumo era sufocante, enjoativo, mas mantinha os gafanhotos à distância. O enxame não desaparecera totalmente. Zumbia lá no alto, uma nuvem negra de onde de vez em quando insetos solitários mergulhavam diretos a eles, apenas para regressarem às alturas, vencidos pelo fumo libertado pela fogueira.

— Como sabia que isto ia resultar? — perguntou Jorgensen.

— Não sabia. Pelo menos com certeza absoluta. — Kouwe suspirou e continuou a abanar o ramo de palmeira enquanto se explicava. — A marca dos Ban-ali... o fumo e o cheiro daquela substância inflamável. Pensei que devia ser uma espécie de sinal.

— Um sinal de fumo? — perguntou Zane.

— Um sinal químico, diria eu. Para atrair os gafanhotos.

— Como uma feromona, ou algo semelhante — disse Manny.

— Possivelmente. E quando aqui chegaram, os malditos bichos fizeram aquilo que lhes competia.

— Está a dizer que fomos marcados para morrer? — perguntou Anna. — Que alguém enviou os gafanhotos ao nosso encontro?

Kouwe anuiu.

— E o mesmo se pode dizer das criaturas de ontem. Alguma coisa deve tê-las atraído para a aldeia, quem sabe se outra substância ou qualquer coisa na água que as levou nessa direção. — O professor abanou a cabeça. — Não posso provar nada disto, claro, mas acho que esta foi a segunda vez que os Ban-ali tentaram virar a selva contra nós.

— E o que fazemos agora? — perguntou Zane. — Este pó dura até de manhã?

Kouwe lançou um olhar ao enxame.

— Não.

20h05

Nate estava cansado de discutir. Passara quinze minutos a debater o mesmo assunto com Frank e o capitão Waxman.

— Temos de voltar atrás para ver se estão bem — insistiu. — Ao menos enviar alguém. São só umas horas para ir e vir.

Waxman suspirou.

— Eram gafanhotos, doutor Rand. Passaram por nós sem nenhum problema. O que o leva a pensar que os outros estão em perigo?

Nate franziu a testa.

— Chame-lhe intuição, se quiser, mas vivi anos nestas selvas e sei que havia qualquer coisa errada naquele enxame.

Frank começara por estar do lado de Nate, mas deixara-se levar pela lógica do capitão, que dizia para esperarem por notícias.

— Acho que devemos optar pelo plano do capitão. Assim que o dia nascer, com os satélites em posição, podemos contactar os outros para saber se estão bem.

— Além do mais — acrescentou Waxman —, estou reduzido a seis homens. A não ser que haja provas concretas, não vou arriscar perder mais dois numa missão sem sentido.

— Nesse caso, vou eu — disse Nate, já frustrado.

— Não o permito — retorquiu o capitão. — Está a meter coisas na cabeça, doutor Rand. Quando amanhecer, vai ver que eles estão bem.

Nate não estava disposto a desistir e procurou uma forma de vencer a obstinação do ranger.

— Ao menos deixe-me levar um rádio e percorrer meia dúzia de quilómetros. Só para ver se consigo estabelecer contacto. Qual é o alcance destes equipamentos?

— Nove ou dez quilómetros.

— Percorremos cerca de vinte. Significa que só preciso de cumprir metade dessa distância. Estarei de volta antes da meia-noite.

Waxman franziu a testa.

— Está a insistir numa coisa que não faz sentido.

Frank deu um passo na direção de Nate.

— Bom, não se pode dizer que o plano seja disparatado, capitão. É até razoável.

Nate leu a preocupação nos olhos de Frank. No fim de contas, a irmã estava no outro acampamento. Até ao momento, Frank mostrara-se dividido entre o receio pela segurança da irmã e a abordagem lógica do capitão. Enquanto líder da expedição, tentava fazer o que lhe competia, que era encontrar a melhor solução para o grupo, independentemente das preocupações pessoais.

Nate voltou à carga.

— Acredito que estão bem, mas não custa termos a certeza. Sobretudo com o que se passou nos últimos dias.

Frank acenava agora com a cabeça.

— Deixe-me levar o rádio — insistiu Nate.

Farto da conversa, Waxman suspirou.

— Tudo bem, mas não vai sozinho.

Nate teve vontade de gritar.

Finalmente...

— Um dos meus homens vai consigo. Mas só um, entende?

— Ótimo... ótimo... — disse Frank, aliviado. Lançou um olhar agradecido a Nate.

Waxman virou-se para os homens.

— Cabo Warczak! Um passo em frente!

20h23

Manny permaneceu junto à fogueira, com os olhos a arderem. Por enquanto, o fumo mantinha o enxame à distância. Os insetos rodopiavam em redor num vórtice negro, um casulo que os mantinha aprisionados no centro. O biólogo fitou as chamas. Quanto tempo durará o pó do professor? A coluna de fumo parecia menos densa.

— Aqui tem o seu — disse Kelly, nas suas costas.

A americana entregou-lhe um pau de bambu de sessenta centímetros da pilha de lenha junto à fogueira. Depois regressou ao trabalho, tornando a ajoelhar-se ao lado de Kouwe. O professor índio preparava o último pau de bambu com uma porção de pó tok-tok na ponta.

O nervosismo começava a tomar conta de Manny. O plano do professor assentava em demasiadas suposições.

Preparado o último pau, Kelly e Kouwe levantaram-se. Manny olhou em volta. Os companheiros tinham as mochilas às costas e seguravam paus idênticos.

— Prontos? — perguntou Jorgensen.

Ninguém respondeu. A expressão no rosto de todos era a mesma: uma mistura de pânico e medo.

Jorgensen acenou com a cabeça.

— Acendam as tochas.

Cada companheiro estendeu o braço e acendeu uma tocha na fogueira. O pó incendiou-se juntamente com a madeira seca. Ao recolherem as tochas, fiadas individuais de fumo denso ergueram-se na direção do céu.

— Mantenham-nas junto ao corpo, mas não demasiado — instruiu Kouwe, exemplificando com a própria tocha. — E temos de avançar depressa.

Manny engoliu em seco e fitou a parede movediça de gafanhotos. Fora mordido apenas duas vezes, mas as feridas ainda lhe doíam e havia milhões de insetos naquele enxame. Sempre por perto, Tor-tor roçou-lhe o focinho nas pernas, pressentindo o perigo no ar.

— Mantenham-se juntos — recomendou Kouwe, e deu início à marcha que os afastaria da segurança da fogueira em direção ao enxame.

O plano assentava em usarem as tochas para furar o enxame. Tentariam fugir daquele local debaixo do manto protetor do fumo. «Os gafanhotos foram atraídos para aqui pelo odor libertado da marca dos Ban-ali», explicara o professor. «Se nos afastarmos o suficiente, talvez nos deixem em paz.»

Não havia dúvida de que o plano era arriscado, mas não tinham escolha. Não havia pó suficiente para alimentar a fogueira mais de duas horas, e os gafanhotos não pareciam dispostos a sair dali tão depressa. Como tal, cabia-lhes mudarem de sítio.

— Anda, Tor-tor — disse Manny, seguindo atrás de Jorgensen.

O grupo avançou compacto, as tochas erguidas. O zumbido dos insetos era ensurdecedor aos ouvidos de Manny. Enquanto caminhava, rezou para que o professor estivesse certo.

Ninguém falava. Dir-se-ia que nem respiravam. Mantiveram a passada firme, rumo a oeste, a direção que a outra equipa havia tomado. Era a única esperança de saírem dali inteiros. Manny olhou por cima do ombro. A chama reconfortante da fogueira era agora um pontinho de luz coberto pela massa de insetos. Debaixo das solas das botas, sentiu o esborrachar das carapaças dos gafanhotos pousados no chão.

Em silêncio, continuaram a avançar pela floresta. Decorridos minutos de caminhada, porém, parecia não haver fim à vista para o enxame. Os gafanhotos estavam por toda a parte: no ar, nos troncos das árvores, nas ervas. Apenas o fumo das tochas os mantinha à distância.

Manny sentiu qualquer coisa vibrar no tecido das calças. Olhou para baixo e encontrou um gafanhoto agarrado à perna. Usou a mão livre para o enxotar. Os insetos tornavam-se mais ousados.

— Por esta altura devíamos ter ultrapassado o enxame — murmurou Kouwe.

— Acho que estão a seguir-nos — disse Anna.

O professor abrandou e franziu a testa.

— Parece que tem razão.

— O que vamos fazer? — perguntou Zane. — Estas tochas não durarão para sempre. Talvez devêssemos correr... podíamos...

— Cale-se, homem! Deixe-me pensar! — avisou Kouwe. Fitando o enxame, murmurou: — Porque é que nos seguem? Porque não ficam no local para onde foram convocados?

A voz de Carrera fez-se ouvir na traseira do grupo, ao mesmo tempo que erguia a tocha no ar.

— Talvez sejam como as criaturas. Uma vez atraídos, fixam-se no nosso cheiro. Vão continuar a seguir-nos até nos destruírem, ou vice-versa.

Manny teve uma ideia.

— E se fizéssemos o mesmo que os Ban-ali?

— Como assim? — perguntou Kelly.

— Damos-lhe algo mais interessante que o nosso sangue para seguirem.

— O quê?

— A mesma coisa que os trouxe. — Manny não cabia em si de excitação. Visualizou o símbolo ardente dos jaguares de sangue. — O cabo Jorgensen e eu apagámos as chamas que produziam a feromona, ou o que quer que fosse, mas o combustível continua lá, no mesmo sítio! — Apontou com o braço.

Jorgensen acenou com a cabeça.

— Ele tem razão. Se conseguirmos acender aquilo outra vez...

O rosto do professor iluminou-se.

— O fumo fresco irá desviar o enxame de volta para o local.

— Exatamente — confirmou Manny.

Kouwe anuiu.

— Parece-me um bom plano!

— Então, vamos a isso — disse Zane. — Estamos à espera de quê?

Jorgensen avançou um passo.

— O nosso tempo é limitado, as tochas não vão durar muito mais. Não há razão para nos arriscarmos todos.

— O que está a sugerir? — perguntou Manny.

— Vocês continuam. Eu volto atrás sozinho.

— Vou consigo — disse Manny.

— Esqueça. Não arrisco a vida de um civil. Além disso, despacho-me mais depressa sozinho.

— Mas...

— Estamos a perder tempo! — berrou o cabo. Virou-se para Carrera. — Leva-os daqui. Encontro-vos mais à frente, depois de acender aquela maldita coisa.

— Certo!

Com um último aceno de cabeça, Jorgensen virou costas e pôs-se a caminho. Não demorou para que a sua figura desaparecesse na massa de insetos. Apenas a luz da tocha permaneceu visível por instantes, assinalando o seu progresso, mas também ela se desvaneceu no meio dos corpos esvoaçantes.

— Vamos! — ordenou Carrera.

O grupo virou-se e prosseguiu pelo trilho. Manny rezou para que o cabo fosse bem-sucedido. Lançou um derradeiro olhar por cima do ombro e seguiu atrás dos outros.

Jorgensen mergulhou no mar de insetos. Protegido por uma única tocha, os gafanhotos aproximavam-se mais que nunca. Foi mordido umas quantas vezes, mas ignorou a dor e prosseguiu. Um ranger era submetido a um programa de treino vigoroso que incluía todo o tipo de cenários: montanhas, selvas, pântanos, neve, desertos. Mas ninguém o preparara para lidar com uma nuvem de insetos carnívoros.

Continuou a correr, sacudindo os gafanhotos que pontualmente mergulhavam para o atacar. Com a arma ao ombro, ajustou as correias da mochila, subindo-a o mais possível nas costas, tanto para correr mais depressa como para se proteger melhor. Era natural que sentisse pânico, porém, fora tomado por um estranho fervor. Ali estava a razão de se ter alistado nos Rangers, para testar as suas capacidades e viver momentos de ação desenfreada. Quantos rapazes dos confins do Minnesota tinham a oportunidade de fazer aquilo?

— Para o raio que os parta! — berrou para os insetos e, erguendo bem a tocha, acelerou o passo.

Guiando-se pela luz da fogueira abandonada, navegou como podia pelo labirinto negro de gafanhotos. O fumo da tocha envolvia-o com o seu poder repelente. Contornou o castanheiro gigante e seguiu na direção do local onde encontrara a assinatura ardente dos Ban-ali.

Quase às cegas, passou a correr pelo sítio antes de se aperceber do erro e ver-se obrigado a voltar para trás. Caiu de joelhos junto à marca.

— Graças a Deus!

Cravou a tocha no chão e começou a limpar a terra e a afastar os insetos que cobriam os resquícios da substância resinosa. O local encontrava-se apinhado de gafanhotos, e foi mordido várias vezes nas mãos. Os vapores residuais da substância enchiam-lhe as narinas com um odor forte e amargo. O professor estava certo. Aquilo atraía realmente os malditos bichos.

Trabalhando depressa, continuou a revelar o desenho original formado pela pasta inflamável. Não sabia que quantidade precisava de incendiar para focar a atenção do enxame naquele sítio concreto, mas não estava disposto a correr riscos. Não queria ter de regressar uma segunda vez. Com os joelhos no chão e as mãos pegajosas da resina preta, continuou a limpar a área até ter pelo menos metade do desenho exposto.

Satisfeito, endireitou-se, sacou um isqueiro do bolso e acendeu-o. Aproximou a chama do chão.

— Vá lá... arde, maldita.

O desejo foi concedido. A resina incendiou-se e as chamas propagaram-se rapidamente ao longo das linhas sinuosas do símbolo. A combustão foi tão forte e repentina que o apanhou desprevenido, incendiando-lhe os dedos sujos.

Largou o isqueiro e sacudiu a mão.

— Merda! Merda! Merda!

Rolou para o lado e enfiou os dedos na terra para apagar as chamas, porém, ao fazê-lo, derrubou a tocha com o cotovelo, atirando cinzas incandescentes pelo ar.

Praguejou e tornou a endireitá-la.

Mas era tarde demais.

O pó que restava na ponta do bambu encontrava-se agora espalhado pelo chão. A tocha continuava acesa, mas não deitava fumo.

Nas suas costas, a marca dos Ban-ali ardia com fulgor, convocando o enxame para a refeição.

Jorgensen levantou-se rapidamente.

— Oh, não...

Kelly ouviu o primeiro grito, um som pavoroso, que deteve toda a gente no seu lugar.

Carrera virou-se para trás.

— Jorgensen...

Kelly foi ao encontro da ranger.

— Aconteceu alguma coisa.

— Não podemos voltar — avisou Zane, afastando-se do grupo.

Um segundo grito ecoou das profundezas da floresta, arrepiante, distorcido.

Kelly viu o enxame revolver-se em redor, para depois convergir em direção ao local do acampamento.

— Estão a ir-se embora!

— Ele deve ter acendido o símbolo — murmurou Kouwe.

Por aquela altura, os gritos eram constantes, prolongados, animalescos. Nenhum ser humano conseguia gritar daquela maneira.

— Temos de ajudá-lo! — disse Manny.

Carrera acendeu uma lanterna com a mão livre e apontou-a na direção do acampamento. A cinquenta metros, o enxame era tão compacto que tapava completamente as árvores.

— Não podemos — murmurou, erguendo a tocha que começava a morrer. — Não sabemos quanto tempo nos proporcionou o Jorgensen.

Manny virou-se para ela.

— Devíamos ao menos tentar, não? Ele pode estar vivo.

Como que de propósito, os gritos pararam.

Carrera abanou a cabeça.

— Vejam! — exclamou Anna. Apontou com o braço estendido.

À esquerda, uma figura emergiu do enxame.

Carrera desviou a lanterna.

— Jorgensen!

Kelly abafou um grito com as mãos.

Coberto da cabeça aos pés de gafanhotos, a figura do militar era impossível de identificar. Avançou com os braços estendidos, às cegas. As pernas tremeram-lhe e, ao tropeçar numa raiz, caiu de joelhos.

Não se ouviu a sua voz uma única vez. Apenas os braços permaneciam estendidos, procurando ajuda.

Manny deu um passo em frente, mas Carrera agarrou-o pelo braço.

O enxame abateu-se sobre o militar ajoelhado, engolindo-o por inteiro.

— É demasiado tarde para o ajudar. E estamos a ficar sem tempo. — Como que a corroborar a frase da ranger, a chama da tocha tremelicou uma última vez e apagou-se. — Temos de sair daqui enquanto podemos.

— Mas... — começou Manny.

A militar lançou-lhe um olhar ríspido. As palavras que lhe saíram da boca foram ainda mais duras.

— Não vou deixar que o sacrifício do meu camarada seja em vão! Mexam-se!

À medida que se afastavam, Kelly olhou por cima do ombro. O enxame permaneceu no mesmo sítio, uma mancha revoluteante, indistinta. Escondido no meio, porém, encontrava-se o homem que dera a vida para salvar o grupo. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, e as pernas pesaram-lhe de exaustão e desespero, assim como o coração.

Apesar da morte do militar, um pensamento e um rosto prevaleceram na sua mente: Jessie. A filha precisava dela. Imagens da criança a arder em febre numa cama de hospital desfilaram-lhe à frente dos olhos.

A mamã está a caminho, prometeu a si mesma.

No seu íntimo, não evitou interrogar-se se seria capaz de manter a promessa. Cada passo na floresta era acompanhado da morte de alguém. O cabo Graves, DeMartini, Conger, Jones... e agora Jorgensen.

Abanou a cabeça. Não podia perder a esperança. Enquanto respirasse, enquanto conseguisse pôr um pé à frente do outro, encontraria uma maneira de regressar a casa.

Ao longo da hora seguinte, o grupo seguiu o trilho que a outra metade da equipa tomara na tarde anterior. Uma a uma, as tochas extinguiram-se e foram substituídas por lanternas. O enxame parecia ter ficado para trás, e embora sentissem que talvez estivessem já a salvo dos gafanhotos, ninguém foi capaz de o dizer em voz alta.

Manny aproximou-se da ranger.

— E se não encontrarmos os outros? O Jorgensen tinha o equipamento de rádio. Era a nossa única forma de contacto.

Kelly não considerara aquele fator. Sem rádio, estavam completamente isolados do mundo.

— Vamos encontrá-los — respondeu Carrera, convicta.

Concentrados exclusivamente nesse objetivo, continuaram a avançar. À medida que as horas passavam, a tensão diluiu-se numa amálgama de exaustão e medo que parecia não ter fim. A selva assinalava a passagem do grupo com todo o tipo de sons estranhos. Os ouvidos mantinham-se atentos ao menor indício do zumbido dos gafanhotos.

Foi nesse estado de espírito que todos se sobressaltaram quando o rádio pendurado no colete de Carrera guinchou com um ruído de estática, acompanhado de algumas palavras abafadas:

— Aqui... se conseguirem ouvir... alcance...

Os rostos viraram-se na direção da ranger. Carrera puxou o microfone do capacete e aproximou-o dos lábios.

— Aqui Carrera. Conseguem ouvir-me?

Seguiu-se uma longa pausa. Depois:

— Afirmativo, Carrera. Aqui Warczak. Onde estão?

Num tom de voz mecânico e profissional, a ranger relatou rapidamente o que acontecera. Ainda assim, Kelly reparou no modo como os dedos dela tremiam ao segurar no microfone.

— Estamos a seguir o vosso rasto — concluiu a militar. — Devemos alcançar-vos daqui a duas horas.

— Afirmativo — respondeu Warczak. — O doutor Rand e eu vamos ao vosso encontro. Terminado.

Carrera cortou a ligação. Fechou os olhos e suspirou.

— Vamos ficar bem — murmurou.

Indiferente às manifestações de alívio dos outros, Kelly fitou a escuridão da selva.

Enquanto ali estivessem, aquilo era tudo menos verdade.


QUARTO ATO

JAGUARES DE SANGUE

CAVALINHA

Família: Equisetaceae

Género: Equisetum

Espécie: Arvense

Nome comum: Cavalinha, Rabo-de-Cavalo

Nomes étnicos: At Quyroughi, Atkyrugu, Chieh Hsu Ts’Ao, Kilkah Asb, Prele, Sugina, Thanab Al Khail, Wen Ching

Propriedades: Adstringente, anti-inflamatório, diurético, tónico, anti-hemorrágico


12

TRAVESSIA DO LAGO

15 de agosto, 08h11

Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren inseriu o cartão na fechadura eletrónica e entrou no gabinete. Era a primeira vez que punha ali os pés em dias. Entre as deslocações à enfermaria para ver a neta e as sucessivas reuniões com colegas, não lhe sobrava um minuto. Só tivera aquele momento livre porque Jessie parecia estar melhor. A temperatura permanecia normal e estava mais bem-disposta.

Otimista (à partida), Lauren começava a acreditar que o diagnóstico inicial podia estar errado. Talvez a neta não tivesse contraído a doença. Sentia-se feliz por ter ficado calada em relação aos seus piores receios. Evitara lançar uma carga de preocupações desnecessárias em cima de Marshall e Kelly. Se calhar, atribuíra demasiada importância ao modelo estatístico do doutor Alvisio, mas não podia culpar o epidemiologista. Ele avisara-a de que os resultados não eram conclusivos. Havia muita informação por recolher e analisar.

Esse era o estado de coisas em todos os níveis da investigação. A cada dia, milhares de teorias eram lançadas para cima da mesa: agentes etiológicos, protocolos terapêuticos, parâmetros de diagnóstico, regras de quarentena. O instituto tornara-se o cérebro nacional do combate à doença. Cabia a Lauren e aos colegas navegar pelo labirinto de conjeturas científicas e intrincados modelos epidemiológicos. Separar o trigo do joio, a bem dizer. Com a torrente de dados que chegava de todos os cantos do planeta, tratava-se de um trabalho hercúleo. Em todo o caso, estavam ali reunidos os melhores cérebros para atacar o problema.

Deixou-se cair na cadeira e ligou o computador, que logo emitiu o aviso sonoro de nova mensagem de correio eletrónico. Colocou os óculos de leitura e, suspirando, inclinou-se para a frente. Trezentas e catorze novas mensagens. E aquela contagem dizia respeito apenas à caixa pessoal. Percorreu a lista na diagonal, procurando nos remetentes e nos assuntos alguma palavra que indiciasse algo importante.

Um nome chamou-lhe a atenção. Parecia-lhe vagamente familiar, mas não se lembrava porquê. Levou o ponteiro do rato ao nome em questão: «Large Scale Biological Labs». Franziu o nariz, e então lembrou-se. Recebera um aviso de contacto daquele remetente na noite em que Jessie adoecera. Perto da meia-noite, se a memória não lhe falhava. Com a situação da neta, nunca mais se lembrara de dar seguimento ao assunto.

Duvidava que fosse alguma coisa importante, mas abriu o e-mail na mesma, ligeiramente intrigada. Começou por ler o nome do autor da mensagem. Doutor Xavier Reynolds. Sorriu. Reconhecera de imediato o nome. Tratava-se de um antigo aluno. Sabia que se encontrava a trabalhar na Califórnia, provavelmente naquele laboratório. Fora um dos seus melhores alunos, e Lauren tentara recrutá-lo para trabalhar no instituto, convite que ele recusara. A noiva aceitara um cargo de professora assistente na Universidade de Berkeley e, naturalmente, ele não se quisera separar dela.

Começou a ler a mensagem. Linha após linha, o sorriso nos lábios desvanecia-se.

De: xreynolds@largebio.com

Data: 14 ago 13:48:28

Para: lauren_obrien@instar.org

Assunto: Large Scale Biological Labs

Doutora O’Brien,

Antes de mais, as minhas desculpas pela insistência. Tentei ligar-lhe ontem à noite, mas calculo que esteja muito ocupada. Por isso, tentarei ser breve.

Como acontece em muitos laboratórios do país, também o nosso se encontra envolvido na pesquisa desta doença virulenta. Penso que terei descoberto algo relevante, ou mesmo a resposta para a raiz do problema: o que causa a doença? Porém, antes de tornar públicas as minhas considerações, queria saber a sua opinião.

Enquanto responsável da equipa de proteómica do nosso laboratório, o meu trabalho e dos meus colegas tem sido tentarmos identificar o genoma proteico da humanidade — à imagem do Projeto Genoma Humano para o ADN. Assim sendo, a minha abordagem ao estudo da doença foi abordar o problema em sentido inverso. A maioria dos agentes propagadores de doenças, sejam bactérias, vírus, fungos ou parasitas, não provoca as doenças. As proteínas que produzem é que desencadeiam o processo. Como tal, procurei uma proteína que pudesse ser comum a todos os doentes diagnosticados.

E encontrei uma! A sua observação, porém, deu-me que pensar. Esta proteína exibe uma parecença notável com a proteína que provoca a encefalopatia espongiforme (doença das vacas loucas). O que, por sua vez, levanta a questão: será que temos estado enganados ao procurar um vírus como o causador da doença?

Será que alguém considerou a hipótese de se tratar de um prião?

Para que possa avaliar esta possibilidade, envio um modelo da proteína identificada.

Nome: prião desconhecido (?)

Morfologia: proteína enovelada com hélices alfa duplas.

Modelo:

Método Exp: cristalografia de raios X

Número EC: 3.4.1.18

Fonte: Paciente #24-b12, tribo aruaque, Baixo Amazonas

Resolução: 2.00 Fator R: 0.145

Grupo de Espaço: P21 20 21

Unidade Celular:

Dim: a 60.34 b 52.02 c 44.68

Ângulos: alfa 90.00 beta 90.00 gama 90.00

Cadeias de polímero: 156L Resíduos: 144

Átomos: 1286

Portanto, aqui tem o quebra-cabeças, doutora O’Brien. Sendo certo que valorizo a sua experiência e conhecimento, agradeço a assistência que me possa prestar antes de avançar com esta teoria.

Melhores cumprimentos,

Xavier Reynolds

Lauren tocou com o dedo no diagrama da molécula.

— Um prião... Poderá ser esta a causa da doença?

Refletiu sobre a possibilidade. A palavra «prião» era a abreviatura científica para «partícula infecciosa proteica». O papel dos priões em doenças apenas fora documentado recentemente, valendo a um bioquímico norte-americano o Prémio Nobel em 1997. As proteínas prião encontravam-se em todas as criaturas, desde humanos a organismos unicelulares. Por norma inofensivos, carregavam uma dualidade na estrutura molecular — mais ou menos como a história de O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Numa certa forma, não representavam perigo para as células. Porém, a mesma proteína podia transformar-se sozinha, criando um monstro capaz de soltar o caos no processo celular. E com efeito cumulativo. Uma vez introduzido no corpo do hospedeiro, o prião transformava outras proteínas à sua imagem, disseminando-se exponencialmente. Pior que isso, o hospedeiro podia então transmitir o processo a terceiros. Como um verdadeiro fenómeno contagioso.

As doenças causadas por priões encontravam-se documentadas em homens e animais, desde a sarna em ovelhas à doença de Creutzfeldt-Jakob nos humanos. No entanto, a mais conhecida destas doenças tinha a capacidade de saltar de animais para humanos. O doutor Reynolds mencionara-a no e-mail: encefalopatia espongiforme, a «doença das vacas loucas».

Ainda assim, nas suas manifestações humanas, estas doenças eram sobretudo de natureza degenerativa, não sendo conhecidas por se disseminar tão rapidamente. Mas isso não excluía a hipótese avançada pelo antigo aluno. Lauren lera estudos sobre o papel dos priões em mutações genéticas e outras manifestações mais severas destas proteínas. Seria o que estava a acontecer? E a transmissão aérea? Os priões eram partículas menores que um vírus, e se estes se transmitiam por via aérea, porque não os priões?

Lauren fitou o modelo da proteína e pegou no telefone. Sentiu um arrepio enquanto digitava o número. Esperava que o antigo aluno estivesse enganado.

Ouviu o sinal de chamada e, passado um momento, uma voz:

— Laboratório de proteómica, fala o doutor Reynolds...

— Xavier?

— Sim?

— É a doutora O’Brien.

— Doutora! — O homem começou a falar, excitadíssimo, agradecendo o telefonema.

Lauren interrompeu-o.

— Xavier, conte-me o que sabe acerca desta proteína. — Precisava do máximo de informação possível, e quanto antes. Se houver a mais remota hipótese de ele estar certo...

Sacudiu um arrepio enquanto fitava a molécula no ecrã. Havia outro dado conhecido acerca das doenças causadas por priões.

Não existiam curas conhecidas.

09h18

Selva amazónica

Nate espreitou por cima do ombro de Olin Pasternak. O especialista de comunicações da CIA mostrava-se cada vez mais frustrado com o equipamento. Gotas de suor acumulavam-se-lhe na testa, tanto do calor matinal como de preocupação.

— Não consigo ligação... Rai’s partam! — Mordeu o lábio inferior, os olhos semicerrados.

— Continue a tentar, homem — insistiu Frank, atrás do ecrã.

Nate desviou o olhar para Kelly, ao lado do irmão. Exibia uma expressão ausente, como se não estivesse ali. Nate ouvira várias versões do ataque dos gafanhotos, de como o enxame fora convocado pela marca em chamas dos Ban-ali. A história era demasiado horrível, quase impossível de imaginar, mas a morte do cabo Jorgensen tornara-a bastante real.

Depois de regressar exausto com os companheiros ao novo acampamento junto ao pântano, a equipa dos Rangers mantivera-se de vigia a noite inteira, patrulhando a área à procura de sinais de novas chamas ou daqueles insetos. Mas nada acontecera. As poucas horas até à madrugada passaram sem nada a assinalar.

Assim que o satélite de comunicações se encontrou dentro de alcance, Olin começou a tratar dos preparativos para estabelecer ligação com os Estados Unidos e enviar mensagens para a base em Wauwai. Comunicarem a alteração dos planos era vital para todas as partes envolvidas. Agora que sabiam que estavam a ser perseguidos, tinham decidido avançar na mesma com o objetivo de atravessarem o pântano em jangadas. O capitão Waxman esperava que a iniciativa lhes desse uns dias de avanço em relação aos perseguidores, que à partida ficariam a perambular na margem até perceberem o que acontecera. Uma vez no outro lado, os rangers manteriam um olhar atento sobre as águas, à procura de hipotéticas canoas dos Ban-ali até que o helicóptero de evacuação chegasse. Waxman tencionava trocar cada civil dispensável por um novo ranger. Com as tropas renovadas, o capitão continuaria então a seguir o rasto de Gerald Clark.

Mas havia um problema.

— Vou ter de abrir o computador para ver o que se passa — disse Olin. — Há uma avaria qualquer. Um problema com a placa principal, algum chip queimado ou solto por causa da agitação dos últimos dias. Não sei. Vou ter de o abrir para verificar.

Waxman, que conversava com o sargento ali perto, ouviu a conversa.

— Não temos tempo para isso — disse, aproximando-se. — A terceira jangada está pronta e vamos demorar umas quatro horas a atravessar o pântano. Temos de nos despachar.

Nate olhou na direção da água. Quatro rangers juntavam a nova jangada às duas que tinham construído na noite anterior. A terceira embarcação tornara-se necessária dado que o grupo tinha crescido.

Olin ficou a olhar para o capitão com o computador numa das mãos e uma chave de parafusos na outra.

— Mas eu não consegui estabelecer a ligação. Ninguém vai saber onde estamos. — Limpou o suor da testa, sem saber o que mais poderia dizer.

De pé, Zane mostrava algum nervosismo. Tinha um penso na bochecha, a cobrir uma mordidela de gafanhoto. Era fácil distinguir quem viera do outro acampamento, visto que todos exibiam pensos nos braços, pernas e rostos.

— Podíamos enviar alguém para recuperar o equipamento de rádio do Jorgensen — resmungou Zane.

Aquelas palavras atearam uma discussão com argumentos contra e a favor: «Perdíamos um dia inteiro», «Precisamos de contactar alguém», «Não sabemos se o equipamento continua em condições, os insetos podem ter roído a cablagem.»

— Não há razão para entrarmos em pânico! — berrou Waxman. A mensagem destinava-se a todos. — Mesmo que não consigamos contactar ninguém, o pessoal da base tem uma ideia da nossa localização por causa do relatório de ontem. Quando o helicóptero chegar, tal como ficou combinado, seremos capazes de o ouvir do outro lado do pântano. Nessa altura, lançamos foguetes sinalizadores para o dirigir até nós.

Nate anuiu. Não participara na discussão. No que lhe dizia respeito, só havia um caminho a seguir: em frente.

Waxman fez sinal a Olin.

— Arrume as coisas. Pode resolver o problema quando chegarmos ao outro lado.

O russo anuiu, resignado. Guardou a chave de parafusos no estojo.

Resolvida a questão, cada um foi tratar da sua mochila.

Manny deu uma palmadinha no ombro de Nate ao passar por ele para ir acordar o jaguar.

— Ao menos não vamos ter de andar — comentou.

Nate esticou as costas e encaminhou-se na direção do professor Kouwe, que fumava cachimbo na margem do pântano. Exibia a mesma expressão ausente de Kelly. Desde que Nate e o cabo Warczak tinham encontrado o grupo em fuga, o professor mantivera-se invulgarmente calado e soturno, um estado de espírito que não podia ser explicado apenas pela morte de Jorgensen.

Calado, Nate deixou-se ficar ao lado do velho amigo, também a observar o lago.

Após algum tempo, Kouwe disse:

— Eles enviaram os gafanhotos... os Ban-ali. — Abanou a cabeça. — Aniquilaram os ianomâmis com aquelas criaturas piranhas. Nunca vi nada igual. É como se controlassem realmente a selva. E se esse mito é verdade, que outros poderão também sê-lo? — Abanou de novo a cabeça.

— O que o preocupa?

— Há quase duas décadas que sou professor de Estudos Indígenas. Cresci nestas selvas. Eu devia saber... o cabo Jorgensen... aqueles gritos horríveis.

Nate pousou-lhe a mão no ombro.

— O professor salvou-os com o pó tok-tok.

Kouwe deu uma baforada no cachimbo.

— Nem todos. Devia ter-me lembrado de reacender o símbolo dos Ban-ali antes de deixarmos o acampamento. Se o tivesse feito, o jovem cabo estaria ainda connosco.

— Está a ser demasiado duro consigo mesmo — disse Nate, num tom de voz firme, tentando sacudir a culpa de cima dos ombros do professor. — Nunca estaria preparado para lidar com estas situações. Nada disto foi documentado.

Kouwe anuiu, mas Nate conseguia perceber que estava pouco ou nada convencido.

A voz do capitão fez-se ouvir junto à água.

— Está na hora! Cinco em cada jangada!

Waxman começou a dividir militares e civis pelas jangadas. Nate acompanhou Kouwe, Manny e o jaguar. Os elementos militares eram o cabo Okamoto e a soldado Carrera. Tiveram de entrar na água para alcançar e embarcação e, quando Nate subiu para a jangada, ficou impressionado com a aparente robustez da construção. Estendeu o braço e ajudou Manny a embarcar o jaguar.

Tor-tor não ficou satisfeito por ter de se molhar. Enquanto sacudia a água do pelo, o resto do grupo subiu para as outras embarcações.

Kelly, Frank e o capitão Waxman ocuparam a jangada que estava mais perto, juntamente com Warczak e Yamir. Os restantes cinco elementos do grupo ocuparam a outra. Olin carregou o equipamento com cuidado. A última coisa que queria era molhar o portátil e a antena. Richard Zane e Anna Fong ajudaram-no a subir a bordo sob o olhar atento do estoico Tom Graves e do sisudo sargento Kostos.

Prontos para partir, usaram paus de bambu para afastar as jangadas da margem e navegar pelos baixios. Porém, o leito do lago desceu rapidamente e, percorridos trinta metros, os paus já não tocavam o fundo e foram substituídos por remos. Cada jangada dispunha de quatro remos, o que permitia que um dos cinco tripulantes descansasse enquanto os outros remavam. Essa rotatividade era positiva, visto que tencionavam completar a travessia de uma assentada.

Nate remava no lado de estibordo da sua jangada e, lentamente, a pequena frota de embarcações improvisadas foi avançando em direção à outra margem. À distância, o troar das múltiplas quedas de águas ressoava abafado e ameaçador na superfície lisa do lago. Nate estudou a paisagem com os olhos semicerrados. As terras altas permaneciam envoltas em neblina, uma mistura de selvas verdejantes, penhascos vermelhos e cascatas brancas. O destino era uma ravina estreita localizada entre duas plataformas, um canal de acesso direto às terras altas. Era para onde apontava o último marcador de Gerald Clark.

Os vários habitantes do pântano iam reagindo à presença inesperada das jangadas. Uma garça levantou voo. Rãs chapinharam na água. E uns quantos jacus-ciganos — aves que pareciam ter nascido do cruzamento de um peru com um pterodáctilo — guincharam quando o grupo passou demasiado perto dos ninhos no cimo das palmeiras nos vários outeiros. Os únicos seres que pareciam realmente agradados com aquela invasão eram os mosquitos.

— Malditos! — resmungou Manny, esborrachando um dos insetos no pescoço. — Estou farto de servir de refeição a estes bichos!

E se os mosquitos não incomodavam já o suficiente, o cabo Okamoto começou a assobiar outra vez, desafinado e sem nenhuma noção de ritmo.

Nate suspirou. A viagem ameaçava ser longa.

Decorrida uma hora, as pequenas ilhas foram desaparecendo aos poucos. O centro do pântano era profundo o suficiente para engolir estes pequenos pedaços de terra. Apenas os ocasionais outeiros, quase sempre desprovidos de vegetação, pontuavam o coração do pântano.

Sem nada em volta exceto água, o sol tornava-se difícil de suportar.

— Parece que estou numa sauna — lamentou-se Carrera, que remava no outro lado da jangada.

Nate concordava. O ar estava saturado de humidade, quase demasiado denso para se respirar. O ritmo com que remavam decresceu à medida que a exaustão se instalava. Os cantis eram constantemente passados de mão em mão. Até o jaguar se deitara no meio da embarcação, a arfar com a boca escancarada, como um cão — o que era estranho de se ver, diga-se de passagem.

A única consolação residia na circunstância de se verem momentaneamente livres do abraço claustrofóbico da selva. No pântano, as vistas estendiam-se, o que proporcionava uma sensação de liberdade. Nate olhava frequentemente por cima do ombro, quem sabe à espera de encontrar um nativo na margem de punho erguido, a rogar-lhes pragas. Mas a verdade é que não havia sinais dos Ban-ali. Os batedores da tribo-fantasma, se os houvesse, permaneciam invisíveis. Restava a esperança de que aquela manobra lhes garantisse um avanço de alguns dias em relação aos perseguidores.

Nate sentiu um toque no ombro.

— É a minha vez de remar — disse Kouwe, despejando a cinza do cachimbo na água.

— Não é preciso.

Kouwe tirou-lhe o remo das mãos.

— Ainda não estou inválido.

Nate preferiu não alimentar a discussão e trocou de lugar com o professor. Acomodando-se, observou o local do acampamento à distância, cada vez mais pequeno. Pegou no cantil e apercebeu-se de um movimento à direita da jangada. Um dos outeiros, de aspeto pedregoso e negro, estava a afundar-se. Submergia tão lentamente que não causou a mínima ondulação na água.

Que raio?

À esquerda acontecia o mesmo. Nate pôs-se de pé. Assim que se preparava para comentar o que via, uma das ilhas pedregosas abriu um olho brilhante e fitou-o. Nate percebeu imediatamente o que se passava.

— Oh, não.

Reconhecia agora a armadura de escamas e o perfil da cabeça de um crocodilo. Aquilo eram jacarés. Um par de gigantes. De olho a olho, cada cabeça devia ter um metro de largura. E se as cabeças eram assim tão grandes...

— O que se passa? — perguntou Carrera.

Nate apontou para o sítio onde o segundo jacaré estava prestes a submergir.

— O que é aquilo? — perguntou a ranger, tão confusa quanto Nate estivera um segundo antes.

— Jacarés — respondeu Nate, completamente em choque. — Dois monstros.

Mal ouviram aquilo, os outros pararam de remar e cravaram os olhos em Nate.

— Espalhem-se! — berrou para os companheiros nas outras embarcações. — Vamos ser atacados!

— Atacados? — perguntou Waxman da sua jangada, que por essa altura se encontrava a uns cinquenta metros. — O que foi que viu?

Como reposta, uma forma gigantesca deslizou entre a jangada de Nate e a mais próxima, roçando ao de leve nas duas embarcações. As cristas gémeas da poderosa cauda eram perfeitamente visíveis na água turva.

Nate conhecia aquele comportamento. Chamava-se «exploração». Os grandes jacarés-açus não eram necrófagos. Gostavam de matar as presas. Era por isso que a imobilidade absoluta podia proteger uma pessoa de um ataque. Quando os jacarés encontravam uma potencial refeição, começavam por lhe tocar ao de leve, para ver se se mexia. A isso chamava-se exploração, e era exatamente o que acabara de acontecer.

À distância, a terceira jangada abanou e deslizou subitamente. O outro jacaré também explorava os estranhos intrusos no seu domínio.

Nate gritou novamente, reforçando as instruções iniciais.

— Não se mexam! Qualquer movimento pode provocar um ataque!

— Façam o que ele disse! — sublinhou o capitão. — Armas e granadas prontas!

Manny agachou-se ao lado de Nate.

— Aquele bicho tem pelo menos trinta metros de comprimento — murmurou. — Mais de três vezes o tamanho de qualquer crocodilo conhecido.

Carrera ergueu a M16 e fixou o lança-granadas.

— Já percebi porque é que o Gerald Clark contornou o pântano.

Okamoto preparou a arma, beijou o crucifixo que trazia ao pescoço e acenou com a cabeça ao professor Kouwe.

— Espero que tenha mais pozinhos mágicos no seu saco.

O professor abanou a cabeça, atónito.

— E eu espero que vocês sejam excelentes atiradores.

Okamoto olhou para Nate.

— Com uma pele tão grossa — explicou Nate —, a única forma de matar um animal destes é com um tiro no olho.

— Ou no palato superior — acrescentou Manny, enfiando um dedo na boca. — Mas um tiro desses só é possível estando cara a cara com o animal.

— A estibordo! — gritou Carrera, virando-se com a arma apontada nessa direção.

Uma linha ondulante cortou ameaçadoramente a superfície lisa do lago.

— Não dispare sem ter a certeza de que consegue matá-lo — avisou Nate. — Se falhar, apenas vai piorar as coisas.

Waxman ouviu o aviso de Nate.

— Ouçam o doutor Rand. Disparem se tiverem oportunidade. Mas não falhem!

Os canos das armas foram alinhados nas laterais de todas as jangadas. Nate pegou na caçadeira. Esperaram em silêncio; em todos, o suor escorria da testa, a boca secara. Os jacarés davam voltas e voltas, sem deixarem vestígios da sua passagem exceto a suave ondulação. De vez em quando, sentia-se um impacto nas jangadas.

— Conseguem permanecer quanto tempo debaixo de água? — perguntou Carrera.

— Horas — respondeu Nate.

— Porque não atacam? — perguntou Okamoto.

— Ainda não conseguiram descobrir se somos comestíveis — explicou Manny.

O cabo asiático preferia não ter ouvido a resposta.

— Deus queira que não descubram.

A espera prolongou-se. O ar parecia cada vez mais pesado.

— E se atirarmos uma granada para longe? — sugeriu Carrera. — Uma distração que os leve para longe daqui?

— Não sei se isso ajudaria. Podem ficar agitados a ponto de atacarem tudo o que se mexa, incluindo nós.

Zane avançou com outra sugestão. Encontrava-se na jangada mais afastada, mas as suas palavras chegaram facilmente à embarcação de Nate.

— Devíamos atar explosivos no jaguar e atirá-lo borda fora. Quando um dos crocodilos o atacasse, fazíamo-lo explodir.

Nate não queria acreditar no que ouvira. Manny ficou com uma expressão agoniada. Mas houve quem trocasse olhares silenciosos, como se contemplassem a hipótese.

— Mesmo que conseguíssemos fazer uma proeza dessas, só mataríamos um deles — respondeu Nate. — O outro, e visto que se trata claramente de um casal, teria um ataque de fúria e investiria sobre as jangadas. A nossa melhor hipótese é esperarmos que percam o interesse e se afastem.

Waxman virou-se para Yamir, o especialista de demolições dos Rangers.

— No caso de não se fartarem tão depressa, é melhor estarmos prontos para lhes oferecer qualquer coisa. Prepare um par de bombas de napalm.

O cabo anuiu e começou a abrir a mochila.

E continuou o jogo de espera. Cada minuto parecia uma eternidade.

Nate sentiu a jangada tremer quando um dos crocodilos tocou nos troncos desta com a poderosa cauda.

— Agarrem-se!

Ato contínuo, a popa foi atirada ao ar. O grupo agarrou-se como aranhas ao estrado de paus de bambu. Algumas mochilas soltas caíram dentro de água. A jangada tornou a descer com violência, atirando-os uns contra os outros.

— Estão todos bem? — gritou Nate.

— Perdi a arma! — bufou Okamoto, irritado.

— Antes a arma do que a vida — comentou Kouwe.

— Estão a ficar atrevidos — disse Nate.

Okamoto estendeu o braço para uma mochila que flutuava.

— O meu equipamento...

— Não faça isso! — avisou Nate.

Okamoto deteve-se. A mão segurava já na alça da mochila.

— Largue-a! Afasta-se da borda!

O cabo largou a mochila e recolheu o braço.

Mas foi demasiado lento.

O monstro irrompeu das profundezas com as mandíbulas escancaradas, a água escorrendo pelas escamas. Como uma torre de placas blindadas, elevou-se três metros acima da água, com dentes maiores que o antebraço de um homem. A mochila e o tronco do cabo foram envolvidos pela bocarra, que, num piscar de olhos, o arrancou da jangada aos gritos e o sacudiu no ar. Os maxilares da besta fecharam-se com um som arrepiante de ossos estilhaçados. O animal continuou a sacudir o soldado, um boneco de trapos, do qual apenas se viam as pernas. Depois tornou a mergulhar.

— Fogo! — berrou Waxman.

Demasiado atordoado, Nate não reagiu. Carrera, por sua vez, descarregou a M16 contra o animal. As balas atingiram a barriga do crocodilo gigante, um autêntico monstro pré-histórico, mas as escamas amarelas eram demasiado resistentes. Mesmo a curta distância, os disparos não pareciam ter qualquer consequência no animal. O seu ponto fraco, os olhos, encontravam-se no lado oposto.

Nate ergueu finalmente a caçadeira, fez pontaria por cima do ombro de Manny e premiu o gatilho. A descarga de chumbos rasgou o ar, mas a besta estava já fora de alcance. O tiro de Nate não passara de um gesto inútil, precipitado.

O jacaré desaparecera. E Okamoto desaparecera com ele.

Ninguém disse uma palavra ou mexeu um músculo. O choque era total.

A jangada continuou a balançar na ondulação produzida pelo ataque do crocodilo.

Nate fitou a superfície da água onde o ranger desaparecera.

O Okamoto e o seu maldito assobio.

Uma mancha vermelha ascendeu das profundezas.

Sangue... Agora os monstros sabem que há aqui comida.

Kelly encolheu-se com o irmão no centro da jangada. Ajoelhados, o capitão Waxman e o cabo Warczak empunhavam as armas prontas a disparar. Yamir preparava as duas bombas de napalm, cada uma do tamanho de um prato e com um temporizador no centro. O especialista de demolições endireitou-se.

— Pronto! — disse para o capitão.

— Agarre na espingarda e esteja atento — respondeu o capitão.

Yamir pegou na M16 e ocupou a sua posição no outro lado da embarcação.

Ouviu-se um som de madeira a estalar. Kelly virou-se e viu a terceira jangada ser arremessada pelo ar, tal como acontecera antes com a embarcação de Nate. Desta vez, os tripulantes não tiveram tanta sorte. Anna Fong foi catapultada pelo impacto e caiu à água, em simultâneo com a jangada. Zane e Olin mantiveram-se agarrados, assim como o sargento Kostos e o cabo Graves.

Anna emergiu à superfície, a tossir e a cuspir água. Encontrava-se a meia dúzia de metros da jangada.

— Não se mexa! — gritou Nate. — Encolha os braços e as pernas e deixe-se flutuar!

Anna queria obedecer, mas a mochila ensopada puxava-a para o fundo. Os olhos arregalados de pânico revelavam tanto o medo de se afogar como o de ser devorada pelas criaturas escondidas nas profundezas.

Um movimento desviou-lhe a atenção na direção da jangada. O sargento Kostos debruçara-se sobre a água e estendia uma das varas de bambu que tinham utilizado para afastar as embarcações da margem.

— Agarre-se! — gritou-lhe Kostos.

Anna estendeu a mão para a vara.

— Vou puxá-la para mim.

— Não... — gemeu a antropóloga.

— Está tudo bem, Anna — gritou Nate. — Só não faça movimentos bruscos. Sargento, puxe-a devagar!

Kelly observava a cena a tremer dos pés à cabeça. Frank abraçou-a com força.

Devagar, o sargento começou a puxar Anna para a jangada.

— Isso... com calma... — murmurou Nate.

Então, nas costas da antropóloga, a forma negra do crocodilo emergiu lentamente. Apenas a ponta do nariz; os olhos continuavam submersos.

Kostos parou de recolher a vara mal avistou a criatura. Ninguém se mexeu.

Ouviu-se um gemido aterrorizado da mulher na água.

Lentamente, o crocodilo avançou, emergindo mais um pouco à medida que abria a boca.

Kostos começou a recolher outra vez a vara, fazendo o possível para manter a antropóloga a uns metros de distância do monstro.

— Cuidado... — avisou Nate. — Com calma...

Aquilo parecia uma corrida em câmara lenta... e estavam a perder.

O crocodilo encontrava-se agora a pouco menos de meio metro de Anna, com a enorme boca prestes a fechar-se sobre a cabeça dela. Nate percebeu que não havia hipótese nenhuma de retirarem a mulher da água sem o animal atacar.

Houve mais alguém que chegou à mesma conclusão.

Surpreendendo toda a gente, o cabo Graves correu pela jangada e saltou por cima da cabeça de Anna.

— Graves! — gritou Kostos.

O cabo aterrou em cima da cabeça do animal, fechando-lhe os maxilares e empurrando-lhe a boca para dentro de água.

— Puxem-na! — ainda conseguiu gritar, antes de ser arrastado para o fundo com o crocodilo.

Kostos recolheu rapidamente a vara e, com a ajuda de Olin, puxou Anna para fora de água.

No mesmo instante, a besta emergiu de novo com Graves ainda agarrado à cabeça. O crocodilo debateu-se, tentando sacudir o inesperado passageiro. Abriu os maxilares e soltou um ronco profundo, carregado de fúria.

— Vai-te foder! — berrou Graves. — Esta é pelo meu irmão!

Apertando as pernas em torno da cabeça da criatura, o cabo arrancou um objeto do colete tático e atirou-o para dentro da bocarra escancarada.

Uma granada.

Os maxilares do crocodilo morderam o ar, mas o soldado estava fora de alcance.

— Baixem-se! — avisou Waxman.

Graves saltou de cima da besta. Um grito triunfante cortou o ar enquanto tentava alcançar a jangada.

— Morde aqui, filho da mãe!

Atrás dele, a explosão enviou uma onda de choque pelo pântano. A cabeça do crocodilo desfez-se em bocados e Graves voou pelo ar, ainda a gritar.

Foi quando o segundo animal irrompeu das profundezas.

As mandíbulas abertas apanharam o ranger em pleno voo, como um cão a apanhar uma bola. Aconteceu tão rápido que ninguém conseguia acreditar no que acabara de ver.

O corpo do crocodilo morto pela explosão rolou sobre si mesmo à superfície, expondo as escamas amarelas e cinzentas da barriga. Devia medir uns trinta metros da ponta da cauda ao que restava da cabeça. O segundo animal parecia ser ainda maior, tratando-se provavelmente de um macho, o companheiro da fêmea morta.

Como que confirmando essa hipótese, o corpo inerte do animal morto começou a balançar para cima e para baixo. O segundo examinava-o, submerso, tocando-lhe com o focinho.

— Talvez se vá embora — disse Frank. — Talvez a morte da fêmea o assuste.

Kelly sabia que isso não iria acontecer. Aquelas criaturas deviam ter centenas de anos. Companheiros eternos e o último par da sua espécie, partilhando aquele ecossistema fechado.

A ondulação à superfície desvaneceu-se, e o lago cobriu-se novamente de silêncio.

Os olhos de todos mantiveram-se cravados na água, com a respiração suspensa, o sol cozendo lentamente os corpos transpirados.

— Para onde foi? — sussurrou Zane, ao lado da pálida companheira resgatada das águas. Ensopada e em choque, Anna tremia a bom tremer.

— Talvez tenha ido embora — murmurou Frank.

As três embarcações, todas desprovidas de leme, continuaram a flutuar à deriva, em volta da carcaça da besta morta. A jangada de Nate encontrava-se no lado oposto à de Kelly. Os dois trocaram um olhar. Nate acenou-lhe com a cabeça, tentando transmitir-lhe alguma calma, mas o próprio explorador das selvas parecia demasiado assustado. Atrás dele, o jaguar encolhera-se assustado ao lado de Manny, quer pela explosão quer pelas gigantescas criaturas no lago.

— Talvez tenha fugido — repetiu Frank. — Talvez...

Kelly pressentiu o que vinha a seguir antes de acontecer: uma súbita deslocação da água debaixo da jangada.

— Agarrem-se! — gritou.

— O...

A jangada explodiu-lhes debaixo dos pés. Não foi apenas levantada, mas completamente atirada pelo ar. O focinho do crocodilo gigante irrompeu pelo estrado de bambu, desfazendo-o em pedaços.

Kelly voou borda fora vislumbrando os outros caírem no meio de uma chuva de paus de bambu e mochilas.

— Frank!

O irmão aterrou no outro lado do monstro, e depois foi a vez dela. Bateu com violência na água, de barriga. O impacto arrancou-lhe o ar dos pulmões. Veio à superfície e lembrou-se do conselho de Nate para se manter quieta, mas olhou para cima e viu um pedaço da jangada cair do céu em direção à sua cara.

Desviou-se o suficiente para evitar uma pancada fatal, mas o pedaço de madeira ainda lhe raspou na cabeça. Perdeu a consciência e caiu para trás, afundando-se, engolida pela escuridão.

No outro lado do crocodilo, Nate viu Kelly ser atingida pelos destroços e afundar-se, inconsciente ou morta. Em volta da jangada desfeita flutuavam pessoas, mochilas e pedaços de madeira.

— Não se mexam! — gritou, procurando desesperadamente perceber o que acontecera à médica americana.

O crocodilo mergulhara outra vez.

— Kelly! — chamou Frank.

A irmã veio à superfície na ponta mais afastada da mancha de destroços. Tinha o rosto por baixo de água, o corpo inerte.

Nate hesitou. Estará morta? Depois notou um braço mexer-se. Está viva! Mas por quanto tempo? Praticamente inconsciente, corria o risco iminente de se afogar.

Procurou uma maneira de a ajudar. Mais atrás de onde flutuava o corpo existia um dos pequenos outeiros com uma única árvore no meio. O tronco grosso erguia-se das raízes expostas e a seguir formava uma copa inclinada sobre a água. Se Kelly conseguisse lá chegar...

Alguém gritou na água, desviando-lhe a atenção. A cabeça do crocodilo emergira de novo, como um submarino no meio dos destroços. Um olho enorme estudou o ambiente. Foram disparados tiros, mas o animal manteve-se praticamente submerso, tapado pelos corpos na água e pelos destroços. Depois mergulhou outra vez.

Por fim, Frank avistou a irmã.

— Oh, não! Kelly!

Preparou-se para nadar ao encontro dela.

— Não, Frank! — gritou Nate, largando a caçadeira. — Eu vou buscá-la!

— O que estás a fazer? — perguntou Manny.

Em resposta, Nate saltou da jangada para cima do crocodilo morto. Aterrou na barriga escorregadia do monstro e avançou ao longo do comprimento do animal, tentando chegar perto de Kelly.

Ouviu-se outro grito à direita. Nate viu o cabo Yamir esbracejar e depois ser puxado para o fundo no meio de uma explosão de bolhas. O crocodilo estava a apanhar os sobreviventes na água. Não havia tempo a perder.

Nate tomou balanço e mergulhou da barriga do crocodilo. Deslizou pela água até alcançar Kelly e virou-a de costas, mantendo-lhe o rosto à superfície.

Ela tentou debater-se.

— Kelly! Sou eu, Nate! Fique quieta!

Ela deve tê-lo ouvido e parou de lutar.

Nate começou a nadar e a puxá-la em direção ao ilhéu. Avançou pelo meio dos destroços e uma das mãos bateu em alguma coisa: um objeto preto, redondo, com umas luzinhas vermelhas a piscarem. É uma das bombas de Yamir.

Instintivamente, agarrou na bomba e continuou a nadar.

— Atrás de vocês! — gritou o sargento Kostos da jangada.

Nate olhou por cima do ombro.

O focinho do crocodilo rompeu a superfície, seguindo-se o resto da cabeça. Nate ficou cara a cara com o monstro. Conseguia perceber a inteligência por detrás dos olhos inexpressivos do crocodilo. Não se tratava de um animal estúpido. Fazer-se de morto não serviria para nada.

Virou-se e continuou a nadar para a ilhota. Os pés tocaram no leito lamacento. Com uma força nascida do medo e do pânico, endireitou-se, enrolou um braço à volta da cintura de Kelly e arrastou-a pelos baixios, depois pela margem.

— Vai apanhar-vos! — ouviu Kostos gritar.

Nate não se deu ao trabalho de olhar para trás. Correu direito à árvore e atirou-se com Kelly pelo meio do emaranhado de raízes, atrás das quais existia uma cavidade natural.

Kelly abriu os olhos e olhou em volta a tossir e a cuspir água. Nate caiu em cima dela no espaço confinado.

— O que...

Então, por cima do ombro de Nate, Kelly avistou finalmente o crocodilo. Arregalou os olhos.

— Oh, não...

Nate virou-se e viu o monstro erguer-se do lago e subir a margem. Embateu na árvore como um comboio contra um carro parado numa passagem de nível. O tronco inteiro tremeu. Nate receou que a árvore lhes caísse em cima. O crocodilo fitou-os por entre o emaranhado de raízes, com a boca aberta e os dentes a reluzirem ameaçadoramente. Depois deslizou de volta para o lago.

Kelly virou-se para Nate. Quase se tocavam nariz com nariz no espaço apertado.

— Salvou-me a vida...

— Ou quase a matava. Depende do ponto de vista. — Nate agarrou numa raiz e pôs-se de pé. — Isto ainda não acabou.

Estudou as águas. Não havia sinal do crocodilo, mas sabia que o animal continuava por ali, à espera. Respirou fundo e abandonou a segurança do esconderijo.

— O que está a fazer?

— Os outros ainda estão na água... incluindo o seu irmão.

Nate enfiou a bomba de napalm por debaixo da camisa e começou a subir a árvore. Tinha uma ideia do que precisava de fazer. Assim que encontrou um ramo suficientemente alto e forte, subiu para cima dele e rastejou lentamente até à ponta que caía sobre a água. O ramo dobrou-se sob o seu peso à medida que avançava. Precisava de ter cuidado.

Prosseguiu até onde lhe era possível e olhou em volta. Aquilo era o que tinha e teria de servir. Pegou na bomba, acenou com o braço e gritou para os companheiros no lago.

— Mais alguém sabe armar isto, além do cabo Yamir?

— Basta inserir o tempo no contador e carregar no botão vermelho! — respondeu o sargento Kostos.

— A explosão propaga-se por algumas centenas de metros — avisou o capitão, que flutuava não muito longe. Nate ficou impressionado com o tom de voz calmo do militar. — Se calcular mal a explosão, mata-nos a todos.

Nate anuiu e estudou o dispositivo. O teclado no detonador não era muito diferente de uma calculadora. Rezando para que não estivesse avariado por causa da água ou das pancadas que levara, marcou uma contagem decrescente de quinze segundos. Devia ser o suficiente.

Segurou a bomba junto ao peito e sacou da faca de mato. Cerrou os dentes e fez um corte no polegar com a lâmina. A dor foi horrível, mas precisava que o golpe fosse profundo para sangrar o suficiente. Endireitando-se, segurou-se a um ramo para se pôr de pé e agarrou na bomba com a mão ensanguentada. Inclinando-se, estendeu o braço. As gotas de sangue começaram a cair na água.

Esperou, imóvel, com o polegar no botão vermelho do detonador.

— Vá lá, aparece, maldito...

Na Austrália, numa visita a uma quinta de répteis, assistira uma vez a uma demonstração onde um crocodilo de dez metros saltava da água para apanhar a carcaça de uma galinha decapitada na ponta de uma vara. O que estava a fazer não era muito diferente. Tirando o facto de ser ele a galinha.

Abanou ligeiramente o braço, produzindo mais gotas de sangue.

— Onde estás? — sussurrou. O braço começava a doer-lhe. A mancha vermelha era perfeitamente visível na superfície da água. Os crocodilos conseguiam detetar sangue a quilómetros de distância.

Franzindo a testa, arriscou desviar o olhar na direção dos companheiros que ainda flutuavam no meio dos destroços. As outras jangadas não podiam socorrê-los, dado que ninguém sabia onde estava o animal.

Distraído, quase não se apercebeu da sombra que deslizou pelos baixios.

— Nate! — gritou Kelly.

O crocodilo saltou da água com as mandíbulas abertas. Nate premiu o botão do detonador e deixou cair o dispositivo ensanguentado na boca do animal, apercebendo-se, ao mesmo tempo, que subestimara a capacidade de impulsão da criatura gigante.

Fletiu as pernas e saltou na vertical, impulsionado tanto pelos seus próprios músculos como pela flexibilidade do ramo. Agarrou um ramo superior e recolheu as pernas no preciso instante em que as mandíbulas do monstro se fecharam a centímetros da costura das calças. Esteve tão perto de ser mordido que sentiu o bafo do animal contra as costas. Incapaz de reclamar a presa, o crocodilo caiu na água com estrondo.

Nate olhou para baixo. O ramo onde estivera fora arrancado pelas mandíbulas do animal. Se não tivesse saltado a tempo...

O crocodilo deslizou para águas mais fundas, mas manteve-se à superfície, revelando a sua verdadeira dimensão. Não media menos de trinta e cinco metros.

Pendurado no ramo, Nate viu a besta lançar-lhe um último olhar e dar meia-volta na direção dos companheiros na água, que constituíam presas mais fáceis. Antes de completar a volta, porém, o corpo inteiro estremeceu.

Nate esquecera-se de contar os segundos no detonador.

A barriga da besta inchou como um balão. Abriu a bocarra e expeliu um jato de chamas, como se fosse um dragão. Rolou sobre si mesmo, mergulhando, e foi quando se deu a explosão. Uma coluna de água e chamas irrompeu do lago, projetando bocados de carne queimada em todas as direções.

Nate agarrou-se ao ramo da árvore com os braços e as pernas. Mais abaixo, entre as raízes, Kelly gritou em choque.

A explosão terminou no mesmo segundo, mas os pedaços do crocodilo continuaram a cair do céu. O corpo blindado do gigante encerrara dentro de si a maior parte da força destrutiva da bomba, mantendo toda a gente a salvo.

Gritos de triunfo ecoaram pelo lago.

Nate desceu da árvore e foi buscar Kelly.

— Está ferida? — perguntou-lhe.

Kelly tocou com o dedo num pequeno golpe na testa.

— Dói-me um pouco a cabeça, mas estou bem. — Tossiu. — Acho que engoli um litro de água.

Nate segurou-a por um braço e ajudou-a a descer a margem. A jangada de Kostos deslizava já na direção dos companheiros na água. Manobrada por Carrera, a segunda embarcação veio buscar o par à margem.

A militar ajudou Kelly a subir a bordo. Manny agarrou no pulso de Nate e puxou-o também para o estrado de bambu.

— Isso é que foi pensar rápido — disse, sorrindo.

Exausto, Nate sorriu-lhe de volta.

— A necessidade aguça o engenho. Mas, se queres mesmo saber, não vejo a hora de sair deste pântano.

— Será que existem mais monstros destes? — disse Kelly.

— Duvido — respondeu Manny, com alguma melancolia na voz. — Não imagino que pudesse haver aqui comida suficiente para alimentar mais predadores destes. Em todo o caso, não seria tão ou mais impossível que este par tivesse crias. Mais vale ficarmos atentos.

Carrera manteve-se vigilante enquanto os outros remavam.

— Acham que os Ban-ali podem ter enviado os crocodilos ao nosso encontro? Tal como fizeram com as piranhas e os gafanhotos?

— Não — retorquiu Kouwe. — Mas não descartaria a hipótese de terem cuidado destas criaturas para servirem de guardiães dos seus domínios. Seria uma boa forma de manterem invasores à distância. Como nós.

Guardiães? Nate fitou a margem oposta. As terras altas encontravam-se agora perfeitamente visíveis sob o sol da tarde. As quedas de águas vertiam como rios prateados dos penhascos cor de sangue, contrastando com o verde luxuriante das florestas em cima e em baixo. Se o professor estivesse certo em relação aos crocodilos, então encontravam-se prestes a entrar nos domínios dos Ban-ali, no coração do seu território mortífero.

Olhou em volta e na direção da outra jangada. Contou as cabeças. Waxman, Kostos, Warczak e Carrera. Dos doze rangers, aqueles eram os últimos quatro. E isto quando ainda nem sequer tinham penetrado no verdadeiro território dos Ban-ali.

— Nunca conseguiremos — murmurou para si mesmo enquanto remava.

Carrera ouviu-o.

— Não se preocupe. Vamos montar acampamento e esperamos por reforços. Não deve demorar mais do que um dia.

Nate franziu a testa. Tinham acabado de perder três homens naquele lago. Militares de elite, profissionais. Muito podia acontecer num dia. Quanto mais olhava para as terras altas, menos desejava alcançar a margem, mas não tinha escolha. Uma praga espalhava-se pela América e pela Amazónia, e encontravam-se tão perto de encontrar uma solução para a doença como qualquer outra pessoa. Precisavam de continuar.

Além do mais, o pai percorrera aquele caminho e enfrentara as mesmas ameaças. Não podia recuar. Precisava de descobrir a verdade, independentemente das mortes, dos perigos e dos riscos.

— Mantenham-se alerta! — avisou Waxman, à medida que se aproximavam do objetivo. — Assim que estivermos em terra, afastem-se da água. Vamos montar o acampamento na floresta.

Nate reparou que o capitão olhava constantemente em redor, preocupado com a possibilidade de existirem mais crocodilos no lago. Nate, por seu turno, mantinha a atenção focada na selva. Sabia onde residia o verdadeiro perigo: nos Ban-ali.

A voz do capitão fez-se ouvir de novo, mas desta vez dirigida aos ouvidos de Olin Pasternak.

— E você veja se resolve os nossos problemas de comunicação. Temos uma janela de três horas até os satélites ficarem fora de alcance.

— Vou fazer o meu melhor — assegurou o russo.

Waxman anuiu. A expressão do capitão não passou igualmente despercebida a Nate. A voz podia soar confiante e autoritária, mas o capitão dos Rangers estava tão nervoso como ele. Em certa medida, isso tranquilizava Nate. Um homem nervoso não baixava a guarda, e Nate calculava que a sobrevivência do grupo dependeria em grande parte disso.

As duas jangadas alcançaram os baixios e não tardaram a tocar em terra firme. Os rangers desembarcaram primeiro, empunhando as armas. Espalharam-se e verificaram a primeira linha de floresta. Não tardaram a ouvir-se os chamamentos dos militares, que gritavam «desimpedido» à medida que progrediam de secção em secção.

Nate aguardou que fosse concedida autorização para o desembarque. O murmúrio profundo de incontáveis quedas de água rompia o silêncio do lago. À esquerda e à direita, faces rochosas enquadravam um desfiladeiro estreito, coberto de selva, correndo no meio um rio que alimentava o pântano.

— Aqui! — gritou Warczak, à entrada da floresta. O cabo surgiu da vegetação e acenou ao capitão. — Mais um marcador do Clark!

Waxman fez sinal com a arma.

— Todos para terra!

Nate não perdeu tempo e apressou-se com os outros na direção de Warczak. Uns metros no interior da floresta, havia outro pedaço de tecido espetado num cedro. Como começava a ser habitual, havia uma marca gravada no tronco. Examinaram o símbolo com uma sensação de pavor. Uma seta apontava na direção do desfiladeiro. O significado do desenho era óbvio.

— Um crânio com dois ossos cruzados — murmurou Zane.

A morte aguarda adiante.

15h40

— Bom, aí está uma coisa que não se vê todos os dias — comentou Louis com o seu tenente, baixando os binóculos. — Quando aquele crocodilo explodiu... — Abanou a cabeça. — Não podemos acusar os nossos amigos de não serem engenhosos.

Mais cedo naquela manhã, Louis ficara a saber pelo cúmplice infiltrado que os rangers tencionavam acampar no outro lado do pântano, onde aguardariam pela chegada de reforços. Louis calculava que as mortes trágicas de três elementos reforçassem essa intenção do capitão Waxman. A unidade estava agora reduzida a quatro rangers, e a equipa de Louis podia matá-los a qualquer momento — uma circunstância que não desejava ver alterada.

— Por agora, vamos deixá-los em paz. Depois, por volta da meia-noite, acordamos os dorminhocos e obrigamo-los a fugir outra vez. Quem sabe quais os perigos que aguardam adiante? — Louis apontou para o pântano. — Seja como for, tal como aqui, vamos deixar que eles os descubram por nós. Não vale a pena perder a vida quando se tem alguém que o pode fazer em nosso lugar, certo?

— Sim, senhor. Vou avisar os homens. Estamos a recolher a querosene dos candeeiros para juntar o suficiente.

— Ótimo. — Louis virou as costas ao pântano. — Assim que eles se puserem em fuga, seguimos atrás nas canoas.

— Certo, mas... — Jacques mordeu o lábio e fitou as águas.

Louis deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Não te preocupes, Jacques. Se houvesse mais crocodilos, eles tinham atacado os rangers. Não terás problemas.

Louis, porém, compreendia os receios do tenente. Não era ele que ia atravessar o pântano com equipamento de mergulho e sem nada para o proteger exceto a espessura do fato de neopreno. Mesmo com luzes de visão noturna, seria uma travessia assustadora.

Mas Jacques anuiu. Faria o que lhe era ordenado.

Louis encaminhou-se na direção da selva, de regresso ao acampamento. O tenente não era o único com os nervos à flor da pele, havia muitos outros na equipa. A disposição geral do grupo era cada vez mais tensa. Tinham visto os restos mortais do ranger morto pelos gafanhotos. O soldado fora devorado vivo até ao osso, olhos e tudo. Ainda havia insetos no local, mas o grosso do enxame dispersara. Avisado pelo cúmplice, Louis prepara tochas com pó tok-tok que tinham queimado naquela manhã enquanto atravessavam a floresta. Tshui conseguira recolher lianas secas suficientes para a preparação do pó.

Apesar dos perigos, o plano decorria como previsto. Os rangers continuavam a abrir caminho para a equipa de Louis. Não tinha dúvidas de que os Ban-ali estariam também cientes da presença do seu grupo. Não era arrogante a ponto de acreditar que os homens se moviam invisíveis, porém, até ao momento, os Ban-ali mantinham-se concentrados nos rangers.

Louis sabia que aquela vantagem não duraria para sempre, sobretudo quando se encontrassem no coração do território da elusiva tribo. Esta preocupação não ocupava apenas a sua mente. Com medo do que encontrariam adiante, três mercenários tinham tentado abandonar a missão. Os cobardes foram apanhados, claro, e Tshui fizera deles um exemplo para os outros.

Ao chegar ao acampamento, Louis encontrou a amante ajoelhada junto à tenda. Os corpos dos três desertores estavam pendurados pelos braços e pelas pernas em diferentes árvores. Louis desviou o olhar. O trabalho de Tshui possuía um pendor artístico, mas havia limites para aquilo que o seu estômago conseguia suportar.

A amante, que limpava as ferramentas numa tigela com água, ergueu o rosto quando ele se aproximou. Os olhos castanhos brilharam de malícia e paixão. O trabalho dela despertava sempre o desejo entre os dois.

Louis sorriu e Tshui levantou-se, revelando o corpo esguio e tonificado. Louis colocou-lhe um braço por cima dos ombros. Conseguia sentir o odor do sangue nela, e, quando lhe beijou a testa, sentiu o pénis intumescer.

Conduziu-a na direção da tenda. Ainda faltavam muitas horas para a meia-noite.

Não muito longe, alguns homens enchiam cantis com querosene, preparando a chamada de despertar programada para a outra equipa. Aquilo asseguraria que os coelhinhos correriam sem parar a noite inteira.

Louis levantou a aba da entrada da tenda. Todos precisariam de descansar o resto do dia. Ao curvar-se para entrar, Tshui apertou-lhe a mão e puxou-o com impaciência para o interior escuro e quente da tenda.

O descanso ficaria para mais tarde.


13

SOMBRAS

15 de agosto, 15h23

Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren bateu à porta do gabinete do doutor Alvisio. Naquela manhã, o epidemiologista pedira-lhe uma reunião com urgência, mas aquela era a primeira oportunidade que tivera para ir ao encontro dele.

Passara a manhã em conferência com o doutor Xavier Reynolds e a equipa da Large Scale Biological Labs, em Vacaville, Califórnia. A proteína prião podia ser a primeira pista para o mistério da doença que até ao momento ceifara mais de sessenta vidas e contagiara centenas. Lauren enviara as conclusões do antigo aluno para catorze laboratórios diferentes. Enquanto aguardava notícias, tinha tempo para se reunir com Alvisio.

A porta abriu-se. Com a barba por fazer e os olhos raiados de sangue, o jovem médico de Stanford tinha aspeto de quem não dormia há semanas.

— Obrigado, doutora, por ter vindo.

Lauren nunca o visitara no gabinete. Ficou surpreendida com a quantidade de equipamento informático que ocupava um lado inteiro da divisão. De resto, o espaço era espartano: uma secretária atulhada, uma estante vazia, algumas cadeiras. O único toque pessoal era um galhardete dos Stanford Cardinal, a equipa universitária de futebol americano, pendurado na parede mais afastada. O olhar de Lauren fixou-se nos ecrãs de computadores com uma série de gráficos e colunas de números.

— O que tem para me dizer de tão urgente? — perguntou.

Hank acenou na direção dos ecrãs.

— Preciso que veja isto. — O tom de voz não sugeria boas notícias.

Lauren anuiu e o epidemiologista indicou-lhe uma cadeira.

— Lembra-se de lhe ter dito que, no estádio inicial da doença, o aumento do número de basófilos podia ser usado como uma forma de diagnóstico precoce?

Lauren acenou com a cabeça, embora tivesse dúvidas em relação à teoria após o que acontecera com Jessie. A neta apresentara um aumento substancial de basófilos, mas agora estava a recuperar bem. Havia até a possibilidade de deixar a enfermaria no dia seguinte. O aumento de basófilos ocorria em vários processos inflamatórios, o que não o tornava exclusivo da doença.

Abriu a boca para dizer isso mesmo, mas o doutor Alvisio cortou-lhe a palavra e começou a escrever no teclado.

— Demorei vinte e quatro horas a compilar dados de todo o país, focando-me essencialmente nos casos de crianças e idosos onde foram observados os aumentos. Queria testar um novo modelo da progressão do contágio com base neste critério.

No ecrã surgiu um mapa dos Estados Unidos em amarelo, com as fronteiras de cada estado tracejadas a preto. Bolinhas vermelhas pontilhavam o mapa. A maioria concentrava-se na Florida e em outros estados do Sul.

— Este é o modelo antigo. Cada bola vermelha indica os casos confirmados de contágio.

Lauren colocou os óculos de leitura e inclinou-se para ver melhor.

— Porém, se usar o aumento de basófilos como indicador de contágio, é este o verdadeiro cenário que temos no país.

O epidemiologista premiu uma tecla. O mapa mudou imediatamente de cor. A Florida ficou vermelha de ponta a ponta, bem como a Georgia e o Alabama. Outros estados, antes limpos, apareciam agora com bolinhas vermelhas.

— Como pode ver, o número de casos subiu em flecha. Muitos destes doentes não se encontram sujeitos a medidas de quarentena, dado que ainda não apresentam os três sintomas referenciados pelo CCD. Até lá, correm o risco de contagiar quem os rodeia.

Apesar das dúvidas, Lauren sentiu um nó no estômago. Mesmo que a teoria dos basófilos não se confirmasse, o modelo mostrava como o diagnóstico precoce era essencial no combate à doença. Enquanto não existisse um, as crianças e os idosos que apresentavam febres deviam ser postos em quarentena, mesmo que não vivessem nas zonas mais atingidas, como a Florida e a Georgia.

— Compreendo o que me está a mostrar — disse. — Devemos contactar o CCD e dizer-lhes que precisamos de protocolos de quarentena a nível nacional.

Hank anuiu.

— Mas não é tudo. — Virou-se outra vez para o teclado. — Com base nestes novos dados, este é o cenário previsto para daqui a duas semanas.

Assim que o epidemiologista premiu a tecla enter, toda a metade sul do mapa cobriu-se de vermelho.

Lauren ficou lívida.

— E daqui a um mês será assim. — Hank premiu novamente a tecla enter. A mancha vermelha estendeu-se aos quarenta e oito estados mais a sul. — Precisamos de parar isto. Cada dia que passa é crítico.

Lauren fitou o mapa tingido de vermelho. A única consolação era que a base daquelas projeções devia estar errada. Duvidava que o aumento de basófilos constituísse um sintoma válido para o diagnóstico inicial. Mesmo assim, o aviso em causa era importante. Cada dia que passava era crítico no que respeitava à evolução da epidemia.

Sentiu o pager vibrar no cinto, lembrando-lhe de que o combate à doença tinha de ser feito com todos os recursos à disposição. Olhou para o mostrador e ficou surpreendida ao ver que era o marido que lhe ligava. Marshall digitara 911 depois do seu código numérico. Era urgente.

— Importa-se que faça uma chamada?

— Claro.

Lauren levantou-se e dirigiu-se à secretária. Hank continuou de volta dos modelos estatísticos. Lauren digitou o número do marido. A chamada foi atendida ao primeiro toque.

— Lauren...

— Marshall, o que se passa?

— Estou no hospital... é a Jessie.

Lauren apertou o auscultador.

— O que aconteceu? Diz-me.

— A febre tornou a subir. Está mais alta do que antes. E há mais três crianças nas mesmas condições. Todas com febre alta.

— O... o que estás a dizer? — gaguejou Lauren, embora já soubesse a resposta.

Marshall ficou em silêncio.

— Vou... vou para aí agora.

Com a mão a tremer, Lauren pousou o auscultador.

Hank apercebeu-se imediatamente de que algo não estava bem.

— Doutora O’Brien?...

Lauren não conseguia falar.

Jessie... o aumento de basófilos... outras crianças com febre.

A doença alastrara ao instituto!

Fitou o ecrã com o mapa dos Estados Unidos tingido de vermelho. A teoria do epidemiologista não estava errada. Aquela avaliação não era pessimista.

— Doutora, sente-se bem? — insistiu Hank.

Sem desviar os olhos do ecrã, Lauren abanou lentamente a cabeça.

Um mês...

17h23

Amazónia

Kelly e Frank estavam sentados acompanhados de Olin Pasternak. O especialista informático russo aparafusava a última peça do sistema de comunicação via satélite. Passara a tarde inteira a tentar estabelecer a ligação com os Estados Unidos.

— Espero que funcione — murmurou. — Desmontei tudo e voltei a montar. Se não resultar, não sei o que mais posso fazer.

Frank anuiu.

— Ligue isso.

Olin verificou os cabos uma última vez, ajustou a antena e focou-se no teclado do computador. Ligou o aparelho e, passados uns segundos, o ecrã iluminou-se.

— Temos ligação ao satélite Hermes! — exclamou, aliviado.

Ouviu-se um coro de satisfação. Com exceção dos dois rangers que patrulhavam a margem do pântano, o resto dos companheiros encontrava-se em volta de Olin e do equipamento.

— Vai funcionar? — perguntou Waxman.

— Espero que sim — disse Olin, já com os dedos a moverem-se nas teclas.

Kelly deu por si a suster a respiração. Precisavam de comunicar com o mundo exterior. Havia a questão dos reforços de que tanto necessitavam, mas, mais importante, não suportava estar sem notícias de Jessie. Precisava de saber o que estava a acontecer.

— Aqui vamos nós — disse Olin, digitando uma última sequência de letras e algarismos. A habitual contagem decrescente apareceu no ecrã.

— Por favor, funciona... — murmurou Richard Zane, dando voz ao pensamento de todos.

A contagem chegou ao fim. O ecrã apagou-se durante um segundo interminável, e depois iluminou-se com a imagem dos rostos de Lauren e Marshall. Os pais de Kelly pareciam tão aliviados quanto surpreendidos.

— Graças a Deus! — exclamou o pai. — Há uma hora que tentamos falar convosco!

Olin desviou-se para dar o lugar a Frank.

— Problemas informáticos — respondeu o irmão de Kelly. — Entre outros.

Kelly não podia esperar mais um segundo. Inclinou-se para a frente e perguntou:

— A Jessie?

— Ela... ela está bem, querida — respondeu a mãe, um tanto atrapalhada.

A imagem no ecrã tremeu, como se o computador se tivesse tornado um detetor de mentiras. Uma chuva de estática comeu metade da imagem. As palavras seguintes foram quase impercetíveis: «... nova pista para uma cura... prião... a recolher dados...»

O pai falou a seguir, mas a interferência piorou: «... helicóptero a caminho... exército brasileiro...»

Ambos não pareciam cientes das falhas na transmissão.

— Não consegue melhorar a qualidade da receção? — perguntou Frank ao russo.

Olin premiu umas quantas teclas.

— Não sei. Não percebo o que está a acontecer. Acabámos de receber um ficheiro. Talvez esteja a interferir com o sinal.

Porém, por cada tecla premida, a transmissão deteriorava-se. Apenas algumas palavras rompiam o ruído branco da estática: «... Frank... estou a perder-te... consegues... amanhã de manhã... coordenadas...»

Inevitavelmente, a ligação interrompeu-se. O ecrã piscou algumas vezes e congelou.

— Rai’s partam! — exclamou Olin.

— Ponha isso a funcionar de vez! — disse Waxman.

Olin debruçou-se sobre o equipamento e abanou a cabeça.

— Não sei se consigo. Já verifiquei o hardware e reinstalei todo o software.

— O que se passa, então? — perguntou Kelly.

— Não faço ideia. É como se um vírus tivesse corrompido o sistema.

— Continue a tentar — disse Waxman. — Só temos meia hora até o satélite ficar fora de alcance.

Frank levantou-se.

— Mesmo que não consigamos uma nova ligação, parece que até vão enviar-nos um helicóptero brasileiro pela manhã. Foi o que percebi.

Ao lado de Frank, Olin fitou o ecrã congelado.

— Oh, não...

Todos se viraram para o especialista de comunicações, que apontou para uma sequência de números no canto superior direito do ecrã.

— O nosso sinal de GPS...

— O que tem? — perguntou Waxman.

— As coordenadas estão erradas. Aquilo que estragou o sistema também deve ter corrompido o sinal para os satélites de posicionamento. Estas coordenadas colocam-nos a trinta quilómetros a sul da nossa posição atual.

Kelly sentiu o desespero tomar conta de si.

— Mas assim eles não vão saber onde estamos.

— Tenho de pôr isto a funcionar — disse Olin, reiniciando o computador. — Nem que seja para corrigir o sinal.

— Trate disso! — disse Waxman.

Ao longo da meia hora seguinte, Olin trabalhou com afinco por entre asneiras e promessas murmuradas em inglês e em russo. Todos arranjaram maneira de ocupar o tempo enquanto esperavam. O descanso parecia ser a última das preocupações. Kelly ajudou Anna a preparar a última porção de arroz e, à semelhança dos restantes companheiros, mantinha-se atenta aos eventuais progressos de Olin.

Para mal dos pecados do grupo, apesar dos esforços e das orações murmuradas, nada se alterou. Frank foi ao encontro do russo e pousou-lhe a mão no ombro.

— Demasiado tarde — disse, mostrando-lhe o relógio no outro pulso. — O satélite está fora de alcance.

Olin endireitou as costas, derrotado.

— Tentamos de novo amanhã. É melhor descansar. Pode ser que ajude.

Nate, Kouwe e Manny regressaram de uma pescaria no lago. A abundância de peixes que traziam numa linha revelava que o esforço compensara. Despejaram-nos junto à fogueira. Kouwe sentou-se no chão.

— Eu amanho-os.

Manny suspirou.

— São todos seus.

Nate limpou as mãos, olhou na direção de Olin e foi ao seu encontro.

— Lembrei-me de uma coisa enquanto pescava — disse. — Falou num ficheiro qualquer?

— Está a referir-se a quê?

— Disse-nos que tinha descarregado um ficheiro durante a transmissão.

Olin franziu a testa, depois lembrou-se e anuiu.

— Da. Aqui está ele.

Kelly e Manny juntaram-se aos dois. Kelly recordava-se de que a mãe dissera que enviara qualquer coisa antes de a transmissão cair.

Olin abriu o ficheiro.

Kelly inclinou-se na direção do ecrã. Tratava-se de um modelo 3D de uma molécula, juntamente com uma série de dados. Intrigada, sentou-se e começou a ler o relatório.

— É a investigação da minha mãe — murmurou, satisfeita por ter algo com que ocupar a mente além das preocupações. Em todo o caso, não se podia dizer que aquela leitura fosse relaxante.

— O que diz o relatório? — perguntou Nate.

— Identifica uma possível causa da doença.

— Um prião — acrescentou Manny, espreitando por cima do ombro de Kelly.

— Um quê?

Manny encarregou-se de explicar. Kelly manteve-se focada na leitura.

— Interessante — murmurou.

— O quê? — perguntou Manny.

— Ao que tudo indica, este prião parece causar estragos genéticos — respondeu Kelly, passando rapidamente à página seguinte.

Manny continuou a ler por cima do ombro dela. Assobiou.

— O que foi? — perguntou Nate.

— Isto pode ser a resposta que procurávamos! — exclamou Kelly. — Um estudo da Universidade de Chicago, publicado na revista Nature em setembro do ano passado. Estes investigadores demonstraram que os priões podem conter a chave para certas mutações genéticas. Que podem até desempenhar um papel fundamental na evolução das espécies.

— A sério? Como?

— Um dos mistérios da evolução tem sido a forma como certas capacidades de sobrevivência, que requerem múltiplas alterações genéticas, conseguem surgir tão espontaneamente. Estas alterações são denominadas de «macroevolução», como é o caso da adaptação de certas algas a ambientes tóxicos, ou o rápido desenvolvimento de resistência aos antibióticos em algumas bactérias. Nunca compreendemos bem como é que estas séries de mutações simultâneas são possíveis. Este artigo apresenta uma resposta. Priões. — Kelly apontou para o ecrã. — Estes investigadores demonstraram que os priões conseguem desencadear uma resposta de «tudo ou nada» no código genético, causando mutações simultâneas em larga escala. Uma espécie de salto evolutivo, por assim dizer. Consegue perceber as implicações disto?

Manny arregalou os olhos.

— As criaturas, os gafanhotos... — murmurou o biólogo.

— Tudo mutações desencadeadas por priões — disse Kelly. — Quem sabe, até o braço do Gerald Clark!

— E a doença? O que tem que ver com tudo isso? — perguntou Nate.

— Não sei. Esta descoberta é um bom ponto de partida, mas estamos longe de uma resposta definitiva.

Manny apontou para o ecrã.

— E esta hipótese no relatório, onde diz...

Kelly anuiu. Os dois começaram a dissecar o relatório e a trocar ideias, como cientistas que eram.

Nate deixou de os ouvir e regressou à página com o modelo 3D da proteína prião.

— Mais alguém vê a semelhança? — disse, a dada altura, interrompendo a conversa.

Kelly olhou para ele.

— Qual semelhança?

Nate apontou para o ecrã.

— Os laços em cada ponta.

— As hélices alfa duplas? — perguntou Kelly.

— Isso... e também a secção média enrolada — disse Nate, passando o dedo no ecrã.

— O que tem?

Nate virou-se, pegou num pau e começou a desenhar no chão.

— A secção enrolada... os laços duplos em cada ponta...

Pousou o pau e olhou para Kelly.

Kelly fitou o desenho, boquiaberta.

— A marca dos Ban-ali! — exclamou Manny.

Kelly alternou o olhar entre o desenho de Nate e o modelo no ecrã. Um deles era uma representação científica elaborada num computador; o outro, um rabisco na terra feito com um pau. As semelhanças, porém, saltavam à vista. Não podia ser uma coincidência. Até o sentido da espiral molecular era idêntico.

Virou-se para Nate e Manny.

— Meu Deus...

O símbolo dos Ban-ali era uma versão estilizada do mesmo prião.

23h32

Jacques ainda sofria de um medo profundo de águas escuras, consequência direta do ataque de piranhas que o tinha desfigurado em criança. Apesar disso, deslizou pelo pântano envergando apenas um fato de mergulho para o proteger dos dentes dos eventuais predadores naquelas águas. Não tinha escolha. Não podia desobedecer a uma ordem do Doutor. O preço a pagar seria pior do que aquilo que de mais horrível pudesse existir nas profundezas do pântano.

Com os dedos bem cravados nas bordas da prancha de ataque motorizada, deixou que as hélices silenciosas continuassem a arrastá-lo na direção da margem oposta do lago. Encontrava-se equipado com um LAR V Draeger UBA, o dispositivo de mergulho usado pelos SEAL em operações clandestinas em águas rasas. Ao contrário das botijas de oxigénio convencionais, o sistema de respiração em circuito fechado era colocado ao peito e não produzia as habituais bolhas de ar, o que tornava a presença do mergulhador indetetável. A última peça de equipamento, uma máscara de visão noturna, oferecia-lha a visibilidade necessária para a travessia.

Ainda assim, a escuridão era claustrofóbica. Não distinguia nada a mais de dez metros de distância. De vez em quando, socorria-se de um pequeno espelho para espreitar à superfície e certificar-se de que mantinha o rumo certo.

Os dois companheiros de missão seguiam atrás dele, igualmente equipados a rigor.

Jacques ergueu o pequeno periscópio pela última vez. As duas jangadas dos rangers encontravam-se diretamente em frente, a cerca de trinta metros.

Na floresta, o brilho da fogueira do acampamento era perfeitamente visível, assim como as silhuetas que ainda se moviam de um lado para o outro, apesar da hora tardia. Satisfeito, fez sinal para os companheiros avançarem na direção das jangadas. Ele ficaria mais atrás, a vigiar.

O trio avançou devagar. As jangadas flutuavam em águas com um metro de profundidade, presas à margem com uma corda. Jacques e os companheiros precisavam de ter muito cuidado.

Determinados, os homens convergiram para os alvos. Jacques manteve-se vigilante, espreitando acima e abaixo da linha de água. Os dois companheiros aguardaram em posição, escondidos na sombra das embarcações. Jacques estudou a linha de árvores à procura de rangers em patrulha. Aguardou cinco minutos e depois fez sinal aos companheiros.

Regaram as jangadas com querosene. Assim que terminaram, ergueram os polegares.

Jacques continuou a observar a floresta. Tudo indicava que ninguém reparara no que estavam a fazer. Esperou mais um minuto e fez o derradeiro sinal aos homens, deslizando a mão aberta em frente ao pescoço.

Os companheiros acenderam os isqueiros. As chamas espalharam-se rapidamente pelas embarcações ensopadas em querosene.

Os homens não perderam tempo: agarraram nas pranchas motorizadas e deslizaram em direção a Jacques, que deu meia-volta e os conduziu para um ponto específico na margem, a quinhentos metros do acampamento inimigo.

Olhou por cima do ombro à medida que se afastava. Viu umas figuras correrem da floresta, de armas em punho, recortadas pelo brilho das chamas. Mesmo debaixo de água, ouvia os gritos de alarme abafados.

O plano decorrera sem incidentes. O Doutor sabia o que estava a fazer. Depois do ataque dos gafanhotos, qualquer fogo noturno seria suficiente para pôr o inimigo em alvoroço. Era bastante provável que abandonassem a área de imediato.

Em todo o caso, o Doutor não corria riscos desnecessários. Jacques guiou os homens para os baixios, onde se ergueram lentamente do lago a escorrerem água. Cuspiram os reguladores e desfizeram-se das barbatanas. A segunda parte da missão tinha como objetivo assegurarem-se de que os outros se punham realmente em fuga.

Aliviado por deixar a água, Jacques suspirou mal pisou a margem. Tocou no que restava do nariz, como que a certificar-se de que ainda o tinha. A seguir, sacou de uns binóculos de visão noturna e olhou na direção do acampamento inimigo. Calculou que o Doutor estivesse a fazer o mesmo. Os companheiros sussurravam nas suas costas, ainda a recuperarem o fôlego e entusiasmados com o êxito da missão. Jacques ignorou-os e continuou a estudar o adversário.

Recortadas no brilho verde das lentes, as silhuetas de dois homens — rangers, pela forma como seguravam as armas — afastaram-se das chamas e gritaram na direção da floresta. O grupo preparava-se para partir. Acenderam-se luzes entre as árvores. Lanternas. Havia atividade em todo o acampamento. Lentamente, as luzes juntaram-se como pirilampos longe do fogo. Marcharam em fila em direção à ravina mais profunda, subindo o desfiladeiro entre duas plataformas.

Jacques sorriu. O plano do Doutor resultara.

Ainda a espreitar pelos binóculos, pegou no rádio.

— Missão cumprida — disse. — Os coelhos estão a fugir.

— Entendido. — Era o Doutor. — As canoas vão a caminho. Encontro no acampamento deles dentro de duas horas. Terminado.

Jacques guardou o rádio. Uma vez mais, a perseguição estava lançada.

Virou-se para partilhar as boas notícias, mas não encontrou os companheiros. Agachou-se instintivamente e sussurrou os nomes deles:

— Manuel! Roberto!

Não houve resposta.

A margem estava escura, e a floresta ainda mais. Tornou a colocar os óculos de visão noturna. A linha de árvores tornou-se nítida, mas a densa vegetação não permitia ver grande coisa. Deu um passo atrás, o calcanhar descalço a tocar na água.

Ficou paralisado perante o terror que pressentiu em frente e atrás dele.

Apercebeu-se de movimento através das lentes e, por uma fração de segundo, pareceu-lhe que as sombras formavam uma figura humana que o observava a uns dez metros de distância. Piscou os olhos e a figura desapareceu, mas agora a selva parecia mover-se na sua direção.

Continuou a recuar, colocando desde logo o regulador na boca.

Uma sombra separou-se da linha de árvores e avançou pela margem lamacenta. Enorme, monstruosa...

Jacques gritou, mas o regulador enchia-lhe a boca e não se ouviu mais do que um gorgolejo. Outras sombras avançaram. Uma velha oração quilombola veio-lhe ao pensamento. Por detrás do medo de águas escuras e de piranhas encontrava-se outro mais básico: o medo de ser devorado vivo.

Mergulhou de costas no lago, virando-se para fugir.

Mas as sombras foram mais rápidas.

23h51

Nate marchava na traseira do grupo com uma lanterna presa no cano da caçadeira. Os únicos que seguiam mais atrás eram a soldado Carrera e o cabo Kostos. Todos tinham lanternas para perscrutar a escuridão em todas as direções e, embora fosse noite, avançavam a bom ritmo, tentando afastar-se o mais possível de quem incendiara as jangadas.

O plano, de acordo com o capitão Waxman, era deslocarem-se para um local mais defensável. Com o pântano de um lado e a selva do outro, o acampamento não era a melhor solução para esperarem o novo ataque que os fogos desencadeariam. Por aquela altura, ninguém era otimista a ponto de acreditar que isso não iria acontecer.

Sempre previdentes, os rangers tinham uma alternativa na manga. O cabo Warczak avistara umas grutas nos penhascos, e era para lá que se dirigiam. As grutas constituíam um abrigo e uma posição defensável.

Nate continuou a seguir os outros. Carrera marchava agora a seu lado. Carregava uma arma estranha, cujo cano tinha a forma de uma pá. Em bom rigor, era como se alguém tivesse montado um aspirador no cabo de uma espingarda. A ranger mantinha o invulgar objeto apontado na direção da selva.

— Que arma é essa? — perguntou Nate.

— Perdemos quase todas as M16 no pântano — respondeu ela sem desviar os olhos da floresta. — Isto é um protótipo Bailey para combate na selva. — Premiu uma patilha e um feixe de laser perfurou a escuridão. Olhou por cima do ombro para o sargento Kostos.

— Posso demonstrar?

— Teste de fogo! — berrou o sargento para avisar os outros. — Protótipo Bailey!

Carrera ergueu a arma e procurou um alvo. Centrou o laser no tronco de uma árvore jovem a cerca de vinte metros de distância.

— Aponte a lanterna — disse para Nate.

Nate anuiu e iluminou a árvore. Os outros viraram-se para ver.

Carrera estabilizou a arma e premiu o gatilho. Não se ouviu uma explosão, apenas um assobio agudo e um clarão prateado, seguido de um som distinto de madeira a rachar. A árvore tombou para trás, cortada ao meio. Mais adiante, uma enorme mafumeira tremeu com o impacto de qualquer coisa a atingir o seu tronco robusto. Nate apontou a lanterna para a árvore de grande porte. Havia qualquer coisa espetada no tronco.

Carrera acenou com a cabeça na direção do alvo.

— Lâminas discais de sete centímetros — explicou. — Como as estrelas dos ninjas. São perfeitas para o combate na selva. Em fogo contínuo, esta arma consegue arrasar toda esta vegetação à nossa volta.

— E tudo o que encontrar pelo caminho — acrescentou Kostos.

O sargento mandou o grupo avançar. Nate lançou um olhar de respeito à estranha arma.

Continuaram a avançar pela selva densa na base do desfiladeiro. Warczak e o capitão Waxman conduziam-nos mais ou menos paralelos ao rio que desaguava no pântano, mas mantinham uma distância razoável da água, não fosse o diabo tecê-las. Após meia hora de caminhada, Warczak virou para sul, em direção aos penhascos vermelhos.

Por enquanto, não havia sinais de que estivessem a ser seguidos, mas Nate permaneceu alerta. A selva começou finalmente a abrir. Mais espaçadas, as copas das árvores permitiam vislumbrar a Lua e as estrelas. Adiante, o mundo terminava numa parede de rocha rodeada de pedregulhos e pedras soltas.

No cimo da ravina inclinada, a parede de rocha exibia múltiplas cavernas e reentrâncias.

— Fiquem aqui — avisou Waxman, mantendo o grupo escondido na vegetação. Fez sinal para Warczak seguir à frente.

O cabo apagou a lanterna, colocou uns óculos de visão noturna e mergulhou nas sombras da ravina com a M16, desaparecendo quase instantaneamente.

Nate agachou-se. Atrás dele, os dois rangers assumiram posições defensivas, vigiando a retaguarda. Manteve a caçadeira a postos. Quase todos os companheiros estavam armados. Olin, Zane e Frank tinham pistolas, até Kelly. Tor-tor dispunha das armas naturais, dentes e garras. Apenas Kouwe e Anna continuavam desarmados.

O professor aproximou-se de Nate.

— Não gosto disto.

— Das cavernas?

— Não... da situação.

— Como assim?

Kouwe lançou um olhar na direção do pântano. As jangadas ainda ardiam à distância.

— Senti o cheiro de querosene naquelas chamas.

— E então? Podia ser copal. O cheiro é idêntico e não falta por aqui.

Kouwe coçou o queixo.

— Não sei. O fogo que atraiu os gafanhotos foi uma coisa elaborada, com a forma do símbolo dos Ban-ali. Isto é diferente.

— Sim, mas desta vez estávamos atentos e tiveram de ser rápidos. Se calhar, foi o melhor que conseguiram fazer.

O professor fitou Nate.

— Acho que não foram os índios.

— Quem mais poderia ser?

— Quem nos tem seguido desde o início.

Nate virou-se.

— Que raio quer dizer com isso?

Kouwe inclinou-se e baixou o tom de voz.

— As pessoas que fizeram e pegaram fogo ao símbolo aproximaram-se do acampamento em plena luz do dia. Não deixaram vestígios da sua passagem. Um único ramo partido. Isso requer um extraordinário nível de perícia. Eu próprio não conseguiria fazê-lo.

Nate começou a perceber o sentido das palavras do velho amigo.

— E quem anda a seguir-nos é muito mais desleixado...

Kouwe acenou com a cabeça na direção do pântano.

— Como no caso das jangadas.

Nate lembrou-se do episódio do dia anterior, o misterioso reflexo que avistara no cimo de uma árvore.

— O que está a sugerir?

— Os Ban-ali não são a única ameaça que enfrentamos. O que se encontra adiante, seja uma nova droga regenerativa ou a cura para esta doença, pode valer biliões. Não tenho dúvidas de que alguém estará disposto a fazer tudo o que for preciso para deitar a mão a esse tesouro.

Nate franziu o sobrolho.

— E acredita que essa pessoa pegou fogo às jangadas. Porquê?

— Para semear o pânico e obrigar-nos a fugir. Tal como aconteceu, aliás. Provavelmente, querem impedir-nos de receber reforços. Acho que estão a usar-nos como escudo humano contra os predadores convocados pelos Ban-ali. Carne para canhão, por assim dizer. Vão continuar a usar-nos até não restar nenhum de nós, ou até alcançarmos os Ban-ali. Depois entram em cena e reclamam o prémio.

Nate fitou o professor.

— Porque não disse nada? Antes de fugirmos, por exemplo?

Kouwe não respondeu, mas o olhar que lançou a Nate fez com que a resposta surgisse na sua mente.

— Temos um traidor entre nós — murmurou Nate. — Alguém tem ajudado os nossos perseguidores.

Kouwe anuiu.

— Parece-me muito conveniente que o equipamento de comunicação tenha avariado nesta altura, quando nos encontramos tão perto do território dos Ban-ali. Para não falar das falsas coordenadas que foram enviadas em relação à nossa posição atual.

— Para ficarmos impossibilitados de receber ajuda...

— Exato.

Nate olhou em volta para os companheiros escondidos na densa vegetação.

— Mas quem poderá ser o traidor?

Kouwe encolheu os ombros.

— Não sei. A primeira aposta seria o Olin. O equipamento é responsabilidade dele. Não lhe seria difícil fingir uma avaria. Por outro lado, o Zane e a Anna têm estado muitas vezes junto do equipamento quando ele não está por perto. E não podemos esquecer os O’Brien, claro. É certo e sabido que a CIA costuma jogar em vários lados, desde que isso lhe sirva para conseguir os objetivos a que se propõe. Por fim, temos os rangers...

— Não pode estar a falar a sério.

— Quase toda a gente tem um preço, Nate. Os rangers têm profundos conhecimentos em matéria de comunicações.

Nate virou-se.

— Resta-nos o Manny em quem confiar.

— Será?

— Por favor, professor. O Manny? Ele é nosso amigo.

— Um amigo que trabalha para o Governo brasileiro. Ou tens dúvidas de que o Governo brasileiro não teria interesse em reclamar um prémio destes? Uma descoberta médica desta magnitude teria um impacto significativo na economia do país.

Nate sentiu-se agoniado. Será que o professor tem razão? Haverá alguém em quem possamos confiar?

Ia para responder quando um grito rompeu o silêncio da noite. Algo grande foi atirado pelo ar. Os companheiros desviaram-se, bem como Nate, arrastando o professor consigo.

O objeto grande caiu no meio do grupo. As lanternas acenderam-se e os feixes convergiram para a figura no chão.

Anna gritou.

Debaixo das luzes encontrava-se o corpo estropiado do cabo Warczak, que ergueu um braço, como se estivesse a afogar-se numa poça do próprio sangue. Tentou gritar outra vez, mas a boca não produziu qualquer som.

Nate ficou a olhar para o ranger, paralisado. Não conseguia desviar os olhos daquela visão. Era uma cena tão improvável que desafiava a realidade.

Da cintura para baixo, o corpo do cabo desaparecera. Fora cortado ao meio.

— Armas a postos! — berrou Waxman, desfazendo o torpor que tomara conta do grupo.

Nate colocou um joelho no chão e ergueu a caçadeira. Kelly e Kouwe debruçaram-se para ajudar o cabo, mas era um gesto inútil. O homem estava morto.

Nate apontou a arma para a escuridão. Sombras moviam-se por entre as árvores, aparecendo e desaparecendo na dança das luzes das lanternas. Nate sabia que não se tratava de uma ilusão. As sombras convergiam na direção do grupo encurralado.

Um ranger disparou um foguete sinalizador. O projétil descreveu um arco vermelho no céu noturno e explodiu com um clarão de magnésio que iluminou a selva com um brilho prateado. Os seres que davam forma às sombras detiveram-se, surpreendidos pela claridade repentina.

Nate deu consigo a olhar para os olhos de um monstro apanhado pelo brilho do foguete. Estava agachado no cimo de um penedo na base da ravina, um animal enorme, do tamanho de um touro, porém elegante e suave. Um felino. Estudou Nate com uns olhos negros e frios. Outros iguais espalhavam-se pela selva e pela base da ravina, cercando-os. Eram pelo menos vinte.

— Jaguares — murmurou Manny, atónito. — Panteras-negras.

Nate reconheceu as semelhanças com Tor-tor, mas aqueles animais eram três vezes maiores, de tamanho pré-histórico, cada um pesando meia tonelada.

— Estão em toda a parte — disse Carrera.

Nas palavras da ranger, Nate ouviu o eco da última mensagem enviada pelo pai: não aguentamos muito tempo... Meu Deus, estão em toda a parte! Teria sido aquele o destino do pai?

Por um segundo, ninguém ousou mexer-se. Nate susteve a respiração, rezando para que os predadores recuassem, intimidados pelo foguete sinalizador. Outro ranger pareceu ler-lhe os pensamentos e disparou um segundo sinalizador.

— Não se mexam! — avisou Waxman.

O impasse prolongou-se. Os jaguares não davam mostras de querer recuar.

— Sargento — disse o capitão. — Ao meu sinal, atire um par de granadas na direção da ravina. Os restantes estejam prontos para correr para a caverna do meio.

Nate olhou para a caverna na parede rochosa. Se conseguissem alcançá-la, só podiam ser atacados de uma direção. Era um ponto defensável, e provavelmente a única hipótese de sobreviverem.

— Carrera, use a Bailey para...

O disparo de uma pistola cortou a palavra ao capitão. Mais ao lado, Zane cambaleou para trás, surpreendido pelo recuo da arma.

Um dos jaguares rugiu e saltou enfurecido, provocando uma resposta nos outros, que avançaram para o grupo.

— Agora! — gritou Waxman.

Kostos colocou um joelho no chão, ergueu a M16 na direção dos penhascos e disparou. Carrera virou-se com a sua arma e, disparando da altura da cintura, varreu a retaguarda com uma chuva de lâminas. Os discos metálicos ceifaram tudo o que encontraram pela frente.

Um dos jaguares foi apanhado em pleno salto. Uma lâmina rasgou-lhe a barriga desprotegida e este caiu no chão a rugir e a contorcer-se.

Os sons guturais do animal foram abafados pelas explosões das granadas de Kostos. Os estrondos ensurdecedores ressoaram nos penhascos, lançando pedaços de rocha pelos ares e nuvens de poeira.

Disparavam agora em todas as direções. Frank protegeu a irmã e o professor ajoelhados junto ao corpo do cabo Warczak. Manny estava agachado ao lado de Tor-tor. O animal tinha os olhos muito abertos, os pelos das costas eriçados. Zane e Olin encontravam-se de pé com Anna Fong. Disparavam às cegas para a escuridão.

Nate manteve a mira da caçadeira centrada no primeiro jaguar que avistara. Apesar do caos do combate, a criatura permanecia quieta no cimo do penedo. Outros, por sua vez, fugiam da zona das explosões. Outros estavam pura e simplesmente mortos.

— Vamos! — gritou Waxman, erguendo a sua voz de comando acima da confusão. — Para a caverna!

O grupo emergiu da vegetação. Correram pelo terreno pedregoso na base do penhasco. Nate manteve a caçadeira apontada ao jaguar no penedo, o dedo tenso no gatilho. Se mexeres sequer a cauda...

Waxman fez sinal para que continuassem. Kostos seguia na dianteira.

— Lá para cima! Antes que se reagrupem!

O capitão juntou-se a Carrera. Atrás deles, os jaguares convergiam para a ravina. Alguns contornavam ou cheiravam os corpos dos companheiros mortos. Todos pareciam ter-se tornado mais cuidadosos.

Nate passou pelo jaguar no penedo. Apenas os olhos do animal o acompanharam. Nate calculava que fosse o líder do grupo. Por detrás do olhar frio, conseguia pressentir a criatura a estudar o grupo de intrusos nos seus domínios, avaliando cada um deles.

A fim de poupar munições, Carrera mudara o modo de disparo automático para individual. Disparou para um jaguar que se aproximara demasiado, mas falhou o tiro. O disco acertou na orelha do animal e voou na direção da selva. O jaguar agachou-se a rugir de dor e de raiva.

— Vamos! — gritou Waxman.

A caverna encontrava-se agora à vista de todos. O passo apressado do grupo converteu-se numa corrida de salve-se quem puder. Kostos continuou a liderar o caminho. Ergueu a pistola e disparou para a abertura na parede. Um traço brilhante estendeu-se do cano da arma e explodiu num clarão de luz no interior da caverna.

Um sinalizador!

A gruta profunda ficou iluminada de ponta a ponta.

— Desimpedido! — gritou Kostos. — Mexam-se!

Olin, Zane e Anna entraram primeiro. O sargento manteve-se à entrada com a M16, a acenar com o braço.

— Vamos! Vamos!

Frank empurrou Kelly, forçando-a a correr mais depressa. Kouwe seguia ao seu lado.

Enquanto os sinalizadores se extinguiam no céu, Nate tomou posição no outro lado da entrada com a caçadeira em punho.

Manny e Tor-tor também se encontravam já perto da caverna, seguidos por Waxman e Carrera.

Vamos conseguir, pensou Nate.

Então, um jaguar saltou das sombras e aterrou num penedo ao lado dos últimos dois rangers. Carrera baixou-se e rodou a arma na direção do animal, porém, antes que conseguisse premir o gatilho, uma pata gigantesca atingiu o capitão no peito.

Waxman foi levantado no ar, com as garras do animal cravadas no colete tático e no peito. O capitão gritou e ergueu a M16. Disparou e atingiu o jaguar no ombro. O animal rebolou para trás, arrastando consigo o militar, que voou por cima do penedo.

Carrera levantou-se e correu para ajudar o capitão. Nate ouviu os disparos da arma no outro lado do penedo. Dois segundos depois, Carrera surgiu de novo. Atrás dela vinham dois jaguares. Ambos os animais sangravam com discos metálicos cravados na pelagem. Carrera lutava com o carregador da arma. Estava sem munições.

Nate correu para ajudá-la. Ao chegar perto dela, estendeu o braço, colocando a caçadeira a uns trinta centímetros do focinho arreganhado de um dos animais. Premiu o gatilho. A descarga de chumbos arrancou a carne e os olhos do felino. A besta caiu para trás a rugir de dor.

Carrera sacou da pistola de 9 mm. Disparou sobre o outro animal até esvaziar o carregador. O jaguar ficou para trás e acabou por cair.

Os dois correram para a caverna.

O capitão surgiu do outro lado do penedo. Rastejava com um dos braços arrancados, o rosto totalmente desfigurado.

— Pensei que estava morto — disse Carrera, horrorizada.

O capitão rastejou cerca de um metro. Uma pata estendeu-se e cravou-lhe as garras na perna, puxando-o de novo para as sombras. O militar gritou e tentou fincar os dedos nas pedras soltas, mas em vão.

Ouviu-se um disparo e a cabeça foi arremessada para trás, depois para a frente, batendo com violência no chão. O capitão estava morto. Nate desviou o olhar para a caverna e viu Kostos agachado com a M16, ainda a espreitar pela mira telescópica. O sargento baixou a arma. O rosto era uma máscara de dor e culpa.

— Para dentro! — gritou. — Rápido!

Os companheiros permaneciam junto à entrada.

Nate e Carrera correram na direção do grupo.

Frank e Kostos encostaram-se um de cada lado da entrada com as armas em riste, as silhuetas recortadas pelo brilho do sinalizador que se extinguia no interior.

Frank acenou-lhes.

— Rápido!

De onde se encontrava, Nate viu uma sombra mover-se à esquerda da entrada.

— Cuidado! — gritou.

Era o jaguar maior, aquele que avistara primeiro.

Passou a correr em frente à entrada, atirando Frank pelo ar e arremessando Kostos contra a parede. Frank caiu no chão, desamparado. O jaguar continuou a correr e desapareceu nas sombras.

— Frank! — gritou Kelly.

Nate correu com Carrera. Kostos levantou-se a ofegar e com a mão junto ao peito.

— Partiu-me a porra das costelas...

— Ajudem-me! — berrou Kelly.

Foi quando Nate se apercebeu da horrível visão junto à entrada da caverna.

Frank estava estendido no cascalho. O irmão de Kelly não fora apenas atirado pelo ar. As duas pernas tinham sido arrancadas pela altura dos joelhos. Jatos de sangue tingiam as pedras. Num piscar de olhos, o jaguar gigante cortara-lhe as pernas com a eficiência de uma guilhotina.

Kelly deixou-se cair ao lado do irmão. Olin avançou e arrastou o homem em sofrimento para o interior da caverna. Kelly acompanhou-os, retirando de imediato os torniquetes da mochila. Embalagens de morfina caíram no chão. Nate apanhou-as.

Alguém disparou outro tiro, a que se seguiu o respetivo clarão. Mais um sinalizador. Nate estendeu a mão com as embalagens de morfina, sentindo-se completamente impotente e atordoado.

Kouwe pegou nas embalagens.

— Não os deixes entrar — disse-lhe, acenando com a cabeça para a entrada da caverna.

Olin e Kelly debruçaram-se sobre a figura de Frank. As lágrimas caíam copiosas do rosto de Kelly, mas a sua expressão era de absoluta determinação. Recusava-se a perder o irmão.

Nate deu meia-volta com a caçadeira e juntou-se a Kostos e Carrera na entrada da caverna. O último foguete revelava as sombras que ainda se moviam por entre as árvores na selva. A ravina cheia de penedos oferecia a localização perfeita para os jaguares se esconderem.

Manny juntou-se aos três de pistola em punho. Tor-tor cheirou o sangue de Frank na rocha e rugiu.

— Contei pelo menos quinze — disse Carrera, com o rosto meio coberto pelos óculos de visão noturna. — Não tencionam ir-se embora.

Kostos cerrou os maxilares.

— Se investirem, não vamos conseguir pará-los a todos. Resta-nos um lança-granadas, duas M16 e meia dúzia de pistolas.

— E a minha caçadeira — acrescentou Nate.

— Coloquei um carregador novo na Bailey — disse Carrera. — Mas é o último.

Manny agachou-se com a pistola.

— Existem alguns ramos e folhas lá atrás. Podemos usá-los para acender uma fogueira aqui na entrada.

— Faça isso — disse Kostos.

Assim que Manny virou costas, ouviu-se um poderoso rugido na ravina. Ficaram todos parados. À luz do foguete, uma forma gigantesca revelou-se alguns metros mais abaixo. Nate e os outros ergueram as armas.

Nate reconheceu o jaguar em questão.

— O líder do grupo...

— Uma fêmea — murmurou Manny.

O animal permaneceu à vista de todos, estudando-os, desafiando-os. Mais atrás, a selva agitou-se com aqueles corpos esguios e musculados.

— O que fazemos? — perguntou Carrera.

— A maldita está a tentar tirar-nos do sério — respondeu Kostos, espreitando pela mira telescópica.

— Não dispare — avisou Nate. — Se o fizer, o grupo inteiro vai atacar-nos.

— O Nate tem razão — disse Manny. — Estão sedentos de sangue. Não vale a pena provocá-los. Espere ao menos que acenda a fogueira.

A enorme fêmea pareceu ouvir as palavras e rugiu. Ato contínuo, saltou para a frente e correu pela ravina acima a uma velocidade incrível.

Os rangers abriram fogo, mas a besta era demasiado rápida, um fantasma a deslizar com uma agilidade sobrenatural. As balas atingiram as pedras, assobiando e soltando faíscas. Nenhuma acertou no alvo. Era como se o animal fosse uma aparição. Um dos discos de Carrera ricocheteou num penedo e voou pela ravina abaixo.

Nate colocou o joelho no chão e fez pontaria com a caçadeira.

— Aqui, gatinha... vem... — murmurou para si mesmo.

Carrera reposicionou-se, porém, antes que pudesse disparar outro tiro, foi arremessada por Tor-tor contra a parede. O jaguar saltara do lado do dono e corria ao encontro da besta.

— Não, Tor-tor ! — gritou Manny.

O jaguar mais pequeno avançou uns metros e parou, marcando a sua posição e bloqueando o caminho à enorme fêmea. Soltou um rugido e agachou-se com as patas traseiras dobradas e a cauda a abanar ameaçadoramente, pronto a atacar. Mostrou as armas ao oponente: as longas presas amareladas e as garras afiadas.

A fêmea gigante continuou a correr, preparada para o abalroar, mas deteve-se no último segundo e ficou frente a frente com Tor-tor. Assumiu a mesma posição do jaguar mais pequeno, rugindo agachada com as patas dobradas e a cauda a abanar. Os dois felinos ficaram assim uns segundos, a desafiarem-se um ao outro.

Kostos espreitou pela mira.

— Estás morta, cabra.

— Espere! — disse Manny.

Os dois felinos começaram a andar às voltas, afastados por menos de um metro. A dada altura, a fêmea gigante encontrava-se de costas voltadas para a caverna. Nate conseguia perceber o esforço que os rangers faziam para não abrirem fogo.

— O que estão a fazer? — perguntou Carrera.

— Está confusa — respondeu Manny. — Não consegue perceber por que razão o Tor-tor nos protege. Pode ser mais pequeno que ela, mas é da mesma espécie.

Os dois felinos pareciam agora mais calmos e pararam de rugir. Aproximaram-se cautelosamente um do outro, os narizes quase tocando-se. Partilhando algum tipo de comunicação silenciosa, continuaram às voltas. A pelagem de ambos deixou de estar eriçada e ouviu-se um fungar suave quando a fêmea cheirou o estranho e pequeno adversário.

Os animais deram por terminada a sua dança e regressaram às posições originais. Tor-tor agachou-se entre a gruta e a fêmea gigante.

Ela soltou um derradeiro rugido, esticou-se e roçou o focinho na face de Tor-tor, selando um qualquer tipo de entendimento, umas tréguas. Deu meia-volta e desceu a ravina.

Tor-tor endireitou-se e os olhos dourados brilharam. Com uma descontração tipicamente felina, lambeu e alisou uma secção da pelagem desalinhada, para depois se encaminhar em passo ligeiro na direção da caverna, como se apenas tivesse saído para dar um passeio.

Carrera baixou a arma e tirou os óculos de visão noturna.

— Estão a ir-se embora — disse, espantada.

Manny abraçou o jaguar.

— Meu grande idiota — murmurou.

— Alguém quer explicar-me o que acabou de acontecer? — perguntou Kostos.

— O Tor-tor é um jovem macho prestes a atingir a maturidade sexual — disse Manny. — Embora muito maior, a fêmea aparenta ter a mesma idade. Com toda esta agitação, a tensão estava ao rubro, incluindo a sexual. Pelo comportamento exibido, além de desafiar a fêmea, o Tor-tor estava também a tentar impressioná-la enquanto macho.

Kostos franziu o sobrolho.

— Quer dizer que o pequenote tentou a sua sorte?

— E saiu-se bem — retorquiu Manny, orgulhoso, dando uma palmadinha no lombo do animal. — O facto de ter desafiado a fêmea deixou-a convencida de que ele é o líder do nosso grupo. Um parceiro à altura dela.

— E agora? — perguntou Carrera. — Eles recuaram, mas não se foram embora. Na verdade, parecem estar a reagrupar-se no fundo da ravina, bloqueando-nos o caminho de volta para o pântano.

Manny abanou a cabeça.

— Não sei o que estão a fazer, mas o Tor-tor conseguiu-nos algum tempo. A minha sugestão é que o usemos da melhor maneira, acendendo uma fogueira e mantendo-nos alerta.

Nate observou os jaguares ao fundo.

O que estão eles a fazer?

— Temos companhia! — avisou Carrera. A ranger apontou para o lado oposto de onde estavam os animais.

Nate olhou nessa direção, mas não viu nada exceto a vegetação exuberante da selva e as rochas.

— O que...

Foi então que reparou. Uma figura solitária surgiu da vegetação e avançou até ficar totalmente exposta no fundo pedregoso da ravina. Tratava-se de uma figura humana. Um homem. À semelhança dos jaguares, todo ele era uma sombra da cabeça aos pés. Ergueu o braço, depois caminhou na direção do coração do desfiladeiro, mantendo-se à vista do grupo. Nate e os outros ficaram a observá-lo, boquiabertos.

— Deve ser um Ban-ali — murmurou Nate.

O homem parou e olhou por cima do ombro, como se estivesse à espera.

— Ele quer que o sigamos? — perguntou Manny.

— E os jaguares também — disse Carrera —, visto que se instalaram lá em baixo.

O homem continuou parado, à espera.

— O que fazemos? — perguntou a ranger.

— Vamos atrás dele — respondeu Nate. — Foi para isso que viemos. Para encontrarmos os Ban-ali. Se calhar, os jaguares foram o último teste.

— Ou pode ser outra armadilha — lembrou Kostos.

— Acho que não temos escolha — disse Carrera. — Algo me diz que, se não formos, os jaguares acabam connosco.

Nate olhou por cima do ombro. Nas profundezas da caverna, Kelly, Kouwe e os outros continuavam debruçados sobre Frank, que agora se encontrava despido até aos boxers. O irmão de Kelly parecia estar inconsciente ou a dormir um sono induzido por morfina. De pé, Anna segurava um saco de soro. Kelly aplicara uma ligadura numa das pernas amputadas e fechava uma artéria na outra. Kouwe estava ajoelhado ao lado dela, com mais ligaduras prontas para aplicar. A toda a volta, invólucros vazios de seringas e embalagens de medicamentos cobriam o chão de pedra.

— Vou ver se o Frank pode ser deslocado.

— Não deixamos ninguém para trás — disse Kostos.

Nate anuiu, satisfeito por ouvir aquelas palavras. Foi ao encontro dos outros.

— Como é que ele está? — perguntou a Kouwe.

— Perdeu muito sangue. Assim que esteja estabilizado, a Kelly quer fazer-lhe uma transfusão.

Nate suspirou.

— Se calhar, vamos ter de tirá-lo daqui.

— O quê? — perguntou Kelly, terminando o último ponto da sutura. — O meu irmão não pode ser movido! — O pânico, a exaustão e a incredulidade endureceram-lhe o tom de voz.

Nate ajoelhou-se. Kelly e Kouwe começaram a aplicar a ligadura. Frank gemeu enquanto a perna era ligada.

— Fomos contactados pelos Ban-ali — explicou Nate. — Acho que nos convidaram para irmos à aldeia deles, e que o convite não se torna a repetir.

Kouwe anuiu.

— Devemos ter ultrapassado qualquer tipo de desafio final — disse o professor, validando a anterior conclusão de Nate. — Temos de continuar.

— Mas o Frank... — disse Kelly.

Kouwe apertou-lhe suavemente a mão.

— Posso construir uma maca com bambu e folhas de palma. Daquilo que sei desta tribo, se não fizermos isto, o seu irmão será morto. Todos nós seremos mortos.

Nate observou a expressão aterrorizada de Kelly, a incapacidade de continuar a lidar com a situação. Primeiro a filha, agora o irmão...

Colocou-lhe um braço em volta dos ombros.

— Eu certifico-me de que o Frank chega ao nosso destino em segurança. E quando lá estivermos, o Olin arranjará maneira de pôr o equipamento a funcionar. — Nate desviou o olhar para o russo.

Olin acenou vigorosamente com a cabeça.

— Pelo menos consigo resolver o problema do sinal de GPS.

— E assim que isso for feito, vamos receber ajuda. O Frank será evacuado e vai ficar bem. Todos nós.

Kelly encostou-se mais a ele.

— Promete? — perguntou, com as lágrimas nos olhos.

Nate abraçou-a.

— Claro que sim — respondeu. Porém, ao olhar para o rosto pálido e as ligaduras ensanguentadas de Frank, rezou para que as suas palavras não fossem mentira.

Kelly endireitou as costas. Parecia pressentir as dúvidas na mente de Nate, mas a voz ganhou uma força renovada quando falou:

— Vamos.

Nate ajudou-a a levantar-se.

Prepararam-se rapidamente para partir. Kostos e Manny desceram até à selva para recolherem material para a construção da maca, enquanto Kelly e Kouwe estabilizavam Frank o melhor que podiam. Não tardou para que estivessem prontos para abandonar a caverna.

Nate juntou-se a Carrera na entrada.

— O nosso amigo continua no mesmo sítio — disse a ranger.

À distância, a figura solitária permanecia de pé, imóvel.

Kostos lançou um último olhar ao grupo, certificando-se de que tudo estava em ordem.

— Mantenham-se juntos! E alertas!

Nate e Carrera separaram-se. Os companheiros agruparam-se e o sargento tomou a dianteira. Mais atrás, Manny e Olin carregavam a maca, onde Frank fora amarrado para sua segurança. Os homens do grupo fariam turnos a transportá-lo.

Kelly seguiu atrás da maca. Nate e Carrera fecharam a formação.

Assim que atravessaram a entrada da caverna, a ponta da bota de Nate tocou num objeto caído entre as pedras no chão. Nate baixou-se e apanhou-o. Não podemos deixar isto para trás.

Sacudiu a poeira do objeto e avançou até ficar a par de Manny. Depois, sacudindo-o uma última vez, colocou o boné dos Red Sox na cabeça de Frank.

Ao virar-se para regressar à sua posição original, trocou um olhar com Kelly. Ela esboçou um sorriso triste, agradecendo-lhe em silêncio. Nate anuiu e continuou a andar.

Ao lado de Carrera, observou a selva escura e a figura solitária à distância.

E agora? O que os esperava no fim do caminho?


14

HABITAÇÃO

16 de agosto, 04h13

Selva amazónica

Na canoa, Louis aguardava notícias dos batedores. Faltavam poucas horas para o nascer do dia. As estrelas brilhavam no céu límpido, mas a Lua descera no céu e deixara o pântano mergulhado em escuridão. Pegando nos óculos de visão noturna, procurou novamente sinais dos homens.

Nada.

Franziu o sobrolho. Ali à espera, teve a nítida sensação de que o plano se desmoronava à volta dele. O que estará a acontecer? Tal como tinha idealizado, conseguira pôr a outra equipa em fuga, mas e agora?

Por volta da meia-noite, a sua equipa atravessara o pântano nas canoas. Quando se aproximavam da margem oposta, foguetes sinalizadores iluminaram o céu junto aos penhascos. Ouviram-se disparos, que ecoaram pelo pântano.

Através dos binóculos, Louis observara o tiroteio. Os outros encontravam-se novamente debaixo de ataque, porém, a posição e a distância não permitiam distinguir quem ou o quê os atacava. As tentativas para contactar Jacques falharam todas. O tenente parecia ter desaparecido do mapa.

Em busca de respostas, Louis enviara uma segunda equipa para terra — os melhores batedores, equipados com óculos de visão noturna, para descobrirem o que se passava. O resto dos homens e ele próprio ficaram a aguardar nas canoas.

Decorridas duas horas, não havia notícias, nem sequer uma mensagem de rádio. Partilhava a canoa com Tshui e três homens. Todos observavam a margem.

Tshui foi a primeira a ver uma figura surgir da selva. Esticou o braço e Louis desviou os binóculos nessa direção. Era o líder dos batedores. O homem acenou-lhes da margem. Podiam avançar.

— Finalmente — murmurou Louis.

As canoas avançaram em conjunto. Louis foi o primeiro a desembarcar. Fez sinal para os homens montarem um perímetro defensivo e foi ao encontro do batedor.

O homem de cabelo escuro, um mercenário alemão chamado Brail, cumprimentou-o com um aceno de cabeça. Tinha pouco mais de um metro e sessenta de altura, com a cara pintada de preto e roupa escura.

— O que descobriste? — perguntou Louis.

— Jaguares — disse o batedor. Falava com um sotaque alemão cerrado. — Um grupo de quinze ou mais.

Louis anuiu, pouco surpreendido. Tinha ouvido os rugidos e os gritos.

— Mas não são jaguares comuns — prosseguiu Brail. — Autênticos monstros. Três vezes o tamanho normal. Posso mostrar-lhe o corpo de...

— Isso não é o mais importante. O que aconteceu aos outros?

Brail explicou que os restantes batedores tinham sido obrigados a avançar com extremo cuidado. Os quatro homens encontravam-se posicionados em várias árvores no desfiladeiro.

— Os jaguares deslocaram-se para o coração do desfiladeiro. Dá a ideia de que estão a empurrar a equipa inimiga. — O alemão estendeu a mão direita aberta. — E encontrámos isto num corpo mutilado.

Eram divisas de capitão.

O líder do rangers, pensou Louis.

— Porque é que os jaguares não estão a atacar os restantes?

Brail bateu com o dedo nos binóculos de visão noturna.

— Avistei uma figura humana; um índio, pelo aspeto. Parece que é quem está a conduzir o grupo neste momento.

— Um Ban-ali?

O batedor encolheu os ombros.

O que mais poderia ser?, pensou Louis, refletindo sobre esta nova informação. Não podia permitir que a equipa adversária se adiantasse tanto, sobretudo se tinham estabelecido contacto com a misteriosa tribo. O prémio encontrava-se demasiado perto para deitar tudo a perder na reta final.

Porém, havia o problema dos jaguares. Os animais encontravam-se de permeio entre a equipa de Louis e o inimigo. Teria de achar uma maneira de os eliminar discretamente, sem alertar os outros.

Estudou a floresta. O tempo de seguir nas sombras do adversário estava a chegar ao fim. Assim que soubesse onde ficava a aldeia dos Ban-ali, e quais os meios de defesa de que dispunham, podia passar à fase final do plano.

— E onde estão os jaguares neste preciso momento? Ainda no desfiladeiro?

— Por enquanto. Se houver alguma alteração, os meus homens avisam-nos. Os animais são fáceis de detetar com os infravermelhos. As assinaturas de calor são enormes.

Louis anuiu, satisfeito.

— Mais alguma ameaça digna de nota?

— Verificámos toda a área, Herr Doktor. Não apanhámos mais nada sem ser os jaguares.

Ótimo. O cenário nem era mau de todo. Por enquanto, o grupo adversário mantinha a atenção longe da sua equipa. No entanto, com o território dos Ban-ali à vista, Louis sabia que a vantagem não duraria muito tempo. Precisava de acelerar o passo, e a primeira coisa a fazer era livrar-se dos jaguares.

Virou-se e deparou-se com Tshui atrás de si, sempre tão furtiva e mortífera como um felino selvagem. Passou-lhe o dedo no rosto. Ela reagiu ao toque inclinando a cabeça. A sua amante de mil e um venenos e poções.

— Tshui, mon cher, acho que vamos ter de contar outra vez com os teus talentos.

05h44

Os ombros de Nate doíam-lhe de carregar a maca. Caminhava há duas horas seguidas. A leste, o céu começara a clarear com os tons da aurora.

— Será que falta muito? — bufou Manny, na outra ponta da maca, verbalizando a pergunta na cabeça de todos.

— Não sei — respondeu Nate, exausto. — Mas agora não há como voltar atrás.

— Pois não — lembrou Carrera, que vigiava a retaguarda com a sua estranha arma. — A não ser que alguém queira fazer parte da ementa do pequeno-almoço.

Os jaguares tinham seguido o grupo a noite inteira. A maioria não saía da selva, mas, de vez em quando, um deles irrompia da vegetação e prosseguia pela base pedregosa da ravina como uma sombra negra.

A presença constante dos animais enervava Tor-tor, que nunca baixava a guarda. Para toda a equipa, o único caminho seguro era seguirem o índio solitário. O nativo caminhava uns quatrocentos metros à frente, mas mantinha um ritmo que conseguiam acompanhar.

A exaustão, porém, fazia-se sentir. Após tantas noites mal dormidas, as reservas de energia estavam nas últimas e eles arrastavam os pés a passo de caracol, tropeçando com frequência. Apesar de tudo, por muito penoso que aquilo fosse, havia alguém que sofria mais do que todos.

Kelly nunca se separara do irmão. Verificava-lhe constantemente os sinais vitais ou ia-lhe ajustando as ligaduras ensanguentadas. O rosto pálido brilhava à luz das estrelas, revelando a expressão exausta e assustada. Quando não fazia de médica de Frank, regressava ao papel de irmã e limitava-se a segurar-lhe a mão, procurando transmitir-lhe alguma força.

A única bênção pela qual todos deviam estar gratos era a morfina que mantinha o homem estropiado adormecido, embora se ouvissem gemidos ocasionais. Quando isso acontecia, o corpo e o rosto de Kelly contraíam-se como se a dor fosse sua, o que Nate calculava ser em parte verdade, dado que parecia estar a sofrer tanto como o irmão.

A voz de Kostos fez-se ouvir na dianteira do grupo.

— Atenção aí atrás. Vamos mudar de direção.

Nate esticou o pescoço para espreitar. Tinham seguido a noite inteira pela base pedregosa entre a selva e a escarpa, e agora o índio encaminhava-se na direção de uma das muitas fendas na face rochosa. A fenda em particular estendia-se de cima a baixo, com uma largura de dois carros.

O índio deteve-se à entrada, lançou um olhar por cima do ombro e, sem dizer uma palavra, continuou a andar.

— É melhor eu ver primeiro — disse Kostos.

O ranger acelerou o passo. Levava uma lanterna fixada na M16, que manteve apontada na direção do alvo. Correu até um dos lados da entrada da fenda, encostou as costas à parede, respirou fundo e rodou o corpo, iluminando o interior. Ficou assim uns segundos, depois fez sinal com o braço.

— É uma passagem! E bastante íngreme.

O grupo foi ao encontro do ranger.

Nate ergueu o rosto. Conseguia ver as estrelas no céu, dado que a fenda se estendia até ao cimo do penhasco. O caminho era realmente íngreme, mas havia uns degraus toscos talhados na pedra.

— Tudo indica que deve haver outro desfiladeiro, ou vale, depois deste — aventou o professor Kouwe.

— Ou talvez seja um desvio, um atalho para o nível superior deste desfiladeiro — sugeriu Anna Fong.

À distância, o índio continuou a subir os degraus, pouco preocupado se o grupo tencionava segui-lo ou não. Mas a sua indiferença não era partilhada por todos. Atrás da equipa, os jaguares aproximaram-se, ameaçadores.

— Temos de tomar uma decisão — disse Carrera.

Kostos lançou um olhar desconfiado à passagem.

— Pode ser uma armadilha.

Zane deu um passo em frente.

— No meio de uma armadilha já nós estamos, sargento. Prefiro arriscar-me no desconhecido do que enfrentar outra vez o que está atrás de nós.

Era um argumento válido. As mortes de Warczak e Waxman continuavam frescas e sangrentas na memória de todos.

Kostos passou à frente de Zane.

— Vamos a isso. Mantenham-se atentos.

A largura da passagem permitia que Nate e Manny subissem lado a lado com a maca entre os dois. Tornava a subida mais fácil, ou menos impossível, pelo menos.

Olin desceu uns degraus.

— Algum de vocês quer trocar?

— Aguento mais um bocadinho — disse Manny.

— Eu também — anuiu Nate.

Continuaram a longa subida, mas, degrau a degrau, Nate e Manny começaram a ficar para trás. Kelly manteve-se junto a eles, preocupada, enquanto Carrera cobria a retaguarda.

Os joelhos, as coxas e os ombros de Nate pareciam capazes de explodir, mas continuou a pôr um pé à frente do outro.

— Não deve faltar muito — disse, mais para si do que para alguém em especial.

— Deus o ouça — retorquiu Kelly.

Manny inclinou a cabeça na direção de Frank.

— O seu irmão é forte.

— Ser forte não dá para tudo — respondeu Kelly.

— O Frank vai safar-se — assegurou Nate. — Tem o boné da sorte com ele, não tem?

Kelly suspirou.

— O meu irmão adora essa coisa velha. Sabiam que jogou como shortstop num clube satélite dos Red Sox? Na liga menor? — Kelly baixou o tom de voz. — O meu pai estava tão orgulhoso. A família toda, aliás. Falava-se que ele iria dar o salto para a liga principal. Depois aconteceu o maldito acidente de esqui. Deu-lhe cabo da carreira.

Manny ficou surpreendido ao ouvir aquilo.

— É essa a história do boné da sorte?

Kelly sorriu e passou o dedo na pala do boné.

— Durante três épocas consecutivas, o meu irmão teve a oportunidade de jogar um jogo que adorava mais que tudo. Mesmo depois do acidente, considerava-se o homem mais sortudo do mundo.

Nate fitou o boné. Não evitou sentir uma pontada de inveja. Alguma vez a sua vida fora tão simples? Talvez aquela relíquia dos Red Sox lhes trouxesse realmente sorte. Só Deus sabia até que ponto iam precisar.

Carrera interrompeu a conversa.

— Os jaguares... pararam de nos seguir.

Nate olhou para o fundo dos degraus. A enorme fêmea estava junto à entrada, a andar de um lado para o outro. Tor-tor também olhou para baixo. A fêmea fitou o jaguar por instantes e depois desapareceu.

— O vale deve ser o território deles — disse Manny. — Outra linha de defesa.

— Para proteger o quê? — perguntou Carrera.

Uma voz chamou mais acima. O sargento Kostos, que parara dez degraus antes do fim da escadaria e lhes fazia sinal para subirem.

Enquanto se reagrupavam, o céu a leste começou a clarear. No cimo da passagem abriu-se um vale de selva densa e árvores gigantes. Ouvia-se o borbulhar de um riacho. Mais longe, o rumorejar de uma cascata.

— O território dos Ban-ali — declarou o professor Kouwe.

Olin aproximou-se de Manny e Nate.

— Nós levamo-lo a partir daqui — disse, estendendo um braço para a maca.

Nate ficou surpreendido por ver Richard Zane com o russo, mas não disse nada. Em vez disso, limitou-se a entregar a maca nas mãos dos novos carregadores. Livre do peso, sentia-se cinquenta quilos mais leve. Os braços pareciam dois balões prestes a flutuar.

Fez sinal a Manny e foi ao encontro do sargento.

— O índio desapareceu — disse Kostos.

Nate olhou em volta. Nem sinal do homem.

— Não faz diferença. Agora sabemos para onde temos de ir.

— É melhor esperarmos até que o Sol esteja alto — disse o ranger.

Manny franziu o sobrolho.

— Os Ban-ali têm estado a acompanhar-nos desde que pusemos os pés na selva. Noite e dia. Com mais ou menos luz, só vamos vê-los se eles quiserem.

— Além disso — acrescentou Nate —, temos um ferido grave. Quanto mais depressa chegarmos a uma aldeia, ou a algo do género, melhores as probabilidades para o Frank. Sou a favor de não perdermos tempo.

Kostos suspirou.

— Muito bem, mas mantenham-se juntos.

O sargento endireitou-se e começou a conduzir o grupo.

A cada passo dado, o novo dia iluminava-se. Na Amazónia, o nascer do Sol era por vezes súbito, quase inesperado. No céu, as estrelas eram engolidas pela claridade crescente. A ausência de nuvens prometia um dia quente.

O grupo parou no cimo da falésia. Um trilho estreito estendia-se até à selva lá em baixo. Mas conduzia aonde, ao certo? O vale não parecia habitado. Não se viam casas nem fumo de fogueiras, não se ouviam vozes.

Antes de avançar, Kostos sacou dos binóculos.

— Merda... — murmurou.

— Viu alguma coisa? — perguntou Zane.

— Este desfiladeiro é o mesmo onde estávamos. — O sargento apontou para o lado direito. — Mas parece que esta secção está isolada da anterior pela parede rochosa.

Nate pegou nuns binóculos e apontou-os na direção indicada pelo ranger. Conseguia distinguir o curso de água que serpenteava pelo centro do vale para depois cair e desaparecer na secção inferior do desfiladeiro, a mesma que tinham percorrido a noite inteira, a casa dos jaguares monstruosos.

— Daqui não vamos a lado nenhum — disse Kostos. — Estamos encurralados.

Nate virou os binóculos na direção oposta. Havia outra cascata. Esta caía no vale de outra parede no lado mais afastado. Na verdade, o vale era todo ele cercado por paredes rochosas e pela escarpa que tinham subido.

— Isto é uma área da selva completamente isolada — percebeu Nate.

— Não gosto nada disto — disse o sargento. — A única forma de chegar aqui é por aquela passagem que subimos.

Nate baixou os binóculos no preciso instante em que o Sol despontou a leste e banhou com a sua luz a selva adiante, que resplandeceu em tons de verde. Um bando de araras-de-barriga-amarela levantou voo de uma colónia nos penhascos envoltos em neblina e passou por cima deles. Os borrifos das cascatas nas duas pontas do vale faziam com que o ar brilhasse com matizes dourados dos primeiros raios de sol.

— É como se fosse um pedaço do jardim do paraíso — murmurou Kouwe.

Com esse primeiro vislumbre de luz, o vale despertou com o canto dos pássaros e os chamamentos dos macacos. Centenas de borboletas, tão grandes como pratos, esvoaçaram por entre as árvores. Alguma coisa peluda e rápida desapareceu na vegetação. Isolado ou não, a vida arranjara uma maneira de se estabelecer naquele vale verdejante.

Quem mais viverá ali?

— O que fazemos? — perguntou Anna.

Ninguém respondeu durante uns segundos.

— Acho que não temos escolha senão continuar — disse Nate.

Kostos franziu o sobrolho.

— Vamos ver onde isto nos leva. Mas mantenham-se alerta.

O grupo desceu a pequena ladeira até ao limiar da selva. Kostos seguia na frente, acompanhado de Nate e a sua caçadeira. Os outros caminhavam logo atrás num grupo compacto. Assim que penetraram nas sombras da floresta, os odores de orquídeas e videiras em flor encheu-lhes as narinas, quase a ponto de as poderem saborear.

Porém, por muito doce que fosse o ar, em nada diminuía a tensão sentida por todos. Que segredos aguardavam adiante? Que perigos? Cada sombra era uma promessa ou uma ameaça.

Talvez por isso tenham sido necessários quinze minutos de caminhada até Nate perceber que havia algo de errado naquela floresta. Ou talvez os sentidos estivessem adormecidos pela exaustão.

Abrandou o passo e deixou cair o queixo de espanto.

Manny deu-lhe um pequeno encontrão.

— O que foi?

Franzindo a testa, Nate afastou-se uns metros do trilho.

— O que está a fazer, Rand? — perguntou Kostos.

O espanto de Nate dominava-o por completo. A ponto de o fazer esquecer o nervosismo e o medo.

— Estas árvores...

Os companheiros tinham parado e observavam-no.

— O que têm as árvores? — perguntou Manny.

Nate virou-se lentamente.

— Enquanto botânico, reconheço a maior parte destas espécies. — Estendeu o braço e começou a nomear diferentes árvores. — Mafumeira, loureiro, figueira, mogno-brasileiro, pau-rosa, palmeiras de todo o tipo. — É o tipo de árvores que esperamos encontrar na floresta tropical, mas...

— Mas o quê? — perguntou Kostos.

Nate aproximou-se de uma árvore com o tronco esguio. Tinha cerca de trinta metros de altura, com uma massa compacta de frondes no cimo, de onde pendiam gigantescas pinhas.

— Sabem o que isto é?

— Parece-me uma palmeira — respondeu o sargento. — Porquê?

— Porque não é uma palmeira. — Nate deu uma palmada no tronco. — Isto é uma Cycadeoidea.

— Uma quê?

— Uma árvore do período Cretáceo, há muito extinta. Os únicos exemplares que vi foram fósseis.

— Tem a certeza? — perguntou Anna Fong.

Nate anuiu.

— A minha tese foi baseada em paleobotânica. — Dirigiu-se a outra planta, um arbusto tipo feto com o dobro da sua altura. Cada ramo tinha quase dois metros e as folhas eram tão compridas como os seus braços. Abanou uma das folhas titânicas. — E isto é uma Lepidodendron, extinta no período Carbonífero. Mas há mais. Basta olhar em volta: Glossopteris, Lycopods, Podocarpus... e estas são apenas as que consigo identificar.

Nate apontou com o cano da caçadeira na direção de uma árvore com o tronco enrolado em forma de espiral.

— Isto, por exemplo, não faço ideia do que seja. — Fitou o grupo e ergueu os braços, visivelmente excitado. A exaustão parecia ter desaparecido por artes mágicas. — É como se estivéssemos num museu de fósseis vivos!

— Mas como é isso possível? — perguntou Zane.

— Este vale está completamente isolado do mundo, uma cápsula do tempo — respondeu Kouwe. — Quem sabe o que poderá ter aqui sobrevivido durante milhares de anos?

— Além disso, em termos geológicos, esta região remonta à era do Paleozoico — acrescentou Nate. — A bacia do Amazonas era um mar interior de água doce, antes das alterações tectónicas abrirem uma ligação ao oceano e o esvaziarem. Acho que isto é o que restou desse mundo antigo. É absolutamente espantoso!

A voz de Kelly fez-se ouvir.

— Extraordinário ou não, preciso de levar o meu irmão para um lugar seguro.

As palavras de Kelly reconduziram Nate ao presente e à situação em mãos. Acenou com a cabeça, um tanto embaraçado por ter-se deixado levar pelo entusiasmo.

Kostos aclarou a garganta.

— Vamos continuar.

O grupo seguiu atrás do sargento.

Fascinado pelo que via, Nate deixou-se ficar para trás. Estudou a vegetação em redor, mais atento à selva em si do que preocupado com as hipotéticas ameaças nas sombras. Enquanto botânico, não conseguia deixar de se sentir estupidificado pela flora exuberante: cavalinhas com caules da grossura de tubos de órgãos de igreja, fetos maiores que palmeiras, pinheiros primitivos com pinhas do tamanho de automóveis. A mistura de antigo e novo era simplesmente inacreditável, o que resultava num ecossistema nunca antes visto.

O professor Kouwe caminhava a seu lado.

— O que achas disto tudo?

Nate abanou a cabeça.

— Não sei. Já foram encontradas florestas pré-históricas no passado. Na China, por exemplo, na década de oitenta, quando descobriram uma floresta de metassequoias... ou em África, quando encontraram uma caverna com fetos raros... ou mais recentemente numa remota floresta tropical na Austrália, onde encontraram uma coleção de árvores pré-históricas, que se julgava estarem extintas.

O professor anuiu.

— A selva guarda bem os seus segredos.

À medida que avançavam, a copa das árvores tornou-se mais densa, mais alta. A luz límpida da manhã foi diminuindo até se converter num brilho esverdeado. Era como se estivessem a recuar para as primeiras horas da madrugada. Ninguém falava, visto que todos observavam a floresta. Por aquela altura, não necessitavam de um etnobotânico para perceberem que não atravessavam uma selva qualquer. O número de espécimes pré-históricos começou a superar os exemplares modernos. As árvores, os fetos, tudo era cada vez maior, com estranhas formas atiradas à mistura. Passaram por uma bromeliácea maior do que uma pequena cabana. Flores gigantescas, do tamanho de abóboras, pendiam de videiras e perfumavam o ar com um odor intenso.

Aquilo era uma estufa de proporções épicas.

Mais à frente, Kostos parou de repente. Ergueu a arma e fez sinal para todos se baixarem.

Nate agachou-se e pegou na caçadeira. Só então reparou no que sobressaltara o ranger.

Olhou para a esquerda, para a direita, até para trás. Era como se estivesse diante de uma daquelas imagens que só podiam ser compreendidas quando observadas de determinado ângulo ou entortando os olhos. Fosse como fosse, de forma repentina e com boa dose de surpresa, começou a ver outra face da selva.

No cimo das árvores, montadas entre os troncos grossos, encontravam-se plataformas com pequenas habitações. Os telhados de muitas delas eram feitos com as folhas e os ramos vivos das árvores, oferecendo uma camuflagem natural perfeita. Era como se aquelas estruturas, em parte vivas, se diluíssem nas próprias árvores que as sustentavam.

Observando melhor, Nate percebeu que o que pareciam ser lianas e videiras entrelaçadas eram na verdade pontes e escadas suspensas. Uma dessas escadas encontrava-se uns metros à direita. Flores cresciam em toda a sua extensão, dando-lhe também vida. Era quase impossível distinguir onde terminavam as estruturas feitas por mão humana e começavam os organismos naturais. A transição era realmente impressionante, não havia quebras. Sem saberem, tinham acabado de entrar na aldeia dos Ban-ali.

Mais à frente, habitações maiores e mais complexas emergiam de árvores ainda mais altas. Algumas tinham vários pisos e terraços, mas até estas se diluíam na perfeição nos troncos, nos emaranhados de videiras e nas folhas, tornando-as quase invisíveis num primeiro olhar.

Ninguém mexeu um músculo enquanto observavam as construções. Uma pergunta ocupava as mentes de todos: onde estavam os habitantes daquelas estruturas?

Tor-tor soltou um rugido de aviso.

Então, à semelhança do que acontecera com as construções, Nate viu-os. Estavam ali desde o início. Em toda a parte, imóveis e em silêncio. Bocados de sombras vivas. Com os corpos pintados de negro, diluíam-se na escuridão entre as árvores e os arbustos.

Um dos nativos avançou e deteve-se no meio do trilho. Não patenteou qualquer reação às armas nas mãos do grupo.

Nate tinha a certeza de que era o homem que se mostrara antes, aquele que os conduzira até ali. Tinha os cabelos pretos adornados com pedaços de folhas e pétalas de flores, o que ajudava à camuflagem. Avançou com as mãos vazias, sem nenhuma arma à vista. Na verdade, estava nu, com exceção de um pedaço de pele ou tecido sobre os genitais. Fitou o grupo com uma expressão indecifrável. Depois, sem dizer uma palavra, virou costas e começou a caminhar ao longo do trilho.

— Deve querer que o sigamos outra vez — disse o professor, pondo-se de pé. Os outros levantaram-se lentamente.

Entre as árvores, os restantes nativos permaneceram nas sombras, em silêncio.

Kostos hesitou. Kouwe olhou para ele.

— Se quisessem matar-nos, já o tinham feito.

O sargento franziu o sobrolho, mas seguiu o índio.

À medida que avançavam, Nate continuou a observar a aldeia e os misteriosos habitantes. Apanhou vislumbres de rostos mais pequenos nas janelas das habitações, mulheres e crianças. Os homens escondidos nas sombras serão guerreiros ou batedores, pensou.

Os rostos pintados exibiam a familiar estrutura óssea dos povos ameríndios, com traços um tudo-nada asiáticos, uma ligação genética aos antepassados que, há cinquenta mil anos, haviam cruzado o estreito de Bering entre a Ásia e o Alasca para se estabelecerem nas Américas. Mas quem eram aqueles homens? Como tinham ali chegado? Quais as suas raízes? Apesar do perigo e da ameaça silenciosa, Nate estava desejoso de saber mais acerca da história daquele povo, sobretudo porque se encontrava ligada à sua.

Olhou em redor. Teria o pai percorrido aquele trilho? Sentiu o peito apertar-se enquanto refletia nessa possibilidade, as antigas emoções a subirem à superfície da pele. Nunca estivera tão perto de conhecer a verdade.

Depressa se tornou óbvio que estavam a ser conduzidos na direção de uma clareira mais adiante. Mantiveram-se juntos, protegendo-se uns aos outros.

O que os aguardava lá à frente?

A floresta abriu-se ao longo do trilho e deu lugar a uma clareira. Cicadáceas gigantes e coníferas primitivas assinalavam o perímetro da área aberta, onde corria um pequeno riacho que borbulhava e reluzia com os raios de sol.

O guia continuou a avançar, mas o grupo imobilizou-se no limiar da clareira.

Ninguém queria acreditar no que via.

No centro da clareira erguia-se uma árvore colossal, como nenhuma outra que Nate alguma vez vira. Tinha pelo menos a altura de um prédio de trinta andares, com um tronco esbranquiçado cuja largura rondava os dez metros. Raízes grossas rompiam o solo escuro como joelhos pálidos. Algumas passavam por cima do riacho para se afundarem no outro lado.

Nas alturas, os ramos espraiavam-se em secções distintas como nas sequoias-gigantes. Em vez de agulhas, porém, este espécime apresentava largas folhas verdes com a parte de baixo prateada. As folhas balançavam gentilmente ao sabor da brisa, revelando aglomerados de sementes descascadas, semelhantes a cocos.

Nate ficou a olhar, embasbacado. Nem sabia por onde começar se quisesse classificar aquele gigante. Talvez fosse uma nova espécie gimnospérmica primitiva, mas não passava de um palpite. As nozes eram realmente parecidas com as da planta unha-de-gato, mas aquilo era uma coisa muito mais antiga.

Ao estudar aquele colosso, apercebeu-se de outro pormenor. A árvore também albergava construções. Havia uma espécie de cabanas agrupadas nos ramos mais grossos e encostadas ao tronco. Construídas de forma a imitar o aspeto dos aglomerados de sementes, percebeu Nate, estupefacto.

O índio passou pelo meio de duas raízes e desapareceu nas sombras. Nate esticou o pescoço para ver melhor e percebeu que havia uma abertura na base da árvore, uma entrada. Ergueu os olhos para as habitações. Não existiam escadas de lianas à vista. Como é que os índios chegavam ao topo? Poderia haver um acesso no interior do tronco? Avançou para investigar melhor.

Manny agarrou-lhe no braço e apontou para uns metros à direita.

— Olha ali...

Distraído pela árvore gigante, Nate não reparara na cabana de troncos num dos lados da clareira. Era apenas um cubículo, mas bem construída e com um telhado de colmo. Parecia não pertencer ali. Era a única estrutura construída ao nível do solo.

— Aquilo são painéis solares? — perguntou Manny.

Nate franziu a testa e pegou nos binóculos. Dois retângulos pretos reluziam no telhado da cabana. Não havia dúvida de que pareciam painéis solares. Intrigado, continuou a examinar a estrutura com os binóculos. A cabana não tinha janelas, apenas uma porta que não era mais do que uma cortina de folhas entrelaçadas.

A sua atenção deteve-se num objeto familiar encostado junto à porta. Um bastão de acácia, com a madeira polida pelos anos de uso e decorada com penas hoko no topo.

Nate sentiu os joelhos tremerem.

Aquilo é o bastão de caminhada do meu pai.

Deixando cair os binóculos, cambaleou na direção da cabana.

— Rand! — gritou Kostos.

Mas Nate já não o ouviu. Deu por si a correr. Os companheiros seguiram-no, mantendo-se juntos, incluindo Zane e Olin, que se debateram com o peso da maca.

Nate alcançou a cabana em segundos. Parou junto à porta, ofegante. Sentiu a boca seca enquanto fitava o bastão; leu as iniciais gravadas na madeira: CR.

Carl Rand.

Os olhos lacrimejaram. Na altura do desaparecimento do pai, recusara-se a acreditar que ele estivesse morto. Precisara de se agarrar à esperança, receando que o desespero o deixasse incapaz de prosseguir com as buscas. Mesmo quando os apoios financeiros cessaram e se viu forçado a desistir, não vertera uma única lágrima. Com o passar do tempo, a dor convertera-se em depressão, um poço sombrio que o consumira durante quatro anos.

Agora, confrontado com uma prova tangível de que o pai estivera ali, as lágrimas correram-lhe finalmente pelo rosto.

Não alimentava a possibilidade de que ele estivesse vivo, esse tipo de milagre não sucedia na vida real, apenas em histórias de ficção. A cabana exibia sinais de abandono. Folhas mortas acumulavam-se junto à porta, livres de marcas de pegadas. Uma aranha tecera a sua teia de um lado ao outro da ombreira, à semelhança das fitas amarelas da polícia num local de crime.

Nate estendeu o braço, rompeu os fios de seda e abriu a porta. Estava escuro lá dentro. Sacou da lanterna e acendeu-a. Uma paca, uma espécie de rato sem cauda, correu pelo chão e desapareceu numa fenda na parede. O pó acumulava-se por todo o lado numa espessa camada marcada por pequenas impressões de patas e dejetos.

Nate moveu a lanterna de um lado para o outro. Na parede oposta havia quatro camas de rede vazias penduradas no teto. Mais perto, uma pequena bancada de madeira exibia uma variedade de equipamentos de laboratório, incluindo um computador portátil.

À semelhança do bastão de caminhada, Nate reconheceu o microscópio e os frascos de espécimes. Pertenciam ao pai. Avançou pelo escuro e levantou a tampa do computador. Um zumbido eletrónico sobressaltou-o e ele deu um passo atrás.

— Os painéis solares — disse Manny na entrada. — Continuam operacionais.

Nate limpou as teias de aranha das mãos.

— O meu pai esteve aqui — murmurou. — Este é o equipamento dele.

— O índio está a vir para cá — avisou Kouwe, mais atrás. — E não vem sozinho.

Nate não respondeu e ficou a olhar para o computador. Partículas de pó flutuavam nos raios de luz que entravam pela porta aberta. O interior da cabana cheirava a óleos de madeira e folhas secas, mas havia um odor subjacente de cinzas e mofo. Ninguém punha ali os pés há vários meses.

O que teria acontecido ao pai e aos outros?

Enxugando as lágrimas, Nate virou-se na direção da porta. Lá fora, o índio pintado de preto encaminhava-se para a cabana. Vinha acompanhado de outro nativo, mais pequeno, que não devia ter mais de um metro e vinte. Não trazia a pele castanha pintada de preto como o outro, apenas uma espiral vermelha na barriga, com uma palma de mão azul junto ao umbigo.

O símbolo dos Ban-ali.

Nate saiu da cabana e juntou-se aos companheiros.

O índio mais pequeno tinha as orelhas decoradas com penas, à semelhança dos ianomâmis, mas também envergava uma fita na cabeça com um ornamento em forma de inseto na testa. Nate observou a carapaça preta brilhante, reconhecendo-a. Tratava-se de um daqueles gafanhotos carnívoros que matara o cabo Jorgensen.

O professor Kouwe olhou para Nate. O amigo também reconhecera o estranho ornamento. Constituía mais uma prova de que o ataque tivera origem naquele lugar.

Nate sentiu uma pontada de raiva. Não só aquela tribo era responsável pelas mortes dos companheiros de expedição, como também tinham aprisionado os sobreviventes da expedição do pai durante anos. A dor e a fúria cresceram-lhe no peito.

Kouwe apercebeu-se da onda de emoções que tomava conta de Nate.

— Não faças nenhum disparate, Nathan. Deixa ver o que eles querem.

O índio mais alto conduziu o mais pequeno até ao grupo; depois, com um gesto que manifestava uma clara reverência pela outra figura, afastou-se respeitosamente.

O pequeno índio estudou o grupo, detendo o olhar em cada um deles, sobretudo em Tor-tor. Por fim, apontou na direção da maca de Frank.

— Tragam o homem ferido — disse para Olin e Zane, em inglês. — Os outros ficam aqui.

Dito isto, o índio virou costas e caminhou novamente na direção da árvore gigante.

Apanhados de surpresa, ninguém mexeu um músculo. Para Nate, o choque de ouvir aquelas palavras pronunciadas em inglês sobrepôs-se à raiva.

Olin e Zane continuaram parados, sem saberem o que fazer.

O índio mais alto acenou-lhes, zangado, indicando-lhes que deviam seguir o mais pequeno.

— Ninguém vai a lado nenhum — disse Kostos. Carrera também avançou com o sargento. Ambos empunhavam as armas prontas a disparar. — Não nos vamos separar.

O índio franziu a testa. Apontou para o outro.

— Curandeiro — disse, debatendo-se com as palavras. — Bom curandeiro.

Uma vez mais, as palavras pronunciadas em inglês soaram como que irreais.

Anna Fong olhou para Nate.

— Eles devem ter aprendido a língua com os sobreviventes da expedição do seu pai — murmurou.

Ou até com ele mesmo, pensou Nate.

Kouwe virou-se para Kelly.

— Acho que devemos aceitar as instruções que nos dão. Não creio que tencionem fazer mal ao Frank. Em todo o caso, posso ir com eles.

— Não abandono o meu irmão — retorquiu Kelly, chegando-se mais perto da maca.

— E eu não vou a lado nenhum — disse Zane. — Fico onde estão as armas.

— Não se preocupe — respondeu o professor. — Eu tomo o seu lugar. Era a minha vez de carregar a maca.

Zane não perdeu tempo a trocar de posição com Kouwe e juntou-se ao sargento Kostos, cuja expressão passara a ser de permanente desconfiança.

Kelly virou-se para Olin.

— E eu fico com esta ponta.

O russo abriu a boca para protestar, mas Kelly não lhe deu hipótese.

— Trate de pôr o GPS a funcionar — ordenou-lhe. — É o único que sabe arranjar aquilo.

Olin anuiu relutantemente e deixou-a pegar na maca. Por um instante, Kelly debateu-se com o peso, mas manteve-se firme.

Nate apressou-se ao seu encontro.

— Eu faço isso, só precisa de nos acompanhar.

— Não — disse Kelly, determinada. Acenou com o queixo na direção da cabana. — Fique aqui e tente descobrir o que aconteceu.

Antes que mais alguém levantasse objeções, Kelly avançou com a maca, arrastando Kouwe atrás de si.

O índio ficou aliviado por ver a disputa resolvida e começou a guiá-los na direção da árvore.

Na entrada da cabana, Nate ergueu o olhar para as habitações no cimo do colosso branco. Aquele cenário fizera parte da vida do pai durante quatro anos, percebeu, e deixou-se ficar ali quieto, procurando outras ligações à memória do pai, até Kelly e Kouwe desaparecerem no interior da árvore gigante.

Assim que os companheiros começaram a pousar as mochilas, concentrou-se novamente no interior da cabana. Para lá da porta, o ecrã inundava o espaço com uma luz ténue, fantasmagórica, solitária.

Nate suspirou e, uma vez mais, interrogou-se sobre o que teria acontecido aos outros.

Debatendo-se com o peso do irmão, Kelly entrou no tronco da árvore gigante. A preocupação pelo estado de Frank consumiu-a, mas não podia deixar de reparar na estranheza diante de si.

O sangue das feridas ensopara as ligaduras, o que atraía dezenas de moscas em busca de uma refeição fácil. O irmão necessitava de uma transfusão urgente, e não só. Kelly percorreu mentalmente uma lista dos cuidados que precisava de lhe administrar de imediato: outro saco de soro, ligaduras novas, mais morfina e antibióticos. Faria tudo ao seu alcance para o manter vivo até chegar um helicóptero de resgate.

Mesmo assim, no meio do medo e do horror que lhe enchia o coração, não conseguia evitar o sentimento de espanto pelo que encontrara no interior da árvore. Talvez esperasse um túnel escuro com uma escadaria apertada. Em vez disso, deparara-se com um espaço amplo e uma rampa larga, que se enrolava em caracol até ao topo. As paredes, suaves e polidas com um bonito tom de mel, estavam decoradas com dezenas de impressões de mãos azuis. A cada dez metros, aberturas retangulares, em tudo semelhantes a janelas na torre de um castelo, iluminavam o caminho com a luz do exterior.

Kelly e Kouwe seguiram atrás do índio pela rampa. O chão era suave, mas permitia uma boa tração, e embora a inclinação não fosse grande, Kelly depressa deu por si a ofegar devido ao esforço de carregar a maca. A adrenalina e o medo, porém, impediam-na de desistir: pelo irmão, por ela própria, por todos os companheiros de expedição.

— Este túnel parece ser obra da natureza — murmurou Kouwe. — A suavidade das paredes, a fluidez da espiral. Dá a ideia de que é um canal da própria árvore, e não uma passagem talhada pelos índios.

Kelly humedeceu os lábios, mas não encontrou voz para responder. Estava demasiado cansada, demasiado assustada. Mesmo assim, observou o chão e as paredes minuciosamente. O professor tinha razão, não conseguia distinguir marcas de ferramentas. Apenas as janelas se mostravam um pouco toscas, nitidamente feitas pela mão dos índios. A diferença era evidente. Será que a tribo encontrara aquela passagem tubular no interior da árvore e tirara proveito dela? Pelo que observara das construções na aldeia, os Ban-ali eram um povo engenhoso, que sabia incorporar as estruturas criadas no ambiente natural. Talvez tivessem feito o mesmo naquela árvore.

O professor fez outra observação:

— As moscas desapareceram.

Kelly olhou por cima do ombro. As moscas que instantes antes cobriam as ligaduras ensanguentadas tinham de facto desaparecido.

— Voaram assim que entrámos — disse Kouwe. — Os óleos da madeira devem ter propriedades repelentes.

Kelly já tinha reparado no odor almiscarado no interior da árvore. Parecia-lhe vagamente familiar, uma espécie de eucalipto seco, medicinal e agradável, mas com matizes de terra, lama, ou algo do género.

Ao olhar para trás, reparou novamente na quantidade impressionante de sangue nas ligaduras. Frank não resistiria muito mais com uma hemorragia daquelas. Alguma coisa tinha de ser feita. Continuou a subir a rampa com o coração pesado e, embora exausta, acelerou o passo.

Foram surgindo aberturas na parede que permitiam o acesso às habitações no exterior. Ao passar por elas, Kelly viu os ramos que se entendiam com a largura de ruas até aos aglomerados de construções.

Mesmo assim, o índio continuava a levá-los para cima.

Kelly deu por si a arrastar os pés e a tropeçar com frequência, os olhos a arderem da transpiração. Queria parar para descansar, mas não podia falhar ao irmão.

O índio apercebeu-se de que o par começava a ficar para trás. Desceu uns metros e, avaliando a situação, chegou-se ao pé de Kelly.

— Eu ajudo — disse. Bateu com um punho no peito. — Forte. — Afastou-a e ocupou o seu lugar na cabeceira da maca.

Kelly estava demasiado cansada para sequer murmurar um agradecimento. Desviando-se, deixou que os dois homens retomassem a marcha num ritmo mais rápido. Continuou a acompanhá-los ao lado da maca. Aliviada da carga, podia agora focar toda a atenção no estado do irmão, cujo rosto pálido lembrava um fantasma. A respiração era cada vez mais superficial. Sacou do estetoscópio e auscultou-lhe o peito. O batimento cardíaco estava fraco, e os pulmões assobiavam de esforço. O corpo estava a desistir e a caminho de entrar em choque hipovolémico. A hemorragia tinha de ser estancada.

Preocupada com o irmão, nem se apercebeu do final da subida. A passagem em espiral terminou abruptamente numa abertura em tudo idêntica à que se encontrava na base da árvore. Em vez de conduzir à luz do exterior, aquela abertura levou-os a uma estrutura cavernosa com o chão em forma de tigela.

Boquiaberta, Kelly fitou o interior do espaço que, à semelhança da passagem, era iluminado por pequenas janelas retangulares. Com uma forma esférica, não tinha menos de trinta metros de diâmetro, uma bolha titânica na madeira, projetando-se para fora do tronco principal.

— É como uma galha gigante — disse Kouwe, referindo-se às protuberâncias por vezes encontradas nos troncos das árvores, criadas por insetos ou outras condições parasíticas.

Kelly compreendia a comparação, mas não eram insetos que habitavam aquela bolha. Havia uma dúzia de camas penduradas ao longo das paredes curvas, umas vazias, outras ocupadas por nativos. Outros Ban-ali pareciam cuidar deles, dado aqueles poucos homens e mulheres nas camas exibirem traumatismos ou sinais de doença. Kelly viu um dos cuidadores aplicar uma pasta num golpe profundo que um dos outros exibia no peito. Percebeu imediatamente onde estava.

Uma enfermaria...

O índio pequeno que os mandara para ali encontrava-se a poucos metros de distância. Exibia uma expressão de impaciência. Apontou para uma das camas vazias e falou rapidamente numa língua estranha.

O guia anuiu e conduziu a maca para a cama em questão.

— Se não estou em erro, isto é uma variação do dialeto dos Ianomâmis — murmurou Kouwe.

Kelly notou o tom surpreendido do professor e olhou para ele.

Kouwe explicou a importância desse pormenor.

— O dialeto ianomâmi é único. Os padrões de discurso e as estruturas tonais são exclusivos deste povo. É uma das razões por que os Ianomâmis são considerados uma das mais antigas tribos da Amazónia. — O professor fitou os homens e as mulheres naquela bolha de madeira. — Os Ban-ali devem ser parentes perdidos dos Ianomâmis.

Kelly limitou-se a acenar com a cabeça. Tinha demasiado em que pensar. A sua atenção continuava centrada no irmão.

Sob a supervisão do índio mais pequeno, Frank foi transferido para a cama. Nervosa, Kelly manteve-se ao lado do irmão, que reagiu ao movimento com um gemido e um revirar de olhos. O efeito dos sedativos devia estar a passar.

Estendeu o braço para a mochila largada no chão, mas, antes que conseguisse sacar de uma seringa e de uma nova dose de morfina, o curandeiro mandou o guia e outro índio retirarem as ligaduras a Frank.

— Não! — disse Kelly, endireitando-se.

Os índios ignoraram-na e começaram a tirar as ligaduras ensopadas de sangue.

Kelly agarrou no cotovelo do guia.

— Não façam isso! Não sabem o que estão a fazer! Ele vai esvair-se em sangue!

O índio retirou o braço e lançou-lhe um olhar duro.

Kouwe tentou intervir e pôr água na fervura.

— Ela é a nossa curandeira — disse, apontando para Kelly.

O indígena pareceu confuso com aquela afirmação e virou-se para o seu xamã, que estava agachado junto à cama. O outro segurava uma tigela, onde recolhia uma seiva espessa de uma calha cravada na parede.

— Aqui, o curandeiro sou eu — declarou. — Isto é remédio para parar o sangue. Remédio forte da Yagga.

Kelly olhou para Kouwe.

— Yagga... É parecido com yakka, a palavra ianomâmi para «mãe».

— Remédio forte da mãe... — murmurou Kelly.

Kouwe olhou em volta.

— Yagga deve ser o nome da árvore. Uma divindade.

O xamã endireitou-se com a tigela meio cheia da seiva avermelhada. Estendeu a mão e enfiou uma cavilha de madeira no buraco no topo da calha, interrompendo o fluxo resinoso.

— Remédio forte — repetiu, erguendo a tigela e virando-se para a cama. — O sangue da Yagga irá parar o sangue do homem.

Aquilo soava a uma frase feita, uma tradução livre de um ditado antigo. O xamã fez sinal para os outros dois índios cortarem uma das ligaduras.

Kelly abriu a boca para protestar novamente, mas Kouwe apertou-lhe o braço.

— Esteja pronta para intervir, se for caso disso. Por enquanto, deixe ver o que são capazes de fazer.

Kelly mordeu o lábio e recordou o episódio da menina índia no hospital de São Gabriel, o modo como a medicina ocidental lhe falhara. Até ver, faria a vontade aos Ban-ali, não tanto pelas palavras do curandeiro, mas pela confiança no professor. Agachou-se e remexeu na mochila, à procura de ligaduras e de um saco de soro.

Enquanto retirava aquilo de que precisava, desviou o olhar para a calha na parede. O sangue da Yagga. O veio de onde provinha a seiva podia ser visto na parede, uma faixa negra na madeira cor de mel, estendendo-se desde a calha até ao centro do teto circular. Havia mais veios idênticos, cada um conduzindo às restantes camas.

Com as ligaduras novas e o saco de soro na mão, levantou-se e viu os pensos do irmão serem arrancados pelos índios. Sem estar preparada para aquilo, ainda na pele de irmã e não de médica, sentiu os joelhos fraquejarem diante da visão do que restava da perna do irmão: o osso branco estilhaçado, os músculos rasgados, o amontoado de carne gelatinosa retalhada. Um fluxo de sangue negro derramou-se sobre o tecido da cama. Sentiu dificuldade em respirar, os sons tornaram-se simultaneamente abafados e mais vivos. A visão estreitou-se e focou-se apenas na figura moribunda ali deitada. Aquilo não era Frank, tentou convencer-se, mas uma parte do cérebro sabia a verdade. O irmão estava condenado. Os olhos encheram-se de lágrimas e a garganta fechou-se, sufocando-a.

Sentindo a sua aflição, Kouwe colocou-lhe um braço por cima do ombro e puxou-a para si.

— Oh, meu Deus... por favor... — suplicou Kelly.

Indiferente ao pânico de Kelly, o xamã dos Ban-ali examinou a perna amputada. Tirou uma mão-cheia da espessa resina cor de vinho e espalhou-a na ferida.

A reação foi imediata, e não menos violenta. A perna saltou como que atingida por uma corrente elétrica, e Frank gritou, apesar do torpor em que se encontrava.

Kelly libertou-se do braço do professor.

— Frank!

O xamã olhou para ela. Murmurou qualquer coisa na sua língua nativa e afastou-se, permitindo que ela se aproximasse.

Kelly estendeu a mão para agarrar no braço do irmão, mas a reação dele revelou-se tão curta como repentina. Afundou-se novamente na cama, inerte. Kelly teve a certeza de que estava morto. Debruçou-se sobre a sua figura, a chorar convulsivamente.

Foi então que reparou. O peito subia e descia com inspirações profundas e trémulas. O irmão continuava vivo.

Caiu de joelhos, aliviada. A perna amputada do irmão permanecia exposta com toda a crueza. Desviou o olhar para a ferida, pronta para intervir com as ligaduras. Mas não foi necessário.

A seiva formara uma barreira que selara a carne retalhada. Boquiaberta, Kelly tocou na estranha substância. Em vez de resina, parecia que tocava em cabedal. A hemorragia estancara com aquela espécie de selante natural. Olhou para o xamã.

— A Yagga considerou-o digno — disse o índio. — Ele vai curar-se.

Sem se mexer, Kelly viu o homem repetir o milagre na outra perna de Frank.

— Não consigo acreditar — disse por fim, num fio de voz.

— Conheço umas quinze plantas diferentes com propriedades hemostáticas, mas nada como isto — respondeu Kouwe.

O corpo de Frank sacudiu-se outra vez quanto a segunda perna era tratada.

Terminado o trabalho, o xamã fitou os curativos durante uns segundos. Virou-se para Kelly e Kouwe.

— A Yagga vai cuidar do homem — anunciou solenemente.

— Obrigada — respondeu Kelly.

O xamã desviou o olhar para Frank.

— Ele é agora Ban-ali. Um dos escolhidos.

Kelly franziu o sobrolho.

O índio prosseguiu.

— Terá de servir a Yagga de todas as maneiras, até ao fim dos tempos.

Dito isto, virou costas e afastou-se, mas não sem antes acrescentar algo na língua nativa, algo proferido num tom de aviso, ameaçador.

Kelly esperou que ele se afastasse e olhou para Kouwe.

O professor abanou a cabeça.

— Só reconheci uma palavra... ban-yi.

— O que significa?

Kouwe desviou os olhos na direção de Frank.

— Escravo.


15

ASSISTÊNCIA MÉDICA

16 de agosto, 11h43

Ala hospitalar do Instituto Instar

Langley, Virgínia

Lauren nunca conhecera um desespero igual ao ver a neta afundada numa nuvem de almofadas e lençóis, o seu pequenino corpo invadido por um emaranhado de cabos e tubos ligados a monitores e sacos de soro. Mesmo com o fato de proteção vestido, ouvia os apitos e os sopros dos diferentes equipamentos médicos que enchiam a enfermaria. Além de Jessie, cinco crianças haviam adoecido no dia anterior e estavam agora internadas naquele espaço.

E quantas mais se seguirão?

Recordou a progressão inexorável da mancha vermelha no mapa do epidemiologista. Havia casos identificados no Canadá. E dois na Alemanha, crianças que tinham regressado de umas férias na Florida. Um final triste para uma viagem à Disneylândia.

Mas até as projeções pessimistas do doutor Alvisio pareciam agora revelar-se demasiado conservadoras. Naquela manhã, Lauren ouvira rumores de novos casos no Brasil, desta vez envolvendo adultos saudáveis. Estes doentes não apresentavam febres como as crianças. Em vez disso, apareciam com os corpos minados de tumores galopantes, à semelhança dos que tinham sido observados no cadáver de Gerald Clark. Lauren pusera uma equipa de investigadores a monitorizar estas novas ocorrências.

Mesmo assim, ali sentada à cabeceira da cama da neta, a sua mente tinha outras preocupações. Jessie assistia a uma série qualquer de desenhos animados na televisão da enfermaria, mas nem um sorriso se lhe escapava dos lábios, nenhuma gargalhada. Fitava os ursos que dançavam no ecrã com indiferença, quase como uma tarefa a cumprir em vez de um momento de diversão. Os olhos permaneciam vidrados, os cabelos colados ao rosto transpirado devido à febre.

Havia muito pouco que podia fazer para reconfortá-la. O toque plástico do fato era frio, impessoal. Restava-lhe ficar ali à cabeceira da cama: um rosto e uma voz familiares, garantindo à neta que não estava sozinha.

Mas Lauren nunca poderia substituir Kelly. De cada vez que a porta da enfermaria se abria, a neta desviava o olhar para ver quem era. A expressão esperançosa logo dava lugar à desilusão de encontrar outra enfermeira, outro médico, mas nunca a mãe.

Lauren dava consigo a fazer o mesmo, a olhar de relance para a porta e a rezar para que Marshall aparecesse com notícias de Frank e Kelly. Na Amazónia, o helicóptero de resgate levantara da base de Wauwai há um par de horas. Era tempo suficiente para alcançar a equipa. Kelly havia de estar a caminho de casa naquele momento.

Contudo, não chegavam notícias, e a espera tornava-se difícil de suportar.

Na cama, Jessie coçou o adesivo do cateter.

— Não mexas nisso, querida — disse Lauren, afastando-lhe a mão.

Jessie suspirou e afundou-se nas almofadas.

— Onde está a minha mamã? — perguntou, pela enésima vez. — Quero a mamã.

— Está a caminho, querida. Mas a selva fica muito longe. Porque não tentas dormir um bocadinho?

Jessie franziu a testa.

— Dói-me a boca...

Lauren virou-se para a mesa de cabeceira e pegou numa caneca com uma palhinha. Continha sumo com um analgésico misturado.

— Bebe, vai tirar-te o dói-dói.

A boca da neta estava cheia de úlceras, outro sintoma da doença. Não havia como negar que contraíra a praga desconhecida.

Jessie deu um gole e fez uma careta.

— Tem um sabor esquisito. Não é igual ao sumo da mamã.

— Eu sei, mas vai fazer com que te sintas melhor.

A neta desviou de novo o olhar para a televisão.

— Tem um sabor esquisito... — repetiu.

As duas ficaram em silêncio. Algures na fila de camas, uma das crianças começou a choramingar. O choro e a música repetitiva dos desenhos animados soaram abafados através do fato protetor.

Quantas mais crianças?, interrogou-se Lauren. Quantas mais pessoas irão adoecer? Quantas mais morrerão?

Ouviu-se o sopro da porta pressurizada da enfermaria. Lauren olhou nessa direção e viu entrar uma figura vestida com um fato igual ao seu.

Marshall...

Levantou-se de imediato.

O marido fez-lhe sinal para se sentar e encaminhou-se na direção da parede para ligar o tubo de oxigénio do fato a um dos bocais disponíveis. Só então se aproximou da cama.

— Avô! — disse Jessie, sorrindo. O amor de Jessie pelo avô era especial, dado que constituía a única figura masculina na sua vida. Lauren sentiu-se embevecida ao ver como ela reagira à chegada de Marshall.

— Como está a minha princesinha? — disse Marshall, curvando-se para fazer uma festa nos cabelos da neta.

— Estou a ver o urso Bobo.

— Ah, sim? E ele é engraçado?

Jessie acenou vigorosamente com a cabeça.

— Nesse caso, chega-te para lá. Também quero ver.

Aquilo deixou Jessie a rebentar de contente. Desviou-se para dar espaço ao avô, que se sentou na ponta da cama. Marshall colocou-lhe um braço por cima dos ombros e a neta enroscou-se nele, mais animada com a ideia de ver os desenhos animados.

Lauren trocou um olhar com Marshall.

O marido abanou discretamente a cabeça.

Lauren franziu o sobrolho. O que quer ele dizer com aquele abanar de cabeça? Ansiosa por descobrir, ligou o intercomunicador incorporado nos fatos para que pudessem segredar sem que Jessie ouvisse.

— Como é que ela está? — perguntou Marshall.

Lauren endireitou as costas.

— A temperatura desceu para os trinta e sete graus, mas as análises não auguram nada de bom. Os glóbulos brancos desceram e os níveis de bilirrubina subiram.

Marshall fechou os olhos.

— Estádio dois?

Lauren sentiu a voz fugir-lhe. Com tantos casos estudados em todo o país, a progressão da doença tornara-se previsível. O estádio dois ocorria quando a doença progredia de um estado febril para uma condição anémica com perda de sangue e náuseas.

— A partir de amanhã... Ou depois, no máximo.

Ambos sabiam o que aconteceria a seguir. Com bons cuidados médicos, o estádio dois podia prolongar-se três ou quatro dias; seguia-se um único dia no estádio três: convulsões e hemorragias cerebrais. Não havia estádio quarto.

Lauren fitou a neta aninhada com o avô. Menos de uma semana. Era o tempo que lhe restava.

— E a Kelly? Foram buscá-la? Vem a caminho?

Marshall ficou em silêncio. Lauren fitou-o. O marido fez um compasso de espera e só então respondeu.

— Ninguém sabe onde estão. O helicóptero de resgate procurou por toda a região assinalada pelas coordenadas de GPS, mas não havia sinal deles.

Lauren parecia que tinha levado um soco no estômago.

— O que... Como é que isso é possível?

— Não sei. Estamos a tentar contactá-los, mas ainda não conseguimos. Devem continuar com problemas no equipamento.

— Mas o helicóptero continua a procurá-los?

Marshall abanou a cabeça.

— Teve de regressar à base porque já tinha pouco combustível.

— Marshall...

O marido estendeu o braço e pegou-lhe na mão.

— Depois de reabastecerem, vão tentar de novo à noite e procurar sinais de fogueiras com o equipamento de infravermelhos. Pela manhã, outros três helicópteros vão juntar-se às buscas, incluindo o Comanche. — Marshall apertou-lhe a mão. — Vamos encontrá-los. Não te preocupes.

Lauren sentiu-se anestesiada da cabeça aos pés.

Os meus bebés... todos eles...

Jessie ergueu o braço com o tubo de soro e apontou na direção da televisão.

— O Bobo é muito engraçado!

13h05

Selva amazónica

Nate desceu a escada de quinze metros que pendia da habitação no cimo da árvore. A estrutura de três pisos estava aninhada nos ramos de uma espécie de carvalho do período Cretáceo. Momentos antes, depois de Kelly e Kouwe levarem Frank, duas mulheres dos Ban-ali apareceram e conduziram o resto da equipa até ao limiar da clareira, onde indicaram uma habitação onde podiam ficar.

O sargento Kostos resistira à ideia. A soldado Carrera, porém, fizera uma observação pertinente: «Estamos mais protegidos lá em cima. Se os jaguares voltarem durante a noite...» Kostos não precisou de ouvir mais nada: «Muito bem, vamos instalar-nos na árvore e montamos um perímetro defensivo.»

Nate considerava aquelas precauções desnecessárias. Era verdade que os índios se mostravam curiosos em relação à presença deles, mas mantinham uma distância cautelosa. Até ao momento, não tinham exibido nenhum comportamento hostil. Custava até a crer que aquele povo tranquilo tinha alguma coisa que ver com os ataques selváticos que custaram a vida a metade da equipa. Por outro lado, essa dualidade fazia parte da maneira de estar de muitas tribos indígenas: hostis e brutais num primeiro contacto, mas pacíficos e acolhedores quando finalmente aceitavam uma pessoa no seu meio.

Ainda assim, isso nunca faria esquecer as mortes horríveis dos companheiros às mãos daquela tribo, mesmo que indiretamente. E escusado será dizer que havia a questão do pai... a maneira como ele e os seus homens haviam sido feitos prisioneiros durante tantos anos. Nate não conseguia encontrar maneira de manter as coisas fora da esfera pessoal. Enquanto antropólogo, podia até compreender aquele estranho povo, mas, como filho, o ressentimento e a raiva toldavam-lhe o discernimento.

Por outro lado, os índios estavam a ajudar Frank. O professor Kouwe regressara da árvore gigante e anunciara que o xamã e Kelly tinham conseguido estabilizar o companheiro. Eram boas notícias, das poucas que receberam desde o início da expedição. Ansioso por regressar à árvore, Kouwe não ficara muito tempo. Lançara um olhar a Nate. Apesar da cooperação dos índios, o professor estava preocupado com alguma coisa. Nate tentara perguntar-lhe qual era o problema, mas ele empurrara a conversa para outra oportunidade. «Depois, falamos», dissera-lhe.

Alcançando o último degrau da escada de lianas, Nate saltou para o chão. Os dois rangers e Manny encontravam-se reunidos na base da árvore. Tor-tor estava ao lado do dono. Os restantes membros do grupo, Zane, Anna e Olin, tinham ficado lá em cima, às voltas com o equipamento de comunicações.

Manny acenou com a cabeça a Nate.

— Eu fico aqui a vigiar — disse Kostos a Carrera. — Tu e o Manny deem uma vista de olhos. Vejam o que conseguem descobrir acerca da disposição da aldeia.

Carrera anuiu e virou costas.

Manny foi atrás dela.

— Anda, Tor-tor.

Kostos virou-se para Nate.

— O que está aqui a fazer, Rand?

— A pôr mãos ao trabalho. — Nate acenou com a cabeça na direção da cabana na clareira. — Vou aproveitar enquanto o Sol vai alto e os painéis solares estão a funcionar para ver se consigo sacar alguma informação do computador do meu pai.

Kostos franziu a testa. Nate conseguia adivinhar o que ele estaria a pensar. A pesar os prós e os contras. No entanto, toda e qualquer informação, por mais pequenina, podia ser vital naquele momento.

— Tenha cuidado — disse o sargento.

Nate ajustou a alça da caçadeira no ombro.

— Tenho sempre.

Um punhado de crianças juntara-se na borda da clareira. Algumas apontavam para ele e trocavam impressões. Um segundo grupo de crianças seguia atrás de Manny e Carrera, embora mantendo uma distância segura de Tor-tor. A curiosidade inocente dos mais novos. Entre as árvores, os mais velhos retomavam as atividades do quotidiano. Algumas mulheres transportavam cabaças com água do riacho que atravessava a clareira. As habitações nas árvores começavam a fervilhar de atividade. Havia lume aceso nas lareiras de pedra, onde preparavam as refeições. Numa das habitações, uma mulher idosa tocava uma flauta feita de osso de veado. O som do instrumento era vibrante, embora um tudo-nada fantasmagórico. Mais perto, um par de homens armados com arcos e flechas passou por Nate sem lhe passar cartão.

Aquele comportamento despreocupado recordava Nate de que, apesar de isolados, aqueles índios já tinham convivido com homens brancos. Com os sobreviventes da expedição do pai, para começar. Mesmo assim, Nate considerava exasperante a facilidade com que tinham aceitado a presença do grupo.

Alcançou a cabana e, uma vez mais, foi obrigado a olhar para o bastão de caminhada do pai junto à porta. Enquanto fitava o objeto, tudo o resto perdeu importância. Naquele instante, havia uma única pergunta no seu coração: o que aconteceu ao meu pai?

Lançando um último olhar na direção da habitação temporária dos companheiros, baixou a cabeça e entrou. O cheiro atingiu-o de novo, aquele odor almiscarado, como se estivesse a entrar num túmulo perdido. Lá dentro, o portátil continuava aberto na bancada, tal como o deixara; o brilho do ecrã lembrava um farol na escuridão.

Ao aproximar-se do computador, viu as imagens que flutuavam no monitor embebidas na aplicação de proteção de ecrã. Sentiu os olhos lacrimejarem. Eram fotografias da mãe. Outro fantasma do passado. Fitou o rosto sorridente. Havia uma imagem em que a mãe estava ajoelhada ao lado de um menino indiano. Noutra, tinha um macaco-prego no ombro. Noutra ainda, abraçava um rapazinho branco vestido à maneira típica dos Baníua. O rapazinho era ele. Tinha seis anos na altura. Sorriu com o coração quase a rebentar pelas boas recordações daqueles tempos. O pai não estava em nenhuma das fotografias, mas sentia a sua presença, um fantasma a espreitar por cima do ombro para ver aquelas imagens com ele. Há muito tempo que não se sentia tão perto da família.

Pegou por fim no rato. O protetor de ecrã deu lugar à imagem do ambiente de trabalho. Múltiplas pastas alinhadas ao canto. Nate leu as identificações dos ficheiros: «Classificação de Plantas», «Costumes Tribais», «Estatísticas Celulares»... Levaria vários dias para analisar aquilo tudo. Um dos documentos, porém, chamou-lhe a atenção. O ícone era um pequeno livro. Estava identificado com a palavra «Diário».

Nate abriu o documento.

Diário de Campo, Amazónia — Dr. Carl Rand

Aquilo era efetivamente o diário do pai. A primeira entrada datava de 24 de setembro, o primeiro dia da expedição. Nate percorreu as várias páginas do ficheiro. Cada entrada correspondia a um dia. Às vezes não havia mais do que uma frase ou duas, mas o pai nunca deixava de escrever diariamente qualquer coisa. Era metódico na forma como registava o que fazia. Nate lembrava-se de uma vez o pai lhe ter dito: «Uma vida que não é examinada é uma vida que não valeu a pena ser vivida.»

Nate continuou a percorrer as entradas à procura de uma data específica. Encontrou-a: 16 de setembro. O dia em que a equipa desaparecera.

16 de setembro

Ainda a tempestade que nos mantém aprisionados no mesmo sítio. O dia, porém, não foi um desperdício total. Um índio aruaque que descia o rio esteve no acampamento e contou-nos histórias de uma estranha tribo... histórias assustadoras.

Os Ban-ali, chamou-lhes, ou «Jaguares de Sangue». Não foi a primeira vez que ouvi falar desta tribo-fantasma, mas nunca estive com um índio que parecesse tão confortável em abordar o tema. Claro que o machete e os anzóis novinhos em folha que lhe demos em troca da informação podem ter contribuído para isso. Assim que lhes pôs os olhos em cima, insistiu que sabia onde os Ban-ali costumavam caçar.

O primeiro impulso foi descartar semelhante afirmação, mas deixei-o falar. Se houvesse a mais remota hipótese de essa tribo existir, como podia eu perder uma oportunidade de investigar? Que valor uma descoberta dessas traria para a nossa expedição? Enquanto o interrogava, desenhou-me um mapa. A região assinalada, o hipotético território dos Ban-ali, não parecia ficar a mais de três dias de viagem.

Como tal, amanhã (se o tempo o permitir, claro) vamos pôr-nos a caminho e ver com os nossos olhos até que ponto o nosso amigo nos contou a verdade. Não tenho dúvida de que se trata de fantasia, mas, como sempre digo, só Deus sabe o que se esconde nesta selva.

Seja como for, um dia interessante.

Nate susteve a respiração ao continuar a leitura a partir dali. Curvado sobre o portátil, as gotas de suor caíam-lhe pela testa. Ao longo de horas, avançou pelos dias... pelos anos apresentados no diário, abriu uns quantos ficheiros, estudou diagramas e fotografias. Aos poucos, juntou as peças do que acontecera, e, também aos poucos, sentiu-se cada vez mais dormente. O horror do passado fundiu-se com o presente, e só então compreendeu: o verdadeiro perigo ainda estava para vir.

17h55

— O que está aquele a fazer? — perguntou Manny a Carrera.

— Quem?

Manny apontou na direção de um índio que caminhava ao longo do riacho. Levava uma lança ao ombro com vários nacos de carne espetados.

A ranger encolheu os ombros.

— A levar o jantar?

— Para quem?

Durante a tarde, Manny e Carrera, acompanhados por Tor-tor, tinham passeado pela aldeia. O jaguar atraíra muitos olhares, mas também mantivera os curiosos à distância. Enquanto caminhavam, Carrera ia tomando notas e desenhando um mapa da aldeia e das terras em redor. «Reconhecimento», explicara ela. «Para o caso de os índios se tornarem hostis.»

Naquele momento, contornavam a árvore gigante por trás, onde o riacho passava pelas enormes raízes. Em algumas partes dava ideia de que a água cavara o terreno, expondo ainda mais as raízes. Aquilo era um verdadeiro emaranhado de braços que passavam por cima, por baixo e através do riacho.

O índio que chamara a atenção de Manny passava por esse emaranhado, curvando-se e desviando-se pelo caminho, tentando nitidamente alcançar aquela secção específica do riacho.

— Vamos espreitar mais de perto — disse Manny.

Carrera guardou o bloco de notas no bolso e pegou na arma, a Bailey. Fitou o gigante branco e franziu o sobrolho. Não gostava da ideia de se aproximar demasiado daquela árvore, mas liderou o caminho, avançando na direção do emaranhado de raízes.

Manny viu o índio aproximar-se do que parecia ser uma piscina rodeada de raízes. A superfície da água era suave, apenas agitada por um ligeiro remoinho.

O índio apercebeu-se de que estava a ser observado, acenou descontraidamente com a cabeça e continuou o que estava a fazer. Manny e Carrera ficaram a ver no que aquilo ia dar. Tor-tor sentou-se ao lado do dono.

Agachando-se, o índio estendeu a lança com os pedaços de carne sobre a piscina.

Manny franziu o sobrolho.

— Que raio...?!

Então, sem aviso, pequenos corpos começaram a saltar do riacho. Pareciam enguias prateadas, contorcendo-se fora de água. As criaturas agarraram-se à carne, mordendo-a com as pequenas mandíbulas.

— Aquilo são as tais piranhas... — disse Carrera.

Manny anuiu, reconhecendo a similaridade.

— Na versão jovem — disse. — Ainda não desenvolveram as patas traseiras.

O índio endireitou-se e sacudiu a carne da ponta da lança. Cada naco ensanguentado que caía na água desencadeava um frenesi devorador. A superfície da piscina transformou-se numa mancha borbulhante vermelha. O homem observou o espetáculo durante uns segundos, deu meia-volta e regressou pelo mesmo caminho.

Acenou novamente com a cabeça ao passar por Manny e Carrera, ao mesmo tempo que lançava um olhar de espanto e medo a Tor-tor.

— Quero ver aquilo mais de perto — disse Manny.

— Perdeu o juízo? Vamos é embora daqui.

— Não. — Manny estava já em movimento. — Só quero verificar uma coisa.

Carrera bufou e seguiu atrás dele.

O caminho era estreito, obrigando-os a avançar em fila indiana. Tor-tor seguia atrás, furando cautelosamente o emaranhado com os pelos das costas levantados.

Manny alcançou por fim a piscina cercada de raízes.

— Não se aproxime demasiado! — avisou Carrera.

— Acho que é seguro. As criaturas não ligaram nenhuma ao índio, por isso...

Mesmo assim, Manny abrandou e parou a um passo da piscina, com a mão apoiada no cabo do chicote. À sombra das raízes, a água era cristalina, com pelo menos três metros de profundidade. Esticou-se para ver melhor. Sob a superfície, cardumes de criaturas nadavam às voltas e de um lado para o outro. Não havia sinal dos nacos de carne, mas o fundo da piscina estava coberto de ossos brancos.

— Isto é um viveiro... um maldito viveiro.

Das raízes que passavam por cima da água, de vez em quando caíam gotas de seiva. Sempre que isso acontecia, as criaturas subiam à procura da refeição seguinte. De onde se encontrava, Manny tinha uma vista privilegiada dos animais. Eram de todos os tamanhos, desde peixinhos a monstros cujas pernas estavam já a desenvolver-se. Mas não havia nenhum totalmente formado.

— São todos jovens. Não vejo nenhum adulto igual aos que nos atacaram.

— Provavelmente, matámo-los todos com aquele veneno — retorquiu Carrera.

— Não admira que não tivesse existido um segundo ataque. Deve demorar algum tempo até que no cardume se formem adultos suficientes.

— Talvez seja assim no caso desta espécie de piranhas — murmurou Carrera, num tom de voz subitamente agoniado. — Mas para estes...

Manny olhou na direção da ranger, que se encontrava dois metros atrás. Ela apontou com o cano da arma para a base do tronco, onde se projetavam as raízes. Ao longo do tronco havia uma série de protuberâncias, cada uma com cerca de um metro. Centenas delas. Através dos buracos na casca era possível ver-se uma massa trepidante de insetos pretos, que rastejava, lutava e acasalava no interior do tronco. Alguns agitavam as pequenas asas com um zumbido familiar.

— Os gafanhotos! — exclamou Manny, dando um passo atrás.

Os insetos, porém, ignoraram o par e continuaram as suas atividades.

Manny alternou o olhar entre os gafanhotos e a piscina.

— A árvore... — murmurou.

— O que tem a árvore?

Manny viu uma gota de seiva cair na água e atrair de novo as piranhas à superfície. Abanou a cabeça.

— Não tenho a certeza, mas diria que a árvore está a cuidar destas criaturas.

Na mente do biólogo brasileiro surgiram várias hipóteses. Os olhos arregalaram-se à medida que as peças do puzzle se encaixavam e davam forma a conclusões perturbadoras.

Carrera deve ter reparado na sua expressão aterrorizada.

— O que se passa?

— Oh, meu Deus... temos de sair daqui. Imediatamente!

18h30

Na cabana, Nate continuava debruçado sobre o portátil, como que anestesiado. Lera e relera muitas das entradas no diário do pai, comparando até algumas com ficheiros científicos também guardados no computador. As conclusões que retirava daquilo tudo eram tão perturbadoras quanto milagrosas. Voltou à última entrada registada e releu a última linha das palavras deixadas pelo pai.

«Vamos tentar outra vez hoje à noite. Que Deus nos ajude.»

Nas suas costas, o som da porta a abrir-se anunciou a presença de alguém.

— Nate? — Era o professor Kouwe.

Dando uma olhadela ao relógio, Nate percebeu que se encontrava ali enfiado há horas. De tão seco, o interior da boca parecia serapilheira. Para lá da porta aberta, a tarde dava lugar à noite à medida que o Sol se afundava no horizonte.

Libertou a língua e rodou o corpo colado à cadeira.

— Como... como está o Frank?

— Estás bem? — perguntou Kouwe quando viu o seu rosto.

Nate abanou a cabeça. Ainda não estava pronto para partilhar o que descobrira.

— Onde está a Kelly?

— Lá fora, a conversar com o sargento Kostos. Viemos cá abaixo para falar com ele e certificarmo-nos de que está tudo bem. Depois voltamos para cima. Como estão as coisas aqui?

— Os índios têm-se mantido à distância — retorquiu Nate, levantando-se. Avançou na direção da porta, com os olhos semicerrados. — Instalámo-nos na casa da árvore. O Manny e a Carrera andam a patrulhar a área.

Kouwe anuiu.

— Sim, acabei de os ver. E o equipamento? O Olin arranjou-o?

Nate encolheu os ombros.

— Diz que o sistema está corrompido. Não consegue fazer nada. Mas acredita que é capaz de pôr o sinal de GPS a funcionar corretamente. Ainda hoje, se calhar.

— Bom, creio que são boas notícias.

Nate apercebeu-se da tensão na voz do professor.

— Aconteceu alguma coisa?

Kouwe franziu a testa.

— Não sei bem, se queres que te diga.

— Talvez possa ajudar.

Nate agarrou no portátil e desligou a ficha de alimentação dos painéis solares. Não podia recarregá-lo durante a noite, de qualquer maneira. Verificou o nível da bateria e acenou com a cabeça. Após tantos anos, ainda era capaz de reter o mínimo de carga. Enfiou o portátil debaixo do braço e virou-se.

— Acho que está na altura de compararmos notas.

Kouwe anuiu.

— Foi para isso que eu e a Kelly descemos. Também temos novidades.

Uma vez mais, Nate reparou na expressão preocupada do professor. Calculou que a sua fosse igual.

— Vamos chamar os outros.

Saíram da escuridão da cabana para a luz do final de tarde. O ar lá fora parecia gelado comparado com o ambiente abafado de onde tinham saído. Nate foi ao encontro de Kelly e Kostos. Manny e Carrera juntaram-se a eles.

Não muito longe, um índio observava-os. Nate reconheceu o guia. Lavara a tinta preta que antes lhe cobria o corpo, e agora a pele castanha revelava a tatuagem vermelha que lhe decorava o peito.

— O Frank? — perguntou, mal chegou ao pé de Kelly. — Ouvi dizer que está melhor.

O rosto dela estava pálido, a expressão ausente.

— Por enquanto — respondeu Kelly. — Descobriu alguma coisa? — perguntou, ao reparar no portátil.

Nate suspirou.

— Acho que todos precisam de ouvir isto.

— Sim, está na altura de concebermos um plano — disse Kostos. — Não falta muito para anoitecer.

Kouwe apontou na direção da casa de três pisos no cimo do carvalho pré-histórico.

— É melhor subirmos.

Ninguém se opôs e, em menos de nada, subiam já a escada até ao cimo da árvore. Tor-tor ficou deitado junto à base. Nate olhou para baixo enquanto subia. O jaguar não ficara sozinho. O guia estava com ele. Era evidente que tinha instruções para não perder o grupo de vista.

No cimo das escadas, Nate subiu para o primeiro terraço da habitação de três pisos. Pôs-se de pé e tirou a mochila com o portátil guardado lá dentro. Os companheiros ocupavam o terraço e parte da entrada da divisão inferior, uma grande sala de estar comum. Os dois pisos acima eram constituídos por divisões mais pequenas e também mais privadas, com terraços individuais.

Aquilo era uma habitação familiar que tinha sido posta à disposição do grupo. Abundavam os pertences pessoais: utensílios de cerâmica e de madeira, objetos decorativos feitos de penas e flores, camas vazias, pequeninas figuras de animais. Inclusive, não cheirava ao abandono da cabana na clareira, mas a vida. Havia um aroma suave de especiarias e óleos, até um resquício de odores corporais.

Anna veio ao encontro de Nate. Trazia um prato com figos cortados.

— Uma mulher deixou-nos isto... fruta, inhame cozido, carne seca.

Nate lembrou-se então de que tinha sede, pegou num figo e deu-lhe uma dentada, sujando o queixo com os sucos do fruto. Limpou a boca com as costas das mãos.

— O Olin corrigiu o sinal do GPS?

— Ainda está a tratar disso — sussurrou Ana, quase com medo de ser ouvida. — Pela enxurrada de asneiras, não me parece que esteja a correr bem.

— Venham para dentro — chamou Kostos da entrada.

Nate desviou-se e os companheiros que ainda estavam no terraço entraram. Havia mais pratos de comida lá dentro. Até um par de selhas contendo um líquido escuro fermentado.

O professor aproximou-se das selhas. Surpreendido, virou-se para Nate.

— É cassiri !

— E isso é o quê? — perguntou Kostos, fechando a porta.

— Cerveja de mandioca — explicou Nate. — Uma bebida alcoólica produzida por muitas tribos.

Kostos arregalou os olhos.

— Cerveja? A sério?

Kouwe encheu uma caneca com o líquido escuro. Nate reparou nos pedaços de raiz de mandioca que ainda flutuavam na selha. O professor passou a caneca ao sargento.

O ranger cheirou a estranha bebida e torceu o nariz, mas acabou por dar um gole.

— Credo! — Abanou a cabeça.

— É uma coisa que requer alguma habituação — disse Nate, servindo-se de uma caneca. Manny seguiu-lhe o exemplo. — As mulheres indígenas fazem esta bebida mastigando a raiz da mandioca e cuspindo os sucos para a selha. As enzimas na saliva aceleram o processo de fermentação.

Kostos dirigiu-se às selhas e despejou a caneca.

— Minha rica Budweiser...

Nate encolheu os ombros.

Em volta, os outros foram provando a comida à disposição e sentaram-se nas esteiras. Não havia ninguém que não estivesse exausto. Todos precisavam de uma noite de sono decente.

Nate pousou o portátil num vaso de pedra virado ao contrário.

Olin lançou um olhar ao aparelho quando Nate o ligou.

— Talvez consiga usar qualquer coisa da placa desse para resolver o meu problema — disse, com os olhos vermelhos e uma expressão zangada.

— Este computador tem mais de cinco anos — respondeu Nate. — Duvido que os componentes sirvam para alguma coisa. Além disso, neste momento, o que aqui está dentro é muito mais importante para a nossa sobrevivência.

Aquelas palavras prenderam a atenção dos companheiros. Nate fitou-os.

— Já sei o que aconteceu à expedição do meu pai. E se não queremos acabar como eles, é melhor prestarmos atenção às lições aqui guardadas.

— O que aconteceu? — perguntou Kouwe.

Nate respirou fundo e acenou com a cabeça na direção do ecrã.

— Está tudo aqui. O meu pai conhecia os rumores acerca dos Ban-ali, e encontrou um índio que lhe disse que podia conduzir a equipa até ao território da tribo. Incapaz de resistir à ideia, o meu pai aceitou o repto e, nos dias seguintes, a expedição foi atacada pelas mesmas espécies mutantes que encontrámos.

Ouviram-se murmúrios das bocas dos companheiros. Manny ergueu a mão no ar, como se estivessem numa sala de aulas.

— Descobri onde criam as piranhas e os gafanhotos — disse, descrevendo em seguida o que encontrara com a soldado Carrera. — Tenho as minhas teorias acerca destes animais.

Kouwe interveio.

— Antes de entrarmos em teorias e conjeturas, é melhor discutirmos aquilo que sabemos realmente. — O professor fez sinal a Nate. — Continua. O que aconteceu depois dos ataques?

Nate fez um compasso de espera. Não era uma história fácil de contar.

— De toda a equipa, apenas o meu pai, o Gerald Clark e dois outros investigadores sobreviveram. Foram capturados por batedores dos Ban-ali, mas o meu pai conseguiu convencê-los a pouparem-lhes a vida. Daquilo que li, o dialeto deles é bastante parecido com o dos Ianomâmis.

Kouwe anuiu.

— Verdade. Ouvi-os falar e é bastante semelhante. E tratando-se de uma tribo tão isolada, a presença de um homem branco capaz de comunicar com eles na própria língua deve ter sido motivo de espanto. Não me surpreende que os Ban-ali os tenham poupado só por causa disso.

E de muito lhes serviu, pensou Nate, com pesar.

— Todos eles estavam feridos, alguns com gravidade — prosseguiu. — Porém, e de acordo com as notas do meu pai, as feridas foram milagrosamente tratadas quando chegaram à aldeia. Os golpes foram fechados sem deixar cicatrizes, as fraturas reparadas em menos de uma semana, até doenças crónicas, como o sopro cardíaco de um deles, desapareceu sem explicação. Porém, a transformação mais impressionante ocorreu no Gerald Clark.

— O braço amputado — disse Kelly, endireitando-se.

— Exato. Em poucas semanas, o coto começou a abrir-se e a sangrar, dando origem a um estranho crescimento tumoral. Um dos sobreviventes era médico. Ele e o meu pai acompanharam a transformação. O crescimento era basicamente uma massa indiferenciada de células estaminais. Estavam convencidos de que se tratava de um qualquer tumor maligno, e foi colocada a hipótese de o removerem. Só não sabiam como podiam fazer uma coisa dessas sem as ferramentas adequadas. Ao longo das semanas seguintes, porém, começaram a observar mudanças. A massa alongara-se e começara a revestir-se de pele.

Kelly arregalou os olhos.

— Estava a nascer um novo braço.

Nate anuiu. Procurou a entrada no diário que datava de três anos antes e leu as palavras do pai em voz alta:

— «Hoje, tornou-se evidente para o doutor Chandler e para mim que o tumor do Clark é de facto um processo regenerativo nunca antes observado. A ideia de fugirmos foi posta de parte até percebermos o que irá acontecer, pois trata-se de um milagre que vale o risco das nossas vidas. Embora sejam os nossos captores, os Ban-ali continuam a mostrar-se benevolentes, permitindo-nos total liberdade de movimentos, mas impedindo-nos de sair daqui. De qualquer forma, e até ver, a presença dos jaguares gigantes no desfiladeiro anula qualquer possibilidade de fuga.»

Nate endireitou as costas e abriu outro documento. Tratava-se de uma série de esboços de um braço e da parte superior de um torso masculino.

— O meu pai documentou a transformação do início ao fim. O modo como as células indiferenciadas se converteram lentamente em osso, músculo, nervo, vasos sanguíneos e pele. Foram necessários nove meses para o braço se formar totalmente.

— E o que causou o processo? — perguntou Kelly.

— Segundo o meu pai, a seiva da árvore Yagga.

— A Yagga... — repetiu Kelly.

— Não admira que venerem aquela árvore — disse Kouwe.

— O que é a Yagga? — perguntou Zane a um canto. Era a primeira vez que mostrava interesse na conversa.

Kouwe explicou o que ele e Kelly testemunharam na enfermaria existente no interior da gigantesca árvore pré-histórica.

— Os ferimentos de Frank fecharam-se quase de imediato.

— E não é tudo — acrescentou Kelly. Aproximou-se do computador para ver melhor o ecrã. — Durante a tarde, monitorizei os níveis de glóbulos vermelhos do meu irmão com um tubo hematócrito. Os valores estão a subir em flecha, como se houvesse qualquer coisa a estimular dramaticamente a produção de novos glóbulos para compensar o sangue perdido. Nunca vi uma coisa assim...

Nate abriu outro ficheiro.

— É algo na seiva. A equipa do meu pai conseguiu destilar a substância e analisaram-na através de um papel de cromatografia. À semelhança da resina de copal, rica em hidrocarbonetos, a seiva da Yagga é rica em proteínas.

Kelly fitou o ecrã.

— Proteínas?

Manny espreitou por cima do ombro dela.

— Isso não é a hipotética causa da doença? Algum tipo de proteína?

Kelly anuiu.

— Um prião. Com fortes propriedades mutagénicas. — Olhou por cima do ombro. — Disse que tinha uma teoria acerca das piranhas e dos gafanhotos?

— Esses seres também estão ligados à árvore. Os gafanhotos vivem na casca, e as piranhas numa secção do riacho entre as raízes, que funciona como viveiro. As raízes vertem seiva para a água, e estou convencido de que é o que causa a mutação durante o desenvolvimento dos animais.

— O meu pai apresenta uma conclusão semelhante — disse Nate. Na verdade, existia uma série de documentos sobre o assunto, mas não conseguira examinar todos.

— E os jaguares e os crocodilos gigantes? — perguntou Anna.

— Mutações antigas, diria eu — retorquiu Manny. — As duas espécies devem ter sofrido estas alterações há muito tempo e evoluíram nestas condições. Calculo que sejam capazes de se reproduzir e que sejam geneticamente estáveis, a ponto de não necessitarem da seiva.

— Porque não abandonam esta área, nesse caso?

— Por uma questão territorial ou por qualquer outro imperativo biológico.

— Pela vossa conversa, até parece que a árvore produziu estas criaturas de propósito — disse Zane.

Manny encolheu os ombros.

— Porque não? Talvez não tenha sido de propósito, mas por uma pressão evolutiva.

Zane abanou a cabeça.

— Impossível.

— Não sei porquê. Já vimos outros exemplos do mesmo fenómeno. — Manny virou-se para Nate. — Como a árvore de formigas.

Nate franziu a testa, recordando o ataque das formigas ao sargento Kostos. A árvore de formigas também tinha os troncos ocos, que tanto serviam para albergar a colónia como para alimentar os insetos com a sua seiva açucarada. As formigas, por sua vez, protegiam a árvore contra a ameaça de outros animais ou plantas. Começou a perceber onde Manny queria chegar. Havia uma semelhança evidente entre os dois casos.

Manny prosseguiu.

— O que temos aqui é uma simbiose entre vida vegetal e animal, onde ambas as espécies evoluíram numa intrincada relação com benefícios mútuos.

— Isso é tudo muito bonito, mas interessa assim tanto? — disse Carrera. A ranger estava de vigia numa das janelas, com o sol a desaparecer atrás dos ombros. — Sabemos como podemos combatê-los? Se tivermos de sair daqui intempestivamente...

Nate encarregou-se de responder.

— Estas criaturas podem ser controladas.

— Como?

Nate apontou para o computador.

— O meu pai demorou anos a descobrir os segredos dos Ban-ali. Ao que parece, a tribo desenvolveu pós que tanto podem atrair como repelir as criaturas. Vimos isso acontecer com os gafanhotos, mas eles também conseguem fazer o mesmo com as piranhas. Depositando os pós na água, são capazes de desencadear uma resposta agressiva nestas criaturas, que de outra forma seriam dóceis. O meu pai acreditava que se trata de um composto capaz de estimular a territorialidade dos animais, forçando-os a atacar tudo o que se mexa.

Manny anuiu.

— Nesse caso, ainda bem que matámos a maioria da população adulta. Calculo que demore algum tempo até o viveiro produzir uma nova remessa. É uma das desvantagens de um sistema de defesa biológico.

— Talvez seja por isso que mantêm mais do que um tipo de criatura — sublinhou Carrera. — Os gafanhotos devem funcionar como exército de reserva.

Manny franziu o sobrolho.

— Claro. Como é que não pensei nisso?

Carrera olhou para Nate.

— E os jaguares e os crocodilos?

Nate acenou com a cabeça.

— Guardiães, tal como pensámos, posicionados para defender um perímetro de segurança. Patrulham os pontos de entrada do território, mas até os jaguares podem ser evitados pintando o corpo com um pó preto, o que permite aos Ban-ali entrarem e saírem livremente do vale. Imagino que esse pó funcione como os dejetos de crocodilo, um repelente natural para os jaguares.

Manny assobiou.

— Quer dizer que a pintura negra do nosso guia não era só camuflagem.

— E onde arranjamos esse pó? — perguntou Kostos. — De onde vem?

— Também da Yagga — respondeu Kouwe. O professor pouco se pronunciara desde o início da conversa, apenas parecia mais pálido à medida que as revelações se sucediam.

Nate anuiu, surpreendido pela resposta, sobretudo porque o professor tinha razão.

— Os Ban-ali fabricam o pó com a casca da árvore e os óleos das folhas. Como é que sabia?

— Porque tudo o que aqui foi discutido tem uma ligação com esta árvore pré-histórica. Acho que o Manny tem razão quando diz que a Yagga é uma espécie de árvore de formigas, mas está enganado em relação a quem são os insetos.

— Como assim? — perguntou Manny.

— As criaturas mutantes são meras ferramentas biológicas fornecidas pela árvore aos seus verdadeiros trabalhadores. — Kouwe olhou em volta. — Os Ban-ali.

Um silêncio de espanto abateu-se sobre o grupo.

Kouwe prosseguiu.

— Os nativos são as formigas-soldado nesta relação. Chamam à árvore Yagga, a palavra deles para mãe. Aquela que dá a vida... uma cuidadora. Incontáveis gerações atrás, muito provavelmente durante a primeira migração de humanos para a América do Sul, esta tribo deparou-se com os extraordinários poderes de cura desta árvore e os seus membros ficaram irremediavelmente ligados a ela. Tornaram-se ban-yin... escravos. Cada um servindo o outro numa complexa rede de ataque e defesa.

Nate achou a comparação agoniante. Humanos a servir de formigas.

— Esta floresta é pré-histórica — concluiu o professor. — Remontará provavelmente à Pangeia, quando os continentes americano e africano ainda estavam unidos. As espécies à nossa volta podem estar aqui desde que o homem deu os primeiros passos. Existem vários mitos acerca de árvores como esta, em todos os cantos do mundo. A guardiã maternal. Talvez este encontro não tenha sido o primeiro. Talvez tenham existido muitos outros... com outras Yagga.

Os companheiros digeriram aquela ideia cada um à sua maneira. O próprio Nate não acreditava que o pai tivesse levado a história da Yagga tão longe. O conceito era perturbador.

O sargento Kostos mudou a M16 de ombro.

— Chega de lições de história. Pensei que estávamos aqui para discutir um plano. Uma maneira de fugirmos daqui, caso não consigamos chamar ninguém para nos ajudar.

— O sargento tem razão. — Kouwe virou-se para Nate. — Ainda não nos contaste o que aconteceu ao teu pai e aos outros. Como é que o Gerald Clark fugiu?

Nate respirou fundo e fitou o computador. Procurou a última entrada do diário e leu-a em voz alta: «Dezoito de abril. Recolhemos pó suficiente para tentar a fuga logo à noite. Depois do que descobrimos, é imperativo que consigamos alcançar a civilização. Não podemos esperar mais. Vamos pintar os corpos de preto e fugir quando a Lua desaparecer. A Illia conhece os trilhos que nos permitem evitar os batedores, mas o caminho de volta à civilização será longo e perigoso. Contudo, não temos escolha... muito menos depois do nascimento. Que Deus nos proteja.»

Nate endireitou as costas e fitou os companheiros.

— O Gerald não foi o único que tentou fugir.

A expressão nos rostos foi igual em todos.

Mas foi o único que conseguiu alcançar a civilização...

— Quer dizer que todos tentaram... — murmurou Kelly.

Nate anuiu.

— Até uma mulher dos Ban-ali, uma batedora chamada Illia, que se apaixonou pelo Gerald Clark e se casou com ele. O Gerald levou-a consigo.

— E o que lhes aconteceu? — perguntou Anna.

Nate abanou a cabeça.

— Esta foi a última entrada, por isso...

— Ninguém teve sucesso — disse Kelly, com um olhar triste. — Apenas o Gerald Clark.

— Posso tentar perguntar ao Dakii — disse Kouwe.

— Dakii?

O professor apontou para o chão.

— O guia que nos trouxe. Entre aquilo que entendo da língua dele e o pouco de inglês que ele sabe, talvez consiga descobrir o que aconteceu aos outros, como morreram.

Nate anuiu, embora não tivesse a certeza se queria saber os pormenores.

— Mas o que os levou a fugirem nessa noite? — perguntou Manny. — O que motivou essa urgência na última entrada do diário?

Nate suspirou.

— Foi por isso que quis mostrar-vos isto. O meu pai descobriu algumas verdades perturbadoras acerca dos Ban-ali, verdades que precisava de partilhar com o mundo exterior.

— O quê? — perguntou Kouwe.

Nate não sabia por onde começar.

— Foram necessários anos de convivência com os Ban-ali para o meu pai juntar as peças. Ele reparou que, em termos tecnológicos, pareciam mais avançados que os restantes povos da Amazónia. Usavam sistemas de roldanas, por exemplo. Algumas casas até tinham uma espécie de elevadores rudimentares, que funcionavam à base de contrapesos. Estes e muitos outros avanços pareciam pouco naturais numa tribo tão isolada, e o meu pai passou muito tempo a estudar a forma como eles educavam as crianças. Ficou completamente fascinado com estas questões.

— E o que aconteceu? — perguntou Kelly.

— O Gerald Clark apaixonou-se por essa tal nativa, a Illia. Casaram-se no decurso do segundo ano de cativeiro. Ao terceiro ano, a Illia engravidou e, no quarto, a criança nasceu. — Nate fez uma pausa e fitou os companheiros. — O bebé nasceu morto e com inúmeras malformações. Um monstro genético, segundo as palavras do meu pai.

Kelly contraiu o rosto.

Nate apontou para o portátil.

— Existem documentos com mais pormenores. O meu pai e o médico do grupo chegaram a algumas conclusões tenebrosas. Acreditavam que a árvore não criara apenas mutações em espécies inferiores. Ao longo dos anos, tinha também transformado os Ban-ali, aumentando-lhes as capacidades cognitivas, os reflexos e até a visão. Embora permanecessem iguais fisicamente, a árvore estava a apurar a espécie. O meu pai suspeitava que os Ban-ali estavam a distanciar-se da humanidade em termos genéticos. Uma das definições que separa as espécies é a incapacidade de se reproduzirem com outras.

— O nado-morto... — murmurou Manny.

Nate anuiu.

— O meu pai acreditava que os Ban-ali se encontravam perto de deixarem de ser Homo sapiens para se tornarem outra coisa qualquer, quem sabe uma nova espécie.

— Meu Deus! — exclamou Kelly.

— Foi por isso que a fuga se tornou urgente. Aquela mutação tinha de ser travada.

Os companheiros ficaram em silêncio. Ninguém falou durante um minuto.

— O que vamos fazer? — murmurou por fim Anna.

— Pomos o raio do GPS a funcionar — disse Kostos, determinado. — E depois vamos embora deste maldito lugar!

— Entretanto, talvez não fosse má ideia deitarmos a mão a esse pó repelente — sugeriu Carrera. — Só para o caso...

Kelly aclarou a garganta.

— Estamos a esquecer-nos de um pormenor vital. A doença continua a espalhar-se e não temos uma cura. O que é que o Gerald Clark levou deste vale? — Virou-se para Nate. — Há alguma menção a uma doença contagiosa no computador?

— Não. Com as propriedades curativas da Yagga, todos se mantinham incrivelmente saudáveis. A única pista é a história de uma maldição que atinge quem abandona a tribo. Uma maldição que acompanha quem sai e quem com ela se cruza. Mas o meu pai acreditava que se tratava apenas de um mito para desencorajar alguém de abandonar o vale.

— Uma maldição que acompanha quem sai e quem com ela se cruza — repetiu Manny. — Parece-me que estamos a falar da doença.

Kelly virou-se outra vez para Nate.

— E se for verdade? De onde veio esta doença? Como é que o Gerald ficou cheio de tumores? O que o tornou contagioso?

— Aposto que tem que ver com a seiva da Yagga — disse Zane. — Talvez as pessoas não adoeçam enquanto aqui estão. Quando fugirmos, precisamos de levar uma boa quantidade connosco. Isso parece-me óbvio.

Kelly ignorou Zane. Nate leu a expressão no rosto dela. A filha estava em risco de vida.

— Está a escapar-nos alguma coisa — murmurou Kelly. — Qualquer coisa importante. — O tom de voz foi tão baixo que Nate duvidou que alguém conseguisse ouvi-la.

— Posso falar com o Dakii — voltou a sugerir Kouwe. — Ver se ele tem respostas, tanto para o destino dos outros como em relação à doença.

— Muito bem. Mantemos o plano, por enquanto — disse Kostos, junto à porta. Olhou em redor da divisão e começou a atribuir tarefas. — O Olin continua a trabalhar no equipamento. De madrugada, o professor e a Anna, os nossos peritos em assuntos indígenas, recolherão o máximo de informação dos nossos anfitriões. O Manny, a Carrera e eu vamos tentar arranjar o tal pó repelente. O Zane, a Kelly e o Rand ficam encarregados de terem o Frank pronto para uma evacuação a qualquer momento. E enquanto estão lá em cima na árvore, aproveitam para recolher uma amostra da seiva.

Lentamente, todos acenaram com a cabeça. Se o plano não servisse para mais nada, pelo menos servia para manterem as cabeças ocupadas e afastadas dos horrores biológicos escondidos naquele vale paradisíaco.

Kouwe levantou-se.

— Mais vale começar já a tratar do assunto. Vou falar com o Dakii. Aproveitar enquanto está sozinho.

— Eu acompanho-o — disse Nate.

— E eu farei uma última visita ao Frank — disse Kelly. — Antes que anoiteça.

O trio abandonou a divisão e encaminhou-se para a escada. O Sol estava quase a desaparecer no horizonte. A noite avançava como uma nuvem negra sobre a clareira.

Em silêncio, os três começaram a descer, embrenhados nos seus pensamentos.

Nate foi o primeiro a pisar o chão da floresta e ajudou Kelly e o professor a saltarem do último degrau. Tor-tor aproximou-se e esfregou o focinho nas pernas de Nate, que lhe fez uma festa atrás das orelhas.

Uns metros ao lado, Dakii levantou-se.

Kouwe foi ao encontro do índio.

Kelly observou a Yagga. Os ramos superiores ainda se encontravam banhados pelo sol poente.

— Se esperar um bocado, posso ir consigo — disse Nate.

Kelly abanou a cabeça.

— Não é preciso. Tenho um rádio dos rangers comigo. Aproveite para descansar.

— Mas...

Kelly lançou-lhe um olhar cansado e triste.

— Não vou demorar. Só preciso de uns minutos sozinha com o meu irmão.

Nate anuiu. Sabia que os Ban-ali não lhe fariam mal, mas detestava a ideia de a deixar sozinha com aquela dor. Primeiro a filha, e agora o irmão... Não havia um centímetro do rosto dela que não exprimisse o sofrimento que a consumia por inteiro.

Ela pegou-lhe na mão.

— Mas obrigada por se oferecer — murmurou. Virou costas e encaminhou-se na direção da árvore.

Atrás dele, Kouwe acendera o cachimbo e conversava com Dakii. Nate deu uma palmadinha no jaguar e foi ao encontro deles.

Kouwe virou-se.

— Tens uma fotografia do teu pai?

— Sim, na minha carteira.

— Podes mostrá-la ao Dakii? De tantos anos que passou com o teu pai e com os outros, ele deve saber o que são fotografias.

Nate encolheu os ombros, sacou da carteira e entregou a Kouwe uma fotografia do pai numa aldeia ianomâmi, rodeado de crianças indígenas.

O professor mostrou-a ao índio.

Dakii arregalou os olhos e alternou o olhar entre Nate e a fotografia.

— Kerl — murmurou, batendo com a ponta do dedo na imagem.

— Isso mesmo... Carl — disse Kouwe. — O que lhe aconteceu? — O professor repetiu a pergunta no dialeto ianomâmi.

Dakii não percebeu à primeira. Foram necessárias mais algumas trocas de palavras até que a pergunta fosse entendida. O índio acenou então vigorosamente com a cabeça, e seguiu-se um complicado diálogo entre Kouwe e Dakii, uma tamanha cacofonia, da qual Nate não conseguia retirar sentido.

Fazendo uma pausa, Kouwe virou-se para Nate.

— Os outros foram mortos. O Gerald foi o único que escapou aos batedores. Calculo que o treino nas Forças Especiais o tenha ajudado.

— E o meu pai?

Dakii deve ter percebido a palavra. Olhou para a fotografia e depois para Nate.

— Filho? — perguntou. — Filho do homem?

Nate anuiu.

Dakii sorriu e deu-lhe uma palmadinha no braço.

— Bom... filho de wishwa.

Nate desviou o olhar para Kouwe.

— Wishwa é a palavra deles para xamã. Aos seus olhos, as maravilhas modernas trazidas pelo teu pai devem ter-lhe proporcionado esse título.

— O que lhe aconteceu?

Kouwe dirigiu-se novamente ao índio numa mistura de inglês e ianomâmi. Nate começava a entender um pouco do que diziam.

— Kerl? — Dakii anuiu e abriu um grande sorriso. — O meu irmão tesharirin trazer Kerl de volta para a sombra da Yagga. Muito bom.

— Trazer de volta? — perguntou Nate.

Kouwe continuou a arrancar pedaços da história ao índio. Dakii falava rapidamente. Demasiado para Nate poder acompanhá-lo. Por fim, Kouwe virou-se de novo. A sua expressão não augurava nada de bom.

— O que foi que ele disse?

— Daquilo que percebi, eles trouxeram realmente o teu pai de volta. Só não sei se morto ou vivo. A seguir, tanto por causa da tentativa de fuga como pelo estatuto de wishwa, foi-lhe concedida uma grande honra entre os Ban-ali.

— Que honra?

— Levaram-no para a árvore e ofereceram o seu corpo às raízes.

— Ofereceram o corpo dele às raízes?

— Calculo que como fertilizante. Acho que foi o que ele quis dizer.

Nate sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés e recuou um passo. Apesar de saber que o pai estava morto, a realidade dos factos era demasiado tenebrosa. O pai arriscara a vida para tentar travar a transformação dos Ban-ali pela árvore pré-histórica e, no final, acabara a servir de alimento à maldita coisa.

Dakii continuou a acenar com a cabeça e a sorrir como um idiota.

— Muito bom. Kerl com Yagga. Nashi nar.

Nate estava demasiado entorpecido para perguntar o que significava aquela palavra. Kouwe, porém, encarregou-se de traduzir.

— Nashi nar... para sempre.

20h08

Munido de binóculos de visão noturna, Louis aguardava na escuridão da selva. Em volta, conseguia ver as assinaturas térmicas dos seus homens, igualmente deitados no chão ou escondidos entre os arbustos. O Sol acabara de se pôr e a noite descia rapidamente sobre o vale. Encontravam-se ali há horas.

Mas não falta muito.

Sabia que tinha de ser paciente. A pressa é inimiga da perfeição, aprendera. Havia que encaixar uma última peça antes de iniciar o ataque, e, como tal, continuava ali deitado, coberto pela ramagem de um feto e com o rosto pintado com riscas pretas.

Tinha sido um dia longo e agitado. Naquela manhã, uma hora após o nascer do Sol, recebera uma mensagem do cúmplice infiltrado na outra equipa. O homem ainda respira! Que bom para os dois! Informara-o de que a aldeia dos Ban-ali se localizava num vale isolado, apenas acessível pelo desfiladeiro nos penhascos adiante.

Que mais podia Louis pedir? Todos os alvos encurralados no mesmo sítio.

Mas havia um senão: os malditos jaguares.

Como sempre, Tshui arranjara uma solução. A coberto da neblina matinal e acompanhada de um punhado de batedores escolhidos a dedo — onde se incluía o comando alemão, Brail —, ela introduzira-se no coração do desfiladeiro e espalhara pela floresta nacos de carne fresca tingidos com um potente veneno, inodoro e insípido, mas capaz de matar ao mínimo contacto. Os jaguares, com a sede de sangue ainda ao rubro do ataque à outra equipa, não resistiram à oferta.

Em poucas horas, os felinos foram caindo um a um, para nunca mais se levantarem. Alguns, porventura mais desconfiados, tinham evitado a carne. Mas os óculos de infravermelhos resolveram o problema, permitindo a Tshui e aos outros caçarem esses últimos animais com dardos envenenados.

A matança foi silenciosa, e os corpos acumularam-se pela floresta como se estivessem apenas a dormir. Com o caminho livre, Louis e os seus homens avançaram para uma posição defensiva junto à passagem lateral na falésia. O corpo frio de um felino repousava a poucos metros de Louis, apenas um monte inofensivo de pelo e carne. Faltava um derradeiro passo, mas tinha de ser paciente.

A pressa é inimiga da perfeição.

Finalmente, Louis apercebeu-se de movimento na passagem. Através dos óculos, viu duas figuras surgirem iluminadas como tochas. Desciam os degraus na pedra, sozinhas. Louis tinha os homens a postos para silenciarem quaisquer nativos que viessem à procura deles, mas nenhum dos Ban-ali se mostrara. A atenção deles estaria focada nos estranhos na aldeia, confiando que os jaguares os protegeriam de mais intrusos.

Pouca sorte, mes amis.

Alguém mais perigoso viera prestar-lhes uma visita.

As duas figuras continuaram a descer a passagem. Louis baixou os óculos por instantes. Apesar de saber que estavam ali, a camuflagem preta era perfeita a ponto de tornar o par invisível a olho nu. Voltou a erguer os óculos. Os corpos iluminaram-se outra vez. Sorriu.

Ah, as maravilhas da ciência moderna.

Numa questão de segundos, as figuras encontravam-se já na base da falésia. Houve um momento de hesitação. Pressentiriam que havia algo de errado? Estariam com medo dos jaguares? Louis susteve a respiração. Lentamente, os índios desceram a ladeira, prontos para a patrulha noturna.

Já não era sem tempo...

Uma nova figura emergiu da selva e cortou-lhes o caminho. O seu corpo esguio brilhava mais que os outros. Louis baixou os binóculos. Era Tshui, despida da cabeça aos pés. Os cabelos negros caíam como uma queda de água sobre as nádegas tonificadas. Ela avançou na direção do par de batedores. Uma deusa da selva que despertara da escuridão.

O par de nativos deteve-se.

Ouviu-se um sopro. Um dos índios deu uma palmada no pescoço e caiu redondo. O dardo que o atingiu tinha veneno suficiente para matar um jaguar de meia tonelada. O homem estava morto ainda antes de a cabeça embater no chão.

O segundo índio hesitou um instante, deu meia-volta e correu o mais depressa que pôde na direção da passagem.

Tshui, porém, foi mais rápida. Quase sem esforço, voltou a barrar-lhe o caminho. Ele abriu a boca para emitir um grito de alerta. Tshui não lhe deu hipótese. Estendeu o braço e soprou uma mão-cheia de pó na cara dele.

Tossindo, o grito do índio não passou de um gorgolejar abafado. Caiu de joelhos, à medida que a droga lhe atacava o sistema.

Tshui ficou a olhar para ele, inexpressiva. Apenas os olhos negros brilhavam com uma fome sombria. Louis não precisava dos óculos para ver o fogo que ardia dentro dela, à espera de ser apagado. Tshui ajoelhou-se ao lado da presa caída, e depois olhou na direção do esconderijo de Louis. Tinha um sorriso nos lábios. Nunca estivera tão bonita.

Louis levantou-se. Detinha finalmente a última peça do puzzle, alguém que o informasse acerca das defesas da tribo. Não precisava de mais nada para o ataque no dia seguinte.

Fitou os olhos esfomeados da amante e sorriu-lhe. O prazer que ela retirava daqueles momentos nunca deixaria de o surpreender.

21h23

Kelly sentou-se de pernas cruzadas junto à cama do irmão. Tapado por uma manta fina, Frank sorvia um líquido por uma cana espetada numa noz do tamanho de um melão.

Reconheceu o fruto. Crescia nos ramos da Yagga. O líquido parecia leite de coco, doce, cremoso, com uma boa dose de açúcar e gorduras. Provara-o quando um nativo na enfermaria o dera a beber ao irmão.

Esperou que Frank terminasse a bebida energética e lha passasse com as mãos trémulas. Apesar de acordado, os olhos continuavam semicerrados devido ao efeito da morfina.

— Como te sentes?

— Nunca estive melhor — respondeu Frank, com a voz rouca. Olhou para os cotos tapados pela manta.

— Tens dores?

O irmão franziu o sobrolho e esboçou um sorriso cansado.

— Não. Mas sou capaz de jurar que sinto uma comichão nos dedos dos pés.

— Sensações-fantasma. Provavelmente vais senti-las durante meses.

— Uma comichão que nunca poderei coçar... espetacular.

Kelly sorriu. A mistura de alívio, exaustão e medo que sentia encontrava-se espelhada no rosto do irmão, mas pelo menos o dele começa a ganhar alguma cor. Por muito horrível que fosse a situação, Kelly não podia deixar de se sentir grata pelos poderes curativos da Yagga. A árvore salvara a vida de Frank. A recuperação dele revelava-se impressionante.

O irmão abriu a boca para soltar um longo bocejo. Kelly levantou-se.

— Precisas de dormir. Por muito milagroso que isto seja, o teu corpo precisa de descanso. — Olhou em volta e entalou a fralda da camisa nas calças.

Encontravam-se dois nativos na enfermaria. Um deles era o xamã, que volta e meia lhe lançava um olhar impaciente. Kelly queria passar ali a noite, mas o índio recusara, explicando-lhe num inglês tosco que ele e os outros olhariam pelo irmão. «A Yagga protege-o», declarara. Não havia mais nada a discutir.

Kelly suspirou.

— Bom, é melhor ir andando antes que corram comigo.

Frank anuiu e bocejou de novo. Kelly já lhe tinha contado acerca do plano para o dia seguinte, assegurando que regressaria ao nascer do dia para o ver. Estendeu o braço e apertou-lhe a mão.

— Adoro-te, mana.

Kelly curvou-se e deu-lhe um beijo na cara.

— Eu também te adoro, Frank.

— Vou ficar bem, e a Jessie também.

Endireitando-se, Kelly suprimiu a súbita vontade de chorar. Não queria dar parte fraca diante do irmão. Se o fizesse, ficaria ali a chorar a noite inteira. Até então, guardara os sentimentos dentro de si. Era como os O’Brien lidavam com a dor. A típica resiliência irlandesa perante o sofrimento. Não era agora que ia desatar a chorar como uma criança.

Deu uma última vista de olhos ao cateter. Não se encontrava em uso, dado que Frank não precisava de suporte de fluidos, mas Kelly preferia mantê-lo no lugar, não fosse haver uma emergência.

No outro lado da enfermaria, o xamã lançou-lhe um olhar de poucos amigos.

Vai-te lixar, pensou, irritada. Vou-me embora quando entender que devo ir. Levantou a manta e verificou o estado dos cotos. A camada de seiva translúcida permanecia intacta. Conseguia ver, aliás, a granulação que começara a formar-se nas feridas, aquela camada de tecido protetor que se forma debaixo de uma crosta. O ritmo a que aquilo acontecia era simplesmente extraordinário.

Ajeitando outra vez a manta, reparou que o irmão fechara os olhos. Um ligeiro ressonar escapava-se-lhe da boca aberta. Inclinou-se com cuidado e deu-lhe outro beijo. Tentou suprimir novamente a vontade de chorar, mas desta vez não conseguiu impedir as lágrimas. Limpou os olhos e lançou um último olhar em volta.

O xamã deve ter reparado no seu rosto marejado. A expressão impaciente suavizou-se. Acenou com a cabeça e lançou-lhe um olhar solidário, reiterando a promessa silenciosa de que cuidaria do irmão.

Sem escolha, Kelly respirou fundo e encaminhou-se para a saída. A sós com os seus pensamentos, a longa descida pela rampa pareceu-lhe interminável. As preocupações multiplicaram-se e ampliaram-se. Pela filha, pelo irmão, pelo mundo em geral.

Abandonou por fim a árvore. Levantara-se uma brisa noturna, mas o ar continuava quente. A Lua brilhava no céu, mas as nuvens acumulavam-se. Algures à distância ouvia-se o murmúrio de trovões. Iria chover antes de o dia romper.

Apressou-se a atravessar a clareira na direção da casa da equipa. Avistou uma figura com uma lanterna na base da árvore. A soldado Carrera, percebeu, quando se aproximou o suficiente. A ranger acenou-lhe. Tor-tor estava deitado a seu lado. O jaguar ergueu a cabeça ao sentir a sua presença, cheirou o ar e voltou a enroscar-se.

— Como está o Frank? — perguntou Carrera.

Kelly não estava com vontade de fazer conversa, mas não podia ser indelicada a ponto de não responder.

— Bastante melhor.

— Ainda bem. — A ranger apontou com o polegar para a escada. — É melhor ir dormir. Temos um longo dia pela frente.

Kelly anuiu, embora duvidasse que fosse capaz de dormir tão depressa. Começou a subir a escada.

— Deixámos um quarto vago no terceiro piso. É o que fica no lado direito.

Perdida nas suas preocupações, Kelly mal ouviu a militar.

— Boa noite — murmurou, e continuou a subir.

No cimo da escada, não encontrou ninguém no terraço vazio nem na sala comum. Exaustos de tantos dias sem descanso, os companheiros deviam estar a dormir. Ergueu a cabeça e fitou os andares superiores, depois dirigiu-se para as duas escadas secundárias. A ranger dissera-lhe que o quarto dela se situava no terceiro piso.

Boa... É o que acontece quando somos os últimos a escolher.

O terceiro piso ficava bastante mais alto do que os outros dois. Aninhado noutro conjunto de ramos, era quase uma estrutura à parte do resto da habitação, constituído por dois quartos individuais.

As pernas doíam-lhe do esforço da subida. O vento ganhara força e abanava os ramos e a escada. As rajadas traziam o cheiro de chuva. No céu, a Lua escondera-se atrás das nuvens. Apressou-se a chegar ao topo, antes que a tempestade se abatesse sobre a aldeia.

Por aquela altura, conseguia ver os raios que rasgavam o céu em explosões de luz. Os trovões ressoavam como tambores. De repente, a ideia de dormir numa árvore gigantesca não lhe pareceu uma escolha muito inteligente. Sobretudo quando o quarto se situava nos ramos superiores.

As primeiras gotas atingiram-na no preciso instante em que alcançou o último terraço. O vento e a chuva aumentaram rapidamente de intensidade. As tempestades na Amazónia tendiam a ser breves, mas costumavam ser violentas. Aquela não era exceção.

Meio agachada, virou-se na direção das portas dos dois quartos.

Esquerda ou direita? Já não se lembrava de qual era o seu.

Um relâmpago explodiu diretamente por cima com uma fúria ensurdecedora. A chuva caiu como uma torrente e as rajadas converteram-se num vendaval contínuo. O terraço de madeira oscilou como o convés de um barco em alto-mar.

Esquecendo a preocupação de poder acordar alguém, correu aos tropeções para a porta mais perto.

O quarto estava escuro. A luz dos relâmpagos penetrava apenas por uma porta mais pequena nas traseiras. Felizmente, a cama no centro encontrava-se vazia.

Ao avançar na direção da cama, tropeçou em qualquer coisa no chão. Caiu de joelhos e soltou um grito. Apalpou o chão e encontrou uma mochila.

— Quem está aí? — perguntou uma voz.

Ainda de joelhos, Kelly ergueu os olhos e deparou com uma silhueta na porta das traseiras. Sentiu uma pontada de pânico.

Um novo relâmpago revelou a identidade da figura na porta.

— Nate? — perguntou, meio envergonhada. — É a Kelly.

Ele apressou-se ao encontro dela e ajudou-a a levantar-se.

— O que faz aqui?

Kelly afastou o cabelo molhado do rosto, sentindo as faces quentes. Ele deve estar a pensar que sou mesmo idiota.

— Acho... acho que me enganei no quarto...

— Está bem?

As mãos de Nate seguravam-lhe os braços molhados. O toque dele era quente.

— Sim. Sinto-me apenas um bocado parva.

— Não tem razão para isso. É impossível ver um palmo à frente do nariz.

Um novo relâmpago iluminou-lhes os rostos. Ficaram a olhar um para o outro.

— Como... como está o Frank?

— Bem.

Um trovão ressoou à distância, dando a sensação de que o mundo se tornara maior e eles mais pequenos. A sua voz converteu-se num sussurro quase inaudível.

— Eu... eu nunca cheguei a dizer-lhe o quanto lamento pela morte do seu pai.

— Obrigado.

Aquela única palavra, pronunciada num sussurro, encerrava uma dor antiga. Como uma traça atraída por uma chama, inclinou-se na direção dele, hipnotizada, sabendo que seria consumida, mas sem poder evitá-lo. A mágoa dele tocara qualquer coisa dentro de si. A muralha em torno do coração desabou. As lágrimas inundaram-lhe os olhos e os ombros começaram a tremer.

— Está tudo bem — sussurrou ele, embora Kelly não tivesse dito uma palavra. Nate puxou-a para si e abraçou-a.

Os soluços suprimidos e os tremores converteram-se em choro. A dor e o medo acumulados soltaram-se numa torrente de emoções. Os joelhos cederam, mas Nate amparou-a e deitou-a consigo no chão. Apertou-a com força, a ponto de ela sentir o coração dele a bater contra o seu peito.

Ficaram estendidos no meio do quarto, enquanto a tempestade à solta sacudia as árvores e os trovões retumbavam com a força de titãs. Uma vez mais, ergueu o rosto e os olhares dos dois fixaram-se um no outro.

Estendeu a mão e puxou os lábios dele ao encontro dos seus. Sentiu o sabor salgado das lágrimas dele, de ambos. De início, aquele primeiro beijo não foi mais que um imperativo de sobrevivência perante a dor imensa, mas, à medida que os lábios se exploravam, uma fome muda despertou.

Sentiu o coração dele acelerar.

Nate afastou-a momentaneamente, ofegante. Os olhos brilhavam como faróis na escuridão.

— Kelly...

— Está tudo bem — sussurrou, repetindo as palavras dele, para depois o puxar outra vez para si.

Presos nos braços um do outro, deixaram-se cair de lado. As palmas das mãos exploraram, os dedos desapertaram e desfizeram-se de roupas molhadas. Os corpos fundiram-se sem se perceber onde começava um e terminava o outro.

Enquanto a tempestade despejava a sua fúria, as paixões incendiaram-se e o desgosto consumiu-se naquela fornalha, perdido entre a dor e o prazer, entre ritmos antigos e gritos mudos. O quarto tornou-se demasiado pequeno. Sem darem conta, encontraram-se deitados no terraço nas traseiras.

Os relâmpagos rasgavam as nuvens. Os trovões ribombavam. A chuva fustigava-lhes a pele nua.

A boca dele era como um ferro em brasa nos seus seios, no pescoço. Arqueou as costas. Os relâmpagos explodiam em tons de vermelho através dos olhos fechados. Esfomeados, os lábios dele esmagaram-se contra os seus, o ritmo da respiração partilhado num só. Debaixo da tempestade, debaixo dele, sentiu a tensão acumular-se. Primeiro devagar, depois com mais força, crescendo através e para fora de si enquanto gritava contra os lábios dele.

O grito foi respondido por outro, vindo dele, forte como um trovão aos seus ouvidos. Durante incontáveis segundos, agarraram-se a esse momento, alheados do mundo, da tempestade, mas não um do outro.

Abriu os olhos e encontrou de novo os dele.

Fitavam-na profundamente.

Não, nunca mais se sentiria perdida.


QUINTO ATO

RAIZ

UNHA-DE-GATO

Família: Rubiaceae

Género: Uncaria

Espécie: Tomentosa, Guianensis

Nome comum: Unha-de-gato, paraguayo, garabato, garbato casha, samento, toroñ, tambor huasca, aun huasca, uña de gavilan

Partes utilizáveis: Casca, raiz, folhas

Propriedades: Antibacteriano, antioxidante, anti-inflamatório, antioncótico, antiviral, citostático, depurativo, diurético, hipotensivo, imunoestimulante, vermífugo, antimutagénico


16

TRAIÇÃO

17 de agosto, 07h05

Selva amazónica

Nate acordou com Kelly despida nos seus braços. Os olhos dela estavam já abertos.

— Bom dia... — disse ela, aconchegando-se. Nate ainda conseguia sentir-lhe o cheiro da chuva na pele. Ela sorriu. — Já amanheceu há algum tempo.

Nate tentou apoiar-se num cotovelo, o que não era fácil numa cama de rede.

— Porque não me acordaste?

— Calculei que precisasses de dormir mais uma hora.

Kelly rolou para fora da cama, deixando-a a balançar, e puxou a única manta para se cobrir.

Nate estendeu a mão para agarrá-la, mas ela recuou.

— Temos um longo dia pela frente.

Nate soltou um resmungo, levantou-se e foi procurar a roupa na pilha atirada no chão. Vestiu os boxers enquanto Kelly reunia as coisas dela. Olhou na direção da porta do quarto e avistou o maço de cigarros no terraço. Encaminhou-se nessa direção como um náufrago à procura de uma jangada. Havia uma série de beatas espalhadas no chão do terraço.

Tinham ficado à conversa até altas horas da madrugada. Falaram sobre os pais, os irmãos, os filhos, vidas e perdas. Houve mais lágrimas derramadas, e depois voltaram a fazer amor, desta vez com menos urgência, mas com renovada paixão. A seguir, deitaram-se na cama e dormiram umas poucas horas até o dia nascer.

Ao curvar-se para apanhar o maço de cigarros, Nate fitou a selva iluminada pela luz do novo dia. O céu azul mostrava-se límpido e brilhante após a tempestade. As gotas da chuva ainda se agarravam às folhas, reluzindo como pérolas. Mas havia mais.

— Anda ver isto — disse por cima do ombro, na direção do quarto.

Com as calças vestidas e a camisa por abotoar, Kelly veio ao seu encontro. Nate fitou-a, atordoado uma vez mais pela sua beleza.

Kelly arregalou os olhos.

— Maravilhoso... — murmurou, aninhando-se de encontro a ele. Nate colocou-lhe o braço por cima dos ombros.

Atraídas pela humidade, centenas de borboletas esvoaçavam e cobriam os ramos superiores da árvore. As asas, azuis e verdes, eram do tamanho de uma mão aberta.

— Morphos — disse Nate. — Conheço a espécie, mas nunca encontrei nenhuma com estas cores.

Kelly viu uma borboleta atravessar um raio de luz. Parecia brilhar com uma luminescência própria.

— É como se alguém tivesse partido centenas de vitrais e espalhasse os cacos pelas árvores.

Nate abraçou-a com mais força. Queria guardar aquele momento para sempre. Ficaram em silêncio até serem interrompidos pelas vozes dos companheiros nas divisões abaixo.

— Bom, parece que está na hora de descermos — disse Nate. — Temos muito que fazer.

Kelly anuiu e suspirou. A sua relutância era compreensível. Enquanto ali estivessem, sozinhos, era-lhes possível esquecer — nem que fosse por um instante — os perigos e as preocupações que ainda os aguardavam.

Mas ninguém conseguia fugir da realidade para sempre.

Sem pressa, acabaram de se vestir. Quando estavam prestes a descer e a fim de deixar a divisão como a encontraram, Nate atravessou o quarto e desceu a cortina de bambu e folhas de palma da porta traseira.

Kelly reparou no gesto dele e aproximou-se para examinar as dobradiças no cimo da cortina.

— Se estiver corrida, funciona como uma porta. Se a empurrarmos, converte-se num toldo para o terraço. Engenhoso...

Nate anuiu. Também reparara naquele pormenor no dia anterior.

— Nunca vi nada disto na selva. É como o meu pai mencionou nas suas notas. Esta tribo é muito mais avançada do que qualquer outra na Amazónia. Os elevadores são um bom exemplo destes conhecimentos de engenharia.

Kelly esticou as costas.

— Aí está uma coisa que me dava jeito agora... um elevador.

Nate sorriu e admirou-lhe os contornos do corpo quando ela se baixou para apanhar os pertences no chão.

— Dá que pensar — disse ela. — O que esta árvore tem feito por este povo.

Nate anuiu. Lançou um último olhar à porta e fechou a mochila. Não faltavam motivos de espanto naquela aldeia. Pronto para sair, olhou em volta para se certificar de que não se esquecia de nada e foi ao encontro de Kelly, ainda agachada junto à outra porta.

Quando ela se levantou e colocou a mochila às costas, puxou-a para si e beijou-a apaixonadamente. Um tudo-nada surpreendida de início, Kelly devolveu-lhe o beijo com igual paixão. Nenhum dos dois dissera uma palavra acerca do que aconteceria a seguir, se aquilo seria o início de uma relação. Sabiam que muito do que acontecera na noite anterior fora uma espécie de lamber de feridas. Em todo o caso, era um começo. Nate ansiava por descobrir o que lhes reservava o futuro. Pela forma como Kelly o beijara, conseguia perceber que ela sentia o mesmo.

Sem dizerem uma palavra, romperam o abraço e encaminharam-se para as escadas.

Mal começou a descer, Nate sentiu o cheiro de comida a ser preparada. Alcançou o último degrau, saltou e ajudou Kelly. Depois atravessaram a sala em direção ao terraço principal.

Nate sentiu o estômago revolver-se e percebeu que estava cheio de fome.

À volta de uma lareira de pedra, Anna Fong e Kouwe preparavam o pequeno-almoço. Nate reparou no generoso rolo de pão de mandioca e no jarro de água fresca ali perto. Anna virou-se e revelou uma bandeja de apetitosas fatias de toucinho.

— Javali — explicou. — Umas nativas trouxeram-nas logo pela madrugada.

A boca de Nate estava já a salivar. Além do pão e do toucinho, havia também fruta, ovos, e até uma espécie de tarte.

— Não admira que o seu pai tenha ficado aqui tanto tempo — disse Carrera, servindo-se de um pedaço de pão e de umas fatias de toucinho.

O comentário acerca do pai não beliscou o apetite de Nate, que logo atacou a comida. Enquanto se empanturrava, reparou que faltavam dois companheiros.

— Onde estão o Zane e o Olin?

— De volta do equipamento — respondeu Kostos. — O Olin conseguiu corrigir o sinal do GPS.

Nate quase se engasgou.

— Conseguiu? A sério?

Kostos anuiu e depois encolheu os ombros.

— Só não sabemos se alguém está a receber o sinal.

Nate olhou para Kelly. Eram boas notícias. Se conseguissem transmitir as coordenadas certas, podiam ser resgatados até ao final do dia. O brilho de esperança nos olhos de Kelly dizia-lhe que ela estaria a pensar o mesmo.

— Em todo o caso — prosseguiu Kostos —, sem confirmação de um resgate, continuamos com o plano acordado. A sua missão para hoje, Rand, é certificar-se com a Kelly e o Zane de que o Frank estará pronto para o tirarmos daqui a qualquer momento.

— E temos de recolher a amostra de seiva — disse Kelly.

Kostos anuiu com a boca cheia de comida.

— Enquanto o Olin trabalha no equipamento, nós vamos ver se conseguimos mais informações acerca dos pós repelentes.

Nate não tinha nada a apontar ao plano do sargento. Com ou sem GPS, mais valia prosseguirem com a maior cautela e rapidez possíveis.

Terminaram o pequeno-almoço e desceram até à clareira, deixando Olin sozinho a resolver o problema do satélite. Manny e os dois rangers seguiram numa direção. Anna e Kouwe noutra. Voltariam a encontrar-se na árvore ao meio-dia.

Nate e Kelly encaminharam-se para a Yagga com Zane atrás deles. Nate ajustou a alça da caçadeira. O sargento insistira que andassem armados. Kelly trazia uma pistola de 9 mm num coldre à cintura. Zane, sempre desconfiado, transportava uma Beretta.

Além das armas, cada uma das três equipas tinha um dos rádios Saber dos Rangers para se manterem em contacto.

— Quero atualizações a cada quinze minutos para saber que estão bem — avisara o sargento.

Preparados o melhor possível, cada grupo foi tratar do que lhe competia.

Enquanto atravessava a clareira, Nate fitou a gigantesca árvore pré-histórica. O tronco branco e as folhas cintilavam por causa do orvalho. Os aglomerados de sementes pendiam dos ramos como versões em miniatura das casas fabricadas pelos índios. Nate estava em pulgas para ver o interior do magnífico espécime.

Alcançaram as raízes grossas na base do tronco e Kelly conduziu-os na direção da entrada. Nate conseguia perceber por que razão os índios chamavam à árvore Yagga, ou mãe. O simbolismo saltava à vista. As duas principais raízes em cada um dos lados da entrada lembravam pernas abertas. Era dali que os Ban-ali tinham nascido.

— Cabia um camião aqui dentro — disse Zane, fitando a enorme abertura arqueada.

Nate encolheu os ombros e entrou. O odor dos óleos da madeira era intenso. As paredes em volta encontravam-se decoradas com centenas de impressões de palmas da mão azuis, de todos os tamanhos e feitios. Representariam os membros da tribo? Teria o pai deixado a sua impressão naquelas paredes?

— Por aqui — disse Kelly, encaminhando-os na direção da rampa em espiral.

As impressões foram escasseando à medida que avançavam. Nate olhou por cima do ombro e comparou as paredes da rampa com as da entrada. Embora não soubesse bem o quê, havia qualquer coisa que não batia certo. Estudou os canais na madeira, os vasos traqueanos que conduziam a água e os nutrientes que alimentavam a árvore. Os canais acompanhavam suavemente a curvatura da parede. Junto à entrada, porém, os mesmos canais apresentavam um aspeto irregular. Antes que pudesse examinar melhor, o grupo tinha já passado a primeira curva.

— Temos uma longa subida pela frente — disse Kelly. — A enfermaria fica no topo.

Nate continuou a subir atrás dela. A passagem parecia ter resultado do labor de um inseto gigante. Enquanto botânico, estava perfeitamente familiarizado com os estragos dos insetos em plantas e árvores, como era o caso do besouro-do-pinheiro, do escaravelho-europeu-da-casca-de-olmo, ou da traça-do-broto-de-framboesa. Mas aquele túnel não tinha sido escavado por um inseto. Nem pelos Ban-ali. Disso tinha a certeza. Formara-se naturalmente, à semelhança dos tubos no interior dos ramos e do tronco de uma árvore de formigas. Tratava-se de uma adaptação evolucionária, e levantava outra questão. A árvore crescera ali muito antes de os Ban-ali terem surgido na região. Assim sendo, qual era a razão de ter desenvolvido semelhante característica?

Lembrou-se das palavras murmuradas por Kelly durante a reunião do grupo. «Está a escapar-nos qualquer coisa... algo importante.»

Começaram a passar pelas aberturas que conduziam ao exterior do tronco. Algumas conduziam diretamente a habitações; outras, a ramos que se estendiam até habitações mais afastadas. Contou as aberturas enquanto subiam. Eram pelo menos vinte.

Atrás dele, Zane procedeu à primeira atualização pelo rádio. As restantes equipas fizeram o mesmo.

Uns metros à frente, alcançaram finalmente o fim da rampa. A enfermaria era um espaço cavernoso com pequenas janelas nas paredes curvas. Apesar disso, a luz era escassa.

Kelly apressou-se ao encontro do irmão.

O xamã dos Ban-ali encontrava-se no lado oposto. Estava sozinho e cuidava de outro doente. Ergueu o rosto ao aperceber-se da chegada do grupo.

— Bom dia — disse, no habitual inglês esforçado.

Nate limitou-se a acenar com a cabeça. Ainda não se acostumara à ideia de que provavelmente fora o pai quem ensinara aquele homem a falar inglês. Sabia pelas notas no diário que o xamã era também o líder da tribo. A hierarquia dos Ban-ali não parecia ser muito rígida. Todos pareciam saber o seu lugar e obrigações. Mas eis ali o rei da aldeia, aquele que estava mais próximo da Yagga.

Kelly ajoelhou-se ao lado do irmão. Frank estava sentado na cama, a beber o conteúdo de mais uma semente por uma cana.

— O pequeno-almoço dos campeões — disse, sorrindo e pousando a semente.

Nate reparou que ainda usava o boné dos Red Sox... e nada mais. Uma pequena manta cobria-lhe os cotos, mas o peito nu exibia o que lhe fora pintado na pele: uma espiral vermelha, com uma palma de mão azul no centro.

A marca dos Ban-ali.

— Acordei assim — disse Frank, apercebendo-se da reação dos outros. —Devem ter pintado isto enquanto dormia.

O xamã aproximou-se de Nate.

— Tu... filho de wishwa Kerl.

Nate virou-se para o índio e anuiu. Pelos vistos, Dakii não perdera tempo a partilhar a notícia.

— Sim. O Carl Rand era meu pai.

O xamã deu-lhe uma palmadinha no ombro.

— Kerl bom homem.

Nate não sabia como responder àquilo, mas deu por si a acenar com a cabeça, quando na verdade lhe apetecia desancar o xamã. Se o meu pai era tão bom, porque o mataram? A vasta experiência com tribos indígenas, porém, dizia-lhe que nunca obteria uma resposta satisfatória a essa questão. Entre os índios, um homem bom podia ser morto por dá cá aquela palha. Podia até ser honrado com o privilégio de ser convertido em fertilizante de árvores.

Kelly terminou de examinar o irmão.

— As feridas estão completamente seladas. O avanço da granulação é impressionante.

A expressão espantada não passou despercebida ao xamã.

— A Yagga cuida dele. Crescer forte. Crescer... — O índio franziu a testa, procurando a palavra certa. Desistindo, curvou-se e deu uma palmada na própria perna.

Kelly alternou o olhar entre o xamã e Nate.

— Será possível? — Virou-se para o irmão. — As pernas do Frank podem crescer de volta?

— Foi o que aconteceu com o braço do Gerald — disse Nate. — Sabemos que é possível.

Kelly agachou-se.

— Se pudéssemos testemunhar a transformação. Num centro médico moderno...

Zane interrompeu-a, mantendo o tom de voz baixo e as costas viradas para o índio.

— Lembre-se... temos uma missão a cumprir.

— Que missão? — perguntou Frank.

Kelly explicou-lhe o plano.

A expressão do irmão iluminou-se.

— O GPS está a funcionar! Significa que há esperança!

Kelly anuiu.

O xamã perdera entretanto o interesse no grupo e afastara-se.

— Por isso — sussurrou Zane —, temos de recolher uma amostra de seiva.

— Eu sei como é que eles a retiram da árvore — disse Kelly, acenando com a cabeça na direção de uma cavilha espetada na parede. Pegou na semente vazia do irmão, retirou a palhinha e aproximou-se da parede. A seguir, removeu a cavilha de madeira por cima da calha. A seiva vermelha começou a escorrer. Ergueu a semente vazia e começou a recolher o líquido espesso. Era um processo moroso.

— Eu faço isso — disse Zane. — Continue a examinar o seu irmão. Certifique-se de que o podemos transportar a qualquer instante.

Kelly anuiu e juntou-se a Nate. Os dois posicionaram-se de forma que o xamã não pudesse ver o que Zane estava a fazer.

— A maca ainda aqui está — disse Kelly, apontando para a padiola improvisada. — Se tivermos confirmação do resgate, vamos ter de agir depressa.

— É melhor...

A primeira explosão abanou-os a todos. Ficaram paralisados até o eco do estrondo se desvanecer. Nate olhou por uma abertura na parede. O céu estava limpo. Aquilo não tinha sido um trovão. Seguiram-se novas explosões e, ato contínuo, ouviram-se os primeiros gritos.

— Estamos a ser atacados! — exclamou Nate.

Virou-se e deparou com Zane a apontar-lhe a Beretta.

— Quietos! — O representante da Tellux estava agachado contra a parede, o rosto contraído e assustado. Segurava a semente a transbordar de seiva numa das mãos e a pistola na outra. — Ninguém se mexe!

— O que está a fazer? — perguntou Kelly.

Nate sabia perfeitamente o que estava a acontecer.

— Filho da mãe! — vociferou, lembrando-se das suspeitas de Kouwe de que estariam a ser seguidos, de que poderia existir um traidor entre eles. — Maldito filho da mãe! Traíste-nos!

Zane levantou-se devagar. Empunhava a arma com firmeza, pronta a disparar.

— Para trás!

Lá fora, as explosões sucediam-se. Granadas.

Nate estendeu o braço e desviou Kelly da ameaça da arma.

Assustado pelas explosões e alheio à ameaça imediata, o xamã correu na direção da saída. Um grito de alarme escapou-se-lhe dos lábios.

— Pare! — berrou Zane.

Demasiado assustado para compreender ou sequer ouvir a ordem de Zane, o xamã continuou a correr.

Zane premiu o gatilho. Amplificado pelo espaço cavernoso, o som do disparo foi ensurdecedor, mas não a ponto de abafar o grito do índio.

Nate olhou por cima do ombro. O xamã caiu no chão, agarrado à barriga, com sangue a jorrar por entre os dedos.

Virou-se de novo para Zane, com o rosto vermelho de raiva.

— Assassino! Ele não conseguia perceber!

Zane apontou de novo a arma na direção de Nate e Kelly e contornou-os lentamente, tendo o cuidado de se manter fora do alcance de Frank, não fosse o outro ter ideias.

— Sempre foste um ingénuo, Rand. Como o teu pai. Nunca compreenderam o que significa ter dinheiro e poder.

— Para quem trabalhas? — perguntou Nate.

Zane encontrava-se agora de costas para a saída. O xamã gemia encolhido no chão. Zane parou e acenou com a pistola na direção da parede.

— Atirem as armas pela janela. Um de cada vez.

A tremer de raiva, Nate recusou-se a obedecer. Zane disparou um tiro para o chão, arrancando lascas de madeira entre os pés de Nate.

— Façam o que ele mandou — aconselhou Frank.

Kelly retirou a pistola do coldre e atirou-a por uma abertura.

Nate continuou parado.

Zane sorriu.

— A próxima bala vai direta ao coração da tua namoradinha.

— Nate... — avisou Frank.

Cerrando os dentes, Nate aproximou-se da parede ainda a ponderar quais eram as hipóteses de conseguir disparar primeiro que Zane. Não seriam muitas, calculou, e não podia arriscar a vida de Kelly. Agarrou na caçadeira e desfez-se dela.

Zane anuiu e continuou a recuar até à saída.

— Agora, se me dão licença, tenho de ir andando. Sugiro que fiquem aqui. Por enquanto, é o lugar mais seguro no vale.

O rádio no cinto crepitou com ruído de estática, para depois dar lugar à voz frenética de Kostos.

— Ponto de situação! Todas as equipas! Ponto de situação!

Zane desligou o rádio.

— E por falar em lugares seguros, receio que não possa dizer o mesmo em relação aos outros.

Posto isto, abandonou a enfermaria.

Kelly virou-se para Nate, transtornada.

— O que vamos fazer?

08h12

Na floresta, Manny correu com Carrera. Tor-tor seguia-os com as orelhas coladas à cabeça. As explosões e os gritos sucediam-se por toda a parte. O fumo espalhava-se por entre as árvores. O vale inteiro encontrava-se debaixo de ataque cerrado.

A correr uns metros à frente, Kostos gritou para o rádio.

— Todos para a base! Ponto de encontro na árvore!

— Será que são os nossos? — perguntou Manny. — Em resposta ao sinal do GPS?

Carrera olhou para ele e franziu o sobrolho.

— Nunca chegariam aqui tão depressa. Seja quem for, não são nossos amigos.

Como que a confirmar isto, três homens, equipados com camuflados, metralhadoras AK-47 e lança-granadas, surgiram uns metros mais à frente.

Kostos fez imediatamente sinal para se deitarem no chão.

De lança em punho, um dos indígenas correu para o trio de invasores. Foi praticamente cortado ao meio pelo poder de fogo das armas automáticas.

Assustado pelos disparos, Tor-tor correu como uma flecha.

Manny ainda tentou agarrá-lo.

— Tor-tor!

O jaguar passou à frente do trio de atiradores. Um deles berrou qualquer coisa em espanhol e fez pontaria. Outro sorriu e seguiu-lhe o exemplo.

Manny ergueu a pistola, mas, antes que conseguisse premir o gatilho, Kostos levantou-se com a M16 e disparou três tiros. Bang! Bang! Bang!

As cabeças dos três explodiram como melões.

Manny ficou atordoado pela incrível demonstração de instinto letal por parte do sargento dos Rangers.

— Vamos! Precisamos de alcançar a árvore — ordenou Kostos. Olhou em volta e franziu o sobrolho. — E por que raio os outros não respondem?

08h22

Kouwe refugiou-se atrás de um arbusto com Anna. Dakii, o guia indígena, escondeu-se com eles. Os quatro mercenários encontravam-se a seis metros de distância, não se dando conta de quem espreitava por trás da vegetação. Kouwe ouvira as instruções de Kostos para se reunirem na árvore, mas não lhe podia responder. Estavam bloqueados pelos quatro mercenários, e não tinham maneira de passar por eles sem ser vistos.

Kouwe mantinha a mão no ombro de Anna, que tremia como varas verdes. Ambos empunhavam as pistolas. Dakii não mexia um músculo, mas os olhos brilhavam de raiva. Numa questão de minutos, assistira à morte de uma dúzia de índios às mãos daqueles homens, incluindo mulheres e crianças. Nunca mais esqueceria a imagem dos mercenários a rirem-se enquanto premiam os gatilhos.

As explosões ainda ressoavam pela floresta. Ouviam-se gritos e os estrondos das habitações que tombavam das árvores. Os mercenários arrasavam a aldeia. A única esperança para o grupo de Kouwe era encontrar os outros e fugirem para algum lugar recôndito do vale, onde ninguém os procurasse.

Um dos soldados pegou no rádio. Falava em espanhol.

— Equipa Tango em posição. Área Catorze desimpedida!

Kouwe sentiu algo tocar-lhe no joelho. Desviou o olhar. Dakii fez-lhe sinal para ficar quieto. O professor assentiu com a cabeça.

Dakii rolou para o lado, movendo-se depressa e em silêncio, sem mover uma folha. O índio era um teshari-rin, um dos batedores da tribo. Mesmo sem pintura corporal, fundia-se com as sombras da selva. Avançou de esconderijo em esconderijo como um borrão, um fantasma. Kouwe sabia que assistia a uma demonstração do aprimoramento de capacidades dos Ban-ali pela Yagga. Dakii contornou os mercenários, depois o próprio Kouwe perdeu o índio de vista.

Anna apertou a mão do professor. O índio abandonou-nos?, parecia perguntar-lhe.

Kouwe pensava o mesmo, até que avistou de novo Dakii. Encontrava-se agachado a uns metros, atrás dos soldados. Kouwe e Anna conseguiam vê-lo, mas os homens não. Tinha um arco na mão, obtido sabe-se lá onde.

Dakii deitou-se no chão, engatou uma flecha e fez pontaria para o céu. Kouwe olhou para cima à procura do hipotético alvo e depois para os mercenários.

Percebeu o que o índio tentava fazer e fez sinal a Anna para se preparar para abrir fogo com a pistola. Anna olhou para cima, compreendendo também o plano, e anuiu.

Kouwe fez sinal a Dakii.

Ouviu-se o som da flecha a cortar o ar e as folhas das árvores. Os mercenários viraram-se com as armas na direção de Dakii.

Focado no alvo da flecha, Kouwe ignorou-os. Lá bem no alto, nos ramos acima dos soldados, encontrava-se o que restava de uma habitação, mas também uma das engenhosas invenções dos Ban-ali, um dos pequenos elevadores. A flecha cortou a corda que suportava o contrapeso do elevador, um bloco de granito.

O pedregulho caiu em cheio sobre mercenários.

Um deles foi esmagado ainda antes de perceber o que lhe acontecera.

Kouwe e Anna encontravam-se já de pé, e despejaram os carregadores nos outros três, atingindo-os no peito, braços e barrigas. Não tinham como falhar àquela distância. Os mercenários tombaram um por um. Dakii correu com um punhal na mão e, num gesto rápido e sangrento, cortou as gargantas dos mercenários que ainda se mexiam.

Anna ficou congelada diante da matança, o rosto lívido.

Kouwe puxou-a por um braço.

— Vamos, temos de procurar os outros.

09h05

Do alto da falésia, Louis tinha uma vista privilegiada sobre o vale. Os binóculos estavam pendurados ao pescoço, esquecidos. Por toda a selva erguiam-se incontáveis colunas de fumo dos fogos das explosões e dos foguetes sinalizadores. Em pouco mais de uma hora, a equipa de mercenários cercara a aldeia e avançava agora lentamente para o centro, em direção ao objetivo e ao prémio final.

Brail chamou-lhe a atenção. Promovido a tenente, o alemão encontrava-se debruçado sobre um mapa, onde assinalava com cruzinhas as posições das unidades espalhadas pelo vale.

— A área está desimpedida, Herr Doutor. Só falta arrumar a casa.

Pelo sorriso maquiavélico e o olhar sedento de sangue, Louis conseguia perceber que o homem estava ansioso por superar um novo recorde de mortandade.

— E os rangers? Os americanos?

— Estão a ser empurrados na direção do centro da aldeia, tal como ordenou.

— Excelente.

Louis acenou com a cabeça para a amante, que se encontrava a seu lado nua e armada apenas com uma zarabatana. A cabeça encolhida do cabo DeMartini repousava-lhe entre os seios — uma pequena obra de arte, diga-se de passagem.

O modo como a pendurara ao pescoço, usando a corrente das chapas de identificação do próprio soldado, era um pormenor delicioso.

Louis ergueu as duas Mini-Uzi.

As armas faziam-no sentir-se poderoso.

— É hora de nos juntarmos à festa — declarou. — Estou ansioso por conhecer o doutor Nathan Rand.

09h12

— Cuida dele e do teu irmão — disse Nate, pressentindo que estavam a ficar sem tempo. — Eu vou atrás do Zane.

Debruçada sobre o xamã, Kelly fitou-o.

— Mas tu não tens nenhuma arma...

Momentos antes, os dois tinham deitado o índio numa das camas. Kelly administrara-lhe uma injeção de morfina para as dores. A barriga era dos piores sítios para se levar um tiro. Sem outra solução à mão, aplicava seiva da Yagga nas feridas de entrada e saída da bala.

— O que vais fazer se o apanhares?

Nate sentia-se igualmente a arder por dentro, uma sensação ainda assim não tão dolorosa como levar um tiro na barriga.

— Primeiro traiu o meu pai... e agora nós. — A voz falhou-lhe por causa da raiva. Apena queria uma coisa daquele homem: vingança. — Tenho de o fazer pagar...

— E o que vai ganhar com isso? — disse Frank.

Nate limitou-se a abanar a cabeça.

— Não sei, mas tenho de fazer alguma coisa.

Encaminhou-se para a saída. Não se ouviam mais explosões, apenas tiroteios esporádicos. Os índios estavam a ser massacrados. A não ser que fizesse qualquer coisa, Nate sabia que não teriam melhor sorte.

Mas o quê?

Correu pela rampa abaixo, primeiro a medo, depois mais depressa. Curva após curva, veio-lhe à cabeça a imagem do símbolo dos Ban-ali. Poderia a espiral representar aquela passagem? Ou seria, de facto, como Kelly dissera, um desenho tosco daquela proteína, o hipotético prião mutagénico causador da doença? Qual das teorias estaria certa? As duas? Se representasse a passagem na Yagga, as hélices duplas nas pontas significavam o quê? Será que uma delas representava a enfermaria? E se assim fosse, o que representava a outra... e a palma azul? Visualizou as centenas de impressões de mãos na entrada e abanou a cabeça.

Que raio significa isto tudo?

Passou uma curva e tropeçou no corpo estendido de um índio. Caiu com as mãos e os joelhos no chão. Olhou para trás e viu dois buracos de bala no cadáver, um no peito e o outro na nuca. Virou-se outra vez e percebeu que mais abaixo havia outro corpo. Conseguia ver-lhe apenas as pernas. Mais um índio.

Zane...

Levantou-se com o sangue a ferver de raiva. O traidor matara tudo o que encontrara pela frente, índios desarmados, provavelmente ajudantes do xamã, deixando um brutal rasto de sangue. Maldito cobarde...

Continuou a descer, contando as aberturas na parede do lado esquerdo. Quando alcançou a última, abandonou a passagem e entrou numa pequena habitação. Encontrou-se num ramo que teria um metro e meio de largura. Antes de abandonar a Yagga, precisava de ter uma ideia do que se estava a passar lá em baixo. Havia fumo por todo o vale.

Um punhado de índios emergiu da floresta em volta da clareira. Em vez de explosões e tiros, reinava agora um silêncio inquietante.

Nate avançou pelo ramo, mas não conseguia avistar a casa temporária da equipa. Aquele ramo estendia-se na direção contrária. Não conseguia sequer ver a entrada da Yagga.

Merda.

Ouviu-se um tiro de pistola, seguido de um grito no lado contrário de onde se encontrava.

Zane!

O cobarde devia estar escondido na abertura da árvore, a disparar sobre qualquer índio que se aproximasse. Nate sabia que ele dispunha de munições suficientes para se aguentar ali durante algum tempo.

Os índios que avistara um segundo antes retrocederam para a floresta.

Olhou em volta. Onde estariam os amigos? Teriam sido mortos? Capturados?

Avançando, bateu com o pé em alguma coisa enrolada em cima do tronco. Olhou para baixo. Não era corda, percebeu, mas uma das escadas de lianas.

— Uma escada de emergência — murmurou. Um plano começou a ganhar forma na sua mente.

Antes que mudasse de ideias ou perdesse a coragem, pegou no novelo de lianas e atirou-o pelo ar. A escada desenrolou-se até ficar esticada, balançando o último degrau a pouco mais de um metro do chão. Era uma longa descida, mas talvez conseguisse surpreender Zane, caso ele ainda ali estivesse.

Aquilo era basicamente o plano e, sem perder mais tempo, começou a descer. Se os amigos e os índios sobreviventes pudessem recuar até à árvore, talvez conseguissem uma posição mais defensável contra os invasores. Em todo o caso, antes que isso pudesse acontecer, tinha de eliminar Zane.

Quase a alcançar a base, encontrou-se cercado de raízes. Fez um compasso de espera para se orientar. O riacho estava atrás dele, no lado esquerdo. Se o tronco fosse o mostrador de um relógio, significava que se encontrava à direita da entrada, mais ou menos na posição das quatro horas. Saltou para o chão e contornou a árvore no sentido contrário ao movimento dos ponteiros.

Três horas... duas...

Uma saraivada de tiros rompeu o silêncio na floresta, seguida da explosão de outra granada. Pelos vistos, ainda restavam focos de combate em algumas partes da aldeia.

Aproveitando o barulho, Nate continuou a contornar a árvore. Avistou finalmente uma das duas raízes altas que ladeavam a entrada.

Uma hora...

Encostou-se ao tronco. Zane encontrava-se a seguir à obstrução.

Só não sabia o que devia fazer a partir dali.

Ouviu Zane disparar de novo e olhou para as mãos vazias.

E agora, herói, o que fazemos?

09h34

Resguardado pela abertura, Zane mantinha um joelho no chão e o braço estendido com a pistola. Cansado, via-se obrigado a suportar o peso da arma com a ajuda da outra mão, mas recusava-se a desistir. Sobretudo quando a vitória parecia tão perto. Só tinha de aguentar um pouco mais. A sua tarefa estaria então terminada.

Olhou de soslaio para a semente a transbordar de seiva. Aquela resina milagrosa valeria biliões quando fosse comercializada. Os laboratórios St. Savin tinham já depositado uma boa maquia na sua conta na Suíça pelos serviços prestados, mas tinha sido o bónus prometido de um quarto de ponto percentual sobre as vendas mundiais que o convencera a alinhar no esquema. Na havia limite para a riqueza que o potencial da seiva podia gerar.

Humedeceu os lábios. Sim, aquilo estava quase a terminar. Dias antes, introduzira com êxito o vírus no equipamento de comunicação da equipa, cortando a ligação com o mundo exterior, e agora restava-lhe aguardar o desfecho prometido.

Na noite anterior, Louis instruíra-o para se apoderar de uma amostra de seiva e protegê-la com a própria vida, se necessário. «Caso os índios tentem alguma medida desesperada para preservar o precioso segredo, como pegarem fogo à bendita árvore, precisamos de estar precavidos», avisara o francês.

Concordara, naturalmente. O seu cúmplice maníaco só não sabia que também ele engendrara um plano alternativo em benefício próprio. Assim que se vira sozinho com a seiva, retirara uma amostra para o interior de um preservativo, dera-lhe um nó e engolira-o. Era uma espécie de apólice de seguro. Se não lhe dessem o prometido, entregaria o produto à concorrência. À Tellux, por exemplo.

Ouviram-se mais disparos. Conseguia ver os lampejos das armas entre as árvores. Os homens de Favre apertavam o cerco. Não faltaria muito para que estivessem ali.

Uma granada comprovou-o ao explodir na borda da clareira. Uma habitação no cimo das enormes árvores desfez-se aos bocados, atirando ramos e folhas pelo ar. Sorriu. Ato contínuo, ouviu uma voz gritar:

— Cuidado! Granada!

Algo atingiu o tronco da Yagga e ressaltou para o chão.

Granada!, repetiu em pensamento.

Reagindo depressa, mergulhou para o interior da árvore e tapou a cabeça com os braços. Aguardou uns segundos, a ofegar, depois mais alguns. A explosão, porém, nunca chegou. Destapou a cabeça, ainda com os dentes cerrados. Nada.

Endireitou-se e rastejou de volta para a entrada. Espreitou e encontrou o pequeno objeto em forma de coco no chão. Era apenas uma das sementes jovens da maldita árvore. Devia ter caído dos ramos. Sentiu-se idiota por se ter assustado daquela maneira.

— Raios partam!

Endireitou-se, ergueu a arma e regressou à posição anterior.

Estás a ficar demasiado assustadi...

Um borrão cortou o ar diante dos olhos.

Algo sólido atingiu-lhe o pulso, arrancando-lhe a pistola dos dedos com uma explosão de dor. Cambaleou para trás, mas alguém lhe agarrou o braço e puxou-o com violência.

Esbarrondou-se no chão. Virou-se e olhou por cima do ombro. Não queria acreditar no que via.

— Rand? Como?

Nathan Rand materializara-se na entrada do túnel. Segurava um ramo grosso na mão, que ergueu ameaçadoramente.

Zane recuou com o rabo no chão, como um caranguejo.

— Como? — disse Nate. — Uma pequena lição que aprendi com os nossos amigos índios, chamada o poder da sugestão. — Nate pontapeou a semente na direção dele. — Acreditar em algo o suficiente para que outros também acreditem.

Zane tentou levantar-se.

Nate brandiu o ramo como um taco de basebol e atingiu-o no ombro.

— Esta foi por teres matado o xamã como um cão doente! — Nate ergueu outra vez o ramo. — E esta...

Zane olhou por cima do ombro de Nate.

— Kelly! Graças a Deus!

Nate olhou para trás.

O instante de distração foi o suficiente para Zane se levantar e fugir.

Contornou a raiz lateral num piscar de olhos, mas ainda ouviu o desabafo frustrado do seu opositor.

Que...

... idiota! Enganado pelo próprio truque!

Não havia ninguém atrás dele. Kelly não estava ali.

Zane desapareceu atrás da raiz.

— Nem penses que te escapas, maldito! — gritou-lhe, com o ramo na mão, e lançou-se em perseguição.

A ferver de raiva, contornou a raiz maior. Zane corria ao longo da base da árvore, na direção de outro emaranhado de raízes. O traidor podia escapar facilmente através delas. Nate não o permitiria. Ainda pensou em voltar atrás para ir buscar a pistola, mas não havia tempo para isso. Não podia correr o risco de o perder de vista.

Zane baixou-se e avançou pelo emaranhado com agilidade. A constituição franzina dava-lhe uma vantagem naquela corrida. Nate era bastante mais corpulento, e ainda tinha o ramo que o atrapalhava sobremaneira.

Percebendo que lhe bastavam as duas mãos para lidar com o infeliz, desfez-se do ramo. Cada um avançou como pôde pelo labirinto de raízes, rastejando, subindo, saltando. Zane continuava a ganhar distância.

Então, as raízes abriram-se e os dois encontraram-se numa espécie de trilho. Zane correu mais depressa. Nate praguejou e seguiu atrás.

Mais à frente, Nate avistou um reflexo de água. Percebeu que o trilho serpenteante terminava numa espécie de piscina redonda. Um beco sem saída.

Sorriu.

Fim da linha, Zane!

Ao aproximarem-se da piscina, Zane percebeu também que se encurralara sozinho e abrandou.

Em vez de um lamento de derrota, porém, Nate ouviu um riso vitorioso.

Zane lançou-se para o lado.

Nate avançou para ele.

Zane levantou-se. Tinha uma pistola na mão. Uma Beretta de 9 mm.

Nate demorou meio segundo a tentar compreender aquele milagre. Depois viu a caçadeira pendurada pela alça numa raiz à direita. Aquela pistola era de Kelly! Estavam ali as armas que tinham atirado pela janela.

Cerrou os maxilares. Os deuses pareciam estar contra ele.

Deu um passo na direção da caçadeira, mas Zane produziu um estalido com a língua.

— Dás outro passo e ganhas um terceiro olho na testa!

09h46

Kouwe apressou Anna Fong, que corria à frente dele. Os tiros das espingardas soavam cada vez mais perto, cercando-os de todos os lados. Não se deixando perturbar pelo caos, Dakii liderava o caminho em modo de batedor, conduzindo-os de volta à árvore da casa temporária, o local escolhido para o reencontro da equipa. Precisavam de se juntar aos rangers, de formular qualquer tipo de plano.

Kouwe conseguira contactar brevemente o sargento Kostos pelo rádio e informara-o de que iam a caminho. Também ficara a saber que Olin, o único elemento que permanecia na casa, se encontrava bem. O russo mantivera-se escondido. No entanto, não havia notícias do grupo de Nate. O professor rezou para que estivessem bem.

Kouwe avistou finalmente a clareira. O grupo contornara o lado sul da aldeia, mantendo-se a coberto da floresta. De acordo com o sargento, os rangers avançavam pelo lado norte.

Dakii abrandou e apontou, agachando-se. Anna e o professor aproximaram-se. Através de uma abertura na folhagem, Kouwe avistou a cabana na clareira. Era capaz de se orientar a partir dali. O carvalho gigante ficava a uns cinquenta metros na direção indicada pelo índio, mas não era para a casa que ele apontava. Para lá do carvalho, o professor distinguiu a forma esguia de Tor-tor. O jaguar corria ao longo da borda da clareira. Várias figuras acompanhavam-no a coberto das sombras das árvores. A equipa dos rangers e Manny. Tinham conseguido!

Dakii conduziu-os ao encontro dos companheiros e, em poucos minutos, as duas equipas reuniram-se junto ao carvalho. Kostos deu uma palmada no ombro do professor. Anna e Manny abraçaram-se.

— Alguém tem notícias do Nate? — perguntou Kouwe.

O sargento abanou a cabeça.

A soldado Carrera vigiava com a sua estranha arma.

Kostos desviou o olhar para o cimo da árvore.

— Mandei o Olin arrumar o equipamento e juntar-se a nós.

— Porquê? Pensei que o plano era reencontrarmo-nos aqui.

— Foi o que acabámos de fazer. Mas não podemos ficar. A árvore não nos oferece proteção.

Kouwe franziu o sobrolho, mas sabia que o sargento tinha razão. Os invasores estavam a destruir todas as habitações da aldeia. Não podiam ficar ali.

— O que fazemos, então?

— Fugimos. Encontramos uma forma de romper as linhas deles e procuramos um abrigo seguro, um sítio onde não consigam localizar-nos.

Manny olhou para o relógio.

— O sargento deixou uma bomba de napalm lá atrás. Está programada para explodir daqui a quinze minutos.

— Uma distração — explicou Kostos. Ajustou a mochila nas costas. — E temos mais, se for preciso.

O professor tinha o olhar cravado na Yagga.

— É por isso que não podemos esperar pelo Nate — disse Manny. O som do tiroteio escasseava, assim como o tempo disponível para fugirem. Se queriam ter alguma hipótese, aquele era o momento de se porem a andar dali.

Contrariado, Kouwe anuiu.

A escada de lianas rangeu e abanou. O professor olhou para cima. Olin descia com o equipamento.

Kostos acenou com a M16.

— Vamos, está na hora de...

A explosão quase os atirou ao chão. Kouwe viu o telhado da casa voar pelo ar com uma força tremenda, juntamente com uma chuva de destroços. Uma secção enorme de um ramo passou por cima deles, como um aríete voador, para se despenhar nas profundezas da floresta. Uma espessa nuvem de fumo engoliu-os a todos.

Aquilo não tinha sido uma granada.

Um grupo de soldados materializou-se através do fumo, as armas em riste e prontas a disparar.

Kouwe reparou de imediato em dois pormenores. Primeiro, o grupo de soldados era liderado por uma mulher nua, que caminhava de mão dada com um homem alto, vestido de branco. O homem parecia vagamente familiar. Sobretudo por causa do chapéu panamá. O segundo pormenor, porém, representava uma ameaça mais imediata, algo que um dos soldados carregava. O homem apoiou um joelho no chão e ergueu um longo tubo preto. Kouwe vira filmes suficientes para reconhecer a arma.

— RPG! — gritou Carrera. — Baixem-se!

10h03

A primeira explosão paralisou tanto Nate como Zane. Nate manteve-se focado na pistola do oponente, a poucos metros de distância. Estava apontada diretamente ao seu peito. Não arriscou mover-se e susteve a respiração.

O que está a acontecer?

Quando ocorreu a segunda explosão, os olhos de Zane desviaram-se na direção do estrondo. Nate sabia que não teria outra oportunidade. Iria morrer se não fizesse qualquer coisa... por mais estúpida que fosse.

Atirou-se de cabeça, não na direção de Zane, mas da caçadeira pendurada nas raízes. O movimento súbito não passou despercebido. Nate ouviu o disparo da pistola e sentiu uma dor aguda na coxa esquerda, mas não se deteve.

Embateu contra a raiz, a agitar os braços para alcançar a caçadeira. Não tinha tempo de libertar a alça. Como tal, limitou-se a virar o cano na direção de Zane e premiu o gatilho. O coice do disparo arrancou-lhe a arma da mão.

Baixou-se e virou-se a tempo de ver Zane voar para trás com uma mancha de sangue na barriga. Àquela distância, a caçadeira não obrigava a grande pontaria. A dispersão dos chumbos fazia o resto.

Zane aterrou na piscina e afundou-se. A água era surpreendentemente profunda, mesmo junto à margem. Emergiu um segundo depois, em pânico e a gemer de dor. Aprendia à sua custa a lição que ensinara ao xamã: a barriga era realmente dos piores sítios para se levar um tiro.

Nate levantou-se, soltou a caçadeira da raiz e apontou-a a Zane. Não conseguia ver a pistola, mas não estava disposto a correr riscos.

Em nítida agonia, Zane lutou para se agarrar à margem. Subitamente, o seu corpo sacudiu-se e os olhos arregalaram-se. Os gemidos transformaram-se em gritos:

— Nate! Ajuda-me!

Instintivamente, Nate deu um passo em frente. Zane estendeu o braço, suplicando-lhe, e foi então que a água em volta começou a borbulhar furiosamente.

Nate vislumbrou centenas de reflexos prateados. Piranhas! Deu um passo atrás, percebendo por fim onde se encontrava. Aquilo era o viveiro que Manny mencionara.

Zane continuou a debater-se e a gritar. Começou a afundar-se por entre a confusão de bolhas e corpos prateados. Os olhos reviraram-se enquanto lutava para manter a boca à superfície. Não conseguiu, e a cabeça voltou a submergir. Apenas o braço se manteve uns segundos fora de água, para depois desaparecer também.

Nate virou costas. Não conseguia sentir pena daquele homem. Olhou então para a mancha de sangue nas calças e encontrou um buraco no tecido. Felizmente, a bala deixara-lhe apenas uma ferida superficial.

Tinha tido uma sorte dos diabos.

Rezando para que essa sorte durasse mais um pouco, apertou os dedos em torno da caçadeira e correu pelo trilho.

10h12

Manny remexeu-se sob a pilha de escombros. O fumo sufocava-o. Os ouvidos ainda zuniam da explosão do projétil e custava-lhe mexer os maxilares. Ao som de gritos e ordens, rastejou de debaixo dos destroços.

— Deitem fora as armas!

— Mãos à vista!

— Mexam-se ou morrem onde estão!

Aquilo era incentivo suficiente. Cuspiu uma gosma de sangue e saliva e olhou em volta. Anna estava ajoelhada com as mãos na cabeça. Parecia estar bem. O professor encontrava-se igualmente ajoelhado a seu lado. Tinha um golpe na cabeça e metade do rosto coberta de sangue. Ao lado do professor, Dakii exibia uma expressão atordoada.

Virando-se, Manny avistou o focinho de Tor-tor a espreitar de um arbusto. Fez-lhe discretamente sinal para ficar quieto. Junto ao mesmo arbusto, viu a soldado Carrera esconder a arma debaixo de um emaranhado de raízes.

— Tu! — ouviu alguém gritar. — De pé!

Manny não sabia a quem se dirigia a ordem, mas depois sentiu o cano quente de uma espingarda contra a têmpora. Susteve a respiração.

— De pé! — repetiu o soldado. Tinha um sotaque forte, porventura alemão.

Manny ergueu-se, primeiro de joelhos, e depois levantou-se, meio a cambalear.

— A arma!

Olhou em volta como quem procura uma meia ou um sapato. Viu a pistola no chão e chutou-a na direção do mercenário.

Um segundo soldado materializou-se do nada e pegou na arma. O primeiro empurrou Manny na direção dos companheiros.

— Junta-te aos outros!

Cambaleando ao encontro dos amigos ajoelhados, viu Kostos e Carrera serem escoltados por outros mercenários. Os coldres das armas estavam vazios, as mochilas tinham desaparecido. Foram forçados a ajoelhar-se com as mãos na cabeça. O olho esquerdo do sargento estava inchado, o nariz partido e ensanguentado. Kostos dera-lhes luta.

De súbito, uma secção distante de floresta explodiu numa bola de fogo. O estrondo não foi muito poderoso e o ar encheu-se com o cheiro a napalm.

Lá se foi a distração, pensou Manny.

— Herr Brail! — gritou um dos homens numa mistura de alemão e espanhol. — Este não se mexe!

Manny olhou por cima do ombro e encontrou Olin estendido no meio dos destroços. Tinha uma farpa de madeira espetada no ombro, a camisa caqui encharcada de sangue, mas ainda respirava.

O soldado que se chamava Brail desviou os olhos das chamas e foi ao encontro de Olin.

— Hundefleisch — disse. — Carne para cão. — Ato contínuo, deu um tiro na nuca do russo.

Anna sobressaltou-se e as lágrimas caíram-lhe dos olhos.

Não muito longe dos escombros, duas figuras avançaram descontraidamente. Uma era a mulher índia. Despida, caminhava com a naturalidade de quem se passeava numa festa de jardim, toda ela curvas e pernas suaves. Usava um talismã entre os seios. De início, Manny julgou que era uma espécie de bolsa de cabedal, porém, quando ela se aproximou, percebeu que se tratava de uma cabeça encolhida. O cabelo no abjeto berloque estava cortado curto.

Apercebendo-se da reação de Manny, o homem alto vestido de branco e com um chapéu panamá pegou na cabeça e ergueu-a para que todos a vissem.

Manny reparou nas duas chapas de metal penduradas.

— Julgo que todos conhecem o cabo DeMartini — anunciou o homem, rindo-se. Disse aquilo como se fosse uma piada inconsequente, e depois deixou cair a cabeça, que ficou a balançar no peito da mulher.

O sargento Kostos rosnou uma ameaça qualquer, mas o cano da AK-47 premido contra o pescoço manteve-o de joelhos.

Manny reconheceu o sotaque francês.

Quem é este sujeito?

Kouwe respondeu à pergunta silenciosa.

— Louis Favre... — murmurou, com uma expressão azeda.

O francês desviou o olhar para o professor.

— Doutor Favre, se não se importa, professor Kouwe. Se mantivermos a cortesia, podemos terminar este assunto desagradável o mais depressa possível.

Kouwe não lhe deu resposta.

Manny lembrou-se do nome. O biólogo que fora expulso do Brasil devido aos negócios no mercado negro e pelos crimes praticados contra as populações indígenas. O professor e Nate tinham um passado ligado àquele homem.

— Parece que falta aqui gente — disse Favre. — Onde estão os outros?

Ninguém se pronunciou.

— Por favor, vamos manter a conversa civilizada. Está um dia tão agradável. — Favre caminhou ao longo da fila de prisioneiros. — Não querem que as coisas azedem, pois não? Fiz uma pergunta simples.

Uma vez mais, ninguém piou.

Favre abanou a cabeça, um tudo-nada desapontado.

— Como queiram. — Virou-se para a mulher índia. — Tshui, minha querida, podes escolher um? — Esfregou as mãos, como que a dizer que não era da sua responsabilidade o que acontecesse a seguir.

A mulher estudou os prisioneiros como um predador, e não havia melhor descrição para ela. Os olhos brilhavam com sede de sangue. Tendo criado um jaguar, Manny reconhecia o olhar de um animal feroz pronto a atacar.

Hesitou diante de Carrera, inclinando a cabeça para um lado e para o outro, e depois saltou dois lugares, para se ajoelhar diante de Anna. O nariz ficou a dois centímetros do nariz da antropóloga.

Anna tentou recuar, mas a espingarda cravada nas costas manteve-a no lugar.

— Como sempre, a minha princesa não consegue resistir às coisas belas — comentou Favre.

Movendo-se com a rapidez de uma serpente, a mulher índia retirou um punhal de osso de uma bainha escondida nos longos cabelos negros. Manny já vira aquilo acontecer. Havia uma única tribo cujos guerreiros escondiam punhais em bainhas nos cabelos: os Shuara, os caçadores de cabeças do Equador.

A ponta do punhal branco tocou a carne delicada por baixo do queixo de Anna, que começou a tremer. Um fio de sangue correu pela lâmina.

Chega, pensou Manny. A mão direita pousou no cabo do chicote à cintura. Também se conseguia mover rápido quando queria, uma habilidade adquirida após vários anos a treinar um jaguar.

Com destreza, fez estalar o chicote.

A ponta de cabedal atingiu o punhal e arrancou-o das mãos da mulher, provocando-lhe um pequeno corte no rosto.

Como um verdadeiro felino, ela rolou para o lado, ferida. Um segundo punhal materializou-se do ar, como que por magia. Pelos vistos, aquele gato tinha numerosas garras.

— Deixem a Anna em paz! — gritou Manny. — Eu digo-vos onde estão os outros!

Antes que conseguisse proferir mais uma palavra, alguém o atingiu na cabeça e ele caiu com o rosto na terra e nas folhas. Uma bota pontapeou o chicote e pisou-lhe a mão. Manny sentiu um dedo partir-se.

— Levantem-no! — berrou Favre, borrifando-se para a compostura.

Manny foi levantado pelos cabelos. Segurou a mão magoada junto ao peito.

Favre foi ao encontro da sua amada. Limpou-lhe o sangue do rosto com o dedo. A mulher reagiu ao toque, inclinando a cabeça. Em vez de magoada, parecia sexualmente excitada pela dor. Favre virou-se para Manny e, fitando-o, lambeu o sangue na ponta do dedo.

— Acha que isso foi necessário? — Estendeu a mão e alguém entregou-lhe uma pequena metralhadora, uma Uzi ou algo do género.

A mão nos cabelos de Manny sacudiu-lhe a cabeça.

— Larga-o, Brail — ordenou Favre.

A mão largou-o. Sem ninguém a agarrá-lo, Manny quase caiu de novo.

— Onde estão os outros? — perguntou Louis.

Manny mordeu o lábio.

— Na árvore... foi a última vez que os vimos... nunca mais tivemos notícias.

Favre anuiu.

— Sim, eu sei. — Tirou do bolso um rádio igual aos dos rangers. — O cabo DeMartini teve a gentileza de me oferecer este, juntamente com as vossas frequências de rádio.

Manny franziu o sobrolho e desviou o olhar para Anna.

— Se sabia... porque é que...

Louis suspirou.

— Só queria ter a certeza de que não estavam a enganar-me. Também perdi o contacto com o meu homem. Naturalmente, isso despertou a minha desconfiança.

— O seu homem? — perguntou Manny.

— Um cúmplice — explicou Kouwe, na outra ponta da fila. — Richard Zane.

— Exatamente. — Louis virou-se e levou o rádio aos lábios. — Caro Nate, se estiver a ouvir-me, não saia daí, está bem? Nós vamos ter consigo.

Não houve resposta.

Manny esperava que Nate tivesse fugido com Kelly, mas sabia que ela nunca abandonaria o irmão. Os três ainda deviam estar escondidos na Yagga.

Favre parecia ter a mesma opinião e lançou um olhar compenetrado ao gigante branco no centro da clareira. Ficou assim por instantes. Depois virou-se novamente para Manny.

— Bom, só nos resta um assunto por resolver. O seu insulto à minha bela Tshui. — Tornou a erguer a metralhadora. — O que fez não é digno de um cavalheiro, monsieur Azevedo.

Favre premiu o gatilho. A pequena arma tinha a voz da irmã mais velha e cuspiu dezenas de balas num abrir e piscar de olhos.

Manny estremeceu, mas nenhuma o atingiu.

Ouviu um grito atrás dele. O soldado que o guardava caiu no chão com o peito esburacado. Ficou ali estendido, com a boca a abrir e a fechar-se, como um peixe fora de água.

Favre baixou a arma. Manny olhou para o francês, que se limitou a arquear uma sobrancelha.

— A culpa não foi sua. O Brail tinha de estar mais atento e não devia ter permitido que o monsieur deitasse a mão a esse maldito chicote. Mon Dieu, é tão difícil encontrar bons profissionais hoje em dia. — Acenou com a arma e encaminhou-se na direção da Yagga. — Tragam os prisioneiros. Estou cansado de andar atrás daquele rapaz. Vamos ver se o convencemos a juntar-se a nós.

11h09

Nate manteve-se escondido no labirinto de raízes. Uma nuvem de fumo pairava sobre a clareira. Ouvira disparos e gritos na direção do carvalho gigante.

O que estará a acontecer?

A antiga cabana do pai era a única coisa à vista na clareira. Como uma mortalha, uma sensação de medo e desespero abateu-se sobre ele. Então, como fantasmas a erguerem-se de sepulturas, um punhado de figuras materializou-se por entre o fumo.

Afundou-se mais nas sombras das raízes e ergueu a caçadeira. A cada passo, as figuras ganhavam forma e substância. Reconheceu Manny e Kouwe na dianteira, protegendo Anna entre os dois. Kostos e Carrera caminhavam um passo atrás. Até o índio, Dakii, se encontrava na companhia deles.

Percebeu que os amigos estavam em apuros. Tinham sangue nas roupas, nos rostos, e caminhavam com as mãos atrás das costas, aos tropeções, empurrados por figuras que não conseguia identificar. À medida que se aproximavam, percebeu que se tratava de uma mistura de soldados com diferentes indumentárias. Carregavam armas de todos os tipos, apontadas aos companheiros.

Baixou a caçadeira. De nada lhe serviria contra aquele exército. Precisava de outro plano. Por enquanto, dispunha apenas daquele esconderijo.

O grupo de militares deteve-se. Um par diferente de todos os outros avançou. Uma mulher índia e um homem vestido de branco.

O homem ergueu um pequeno megafone.

— Nathan Rand! — gritou. — Tem dois minutos para se mostrar! Caso contrário, os seus amigos irão pagar pela desobediência!

Os companheiros foram obrigados a ajoelharem-se.

Nate baixou-se para se esconder melhor. Não havia dúvida de que aquele homem era o líder. Um francês, a avaliar pelo sotaque. O homem olhou para o relógio no pulso e depois para a árvore, batendo impacientemente com o pé. Era óbvio que pensava que ele ainda se encontrava lá em cima, na enfermaria. Devia ter sido essa a última informação passada por Zane.

Hesitou. Devia mostrar-se ou fugir? Arriscar a sorte na floresta, talvez? Ou quem sabe até tentar surpreender os soldados pelas costas? Abanou a cabeça. Uma proeza dessas só estaria ao alcance de um militar treinado, coisa que ele não era.

— Trinta segundos, Nathan! — berrou o homem de branco.

Uma voz fez-se ouvir no cimo da Yagga. Kelly.

— O Nate não está aqui! Foi-se embora!

O francês baixou o megafone.

— Mentira... — murmurou, convencido de que as suas palavras não eram ouvidas.

Kouwe interveio.

— Doutor Favre, posso dar-lhe uma palavrinha?

Nate apertou os dedos em torno da caçadeira mal ouviu aquele nome. Sabia de quem se tratava. Louis Favre. Ouvira do pai histórias acerca das atrocidades cometidas por aquele homem. Na Amazónia, era uma espécie de bicho-papão, um demónio aos olhos das tribos, um monstro banido da região pelo pai e que agora estava de volta.

— Tem alguma coisa a dizer, professor? — perguntou Favre, irritado.

— Aquela mulher é a Kelly O’Brien. Está lá em cima a cuidar do irmão. Se diz que o Nate não está lá, então é porque não está.

— É o que vamos ver — disse Favre, franzindo o sobrolho. Consultou o relógio e ergueu o megafone. — Dez segundos! — Estendeu a mão e alguém lhe entregou uma arma, uma espécie de machete curvo, parecido com uma foice. Apesar do fumo, o gume da lâmina cintilou à luz do Sol.

Favre inclinou-se e encostou a lâmina ao pescoço de Anna Fong. Tornou a erguer o megafone.

— O tempo está a acabar, Nathan! Fui generoso o suficiente ao conceder-lhe dois minutos. A partir de agora, cada minuto custará a vida a um dos seus amigos. Apareça e serão poupados! Dou-lhe a minha palavra enquanto cavalheiro e cidadão de França. — Favre contou os últimos segundos: — Cinco, quatro...

Nathan debateu-se desesperadamente para arranjar um plano... qualquer coisa. Sabia que a palavra de Louis Favre não tinha valor, mas o que podia arranjar para negociar com ele?

— Três, dois...

Dispunha de escassos segundos para encontrar uma alternativa à rendição.

— Um...

Não se lembrou de nada.

— Zero!

Saltou do esconderijo. Avançou pela clareira à vista de todos, com a caçadeira erguida acima da cabeça.

— Estou aqui! — gritou para o francês. — Ganhou!

Favre endireitou-se e arqueou uma sobrancelha.

— Oh, mon petit homme, quase me assustava! O que estava a fazer aí sozinho?

As lágrimas corriam pelo rosto assustado de Anna.

Nate desfez-se da caçadeira.

— Ganhou! — repetiu.

Os mercenários correram ao seu encontro de armas apontadas.

Favre sorriu.

— Ganho sempre. Nunca lho tinham dito?

O sorriso divertido converteu-se num esgar maquiavélico. Antes que alguém pudesse reagir, Favre puxou o braço atrás e brandiu o machete com toda a força.

Houve um esguicho de sangue.

A cabeça da vítima foi cortada com um golpe limpo na base do pescoço.

— Manny! — gritou Nate, caindo de joelhos e mãos no chão.

O corpo do amigo tombou para trás.

Anna gritou e encolheu-se contra Kouwe.

De costas viradas para Nate, Favre fitou as expressões horrorizadas dos prisioneiros ajoelhados.

— Por favor, não pensavam que o atrevimento de monsieur Azevedo contra a minha amada não teria consequências, pois não? Mon Dieu, desde quando um cavalheiro não protege a sua dama?

Atrás dos amigos ajoelhados, Nate viu a mulher índia tocar com o dedo num corte no rosto. Os olhos cintilavam de satisfação.

Favre virou-se outra vez. O fato branco estava agora salpicado com o sangue de Manny. O monstro bateu com o dedo no mostrador do relógio e abanou a cabeça.

— E Nathan, a verdade é que não se mostrou antes de eu terminar a contagem. Demorou mais do que devia, portanto...

Nate deixou cair a cabeça entre os ombros, derrotado.

Manny...

Algures na floresta, o rugido solitário de um felino ecoou pelo vale.


17

CURA

17 de agosto, 16h16

Selva amazónica

No vale, Louis supervisionava os últimos preparativos. Caminhava com o casaco dobrado por cima do braço, as mangas da camisa arregaçadas. O calor chegara em força durante a tarde, mas as coisas ainda iriam aquecer bastante. Fitou as ruínas da aldeia e sorriu, satisfeito.

Um mercenário colombiano, a quem chamavam Máscara, pôs-se em sentido ao vê-lo aproximar-se. O fulano, com mais de um metro e noventa, além de alto como tudo, era letal. Antigo guarda-costas de um barão da droga, certa noite levara com ácido no rosto ao proteger o patrão. A pele de metade da cara era uma massa disforme de tecido cicatrizado, e valera-lhe o despedimento pelo ingrato patrão, que, além de olhar para ele como se fosse um monstro, o via também como uma lembrança constante de quão perto estivera de morrer. Louis, por sua vez, respeitava a coragem e o sentido de lealdade demonstrados pelo homem. Daria um bom substituto de Brail.

— Máscara — disse —, quanto tempo para as cargas estarem colocadas?

— Meia hora — respondeu o novo tenente.

Louis anuiu e consultou o relógio. Embora continuassem dentro do horário previsto, não havia um minuto a perder. Se o maldito russo não tivesse corrigido o sinal de GPS, teria mais tempo para desfrutar da vitória. Mas as coisas eram como eram.

Suspirou e estudou o cenário diante dele. Estavam ali ajoelhados dezoito prisioneiros no total, todos eles com as mãos e os tornozelos amarrados. Uma corda estendia-se das amarras e terminava num laço no pescoço, que se apertava ao mínimo movimento de braços e pés. Uma forma inteligente de impedir que qualquer um deles tentasse libertar-se.

Alguns prisioneiros debatiam-se já com falta de ar, outros suavam e sangravam sob o sol escaldante.

Louis virou-se novamente para o tenente.

— E voltaram a passar a aldeia a pente fino? Não há índios?

— Vivos não, senhor.

A aldeia tinha uns cem habitantes quando ali chegaram. Ao partirem, os Ban-ali passariam a ser mais uma tribo do passado.

— E o vale? Confirmam-se as informações?

— Sim, a passagem na falésia é o único ponto de entrada e saída.

— Ótimo. — Louis sabia que era assim depois de ter torturado Dakii na noite anterior, mas queria ter a certeza. — Verifiquem uma última vez todas as posições. No máximo, quero estar fora daqui às cinco.

Máscara assentiu com a cabeça e encaminhou-se na direção da Yagga.

Louis seguiu-o com o olhar. Na base da árvore, alguns soldados retiravam dois bidões metálicos da entrada do túnel. Depois de assegurarem o controlo do vale, os seus homens tinham invadido a Yagga com machados. Lá dentro, usaram as ferramentas para abrir buracos no tronco e recolher grandes quantidades da preciosa seiva. Enquanto os homens transportavam os bidões para a clareira, Louis fixou os olhos na segunda equipa que trabalhava em volta da base da árvore.

Tudo parecia correr na perfeição, mas ele também não permitiria que fosse de outra maneira.

Satisfeito, encaminhou-se na direção do grupo dos prisioneiros sentados a uns metros dos índios.

Fitou o que restava dos adversários. De certa forma, sentia-se ligeiramente desapontado pelo facto de não terem constituído um desafio maior. Ao vê-lo chegar, os dois rangers sobreviventes lançaram-lhe olhares furiosos. A pequena antropóloga asiática parecia mais calma e rezava de olhos fechados, resignada. Kouwe estava sentado com a postura estoica de sempre. Louis avançou e parou diante do último prisioneiro do grupo.

Nathan Rand lançou-lhe um olhar tão intenso quanto os dos rangers, mas havia algo mais, uma centelha de gélida determinação.

Louis sentiu dificuldade em manter o contacto visual, mas recusou-se a desviar o olhar. No rosto de Nathan conseguia ver as parecenças com o pai: o cabelo castanho-claro, o contorno do rosto, a forma do nariz. Mas o homem diante dele não era Carl Rand. Para surpresa de Louis, aquilo entristeceu-o. A satisfação que contava retirar de ter o filho de Carl ajoelhado a seus pés revelara-se oca. Em abono da verdade, deu consigo a respeitar o jovem diante de si. No decurso daquela aventura, Nathan revelara-se forte e engenhoso — até tinha matado o seu cúmplice, Richard Zane. Mesmo agora, no final, provara a inequívoca lealdade ao grupo ao dispor-se a sacrificar a vida pelos amigos. Qualidades admiráveis, ainda que fossem dirigidas contra os intentos de Louis.

Mas mais que tudo isso era aquele olhar, duro como pedra. Um olhar de quem conhecera uma dor inconsolável mas resistira. Lembrou-se do velho no bar do hotel, o sobrevivente da colónia penal da ilha do Diabo. Visualizou-o a beber whisky. O velho tinha aquele olhar, e aquele olhar não era o de Carl Rand. O jovem diante de si era outra raça de homem.

— O que tenciona fazer connosco? — perguntou Nate. Não era uma súplica, mas uma pergunta genuína.

Louis retirou um lenço do bolso e limpou a testa.

— Dei a minha palavra de cavalheiro de que não vos iria matar. E tenciono honrar esse compromisso.

Nate arqueou uma sobrancelha.

Favre prosseguiu. Falou com um certo tom de pesar na voz.

— Será o exército americano a decidir se morrem ou não.

— Como assim?

Louis abanou a cabeça e deu dois passos na direção de Kostos.

— Creio que o sargento é capaz de responder a essa pergunta. — Ajoelhou-se e fitou o rosto de Kostos. — Ou não? Não me diga que o seu capitão não confiava no próprio sargento?

— De que raio está ele a falar? — perguntou Nate a Kostos. — A fase dos segredos já passou. Se sabe alguma coisa...

O sargento falou por fim num tom de voz constrangido.

— As bombas de napalm... tínhamos ordens para encontrar a fonte da droga milagrosa. O objetivo era destruir tudo. Aniquilação total.

Louis endireitou-se e apreciou as expressões chocadas nos rostos dos outros. Até a soldado Carrera parecia surpreendida. O exército gostava de manter os seus segredos, que apenas revelava a uns quantos.

Erguendo o braço, apontou na direção do grupo de homens a trabalhar na árvore gigante. Constituíam a sua equipa de demolição. As bombas de napalm dos rangers estavam presas ao tronco branco, pares de olhos negros que os observavam.

— Graças ao exército americano — declarou Louis —, temos poder de fogo suficiente para derrubar até um gigante como este.

Kostos baixou a cabeça, envergonhado, e com razão.

— Como pode ver, meu caro Nathan, a única diferença nas nossas missões é quem beneficia desta descoberta: se o exército americano ou uma farmacêutica francesa. É caso para perguntar: qual dos dois daria melhor uso a este conhecimento para o bem comum? — Louis encolheu os ombros. — Por outro lado, podíamos também perguntar: quem o utilizaria da pior forma? — Olhou para o sargento. — Mas acho que sabemos a resposta.

Um silêncio pesado abateu-se sobre o grupo.

— E a Kelly e o Frank? — perguntou finalmente Nate.

— Ah, os companheiros em falta... — Louis não ficou surpreendido com a pergunta. — Não se preocupe, vou levá-los comigo. Falei com os meus financiadores. Monsieur O’Brien dará uma cobaia inestimável para a observação do processo regenerativo. Os cientistas da St. Savin estão em pulgas para o estudar.

— E a Kelly?

— Mademoiselle O’Brien servirá para garantir que o irmão coopera.

Nate empalideceu.

Durante a conversa, Louis apercebera-se dos olhares lançados constantemente na direção da Yagga. Apontou para a árvore.

— As bombas estão programadas para explodir daqui a três horas. — Estava a informá-los da hora a que iam morrer. Sabia que tinham visto a força destrutiva de uma única bomba. Ora, multiplicada por nove... Apreciou o desalento nos rostos e prosseguiu. — Também colocámos bombas incendiárias no desfiladeiro, incluindo na passagem, que detonaremos assim que estivermos fora daqui. Não podemos arriscar que um índio escondido algures apareça para vos salvar. De qualquer forma, amarrados ou não, receio que não tenham escapatória. Este vale transformar-se-á num gigantesco cataclismo de fogo, que destruirá o que resta da seiva milagrosa e irá atrair quaisquer helicópteros que venham a caminho. Uma boa distração para a minha equipa fugir à vontade.

A derrota absoluta era agora bem patente nos olhos dos prisioneiros.

Louis sorriu.

— Como podem constatar, nada foi deixado ao acaso.

Atrás dele, o novo tenente aproximou-se. O colombiano ignorou o grupo, como se estivesse diante de um rebanho de ovelhas.

— Sim, Máscara? — perguntou Louis.

— Estamos prontos. Basta dar a ordem.

— Está dada. — Louis lançou um último olhar à linha de homens e mulheres. — Meus amigos, o dever chama-me. A todos, digo-vos adieu.

Por muito que apreciasse o valor e a personalidade de Nate, Louis sentiu uma pontada de satisfação quando lhe virou as costas.

Em última instância, tinha sido o próprio Carl Rand a condenar o filho.

É o que se chama seguir as pisadas do pai...

Só esperava que, no inferno, o velho adversário estivesse a assistir àquilo.

16h55

Ajoelhado com os outros, Nate sentiu-se tão derrotado como qualquer um dos companheiros quando viu o inimigo preparar-se para partir.

— Ele deposita toda a fé na seiva da Yagga — disse Kouwe.

Nate olhou na direção do professor, tendo o cuidado de não apertar ainda mais o nó em volta do pescoço.

— E isso interessa porquê?

— Está convencido de que cura a doença, mas não há nenhuma prova de que assim seja.

Nate encolheu os ombros.

— E então?

— Temos de lhe dizer.

— Ajudá-lo? Porque faríamos uma coisa dessas?

— Não quero ajudá-lo, Nate. Estou a pensar naqueles que estão doentes e nos que irão ficar. A cura está aqui, neste vale. Tenho a certeza disso. E ele vai destruir a possibilidade de pormos fim à maldição dos Ban-ali. Temos de o impedir.

Nate franziu a testa. A imagem da morte de Manny sobreveio-lhe ao pensamento, o corpo decapitado a cair no chão. Percebia a lógica do professor, mas nunca seria capaz de mover uma palha para ajudar aquele monstro.

— Ele não nos dará ouvidos — disse, como se procurasse um compromisso entre a lógica e o coração, uma justificação para ficar calado. — Está a correr contra o tempo. Uma resposta militar não deve demorar mais do que seis ou oito horas. Apenas quer agarrar no que puder e fugir.

— Vai ter de nos ouvir — insistiu Kouwe.

Ergueram-se vozes junto à Yagga. Nate e o professor olharam na direção da abertura no tronco. Um par de mercenários carregava uma maca. Nate reconheceu a padiola improvisada e a figura de Frank amarrada em cima, como um porco pronto para assar no espeto.

Kelly caminhava mais atrás, com as mãos atadas, a par de Favre e da mulher índia. Vários homens armados acompanhavam-nos.

— Nem imagina o erro que está a cometer! — protestava Kelly, alto e bom som. — Não sabemos se a seiva pode curar a doença!

Aquilo era a repetição da conversa entre Nate e o professor.

Louis encolheu os ombros.

— Receberei o meu dinheiro antes de os laboratórios St. Savin descobrirem se tem ou não razão. Vão olhar para as pernas do seu irmão, ou o que resta delas, e terei os milhões acordados depositados na minha conta.

— E as pessoas que estão a morrer? As crianças? Os idosos?

— Não me diz respeito. Os meus pais já morreram, e não tenho filhos.

Kelly preparava-se para protestar furiosamente, mas reparou nos companheiros amarrados. Franziu a testa, confusa. Olhou para os trinta mercenários que marchavam mais à frente, prontos para abandonar o vale, e novamente para os prisioneiros.

— Que raio se passa aqui?

— Oh, os seus amigos. É o que está a perguntar? Vamos ter de os deixar.

Kelly olhou por cima do ombro, para os explosivos fixados na base da árvore. Virou-se outra vez e fitou Nate.

— Mas... não pode simplesmente deixá-los aqui.

— Claro que posso.

Kelly deteve-se, com os olhos a lacrimejarem.

— Deixe-me ao menos despedir-me deles.

Louis soltou um suspiro exasperado, quase teatral.

— Muito bem, acabe lá com isso. Mas seja rápida. — Agarrou-lhe num braço e conduziu-a na direção dos prisioneiros, acompanhado pela amante e por quatro homens armados.

Nate sentiu o peito apertar-se. Preferia que ela tivesse continuado a andar.

Com as lágrimas a correrem no rosto, Kelly passou por cada um, dizendo-lhes o quanto lamentava, que tudo aquilo era culpa dela. Nate mal a ouviu e limitou-se a absorver a visão dela, sabendo que era a última vez que o faria. Kelly inclinou-se e deu um beijo na cara do professor Kouwe, depois deslocou-se para o fim da linha, onde se encontrava Nate.

Ajoelhou-se e fitou-o.

— Nathan...

— Está tudo bem — disse ele, esboçando um sorriso triste. Dissera-lhe aquelas palavras na noite anterior.

As lágrimas de Kelly redobraram.

— Sei o que aconteceu ao Manny... lamento tanto...

Nate fechou os olhos e baixou a cabeça.

— Se tiveres oportunidade — murmurou entre dentes —, mata esse maldito francês.

Kelly colou o rosto ao dele.

— Prometo — sussurrou-lhe ao ouvido, como um segredo partilhado entre amantes.

Nate ergueu o rosto e, sem querer saber de quem estava à volta, procurou os lábios dela e beijou-a pela última vez. Kelly respondeu ao beijo com sofreguidão, meio a chorar e meio consumida pela paixão.

Favre pegou-lhe no braço e puxou-a para trás, forçando-a a levantar-se.

— Pelos vistos, temos aqui um casal de pombinhos — disse, com um sorriso sarcástico. Puxou Kelly para si e pespegou-lhe um beijo na boca. Ela gritou de surpresa e choque. Louis largou-a, empurrando-a na direção da mulher índia. Tinha o lábio a sangrar.

Kelly mordera-o.

Limpou o queixo e fitou Nate.

— Não se preocupe, meu caro, eu tomo conta dela. — Desviou o olhar para a amante. — A Tshui e eu vamos certificar-nos de que a estada connosco será agradável. Não é, minha querida?

A mulher índia pegou numa madeixa do cabelo de Kelly e cheirou-a.

— Está a ver, Nathan? A Tshui já está entusiasmada com a ideia.

Nate debateu-se com as amarras. Queria matar aquele homem.

— Filho da mãe! — sibilou, quase a sufocar pela corda enrolada no pescoço.

— Tenha calma... — Louis recuou e colocou um braço por cima dos ombros de Kelly. — Ela está em boas mãos.

Lágrimas de raiva e frustração correram no rosto de Nate. Mal podia respirar, mas continuou a debater-se. Iria morrer de qualquer maneira, por isso, tanto lhe fazia se morria estrangulado ou queimado.

Louis lançou um derradeiro olhar àquele esforço patético, e depois arrastou Kelly dali para fora.

— Que infelicidade — murmurou ao afastar-se. — Um jovem tão simpático e uma vida tão recheada de tragédias.

Nate sentiu a visão estreitar-se.

— Para de lutar, Nate! — disse Kouwe.

— Porquê? — bufou Nate.

— Onde há vida, há esperança...

Nate descaiu os ombros, rendendo-se. Não porque retirara algum alento ou significado especial das palavras do amigo, mas porque fora vencido. A pressão no laço diminuiu, permitindo-lhe respirar normalmente. Desviou o rosto na direção do grupo de mercenários que abandonava o vale, os olhos cravados em Kelly. No rebordo da clareira, ela olhou por cima do ombro uma última vez. Depois, desapareceu.

O grupo ficou em silêncio, exceto pela oração murmurada que se escapava dos lábios de Anna Fong. Mais atrás, alguns índios começaram a entoar uma melodia triste. Outros limitaram-se a chorar.

Ficaram ali parados, desprovidos de esperança, a cozer ao sol que deslizava para o horizonte a oeste. Cada fôlego ou soluço colocava-os mais perto da morte.

— Porque não nos deram um tiro? — murmurou Kostos. — Para quê tudo isto?

— Não é o estilo do Favre — retorquiu Kouwe. — Quer que apreciemos as nossas mortes. Uma tortura lenta. A ideia excita-o.

Nate fechou os olhos.

Decorrida uma hora, ouviram uma enorme explosão a sul. Os rostos viraram-se nessa direção. Nate abriu os olhos e avistou uma espessa coluna de fumo.

— Rebentaram com a passagem — disse Carrera.

O eco da explosão durou uns segundos e desvaneceu-se. Restava-lhes aguardar a explosão seguinte, aquela que os consumiria a eles e ao vale inteiro.

Após novo momento de silêncio, Nate ouviu um resfolegar familiar. O resfolegar de um jaguar.

Kouwe olhou para Nate.

— Tor-tor? — perguntou Nate, numa réstia de esperança.

Na orla da floresta, uma forma felina mostrou-se, mas não era o jaguar de Manny.

A enorme pantera-negra avançou pela clareira, cheirando o ar, a boca arreganhada num rosnar mudo e esfomeado.

17h35

Kelly caminhava ao lado da maca de Frank. Incansáveis, os dois carregadores marchavam pelo desfiladeiro como robôs musculados. Kelly, que não carregava nenhum fardo a não ser o coração pesado, tropeçava em tudo o que eram raízes ou ramos espalhados pelo chão.

Favre impusera um ritmo forte ao grupo. Queria alcançar o pântano e desaparecer na floresta a sul antes de o vale superior se transformar numa bola de fogo. «Depois disso, os militares vão juntar-se aqui como moscas numa bosta», avisara ele. «Por essa altura, convém estarmos bem longe.»

Kelly também escutara as conversas de alguns mercenários, quase sempre numa mistura de português e espanhol. Favre contactara alguém que esperaria a equipa com barcos num ponto combinado, a um dia de marcha. Depois disso, abandonariam a região rapidamente. Antes, porém, precisavam de chegar a esse local, e isso implicava não perder tempo. Favre não permitiria que ninguém arrastasse os pés, incluindo Kelly. Confiscara o chicote de Manny e, volta e meia, como um capataz diante de um grupo de escravos, dava-lhe bom uso. Kelly também experimentara na pele o toque do chicote. Caíra de joelhos quando a passagem explodira, sentira-se tão esvaziada de esperança que mal se conseguia mover. Foi então que algo lhe incendiou o ombro. A ponta do chicote rasgara-lhe a camisa e a pele. Serviu-lhe de lição.

A seu lado, a voz de Frank fez-se ouvir.

— Kelly...

Ela inclinou-se sobre a maca.

— Vamos escapar desta — sussurrou ele. Apesar dos protestos do irmão, administrara-lhe uma dose de Demerol antes de abandonarem a Yagga. Não queria que tivesse dores durante a viagem.

Kelly assentiu com a cabeça. Desejava que os braços do irmão não estivessem amarrados debaixo da manta, para lhe poder segurar na mão.

Frank continuou a tentar animá-la, as palavras arrastadas num delírio de morfina.

— O Nate e os outros... eles vão fugir... alguém virá salvar-nos...

Kelly olhou por cima do ombro. Apesar da copa das árvores, praticamente cerrada, ainda avistava ao longe a nuvem de fumo produzida pela explosão. Não dissera ao irmão que os mercenários tencionam destruir o vale inteiro com as bombas incendiárias. Os companheiros não iriam ajudá-los.

Desviou o olhar para as costas de Favre, que caminhava uns metros à frente.

Tudo que lhe restava era a sede de vingança.

Tencionava cumprir a promessa feita a Nate.

Matarei o Louis Favre... nem que isso a matasse também.

17h58

Nate viu a pantera-negra avançar sozinha pela clareira. Reconheceu o animal, a fêmea gigante, líder dos jaguares. Tinha sobrevivido ao envenenamento em massa perpetrado por Louis e regressara instintivamente ao vale onde nascera.

— Isto vai de mal a pior... — murmurou o sargento Kostos.

A besta fitou os prisioneiros amarrados. Refeições fáceis. Sem o pó repelente, até os Ban-ali estavam em risco de ser devorados. Aquela deusa felina preta, criada pela Yagga para os proteger, estava prestes a virar-se contra eles.

Continuou a avançar na direção do grupo com o corpo rente ao chão, a cauda a abanar.

Foi então que um movimento chamou a atenção de Nate para lá dos ombros musculados da pantera. Tor-tor saltou da orla da floresta. Apesar de parecer minúsculo, o jaguar passou-lhe à frente sem medo e correu para junto de Nate e dos outros.

Nate foi abalroado pelo animal e caiu para o lado. Apesar de o dono ter morrido, o jaguar estava nitidamente aliviado por se juntar ao grupo.

A pantera deteve-se a observar aquele estranho comportamento.

Tor-tor roçou o corpo em Nate à procura de alguma manifestação de carinho, algo que o consolasse. Com as mãos presas, não havia muito que Nate pudesse fazer, mas teve uma ideia. Deitou-se de barriga — o que lhe valeu um aperto da corda no pescoço — e estendeu os braços na direção do jaguar. Tor-tor cheirou as amarras nos pulsos.

— Morde-as! — disse Nate, sacudindo as mãos. — Depois faço-te uma festa, monte de pelo!

Tor-tor lambeu-lhe as mãos e depois esfregou o focinho nos ombros.

Nate suspirou, frustrado. O jaguar não percebia. Olhou por cima do ombro. A gigantesca pantera aproximou-se. Afastou Tor-tor com um toque de focinho e um rugido.

Nate ficou petrificado.

A pantera cheirou a mão que Tor-tor lambera, depois fitou Nate com os olhos negros e penetrantes. Quase dava para ver as engrenagens do cérebro em movimento. Nate tinha a certeza de que ela conseguia cheirar o medo do homem encolhido a seus pés. Lembrou-se da maneira como arrancara as duas pernas de Frank de um só golpe.

A pantera baixou a cabeça ao encontro das mãos e das pernas de Nate. Rugiu. Nate sentiu um puxão violento e foi levantado em peso, a debater-se com o nó apertado em volta do pescoço. No meio da aflição, interrogou-se se seria estrangulado antes de ser devorado. Esperava que sim.

Em vez disso, deu por si a cair outra vez no chão. Cerrou os maxilares, e foi quando percebeu que podia mexer os braços. Aproveitou a oportunidade e rolou para o lado. Sentou-se e olhou para as mãos. As cordas cortadas balançavam nos pulsos. A pantera libertara-o.

Apressou-se a tirar a corda à volta do pescoço.

A pantera observou-o sem se mexer. Tor-tor roçou o focinho no flanco dela, numa evidente demonstração de afeto, e depois foi ao encontro de Nate.

Nate libertou-se da corda e atirou-a para o lado. Os tornozelos continuavam amarrados, porém, antes de libertar as pernas, tinha um amigo a quem precisava de agradecer.

Tor-tor pressionou e roçou a cabeça contra o peito dele. Nate esfregou-lhe aquela zona especial atrás das orelhas, o que lhe valeu um ronco de satisfação.

— Isso, matulão... estiveste bem! — Agarrou na cabeça do jaguar e fitou-o. Havia dor naqueles enormes olhos dourados. — Também vou sentir falta do Manny — murmurou.

Tor-tor começou a lamber-lhe a cara.

Nate deixou-o lamber à vontade e continuou a murmurar-lhe palavras de afeto. O jaguar acabou por se acalmar e afastou-se. Nate libertou finalmente os tornozelos.

Atrás de Tor-tor, a pantera-negra sentou-se. O jaguar devia tê-la conduzido até ali, o que só provava a teoria de Manny de que os dois felinos se tinham afeiçoado um ao outro. Talvez esse laço fosse até mais profundo pela dor sentida por ambos: Tor-tor pela morte de Manny, e a fêmea pelo massacre dos jaguares.

Nate levantou-se e libertou Kouwe. Juntos, libertaram os outros. Nate deu por si a retirar as amarras das mãos e dos pés de Dakii. Aquele índio era o principal responsável pelos ataques lançados sobre o grupo, mas Nate não lhe guardava rancor. O batedor queria apenas proteger os seus, e tinha razão para o fazer. Ajudou-o a levantar-se e fitou as ruínas fumegantes da aldeia. Afinal, quem eram os verdadeiros monstros naquele vale?

Dakii abraçou-o com força.

— É cedo para agradecimentos — disse Nate, com os olhos cravados nas nove bombas de napalm fixadas no tronco da Yagga. Os companheiros libertaram os outros índios.

O sargento Kostos passou por Nate a esfregar os pulsos.

— Vou ver se consigo desarmadilhar as bombas. A Carrera foi procurar a arma que escondeu.

Nate anuiu. Ali perto, os Ban-ali libertados estavam reunidos em volta dos dois jaguares deitados à sombra. Ambos os animais não pareciam importar-se com a plateia de curiosos, mas a fêmea mantinha-se atenta e observava cada gesto com os olhos semicerrados. Sempre desconfiada, não tencionava baixar a guarda.

Anna e Kouwe juntaram-se a ele.

— E agora que estamos livres, o que fazemos? — perguntou o professor.

Nate abanou a cabeça.

Anna cruzou os braços.

— O que foi? — perguntou Nate, ao reparar na forma como ela franzia o sobrolho.

— O Richard Zane. Se sairmos desta embrulhada, não trabalho nem mais um dia para a Tellux.

Nate riu-se, apesar do desespero da situação.

— Já somos dois.

Passado um bocado, o sargento regressou. Não parecia contente.

— As bombas estão armadilhadas. Não consigo parar a contagem decrescente.

— Não há nada que possa fazer? — perguntou Kouwe.

O ranger abanou a cabeça.

— Tenho de dar crédito aos mercenários do francês. Fizeram um excelente trabalho.

Anna fitou-o.

— Quanto tempo nos resta?

— Menos de duas horas. As explosões estão programadas para as oito.

Nate franziu o sobrolho.

— Temos de arranjar maneira de sair deste vale, ou arranjar algum tipo de abrigo.

— Esqueça o abrigo — disse o sargento. — Não podemos estar aqui quando aquelas meninas rebentarem. Mesmo sem as cargas adicionais colocadas pelos mercenários, as nove bombas de napalm são o suficiente para incinerar o vale.

Nate não tinha razões para duvidar do sargento.

— Onde está o Dakii? Talvez ele conheça outra saída.

Kouwe apontou na direção da Yagga.

— Foi ver como estava o xamã.

Nate anuiu. Esquecera-se completamente do pobre índio que Zane alvejara na barriga.

— Vamos ter com ele. Pode ser que consiga ajudar-nos.

Kouwe e Anna foram atrás de Nate.

— Vou continuar a examinar as bombas — ainda disse Kostos. — A ver se produzo um milagre.

Assim que se encontrou no interior da Yagga, Nate foi uma vez mais atingido pelo intenso odor adocicado. Atravessaram a entrada com as impressões das mãos e seguiram pela passagem.

— Sei que a prioridade é fugirmos daqui, mas o que fazemos em relação à epidemia? Ainda não descobrimos a cura.

— Se houver uma saída deste vale — retorquiu Nate —, recolhemos o maior número de amostras de plantas. É o máximo que podemos fazer. Pode ser que tenhamos a sorte de encontrar a planta certa.

Kouwe franziu o sobrolho, pouco satisfeito com o plano, mas não tinha outra solução para propor. De nada servia descobrirem uma cura se não sobrevivessem.

Enquanto subiam a passagem, ouviram os passos de alguém a descer. Nate olhou para Kouwe.

Dakii surgiu ao redor da esquina, com um aspeto cansado e de olhos arregalados. Ficou surpreendido por os encontrar ali. Começou a falar rapidamente na sua língua nativa. O próprio Kouwe teve dificuldade em acompanhá-lo.

— Mais devagar — disse Nate.

O índio pegou-lhe no braço.

— Filho de wishwa, vem! — Começou a puxá-lo pela passagem acima.

— O vosso xamã está bem?

— Vivo... mas doente. Muito doente.

— Leva-nos até ele.

O índio ficou visivelmente aliviado e estugou o passo. Em menos de nada, encontravam-se já na enfermaria.

O xamã encontrava-se deitado numa cama. Estava vivo, mas não parecia nada bem. Tinha a pele amarelada e transpirada. Muito doente, como dissera Dakii.

Com extrema dificuldade, sentou-se na cama ao vê-los aproximarem-se. Fez sinal a Dakii e mandou-o buscar qualquer coisa no outro lado da enfermaria, depois fitou Nate com um olhar vidrado, embora lúcido.

Nate reparou nas cordas no chão. Apesar do estado fragilizado, os homens de Favre tinham-no amarrado à cama.

— Tu wishwa — disse, apontando para Nate. — Como o teu pai.

Nate abriu a boca para dizer que não. Podia ser muitas coisas, mas não um curandeiro. O professor, porém, interrompeu-o.

— Diz-lhe que sim...

Nate assentiu com a cabeça, seguindo as instruções do professor.

A resposta pareceu aliviar o xamã.

— Ótimo... — disse.

Dakii regressou com uma pequena sacola de cabedal e um par de canas com trinta centímetros. Estendeu os braços para entregar tudo ao xamã, mas o outro estava demasiado fraco e continuou a dar-lhe instruções.

Obedecendo, Dakii ergueu a sacola.

— O escroto seco de um jaguar — disse Kouwe a Nate, apontando para a sacola.

— A última moda parisiense — murmurou Nate.

Dakii abriu a sacola. Guardava um pó vermelho. O xamã continuou a dar instruções.

Kouwe traduziu, embora Nate fosse capaz de apanhar uma palavra ou duas.

— Ele descreve o pó como ali ne Yagga.

Nate anuiu.

— O sangue da mãe...

Kouwe olhou para Nate enquanto Dakii despejava um pouco de pó nas pontas das canas.

— Sabes o que vai acontecer, não sabes?

Nate conseguia adivinhar.

— É como o ritual da epená dos Ianomâmis.

Nate já tinha participado em cerimónias de epená ao longo dos anos em que trabalhara com diferentes tribos ianomâmis. Epená significava qualquer coisa como «sémen do Sol», uma droga alucinogénia que os xamãs ianomâmis usavam para aceder ao mundo dos espíritos. Tratava-se de uma substância poderosa, capaz de convocar os hekura, ou espíritos da floresta, para ensinarem medicina ao xamã. Quando Nate experimentara a droga, tudo o que experienciara fora uma forte dor de cabeça seguida de alterações visuais. Além do mais, o modo como era administrada — aspirada pelo nariz — não lhe agradara.

Dakii entregou uma cana a Nate e a outra ao xamã, que fez sinal para Nate se ajoelhar ao lado da cama.

Nate obedeceu.

— Ele sabe que vai morrer — avisou Kouwe. — O que está a fazer é mais do que um simples ritual. Acho que se prepara para entregar a sua responsabilidade a ti. A responsabilidade pela tribo, pela aldeia, pela Yagga...

— Não posso deixá-lo fazer isso — disse Nate.

— Tem de ser. Assim que te tornares um xamã, os segredos da tribo ser-te-ão revelados. Consegues perceber o que isso significa?

Nate respirou fundo e anuiu.

— A cura.

— Exato.

Nate ajoelhou-se junto à cama.

O xamã mostrou-lhe o que devia fazer, mas o processo era em tudo semelhante ao ritual dos Ianomâmis. O xamã posicionou a ponta da cana com o pó numa narina e fez sinal para Nate colocar a boca na outra ponta. O papel de Nate era soprar o pó para o nariz do índio. Por sua vez, Nate também colocou a ponta da segunda cana na própria narina. Os dois soprariam o pó em simultâneo para o nariz um do outro.

O xamã ergueu o braço. Ambos respiraram fundo.

Aqui vai disto...

O índio baixou o braço e Nate soprou com força, preparando-se ao mesmo tempo para a descarga de pó no próprio nariz. Ainda não terminara de soprar quando sentiu o impacto da droga. Foi como se alguém lhe enfiasse um ferro incandescente pelo cérebro dentro. Arquejou e começou a ver tudo a andar à roda. A sensação de vertigem amplificou-se. Um poço profundo abriu-se na sua mente e ele sentiu-se a cair numa voragem escura, que era ao mesmo tempo brilhante. Ouviu alguém chamá-lo à distância, mas não foi capaz de responder.

Subitamente, o corpo em queda trespassou algo sólido naquele outro mundo. A escuridão fragmentou-se em mil cacos, como que feita de vidro, e desapareceu. O que restava era um pedaço de negritude esculpida na forma de uma árvore. Parecia erguer-se de um monte escuro.

Nate pairou sobre a imagem, cujos pormenores se revelaram lentamente. A árvore negra tinha agora três dimensões, com folhas definidas, ramos e aglomerados de sementes.

A Yagga, disse a sua mente.

Então, para lá da árvore, pequenas figuras materializaram-se e, umas atrás das outras, subiram o monte.

Os hekura...

Tal como a árvore, as figuras ganharam forma e dimensão, e Nate percebeu que se enganara. Em vez de figuras humanas, a linha era composta por animais de todas as espécies: macacos, preguiças, ratos, crocodilos, jaguares... alguns que nem conseguia identificar. Entre as silhuetas dos animais, porém, havia também homens e mulheres, mas Nate sabia que não eram hekura. As figuras subiram o monte e fundiram-se na forma da árvore.

Para onde tinham ido? Devia segui-las?

Então, uma a uma, as figuras reemergiram do outro lado da árvore. Mas com uma diferença. Em vez de silhuetas, eram agora figuras de luz. O grupo cintilante espalhou-se em torno da árvore, homens e animais, protegendo a mãe de todos eles.

Enquanto assistia àquilo, Nate sentiu o tempo acelerar. As figuras humanas perdiam o brilho e regressavam à árvore. Comiam o fruto e resplandeciam novamente, para recuperarem o lugar no círculo dos filhos da Yagga. O ritual repetia-se vezes sem conta.

Sempre a repetir-se como um disco riscado, a imagem desvaneceu-se até restar apenas escuridão.

Uma voz chamou-o.

— Nate?

Procurou quem o chamava, mas havia apenas trevas.

— Quem...

— Consegues ouvir-me, Nate?

Sim, mas quem me chama?

— Aperta a minha mão se me ouvires.

Nate deixou-se ir ao encontro da voz.

— Isso... abre os olhos...

Nate esforçou-se por obedecer.

— Não resistas... Abre apenas os olhos.

A escuridão fragmentou-se e deu lugar a uma luz ofuscante. Nate abriu a boca, engolindo grandes golfadas de ar. A cabeça parecia capaz de explodir. Por entre as lágrimas, reconheceu o rosto de Kouwe debruçado sobre ele, a segurar-lhe a cabeça.

— Nate?

Tossiu e acenou com a cabeça.

— Como te sentes?

Nate tentou endireitar-se.

— Como se tivesse sido atropelado por um camião...

— O que viste? — perguntou Kouwe. — Estavas a balbuciar.

— E a babar-se como um bebé — acrescentou Anna, ajoelhada a seu lado.

Nate limpou a boca e o queixo.

— Hipersalivação... Além de alucinogénio, o pó deve ter propriedades alcaloides.

— O que viste? — insistiu Kouwe.

Nate abanou a cabeça. Arrependeu-se de imediato. A dor redobrou.

— Estive quanto tempo desmaiado?

— Uns dez minutos.

— Dez minutos? Parece que foram horas, para não dizer dias.

— O que aconteceu?

— Acho que me mostraram a cura para a doença.

Kouwe arregalou os olhos.

— O quê?

Nate explicou o que vira.

— Pareceu-me evidente que as sementes da árvore são vitais para a saúde da tribo. Os animais não precisam, mas os índios, sim.

Kouwe anuiu e refletiu uns instantes.

— Quer dizer que a cura está nas sementes... — Fez uma nova pausa e prosseguiu. — Daquilo que vimos na pesquisa do teu pai, sabemos que a seiva está cheia de proteínas mutantes, priões que potenciam as capacidades das espécies que protegem a árvore, tornando-os mais fortes, mais inteligentes. Mas essa dádiva tem um custo. A árvore não quer que os filhos a abandonem, e por isso dá-lhes algo mais do que o aumento das capacidades. Os animais ficam no vale por uma questão territorial ou de instinto, algo que pode ser manipulado consoante a necessidade, como os pós usados nos gafanhotos e naquelas piranhas. Os humanos, por seu turno, dotados de um intelecto superior, precisam de laços mais firmes para se manterem ligados à árvore, e por isso a Yagga obriga-os a comer regularmente as suas sementes, a única forma de impedirem que os priões ataquem o organismo. O leite das sementes deve conter alguma substância que suprime a doença.

A explicação pareceu deixar Anna agoniada.

— Isso quer dizer que os Ban-ali não ficaram neste vale de livre vontade, mas por obrigação, porque se tornaram escravos da árvore.

Kouwe coçou a cabeça.

— Ban-yi... escravo. O termo não é exagerado. Quando uma pessoa é exposta ao prião, nunca mais pode partir. Sem as sementes, o prião reverte para a sua forma virulenta e ataca o sistema imunitário.

— Jekyll e Hyde — murmurou Nate.

Kouwe e Anna olharam para ele.

Nate explicou.

— Foi o que a Kelly disse acerca da natureza dos priões. Numa forma, são benignos, mas também podem ser virulentos e destrutivos, como na doença das vacas loucas.

Kouwe anuiu.

— O leite das sementes deve manter o prião no estado benigno. Sem ele, o prião ataca, matando o hospedeiro e contagiando outros. Isto serve o objetivo da árvore, dado que também protege o seu segredo. Se uma pessoa fugir, acaba por morrer e por matar todas as que encontra pelo caminho.

— E não sobra ninguém para contar a história — disse Nate.

— Exato.

Por essa altura, Nate sentia-se forte o suficiente para se levantar. Kouwe ajudou-o.

— Mas isso não explica porque é que a resposta me foi oferecida. Terá sido o meu subconsciente que resolveu o mistério com a ajuda da droga? Ou será que o xamã conseguiu comunicar comigo por alguma forma de telepatia... quem sabe potenciada pela substância?

Kouwe contraiu o rosto.

— Não foi o xamã — disse, convicto. Apontou para a cama.

O índio estava deitado com os olhos abertos. O nariz e a boca sangravam, e o peito não se movia. Dakii encontrava-se ajoelhado junto dele, cabisbaixo.

— Morreu imediatamente. Derrame cerebral, ao que parece. — Kouwe olhou para Nate. — Aquilo que experienciaste não teve nada que ver com ele.

Nate sentiu-se incapaz de refletir muito mais sobre o assunto. Parecia-lhe que tinha o cérebro comprimido dentro do crânio.

— Deve ter sido o meu subconsciente, nesse caso. A primeira vez que vi as sementes, lembro-me de ter pensado que eram bastante parecidas com as da planta Uncaria tomentosa, mais conhecida como unha-de-gato. Os índios usam-nas contra vírus, bactérias, e até contra alguns tipos de tumores. Mas só agora fiz essa associação. Talvez a droga tenha ajudado a ligar os pontos.

— Talvez... — disse Kouwe.

Nate percebeu que o professor não parecia muito convencido.

— O que mais poderia ser?

Kouwe franziu o sobrolho.

— Falei com o Dakii enquanto deliravas. O pó que tomaste provém da raiz da Yagga.

— E então?

— Talvez não tenha sido o teu subconsciente, mas uma mensagem da própria árvore. Um manual de instruções, por assim dizer. «Consome o fruto e continuarás saudável.» Uma mensagem simples, embebida no pó.

— Não está a falar a sério, pois não?

— Tendo em conta o que vimos neste vale, desde espécies mutantes a braços regenerados, ou humanos escravizados por uma árvore, diria que tudo é possível.

Nate abanou a cabeça.

— O professor pode ter razão — disse Anna. — Não consigo imaginar como é que esta árvore produz priões compatíveis com o ADN de tantas espécies. Isso por si só é um milagre. Como adquiriu essa competência? Onde foi buscar sequer o material genético para conseguir uma coisa dessas?

Kouwe ergueu o braço e fez um gesto largo.

— Esta espécie remonta à era do Paleozoico, quando existiam apenas plantas. Os antepassados dela assistiram ao nascimento dos primeiros animais, e em vez de competirem com eles, incorporaram-nos no seu ciclo de vida, à semelhança do que acontece ainda hoje com a árvore de formigas.

O professor continuou a debitar teorias, mas Nate deu por si a pensar na última pergunta de Anna. Onde é que a árvore foi buscar o material genético para adquirir essa capacidade? Era uma boa pergunta, e colara-se à mente de Nate como uma comichão que precisava de ser coçada. Como é que a Yagga aprendera a produzir uma variedade tão grande de priões específicos?

Regressou às alucinações, à linha de animais e humanos a fundir-se com a árvore. Será apenas simbólico?

Desviou os olhos para Dakii, ainda ajoelhado junto à cama do xamã. Talvez fosse um salto intuitivo, um efeito residual da droga, mas começou a ter uma ideia da resposta que procurava.

Ali ne rah. O sangue da Yagga. Da raiz da árvore.

Estreitou os olhos cravados na figura do índio. Lembrou-se do momento em que o índio lhe contou o que acontecera ao pai, o tom satisfeito nas suas palavras.

O corpo dele foi alimentar as raízes.

Nate deu consigo a caminhar ao encontro do índio.

Kouwe interrompeu o discurso.

— Nate?

— Há uma peça do puzzle que nos falta. — Nate acenou com a cabeça na direção de Dakii. — E sei quem pode ajudar-nos.

Dakii ergueu o rosto ao vê-lo aproximar-se. Tinha a cara encharcada em lágrimas. A morte do líder atingira-o profundamente.

Pôs-se de pé e baixou a cabeça.

— Wishwa — disse, reconhecendo o novo estatuto de Nate.

— Lamento a tua perda — retorquiu Nate —, mas temos de falar.

Kouwe juntou-se aos dois para ajudar na tradução, mas Nate começava a fazer-se entender com a mistura de inglês e ianomâmi.

Dakii enxugou os olhos e apontou para a cama.

— Nome dele Dakoo. — Pousou a mão no peito do xamã. — Ele meu pai.

Nate mordeu o lábio. Devia ter calculado que os dois eram pai e filho. Conseguia agora ver as parecenças físicas entre eles. Estava explicado porque é que um batedor da tribo sabia falar inglês. Nate pousou-lhe a mão no ombro. Conhecia aquela dor.

— Lamento muito — repetiu, desta vez com mais empatia.

Dakii anuiu.

— Obrigado.

— O teu pai era um grande homem. Sentiremos a sua falta, mas agora enfrentamos um grande perigo. Preciso da tua ajuda.

Dakii baixou a cabeça.

— Wishwa manda... eu faço.

— Preciso que me leves à raiz da árvore... onde ela se alimenta.

Dakii ergueu o rosto. Aquilo apanhou-o de surpresa. A expressão no rosto era de medo e preocupação.

— Vai com calma — murmurou Kouwe. — Estás a pisar terreno delicado.

Nate ignorou o aviso do professor e tocou no peito.

— Eu sou o novo wishwa. E quero ver a raiz.

O índio anuiu.

— Eu mostro. — Lançou um último olhar à figura do pai e encaminhou-se para a saída.

Enquanto desciam a passagem, Anna e Kouwe trocavam impressões em surdina atrás de Nate, deixando-o a sós com os seus pensamentos. Nate lembrou-se outra vez da semelhança entre o símbolo dos Ban-ali e aquela passagem em espiral no interior da Yagga. Mas será que representava mais do que isso? Poderia também simbolizar a forma molecular do prião mutante? Haveria realmente algum tipo de comunicação entre planta e homem? Alguma consciência partilhada? Depois do que experienciara sob o efeito da droga, não sabia se podia ignorar essa possibilidade. Talvez o símbolo representasse ambas as coisas. A verdadeira essência da Yagga.

— Vem aí alguém — disse Dakii, abrandando.

Nate também ouviu passos. Alguém corria ao encontro deles.

Uma figura familiar surgiu ao redor da esquina.

— Soldado Carrera — disse Kouwe.

A ranger anuiu, quase sem fôlego do esforço de correr túnel acima. Nate reparou que ela recuperara a arma.

— O sargento mandou-me vir ter convosco — explicou. — Quer saber se descobriram outra saída do vale. Ele não consegue desarmar as bombas.

Nate virou-se para Dakii.

— Precisamos de saber se existe uma saída secreta do vale. Conheces alguma?

Esta pergunta obrigou a muita troca de gestos e à ajuda de Kouwe. Enquanto o professor traduzia, Carrera franziu o sobrolho e olhou para Nate.

— Ainda não o interrogaram? — sussurrou. — O que estiveram a fazer este tempo todo?

— A tomar drogas — respondeu Nate, concentrado na conversa com o índio.

Dakii percebeu finalmente o sentido da pergunta.

— Ir embora? Porquê? — Apontou para os pés. — Ficar aqui.

— Não podemos — respondeu Nate, exasperado.

— Ele não percebe o que as bombas podem fazer — disse Anna. — Não sabe que o vale vai ser arrasado. É um conceito que ultrapassa a compreensão dele.

— Então, temos de fazer com que entenda — retorquiu Nate. — Virou-se para Carrera. — Entretanto, preciso que chame aqui o sargento e que os dois recolham o máximo de sementes da árvore.

— Sementes?

— Depois explico. Faça apenas o que disse... peço-lhe.

A ranger anuiu e virou costas. Olhou por cima do ombro e fitou-os.

— Mas lembrem-se... o tempo está a contar.

Nate olhou para o índio. Como lhe posso explicar que o vale irá ser completamente destruído? Suspirou. Não seria fácil.

— Vamos continuar — disse.

Enquanto desciam, Nate e Kouwe foram tentando explicar a Dakii o perigo que enfrentavam. À medida que ia compreendendo, a expressão confusa do índio converteu-se em horror. As pernas começaram a fraquejar, como se o conhecimento do que iria acontecer lhe pesasse fisicamente nos ombros.

Encontraram-se finalmente na entrada cavernosa na base do tronco. Para lá das paredes decoradas com as impressões de mãos azuis, a luz na clareira ganhara um tom dourado, indicando que o Sol começara a pôr-se. Estavam a ficar sem tempo.

— Existe outra saída do vale? — perguntou outra vez Nate.

Dakii apontou para onde a passagem terminava e dava lugar à parede decorada com as impressões.

— Raízes. Vamos pelas raízes.

— Sim, quero ver as raízes, mas também quero saber se existe outra saída do vale.

Dakii ficou a olhar para ele.

— Raízes — repetiu.

Nate percebeu finalmente. O índio estava a dizer que havia uma saída através das raízes. As duas missões tinham-se tornado uma só.

— Mostra-nos.

Dakii aproximou-se da parede, olhou para as impressões e colocou a mão sobre uma delas. Fez força com todo o peso do corpo e a parede inteira girou sobre um eixo central, abrindo uma nova passagem que descia em espiral pelas profundezas da terra.

A entrada para as raízes da árvore.

Nate olhou para a parte superior da parede. Lembrava-se de ter reparado que os vasos traqueanos naquela secção não coincidiam com os da passagem superior. Percebia agora porquê, dado que se tratava de uma porta secreta. A resposta estivera ali o tempo inteiro. Até as impressões das mãos azuis eram iguais à que guardava a hélice alfa dupla no símbolo dos Ban-ali, representando a raiz da Yagga.

Com a passagem revelada, o caminho estava agora aberto.

Anna sacou de uma lanterna. Nate apalpou os bolsos à procura da sua e percebeu que devia tê-la perdido. Anna entregou-lhe a dela e fez-lhe sinal para ir à frente.

Nate aproximou-se da abertura. O ar no interior da passagem, mais espesso e húmido, estava carregado do mesmo odor adocicado. Nate respirou fundo e avançou. Os outros seguiram atrás dele.


18

A ÚLTIMA HORA

19h00

Selva amazónica

Louis consultou o relógio enquanto a equipa fazia uma pausa para descanso. Faltava uma hora para a explosão que incendiaria o vale. Olhou para o pântano adiante. O pôr do sol tingira as águas de tons dourados.

Avançavam rapidamente e o plano de fuga decorria sem incidentes. Atravessariam o pântano até onde a floresta era mais densa e os rios mais abundantes. Ser-lhes-ia fácil escapar a coberto da vegetação cerrada. Não tinha dúvidas acerca disso.

Suspirou, satisfeito, embora se sentisse um nadinha desapontado. Nada havia a fazer ali. Sentia sempre o mesmo após uma missão bem-sucedida. Uma espécie de desalento pós-coito, calculava. Regressaria à Guiana Francesa bastante mais rico, mas o dinheiro não podia comprar a emoção que o acompanhara nos dias anteriores.

Comme si, comme ça, murmurou. Haverá sempre novas missões.

Uma pequena agitação interrompeu-lhe os pensamentos.

Virou-se e viu Kelly ser obrigada a ajoelhar-se por dois mercenários. Um terceiro homem rebolava no chão a poucos metros, agarrado às virilhas.

Louis foi ao encontro deles, mas Máscara já lá estava.

O tenente ajudou o terceiro mercenário a levantar-se.

— O que aconteceu? — perguntou Louis.

Máscara apontou com o polegar na direção do outro.

— O Pedro tentou apalpá-la e ela deu-lhe uma joelhada entre as pernas.

Louis sorriu, impressionado. A mão direita pousou no cabo do chicote à cintura.

Aproximou-se de Kelly, ainda de joelhos. Um dos homens segurava-a pelos cabelos. Ela vociferava insultos em resposta aos comentários jocosos.

— Levantem-na! — ordenou Louis.

Os homens obedeceram imediatamente.

Louis tirou o chapéu.

— Peço desculpa pelo comportamento desprezível dos meus homens. Não tornará a acontecer.

Os outros juntaram-se a assistir à cena.

— O próximo que tentar o mesmo fica sem os respetivos! — vociferou Kelly.

— Não duvido. — Louis mandou os homens afastar-se. — Mas cabe-me a mim manter a disciplina. — Bateu com os dedos no cabo do chicote. Momentos antes, usara-o em Kelly como incentivo. Agora, estava na altura de outra lição.

Num gesto repentino, fez estalar novamente o chicote. Pedro gritou e cobriu o olho esquerdo com a mão. Um fio de sangue escorreu por entre os dedos.

Louis olhou em redor.

— Ninguém toca nos prisioneiros! Fiz-me entender?!

Os homens responderam com acenos de cabeça e murmúrios de concordância.

Louis guardou o chicote.

— Alguém trate do olho dele.

Virou-se e deparou com Tshui junto de Kelly. A amante passou os dedos no rosto dela, confortando-a. Há muito tempo que não via Tshui demonstrar interesse por outra mulher. A fogosidade da americana devia atraí-la.

Tshui foi ao encontro dele e enroscou-se debaixo do seu braço. Os dois afastaram-se uns passos.

— Gostas dela, não é, mon cher?

A amante ergueu a mão. Entre os dedos trazia uma madeixa dos cabelos arruivados de Kelly.

Ah, não é apenas a fogosidade da americana que lhe interessa, pensou Louis, mas também os cabelos ruivos. Não havia dúvida de que a cabeça de Kelly daria um belo exemplar para a coleção de tsantsas.

Louis apertou-lhe a mão.

— Em breve, minha querida. Em breve.

Tshui esfregou a cabeça no peito dele.

Dos seus lábios, Louis ouviu um ronronar felino de satisfação.

19h05

Nate iluminou o caminho com a lanterna. A passagem inferior era em tudo semelhante à superior, exceto pelo grão na textura das paredes, um pouco mais grosseiro. O odor da árvore também se tornara mais denso e fétido.

Com Dakii a seu lado, e Anna e Kouwe atrás, Nate continuou a descer o túnel que começou a estreitar rapidamente, sendo as curvas cada vez mais apertadas.

— Devemos estar a descer a raiz primária — murmurou Nate.

— A caminho das profundezas da terra — disse Kouwe.

Nate anuiu. Após mais umas curvas, o túnel no interior da raiz terminou e deu lugar a outro que se prolongava pela terra. O chão de madeira era agora de pedra e argila. Este novo túnel descia de forma acentuada. Um braço de raiz prolongava-se pelo teto a perder de vista.

Dakii apontou em frente.

Nate hesitou. Estranhos fungos cresciam nas paredes, com uma espécie de brilho próprio. O cheiro no ar era agora avassalador, carregado com um odor fecundo. Dakii tomou a dianteira e prosseguiu. O espaço disponível apenas permitia que caminhassem uns atrás dos outros.

Nate olhou para Kouwe, que se limitou a encolher os ombros. Sem mais delongas, prosseguiram.

Adiante, o braço de raiz dividiu-se, estendendo-se por outros túneis. Os pelos da raiz que pendiam do teto, semelhantes a cortinas, vibravam suavemente, como que empurrados por uma brisa, embora desta nem sinal.

A dada altura, a cabeça de Nate bateu no teto porque entretanto a altura do túnel diminuíra. Os pelos da raiz agarraram-se aos seus cabelos, puxando-os. Nate baixou-se, sobressaltado.

Apontou a lanterna para o teto.

— O que foi? — perguntou Kouwe.

— A raiz agarrou o meu cabelo.

O professor ergueu o braço. Os pequenos filamentos enrolaram-se à volta dos dedos. Puxou a mão, com um ar enojado.

Nate já tinha visto plantas reagirem a estímulos exteriores: folhas a curvarem-se ao toque, flores a libertarem esporos ou a fecharem-se quando perturbadas. Mas aquilo parecia-lhe bastante mais sinistro.

Tornou a desviar a lanterna para o túnel. Dakii encontrava-se já uns bons metros à frente. Apressou-se ao encontro dele com os outros. As raízes no teto eram agora mais caóticas, espraiando-se em todas as direções. As paredes das inúmeras passagens estavam repletas de buracos e estas encontravam-se entupidas por emaranhados de raízes e pelos. Os buracos lembravam bolbos, as reservas nutricionais de diversas plantas.

Dakii deteve-se diante de uma dessas alcovas. Nate iluminou o espaço com a lanterna. Havia algo lá dentro. Inclinou-se para ver melhor. Alguns pelos no emaranhado de raízes estenderam-se como antenas ao seu encontro.

Nate recuou.

No meio daquele bolo de raízes, preso e enrolado como uma mosca numa teia de aranha, encontrava-se um enorme morcego-da-fruta.

Kouwe aproximou-se para ver melhor. Franziu a testa.

— A raiz está a alimentar-se do morcego?

— Não creio — disse Anna nas costas dos dois. — Venham ver isto.

Nate e Kouwe viraram-se. A antropóloga ajoelhou-se diante de uma alcova maior, mas em tudo idêntica à anterior. Apontou lá para dentro.

Nate iluminou o interior e deparou-se com o que parecia ser um enorme felino.

— Um puma... — murmurou Kouwe.

— Reparem — disse Anna.

Nate e Kouwe observaram o puma com mais atenção, sem saberem bem o que esperar. Subitamente, o animal mexeu-se. Estava a respirar! O peito subia e descia, mas o movimento não parecia natural. A mãe de Nate estivera ligada a uma máquina de suporte respiratório. Aquilo era igual.

Anna olhou por cima do ombro.

— Está vivo.

— Como? — disse Nate. — Não consigo perceber...

Anna estendeu a mão.

— Empresta-me a lanterna?

Nate fez-lhe a vontade. Anna levantou-se e examinou rapidamente algumas das alcovas nas passagens vizinhas. A variedade de animais que encontrou impressionou-a: um ocelote, um tucano, um sagui, um papa-formigas, cobras, lagartos e, talvez mais estranho que os outros, uma truta. Todos pareciam respirar ou exibiam sinais de vida, incluindo a truta, que abanava as guelras.

— Existe apenas um de cada, e estão todos vivos — disse, estupefacta. — É como se estivessem em coma ou noutro estado qualquer de animação suspensa.

— O que quer dizer com isso?

Anna fitou-os.

— Estamos num armazém biológico. Uma biblioteca de código genético. Aposto que é a fonte de produção do prião.

Nate rodou sobre si mesmo lentamente. As implicações eram demasiadas para sequer as contemplar. A árvore guardava aqueles espécimes no subsolo, para que pudesse aprender e produzir as proteínas capazes de alterar e de manter cada espécie dependente de si. Aquilo era um laboratório vivo.

Kouwe agarrou o ombro de Nate.

— O teu pai...

Nate lançou-lhe um olhar confuso.

— O que tem o meu...

Foi então que a realidade o atingiu com a força de uma marreta. Deixou cair o queixo. O pai fora entregue às raízes, mas não como fertilizante, percebeu, com a cabeça a andar à roda. Foi aqui posto para fazer parte desta coleção de espécimes.

— Com a pele branca, os maneirismos e os conhecimentos estranhos, o teu pai era único aos olhos dos Ban-ali — murmurou Kouwe. — Eles não iriam desperdiçar a sua herança genética.

Nate virou-se para Dakii. Quase não conseguia falar.

— O... o meu pai... sabes onde está?

Dakii anuiu e ergueu os braços.

— Com as raízes.

— Sim, mas onde? — Nate apontou para a alcova mais próxima, que continha uma preguiça. — Qual delas?

Dakii franziu o sobrolho e olhou em redor.

Nate susteve a respiração. Devia haver centenas de passagens, um sem-número de alcovas. Não tinha tempo para verificar todas, mas como podia sair dali sabendo que o pai se encontrava algures?

Dakii pôs-se em movimento e fez sinal para o seguirem.

Nate apressou-se atrás dele com Kouwe e Anna, embrenhando-se naquele labirinto subterrâneo. Custava-lhe cada vez mais respirar, não por causa do odor enjoativo, mas pela ansiedade crescente. Durante toda a missão, não existira um único momento em que tivesse alimentado a esperança de encontrar o pai vivo. Mas agora... agora sentia-se ser rasgado entre a esperança e o desespero, quase à beira de um ataque de pânico. O que irei encontrar?

Dakii deteve-se diante de duas passagens. Optou por uma. Deu dois passos, abanou a cabeça e voltou para trás, para depois seguir pela outra.

Nate sentiu vontade de gritar.

Dakii continuou por essa passagem, a murmurar entre dentes. Finalmente, deteve-se junto de uma alcova maior e apontou.

— Pai.

Nate tirou a lanterna das mãos de Anna. Caiu de joelhos e iluminou o interior, indiferente aos filamentos de raízes que se lhe enrolaram em torno do pulso.

Havia uma figura deitada no meio do emaranhado, um homem de pele branca, encolhido em posição fetal. O rosto estava coberto por uma barba hirsuta, os cabelos desgrenhados entrelaçados nas raízes, os olhos fechados. Nate focou-se nas feições por detrás da barba. Não conseguia ter a certeza se aquele homem seria o pai.

O homem inspirou e expirou mecanicamente, o sopro da respiração abanava os filamentos sobre os lábios. Estava vivo!

Nate virou-se para os companheiros.

— Temos de o tirar dali!

— É ele? — perguntou Anna.

— Não sei... não tenho a certeza. — Nate apontou para o punhal de osso no cinto de Kouwe. O professor entregou-lho.

Nate levantou-se e começou a cortar as raízes.

Dakii gritou e tentou impedi-lo, mas Kouwe agarrou o índio.

— Não, Dakii! Deixa-o em paz.

Nate continuou a abrir caminho pelo emaranhado de raízes, que era quase como a casca de uma noz. Por trás de uma primeira camada densa e robusta, havia outra mais fina, composta exclusivamente de filamentos.

Nate reparou que alguns filamentos penetravam no homem, como se a carne fosse terra. Devia ser assim que a árvore mantinha os espécimes vivos, entregando-lhes nutrientes que de alguma forma asseguravam o funcionamento dos órgãos vitais.

Nate hesitou. O que aconteceria se rompesse aquela ligação com a árvore? Se aquilo era de facto uma forma de animação suspensa, a sua interrupção abrupta podia levar a uma falha generalizada dos órgãos?

Abanando a cabeça, começou a cortar os filamentos. Estava disposto a correr o risco. Se não fizesse nada, o homem acabaria por ficar ali e morreria com a árvore quando as bombas explodissem.

Continuou a trabalhar até o corpo se encontrar totalmente liberto. Entregou a faca a Kouwe e começou a puxar o corpo para fora da alcova. Deu um último puxão e caiu de costas no chão da passagem, arrastando o homem aprisionado consigo.

A figura nua arquejou e começou a tossir. Alguns filamentos, ainda agarrados à pele como sanguessugas, caíram no chão. Corria sangue das feridas deixadas por filamentos mais grossos. Subitamente, o homem arqueou as costas e começou a ter convulsões violentas.

Nate amparou-o nos braços, sem saber o que fazer. Kouwe ajudou-o a evitar que o homem se magoasse a ele próprio.

As convulsões duraram um minuto, e depois pararam tão depressa como começaram. O homem soltou uma enorme golfada de ar e caiu inerte.

Nate verificou-lhe rapidamente o pulso. Estará morto? Não... o peito ainda se movia. Os olhos pestanejaram meia dúzia de vezes e finalmente fixaram-se em Nate.

Nate reconhecia aqueles olhos. Eram iguais aos seus.

Uma voz áspera fez-se ouvir.

— Nathan?

Nate caiu sobre o homem, abraçando-o.

— Pai!

— Estou... estou a sonhar? — perguntou o pai.

Nate estava demasiado emocionado para responder. Endireitou-se e ajudou o pai a sentar-se. Todo ele era pele e osso. A árvore mantivera-o vivo, mas por pouco.

— Carl — disse Kouwe. — Como te sentes?

O pai de Nate olhou para o professor e franziu a testa. Demorou algum tempo a reconhecê-lo.

— Kouwe? Como? Onde estou?

— É uma longa história, meu amigo. — Kouwe ajudou Nate a levantar o pai, mas ele estava demasiado fraco para se manter de pé sozinho e tiveram de o amparar entre os dois. — Primeiro que tudo, temos de sair deste maldito lugar.

Nate fitou o pai com o rosto encharcado em lágrimas.

— Pai...

— Eu sei, filho... — respondeu Carl, tossindo. — Não houve um dia em que não pensasse em ti.

Nate anuiu. Não era altura para conversas, mas não ia deixar passar mais um segundo sem dizer o que se arrependia de não ter dito quatro anos antes, no dia em que o pai partira na expedição.

— Adoro-te, pai.

O braço à volta do ombro dele apertou-o com a pouca força que tinha, um pequeno gesto de afeto. Amor. Família.

— É melhor irmos buscar os outros — disse Anna.

— Nate, porque não ficas aqui com o teu pai? — sugeriu Kouwe. — Deixa-o recuperar. Apanhamos-te no caminho de volta.

— Eu consigo andar — disse Carl. Desviou o olhar para a alcova. — Além disso, já descansei o suficiente.

Kouwe anuiu.

Resolvida a questão, começaram a fazer o caminho de volta para a superfície. Kouwe resumiu a situação em poucas palavras. Carl apenas ouviu, apoiando-se cada vez mais no filho e no amigo enquanto subiam. A única vez que se pronunciou foi quando Kouwe mencionou o nome de Louis Favre e o que o francês tinha feito.

— Maldito filho da mãe!

Nate sorriu. Era bom ver o pai reagir com a garra de sempre.

Ao chegarem à superfície, perceberam que os rangers tinham estado ocupados. Além de reunirem os índios sobreviventes, cada um carregava uma mochila cheia de sementes. Todos estavam armados.

Nate e o pai aguardaram na entrada enquanto Kouwe explicava ao sargento o que haviam encontrado lá em baixo, incluindo o novo elemento da equipa.

— O Dakii diz que existe uma saída pelo sistema de raízes.

— Nesse caso, é melhor despacharmo-nos — disse Kostos. — Temos menos de trinta minutos, e queremos estar bem longe quando as bombas explodirem.

Carrera juntou-se ao grupo, de arma ao ombro.

— Estamos prontos. Temos dúzias de sementes e quatro cantis cheios de seiva.

Kostos anuiu.

— Muito bem. Vamos lá sair daqui!

19h32

À medida que percorriam o labirinto de raízes, volta e meia Kouwe parava com Dakii e os dois olhavam para trás, para a fila de índios e americanos. O sargento Kostos ajudava Nate a carregar o pai. Mal houvesse oportunidade, Kouwe construiria uma padiola para o transportarem, mas naquele momento todos os minutos contavam.

Embora o sargento acreditasse que o sistema de túneis podia protegê-los do pior da explosão, preferia que não estivessem ali em baixo quando chegasse o momento. «O solo está enfraquecido por todas estas raízes», dissera. «Pode acontecer um desabamento e ficamos aqui encurralados. Temos de encontrar a saída antes de as bombas detonarem.»

Como tal, avançavam o mais depressa que podiam. Não só para se salvarem, mas por tudo o que estava em jogo. Carregavam nas mochilas o destino de milhares de pessoas — quem sabe de milhões — na forma das sementes da Yagga, a única cura para epidemia.

Não podiam ficar ali presos.

Kouwe verificou novamente o andamento dos companheiros. As passagens sombrias, os fungos luminescentes, as pavorosas alcovas com os espécimes... tudo aquilo o enervava. Naquela parte do sistema, mais profunda, as paredes e os tetos cobriam-se integralmente de raízes, que se cruzavam, dividiam e enrolavam em todas as direções. Os filamentos oscilavam e estendiam-se na direção de quem passava, fazendo com que as paredes parecessem um organismo vivo que os procurava constantemente.

Atrás de Kouwe, os companheiros mostravam-se igualmente apreensivos e cautelosos, até os índios. A fila de homens e mulheres desapareceu de vista após uma curva. Mais atrás, Carrera protegia a traseira da formação, seguida por Tor-tor e pela gigantesca pantera. Fora necessária alguma insistência para que os dois animais entrassem no túnel, mas Nate não desistira: «Não deixo o Tor-tor morrer aqui, é o mínimo que posso fazer em memória do Manny.»

Assim que viu o jaguar entrar no túnel, a pantera limitou-se a segui-lo.

Em todo o caso, Carrera mantinha a arma a postos, não fosse a criatura lembrar-se de que lhe apetecia um petisco durante a travessia.

Dakii fez um compasso de espera numa das intersecções. O sargento resmungou entre dentes, mas não se atreveu a pressionar o índio. Seria fácil perderem-se ali dentro. Estavam inteiramente dependentes da memória visual do batedor.

Dakii decidiu-se e prosseguiu. A passagem escolhida descia abruptamente. Kostos fitou o teto baixo. Deviam estar a uns cem metros no fundo da terra, e continuavam a descer. Estranhamente, em vez de mais carregado e húmido, o ar tornou-se mais leve e fresco.

Decorridos vários minutos, o túnel fcou nivelado, seguindo-se uma curva apertada que fez surgir uma enorme galeria. O túnel desembocava a meio da parede da galeria. A partir daí, tinham de prosseguir por um parapeito a toda a extensão da parede curva do espaço cavernoso.

Dakii saiu do túnel para o parapeito. Kouwe seguiu atrás, estupefacto com a magnitude daquele espaço. Tinha pelo menos oitocentos metros de diâmetro. No centro, uma raiz enorme, tão grossa como uma sequoia-gigante, descia do teto e continuava pelo chão dentro como uma colossal coluna de madeira.

— É outra vez a raiz primária da Yagga — disse Nate, nas costas do professor. — Devemos tê-la contornado.

Milhares de ramos espraiavam-se da raiz primária em todas as direções, para outras passagens.

— Deve haver milhares de quilómetros de túneis — disse Kouwe, estudando a colossal raiz. A árvore gigante lá em cima devia ser uma ínfima fração da sua massa total. O que quer que fosse aquela entidade, o que se encontrava à superfície era somente um pormenor. A raiz era o corpo principal daquele organismo. — Consegues imaginar a quantidade de espécies que devem estar aqui em baixo, suspensas no tempo?

— Nunca poderia imaginar — respondeu o pai de Nate, atrás do filho. — Há centenas de anos que esta árvore deve colecionar espécimes.

— Ou há milhares — disse Kouwe. — Talvez desde o tempo em que estas terras se formaram.

— Desde o Paleozoico — murmurou Nate. — Se for o caso, quem sabe o que poderá estar guardado neste vasto armazém biológico?

— E o que poderá estar ainda vivo... — acrescentou Anna.

Kouwe contraiu o rosto. Era um pensamento que tinha tanto de assombroso como de assustador. Fez sinal ao índio para prosseguir. A magnitude daquela visão era imensa para ficarem ali a contemplá-la, e o tempo continuava a passar, tanto para eles como para o mundo em geral.

Dakii conduziu-os ao longo do parapeito até outra passagem, de volta ao labirinto de túneis. A enorme câmara ficara para trás, mas Kouwe ainda se interrogava acerca do mistério ali presente. Abrandou o passo e deu consigo a caminhar a par de Nate e Carl. O sargento Kostos encontrava-se no outro lado.

— Quando estudei antropologia — disse o professor —, deparei-me com vários mitos acerca de árvores como esta... guardiãs maternais, cuidadoras, recetáculos de toda a sabedoria. Pergunto-me se a humanidade não se terá já cruzado com a Yagga.

— Como assim? — perguntou Nate.

— De certeza que houve um tempo em que esta árvore não era a única da sua espécie. Terão existido outras no passado. Talvez os mitos sejam relatos de verdadeiros encontros com esta espécie. — Nate lançou-lhe um olhar descrente, mas Kouwe prosseguiu. — Veja-se o exemplo da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal no jardim do Éden, uma árvore cujo fruto encerra todo o conhecimento do mundo, mas que amaldiçoa aqueles que o consomem. Não é diferente do que se passa aqui. Quando vi o Carl entre as raízes, lembrei-me de outra lenda bíblica. No século treze, um monge que procurava Deus através de um jejum prolongado relatou ter visto o filho de Adão, Seth, a regressar ao jardim do Éden. O jovem deparou então com a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que se tornara branca, e encontrou Caim nas suas raízes, algumas delas penetrando a carne do irmão.

Nate franziu o sobrolho.

— Parece-me uma coincidência extraordinária — concluiu Kouwe.

Nate caminhou uns metros em silêncio, nitidamente a digerir o que acabara de ouvir.

— Talvez haja fundamento nessa teoria — disse por fim. — A passagem no tronco da Yagga não foi feita pelo homem. Formou-se à medida que a árvore crescia. Qual a razão da sua existência, a não ser pelo facto de os seus antepassados se terem já cruzado no caminho com o homem? Não vejo outro motivo para ter desenvolvido semelhante característica.

— Exato. Tal como a árvore de formigas — acrescentou Kouwe. — Também ela se adaptou aos seus soldados de seis patas.

O pai de Nate interveio:

— E a evolução dos Ban-ali, o aprimoramento genético a que foram sujeitos? Terão sido os primeiros humanos a beneficiar destes melhoramentos? Poderá esta árvore ter desempenhado um papel fundamental na evolução da humanidade? É por isso que recordamos e contamos estes mitos?

Kouwe franziu a testa. Ele próprio não levara a teoria tão longe. Olhou por cima do ombro, para a gigantesca pantera que caminhava atrás dos outros. Se a Yagga fora capaz de aumentar a inteligência daquele animal, teria feito o mesmo com os antepassados do homem? Poderiam os humanos dever a sua inteligência a uma árvore desta espécie? Era um pensamento arrepiante, que deixou o grupo em silêncio.

Na sua mente, Kouwe reconstruiu a possível história daquele vale. A Yagga crescera ali, onde colecionara espécimes ao longo de milhares de anos, atraindo-os com o seu odor e oferecendo-lhes abrigo, para depois os capturar e os armazenar nas suas raízes. A dada altura, o homem fez a sua aparição no vale — um clã dos Ianomâmis, que encontrou a árvore e descobriu os seus túneis e os poderes medicinais da seiva. À semelhança das outras espécies, tornaram-se dependentes da árvore e, lentamente, transformaram-se nos Ban-ali, os escravos humanos da Yagga. A partir daí, passaram eles próprios a trazer novas espécies para alimentar a árvore, para assim expandirem o armazém biológico da Yagga.

E o que aconteceria se aquilo continuasse? O mundo assistiria ao nascimento de uma nova espécie humana, tal como Carl receara após o filho nado-morto de Gerald Clark? Ou aconteceria algo ainda pior, como uma hibridização do homem, à semelhança das tais piranhas e dos gafanhotos? Kouwe sentiu-se subitamente aliviado com a ideia de que o vale seria em breve destruído.

Mais à frente, Dakii chamou-os e apontou para um túnel lateral. Havia luz no final dessa passagem. Era acompanhada por um rumorejar profundo.

— A saída! — exclamou o professor.

19h49

Nate apressou-se pelo túnel com o pai. Ao lado, o sargento Kostos contava os minutos para a detonação. O rumorejar tornou-se mais forte à medida que se aproximavam da luz. Dobraram uma última esquina e a saída do túnel surgiu por fim à vista de todos, bem como a fonte do ruído.

Uma cascata caía sobre a boca do túnel. O poderoso lençol de água brilhava sob a luz do luar e das estrelas.

— Estaremos algures na parede rochosa que desce para o vale inferior — disse Kouwe. — Esta cascata deve ser a que cai diretamente no desfiladeiro.

Continuaram a seguir o índio até à boca do túnel. Dakii apontou para baixo. Degraus. No espaço entre a cascata e parede havia uma escadaria talhada na rocha. Ziguezagueava até ao chão do vale inferior, íngreme, estreita... e molhada.

— Comecem a descer! — berrou o sargento. — Mas com cuidado! E quando eu avisar, baixem-se e agarrem-se com toda a força.

Dakii aguardou com o sargento para auxiliar os outros índios.

Kouwe ajudou Nate a amparar o pai. Começaram a descer os degraus, divididos entre a necessidade de avançarem depressa e o cuidado para não caírem. Os outros seguiram atrás. Com exceção dos dois rangers, não tardou para que todo o grupo formasse uma longa fila indiana.

Nate olhou para cima e viu Kostos fazer sinal a Carrera. Ela começou, seguida pelo sargento.

Os dois jaguares surgiram depois. Aliviados por se encontrarem fora dos túneis, avançaram confiantes pelos degraus. Nate invejou-lhes as garras. Dar-lhe-iam jeito na rocha escorregadia.

— Esperem um minuto — disse Kouwe, atrapalhado com o peso de Carl.

Aceleraram o passo. Ainda se encontravam a cerca de quatro pisos do chão. Uma queda daquela altura seria a morte certa.

Foi então que um grito forte cortou o troar da cascata:

— Baixem-se! Baixem-se!

Nate deitou-se com o pai nos degraus. Olhou para cima e viu os companheiros fazerem o mesmo. Baixou a cabeça e rezou.

A explosão, quando chegou, foi como se o inferno irrompesse das profundezas da terra. O estrondo foi mínimo — de uma potência semelhante à parte final de um fogo de artifício —, mas a consequência imediata revelou-se tudo menos isso.

Uma parede de chamas irrompeu do cimo do penhasco e projetou-se a quase um quilómetro de distância, subindo três vezes isso no céu noturno. Correntes ascendentes de ar, provocadas pelo sobreaquecimento repentino, lançaram redemoinhos de fogo contra a falésia. Se não fosse pela proteção da cascata, o grupo teria sido incinerado nos degraus. O poderoso lençol de água, porém, era uma faca de dois gumes. A torrente contínua oscilou com a onda de choque, projetando litros e litros de água sobre os degraus. Felizmente, ninguém caiu.

Não tardou para que os destroços começassem a ser arrastados pela cascata, mas a força da corrente manteve os pedaços maiores de troncos e ramos longe da parede. Ainda assim, era aterrador ver árvores inteiras caírem a arder pela cascata.

— Continuem! — gritou Kostos, mal a fornalha deu sinais de estar a enfraquecer. — Mas cuidado com os destroços!

Nate levantou-se, atordoado. Todos lhe seguiram o exemplo.

Conseguimos!

Enquanto os outros começavam a descer, Nate estendeu a mão para o pai.

— Vamos. Está na hora de sairmos daqui.

Ainda segurava a mão do pai quando sentiu uma vibração na rocha. Soube imediatamente que se passava algo de errado.

Oh, não...

Atirou-se para cima do pai, gritando ao mesmo tempo:

— Baixem-se! Baixem-se!

A segunda explosão foi ensurdecedora. A ponto de Nate gritar de dor. Detonou com tamanha força que ele teve a certeza de que o penhasco não se aguentaria de pé. A boca do túnel acima expeliu um jato de fogo contra a cascata, convertendo água em vapor. Nate olhou para cima e viu o túnel expelir um segundo jato, depois outro. Chamas mais pequenas irromperam de centenas de fendas ao longo da parede. Pareciam línguas azuladas a lamber a escuridão. Enquanto tudo isso acontecia, a rocha continuava a tremer.

Nate baixou a cabeça e manteve o pai seguro debaixo do seu peso.

Calhaus e terra foram projetados pelo ar. Árvores inteiras, que voaram como mísseis e caíram com estrondo no vale inferior.

Depois, tal como na primeira explosão, também a força destrutiva desta se desvaneceu. Ninguém se mexeu enquanto pedras mais pequenas não parassem de cair pelo precipício. Uma vez mais, a cascata protegera-os dos destroços, desviando a maior parte ou reduzindo a velocidade mortal dos objetos em queda.

Decorridos alguns minutos, Nate tornou a levantar a cabeça para avaliar os estragos. Encontrou Kouwe uns degraus acima, com uma expressão mortificada. O professor fitou-o.

— A Anna... quando gritaste... fui demasiado lento... não consegui agarrá-la... — Kouwe desviou o olhar para o fundo do precipício. — Ela caiu...

Nate fechou os olhos.

— Meu Deus...

Por toda a escadaria se ouviram gemidos de choque e consternação. Anna não tinha sido a única a cair. Nate endireitou-se. O pai tossiu e ergueu a cabeça. Estava pálido como um fantasma.

Em choque, doridos, feridos, foram necessários mais uns minutos para começarem novamente a descer a escadaria.

Reuniram-se na base da parede e contaram as cabeças. Além de Anna, tinham morrido três índios.

— O que foi aquela segunda explosão? — perguntou Kostos.

Nate visualizou as chamas azuladas. Pediu para ver um dos cantis com a seiva da Yagga. Despejou uma gota e acendeu o isqueiro de Carrera. Ao aproximar a chama, a seiva incendiou-se.

— Tal como o copal — disse. — Também é inflamável. A árvore inteira explodiu como uma bomba. Raízes e tudo, a avaliar pela forma como o chão tremeu.

Houve um novo momento de silêncio.

— E agora? — perguntou Carrera. — O que se segue?

Nate encarregou-se de responder.

— Fazemos aquele maldito pagar! — declarou, determinado. — Pelo Manny, pelo Olin, pela Anna, pelos Ban-ali.

Ninguém precisou de ouvir o nome para saber de quem estava ele a falar.

— Eles têm uma data de armas — disse Kostos. — Nós temos uma Bailey. E são mais do dobro de nós.

— Não importa. Temos um trunfo que supera tudo isso.

— Qual?

— Eles pensam que estamos mortos.


19

RAIDE NOTURNO

23h48

Selva amazónica

Os olhos de Kelly ardiam-lhe de tanto chorar. Com as mãos amarradas atrás das costas, não podia sequer enxugar as lágrimas. Estava sentada debaixo de uma espécie de toldo improvisado com folhas de palma entrelaçadas. O céu cobrira-se de nuvens com o avançar da noite, o que convinha aos seus captores. «Quanto mais escuro, melhor», congratulara-se Favre. Tinham avançado bastante e encontravam-se já bem embrenhados na selva cerrada a sul, a uma distância considerável do pântano.

Mesmo assim, e apesar da escuridão e da distância, o céu a norte brilhava com tons de fogo, como se o Sol estivesse a pôr-se nessa direção. Horas antes, as explosões que iluminaram a noite haviam sido espetaculares, bolas de fogo gigantescas, seguidas de uma chuva de destroços flamejantes.

As explosões tiveram o condão de pulverizar a esperança dentro de Kelly. Os companheiros estavam mortos.

Favre acelerara o ritmo depois disso, na certeza de que os helicópteros do Governo iriam acorrer ao local. Até ao momento, porém, não havia sinais dos aparelhos. Não se ouvia o som distinto dos rotores, e embora Favre mantivesse um olho atento no céu, nada acontecera.

Talvez ninguém tivesse captado o sinal de GPS de Olin. Ou talvez os helicópteros estivessem ainda a caminho.

Em todo o caso, Favre não arriscara. Mantivera uma marcha rápida pela floresta. Nada de lanternas para iluminar o caminho, apenas óculos de visão noturna. Kelly, claro, não recebera um par. Tinha as canelas cheias de nódoas negras e cortes das quedas e de embater contra tudo o que lhe aparecia pela frente. A sua provação divertia os guardas. Impossibilitada de usar as mãos para amparar as quedas, os joelhos pagavam o preço de cada ida ao chão. As pernas doíam-lhe horrores, mas pior eram os mosquitos, que, atraídos pelas feridas abertas, não lhe davam um segundo de descanso. E nem sequer podia enxotá-los.

Por tudo isso, a chuva que caía naquele momento era bem-vinda. Assim como a pausa para descanso — uma hora inteira.

Fitou o brilho do céu a norte.

Esperava que os amigos não tivessem sofrido horrores.

Não muito longe, o bando de mercenários celebrava a vitória. Canecas com bebidas alcoólicas eram passadas de mão em mão. Faziam-se brindes e relatos plenos de bazófia sobre como gastariam o dinheiro. A maioria envolvia prostitutas.

Favre circulava pelo meio do grupo. Embora os deixasse ter aquele momento de júbilo, certificava-se de que não havia exageros. Tinham ainda muito terreno para percorrer até alcançarem o local onde esperavam os barcos, e não queria que ninguém se embebedasse para lá da conta.

Kelly usufruía assim de um momento de relativa privacidade. Frank repousava sob outro toldo improvisado no meio do acampamento. A única companhia era o guarda destacado para a vigiar, o tenente desfigurado de Favre, um homem chamado Máscara. Conversava com um companheiro enquanto partilhavam uma bebida.

Uma figura solitária materializou-se por entre os pingos da chuva. Tshui, a amante indígena de Favre. Caminhava indiferente à chuva, ainda nua, mas pelo menos não trazia a cabeça do cabo DeMartini ao pescoço.

Provavelmente não quer molhar a maldita coisa.

O companheiro de Máscara afastou-se ao vê-la aproximar-se. Ela tinha aquele efeito nos homens, que nitidamente a receavam. O próprio Máscara abandonou o seu posto debaixo do toldo e abrigou-se à sombra de uma palmeira.

A mulher índia ajoelhou-se ao lado de Kelly. Trazia uma mochila na mão. Pousou-a e começou a procurar qualquer coisa no interior. Retirou um pequeno pote e abriu a tampa.

O pote continha uma pasta espessa. Ela retirou uma porção com o dedo e estendeu a mão para Kelly.

Kelly desviou-se instintivamente.

Tshui agarrou-lhe no tornozelo. A mão dela parecia feita de ferro. Espalhou a pasta nos joelhos feridos de Kelly. O ardor passou de imediato. Deixou de se debater e permitiu que ela continuasse.

— Obrigada — disse, embora tivesse a certeza de que o objetivo daquilo seria garantir que continuava em condições de caminhar, e não tanto aliviar-lhe o tormento. Fosse como fosse, soube-lhe bem.

Tshui enfiou de novo a mão na mochila. Desta vez, retirou um rolo de fio de linho. Desenrolou-o no chão molhado. Meticulosamente arrumado dentro de pequenas bolsas no tecido encontrava-se um sortido de utensílios de aço inoxidável e de osso. Tshui escolheu uma faca de lâmina curva, semelhante a uma foice. Era uma de cinco com tamanhos diferentes.

Inclinou-se novamente na direção de Kelly.

Kelly desviou-se uma vez mais, mas Tshui agarrou-a pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. A força dela era de facto surpreendente.

— O que está a fazer?

Tshui não lhe deu resposta e limitou-se a encostar a lâmina curva à sua testa, junto à linha do cabelo. Pousou a faca, escolheu outra e desta vez encostou a lâmina à parte superior da cabeça.

Horrorizada, Kelly percebeu o que ela estava a fazer. Está a medir-me! Tshui escolhia as ferramentas que seriam mais adequadas para lhe arrancar a pele do crânio. A mulher índia prosseguiu as medições com diferentes instrumentos, encostando-os ao nariz, maçãs do rosto, queixo, e depois começou a alinhar os que tinham sido selecionados no chão. A fila ia crescendo: facas compridas, picadores, pedaços de osso que pareciam saca-rolhas.

O som de alguém a aclarar a garganta interrompeu o procedimento. Tshui virou-se para ver quem era e largou Kelly.

Solta, Kelly afastou-se, a espernear, o mais possível daquela bruxa. Os instrumentos de crueldade espalharam-se pelo chão.

No limite do toldo, Favre olhou para as duas.

— Estou a ver que a Tshui veio fazer-lhe companhia, mademoiselle O’Brien. — Deu um passo em frente para sair da chuva. — Tenho estado com o seu irmão, a tentar recolher algumas informações acerca da CIA. Coisas que podem ser úteis para a nossa fuga, mas também para futuras missões. Enfim, um pequeno bónus que os meus empregadores não se importarão que eu obtenha. O problema, claro está, é que não posso tocar num fio de cabelo dele. Os meus empregadores pagam-me bem para lhes entregar uma cobaia em perfeitas condições de saúde. — Favre ajoelhou-se. — Mas o mesmo não se aplica a si, minha querida. Como tal, receio que tenha de apresentar ao seu irmão uma pequena demonstração dos talentos de Tshui. E não se acanhe, sim? Deixe o Frank ouvir os seus gritos. Quando a Tshui lhe levar uma orelha sua, tenho a certeza de que se mostrará mais recetivo a conversar comigo. — Favre levantou-se. — Agora, terá de me dar licença. Pessoalmente, evito assistir a estas cenas.

Dito isto, o francês fez uma pequena vénia e desapareceu na chuva.

Kelly encarou Tshui. Os olhos da bruxa cintilavam de desejo.

Sentiu-se gelar de pavor. Não tinha muito tempo para se salvar. Nas mãos escondia uma pequena faca. Roubara-a da linha de instrumentos quando fingira aquele instante de pânico. Agora, tentava cortar as cordas que lhe prendiam as mãos atrás das costas.

Tshui começou a recolher o material espalhado e retirou da mochila umas ligaduras que serviriam para lhe ligar a cabeça depois de cortada a orelha. Kelly não tinha dúvidas de que seria torturada até que conseguissem espremer do irmão todas as informações necessárias. Depois disso, seria descartada como lixo.

Não deixaria que isso acontecesse. Preferia morrer depressa do que sofrer horas de tortura. Além disso, sabia que Frank estaria a salvo. Pelo menos até o entregarem às mãos do laboratório francês. O próprio Favre o dissera.

Kelly continuou a tentar cortar as cordas, disfarçando os movimentos com tremores e gemidos que eram apenas fingidos em parte.

Tshui virou-se para ela. Segurava uma faca de lâmina curva.

As cordas continuavam a prender os pulsos de Kelly.

A bruxa inclinou-se, agarrou-a outra vez pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Ergueu a faca.

Kelly continuou a golpear as cordas. As lágrimas correram-lhe pelo rosto.

Foi então que um gemido arrepiante cortou a escuridão da noite, animalesco, carregado de fúria.

Tshui deteve-se com a lâmina a pairar sobre a orelha de Kelly. Virou a cabeça para olhar na direção da floresta.

Kelly não podia deixar passar a oportunidade. Sacudiu os ombros e rompeu as últimas fibras das cordas que lhe prendiam os braços.

Quando Tshui se virou outra vez, Kelly espetou-lhe a faca no ombro. Tshui gritou e caiu para trás, totalmente apanhada de surpresa.

Alimentada pela adrenalina, Kelly levantou-se rapidamente e correu para a floresta. A toda a velocidade, tanto quanto as pernas lhe permitiam. Depois esbarrou contra uma figura que saltou de trás de uma árvore.

Uns braços poderosos agarraram-na. Ergueu os olhos e deparou com o rosto desfigurado do tenente de Favre. No meio do pânico, esquecera-se por completo do guarda. Tentou lutar com ele, mas não tinha uma arma. O mercenário levantou-a em peso, com um braço apertado em volta do pescoço. Fora novamente capturada. Continuou a esbracejar e a espernear, mas ele simplesmente começou a levá-la de volta.

Ajoelhada debaixo do toldo, Tshui cobria a ferida no ombro com a ligadura que momentos antes se destinara a Kelly. A bruxa índia lançou-lhe um olhar capaz de a comer viva.

Derrotada, Kelly parou de se debater. A fuga não lhe servira de nada.

Foi então que aconteceu uma coisa estranhíssima: Máscara estremeceu e largou-a. Apanhada de surpresa, Kelly caiu de joelhos no chão. Virou-se no momento em que o mercenário tombava com algo brilhante espetado na nuca.

Um disco metálico.

Kelly reconheceu imediatamente o objeto. Uma lâmina da arma da Carrera! Olhou em volta e ouviu gritos por todo o acampamento. Os mercenários começaram a cair a torto e a direito, com setas espetadas no peito e no pescoço. Alguns sacudiam-se com convulsões. Envenenados.

Kelly manteve-se agachada. Percebia agora o que acontecia.

O acampamento está a ser atacado!

Desviou novamente os olhos para a figura inerte do tenente de Favre... para o disco prateado.

A esperança invadiu-a.

Meu Deus, eles devem estar vivos!

Virou-se na direção do toldo. Tshui desaparecera. Provavelmente, correra para o acampamento ao encontro de Favre, para onde o irmão ainda se encontrava prisioneiro.

Por aquela altura, o caos era absoluto. Ouviam-se tiros, gritos, mas não se vislumbrava um único atacante.

Era como se estivessem a ser atacados por fantasmas.

Os mercenários continuaram a tombar.

Kelly pegou na pistola do tenente. Não sabia se os outros conseguiriam salvar o irmão a tempo. Não estando disposta a arriscar, correu para o meio da confusão.

Nate viu Kelly correr com uma pistola na mão. Vai procurar o irmão, pensou. Não podiam esperar mais. Fez sinal a Carrera. A ranger assobiou e um grito ululante soltou-se das gargantas dos índios que cercavam o acampamento. Um som arrepiante para quem o ouvia.

Nate levantou-se. Tal como os outros, pintara-se de preto da cabeça aos pés. Avançaram em grupo, armados apenas com arcos, zarabatanas e facas de osso. Os que sabiam usar armas modernas roubavam-nas aos mercenários tombados no terreno.

À esquerda, Kostos abriu fogo com uma AK-47. No lado direito, Carrera pôs a Bailey em modo automático, ceifando tudo o que encontrava pela frente. Esgotadas as lâminas, desfez-se da arma e apanhou uma M16 do chão, que originalmente devia ter pertencido a um dos companheiros mortos na missão.

Nate apoderou-se de uma pistola e avançou sem medos pelo acampamento. Os mercenários ainda tentavam organizar-se e recuavam para formarem uma linha defensiva. Nate correu pelo meio das sombras. Precisava de passar por eles antes que essa linha se fechasse.

Foi avistado por um mercenário encolhido sob um arbusto. Em pânico e desarmado, o homem abandonou o esconderijo e caiu de joelhos com as mãos na cabeça, em sinal de rendição.

Nate correu por ele sem lhe passar cartão. Tinha um único objetivo em mente: encontrar Kelly e o irmão, antes que fosse tarde.

No outro lado do acampamento, Kouwe avançou com Dakii e um punhado de outros índios. Deteve-se para recolher um machete de um cadáver. Entregou a lâmina a Dakii e confiscou a espingarda para si.

Continuaram em frente. Os mercenários que ainda combatiam haviam recuado para o coração do acampamento.

Kouwe abrandou subitamente, alertado por um qualquer aviso instintivo. Virou-se e avistou uma mulher indígena a escapulir-se por entre os arbustos. Como eles, estava pintada de preto da cabeça aos pés.

Tendo crescido entre as tribos da Amazónia, Kouwe não se deixava enganar com aquela facilidade. A mulher podia pintar-se como quisesse, mas isso não a transformava numa dos Ban-ali e muito menos lhe escondia as feições shuara. O olhar treinado de Kouwe reconheceu-as de imediato.

Ergueu a espingarda e apontou-a à mulher.

— Nem mais um passo, bruxa! — gritou-lhe.

A mulher era a amante de Favre. Tentava fugir para a floresta, mas Kouwe nunca o permitiria. Lembrava-se perfeitamente do que ela fizera ao cabo DeMartini.

Tshui parou e virou-se lentamente. Dakii deixou-se ficar ao lado de Kouwe, mas o professor mandou-o avançar com os restantes membros dos Ban-ali. A batalha não terminara.

Dakii assim fez e seguiu com os companheiros.

Kouwe viu-se então sozinho com Tshui, rodeado pelos corpos dos mortos. Avançou cautelosamente na direção dela. Sabia que devia abatê-la ali mesmo como a um cão raivoso; a bruxa era certamente tão mortífera quanto bela.

O problema, porém, é que dificilmente se permitiria disparar sobre uma mulher desarmada.

— De joelhos! — ordenou-lhe em espanhol. — Mãos no ar!

Tshui obedeceu, baixando-se com uma elegância subtil, os movimentos lentos e fluidos, como uma serpente. Fitou Kouwe com os seus olhos pestanudos, sedutores...

Quando por fim atacou, o professor foi demasiado lento a reagir.

Kouwe ainda premiu o gatilho, mas apenas para descobrir que a espingarda se encontrava sem munições.

Tshui saltou para ele, com uma faca em cada mão.

Kouwe tinha a certeza de que as lâminas estariam banhadas em veneno.

Kelly ficou a olhar para os canos das duas Mini-Uzi de Favre. Uma estava apontada à cabeça do irmão, a outra ao peito dela.

— Deite fora a pistola, mademoiselle. Ou morrem os dois!

— Foge, Kelly... — murmurou Frank.

Favre agachou-se debaixo do toldo, usando o corpo do irmão como escudo humano.

Kelly sabia que não tinha opção. Não deixaria Frank sozinho com aquele homem. Baixou a pistola e atirou-a para o chão.

Favre apressou-se ao seu encontro. Baixou uma Uzi e cravou-lhe o cano da outra nas costas.

— Vamos sair daqui os dois — sibilou-lhe ao ouvido. Pegou numa mochila. — Tenho aqui uma reserva de seiva. Estava preparada para uma emergência destas.

Colocou a mochila às costas e agarrou Kelly pela parte de trás da camisa.

— Se cooperar, deixo-a viver... pode acreditar em mim.

O tanas, pensou Kelly, mas deixou-se ficar calada e não ofereceu resistência.

— Mexa-se!

— Larga-a! — gritou uma voz.

Os dois viraram-se. Favre teve o cuidado de se manter atrás de Kelly.

Nate apontava-lhe uma pistola. Vestia apenas uns boxers e tinha o corpo pintado de preto da cabeça aos pés.

Favre fitou-o.

— Decidiu ser índio, monsieur Rand?

— Não tens por onde fugir — disse Nate. — Larga a arma se quiseres viver.

Kelly olhou para Nate. Os olhos dele brilhavam de determinação.

Ouviram-se mais disparos em redor, gritos.

Favre riu-se.

— Deixa-me viver? Onde? Na prisão? Lamento, mas a proposta não me agrada. Prefiro a liberdade.

O disparo à queima-roupa sobressaltou Kelly — mais o estrondo que a própria dor. Olhou para Nate e viu-o cair para trás com um buraco de bala na anca, a pistola a voar pelo ar. Só então sentiu as pernas cederem e caiu de joelhos no chão. Quase não sentia dor, apenas choque. Desviou os olhos para a barriga, para a camisa ensopada de sangue e para o buraco que ainda fumegava.

Favre disparara através dela, surpreendendo Nate.

A simples brutalidade do ato chocou-a mais do que saber que fora alvejada, mais do que a visão do sangue a correr abundantemente.

Tornou a desviar os olhos para Nate. Os olhares dos dois cruzaram-se por instantes. Nem um nem outro tinha forças para falar. O horror era demasiado.

Só por fim caiu para a frente, embatendo no chão ao mesmo tempo que a escuridão a engolia.

Kouwe desviou a primeira faca com uma coronhada, mas a bruxa era rápida. Caiu sob o peso da sua figura nua quando saltou para cima dele.

Embateu com as costas e a cabeça no chão, mas conseguiu agarrar-lhe o outro pulso. A segunda lâmina mergulhou direita ao rosto. Desviou-se e tentou libertar-se, mas ela prendeu-o com as pernas, como uma amante apaixonada.

Com a mão livre, ela arranhou-lhe a cara, as unhas procurando os olhos. Sacudiu o rosto para um lado e para o outro. Ela fez força e a lâmina desceu ao encontro da garganta. A bruxa era jovem, forte.

Mas Kouwe conhecia bem os Shuara. Sabia do arsenal que escondiam nos corpos, como as facas nos cabelos, ou nos modestos pedaços de tecido que cobriam os genitais, disfarçadas de ornamentos. Também sabia que as mulheres da tribo escondiam uma arma adicional para se protegerem contra violações, uma prática frequente em tempos de guerra.

Enfiou a mão livre por entre as pernas da bruxa sentada em cima dele. Os dedos procuraram e encontraram o punho do pequeno punhal ali escondido, quente do calor do corpo. Libertou a lâmina da sua bainha de cabedal secreta.

Um grito raivoso libertou-se dos lábios dela ao aperceber-se da lâmina a ser retirada de dentro de si, da afronta daquele gesto. Arreganhou os dentes.

Saltou de cima de Kouwe, atirando-se para o lado, mas ele ainda a segurava pelo pulso. Os dois rolaram juntos. Kouwe aproveitou o impulso e a força dela para se levantar.

Ficaram agachados cara a cara, Kouwe ainda a agarrar-lhe o pulso com mão de ferro.

Ela fitou-o, mas desta vez havia medo no seu olhar.

— Misericórdia — murmurou. — Por favor...

Kouwe tentou imaginar o número de vítimas que teriam proferido aquelas mesmas palavras diante dela. Mas ele não era um monstro.

— Concedo-te misericórdia... — disse-lhe.

Ela relaxou ligeiramente os músculos.

Aproveitando a oportunidade, Kouwe espetou-lhe o punhal entre os seios.

Ela arquejou de dor e surpresa.

— A misericórdia de uma morte rápida — sibilou o professor.

Então, foi a vez de o veneno atuar. O corpo dela estremeceu, como que atingido por uma corrente elétrica.

Kouwe largou-a.

Soltando um derradeiro estertor, a bruxa morreu ainda antes de embater no chão.

Kouwe virou costas, desfazendo-se do punhal envenenado.

— E é mais do que merecias.

Louis apreciou a derrota no rosto de Kelly. Gostaria de a fazer sofrer mais um pouco, mas não tinha tempo para isso. O tiroteio convertera-se em disparos esporádicos. A batalha aproximava-se do fim. Precisava de sair dali antes que os homens morressem todos.

Apanhou a segunda Uzi do chão e lançou um derradeiro olhar a Nate, que tentava erguer-se com os cotovelos.

Despediu-se com um aceno e virou costas, mas ficou automaticamente petrificado.

A poucos metros encontrava-se uma visão impossível. A figura pálida e frágil de um homem encostado a uma árvore.

— Louis...

Deu dois passos atrás, assustado. Um fantasma...

— Foge, pai! — gritou Nate.

Louis abanou a cabeça e recuperou a compostura. Claro que não se tratava de um fantasma. O Carl Rand! Vivo! Que milagre é este? Interrogou-se que bem teria feito para Deus lhe enviar um presente daquela magnitude.

Apontou a Uzi ao velho inimigo.

Carl ergueu o braço e apontou para a esquerda.

Louis olhou nessa direção.

Deparou-se com um jaguar agachado debaixo de um arbusto. O animal saltou na direção dele.

Louis rodou a arma e disparou. As balas retalharam terra e folhas, mas nem uma acertou no jaguar.

Foi então atingido violentamente pelas costas. Voou pelo ar e aterrou de cara no chão. Abriu a boca para respirar, aspirando terra e engasgando-se. Sentiu-se esmagado por um peso enorme.

O que...? Quem...?

Olhou por cima do ombro e deparou-se com o focinho e a boca arreganhada de uma enorme pantera-negra. As suas poderosas garras afundaram-se-lhe nas costas.

Não!

No lado contrário, o primeiro jaguar aproximou-se lentamente, com ar ameaçador. Louis ainda tentou rodar e levantar a Uzi, porém, antes que pudesse premir o gatilho, o braço explodiu de dor. Os dentes do animal cravaram-se-lhe no osso e puxaram o braço para trás, arrancando-o pela altura do ombro.

Louis soltou um gritou.

— Bon appétit — murmurou Nate, na direção dos jaguares.

Ignorou o resto do ataque. Lembrava-se de uma vez ter visto num documentário duas orcas brincarem com uma cria de foca antes de a devorarem. Lembrava-se de como as baleias atiravam a cria ao ar, apanhavam-na, rasgavam-na, atiravam-na de novo. Uma demonstração pura de como funcionava a natureza: selvagem, desprovida de compaixão. Era o que acontecia ali. Os dois jaguares demonstraram prazer em matar Louis Favre, não só para o comerem, mas também por vingança.

Nate, por sua vez, tinha problemas mais importantes.

Rastejou na direção de Kelly, usando os braços e a única perna que conseguia mover. A dor na anca era insuportável e turvava-lhe a visão, mas precisava de a alcançar.

Kelly estava estendida numa poça de sangue, inerte.

Caiu por fim junto dela.

— Kelly...

Ela moveu-se ao ouvir a sua voz.

Chegou-se mais perto e colocou-lhe um braço por cima.

— Conseguimos... não foi? — disse Kelly. A voz não passava de um murmúrio. — A cura?

— Sim... vamos dá-la ao mundo... à Jessie...

O pai cambaleou ao encontro dos dois e ajoelhou-se.

— A ajuda vem a caminho. Aguentem-se...

Nate ficou surpreendido por ver a soldado Carrera atrás do pai.

— O sargento Kostos encontrou o rádio deles. Os helicópteros estão a meia hora de caminho.

Nate anuiu e apertou o braço à volta de Kelly. Os olhos dela tinham-se fechado. Ele próprio começava a fechar os seus.

Algures à distância, ainda ouviu a voz de Frank:

— Kelly! Ela está bem?


20

SETE MESES DEPOIS

16h45

Langley, Virgínia

Nate bateu à porta dos O’Brien. Frank iria ter alta do hospital naquele dia. Levava-lhe um presente debaixo do braço. Um boné novo dos Red Sox, autografado pela equipa inteira. Esperou no alpendre, a olhar por cima do ombro para o relvado bem cuidado.

Havia nuvens no céu a sul. Prometiam tempestade.

Bateu novamente. Na semana anterior, visitara Frank no Instituto Instar. O homem andava já de muletas. As novas pernas eram pálidas e precisavam de ganhar músculo, mas Frank estava a caminho de uma recuperação total. Claro que isso não o impedia de estar constantemente a reclamar. «A fisioterapia é tramada», dissera-lhe. «Além disso, estou farto de ser rato de laboratório.»

Nate sorrira. Ao longo de meses, uma equipa de investigadores e médicos acompanhara a regeneração a par e passo. A mãe de Frank, Lauren, dissera que o mecanismo singular que permitira a regeneração permanecia um mistério. O que sabiam era que o prião desencadeava febres hemorrágicas fatais em crianças e idosos, cujos sistemas imunitários eram imaturos ou débeis, e o que o contrário se verificava em adultos saudáveis. Nestes últimos, o prião parecia capaz de alterar temporariamente a resposta do sistema imunitário, permitindo a proliferação rápida de células necessária ao processo regenerativo e de cura.

O efeito milagroso foi observado em Frank, mas não veio isento de riscos para o próprio. Frank tivera de ser mantido numa dieta à base do leite da semente, a fim de impedir o desenvolvimento dos tumores galopantes que haviam vitimado Gerald Clark. Após a regeneração completa, Frank continuava a tomar o leite numa dose mais concentrada para limpar os priões do seu sistema e restabelecer o normal funcionamento do sistema imunológico. Ainda assim, apesar da inestimável contribuição de Frank como cobaia, havia muito por descobrir acerca do misterioso prião.

«Estamos muito longe de encontrar uma resposta, e mais ainda de conseguirmos reproduzir as habilidades desta árvore», dissera Lauren, desapontada. «Se a história da árvore remonta ao período Paleozoico, temos de aceitar que leva um avanço de cem milhões de anos em relação a nós. Um dia, acabaremos por compreender um pouco mais, mas não será para breve. Por muito que tenhamos desenvolvido os nossos conhecimentos científicos, somos apenas crianças a brincar numa das mais avançadas experiências biológicas.»

«Crianças que por pouco não queimaram a própria casa», acrescentara Nate.

Para o bem de todos, a cura encontrava-se de facto nas sementes. O composto «antiprião» presente no fruto, um tipo de alcaloide, revelara-se fácil de reproduzir em massa. O soro fora distribuído mundialmente através de um esforço combinado dos Estados Unidos e da comunidade internacional. Um mês de tratamento com o soro erradicava por completo a doença, um facto que, se fosse do conhecimento dos Ban-ali, poderia tê-los libertado da árvore gerações atrás. Mas, por enquanto, o soro era a cura de que o mundo necessitava. A epidemia estava controlada.

O prião, por sua vez, provara-se irreplicável à luz das atuais capacidades científicas. Todas as amostras de seiva haviam sido classificadas como uma ameaça de biossegurança de nível 4 e encontravam-se guardadas em meia dúzia de laboratórios selecionados. Na natureza, a fonte original da seiva, o vale dos Ban-ali foi encontrado totalmente arrasado. Tudo o que sobrara da grande Yagga fora as suas cinzas e os esqueletos nas suas raízes.

E ainda bem, pensou Nate, enquanto aguardava no alpendre dos O’Brien e fitava o sol de março a descer no horizonte.

Na América do Sul, Kouwe e Dakii continuavam a ajudar os doze membros dos Ban-ali sobreviventes a adaptarem-se a uma nova vida. Eram os índios mais ricos da Amazónia. O pai de Nate processara com êxito os laboratórios St. Savin pela destruição do vale e pelo massacre da tribo. Infelizmente para a empresa francesa, descobrira-se que Louis Favre deixara um rasto de documentos incriminatórios. De recurso em recurso, a batalha em tribunal arrastar-se-ia durante anos, mas a falência da farmacêutica seria inevitável. Além do mais, o conselho de administração inteiro enfrentava também processos criminais.

Entretanto, o pai de Nate continuaria na América do Sul, a ajudar a realojar a tribo. Nate juntar-se-ia a ele nas semanas seguintes, mas não seria o único. Havia um batalhão de geneticistas interessados em estudar as alterações no ADN dos índios, tanto para perceberem como aquilo acontecera como para tentarem descobrir uma possível forma de reverter essas alterações. Nate calculava que, a haver respostas, levariam anos a chegar.

O pai estava também acompanhado pelos dois rangers, Kostos e Carrera, recentemente condecorados. Os dois militares tinham igualmente acompanhado a recuperação dos cadáveres. Um trabalho difícil e por demais triste.

Nate suspirou. Tantas vidas perdidas, mas tantas outras salvas pela cura obtida à custa desse sangue derramado. Apesar de tudo, o preço fora demasiado elevado.

O som de passos interrompeu-lhe os pensamentos. A porta abriu-se.

Nate reencontrou o seu sorriso.

— Porque demoraste tanto? Estou aqui há cinco minutos.

Kelly franziu o sobrolho e pousou a mão nos rins.

— Experimenta carregar o peso desta barriga, a ver se gostas.

Nate encostou a palma da mão à enorme barriga de grávida da sua futura mulher. O nascimento do filho de ambos estava previsto para dali a meia dúzia de semanas. A gravidez fora descoberta enquanto Kelly recuperava do ferimento de bala. Ao que tudo indicava, Kelly fora infetada pelo prião, em Manaus, ao examinar o cadáver de Gerald Clark. Durante as duas semanas de expedição, e sem fazer ideia de que contraíra a doença, o prião curara o problema de infertilidade causado pelo parto de Jessie, reparando os tecidos danificados. A descoberta da gravidez viera em boa hora. Se continuasse alheia ao que acontecia dentro de si, os tumores começariam a desenvolver-se, porém, tal como no caso do irmão, o leite da semente salvou-a a tempo, e os priões foram erradicados antes que lhe pudessem fazer mal.

Kelly engravidara na véspera do ataque de Louis, na casa da árvore. Sem saberem, a noite de paixão resultara no futuro irmão de Jessie.

Já tinham escolhido o nome do bebé: Manny.

Nate inclinou-se e beijou-a.

Os trovões fizeram-se ouvir à distância.

— Vamos, os outros estão à nossa espera — murmurou Kelly, com os lábios colados aos dele.

— Eles que esperem.

A chuva começou a cair, gotas grossas e dispersas, que se faziam ouvir com força no telhado e no pavimento. As nuvens cinzentas rumorejaram outra vez. As gotas soltas converteram-se numa borrasca.

— Mas não é melhor...

Nate puxou-a para si com força.

— Está tudo bem...


EPÍLOGO

Nas profundezas da selva amazónica, a natureza segue o seu curso, imperturbada.

O jaguar malhado aconchega a nova ninhada. A companheira negra demora em chegar. Ele aspira o ar, deteta o odor almiscarado e começa a andar para trás e para a frente, impaciente.

Das sombras da floresta, um pedaço de escuridão solta-se e move-se na sua direção. Ele cumprimenta a enorme fêmea com um rugido. Roçam-se um no outro e ele deteta o cheiro nela, que conhece bem. Chamas, fumo, gritos. Aquele cheiro deixa-o imediatamente alerta, eriçando-lhe os pelos nas costas. Ruge outra vez.

A fêmea encaminha-se para a clareira e abre um buraco no chão húmido. Deixa cair uma semente no buraco, que volta a tapar com as patas traseiras.

Terminada a tarefa, regressa para junto da ninhada.

Algumas crias são malhadas, outras são negras.

Esfrega o focinho nelas. As crias choramingam por leite, rebolando umas por cima das outras.

Torna a roçar-se no companheiro e vira as costas ao buraco, sabendo que cumpriu a sua obrigação. A semente está plantada. É hora de seguir em frente.

Reúne a ninhada e acerca-se do companheiro.

Juntos, encaminham-se para as profundezas virgens da floresta, deixando para trás o bocado de solo remexido que não tardará a secar sob o calor da tarde, irreconhecível, imperturbado.

Esquecido.

 

 

                                                                  James Rollins

 

 

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