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COMEÇOU COM OS FILHOS do presidente Coyle, Ethan e Zoe, guras notórias desde sua chegada a Washington e provavelmente antes disso. Aos 12 anos, Ethan Coyle achava que estava acostumado a viver sob os olhos do público. Ele mal percebia as equipes de TV acampadas diante do Colégio Branaff e não ligava se algum garoto da escola tentasse tirar uma foto dele no corredor, na quadra de esportes ou até no banheiro. Às vezes Ethan fingia ser invisível. Era uma brincadeira de criança. Um dos sujeitos mais simpáticos do Serviço Secreto havia lhe ensinado esse truque. Contou a ele que Chelsea Clinton também fazia isso. Quem ia saber se era mentira? Naquela manhã, porém, quando Ethan percebeu Ryan Townsend vindo em sua direção, teve vontade de sumir. Não era invencionice de sua cabeça, Ryan jamais gostou dele: os hematomas em sua pele eram prova disso. – Qual é o problema, Coyle bunda-mole? – gritou Ryan indo para cima do colega, o olhar ameaçador no rosto. – O fracote já está se borrando? Ethan sabia que era melhor não responder. Preferiu dobrar à esquerda e seguir pelo corredor dos armários, o que acabou sendo seu primeiro erro. Não havia para onde fugir e ele logo sentiu um forte golpe na perna: tinha levado uma rasteira!
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Ryan mal diminuiu a velocidade ao passar por ele. O garoto chamava aquelas agressões de “acidentes de percurso”. Ethan jamais gritava ou demonstrava sentir dor. Prometera a si mesmo que nunca deixaria ninguém perceber o que estivesse sentindo. Os livros caíram de suas mãos e ele se ajoelhou para pegá-los. Era uma atitude covarde, mas pelo menos podia aliviar o incômodo da perna sem que os outros colegas notassem que ele não passava de saco de pancadas de Ryan. Só que, dessa vez, uma outra pessoa assistia à cena: e não era ninguém do Serviço Secreto. Ethan guardava uma folha na pasta de matemática quando ouviu uma voz conhecida: – Ei, Ryan! Qual é o problema? O menino levantou o rosto e viu Zoe, sua irmã de 14 anos, indo na direção de Ryan. – Eu vi! – gritou ela. – Achou que eu não ia ver? O garoto inclinou a cabeça de cachos louros e disse: – Não sei do que está falando! Por que não vai cuidar... De repente um pesado livro amarelo surgiu nas mãos de Zoe e acertou em cheio o rosto de Ryan. O nariz dele começou a esguichar sangue, fazendo-o cambalear para trás. A confusão estava formada quando os homens do Serviço Secreto se aproximaram. O agente Findlay segurou Zoe enquanto o ocial Musgrove se posicionou entre Ethan e o outro garoto. Vários alunos se aglomeravam ao redor do grupo como se estivessem diante de um reality show: Os filhos do presidente.
– Vocês são uns fracotes! – gritou Ryan para Ethan e Zoe, o sangue escorrendo pela gravata e pela camisa do uniforme. – Dois filhinhos de papai que precisam da proteção de guarda-costas! – Ah, é? Diga isso a meu livro de álgebra! – retrucou a menina aos berros. – E que longe do meu irmão! Você é maior e mais velho que ele, seu imbecil! Ethan ainda estava perto dos armários, com seu material espalhado pelo chão. Por alguns segundos o garoto se viu fazendo parte da multidão de alunos, como se fosse um menino qualquer observando aquela loucura acontecendo com outra pessoa. Sim, pensou Ethan. Talvez numa próxima encarnação.
capítulo 2
O AGENTE FINDLAY RAPIDAMENTE conduziu Ethan e Zoe para longe dos curiosos e do pior dos perigos: estudantes ávidos por gravar um vídeo em seus iPhones e depois publicá-lo no YouTube. Em questão de segundos ele desapareceu com as duas crianças no auditório anexo ao saguão principal, que até então estava vazio. O Colégio Branaff cava no terreno de uma antiga fazenda, cuja propriedade havia sido transferida para uma associação educacional-religiosa. Os alunos diziam que o lugar era malassombrado não pelas boas pessoas que haviam morrido ali, mas pelos descendentes da família Branaff, revoltados por terem sido desalojados para dar lugar a uma escola particular. Ethan não acreditava em nenhuma daquelas bobagens, mas sempre achara o auditório assustador por causa de seus antigos retratos a óleo que pareciam lançar um olhar de censura a todos os que por lá passavam. – O presidente vai car sabendo de tudo o que aconteceu, Zoe. A briga, o seu linguajar – disse Findlay. – Sem falar do diretor Skillings... – Claro, você está apenas fazendo seu trabalho! – retrucou a menina, dando de ombros e franzindo a testa. Em seguida levou a mão ao rosto de Ethan. – Tudo bem? – Estou ótimo – disse ele, recusando o carinho da irmã. – Ao menos sicamente – acrescentou. Havia ainda a questão de sua dignidade, mas aquele não era o melhor momento para pensar no assunto. – Nesse caso, vamos seguir com a programação original – determinou o agente. – Vocês têm que assistir a uma palestra daqui a cinco minutos. – Saquei – disse Zoe com um gesto de desprezo. – Até parece que iríamos nos esquecer da palestra. A convidada daquela manhã era Isabelle Morris, pesquisadora do Instituto de Política Internacional e ex-aluna do Colégio Branaff. Ao contrário da maioria de seus colegas, Ethan estava ansioso para assistir à palestra sobre o Oriente Médio. Sonhava um dia trabalhar nas Nações Unidas. Não era algo impossível. Afinal, ele tinha ótimos contatos. – Você pode nos dar um segundinho? – pediu Zoe ao agente. – Quero conversar com meu irmão em particular. – Eu já disse que está tudo bem – insistiu Ethan, mas logo percebeu que sua irmã o encarava. – Ele me diz coisas que não diria a vocês – continuou Zoe em resposta ao olhar desconado de Findlay. – E não é fácil ter conversas particulares, se é que me entende. Sem querer ofender... – Não me senti ofendido – rebateu o agente, consultando o relógio. – Tudo bem. Vocês têm dois minutos. – Ótimo, prometo que não levaremos mais do que isso – disse Zoe, fechando a pesada porta de madeira assim que Findlay saiu.
Sem dizer uma palavra ao irmão, ela avançou por entre as las de cadeiras em direção aos fundos do auditório e subiu no aparelho de ar condicionado que cava sob as janelas. Enou a mão sob a jaqueta do uniforme azul e cinza e tirou um pequeno estojo preto. Ethan reconheceu o objeto. Sua irmã o comprara em Pequim no ano anterior, durante uma viagem à China com seus pais. – Estou a m de fumar um cigarro – sussurrou Zoe, dando um risinho malicioso. – Vamos nessa? – Não quero perder a palestra – disse ele, olhando para a porta do auditório. – Ah, por favor! É sempre o mesmo blá-blá-blá sobre o Oriente Médio. Você pode ver isso na CNN a qualquer momento, mas quantas vezes temos a chance de driblar o Serviço Secreto? Ora, vamos lá! Ethan não tinha escapatória. Ou agiria de novo como um covarde, ou perderia a palestra que tanto desejava ver. – Você não devia fumar – disse o menino sem muita convicção. – E você não devia ser tão medroso! – rebateu a irmã. – Assim, panacas como Ryan Townsend talvez o deixassem em paz. – Você diz isso porque papai é o presidente, não é? – Não. Digo isso porque você é um banana! Por acaso já viu algum valentão se meter comigo? – Ela abriu a janela e pulou para fora sem diculdade. Zoe se considerava uma nova Angelina Jolie. – Se não quiser vir comigo, pelo menos me dê um minuto para me mandar. Está bem, vovô? Numa fração de segundo Zoe desapareceu. Ethan olhou por cima do ombro novamente e fez a única coisa que podia para salvar sua dignidade. Pulou a janela do auditório e se meteu numa encrenca que ele jamais poderia imaginar. Ninguém poderia.
capítulo 3
ASSIM QUE A PORTA DO AUDITÓRIO se fechou atrás do agente Clay Findlay, ele vericou a maçaneta: destrancada. Em seguida olhou o ponteiro dos segundos de seu relógio de aço inoxidável. – Vou dar a eles mais 45 segundos – falou ao microfone escondido sob o punho da camisa. – Depois levamos T-Rex para a palestra e Crepúsculo à sala do diretor. As ordens da primeira-dama e do presidente eram de que Ethan e Zoe tivessem uma vida escolar o mais normal possível, desde que respeitassem os limites da razão. Algo que era fácil na teoria, porém não na prática. Zoe Coyle nem sempre agia dentro dos limites da razão. Na verdade ela não agia mal. Zoe não era uma criança má; era apenas uma criança. Voluntariosa, esperta e afeiçoada ao irmão mais novo. – Vou levar uma advertência por causa disso – comentou Findlay pelo rádio. – Mas uma coisa é certa: esse tal de Ryan Townsend é um pé no saco! Finja que eu não disse nada. – Tal pai, tal lho – brincou Musgrove. – Bem, o garoto conseguiu o que queria. Ele só não esperava que Zoe o acertasse. Os dois agentes começaram a rir. O pai de Ryan Townsend era líder da bancada minoritária na Câmara dos Deputados e opositor ferrenho de qualquer iniciativa que o presidente Coyle tomasse ou sonhasse tomar. Às vezes o Colégio Branaff parecia uma versão em miniatura do Capitólio, o que de certa forma era. Findlay consultou o relógio mais uma vez. Dois minutos tinham se passado. Fim do descanso para os pequenos Coyle. Estava na hora de voltar ao trabalho. – Tudo bem, senhoras e senhores, estamos a caminho – disse ele ao microfone, batendo duas vezes na porta do auditório antes de abri-la. – Tempo esgotado, meninos. Vocês estão prontos para... Meu Deus! O lugar estava vazio. Não, não e não! Isso não! O que você aprontou, Zoe!? Findlay sentiu o coração pular dentro do peito e seus olhos foram direto para as janelas da parede ao fundo. Enquanto caminhava até lá, começou a se comunicar com o Centro de Operações Conjuntas e com a equipe que vigiava o colégio. – Comando, aqui é Força Um. Crepúsculo e T-Rex desapareceram – disse ele em tom de urgência, mas sem demonstrar qualquer emoção. Não havia por que entrar em pânico. – Repito, os dois desapareceram. Quando chegou às janelas, todas estavam fechadas. Uma delas, porém, se encontrava destrancada. Num rápido exame da área externa, o agente viu o campo de esportes que se estendia até a grade do lado sul. – Findlay? O que houve? – perguntou Musgrove já à porta do auditório. – Eles devem ter pulado a janela – respondeu Findlay. – Eu vou matar aquela garota. Não
estou brincando. Ela passou dos limites! – Aquilo parecia ser mais uma das armações de Zoe, que adorava driblar os seguranças. – Comando, aqui é Força Um – o agente voltou a falar pelo rádio. – Crepúsculo e T-Rex continuam desaparecidos. Bloqueiem imediatamente todas as saídas. Repito, bloqueiem imediatamente... Ele então percebeu uma agitação do outro lado da linha. Ouviu gritos e o barulho de metal contra metal, antecedidos por dois estampidos secos. – Comando, aqui é Força Cinco! – gritou uma voz pelo rádio. – Estamos seguindo uma van cinza. Acabou de escapar pelo portão leste. Está indo pela Wisconsin em alta velocidade, na direção sul! Peçam reforços imediatamente!
capítulo 4
BOBBY HATFIELD, SARGENTO da Polícia Metropolitana de Washington, acabara de avistar uma van cinza a 100km/h cruzando o bairro de Georgetown quando ouviu o chamado pelo rádio: – Todas as unidades, atenção à área dois-zero-seis. Possível sequestro em curso com pessoas armadas. Duas crianças. Repito: duas crianças! Van cinza em alta velocidade na área sul da Wisconsin rumando para noroeste. Serviço Secreto envolvido na perseguição. Solicitamos reforços! Sintonizem o canal 23! Hatfield ligou a sirene e fez uma manobra de 180 graus com sua viatura no momento em que foi ultrapassado por uma picape preta. Tão logo sintonizou o canal, ouviu os agentes do Serviço Secreto gritando as coordenadas: – Estamos indo na direção sul! Placa de Washington, DMS oito-dois-três... – Serviço Secreto, aqui é a unidade dois-zero-seis da polícia – falou Hateld. – Estou logo atrás de vocês! – Copiado! O sargento acelerou quando a picape do Serviço Secreto reduziu a velocidade, deixando que ele assumisse a dianteira. O velocímetro se aproximava dos 120 e sua adrenalina estava a mil. Um erro na direção colocaria tudo a perder. Na Rua M, a van dobrou à esquerda numa curva fechada e raspou a lateral de dois veículos, não capotando por sorte. Hateld fez a curva com mais cuidado e pisou fundo. Aproximou-se da van, que ainda mantinha uma boa distância. – O suspeito tomou a direção leste na M – gritou ele pelo rádio. – O cara está voando! Cadê os reforços? Quando chegaram à Pennsylvania Avenue, pouco antes de Rock Creek, o veículo suspeito entrou à direita. Era uma via mais larga e a pessoa que estava ao volante acelerou, costurando perigosamente enquanto cruzava a ponte. Hateld não tirava os olhos do asfalto. Havia carros e pedestres por toda parte, o que tornava aquela perseguição ainda mais arriscada. Essa porcaria não vai acabar bem. Este pensamento não lhe saía da cabeça. Uma segunda viatura da polícia se juntou ao comboio na altura da 28, seguindo logo atrás do sargento. Hateld reconheceu a voz do colega e amigo James Walsh quando este entrou no canal do rádio. Walsh adorava provocá-lo. – Estou vendo que seu dia está agitado, parceiro. – Não é hora para brincadeira, James! – O suspeito está indo para sudoeste na Pennsylvania – informou Walsh, mudando de assunto. – Parece que há apenas uma pessoa no carro, mas é difícil afirmar. Estamos a menos de um minuto da rotatória e... Ah, droga! Bobby, veja isso! Veja! Ao chegar ao trevo, a van pegou à direita e seguiu reto na contramão. Carros de passeio e
táxis subiam na calçada para abrir caminho. Do lugar onde estava, Hateld tinha a impressão de testemunhar a abertura do mar Vermelho, mas aquele espetáculo estava prestes a terminar, já que um ônibus enorme vinha de encontro à van. O coletivo deu em vão uma forte guinada à direita. Hateld só teve tempo de meter o pé no freio, fazendo seu carro derrapar violentamente pelo asfalto. Ainda assim, seus olhos não desgrudaram da van, que bateu em cheio na lateral do ônibus. A parte dianteira do veículo encolheu como uma sanfona, estourando o para-brisa e levantando os pneus traseiros a uns trinta centímetros do chão antes de ele parar por completo. Hateld desceu do carro com Walsh em sua cola. Como por milagre, não havia passageiros no ônibus. Por outro lado, a rotatória estava uma confusão de carros parados e batidos. Em menos de um minuto apareceram cinco viaturas da polícia. De uma hora para outra havia policiais fardados por toda parte, mas Hateld foi o primeiro a chegar à traseira da van. A porta de metal cinza estava afundada e a maçaneta havia emperrado. Seu coração ainda pulava dentro do peito e ele sentia o sangue latejar nos ouvidos. A perseguição ainda não tinha terminado. O que eles iriam encontrar dentro do carro? Homens armados? Homens mortos? Ou, pior ainda: crianças mortas?
capítulo 5
QUANDO OCORREU O PRIMEIRO incidente daquela série de acontecimentos, eu não fazia ideia de que as crianças desaparecidas eram lhas do presidente. Eu me lembrava do repórter na rádio falando sobre “um possível sequestro”. Mas aquilo era a única coisa que sabíamos. Naquele momento, eu seguia pela Rua K na direção leste e estava de folga. O local indicado cava a menos de dois quarteirões, portanto cheguei à rotatória antes dos bombeiros. Eu poderia ajudar em alguma coisa. Um policial uniformizado vinha andando rápido às minhas costas, desenrolando a ta de isolamento amarela enquanto eu me dirigia à van completamente amassada. A primeira coisa que percebi foi a porta traseira escancarada. A segunda foi o fato de não haver nenhum sinal de vítima de sequestro. A terceira e última coisa que me chamou a atenção foi a presença maciça de agentes do Serviço Secreto. Alguns deles estavam vestidos em seus habituais ternos escuros, enquanto outros trajavam blazers, gravatas, camisas de manga comprida e calças sociais. Pareciam professores, mas essa impressão se desfazia quando se percebiam os fones de ouvido. Exibi o distintivo e fui em direção à van para examinar o veículo. O motorista estava preso às ferragens. Havia sangue à altura do abdômen e o braço direito dele se projetava para fora da janela numa posição improvável. O sujeito devia ter 30 e tantos anos, cabelos negros encaracolados e uma barba tão patética quanto ele próprio. Mas onde estava a vítima? Será que tudo não passava de uma farsa? Uma manobra para desviar nossa atenção? Eu começava a achar que sim, sentindo a adrenalina correr pelas minhas veias. Desviar nossa atenção de quê? O que mais aconteceu naquela escola? – Ele está lúcido? – perguntei ao agente vestido de tweed à minha frente. – Difícil dizer – respondeu. – Está inconsciente e talvez em estado de choque. Nem sabemos se ele fala inglês. – Algum sinal da criança desaparecida? – Duas crianças desaparecidas – corrigiu o agente balançando a cabeça e levantando dois dedos. Aquilo me parecia um déjà-vu da pior espécie. Alguns anos antes eu trabalhara com o Serviço Secreto em outro caso de sequestro duplo perpetrado por um monstro chamado Gary Soneji. Só uma das crianças sobreviveu e eu escapei por pouco, graças a John Sampson. Mostrei o distintivo mais uma vez e então me debrucei na janela do lado do motorista. – Polícia! Cadê as crianças? – perguntei abruptamente ao homem. Na falta de outro indício, eu partia do pressuposto de que ele sabia alguma coisa. Não havia tempo para rodeios. Sua respiração estava curta e o rosto, pálido, como se o corpo reconhecesse a intensidade da dor mas o cérebro não a registrasse. Além disso, as pupilas se encontravam dilatadas. O sujeito
parecia drogado de fenciclidina, mas ao mesmo tempo tinha acabado de participar de uma perseguição. Nunca tinha visto alguém chapado de “pó de anjo” fazer uma coisa daquelas. Como ele não reagia, achei melhor insistir. – Está me ouvindo? – gritei. – Me diga onde estão as duas crianças! A não ser que você queira ficar preso às ferragens... Os bombeiros tinham chegado e dois ociais pediram que eu me afastasse, mas eu não sairia dali até conseguir uma resposta. Ouvi o barulho de um motor hidráulico sendo ligado atrás de mim. Era o alicate mecânico que iria cortar a lataria do carro e liberar a vítima. – O que você sabe? – perguntei. – Está trabalhando para alguém? Me diga onde estão as crianças! De repente alguma coisa mudou na expressão do motorista. O sujeito ainda respirava com diculdade, mas os cantos de sua boca se retesaram e os olhos se estreitaram, como se alguém tivesse contado uma piada que só ele tinha ouvido ou entendido. Quando nalmente cuspiu uma resposta, ela veio com uma golfada de sangue que encharcou o volante e o painel. – Que crianças, cara?
capítulo 6
OS BOMBEIROS USARAM o alicate mecânico para cortar as colunas de sustentação do para-brisa e a porta e arrancaram o teto com um pé de cabra, como se estivessem abrindo uma lata de sardinhas. Em geral, o resgate de vítimas é um trabalho emocionante de ver, ainda mais porque você torce pela pessoa que está presa às ferragens. Mas não era o caso daquela vez. Não mesmo. Quando eles abaixaram uma corrente para puxar o motor e retirar o homem, tentei arrancar algumas informações de Clay Findlay, agente do Serviço Secreto com quem eu estava conversando. – Quem são as crianças desaparecidas? – perguntei, mas ele se limitou a fazer um sinal negativo com a cabeça. Ele não ia me dizer. Que diabos estava acontecendo? – Escute, tenho experiência nesse tipo de coisa... – Sei quem é você – disse ele, interrompendo-me novamente. – Alex Cross, do Departamento de Polícia Metropolitana, ou DPM, se preferir. Naquela época, minha reputação como policial me precedia, o que não deixava de ser uma faca de dois gumes. Naquele episódio específico, ela não estava me ajudando em nada. – Alertamos todas as unidades da polícia – continuou Findlay. – Por que não pergunta a seu superior em que pode ajudar? Estou muito ocupado. Também tenho experiência nessa área, detetive. Não gostei daquela atitude. Cada minuto a mais signicava uma diculdade maior para encontrar as crianças. O agente deveria saber disso. E, o que era pior, ele talvez soubesse. – Está vendo aquele cara? – falei, apontando para o motorista. Os paramédicos haviam imobilizado seu pescoço com um colar cervical e logo ele seria encaminhado a um hospital. – A prisão dele é de responsabilidade da polícia, está entendendo? Vou falar com ele assim que puder, com ou sem a presença de vocês. Se quiser esperar, o problema é seu. Ele vai ser sedado, entubado e sabe-se lá quando vai voltar a falar! Findlay me lançou um olhar de poucos amigos. Seus dentes rangiam dentro da boca fechada. O agente sabia que aquela área estava sob minha jurisdição e que eu podia passar por cima dele se quisesse. – São Zoe e Ethan Coyle – disse nalmente. – Logo vai car sabendo dos detalhes. Desapareceram do Colégio Branaff há uns vinte minutos. Fiquei paralisado diante daquela revelação. – O que mais pode me contar? – perguntei em voz baixa. – A escola foi fechada – respondeu Findlay após alguns segundos. – Todos os agentes do Serviço Secreto estão a caminho do Branaff. – Será que as crianças ainda estão no colégio? – A esta altura já teríamos descoberto – disse o agente, balançando a cabeça. – Não há a menor possibilidade de elas estarem lá.
– Alguma ideia de como alguém conseguiria tirá-las da escola? Uma nova pausa. Tive a impressão de que ele pesava as palavras antes de pronunciá-las. Outra coisa que eu ignorava era o fato de Findlay ser o responsável pela segurança de Ethan e Zoe. Aquele detalhe devia estar deixando-o louco. Os filhos do presidente. – Não. Simplesmente aconteceu – respondeu ele. – Há uma passagem subterrânea que liga a casa principal a alguns prédios de serviço. É da época em que aquilo ainda era uma fazenda. Nós mantemos a passagem fechada, mas às vezes alguns alunos entram lá para fumar um cigarro ou dar uns amassos. Acredite em mim: se Ethan e Zoe estiveram naquele túnel, agora não estão mais. O motorista da van já havia sido retirado e agora se encontrava numa maca, com um tubo no nariz e soro na veia. Quando começaram a empurrar a maca até a ambulância, Findlay e eu fomos atrás. Mais uma vez exibi meu distintivo, e ele, suas credenciais. – Ei! – gritou um dos paramédicos quando subimos junto com a vítima. – Vocês não podem... – Vamos acompanhá-lo – falei, já fechando as portas da ambulância e me dirigindo ao motorista: – Pode arrancar, estamos prontos!
capítulo 7
MINHA MENTE NÃO PARAVA de trabalhar. Sentia o coração saltar dentro do peito. Também não conseguia recuperar o fôlego. Os filhos do presidente. O Hospital da Universidade George Washington cava a poucos quarteirões do local do acidente, portanto eu tinha de agir rápido. Enquanto os paramédicos cuidavam de nosso suspeito e comunicavam por rádio a condição do paciente, debrucei-me sobre ele. – Qual é seu nome? Precisei repetir algumas vezes até que ele respondesse. – Ray? – disse finalmente, como se fizesse uma pergunta. – Certo, Ray. Meu nome é Alex. Consegue me ouvir? Ele estava deitado de costas, o olhar xo no teto. Movi o dedo diante de seus olhos para chamar sua atenção. – Você está bem, Ray? O que você tomou? Sua expressão continuava distante. – Um pouco de água – disse após alguns segundos. – Não dê nada a ele! – rosnou um dos paramédicos. – Não vou fazer isso! – respondi. – Beber água é típico de quem consumiu fenciclidina. Bem, isso é o que ele acha que tomou. – Acha? – perguntou o agente Findlay. – Isso ou algo com efeito anestésico. Talvez algum tipo de coquetel – respondi, perguntandome se havia sido ele quem preparara a droga. – Quem é o dono da van, Ray? – perguntei. – Quem meteu você nessa roubada? Há outra pessoa, certo? – Bete – respondeu. – Quinhentas pratas e um pouco de água. – Quinhentas pratas? – repetiu Findlay, prestes a voar em cima do sujeito. – Você tem ideia da enrascada em que se meteu por... 500 pratas!? Mas Ray não ouvia o agente do Serviço Secreto. Olhava ao redor como se tivesse acabado de se dar conta de onde estava. Quando viu o sangue na altura do seu abdômen, seus lábios se crisparam. – O que é isso?! – gritou. – Ray? Ray? – insisti. – Você disse o nome Bete! Quem é Bete? A mulher que o contratou? – Não – disse ele encolhendo-se. – Be-te, Be-te – voltou a falar e os dedos de sua mão esquerda começaram a se mover como se deslizassem sobre as teclas de um piano. Findlay e eu nos entreolhamos. A pessoa que envolvera Ray naquela história sabia o que estava fazendo. Embora a pista que pudesse nos levar até as duas crianças ainda estivesse quente, a única pessoa capaz de nos ajudar estava delirando. Desperdiçávamos um tempo
precioso com aquele sujeito. Era exatamente isso que o sequestrador queria. – Chegamos! – gritou o motorista da ambulância. – Fim do interrogatório! – Os dois paramédicos se posicionaram e suspenderam a maca. – Quem é Bete? – fiz mais uma tentativa. – Responda, Ray! – Be-te-e, Be-te-e – repetiu, tamborilando com um dedo diferente a cada sílaba que emitia. Eu então percebi que o gesto não era de quem tocava as teclas de um piano, mas de alguém que digitava num teclado. Foi quando imaginei outra possibilidade: BTE! – Por acaso é um apelido usado na internet? – perguntei. – Alguém entrou em contato com você pela internet, Ray? – Olhe a frente! A porta traseira da ambulância foi aberta pelo lado de fora. Findlay e eu tivemos de sair para dar passagem à maca. Uma equipe médica já estava a postos, ladeada por uma estranha multidão de ternos escuros. E não era uma multidão qualquer. Findlay parou de repente e por pouco não o derrubei. – Senhor? – disse ele a um dos homens de terno. Ali bem à nossa frente estava o secretário de Segurança Nacional: Phil Ribillini. – Detetive Cross – falou Ribillini com um leve aceno de cabeça. Eu o conhecia da época em que eu trabalhava no FBI e ele no Departamento de Defesa. Mas agora não havia espaço para amenidades. – Precisamos de um depoimento seu imediatamente. Além disso, meu pessoal vai assumir o comando. Não há outro jeito. Trocando em miúdos: eu não poderia mais falar com o motorista da van. A única coisa que me restava era car olhando enquanto a maca de Ray atravessava as portas automáticas e sumia hospital adentro. Mas o pior não era isso. As duas crianças continuavam desaparecidas e o relógio não parava de correr.
capítulo 8
A DRA. HALA AL DOSSARI tinha 29 anos, era magra, atraente, talentosa e sabia a hora certa de brincar. Ainda por cima tinha memória fotográca. Seu marido, Tariq, era dez anos mais velho, gordo e perdidamente apaixonado pela esposa. Pareciam ter todo o motivo do mundo para querer continuar vivos, mas estavam preparados para morrer a qualquer momento. Era essa a sua missão. Hala olhou rapidamente para seu relógio. O casal fora avisado várias vezes sobre os perigos do aeroporto Dulles. A área de desembarque internacional era uma das mais vigiadas do mundo. Além da segurança armada e dos scais da Alfândega, o terminal dispunha de uma equipe bem treinada de agentes de detecção de comportamento. A tarefa daqueles homens era passar os olhos pelos milhares de pessoas que entravam no país e perceber qualquer coisa fora do comum. Uma gota de suor na testa podia tirar um passageiro da la da Imigração. O mesmo valia para olhos que se movessem rápido demais. Ou para passos apressados. Sem falar do risco que era se deparar com um agente mal-humorado. – Estamos quase lá – disse Hala, apertando a mão do marido para tranquilizá-lo. – Falta pouco. Sorria, querido. Os americanos adoram um belo sorriso. – Inshallah! – Tariq, por favor... um sorriso! Só para mostrar os dentes para as câmeras de segurança. Finalmente o homem atendeu aos pedidos da mulher. O sorriso saiu travado, mas não deixava de ser um sorriso. Tudo bem até ali. Mais um ou dois minutos e eles estariam fora de risco. O controle de passaportes foi tranquilo. Ao pegar as malas, tudo transcorreu bem, sem a desagradável sensação de estar num curral. Agora se encaminhavam para a la de vericação das bagagens, a última que precisariam enfrentar antes que pudessem dizer que tinham chegado a Washington. Mas de repente tudo mudou, como se estivessem vivendo um pesadelo em câmera lenta. Na verdade, percebeu Hala, a fila tinha parado de andar. Uma dupla de agentes acenou para que dois passageiros saíssem da la. Era um casal também saudita, vestido com roupas ocidentais. – Os senhores poderiam nos acompanhar, por favor? – Por quê? – perguntou o homem, colocando-se na defensiva. – Não zemos nada de errado. Vamos perder nossos lugares na fila. Hala percebeu que, assim como eles, o homem tinha sotaque najdi. Mas quem eram aquelas pessoas? Seria mera coincidência? Olhou para o rosto preocupado do marido e percebeu que ele se fazia as mesmas perguntas. Será que a missão do casal nos Estados Unidos estava ameaçada antes mesmo de começar?
Outros agentes chegaram ao local. Uma ocial negra e forte segurou o braço da mulher com força. – Farouk! – gritou ela em direção ao marido, antes de berrar com a segurança. – Nos deixe em paz! Tire essa mão imunda de mim! O coração de Hala disparou quando ela olhou para o homem. Ele ia tirar alguma coisa do bolso. Um dos guardas tentou segurar seu braço, mas o saudita o empurrou, derrubando-o no chão. Mais dois agentes avançaram para ele, iniciando uma briga. Um segurança derrubou o homem e pulou em suas costas, mas ele conseguiu se desvencilhar e enou alguma coisa na boca. Foi quando Hala se deu conta: aquilo não era coincidência. Ela também trazia uma cápsula de cianureto no bolso, assim como Tariq. Não importava o que aquele casal tinha feito para despertar as suspeitas das autoridades, os Al Dossari não podiam ajudá-lo. Àquela altura, a única obrigação de Hala e Tariq era evitar que fossem descobertos. E, além de tudo, não serem presos. Não seria difícil sair dali, pensou Hala. Bastaria que ela e o marido mantivessem a calma. Não podiam se esquecer de que a causa vinha em primeiro lugar. A missão deles mudaria o mundo. O destino da Família dependia dos Al Dossari. A missão era a única coisa que importava. Tariq apertou a mão da mulher com mais força. A dele estava encharcada de suor. – Eu te amo, Hala – sussurrou. – Eu te amo muito!
capítulo 9
– O HOMEM ENGOLIU ALGUMA COISA! – gritou um dos seguranças. Ele segurava o saudita enquanto outro agente tentava abrir sua boca. Hala viu o sangue escorrer pelo queixo do homem. O revestimento da cápsula havia se rompido, liberando o conteúdo mortal. O coração dela batia mais forte. Como era médica, conhecia bem os efeitos do cianureto no organismo. Seria uma coisa pavorosa de testemunhar. Além disso, ela também tinha uma cápsula daquelas no bolso. Numa fração de segundo o homem começou a ter convulsões. O tronco se arqueou devagar e as pernas se debateram de um lado para outro. Era uma reação instintiva e inútil. Os batimentos baixavam a níveis alarmantes e o oxigênio não chegava aos órgãos vitais, inclusive aos pulmões. O pânico que aquele homem sentia devia ser desesperador. A jovem esposa caiu aos pés do marido. Uma gota de sangue também escorria em seu queixo. O líquido vermelho agora pingava de seu nariz. – Há alguma coisa errada! – gritou uma agente. – Chamem a emergência. Precisamos de um médico! A segurança do aeroporto tentava manter a calma, mas o pânico já se espalhava pela área de desembarque. Os passageiros começaram a correr até os guichês da Imigração e era possível ver algumas pessoas caindo e sendo pisoteadas. Gritos desesperados ecoavam pelo teto de pédireito alto. Por toda parte se ouviam os ruídos dos aparelhos de rádio. – Tariq? – chamou Hala. Seu marido estava paralisado, ainda que os outros passageiros passassem por eles aos encontrões. – Tariq? Precisamos ir embora. Já! Os olhos dele pareciam grudados no casal que se contorcia no chão. – Poderia ter acontecido conosco – sussurrou ele. – Mas não aconteceu! – retrucou Hala. – Agora mexa-se! Por via das dúvidas, leve a pílula na mão. E fale apenas em inglês até sairmos daqui. Tariq concordou. Era a esposa quem dava a palavra nal. Lentamente ele desviou os olhos dos dois mártires agonizantes. Hala o agarrou pelo braço e começou a andar. Em seguida passou a empurrá-lo, como se estivesse lidando com um animal teimoso. Logo os Al Dossari mergulhavam na multidão. As pessoas não paravam de gritar. Uma menina vomitava num canto. Em alguns segundos eles atravessavam as portas de saída junto a centenas de outros passageiros. Quando se certicaram de que estavam distante dos agentes, guardaram as pílulas de cianureto no bolso. Eles finalmente chegavam aos Estados Unidos.
capítulo 10
FUI PARA O COLÉGIO BRANAFF depois de prestar depoimento no hospital. Liguei para Bree, contei tudo o que havia acontecido e disse que não iria jantar em casa. Ela entendeu, o que é a grande vantagem de ser casado com uma colega de profissão. Uma leira dupla de viaturas da polícia estava parada na Wisconsin Avenue. Aquela devia ser uma das piores cenas de crime que eu tinha visto. A imprensa havia sido isolada por uma barreira de guardas de uniforme azul e avistei um grupo do que pareciam ser pais preocupados e algumas babás ou empregadas domésticas esperando junto ao portão principal. Vi que alguns alunos choravam. Tão cedo não haveria um pronunciamento ocial (se é que alguém falaria), mas isso não impedia que as pessoas especulassem sobre o que tinha acontecido. Eu deniria aquele local como um caos ligeiramente sob controle. Alguma coisa terrível ocorrera ali, mas nenhum de nós sabia ainda sua exata dimensão. – Quero saber as novidades – falei a um dos guardas enleirados na calçada. – Aconteceu algo diferente nessa última hora? – Eu só sei o que pode ser visto daqui – respondeu. – Há alguns homens da Polícia Metropolitana vigiando a rua e o FBI bloqueou todos os acessos à escola. – Quem é o agente responsável pelo Branaff? – perguntei, porém o policial se limitou a balançar a cabeça de modo negativo. – Ninguém pode entrar, detetive, e os únicos a sair são as crianças e os pais. Liberados um a um. Até os professores estão presos lá dentro. Dicilmente o senhor vai conseguir alguma informação. Deixei o guarda trabalhar em paz e tirei meu celular do bolso. Fazia alguns meses que eu servia de ligação entre o Departamento de Polícia e o Grupo de Informações de Campo do FBI. Imaginei que aquilo me daria direito a algum acesso especial. Mas eu estava enganado. Todas as ligações que z para a Diretoria de Informações caíram na caixa postal. O mesmo ocorreu quando tentei me comunicar com Ned Mahoney, um amigo que eu tinha no Bureau. O FBI inteiro devia estar do outro lado das malditas grades do colégio. Talvez até Ned estivesse lá dentro. Aquilo era de enlouquecer. O pior era que eu me preocupava com Ethan e Zoe Coyle, imaginando o sofrimento que eles estavam vivenciando enquanto eu cava ali, gastando minhas energias à toa. As primeiras 24 horas após um sequestro são decisivas e eu não tinha certeza de que o Serviço Secreto tomaria as decisões corretas. Então z o que me restava fazer. Comecei a andar. Talvez não conseguisse entrar no colégio, mas inspecionaria o perímetro da escola, inclusive algumas vias de saída que o sequestrador ou os sequestradores poderiam ter usado. Enquanto andava, não parava de usar o telefone. Liguei para nosso Centro de Informações
de Comando e finalmente consegui me comunicar com alguém: – Sargento O’Mara falando. – Aqui é Alex Cross. Preciso da cópia de alguns vídeos. Quero as imagens das imediações do Colégio Branaff num raio de dois quarteirões. Das cinco às 11 da manhã de hoje. A segurança do metrô de Washington não usa tecnologia de ponta como a do de Londres, mas estamos acima da média em comparação a outras cidades americanas. Há câmeras instaladas em todos os cruzamentos. Talvez uma delas tivesse registrado alguma coisa. – Quer que alguém vá entregar o material quando estiver pronto? – perguntou O’Mara. – Não, eu mesmo passo aí – respondi. – Obrigado. Desliguei o aparelho ao encerrar a ligação. Eu não queria que ninguém me dissesse aonde eu deveria ir. Se tudo desse certo, eu pegaria a cópia dos vídeos, examinaria as imagens em casa e só apareceria no escritório na manhã seguinte. Fazia algum tempo que eu tinha aprendido que é melhor pedir desculpas do que permissão. Talvez eu estivesse me gabando ou mentindo para mim mesmo. Talvez não houvesse nada que eu pudesse fazer que o FBI e o Serviço Secreto já não estivessem fazendo. Mas só eu iria pensar naquilo depois das primeiras 24 horas. De qualquer maneira, por volta das seis eu desisti e fui para casa. Era evidente que ninguém precisava de minha ajuda ali. Não gostei daquilo, mas minha opinião não tinha a menor importância. Os filhos do presidente continuavam desaparecidos.
capítulo 11
SE EU TIVESSE A MÍNIMA NOÇÃO das coisas terríveis que estavam prestes a acontecer, não teria ido ajudar John Sampson naquela noite. Meu melhor amigo e sua esposa Billie faziam parte do comitê que brigava pela criação de mais uma escola experimental em nosso bairro. O evento deveria ser uma simples reunião de caráter informativo, mas os moradores andavam com os ânimos acirrados. Portanto, achei melhor levar reforços: Nana Mama, minha avó de 90 e tantos anos, e Bree, minha esposa, que trabalha como detetive no Departamento de Crimes Hediondos e que tinha sido louca o suficiente para se casar comigo alguns meses antes. Chegamos cedo ao centro comunitário para ajudar na organização. Eu tentava afastar Ethan e Zoe Coyle de meus pensamentos. – Obrigado por fazer isso, amigão. Eu lhe devo essa – disse Sampson, esticando o o do aparelho de som enquanto eu abria as cadeiras dobráveis. – Acho que hoje a coisa vai ficar feia! – Mais feia que sua cara vai ser difícil! – falei, e meu amigo veio para cima de mim. Sampson e eu sempre tivemos esse espírito brincalhão desde os tempos de infância. – E olhe que tentamos manter o foco da discussão! – disse Billie, que surgiu com uma pilha de folhetos para que distribuíssemos à porta. Percebi que, além de agitada, a mulher de meu amigo estava nervosa. Alguns engraçadinhos tinham espalhado boatos maldosos pela vizinhança, aumentando a resistência ao projeto da nova escola. Eu imaginava que a chuva iria afugentar as pessoas, mas às sete da noite o salão estava lotado. John e Billie deram início à reunião, fazendo um discurso sobre os benefícios do projeto: as aulas de reforço em matemática, a importância da leitura e o envolvimento dos pais. Aqueles assuntos deixavam meus amigos empolgados. Eu também começava a me entusiasmar. Anal, um dia meu filho mais novo Ali iria frequentar aquela escola. Mas estávamos falando de Washington, onde ninguém aceita que uma boa ideia contrarie o status quo, portanto o tempo logo fechou. – Já ouvimos essa conversa antes – protestou uma mulher de bermudas e chinelos ao microfone que havia entre as las de cadeiras. Eu me lembrava dela da igreja. – A última coisa que queremos é outro colégio experimental sugando as verbas de nossa escola pública. Ouviram-se vaias e aplausos pela sala, bem como alguns comentários desagradáveis. – Tem razão! – Isso mesmo, caiam na real! – Escola experimental porcaria nenhuma! – O problema – interveio Billie – é que poucas crianças de nosso bairro chegam à universidade. Se conseguirmos lhes proporcionar uma boa educação desde cedo... – A gente devia estar brigando pela reabertura das escolas fechadas, e não pela inauguração de novas! – retrucou a mulher.
– É isso mesmo! – Sente-se! – Sente-se você! Aquela situação era patética. Eu já havia falado duas vezes ao microfone, mas sem chegar a lugar nenhum. Sampson parecia prestes a esmurrar alguém, enquanto Billie dava a impressão de estar à beira das lágrimas. Então senti uma cutucada nas costas. Era Nana. – Me ajude a levantar, Alex. Tenho algo a dizer.
capítulo 12
– ESSA COISA TODA NÃO PARECE bastante familiar? – perguntou Nana após endireitar o corpo na cadeira. – Ou será que só eu enxergo dessa maneira? Ela já havia atraído a atenção das pessoas e, pelo visto, nem precisaria do microfone. Sem dizer que quase todo mundo ali a conhecia. – Até onde sei, isto aqui não é a Câmara dos Deputados nem o Senado Federal – falou. – Estamos numa reunião de moradores em que todos podem expressar diferentes opiniões e ideias, ouvir e talvez chegar a algum consenso. Minha avó foi professora durante 40 anos, portanto eu conseguia imaginá-la diante de uma turma cheia de alunos rebeldes. Algumas pessoas à minha volta balançavam a cabeça em sinal de aprovação. Outras pareciam ainda não saber o que pensar daquela senhora impetuosa. – Acho que um pouco de discussão é compreensível – continuou, batendo a bengala enquanto falava. – Sabemos que promessas não têm valor em Washington e, como a senhora disse, já ouviu essa história antes. Se alguns de vocês estão se sentindo decepcionados, cansados ou seja lá o que for, eu entendo isso perfeitamente. Eu me sinto assim todos os dias. – Mas... – sussurrei no ouvido de Bree. – Mas... – disse Nana, com o dedo em riste – ... com o devido respeito, não estamos aqui para falar de você! Bree apertou meu braço como se tivesse levado um choque. – Estamos aqui para falar dos 88% dos alunos do oitavo ano desta cidade que são fracos em matemática e dos 93% que não sabem ler direito. Noventa e três por cento! Diante desse quadro somos obrigados a tomar uma atitude. Considero isso uma calamidade! – Tem razão, Regina – disse uma voz feminina no fundo da sala. – Portanto, se estão aqui para conversar como adultos, vamos conversar! Mas se vieram aqui para fazer política, tomar partido e tratar de negócios, digo-lhes que há uma cidade aí fora esperando vocês – acrescentou, fazendo uma pausa longa o bastante para que eu me convencesse de que ela estava adorando aquilo. – E a porta está bem ali! Metade da sala caiu na gargalhada, aplaudindo e assobiando. Arrisco dizer que mais da metade batia palmas para minha avó. Em Washington, isso é o que chamamos de progresso. Depois da reunião, Sampson veio até nós e deu um caloroso abraço em Nana, seguido por um beijo no rosto. Chegou a levantá-la do chão por alguns segundos. – Não sei se consegui mudar a opinião de alguém – disse ela, segurando meu braço enquanto saíamos. – Mas pelo menos expressei meu ponto de vista. – Fico feliz por isso – comentou Sampson. – E, cá entre nós, a senhora arrasou! – Arrasou? – disse ela, erguendo o braço e dando um tapa em seu ombro imenso. – Meu filho, você acha que na minha idade eu entro numa discussão para perder? Diante de um argumento daqueles, ninguém quis contestá-la.
capítulo 13
HALA E TARIQ AL DOSSARI se esconderam num quarto encardido do Hotel Wayfarer, aguardando instruções e assistindo às notícias repetitivas sobre o sequestro dos lhos do presidente. Desconavam que o episódio tivesse ligação com a Família. Fosse lá o que estivesse acontecendo, aquilo teria repercussões históricas. – É possível que nosso pessoal tenha capturado esses dois pirralhos – disse Hala. A imagem dos rostos sorridentes dos lhos de Edward Coyle surgiu na tela da TV , mas a mulher não sentiu nada além de desprezo. Ninguém naquele país era inocente. Todos, sem exceção, se beneficiavam da chamada “política externa” americana. – Tenho certeza de que o plano da Família está correto – falou Tariq, que era um homem bom e simplório. – O presidente Coyle tem outras preocupações em mente. Isso é ótimo para nós – disse Hala. – Precisamos comer alguma coisa. Também seria bom tomarmos um pouco de ar. Assim também relaxamos um pouco. Quando ela se levantou da cama, Tariq imediatamente cou de pé. Era Hala quem dava as ordens ali. Na Arábia Saudita, os casamentos ainda eram arranjados entre algumas famílias, como havia acontecido com o casal. Tariq sabia bem o que aconteceria se casse sozinho. Hala era médica e ele não passava de um contador. Ela era bonita, sobretudo para os padrões ocidentais. Já ele era feio e gordo, mas sua mulher o amava e lhe dera dois lindos filhos, Fahd e Aamina. Será que vamos ver nossos lhos novamente?, perguntou-se Tariq. Não era uma indagação que ele se fazia com frequência, mas aquela espera o tirava do sério. A ideia de sair daquele quarto de hotel abafado não era tão ruim assim. As ruas estavam praticamente desertas. Na 12, eles tiveram diculdade de achar alguma comida que prestasse. Passaram diante de lojas de McDonald’s, Pizza Hut, Dunkin’ Donuts e finalmente de um lugar chamado Taco Bell. Qual seria o sabor de um taco? – Aqui só tem fast-food – comentou Hala em tom de escárnio. – Bem-vindo aos Estados Unidos! Estavam sob a marquise de um edifício comercial quando um homem surgiu das sombras. Empunhando uma pistola, rosnou para eles: – Passem a bolsa, a carteira e os relógios. – Por favor, não nos machuque – pediu Hala assustada, cruzando os braços para se proteger. – Vamos passar o dinheiro, mas não nos machuque! – Eu mato vocês dois, seus desgraçados! – gritou o ladrão. Não era comum ver homens assim tão desesperados na Arábia Saudita, pensou ela. Se um criminoso fosse pego em flagrante, teria a mão decepada. – Tudo bem, já entendemos – respondeu Hala. Com uma das mãos, ela lhe passou sua bolsa
de grife falsificada. Com a outra, mirou o spray de pimenta nos olhos do bandido. O rapaz gritou, levando as mãos ao rosto numa tentativa de aliviar a queimação em seus olhos. Mas a dor estava apenas começando. Hala largou o spray e arrancou a arma das mãos dele. Ela estava furiosa. Deu um pontapé na perna do rapaz, que arqueou o tronco e caiu gritando de dor. Hala pulou em cima dele, chutando seu peito com força e quebrando várias costelas. Os movimentos da mulher eram rápidos. Ela não se afastava do corpo do ladrão, que continuou gemendo até Hala golpear seu pescoço. Ela então acertou sua testa e depois o queixo, provocando mais fraturas. – Não mate o rapaz! – disse Tariq, segurando o braço da esposa. – Não se preocupe – retrucou ela, dando um passo atrás. – Um cadáver iria levantar suspeitas. Não devemos chamar atenção. Por enquanto – concluiu, inclinando-se para falar com o agressor: – Mas eu podia matar você tranquilamente! Lembre-se disso da próxima vez que enfiar uma arma na cara de alguém. Deixaram o ladrão gemendo de dor, atravessaram a rua e voltaram direto ao hotel. Anal, não havia ali nenhum lugar decente para comer. Aquele país parecia o deserto: uma enorme área desolada que merecia ser destruída. Era o que iria acontecer em breve.
capítulo 14
NAQUELA TARDE DE DOMINGO, o Centro de Operações Estratégicas do FBI se achava abarrotado de agentes estressados. Uma vigorosa ofensiva estava em curso. Não cabia mais ninguém no quinto andar do Edifício Hoover. Ned Mahoney apoiou o peso do corpo nos saltos de suas botas pretas e tentou avaliar a situação. Sentia o cansaço dominar seu corpo, mas sua mente não parava de funcionar. Era provável que todos naquela sala se sentissem da mesma forma. A julgar pelo relógio digital na parede, Ethan e Zoe Coyle estavam desaparecidos havia 52 horas e 29 minutos. O próprio diretor do FBI, Ron Burns, insistira em car à frente dos trabalhos. Não iria descansar até que as crianças fossem resgatadas. Custe o que custar, dissera ele. Imagens ao vivo do Colégio Branaff passavam nas enormes telas da sala e mapas mostravam uma área num raio de 80 quilômetros de Washington. Em alguns deles se viam pontos vermelhos piscando, embora Mahoney não soubesse o que aquilo signicava. O FBI funcionava da melhor maneira possível, com seus agentes trabalhando no mais absoluto sigilo. O silêncio tomou conta do lugar no momento em que o diretor Burns atravessou as portas, seguido por meia dúzia de assessores com ar inquieto. – Quero um resumo de cada departamento – ordenou ele. – O chefe do Antiterrorismo já chegou? E o do Grupo de Operações? – Aqui, senhor – respondeu Terry Marshall, subchefe de Operações, levantando a mão e dando um passo à frente. Quando ela apontou um pequeno controle remoto para a parede de monitores, Mahoney levou um susto ao ver as fotos de dois corpos numa mesa de autópsia. Eram as imagens dos suicidas do aeroporto Dulles. – Farouk e Rahma Al Zahrani – começou Marshall. – Ambos cidadãos sauditas e formados pela Universidade da Califórnia. Ele era professor no Departamento de Física da Universidade Rei Saud e ela trabalhava numa pequena empresa de comércio exterior em Riad. Sem antecedentes criminais, nenhuma ligação com criminosos ou terroristas e tampouco usavam passaportes falsos. Vericamos duas vezes as listas dos mais procurados do Bureau e o casal não consta em nenhuma delas. O mesmo vale para os demais passageiros do voo. – Sim, mas e daí? – retrucou Burns. Ele tinha acabado de chegar, mas já estava impaciente, fazendo exigências à equipe. O chefão do FBI era conhecido pela extrema rigidez. – Teoricamente os dois casos não têm ligação – continuou Marshall. – Mas o horário da chegada é no mínimo suspeito. O avião dos Al Zahrani pousou na quinta à tarde, aproximadamente 18 horas antes do desaparecimento de Zoe e Ethan. Como ninguém assumiu a responsabilidade pelo sequestro ou pelo suicídio do casal, não podemos descartar a possibilidade de haver uma conexão entre eles. A sala cou em silêncio por alguns segundos. O problema era exatamente aquele: como já haviam passado mais de 48 horas desde o sumiço das crianças, a falta de notícias podia ser um
sinal de que elas tinham sido mortas. – Está bem! O que mais? – perguntou Burns. – E o motorista da van? Matt Salvorsen, responsável pela equipe de campo, tomou o lugar de Marshall na frente da sala. – Até agora o depoimento dele se sustenta – armou Salvorsen, mostrando a cópia de uma habilitação de motorista de Maryland. O documento estava em nome de Ray Pinkney e a foto era a do condutor da van. – Examinamos o computador pessoal de Pinkney e vimos que ele recebeu uma mensagem desse tal “BTE”. O contato ocorreu quatro dias antes do sequestro. – Minha neta de 10 anos poderia ter inventado uma coisa dessas! – provocou Burns. – Claro, senhor – respondeu Salvorsen. – Ainda assim, achamos que o motorista não conseguiria planejar sozinho uma operação tão complexa. Ele é meio... – Obtuso? – Algo por aí, senhor. De qualquer maneira, nossos homens não tiram o olhos dele lá no hospital. Pinkney sabe que fez besteira e temos certeza de que ele está nos dizendo a verdade. – Quem mais conversou com o motorista? – perguntou Burns. – Além dos paramédicos e dos funcionários do hospital. – O agente Clay Findlay, do Serviço Secreto – respondeu Salvorsen. – Ele está de licença temporária. E também o detetive Alex Cross, da Divisão de Casos Especiais da Polícia Metropolitana. Ele conversou com Pinkney antes de o FBI assumir o caso. Mahoney tirou os olhos de suas anotações quando ouviu o nome de Cross e cou surpreso ao perceber que Burns olhava diretamente para ele. – Ned, você conhece bem Alex Cross, não conhece? – Sim, senhor – respondeu. – Ponha ele neste caso, mas sem muito envolvimento. Vamos car de olho no detetive. Não quero a Polícia Metropolitana em nosso caminho. Entendido? Mahoney concordou, esforçando-se para não dizer o que pensava: que Alex merecia mais do que aquilo. – Senhor, Cross ajudou bastante no caso Soneji... – Não quero saber sua opinião. Eu respeito Cross. Mas limite-se a fazer o que eu disse. Não queremos a Polícia Metropolitana envolvida neste caso, e Cross é da Polícia! – disse Burns energicamente. – Sim, senhor. Pode deixar comigo. – Era a única coisa que Mahoney poderia dizer. Boicotem Alex Cross.
capítulo 15
ÀQUELA ALTURA, O IMPETUOSO diretor do FBI já estava ocupado com outros assuntos de sua agenda lotada. Uma assessora de cabelos curtos tinha acabado de entrar na sala e sussurrava algo no ouvido de Burns. Não parecia ser uma boa notícia. Enquanto isso, dois agentes do Serviço Secreto entraram pelos fundos, avançaram pelo corredor central entre as cadeiras e se posicionaram na frente da sala. Mais dois homens surgiram nas laterais. Alguma coisa estava acontecendo. – De pé! – ordenou Burns, e todos se levantaram... no exato instante em que o presidente e a primeira-dama atravessaram a porta. O presidente Coyle parecia exausto, mas disfarçava seu desânimo com um terno azul-escuro e uma gravata cinza. A Sra. Coyle também usava uma roupa adequada à ocasião, mas qualquer um podia perceber a tristeza em seus olhos inchados e nas rugas acentuadas em seu rosto. Meu Deus, pensou Mahoney, deve ser insuportável viver uma tragédia dessas. Seus lhos desapareceram e não há nenhuma pista dos sequestradores. – Sentem-se, por favor – pediu o presidente, esperando que todos tomassem seus lugares. Ele então começou: – Regina e eu viemos aqui agradecer por tudo o que estão fazendo. Naturalmente não estamos falando com a imprensa. Mas, se tiverem alguma pergunta, não me importarei de respondê-la. Estejam à vontade. – Senhor presidente – interveio Burns. – Podemos nos reunir em particular com os chefes dos departamentos e terminar isto o mais rápido possível. Meus homens terão muitas perguntas a fazer. – Muito bem – disse o presidente. – Mas só mais uma coisa. Caminhou até um quadro de avisos, pegou um hidrocor e escreveu uma sequência de dez números. Em seguida meteu a mão no bolso e retirou um pequeno telefone azul. Mahoney ouviu um burburinho tomar conta da sala. Os dois agentes que se encontravam perto do presidente também se entreolharam. Aquela cena era inusitada. O líder da nação não apenas quebrava o protocolo como também desrespeitava os procedimentos de segurança. – Os homens que me acompanham não vão deixar que eu continue com este celular, mas dou minha palavra de que o aparelho vai car com algum agente próximo de mim – disse Coyle. – Se alguém desta equipe tiver uma pergunta delicada a que Regina ou eu possamos responder, ou alguma informação sobre nossos filhos, deve usar esse número. Mahoney nunca tinha visto nenhum outro presidente ter uma atitude daquelas. Era um gesto fora do comum. Ele se perguntava se (ou quando) os responsáveis pela segurança de Coyle iriam pôr fim àquilo e se iriam contar a ele ao tomarem essa providência. Enquanto isso não acontecia, o diretor Burns acatava a ordem e se dirigia a seus subordinados: – Decorem esse número! Esta é a primeira e última vez que vocês o veem por escrito.
Fez um gesto em direção à primeira-dama e todos se levantaram enquanto a comitiva saía pela porta de vidro rumo à menor das salas de reuniões, situada na parte dos fundos do prédio. A visita dos Coyle durou no máximo dois minutos. Mahoney já reetia sobre ela, analisandoa sob diferentes pontos de vista. Sempre há outro ângulo. A ideia de mobilizar os agentes era boa, mas parecia descabida naquelas circunstâncias. Aquele era o homem que levava, literalmente, o mundo para a porta de casa todos os dias. E, no mínimo, aquele não era um dia comum. A segurança devia ser prioridade máxima. Então, por que trazer o presidente até ali sem necessidade? Por que agora? Parte da explicação (a mais fácil, pelo menos) era óbvia. Alguém do alto escalão não estava contando tudo o que sabia ao grupo. Mas o que era aquilo? O que havia mudado? Eles sabiam de alguma coisa? Será que já tinham ideia de quem estava por trás do sequestro? O agente Mahoney nunca desejara subir na hierarquia do FBI, mas isso não impedia sua mente de trabalhar nem diminuía sua curiosidade. Sobre qual assunto o diretor vai conversar com o presidente e a primeira-dama na sala de reuniões?
capítulo 16
– SENHOR, SENHORA, POR FAVOR, queiram se sentar – disse o diretor Burns ao conduzir o presidente e a primeira-dama à comprida mesa de reuniões no centro da sala. Peter Lindley, diretor assistente do FBI, estava fechando as persianas das janelas e das portas. Um único agente do Serviço Secreto cou na sala, enquanto os demais integrantes da comitiva esperavam no corredor. – O que está acontecendo, Ron? – perguntou Edward Coyle, colocando a mão sobre os dedos trêmulos da esposa. – Houve alguma coisa e precisamos saber o que foi. É sério, não estou brincando! Burns, que continuava de pé, resolveu falar: – Primeiro, quero salientar que não podemos dar ouvidos a todas as informações que chegam de fontes desconhecidas. Pela experiência que temos, isso pode ser uma tentativa de desviar nossa atenção ou induzir nossos homens a erro. – Está bem. Agora chega de rodeios e vá direto ao assunto! – ordenou o presidente. O diretor fez um aceno de cabeça para Lindley, que colocou uma pasta sobre a mesa. O diretor assistente a abriu e dela retirou dois sacos de provas lacrados. Assim que a Sra. Coyle viu o estojo preto num dos sacos, ela o arrancou da mão de Lindley. – Isto é de Zoe! Ela comprou em Pequim nas férias! Havia uma folha de papel A4 no outro saco. Agora ela estava devidamente aberta sobre a mesa, mas os vincos em sua borda indicavam os pontos onde tinha sido dobrada. – Isso chegou pelo correio a nosso escritório nos arredores de Washington – disse Burns. – As únicas digitais no estojo são de Zoe. A Sra. Coyle olhou para a caixinha, passando o dedo em seus contornos sob o plástico. A cena era comovente. – O bilhete estava guardado dentro do estojo – continuou Burns. – Não encontramos digitais. Já colhemos uma amostra da tinta para análise. Talvez consigamos descobrir alguma coisa. Posso lhes garantir que nossos esforços e recursos estão exclusivamente concentrados neste caso. – O que eles querem, Ron? Ao contrário da primeira-dama, o presidente continuava impassível. Durante a campanha eleitoral, a frieza de Edward Coyle fora motivo tanto de elogios quanto de críticas. Ainda assim, Burns admirava a força daquele homem. Sabia que nunca reagiria daquela maneira se estivesse numa situação semelhante. Suas duas lhas e sua esposa eram tudo em sua vida; isto quando ele não estava trabalhando. – Sei que é difícil – disse o chefe do FBI ao casal. – Mas ainda não podemos tirar nenhuma conclusão. Naquele instante Burns se deu conta de que estava enrolando o presidente dos Estados
Unidos. Não havia mais nada a fazer senão lhe mostrar o bilhete. Eram duas frases brutalmente sucintas. Não pediremos resgate nem faremos exigências. O preço, Sr. Presidente, é saber que você nunca mais verá seus filhos.
capítulo 17
HALA AL DOSSARI ACORDOU assustada e correu os olhos pelo quarto. Era a quarta manhã consecutiva em que ela demorava a tomar pé da situação. Hotel Wayfarer, Washington. Estados Unidos. Era incômodo acordar no silêncio daquele ambiente estranho. Em seu país eles despertavam diariamente ao som do chamado para as primeiras orações, o adhan, que ressoava das dezenas de mesquitas do bairro. Hala, o marido e os dois filhos queridos. Agora, preocupações como concluir a residência, pensar no cardápio do jantar e comer na companhia de Fahd e Aamina enquanto Tariq trabalhava até tarde pareciam pertencer a outra pessoa. Tudo ia bem até ele começar a voltar da mesquita falando em demônios americanos e na guerra inevitável: coisas que Hala sentia no fundo de seu coração que eram verdadeiras. Ele falava todas as noites que os Estados Unidos eram um câncer que se espalharia pelo mundo se não houvesse uma reação. E ali estavam eles. No Hotel Wayfarer, em Washington. Ela por pouco não matara um homem na noite anterior. Um ladrãozinho que não valia nada. O relógio na mesinha de cabeceira marcava 4h50. Hala saiu de baixo do cobertor barato e pegou o controle remoto da TV . Sentou-se ao pé da cama e começou a zapear com o som no mínimo, para não acordar o marido. O assunto era o mesmo em todos os canais de notícias. O sequestro dos Coyle se tornara uma obsessão nacional, ao passo que os suicídios no aeroporto Dulles nem sequer eram mencionados. Aquilo parecia fazer sentido: o que signicavam dois árabes mortos em comparação a duas crianças americanas, brancas e ricas? Tudo tinha um preço naquele país. Tudo. E aqueles malucos autocentrados ainda se perguntavam por que o restante do mundo os odiava? Hala se questionava se havia alguma relação entre aqueles acontecimentos recentes e a falta de comunicação por parte da Família. Havia quatro dias que eles se alimentavam de comida de lojas de conveniência e estavam escondidos naquele quarto de hotel úmido e deplorável, esperando por um sinal que ela começava a desconfiar que não chegaria. – Hala? – chamou Tariq, mexendo-se atrás dela. – Desligue isso! Você só vai ficar assustada! – É sempre a mesma coisa – comentou a mulher. – A mesma conversa mole em todos os canais, as mesmas imagens... – Eu sei. É por isso que você deve desligar. Venha se deitar, querida. Ela estendeu o controle para desligar a TV , mas parou quando o brilho da tela incidiu sobre algo no chão. Era um pedaço de papel, uma espécie de folheto.
Alguém enfiou um bilhete por baixo da porta durante a noite. Antes de Hala descobrir o que era, sentiu o coração disparar dentro do peito. – O que é isso? – perguntou Tariq. – Quem deixou isso aí? Quando? – É do Museu de História Natural – respondeu ela, aproximando o folheto do abajur da mesinha de cabeceira. – Isto não estava aí antes. Hala desdobrou o papel sobre a cama. Na parte interna, o folheto trazia um mapa das galerias do museu e apresentava as exposições em curso. Era um material disponível a qualquer visitante, sem nenhuma instrução escrita. Para todos os efeitos, eles não estavam em Washington como simples turistas? – Aqui diz que o museu abre às dez da manhã – disse ela. Hala não teve dúvida: o primeiro contato finalmente tinha sido feito.
capítulo 18
ESTAVA DECIDIDO. A missão tinha acabado de começar. Envolvia os lhos do presidente? Bem que poderia... Era estranho que eles estivessem tão perdidos naquela história quanto qualquer pessoa em Washington. Estranho, mas também tinha suas vantagens. A Família lhes passara apenas as informações essenciais para o cumprimento de sua missão. E ponto final. Os Al Dossari saíram do hotel às 9h30 e percorreram a muralha de vidro e concreto da Rua 12 em direção ao National Mall. Passaram por entre as colunas altas da entrada do Museu de História Natural poucos minutos após sua abertura, misturando-se à multidão de turistas estrangeiros e estudantes que abarrotavam as galerias. Estava na hora. Isto é, quase na hora. Durante duas horas o casal vagou num misto de ansiedade e decepção. Hala passava diante de caixas de vidro com criaturas marinhas preservadas, fósseis e artefatos da cultura africana, porém ignorava aqueles objetos. Sua atenção estava voltada para os rostos das pessoas, em busca de algum sinal que lhe indicasse o motivo de estarem ali. A espera era cada vez mais angustiante. E foi na quinta vez que passaram sob a rotunda central do museu que algo chamou a atenção de Hala. Uma jovem de olhos escuros e tatuagem no pescoço encarou-a durante alguns segundos, até desviar o olhar em direção ao enorme elefante que ocupava o espaço entre as duas. Hala parou para observar o paquiderme e tornou a encarar a jovem, que não tirava os olhos dela. Será que era da Família? Ou tudo aquilo não passava de fruto de sua imaginação? – Tariq? – chamou ela. – Já vi – respondeu. – Acho que ela quer conversar. Tariq cou parado enquanto sua mulher andava pela sala sem desgrudar os olhos da desconhecida. Devia ser saudita, mas estava vestida como uma universitária americana: jeans rasgados, bata e tamancos de madeira. Levava no braço uma bolsa de pano colorida, que parecia abarrotada. De livros? Ou carregava uma bomba? Que seria detonada ali? Agora? Quando Hala chegou aos fundos da galeria, a jovem se aproximou: – Com licença, sabe onde fica a sala dos répteis? A pronúncia perfeita chamou a atenção de Hala. Será que a garota havia sido recrutada nos Estados Unidos? Ou não era nada daquilo? A jovem não passava de uma policial disfarçada? – Desculpe – respondeu. – Não sei. Não sou daqui. – Posso dar uma olhada em seu mapa? Quando a jovem apontou para o folheto que Hala tinha trazido do hotel, as dúvidas da médica se dissiparam.
– Claro – respondeu, passando-o para a garota. A jovem o desdobrou em cima de sua bolsa, examinou-o por alguns segundos enquanto um grupo de crianças passava por ela correndo, rindo de algo que ela suspeitava ser as presas do elefante. – Achei! – disse ela, animada. – Sala 2B. Segundo andar. Quando a garota devolveu o mapa, havia dentro dele um objeto chato e rígido, que Hala não tinha visto antes. A médica então percebeu a borda prateada de um disco entre as dobras do papel e sentiu um frio na espinha. – Muitíssimo obrigada – agradeceu a jovem, dando uma entonação ainda mais forte a seu sotaque americano. Abriu um rápido sorriso e foi embora sem olhar para trás. – Não – disse Hala, num volume que só ela conseguiu ouvir. – Obrigada a você. E obrigada a Alá.
capítulo 19
O TRABALHO DA POLÍCIA CONSISTE basicamente em atividades de rotina, sem espaço para surpresas. Mas aquele caso fugia à regra. Alguma coisa estranha estava acontecendo. Não que fosse ruim, mas era no mínimo estranho. Eu jamais havia me deparado com algo parecido. Um dos agentes da unidade de Ned Mahoney me ligou no domingo de manhã e disse que iria me enviar algumas pastas. – Pastas? – perguntei. – Mas... como assim, pastas? – É a transcrição de alguns depoimentos do caso Coyle. Gostaríamos que você desse uma olhada. Após ser excluído de qualquer informação sobre o caso, um pedido daqueles parecia sem sentido e talvez traísse certa desorganização por parte do FBI. Telefonei várias vezes para Ned Mahoney, mas a ligação caía na caixa postal. Não fazia sentido. Se ele tinha me envolvido naquilo, não havia por que me ignorar. Ou será que eu estava ficando paranoico? Quando o mensageiro do Bureau me entregou as pastas, eu imaginava encontrar informações sobre Ray Pinkney, o motorista da van de quem eu arrancara algumas palavras dentro da ambulância. Em vez disso, recebi uma pilha de documentos que me serviriam para interrogar pessoas que já tinham sido interrogadas. Aquilo me levava a crer que eu me tornara um menino de recados do FBI. O que estava acontecendo? – Eles só querem car de olho em você, amigão – disse Sampson no carro, a caminho do primeiro interrogatório. – Seja bem-vindo ao FBI! Agora você está no caso ocialmente. Acho que também estou. Meu amigo estava certo. John sempre teve bom senso e faro apurado, e era por isso que eu o queria por perto. Eu não pedira permissão para levar um colega, mas aquilo era problema meu. – Eu já vi esta mulher na televisão – falou Sampson, examinando os arquivos em seu colo enquanto eu dirigia. – Acho que foi num programa de culinária. – Acho difícil. Mais provável que tenha sido no jornal da noite. Isabelle Morris havia ido dar uma palestra no Colégio Branaff na manhã do sequestro. Era especialista em política americana para o Oriente Médio e tinha cadeira cativa nos grandes telejornais. Aquilo era o bastante para que o FBI a investigasse. Agora cabia a mim conversar com ela. Quando paramos o carro em sua casa de fachada vermelha na Calvert Street, havia uma picape estacionada junto à calçada, com um homem de terno ao volante e um copo enorme da Starbucks sobre o painel. Não reconheci o agente, mas ele nos acenou assim que começamos a subir os degraus da varanda da casa. – Boa sorte – gritou ele.
– Por quê? Vou precisar? – perguntei, mas ele se limitou a forçar um sorriso, balançar a cabeça de modo negativo e voltar a beber seu café.
capítulo 20
– VOCÊ ACREDITA QUE ESSE desgraçado não para de beber aquela porcaria? Quero dizer, ele ca estacionado aí na frente 24 horas por dia! Quando não é esse camarada, é um de seus colegas idiotas. É possível uma coisa dessas? Hein? Com tantos crimes acontecendo por aí, é assim que vocês gastam nosso dinheiro? Por acaso querem me impressionar? Ou acham que vou fugir do país? Essas foram as primeiras palavras que Isabelle Morris nos dirigiu, cuspidas num ritmo frenético, no exato instante em que abriu a porta. Ela era mais baixa do que eu imaginara, no máximo 1,60m. Adorava aparecer falando na TV , mas eu suspeitava que o dom da palavra também se estendia a outras esferas de sua vida. – Sra. Morris, sou o detetive Alex Cross – apresentei-me. – Falamos rapidamente ao telefone. Este é o detetive John Sampson. Podemos entrar e trocar uma palavrinha? Longe dos olhares do FBI? Acho que é melhor, acredite em mim... Ela me encarou por uns segundos, mas logo fez um gesto para que entrássemos. Nós a acompanhamos até uma sala de estar nos fundos da casa, onde havia uma mesa de jantar que dava para um jardim. Um adolescente no sofá não tirava os olhos da TV . Com fones de ouvido, ele estava concentrado num videogame violento e não olhou para nós em momento algum. A Sra. Morris foi até o fogão, apagou a chama sob uma panela que fervia e começou a cortar uma pilha de pimentões vermelhos na bancada da cozinha. Quando percebi que ela estava me ignorando, resolvi me aproximar: – Sra. Morris... – Isabelle – ela corrigiu. – Sei que não somos bem-vindos. Não vou censurá-la por isso. Mas tem ideia de por que o FBI e a polícia estão interessados em você? Ela parou de cortar os pimentões e olhou para o teto. – Hummm, vamos ver... Porque apareço mais na CNN do que na Fox? Porque apoiei a causa palestina nos anos 1990? Ou talvez porque tive coragem de criticar a administração Coyle pelos erros que ela própria admitiu ter cometido no Afeganistão e no Paquistão? Acertei? – De certa forma, sim. Mas nada disso tem a ver com o que nos trouxe até aqui. Gostaria de saber o que a senhora fez na noite anterior ao desaparecimento de Zoe e Ethan e na manhã e na tarde daquele dia. – Hummm... para você perceber as contradições! – rebateu em tom jocoso. – Eu, não – respondi. – Mas outra pessoa. A intenção é essa mesma. – Inacreditável! O FBI e a Polícia Metropolitana não fazem a menor ideia do paradeiro dessas crianças e por isso resolvem iniciar uma caça às bruxas para dizer que estão fazendo alguma coisa. Você se sente à vontade nesse papel? – Eu não vejo dessa forma – respondi. – Acho que você se enquadra em certos critérios do
Bureau, mas acredito que a avaliação que zeram de você parou por aí. Entenda que há duas crianças desaparecidas. Podemos nos concentrar nisso? Ela agora me encarava apertando os olhos, como se eu estivesse fora de foco. Isabelle não esperava ouvir aquelas palavras da boca de um detetive. – Será que já vi você antes? – perguntou. – Talvez na TV? – Provavelmente – respondeu Sampson. – Ele é meio famoso. A mulher abriu um sorriso amarelo. – Eu também sou – retrucou, voltando a cortar os legumes. – Então, por onde devo começar? Você gostaria de saber o que jantei na quinta à noite? Qual é o livro que estou lendo? É só perguntar, detetive. Quero que essas crianças apareçam o mais rápido possível!
capítulo 21
NÃO HAVIA QUALQUER MENÇÃO ao depoimento anterior de Isabelle Morris nos arquivos que eu recebera do FBI, de modo que não era possível armar se existiam versões divergentes de um mesmo fato. Ela nos disse que cou em casa na noite anterior ao sequestro e que saiu por volta das 7h30 da manhã seguinte, indo direto ao Colégio Barnaff e retornando para casa após ser liberada pelo Serviço Secreto. Nada daquilo a eximia de ter alguma relação com o sequestro, mas eu achava que estávamos perdendo tempo com aquela mulher, assim como ela perdia o dela conosco. No caminho de volta, paramos numa casa de empanadas na Rua 16 que Sampson adora. Agradeço a Deus pelo bom funcionamento de meu sistema digestivo. Meu amigo parece ter estômago de avestruz. Ele é assim desde que tínhamos 10 anos de idade. – Então, o que você acha? – perguntou Sampson. – As crianças ainda estão vivas? Olhei para ele. – Se ninguém ainda fez contato, isso é um péssimo sinal. Por outro lado, o FBI e o Serviço Secreto podem estar escondendo alguma coisa. Vamos encarar os fatos: Ethan e Zoe são dois dos alvos mais valiosos do mundo. – Você acha que isso pode ter partido de outro país? Uma ação terrorista? – perguntou Sampson, engolindo metade de uma empanada com uma única mordida. – Não faço ideia – respondi, dando de ombros. – Mas confesso que Gary Soneji não sai da minha cabeça. – Até então, aquele caso tinha sido a mais importante investigação de sequestro da qual eu participara: e o maior fracasso também. – Soneji trabalhava na escola onde sequestrou as crianças – falou Sampson. – Lembro que eles o obrigaram a pegar aquele caso, Alex. E agora parece que é você quem está procurando sarna para se coçar. – É... – falei, olhando rapidamente para as pastas empilhadas no banco de trás. – Só espero que as crianças estejam vivas... John, eu ainda me lembro de quando encontramos o corpo de Michael Goldberg. Não quero voltar a viver aquela situação. Não quero encontrar outra criança morta.
capítulo 22
“ESTEJAM PRONTOS PARA MORRER e sacrificar tudo o que têm. Vida e família.” Aquelas palavras eram mais verdadeiras do que nunca. Às oito da noite de segunda-feira, os Al Dossari chegaram ao Hotel Harmony, na Rua 22. Não levavam nada no bolso: nem armas nem passaportes. Subiram ao terceiro andar pelas escadas dos fundos e bateram duas vezes na porta do quarto 345. Fizeram exatamente como indicado no disco que receberam no Museu de História Natural. Um saudita sorridente e barrigudo logo veio à porta. Estava barbeado e com um boné de um time de beisebol na cabeça. Finalmente um membro da Família. – Entrem, entrem – falou, fechando a porta com um sorriso. – Tudo está pronto. Bemvindos, irmão e irmã. Fez um gesto respeitoso com a cabeça ao apertar a mão de Hala ao mesmo tempo que seus olhos miúdos avaliavam os seios dela. – Tire esse chapéu ridículo! – ordenou Hala, sendo prontamente atendida. A esposa do homem, que era bem mais nova, estendia grandes folhas de plástico transparente sobre a cama de casal. Sorriu para os convidados, mas não abriu a boca sequer para oferecer um copo de água. Hala notou que a jovem tinha seios fartos. “Silicone?” , ela pensou. Um costume ocidental ridículo e perigoso. Várias caixas de papelão estavam amontoadas junto à parede. Devia ser o veneno. Uma boa quantidade dele. Sobre a cômoda se viam duas grandes bolsas de lona vazias e uma pasta preta. Após os cumprimentos, eles se puseram a trabalhar nos preparativos do atentado. Tariq e o homem começaram a retirar o conteúdo das caixas enquanto a jovem entregava a pasta a Hala. – São armas – disse ela, de maneira tímida e nervosa. – Sim, armas. Estamos em guerra com os Estados Unidos. Você não sabia? – debochou a médica. Os objetos estavam perfeitamente acomodados no forro de espuma: uma faca de caça, um garrote, uma arma de eletrochoque e uma pistola. Havia ainda seis pentes com quinze cartuchos cada e um silenciador. Hala retirou a pistola da pasta, mantendo os olhos à frente, tal como havia sido treinada. Pegou um dos pentes, colocou-o no lugar e então encaixou o silenciador na boca da arma. O olhar de Tariq cruzou com o da esposa e ele sorriu. O contador gostava de vê-la segurando uma arma. Admirava a tranquilidade com que ela a manuseava. Hala era o soldado ali, não ele. Além disso, tinha sido treinada para matar. – Isto vai servir – disse ela para si mesma, guardando a pistola na pasta. – Aqui, peguem – falou Tariq, passando um par de luvas e uma máscara de proteção a cada uma das mulheres. – Tenham cuidado – observou Hala ao casal. – Não toquem na pele nem nos olhos. Estou
falando sério. Cuidado foi o que eles tiveram durante as horas seguintes. As duas mulheres cortaram dezenas de retalhos de um tecido no e os arrumaram em leiras sobre a cama. Tariq orientava o homem enquanto os dois retiravam um pó branco e cristalino de grandes vasilhames de plástico e o pesavam, fazendo montinhos da substância no centro de cada pedaço de tecido. Em seguida davam um nó nas pontas dos retalhos, formando volumosas trouxinhas, e as amarravam em fios de náilon transparente. Cada o com dez trouxinhas era acomodado em um pequeno saco plástico e depois colocado dentro de uma das bolsas de lona. Terminaram o trabalho quando passava da meia-noite. Tariq abriu uma janela e levantou a máscara para indicar que os outros podiam fazer o mesmo. Ao tirá-la, o antrião sorriu e bateu no ombro de Tariq: – Irmão, sei que não devo perguntar onde vão usar isso, mas estou curioso. Tariq se limitou a olhar a mão do homem até que ele a retirasse de seu ombro. Hala foi até a cômoda, retirou a pistola da pasta e a apontou para o casal. – Vocês dois, sentem-se! – ordenou. – Ainda não terminamos. Eu mandei vocês se sentarem!
capítulo 23
– EU MANDEI VOCÊS se sentarem! – O que está fazendo? – perguntou o homem gordo, ainda que obedientemente tivesse se sentado na cama. Hala apontava a pistola para entre os olhos dele, os mesmos que tinham passado a noite despindo-a. – Vimos dois irmãos nossos perderem a vida no aeroporto semana passada – disse ela. – Pensei que tivessem feito alguma besteira para terem sido retirados da la. Mas acho que estou enganada. Alguém abriu o bico para os americanos. A Família está sabendo. – Eles acham que fomos nós? – perguntou o homem, incrédulo. – Impossível! Isso é ridículo! – Mas tudo foi esclarecido – Hala se referia ao disco que recebera no museu. – Já sabemos de nossos próximos passos e do que vocês aprontaram desde que chegaram aqui! – Irmã, eu juro! Estávamos colaborando com vocês! – gritou a mulher. – Também fazemos parte da Família. – Mentira! – disse Hala, apontando a pistola para o seio enorme da mulher. – Vocês se prostituíram à causa americana! Traidores! – Não é verdade! – insistiu o homem. – Não... não! O casal estava tão concentrado em suas desculpas que parecia não perceber o que ocorria a seu redor. Tariq tinha levado um dos recipientes de plástico para a pia e começara a misturar uma pequena quantidade do pó branco em dois copos de água. Com a ajuda de uma escova de dentes ele mexia o líquido, formando uma mistura turva. Levou os copos para o casal. – Não façam barulho! – ordenou. – Bebam isto aqui. Tenham ao menos dignidade. Os olhos do anfitrião revelavam um misto de medo e raiva. – E se não quisermos? Vão nos matar? – Acho melhor cooperarem – disse Hala. – Ou a família de vocês vai sofrer as consequências. – Mas isso é um terrível engano! – balbuciou a mulher. – Não zemos nada! Somos éis à causa. – Estou comovida – debochou Hala. – Mas isso já não importa. Vou contar até cinco. – Por favor! – Um... – Eu lhe imploro! Irmã? – Dois... O homem arrancou os dois copos das mãos de Tariq e entregou um à esposa. – Não temos escolha, Sanaa! Pense em Gabir, pense em Siti! – Pense no três – disse Hala, continuando a contagem. Ela não tinha piedade daquelas pessoas. Eram seres desleais e fracos. A missão era muito importante para correr riscos desnecessários.
– Quatro... O antrião levou o copo à boca e tomou a mistura como se fosse uma dose de uísque. Depois suas mãos se juntaram às da esposa, a fim de ajudá-la a fazer o mesmo. Enquanto bebia, a mulher sentia ânsias de vômito, soluçava, mas o líquido leitoso descia-lhe garganta abaixo. Pelo menos em volume suciente. Seus lábios caram róseos e ela começou a ofegar. – Estou morrendo – sussurrou. – Por quê? Por que tenho de morrer? – Assassina! – gritou o marido, olhando com ódio para Hala. – Assassina? Eu?– retrucou Hala, indicando com um gesto o copo vazio. – Eu não matei ninguém, seu idiota! Você está se suicidando! Tariq pegou as duas bolsas de lona e as levou até a porta, enquanto Hala permanecia no mesmo lugar. Ela não sentia prazer em assistir às pessoas morrerem, mas aquilo fazia parte de seu trabalho. A mulher foi a primeira a ter convulsões, o corpo inteiro se debatendo até despencar no chão. O marido, que tinha o dobro de seu tamanho, resistiu por mais tempo. Encarava Hala com os olhos arregalados, mas a médica continuava com uma expressão impassível. Àquela altura, o homem já não contava com o olfato e o paladar. E a visão logo se extinguiria. Depois a audição, quando ele já estivesse perto do fim... – Hala! – disse Tariq levantando a voz. – Acabou! Vamos embora. Por favor, vamos embora! Ela pegou a pasta com as armas e recuou lentamente em direção à porta, sem desgrudar os olhos do casal. Com um último espasmo, o homem tombou para a frente, caiu de bruços no carpete e ficou imóvel ao lado da esposa. – Agora acabou – falou Hala, virando-se para sair. – Acho que tudo correu bem. Estamos melhorando a cada dia, não acha?
capítulo 24
ACORDEI DE MAU HUMOR E IRRITADO, precisando desesperadamente de uma xícara de café, algo que não era comum. Em geral, meu café da manhã se resume a comentar com Nana as tarefas do dia ou discutir alguma besteira publicada nos jornais. E era justamente isto que agora me tirava do sério. Com o Washington Post aberto à minha frente, eu estrebuchava de raiva, lendo que as “autoridades” não tinham nenhuma pista passados quatro dias do sequestro dos Coyle. Quando eu estava na segunda xícara de café, senti uma batidinha no jornal. – Alguma novidade? – perguntou Nana. – Ou está esquentando a cabeça à toa? – Esquentando a cabeça... Mas não quero falar sobre isso – respondi. – Falar sobre o quê? – disse minha lha Jannie, surgindo no corredor. Pude ouvir Ali descer as escadas arrastando sua mochila. O garoto mal entrara na escola. Por que precisava levar tanto material? Devia estar carregando mais de vinte quilos de livros e cadernos! – Ali, levante essa mochila! Não arranhe os degraus da minha escada! – gritei. – Por favor e obrigado! – De nada! – ele berrou de volta, ignorando minha ordem. Damon, meu lho mais velho, estava num internato e eu ainda não havia me acostumado com sua ausência. As manhãs pareciam mais vazias sem a família inteira reunida. – Falar sobre o quê? – perguntou Jannie novamente, dando-me um beijo de bom-dia e apontando para uma foto de Ethan e Zoe no jornal. – Sobre o sequestro? – Desculpe, mas acho que você não anda limpando bem seus ouvidos. – falei rindo. – A propósito, vamos logo com esse café. O ônibus escolar do papai Alex sai em 15 minutos! Jannie fez uma careta às minhas costas e se serviu de um pouco de suco. Voltei ao jornal enquanto Nana preparava um omelete para as crianças. Durante dois minutos não se ouviu um único ruído na cozinha. Eu sentia, porém, que todos olhavam para mim. – Ei, pai? – Jannie quebrou o silêncio. – Sim – respondi, fazendo o possível para me manter calmo. – Os sete anões ligaram. Querem o Zangado de volta. O que eu podia fazer? Ali caiu na gargalhada e fez um gesto de aprovação para a irmã. Ouvi o risinho de Nana junto à pia. Eu sabia que o FBI não tinha o menor respeito por mim, porém quanto à minha família... Mas dane-se, eu tinha o direito de ficar irritado. – Ó Deus, faça com que este homem prenda um bandido hoje! – desejou Nana em voz alta. – Todos podíamos fazer essa prece! – Vou fingir que não ouvi – retruquei, mostrando rapidamente a língua. No momento em que meu humor começava a melhorar, Bree desceu as escadas correndo. Estava com os cabelos desgrenhados, a camiseta amarrotada e os pés descalços. Havia algo de errado.
– Alex! Ligue a TV! Agora! Minha mulher não tem o costume de se deslocar com tamanha rapidez antes da primeira xícara de café, por isso concluí que não devia ser boa coisa. Corri à sala, onde ela já se encontrava diante da TV . Vi um repórter no meio de um gramado, com a vinheta “Ao Vivo” no canto da tela. – O que houve? – perguntei. – Não sei direito – respondeu Bree. – Acho que aconteceu alguma coisa no Reservatório McMillan. Um problema no abastecimento de água.
capítulo 25
AS AUTORIDADES FECHARAM as escolas e Bree cou em casa com Ali e Jannie, enquanto eu corria para o trabalho. A única informação que consegui depois de alguns telefonemas foi a de que as emergências dos hospitais estavam lotadas. As pessoas apresentavam os mesmos sintomas: vômito, visão turva, dificuldade para respirar, desmaios e alguns casos de infarto. Não foi difícil chegar à pior conclusão possível. Washington estava sendo atacada. Mas quem estaria por trás daquilo? Será que tinha ligação com o sequestro dos Coyle? O pesadelo havia se tornado realidade? Essa foi a impressão que tive ao chegar à Central, que cava no Edifício Daly. Carros e ônibus da polícia estavam parados em la dupla diante do prédio, prontos para entrar em ação. Algumas viaturas saíam da garagem e formavam um longo cortejo na rua. Eu nunca tinha visto tantos carros de polícia na vida. Do lado de dentro, policiais e detetives literalmente corriam de um lado para outro. Segui direto para o Centro de Operações Conjuntas. Eu descreveria aquela cena como caos em larga escala. Telefones tocavam sem parar numa única massa sonora. Encontrei dois homens de minha divisão, Jerry Winthrop e Aaron Goetz, num canto, à espera de ordens. – Houve mortes? – perguntei a Jerry. – Está sabendo de alguma coisa? – Não sei, Alex – respondeu, balançando a cabeça. – Como pode ver, isto aqui está uma loucura. Estamos aguardando orientações. Na parte da frente do salão, Ramon Davies, chefe dos detetives, falava ao telefone. Ao lado dele estavam Jocelyn Kilbourn, responsável pelos assuntos de Segurança Nacional na Polícia Metropolitana, e Hector Nunez, do Departamento de Operações Especiais, além de alguns rostos desconhecidos. – Quem são aqueles ali? – O da esquerda é da Agência de Proteção Ambiental – respondeu Jerry. – O do Departamento do Interior se encontra ao lado da porta. E não me pergunte quem está no comando, porque acho que ninguém sabe! Davies desligou o telefone e bateu palmas para chamar a atenção: – Escutem! Recebemos um comunicado do Departamento de Águas sobre a situação no reservatório McMillan. Encontraram indícios de sabotagem numa das adutoras. O que aconteceu lá não foi acidente! – Que tipo de indícios? – gritou alguém. Era justamente o que eu ia perguntar. – O que vou dizer não pode sair desta sala – respondeu Davies após respirar fundo. – Encontraram dispositivos programados para lançar veneno no sistema de abastecimento. Parece que a substância contaminou a região entre a Eastern Avenue e Rock Creek. As outras áreas não foram atingidas. De qualquer maneira, estamos fazendo uma análise da água em vários pontos da cidade. A segurança foi reforçada em todas as estações de tratamento.
Davies passou a palavra a Kilbourn, que apresentou num arquivo de PowerPoint um plano de contingência. Algumas medidas seriam implementadas imediatamente, enquanto outras cariam reservadas a situações excepcionais: interrupção do abastecimento de água, repressão a saques e distúrbios, evacuação dos moradores e toque de recolher. Obviamente, ninguém desejava tomar aquelas medidas. – Não estamos dizendo que essas providências serão necessárias – continuou Kilbourn. – Nem sabemos se estamos lidando com um caso de terrorismo. Mas é fundamental que todos estejam cientes do que pode acontecer. Trocando em miúdos, entrávamos em águas desconhecidas, portanto tínhamos de estar preparados para qualquer eventualidade. A partir do 11 de Setembro, a Polícia Metropolitana começou a se prevenir contra todos os tipos de ameaça, realizando simulações, cursos e treinamentos especiais. Entretanto, nenhum de nós queria reconhecer o fato de haver situações em que a prevenção era inútil. Isso porque nem sequer imaginávamos que elas podiam ocorrer.
capítulo 26
SAÍ DA SALA COM A SENSAÇÃO de que as palavras de Davies e Kilbourn se referiam a um planeta estranho, de que aquilo não tinha a ver com minha cidade. Além disso, a falta de notícias sobre o caso Coyle era angustiante. Eu precisava saber se podia ajudar em alguma coisa e eliminar uma dúvida que me atormentava: havia ligação entre o sequestro dos lhos do presidente e a sabotagem no sistema de abastecimento de água? A hipótese tinha sido levantada pelo FBI e pela CIA. Na realidade, foi uma das primeiras coisas que pensei ao sair de casa pela manhã. Fui até a escada para ter um pouco de silêncio. Liguei então para Ned Mahoney. Como ele não atendeu, segui para o estacionamento, entrei no carro e parti para a pequena casa de Ned em Falls Church. Se ele ia se fazer de difícil, eu precisava parecer irresistível. Eu já tinha ido a algumas festas na casa dele, mas Amy Mahoney tomou um susto ao me ver na varanda de sua casa. – Alex? Houve alguma coisa? – Não, nada – respondi com a maior cara de pau. – Só quero falar com Ned. Amy cou mais aliviada. Ned dirigia a Equipe de Resgate de Reféns em Quantico, portanto sua família inteira vivia em constante tensão. – Entre – disse ela, dando-me um beijo no rosto quando atravessei a porta. – Vou ligar para ele. Fiquei ali na entrada, um pouco sem jeito com aquela situação. Minha atitude não era das mais corretas, mas não havia outro jeito. Amy voltou num minuto com Ned ao telefone: – Oi, sou eu, querido. Alex Cross está aqui em casa. Quer falar com você. Tem um minutinho? Não sei qual foi a resposta de Ned, mas ouvi o tom de sua voz. Estendi a mão para pegar o telefone e Ned ainda esbravejava: – ... um chute na minha bunda! Não preciso lhe dizer... – Ned – falei. – Sou eu. – Alex? – Me desculpe. – Meu Deus, parece que você quer me matar! – A recíproca é verdadeira – rebati. – Agora me diga que você também não está sabendo nada sobre o caso Coyle. Vou acreditar em você. Eu devia estar fazendo outras coisas, Ned! – Sei. Uma delas é ir até a casa dos outros – falou. – A situação em Washington está complicada. As escolas não estão funcionando. É assustador. Sabotaram o reservatório de água! Talvez sejam as mesmas pessoas que sequestraram os filhos do presidente. A princípio ele não falou nada. Depois de alguns segundos foi direto ao assunto: – Não sei o que dizer.
– Não era isso que eu queria ouvir. Me diga alguma coisa, Ned! – Mas o que quer que eu diga? São vários departamentos cuidando de uma única investigação. Duvido que eu esteja mais por dentro que você! Ned e eu nos conhecíamos havia bastante tempo. Já enfrentáramos muitas situações difíceis e sempre dávamos um jeito de ajudar um ao outro, nem que fosse por baixo dos panos. Por isso, era estranho (e também doloroso) ter de implorar sua ajuda. E eu lhe disse isso. Houve uma pausa. Ned respirou fundo do outro lado da linha. Eu me sentia mal com aquela história toda. Falar com ele daquela maneira. Aparecer de repente em sua casa. Usar Amy. – Escute, preciso desligar – falou. – Estou esperando umas ligações. – Ned! – Vá em frente, Alex! – Não desligue! – pedi, mas ele já tinha desligado. Se aquele telefone fosse meu, eu o jogaria longe. Quando me virei, Amy parecia à beira das lágrimas. – Achei que você fosse falar um monte de desaforos para Ned – disse ela. – Não – respondi. – Não se preocupe. Eu só... – comecei. Minha vontade era quebrar qualquer coisa da casa de Ned. Mas por quê? Aonde eu chegaria com uma atitude daquelas? – Eu só quero que aquelas crianças sejam encontradas – desabafei. – Só isso, Amy.
capítulo 27
QUANDO TUDO TIVESSE TERMINADO e fosse um acontecimento distante em seu passado, ele iria escrever um livro enorme sobre aquele episódio. Não seria como as outras pessoas, que prometem que vão escrever e acabam não fazendo. Não. Ele realmente iria escrever. Gravar. “Zoe e Ethan não zeram nada de errado. Eles apenas nasceram na família e na época erradas. A culpa do que está acontecendo é tanto deles quanto minha e de vocês. Talvez seja óbvio, mas alguém precisa fazer o papel de bode expiatório. A História ensinou isso. Qualquer tragédia tem suas consequências.” Parar. Estava gostando do resultado. Tinha um tom solene e verdadeiro. Aos poucos vinha pegando o jeito da coisa. Talvez já tivesse encontrado o título: Bodes expiatórios. Não era ruim, embora ainda preferisse Deixai vir a mim as criancinhas, conforme escrito na Bíblia. Mas ele não precisava decidir agora. O livro ainda nem havia sido escrito. Droga, faltava contar a história, chegar ao m dela! As questões menos importantes se resolveriam por si sós. Por enquanto, ele tinha o começo... e o fim! Gravar. “Comprei três caixinhas de suco por menos de dois dólares num mercado perto de casa. Como eu esperava, foi difícil conseguir o Rohypnol. Mas nada é impossível quando se conhece as pessoas certas. Dois miligramas a cada 12 horas parecem dar conta do recado. Estão dopadas a ponto de eu desconfiar que elas não sabem o que está acontecendo.” Parar. Talvez ninguém ligasse para a parte do mercado, mas dane-se. Uma ta cassete custava barato. Aliás, aquilo não passava de material bruto, que posteriormente sofreria uma seleção. As tas virgens poderiam car no porta-luvas do carro, enquanto as gravadas cariam escondidas num lugar onde ninguém iria encontrá-las. Exatamente como Ethan e Zoe. Àquela altura, o dia ia cando cada vez mais claro. Ele precisava agir... se quisesse voltar ao carro ainda no escuro, o que fez logo em seguida. Guardou no bolso duas das caixinhas de suco que estavam no banco a seu lado. Escolheu as que tinham uma ta adesiva cobrindo o buraco feito com a seringa. Ele já havia tomado a terceira caixinha antes de chegar ali. Seria uma hora de caminhada pela mata e mais uma até em casa se tivesse fôlego. Por sorte estava em excelente forma física. Saiu e tirou do porta-malas o arco e a bolsa de couro com as echas. Faltavam seis semanas para o início da temporada de caça aos cervos, mas por enquanto ele se divertiria com os coelhos e os esquilos. Aliás, caçar era uma bela desculpa para ele ir a um lugar tão distante. Não que as pessoas tivessem o hábito de andar por ali, mas não custava nada tomar cuidado.
Gravar. “Mais uma coisa. O FBI não se pronunciou sobre meu bilhete. Então, só para deixar bem claro, nada disso tem a ver com dinheiro. O sequestro das crianças ou esse livro.” Parar. Gravar. “Vai ser um livro maravilhoso. Não tenho dúvida. Aguardem e leiam.” Parar.
PARTE DOIS
SOPA DE LETRINHAS
capítulo 28
“A TORRE DO MONUMENTO a Washington se eleva majestosamente 170 metros acima do National Mall. Com sua construção terminada em dezembro de 1884, o monumento foi ocialmente dedicado a...” Hala tentou ignorar a baboseira insuportável que saía dos alto-falantes enquanto o ônibus de turismo avançava pela Independence Avenue. Os pneus do veículo pareciam se grudar à rua imunda. Aquela cidade era repulsiva! No entanto, para onde quer que se olhasse, via-se um monumento grosseiro à arrogância e ao poder americanos. Era no mínimo irônico. Ela aprendera a odiar aquele país ao morar nele durante seus estudos. O que Hala concluíra após quatro anos na Universidade Penn? Que os Estados Unidos não passavam da maior experiência fracassada da história da humanidade. – Ao cruzarmos a ponte para Arlington, podemos olhar para trás e ver a Bacia das Marés e o Memorial a Thomas Jefferson... Em vez disso, ela encarou o folheto em seu colo. O papel fora passado por baixo da porta de seu quarto com algumas instruções. Quando o ônibus chegou ao Cemitério Nacional de Arlington, o casal foi obrigado a descer. Finalmente eles haviam chegado. Tariq cou de pé no corredor, mudando o peso do corpo de um pé para outro. Naquela manhã ele estava com um visual estranho, mas não desprovido de charme, composto por um boné de um time de futebol americano que projetava uma sombra em seu rosto barbeado. Hala tinha cortado os cabelos na altura dos ombros e os tingira num tom próximo do castanhoavermelhado. Continuava bonita e até havia gostado do novo penteado. Mas preferiu dispensar o boné. – Tenham cuidado onde pisam e aproveitem a visita ao Cemitério Nacional de Arlington! Desceram do ônibus com os outros turistas e se encaminharam até uma praça diante do centro de informações, um edifício branco de estuque e pedra calcária. A médica examinava o local sem saber o que iria acontecer. Mas em poucos segundos um rosto conhecido surgiu na multidão. Era a jovem do museu. Trazia no ombro a mesma bolsa colorida, com certeza para que Hala a reconhecesse. Não houve rodeios dessa vez. A jovem se aproximou do casal como se os três zessem parte do mesmo grupo. – Olá, pode me emprestar seu mapa? – perguntou ela. – Claro, sem problema. A garota era muito esperta, além de ser bastante corajosa. Ainda que estivesse ao seu lado, Hala não percebeu quando o disco foi retirado da bolsa. Qual seria o alvo dessa vez? Um arranha-céu no centro de Washington? Um prédio do governo? Mais uma instalação de serviços públicos? Eliminar alguma autoridade? Sequestro? – Muito obrigada – agradeceu a jovem.
– Disponha. Tenha um bom dia. Tudo aconteceu muito rápido e discretamente. A garota se limitou a abrir um breve sorriso antes de se virar e ir embora. A missão estava tomando impulso. O entusiasmo durou alguns segundos, até Hala se dirigir ao marido: – Vamos – disse ela, notando que um ônibus de turismo vermelho, branco e azul chegava ao local. Pegou a mão de Tariq e começou a andar na direção contrária. – Aonde estamos indo? – perguntou ele. – Os ônibus param do outro lado. – Vamos procurar um táxi. Se eu entrar naquele ônibus novamente, acabo matando alguém.
capítulo 29
NAQUELES DIAS, MEU CARRO havia se transformado num escritório ambulante. Eu me dividia entre antigas investigações e os interrogatórios do caso Coyle. Sampson me acompanhava na maior parte do tempo, mas às vezes eu agia sozinho, no papel de Matador de Dragões. Eu ainda conseguia me manter informado com o celular grudado ao ouvido: meu Bluetooth tinha quebrado e eu não podia perder tempo indo a uma loja. – Qual foi a conclusão do laboratório? Devem ter descoberto alguma coisa. Eu falava ao telefone com meu colega Jerry Winthrop, que me passava algumas informações sobre a sabotagem no sistema de abastecimento de água. Quando era possível, eu me atualizava pela CNN e pela internet. Até o momento, duas pessoas tinham morrido e a cidade estava à beira do pânico. Naquele dia, Sampson visitava algumas estações de água. – Parece que a adutora do segundo distrito foi contaminada com cianureto – falou. – Não foi essa substância que... – Sim. A mesma que os dois suicidas usaram no aeroporto Dulles. Uma grande coincidência, Alex. – Ninguém assumiu a responsabilidade? – perguntei. – Que eu saiba, não – respondeu Jerry. – Isso está me deixando doido. O FBI não tem passado informação nenhuma! Aquilo era típico. O canal de comunicação entre a Polícia Metropolitana e o FBI parecia funcionar em mão única. Jerry me contou a versão ocial repassada à imprensa: tinha ocorrido um vazamento químico e o problema já havia sido resolvido. Naturalmente, tudo dependia do que se quisesse dizer com a palavra “problema”. Depois de desligar o telefone, parei numa loja de conveniências para mais uma xícara de café. Encontrei um bilhete com a frase Estamos sem café colado a uma das máquinas. Peguei uma Coca e percebi que não havia mais nenhuma garrafa de água mineral nas geladeiras. Quando me dirigi ao balcão, a caixa, que tinha vários piercings espalhados pelo rosto, apontou com o queixo para meu distintivo: – O que está acontecendo, amigão? O mundo está acabando? – Não, longe disso! – respondi com um sorriso afável. – O problema já foi resolvido. A ideia era evitar pânico e fazer com que a população conasse nas autoridades. Mas acho que a preocupação da balconista era idêntica à de milhares de pessoas em Washington. O que virá em seguida? Eu descobriria a resposta dali a dois minutos.
capítulo 30
EU ESTAVA SAINDO COM o carro do estacionamento da loja quando Sampson ligou. – Hospício, aguarde um minutinho – atendi com uma piada. – Alex, está sabendo da última? – Estou. Acabei de falar com Jerry Winthrop. – Ele disse alguma coisa sobre as autópsias? – perguntou John. Aquela palavra fez meu coração congelar dentro do peito. – Do que você está falando? Que autópsias? – Encontraram mais dois corpos. No Hotel Harmony, na Rua 22. Estou indo para lá. Parece que são sauditas. Mas o que Jerry disse? – Nada a ver com seu assunto. Mas continue. O que mais você sabe? – Outro casal do Oriente Médio, além de dois copos vazios no chão. Ninguém está falando em suicídio, mas aposto que os peritos vão encontrar cianureto no local. Encostei o carro junto à calçada. Eu precisava assimilar aquelas últimas informações. Coincidências costumam ser um ótimo ingrediente para uma investigação, mas aquela história cava cada dia mais assustadora e imprevisível. Até onde me lembrava, eu jamais tinha visto um caso parecido. – A coisa está cando séria, Alex – falou Sampson. – Fico pensando no próximo ataque. Não se ele irá ocorrer, mas quando. – Sei como é. – Eu já sentia no ar o medo das pessoas. – A gente se vê no hotel.
capítulo 31
ESTAVA QUENTE E ÚMIDO para 1h30 da madrugada, quente demais para usar um casaco, mas Hala precisava esconder sua pistola. Abriu um pouco o zíper, mas cou na dúvida se aquilo diminuiria o calor que sentia. A saudita queria matar alguém, não importava quem fosse. Não sabia que odiava tanto os americanos. O motivo não era apenas as guerras que realizavam no Oriente Médio ou os governantes fantoches que apoiavam. Ela não se esquecia dos insultos que tinha sofrido quando estudara na Pensilvânia. – Quem teria a ideia de construir uma cidade sobre um pântano? – disse ela. – Pelo menos a noite é mais fresca no deserto. – Você acha que há algo errado? – perguntou Tariq, que não ouvia as indagações da esposa. Ele andava pela calçada enquanto Hala preferia ficar parada. – Eles já vão chegar – respondeu ela. – Não se preocupe. Você não costuma dizer que a Família sabe o que faz? – Sim, e as instruções diziam claramente uma da madrugada. – Eles vão vir. Agora pare. Você está parecendo uma velha! Hala sabia que não era o horário que incomodava o marido. Era o gás sarin. Eles nunca tinham usado aquele material antes, mas falar sobre isso agora não acalmaria Tariq. Felizmente a van Toyota azul parou junto à calçada dali a alguns segundos. A porta lateral se abriu e uma mulher alta e magra acenou para que entrassem. Eles se sentaram no banco traseiro ao lado dela, a porta se fechou e o veículo partiu. A ação não durou mais de 15 segundos. A atmosfera dentro da van era tensa. Além da mulher, havia mais três homens. Na verdade, um homem e dois rapazes, ambos altos e magros e com os mesmos traços angulosos dos dois adultos. Pai, mãe e dois filhos, pensou Hala. Era um grupo interessante. Mas para fazer o quê, exatamente? Todos olhavam para a frente e se mantiveram calados até Tariq romper o silêncio: – Esperamos muito tempo. – Muito bem – ignorou a mãe. – Tomem. Agora coloquem isto. – Passou-lhes dois fones de ouvido com transmissores que deveriam car em seus bolsos. – Usem o canal 12 durante a operação. – Cadê minha maleta? – perguntou Tariq olhando em volta. – Não se preocupe – respondeu a mãe. – Ela está num lugar seguro. – Preciso verificar uma coisa – retrucou ele. – Não vou deixar que você a abra aqui. Faça isso quando chegarmos ao nosso destino. Agora se acalme. Tariq ignorou a atitude agressiva da mulher e pegou a maleta de alumínio reforçado que avistara atrás dele, colocando-a em seu colo. A mão dela cruzou rapidamente o espaço entre
eles e agarrou a garganta de Tariq, jogando-o contra o banco. Hala então sacou sua pistola e a encostou na testa da mulher. – Tire as mãos dele – ordenou. – Eu disse para você não tocar nisso! – falou a mãe, dirigindo-se a Tariq e ignorando Hala. – Acalmem-se! – gritou o pai no banco da frente, enquanto os dois rapazes olhavam espantados para a cena. Tariq permaneceu imóvel, as duas mãos sobre a maleta. – Tire as mãos dele agora – repetiu Hala em tom calmo. – Se ele diz que vai dar uma olhada na maleta, ele vai fazer isso. Estamos aqui pela mesma razão. Não é, irmã? Ela mantinha a pistola apontada, esperando uma resposta. Finalmente a mulher se recostou no banco, lançando um olhar de ódio para Hala. – Assim é melhor – disse a médica. – Use sua raiva a favor da Família. Nossos verdadeiros inimigos estão fora deste carro. – Vá para o inferno! – foi a resposta que ouviu. Era uma pena, pensou Hala. Ali estava uma mulher que ela respeitaria sem problemas. Ela era o tipo de soldado de que o movimento precisava. De qualquer maneira, aquela discussão não atrapalharia o trabalho do grupo. Estava na hora de matar o maior número possível de americanos, deixar uma mensagem inesquecível. Tariq não teve pressa. Liberou as travas da maleta e a abriu com cuidado. Ninguém disse nada quando ele começou a examinar as pequenas latas de metal que havia dentro dela. Quando a van sacolejou ao passar por um buraco na Rua 1, Hala viu a mulher estender a mão para o filho que parecia ser o mais novo. Ela só teme pelos filhos, pensou. É uma boa mãe. Melhor do que eu.
capítulo 32
A VAN PAROU COM UM SOLAVANCO numa estrada de cascalho. O motorista estava nitidamente nervoso. À direita, um arbusto enorme os escondia do tráfego na New York Avenue. À esquerda, Hala avistou um pátio de manobras do outro lado de um alambrado. Dezenas de vagões de metrô se enfileiravam sobre os trilhos. Os alvos daquela noite. Tariq não tirava a mão da maleta. A mãe, o pai e o lho mais novo se dirigiram até a parte traseira da van e retiraram um volume do porta-malas. O rapaz mais velho partiu com o carro para vigiar as redondezas. Hala seguiu na direção oeste, até uma passarela que cruzava o pátio de manobras. Andou cerca de trinta metros e subiu a escada em caracol. Quando chegou no alto, viu que toda a área era cercada por alambrados. Era possível ter uma vista perfeita dali de cima. – Está limpo – disse ela baixinho pelo rádio, após olhar em todas as direções. Alguns minutos se passaram até que os outros surgissem. Andando próximo aos trilhos, eles pareciam sombras se locomovendo entre as leiras de vagões, onde logo sumiram. Gás sarin, pensou Hala. É inacreditável. O mundo inteiro vai ficar sabendo disso. Os minutos começaram a se arrastar. Nenhuma palavra havia sido dita sobre o tempo necessário para a preparação do material. A médica conseguia ouvir a respiração dos membros do grupo trabalhando, mas eles evitavam conversar. Os olhos dela não paravam: vasculhavam o pátio até a Brentwood Road e a Rua T , voltavam até a estrada de cascalho e seguiam até a New York Avenue. Não era difícil se manter alerta, pois a adrenalina corria pelas suas veias. Por isso, quando a viatura da polícia apareceu, Hala imediatamente a viu. O veículo avançou devagar pela estrada de cascalho e parou não muito longe de onde eles haviam descido da van. – Temos um problema – disse ela pelo rádio.
capítulo 33
– POLÍCIA NO ALAMBRADO SUL. Uma viatura – sussurrou Hala. – Fiquem em suas posições. Estou de olho neles. Posso neutralizá-los a qualquer momento. A porta do lado do passageiro se abriu e um vulto desceu do carro. Ela enou o cano da pistola através da grade da passarela e apontou para o policial. Se Hala quisesse, ele estaria morto numa fração de segundo. Mas ainda não era hora. Quando o homem se dirigiu ao alambrado, ela sentiu uma descarga de adrenalina atravessar seu corpo. Seu sangue parecia ferver nas veias. Queria matá-lo. O policial parou e examinou a área. Seu olhar era tão aleatório quanto o de um turista. Ele então se inclinou para a frente. Quando Hala viu um jorro saindo em arco do corpo do homem, quase começou a rir. – Fiquem em seus lugares. O idiota está fazendo xixi. Assim que o policial se virou para ir embora, seu parceiro gritou do carro. Ele então se voltou para o pátio de manobras. Uma lanterna apareceu em sua mão. Apontou o facho para os trilhos e avistou um corpo em movimento. Era o rapaz mais novo, que recuou para ficar fora do campo de visão do policial. Imbecil! Amador! Ela então fez três disparos rápidos. A lanterna caiu primeiro, seguida pelo homem. Hala cou satisfeita com a precisão de sua mira. Aquilo era um treino excelente. – Todo mundo fora! – ordenou ela pelo rádio. – Levem a van para o outro lado. Agora! Uma luz forte iluminou o rosto de Hala. Era o holofote que cava na lateral da viatura. Ela disparou duas vezes contra o carro. Ouviu-se um estouro e a noite voltou a mergulhar na escuridão. Por alguns segundos a médica não viu nada, ouvindo apenas o segundo policial dizer alguma coisa. Ele pedia reforços pelo rádio enquanto corria em direção ao parceiro. Seu parceiro morto, Hala não tinha dúvida. – Houve disparos! Policial atingido! Precisamos de reforços no pátio de Brentwood! Repito: policial atingido! Seguiu-se o som de passos pesados na escada de metal da passarela. Hora de fugir. Hora de todo mundo cair fora. O restante da equipe avançava com diculdade até o ponto onde seriam recolhidos, falando uns aos outros em tom ofegante, frenético. Hala estava concentrada em chegar ao outro lado da passarela. Ouviu novamente a voz do policial, agora às suas costas: – Pare! Ela não obedeceu. Uma bala ricocheteou no alambrado acima de seu ombro. Não havia saída a não ser seguir em frente. A menos que... Ela parou, girou 180 graus, jogou-se no chão e atirou. Tudo cou escuro durante dois longuíssimos segundos. Então o segundo policial caiu no chão.
Morto? Provavelmente. Ela não costumava errar. Por isso a arma cava em seu poder. Levantou-se e voltou a correr. Chegou ao outro lado da escada e quase saltou por cima do parapeito. Sentia orgulho de si mesma. Ela era boa naquilo, muito rápida e esperta. – Esperem! – gritou Tariq pelo rádio, examinando a área à procura da esposa. – Espere você – disse a outra mulher do grupo. – Estamos indo. Quando Hala chegou à calçada, a van partia em alta velocidade, a porta lateral ainda aberta. Um táxi deu uma guinada para evitar uma batida. A van não diminuiu, dobrando à esquerda, avançando o sinal vermelho e sumindo na noite. Tariq continuava no mesmo lugar, olhando ao redor, agitadíssimo. Ele parecia perdido. – Estou aqui – disse Hala. – À sua esquerda. Venha para a mamãe. Ele correu em sua direção e o casal se encontrou no meio da calçada. – O que vamos fazer? – perguntou o contador. – Eles nos abandonaram, Hala! O som das sirenes da polícia era cada vez mais alto. O casal não tinha dinheiro para táxi nem para o metrô que logo voltaria a funcionar. Se a van fosse apreendida, o hotel seria um destino perigoso. Mas ainda existia um lugar. Por uma questão de segurança, Hala não devia saber de sua existência, mas não havia como ignorar aquele fato. A questão era como chegar até lá. Ela estava perdida na capital de seu grande inimigo. Não sabia que direção tomar. Mas não podiam ficar ali parados. – Por aqui – disse ela, escolhendo um caminho. Eles dariam um jeito de se safar. – Corra o mais rápido que puder e venha atrás de mim – ordenou. Cuidarei de você como sempre faço, meu amor.
capítulo 34
MEU TELEFONE NÃO COSTUMA tocar no meio da madrugada, mas creio que isso vinha acontecendo com frequência naqueles dias. – Alex Cross – atendi, ouvindo um estalo seguido por dois bipes curtos. Aquilo indicava uma ligação feita através de uma linha à prova de grampos. Quem poderia ser? – Detetive Cross, aqui é Diana Chow, da Diretoria de Inteligência da CIA. Desculpe por ligar a esta hora, mas gostaria que você participasse de uma reunião aqui no Centro de Antiterrorismo em Langley. Eu me levantei de pronto. O que teria acontecido agora? Por que a CIA resolvera se meter naquela confusão? A propósito, o que eu tinha a ver com isso? – Pode adiantar o assunto? – perguntei, ainda esfregando os olhos de sono. – Isso ajudaria bastante. – Não estou autorizada a discutir nenhum detalhe. Vai ser informado de tudo ao chegar aqui. – Quando é a reunião? – perguntei, vendo que o relógio marcava quatro em ponto. – Combinamos nos encontrar às 5h30. Posso dizer a eles que você vem? Eu não fazia ideia de quem eram “eles”. – Pode dizer. Estarei aí – respondi. – Mais uma coisa. O assunto é condencial, portanto não comente nada com ninguém, sob pena de lei federal. – Claro – respondi, desligando em seguida. Pensei em ligar para Bree, que naqueles dias trabalhava no turno da noite e talvez me ajudasse a entender aqueles últimos acontecimentos. Mas reconsiderei a situação. Se eu estava recebendo um telefonema da diretoria da CIA mencionando assuntos condenciais, havia uma grande chance de meu telefone estar grampeado. Vesti-me depressa e saí de casa ainda no escuro.
capítulo 35
EM COMPARAÇÃO COM O TRÂNSITO habitual, o caminho até o quartel-general da CIA foi percorrido num piscar de olhos. Escutei pelo rádio que policiais tinham sido mortos durante a noite no pátio de manobras de Brentwood. Seria aquele o motivo de minha convocação a Langley? Eu duvidava. Imaginei logo o pior. Mas o que será que eles sabiam e eu não? Odiava aquele tipo de mistério. Bree chegaria em casa exausta e ainda iria se preocupar comigo. Eu sentia uma saudade enorme de minha mulher. Era um sentimento gostoso, mas que às vezes doía demais. Um segurança veio ao meu encontro na entrada principal. Conduziu-me a uma das melhores salas de reuniões no sexto andar, onde a maioria das 24 cadeiras de couro com encosto alto já estava ocupada. Reconheci algumas pessoas em volta da mesa e uma delas era Ned Mahoney. Veio até mim e apertou minha mão. Um gesto bastante formal de sua parte. – Alex, é muito bom ver você – falou. – Sinceramente, esta tem sido a semana mais doida da minha vida. Eu não o via desde o começo daquela confusão. Não podia esconder que ainda sentia um pouco de raiva dele. Mas de que adiantava? Ned era meu amigo. – Sabe por que fomos convocados? – perguntei em tom amigável. – Não, mas escute – disse ele, virando-me de maneira que ambos cássemos diante da parede de vidro que dava para o estacionamento de visitantes e, mais além, para uma linda oresta. O sol começava a despontar acima das montanhas. – Quero pedir desculpas por envolvê-lo nesta confusão – falou Ned com a voz tranquila, porém em ritmo acelerado. – Não fui eu que o convoquei, mas a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. – Não se preocupe – falei. – Eu me preocupo. Considero-o um excelente prossional, Alex. Além de ser um grande amigo. Não quero perder nem um nem outro. Tudo bem? – Tudo. Então assine um cheque em branco para mim – brinquei. Ele sorriu e tive certeza de que nossa crise era coisa do passado. – Gostei que você tenha vindo – falou. – Cheguei a duvidar que eles levassem meu pedido a sério. – Que pedido? – De incluí-lo no círculo das grandes decisões. Antes que eu tivesse tempo de dizer qualquer coisa, uma voz às nossas costas abriu a reunião. – Bom dia a todos. Para quem ainda não me conhece, sou Evan Stroud, chefe da Diretoria de Inteligência. Ned e eu nos sentamos à cabeceira da mesa. Eu me lembrava do rosto de Stroud da TV . Ele tinha aparecido rapidamente nos jornais no início das investigações, quatro semanas antes.
– Se vocês estão aqui é porque receberam autorização de seus superiores – continuou. – Vale ressaltar que os assuntos tratados nesta sala carão restritos a ela. Nas pastas à sua frente irão encontrar um termo de condencialidade. É necessário que vocês o assinem antes de irem embora. Stroud fez todas as apresentações. Fiquei impressionado ao perceber que ele sabia de cor o nome e o cargo de cada uma das pessoas ali presentes. Aquela sala era uma verdadeira sopa de letrinhas: CIA, FBI, NSA e DPM. Havia ainda analistas antiterrorismo, agentes do Serviço Secreto e da Segurança Nacional, além de um representante do Serviço Clandestino, recémchegado de Riad e com um ar exausto. Ao terminar seu discurso, Stroud se sentou e gesticulou para o analista à sua direita. – Vamos começar – disse ele antes de passar a palavra. – Temos coisa de mais para uma única manhã. Olhei para Mahoney e levantei as sobrancelhas. Aquela era uma reunião de grande importância. Ned movimentou os lábios, articulou a palavra “círculo” e apontou para mim. Sim, eu não tinha dúvida. Eu agora fazia parte do círculo que tomava as grandes decisões.
capítulo 36
– APROXIMADAMENTE ÀS TRÊS HORAS da madrugada de hoje, dois ociais da Polícia Metropolitana de Washington foram mortos no pátio de manobras de Brentwood, na região noroeste da cidade – começou o analista. Não era fácil ouvir aquilo pela segunda vez. Os dois policiais tinham família. Eu não os conhecia pessoalmente, mas isso pouco importava. Quando um colega morre em serviço, você fica mal. – Havia alguns suspeitos no pátio e todos conseguiram escapar. Mas encontramos dez quilos de explosivo plástico e seis latas de gás sarin. As latas já tinham sido colocadas nos dutos de ar condicionado dos vagões. Tive a sensação de levar um soco na boca do estômago. Era possível fazer um estrago com aquela quantidade de material. Um quilo de explosivo plástico é capaz de derrubar um arranha-céu, enquanto o gás sarin é letal em qualquer concentração. Àquela altura, a compostura na sala de reuniões já tinha ido para o espaço. Conversas paralelas surgiam em volta da mesa e as perguntas eram feitas aos berros. – Já sabemos quem é o responsável por esse ataque? – perguntou um dos homens da NSA. Entre todos ali reunidos, ele era o mais alto e o dono da voz mais potente. – Sim – respondeu o analista, olhando para seu colega de Riad do outro lado da mesa. – Quer dizer alguma coisa? O homem se chamava Andrew Fatany. Estava visivelmente irritado e com a barba por fazer. Quando se levantou para falar, sua voz saiu num tom assustadoramente rouco: – Posso adiantar algumas coisas – começou Fatany. – Temos informações conáveis da existência de uma nova organização terrorista com base na Arábia Saudita. Uma célula desse grupo se inltrou em Washington, mas ainda não temos uma prova concreta disso. Sabemos que é uma organização perigosa que recebe considerável apoio financeiro. Parecia que o oxigênio tinha sido sugado da sala. Ninguém dizia uma única palavra, limitando-se a ouvir as declarações de Andrew. – Nosso contato na Inteligência saudita disse que o governo sabe da existência do grupo, mas ignora qualquer atividade dentro do próprio país. Em vista disso, transferimos vários agentes da embaixada de Riad para o sul do país, onde suspeitamos que a Al Ayla esteja treinando seu pessoal para enviá-lo aos Estados Unidos. Isso inclui Washington e talvez Nova York e Los Angeles. – Al Ayla? – repetiu Stroud, dirigindo-se a Fatany. – Perdão – disse o ocial, percebendo alguns sorrisos complacentes enquanto tomava um demorado gole de café. – Al Ayla é o suposto nome da organização, que significa “a Família”. – O que talvez tenha alguma relação com o uso de casais nos ataques – interveio o primeiro analista. – Mas pode ser coincidência.
– Sinceramente, acho que não – disse Fatany em voz baixa. – Com licença – Ned levantou a mão. – Não quero atropelar a vez de ninguém, mas por acaso sabemos alguma coisa sobre os objetivos maiores da Al Ayla? Os possíveis alvos, a ideologia do grupo? Algo que possa ser útil a nós que trabalhamos na linha de frente? Os dois analistas olharam para a cabeceira da mesa. – Não – respondeu Stroud por eles. – Ainda não – acrescentou, dando um tapinha na mesa para indicar que as explicações sobre a Al Ayla tinham chegado ao m. – Mas temos uma importante informação que pode ser útil. É sobre Ethan e Zoe Coyle.
capítulo 37
FOI A VEZ DE PETER LINDLEY, diretor assistente do FBI, tomar a palavra: – Recebemos um segundo pacote dos supostos sequestradores de Ethan e Zoe. Estamos falando de alguém que teve ou tem acesso às crianças desde que foram levadas das dependências do colégio. Aquelas informações eram inéditas para mim. Dois pacotes. Que pacotes? Eu não devia ser o único naquela mesa a pegar o bonde andando. Percebi um ar de inquietação tomar conta da sala. – O primeiro chegou há alguns dias – disse Lindley, retirando duas fotos de 20x25cm de uma pasta e as fazendo circular em volta da mesa. – O estojo preto na primeira imagem pertence a Zoe. O bilhete na segunda estava dobrado dentro dele. Seguiu-se um silêncio respeitoso enquanto as fotos passavam de mão em mão. Quando li o que estava escrito no bilhete, entendi o motivo de ninguém falar nada. Não pediremos resgate nem faremos exigências. O preço, Sr. Presidente, é saber que você nunca mais verá seus filhos. Era impossível ler aquela mensagem e não sentir compaixão pelas vítimas: as crianças e os pais. Eu costumava levar aquele tipo de coisa para o lado pessoal, como se minha própria família estivesse envolvida. É minha força e também minha fraqueza. – E ontem recebemos isto – continuou Lindley, circulando mais duas fotos. – Fizemos o exame de DNA, que confirmou que as peças pertencem a Ethan e Zoe respectivamente. As novas imagens eram de uma camiseta branca de menino e um par de botas vermelhas de sola grossa que uma garota como Zoe usaria na escola. – Já descobriram alguma coisa? – alguém perguntou. – Na verdade eu ia pedir a opinião do detetive Cross – falou Lindley. Todos se voltaram para mim e provavelmente viram a expressão de surpresa em meu rosto. – Sei que ainda não participou ativamente deste caso e tampouco tenho a intenção de constrangê-lo. – Tudo bem – retruquei. Ao menos agora eu sabia por que tinha sido convocado. Era difícil encontrar em Washington outro detetive que tivesse traçado tantos pers criminais para o FBI quanto eu. As fotograas voltaram às minhas mãos e as analisei como parte de um único quebra-cabeça. – Querem saber o que acho? – perguntei. – O bilhete não deixa dúvidas. O sequestrador não quer resgate nem nada parecido. Por isso, cabe a pergunta: Por que enviar o segundo pacote? – Para nos despistar? – concluiu sabiamente um espertalhão do FBI. – Contar vantagem? Mostrar superioridade? – Você não deixa de ter razão – respondi. – Mas há um elemento pessoal. O bilhete é dirigido ao presidente. Ele é mencionado no bilhete. Se alguém tinha a intenção de fazê-lo sofrer, a melhor maneira seria retardar ao máximo a busca das crianças.
– Um momento – interveio Stroud. – Quando arma que há um elemento pessoal envolvido, está sugerindo que se trata também de um ato individual? Uma vingança contra o presidente? Pensei por alguns segundos antes de responder à pergunta, mas não mudei de opinião: – Se quer saber o que eu acho, sim, trata-se de um ato pessoal. Mas, para efeito de raciocínio, o terrorismo também pode ser uma coisa pessoal, mesmo em nome de uma causa maior. – Especialmente em nome de uma causa maior – interveio Fatany. – Esses desgraçados acreditam que estão fazendo algo pessoal. Como já vimos, eles desejam a morte. Lindley ia mudar de assunto quando me lembrei de um detalhe: – Sei que está além de minhas atribuições, mas sugiro manter o presidente longe do público. Se é que isso já não foi feito... – Por quê? – perguntou Stroud, embora eu desconfiasse que ele soubesse a resposta. – Se eu estiver certo, isso elimina a principal motivação dos sequestradores, que é testemunhar o presidente lidando com esse problema. Talvez seja isso que eles querem. Humilhar o presidente americano perante a opinião pública internacional. – O presidente e a primeira-dama estão em lugar seguro – disse um dos homens do Serviço Secreto. – Levaremos em conta o conselho do detetive Cross, mas qualquer decisão quanto a esse... Naquele exato instante uma voz familiar tomou conta da sala: – Com licença, mas eu gostaria de dizer uma coisa. A voz saía de alto-falantes na parede, no teto ou talvez na própria mesa. Eu não sabia dizer. Mas não havia dúvida quanto a quem ela pertencia. O presidente Coyle estava ali conosco e pelo visto iria fazer uma declaração.
capítulo 38
DUAS GRANDES TELAS SE ILUMINARAM nos extremos da sala. O presidente Edward Coyle então surgiu diante de nós, sentado a uma escrivaninha, com cortinas azuis ao fundo. Até onde eu sabia, o lugar onde ele estava era um cenário, de modo que ninguém desconasse do paradeiro do presidente. Ainda assim, uma onda de calafrio percorreu meu corpo. O mesmo deve ter acontecido com as outras pessoas na sala. – Estamos ouvindo, senhor – disse Stroud. – Pode continuar. Coyle parecia exausto, o rosto abatido. Havia uma tristeza em seus olhos que eu jamais vira antes. Tive a impressão de que ele não planejara se dirigir ao nosso grupo. – Primeiro vou dizer o óbvio – começou. – Tenho duas obrigações diferentes e separadas. Uma é com Ethan e Zoe, a outra é com nosso país. Não sabemos até que ponto essas duas obrigações estão entrelaçadas. Mas sei que, pelos indícios que temos e de acordo com a melhor assessoria de que posso dispor, nossa capital está sofrendo um ataque. O presidente estava nitidamente concentrado em suas palavras. A imagem de um homem no olho do furacão me veio à mente enquanto eu olhava para ele. Era um sujeito forte e não havia sido por acaso que atingira aquela posição. – Não estou dizendo que chegamos a um momento crítico em que preciso fazer a escolha entre meus filhos e a segurança de nosso país. – De modo algum, senhor – interveio Stroud. O presidente levantou a mão indicando que não queria ser interrompido. – Mas preciso esclarecer uma coisa. Respeito todas as opiniões expressas nessa sala, mas não hesitarei um segundo se precisar mostrar meu rosto para liderar meu país durante esta crise. – Senhor... – É tudo o que tenho a dizer. Agora continuem – disse ele. – Evan, aguardo novas informações às dez horas. A essa altura terei voltado para casa. – Sim, senhor – retrucou Stroud. Ouviram-se alguns agradecimentos ao presidente antes que as telas se apagassem. Edward Coyle tinha dito tudo o que precisava dizer. Consultei meu relógio. Parecia inacreditável, mas ainda eram 6h05. Bree devia estar saindo do trabalho enquanto as crianças acordavam para ir à escola após um dia sem aula. Ao que tudo indicava, o presidente e a primeira-dama iriam voltar para a Casa Branca. Enquanto isso, as famílias dos dois policiais assassinados teriam de começar a reconstruir suas vidas naquela manhã. Um novo dia começava em Washington, mas nenhum de nós (aqueles que deveriam proteger a cidade) tinha a menor ideia do que ele nos reservava.
capítulo 39
COMO SEMPRE ACONTECIA, Hala foi a primeira a acordar. Mas ela sentiu que algo estava diferente. Na realidade, a médica teve certeza de que alguma coisa mudara. Teria sido para melhor? Era o som do adhan, o som do lar que tocava em algum lugar próximo. Levantou a cabeça para ver onde estava. Tariq ainda dormia na cama de armar ao lado da sua. Avistou prateleiras com papel-toalha e papel higiênico, os itens mais corriqueiros possíveis, no espaço acima do leito dele. Onde estamos? Hala ainda vestia as mesmas roupas da noite anterior, que estavam amarrotadas nas partes que se molharam de suor e voltaram a secar. Que distância eles tinham percorrido? Aquela noite parecia que não ia acabar nunca. Mas ali estavam eles. Por enquanto a salvo num novo esconderijo. – Tariq? – chamou, esticando as pernas para fora da cama. O quarto estava abafado e a sensação de pisar no cimento frio era agradável. – Acorde, Tariq. Tariq! Os olhos do homem se abriram e ele imediatamente se sentou na cama. – O que foi? Aconteceu alguma coisa? A polícia está aí? – Não é nada disso – respondeu ela. – Quero dizer, acho que não. Eles não deviam estar ali. Um amigo no acampamento perto de Najran tinha dado a ela o nome da mesquita. Apenas em caso de extrema necessidade, dissera ele. E usem a porta dos fundos. Até a noite anterior, Hala não tinha comentado com o marido sobre aquele local. Estava escuro quando eles chegaram e não havia iluminação. Agora, a primeira luz da manhã atravessava a única janela e revelava detalhes que ela não vira antes. Ficou na dúvida se estavam num depósito, já que havia caixas de papel e materiais de escritório. Avistou alguns enlatados e um enorme púlpito de madeira, que pendia para um lado como um velho que precisa de uma bengala. Mas o que era aquilo? Hala viu que seus pertences tinham sido trazidos do hotel. As duas malas, o laptop de Tariq e a pasta preta com as armas estavam empilhados junto à única porta do cômodo. – Será que é perigoso darmos uma volta por aí? – perguntou Tariq. – Acho que não. Vou dar uma olhada. Ela se levantou. Finalmente poderiam trocar de roupa. Hala estava no meio do quarto quando a porta se abriu. Será que foram vigiados durante a noite? Uma mulher corpulenta de meia-idade entrou e se dirigiu a eles em árabe: – Vocês acordaram. Ótimo. Trouxemos suas bagagens para cá. Ela trazia uma bacia com água quente e carregava no ombro duas toalhas de mão e o que parecia ser um véu islâmico de seda para Hala. Roupas que ela usava em seu país natal. – Assim que estiverem prontos, venham tomar café com ele – disse ela. – Vou esperar aqui
fora. – Me desculpe – interrompeu Hala. – Tomar café com quem? A mulher parou, mas seus gestos se resumiram a olhar para o casal como se o avaliasse mais uma vez. – Não demorem – falou. – Ele está esperando.
capítulo 40
O CASAL FOI CONDUZIDO PELOS fundos da mesquita, que ainda estava mergulhada em sombras. Através das paredes, Hala ouvia uma oração enquanto avançava rapidamente, levando os sapatos nas mãos. A zeladora, ou quem quer que ela fosse, parou diante de uma porta alta e entalhada e lhes deu passagem, mas não os acompanhou. O café da manhã já estava servido. – Irmão, irmã – saudou-os o homem à mesa, também em árabe. – Aproximem-se e sentemse. O café está esfriando. Era atarracado e parecia o resultado do cruzamento de homem com sapo, mas sua expressão era tranquila e amistosa. Observou-os entrar na sala com a curiosidade de quem recebe a visita de uma criança. Hala só percebeu a cadeira de rodas quando se aproximou. A mesa pesada e sua camisa comprida a esconderam até então. – Obrigado por nos receber, xeque – disse Tariq. – Pedimos desculpas pela intromissão. O homem fez um gesto indicando que não se preocupassem. – Fizeram bem em vir para cá – falou. – Não sou o imã desta mesquita. Apenas um membro da Família como vocês. Podem me chamar de Tio. Agora deixem de cerimônias. Sei que estão com fome. Hala estava envergonhada, mas ainda assim fez uma pausa para examinar o que havia sobre a mesa. O homem comia ovos mexidos, pão árabe e geleia. Outros alimentos ainda não tinham sido tocados. Ele percebeu a desconfiança de Hala. – Vejo que é uma mulher inteligente – disse. – Mas sua preocupação é desnecessária. Posso provar qualquer um dos alimentos. Escolha. – O labneh – disse ela. – E a pasta de tâmaras. O sorriso do homem ficou ainda mais largo depois que ele comeu os alimentos escolhidos por Hala. Em seguida serviu café do mesmo bule para os três. – Muito bem. Estou impressionado. Agora chega de bobagens. Podem relaxar – disse ele numa voz calma e firme. Enquanto eles enchiam os pratos, a mente de Hala voltou aos acontecimentos da noite anterior. – O que aconteceu com os outros? – perguntou. – Todos... – Estão sãos e salvos, graças a vocês – respondeu Tio. Seria imprudente reclamar da mulher da van naquele momento. Então ela disse: – Não cumprimos a missão. – Sim, mas o resultado não foi nada desprezível. Dois policiais foram mortos. Isso é de um simbolismo impressionante! Os americanos amam e odeiam a própria polícia! As autoridades
estão apavoradas, principalmente porque não sabem o que fazer conosco. O sequestro das crianças também as preocupa – acrescentou ele fazendo uma pausa, mas continuando em seguida: – Também somos responsáveis pelo sequestro. Com um sorriso nos lábios, Tariq passou uma fatia de pão para a esposa. Estava visivelmente orgulhoso do que a Família conseguira até então. Hala deu um gole no café. Ainda que estivesse morno, era árabe e delicioso. Queria perguntar sobre os lhos do presidente, mas achou mais prudente deixar que Tio tomasse a iniciativa de falar sobre o assunto. – Haverá outras missões importantes – disse o homem em tom quase displicente. – Mas gostaríamos de remanejá-los. Quanto mais cedo isso ocorrer, melhor. Anal já estamos em guerra. Aquelas palavras ficaram pairando no ar. – Como assim remanejar? – perguntou Tariq. – Serão responsáveis pela próxima ofensiva contra os americanos. Ou por parte dela – respondeu, tirando do bolso um envelope de papel pardo e empurrando-o sobre a mesa. – Por favor! – Sorriu, como se entregasse um presente ao casal. – Deem uma olhada. Tariq inclinou o envelope para examinar o conteúdo: um CD, dois passaportes americanos, a chave de um carro, o folheto de um hotel e a chave magnética de um quarto. – Há uma lista com nossos alvos aí dentro – disse Tio apontando para o disco. – Estamos reunindo uma equipe para ajudá-los. Terão tudo o que precisarem. Hala examinou o material com cuidado, imaginando uma resposta adequada a dar àquele homem: – Obrigada, Tio. É uma honra para nós. – Honra não é uma boa palavra – disse ele, assumindo pela primeira vez um ar carrancudo. – Estamos falando da Família. Não tem nada a ver com esse sentimento de orgulho típico dos americanos. – Claro, eu peço desculpas – disse ela, constrangida. A expressão do rosto do homem então mudou. Sorriu e piscou o olho enquanto colocava mais um pedaço de pão na boca. – Mas acho que vão gostar do hotel – falou. – É um cinco estrelas.
PARTE TRÊS
GUERRA!
capítulo 41
O SEQUESTRADOR ENTENDEU TUDO o que havia para entender sobre o caso com muito mais clareza do que a Polícia Metropolitana de Washington, o esforçado Serviço Secreto e o ineciente FBI. Ele os observava enquanto eles continuavam a procurar vestígios de pista ou de prova nas dependências do Colégio Branaff. Mas nada seria encontrado. Ele tinha certeza. Gravar. “Pensei de maneira obsessiva nesse ato por mais de dois anos e o planejei ao longo de 14 meses. Acredito que não deixei qualquer rastro e quanto mais repasso os detalhes, mais me convenço de que este será um dos maiores casos não resolvidos da história.” Uma sineta tocou indicando o recreio. O sequestrador enou o gravador no bolso da calça e decidiu dar uma volta pela escola, deslando entre alunos e professores ainda tensos, sem falar dos policiais que continuavam colhendo depoimentos inúteis. Falem comigo, só comigo!, ele não podia deixar de pensar. Avistou um detetive da polícia, uma gura alta que chamava a atenção, um homem nitidamente seguro de si. Ele o conhecia, lera nos jornais que o ocial agora participava do caso. Aquele detetive tinha um histórico de sucesso que era motivo de preocupação. O sequestrador não acionou o gravador novamente, embora seu dedo tivesse deslizado sobre o botão. No entanto, sua mente continuava a trabalhar. “Um dos detetives resolveu um importante caso de sequestro há alguns anos. Se sou cuidadoso como acho que sou, preciso reconhecer que ele é uma ameaça para tudo o que z e pretendo fazer. Estou certo disso. Ele é diferente dos outros da mesma forma como sou diferente de meus colegas. Já sei o que devo fazer, mas tenho dúvida se vai ser fácil. Será que consigo matar Alex Cross? É o que preciso fazer.”
capítulo 42
A VAN BRANCA ESTAVA estacionada junto à calçada na esquina das ruas 6 e P . A escada de alumínio e o bagageiro do teto escondiam um respiradouro, que por sua vez escondia uma câmera que captava imagens da mesquita do outro lado da rua. Cheryl Kravetz, agente do FBI, estava no periscópio. Moveu o joystick sob a mão direita e focalizou a porta dupla da Al-Qasim enquanto os fiéis saíam do primeiro culto da manhã. Em alguns minutos a calçada se encheu de pessoas, em sua maioria homens, vestidas com todos os tipos de roupas: de trajes árabes até camisetas de grife e botas de cano alto. Era possível ver algumas famílias e um grande número de casais. Kravetz estava particularmente interessada nos casais. – É impressão minha – perguntou – ou isso que estamos fazendo parece meio... – Sem propósito? Seu parceiro, Howard Green, não desgrudava os olhos do painel à sua frente, onde cinco telas pequenas e duas grandes mostravam várias imagens de câmeras de segurança. As telas maiores passavam imagens do cruzamento, transmitidas por uma câmera do Departamento de Trânsito instalada num semáforo ao lado da van. As menores mostravam o que Kravetz via. – Eu ia dizer “racista” – continuou ela. – Lá vem você de novo... – Estou falando sério! Nem sequer sabemos o que estamos procurando! “Muçulmanos suspeitos?” – Kravetz tirou a mão do joystick e fez o sinal das aspas com os dedos. – Nem sei quais dessas pessoas são sauditas! Se é que isso tem lá alguma importância... – Ninguém falou em “muçulmanos suspeitos” – retrucou Green. – E nem precisava – rebateu sua colega. – Sabemos o que querem que façamos. Examinar os rostos mais morenos até descobrir alguma coisa. Assim damos a impressão de que estamos trabalhando! – Nós estamos trabalhando – disse Green. – Como acha que as coisas funcionam? Ou, na sua opinião, deveríamos car sentados esperando que mais americanos morram? Pode crer que essa turma não vai sossegar! – Tudo bem. Não precisa ficar nervoso. Eu só estava querendo dizer... – Sim. Eu já sei... – ... que em breve os grupos de direitos humanos vão denunciar uma suposta perseguição. Só isso. O agente Green se abaixou e pegou o último salgadinho do saco engordurado a seus pés. Sabia que era melhor não discutir com Kravetz, principalmente de manhã cedo. O FBI estava com seu pessoal espalhado por vários lugares da cidade e eles seriam rendidos dali a dez horas ou mais. Por isso, quando Green voltou a olhar para a tela, uma coisa chamou-lhe a atenção. Era um
casal bem-vestido que saía da mesquita por trás da multidão. Não havia nada de estranho na cena, salvo que os dois carregavam bagagens. – E aquelas malas? – perguntou ele. Kravetz afastou o rosto do periscópio para vericar o que Green havia dito. O agente encostou o dedo na tela. – Este casal aqui. A mulher tinha parado para abaixar o véu islâmico. O homem de barba feita e com um boné na cabeça pegou a mala maior que ela acabara de pôr no chão e, em troca, lhe passou uma maleta. – Talvez eles tenham vindo direto do aeroporto – sugeriu Kravetz. – Talvez – disse Green. – Mas dê uma olhada neles. Ele observou sua colega apertar o botão do joystick com o polegar e dar um zoom nos rostos do homem e da mulher, congelando a imagem no instante em que eles começaram a andar pela calçada. – Belo trabalho – falou Green enquanto Kravetz observava o jovem casal se afastar. – E um belo traseiro também. Você não acha? – completou ele com um risinho. – Estou enviando isto aqui – disse Kravetz secamente. – É, é um belo traseiro... Em poucos segundos a imagem estaria nos computadores do laboratório de identicação do FBI. Os dois rostos seriam analisados numa base internacional de terroristas e criminosos. O sistema de reconhecimento facial do Serviço Secreto também iria receber aquela foto. – Era sobre isso que eu estava falando – comentou Kravetz. – Sabe quantas pessoas inocentes devem estar sendo incluídas no sistema neste exato instante? – Alguma coisa está acontecendo nessa mesquita – disse Green, parecendo não ouvir as indagações de Kravetz. – Não foi à toa que nos mandaram para cá. – Sim, nós e centenas de outras equipes antiterroristas em uma centena de outras esquinas. É como procurar agulha em palheiro. O agente Green deu uma mordida em seu sanduíche e tentou não pensar naquilo. Eles tinham um longo dia pela frente e aquela conversa não os levaria a lugar nenhum. Ainda que sua colega estivesse certa (e provavelmente estava), não fazia sentido reconhecer isso agora. Ela nunca iria parar com aquela história.
capítulo 43
DEPOIS DE NOSSA REUNIÃO no quartel-general da CIA, Ned Mahoney e eu fomos designados para a Divisão de Antiterrorismo do FBI, sediada num edifício no complexo de Langley chamado Liberty Crossing, mais conhecido como LX1. O centro de comando parecia uma caverna, com a iluminação fraca de uma sala de cinema. Mas o burburinho era idêntico ao da Bolsa de Valores de Nova York e a tensão não podia ser maior. Grande parte do efetivo havia sido despachada para vários pontos da cidade e representantes de todas as forças (como era o meu caso) foram encaminhados àquela sala. Cada área era identicada por pequenos cartazes feitos às pressas e colados na frente das mesas: Resgate de reféns, Polícia Metropolitana, CIA, entre outras. Além do incidente do pátio de manobras, tínhamos outro problema a enfrentar naquela manhã. Às cinco da madrugada, a Agência de Segurança Nacional elevara de laranja para vermelho o nível de ameaça ao transporte público de Washington. Metrô, ônibus e trens estavam fora de circulação até segunda ordem. Desde que o sistema de alerta fora implementado após o 11 de Setembro, aquela era a primeira vez que uma região chegava ao nível vermelho. Não havia como esconder os fatos da população. A todo instante chegavam boletins informando que milhares de pessoas abandonavam a cidade. O caso já ganhara repercussão nacional e a CNN se dividia entre as mortes dos policiais e a paralisação dos meios de transporte. Imagens transmitidas de um helicóptero mostravam o pátio de manobras repleto de equipes de televisão. Agentes da Divisão de Explosivos subiam e desciam dos vagões do metrô em seus trajes enormes, fazendo-me lembrar do lme Guerra ao terror. Era o tipo de imagem que os jovens diretores de cinema adoram e os agentes da lei detestam. Sentei-me ao lado de Javier Crist, um sargento da polícia que estava alocado no LX1. Ele monitorava as ligações para o serviço de emergência numa tela de computador. Nosso trabalho era colher informações, transmiti-las à sala e manter os policiais nas ruas ocupados. – Bem-vindo ao inferno – resumiu-se a dizer Crist antes de atender outro telefonema. Aquela foi a única orientação que recebi. À minha frente, o telefone começou a tocar. Coloquei os fones de ouvido e pus mãos à obra. Não era aquilo que eu estava esperando, mas já era alguma coisa. Eu agora estava do lado de dentro.
capítulo 44
NAQUELE MESMO DIA, Bree Cross estava lendo em sua cama às duas da tarde quando a campainha começou a tocar. Alguém apertava insistentemente o botão ao lado da porta. Alguma coisa estava errada. Caso contrário, o tempo ia fechar assim que ela chegasse lá embaixo. Levantou-se num pulo e deixou o livro cair sobre a cama. O título era Você e seus enteados. Bree costumava tirar um cochilo antes de ir para o trabalho, mas aquela era uma oportunidade de ler sem que ninguém a importunasse, sobretudo Alex, que, ainda que entendesse o motivo de ela estar lendo um livro sobre aquele tema, não dispensaria uma boa risada. – Já vai! – gritou ela, descendo a escada e percebendo que a campainha não parava de tocar. Enxergou duas silhuetas do outro lado da porta de vidro fosco, uma delas mais alta do que a outra. Quem seriam aquelas pessoas? Quando abriu a porta, Bree deu de cara com Nana, acompanhada por um desconhecido que a segurava pela cintura enquanto ela apertava um lenço manchado de vermelho contra a testa. O joelho esquerdo também sangrava. – Meu Deus! O que aconteceu? – Minha chave estava na bolsa – respondeu a avó de Alex sem nenhum pertence nas mãos. – Algum marginal a atacou – falou o homem. A manga de seu casaco estava manchada de sangue. – Não vi nada. Sinto muito. – Muitíssimo obrigada – agradeceu Nana enquanto o homem a entregava aos cuidados de Bree. – Você foi um cavalheiro. Faço questão de pagar a conta da lavanderia! Assim que ele foi embora, Nana fez uma careta de dor. Bree então a acomodou numa velha cadeira de palha para examinar os ferimentos. O corte na testa não era profundo, mas o joelho estava bastante esfolado. – Meu Deus! Quem faria uma coisa dessas? – exclamou Bree. – Calma, mocinha. Eu vou sobreviver! – Espere aí que eu já volto. Bree correu até o banheiro e pegou o estojo de primeiros socorros e uma toalha de rosto. Sentiu uma onda de raiva percorrer seu corpo. Juro por Deus que hoje mato alguém! De volta ao vestíbulo, assumiu uma expressão de calma, ajoelhou-se no chão e afastou delicadamente os cabelos da velha senhora para limpar o ferimento na testa. – O que aconteceu, Regina? Pode me dizer... – Bem... – começou Nana, respirando fundo. – Eu voltava da farmácia pela Pennsylvania Avenue. Estava no meio da Seward Square. Talvez se eu tivesse tomado o caminho mais longo... Bree interrompeu o trabalho com a toalha parada no ar: – A senhora não tem culpa de nada! Desde quando a Seward Square é perigosa a esta hora
do dia? – Desde uns 15 minutos atrás – disse Nana meio de brincadeira, mas já à beira das lágrimas. Baixou os olhos para o lenço sujo de sangue em sua mão. – Moro há setenta anos nesta cidade e nunca tinha sido assaltada. Meu Deus, estou ficando velha! Foi a vez de Bree sentir vontade de chorar. Aquela desgraça de bairro, aquela cidade... o que estava acontecendo com as pessoas? Terminou de fazer os curativos em silêncio e levou a avó de Alex para descansar no sofá da sala. Ainda em silêncio, subiu as escadas e pegou a pistola no cofre do closet. Quando desceu, Nana estava sentada com uma revista no colo, olhando pela janela para a Rua 5. – Vou dar uma saída – disse Bree. – Precisa de alguma coisa? – Por quê? Aonde você vai? – perguntou Nana, um tanto desconfiada. – Vou dar um pulinho na rua. Me dê a descrição desse imbecil... do assaltante que fez isso com a senhora.
capítulo 45
EM TODOS OS SENTIDOS a temperatura daquele mês de setembro estava alta demais. O suor começou a escorrer pelas costas de Bree antes que ela chegasse à esquina de casa. Era como se estivesse de volta às provas de atletismo da faculdade, só que dessa vez sem saber a distância a ser percorrida ou o prêmio que encontraria na linha de chegada. No lado sul da Seward Square, Bree parou para tomar fôlego e olhar em volta. Aquilo parecia a caçada a um animal raro, mas ela estava muito furiosa para ir à delegacia mais próxima e preencher um boletim de ocorrência como qualquer pessoa faria. Qualquer pessoa normal. – Mas o problema é meu! – disse a si mesma. De repente avistou a assaltante, agachada à sombra de uma velha cerejeira no meio da praça. A espertalhona nem tivera o bom senso de fugir. Só podia ser ela. Nana zera uma descrição precisa: casaco de moletom vermelho com capuz, bermuda azul, boné branco sujo e ridículos óculos escuros de armação branca, que de tão grandes deviam ser roubados. Bela maneira de passar despercebida, mocinha. Tinha toda a pinta de ser idiota, mas foi esperta o bastante para se levantar num pulo e começar a correr assim que viu Bree, que não estava ali por acaso. Com duas pernas nas e compridas, a garota seguiu direto pela Pennsylvania, rumo à colina. Ela era rápida, mas provavelmente não tinha feito parte da equipe de atletismo da faculdade. Em menos de meio quarteirão Bree conseguiu alcançá-la, agarrando-lhe o braço. Puxou a garota pelo capuz e praticamente a suspendeu no ar. Apesar das roupas largas, a pequena ladra era muito leve. E a altura também enganava. Bree tinha a impressão de estar diante de uma menina mais nova do que Jannie, com seus 12 ou 13 anos. – Me largue! – gritou ela, cambaleando e tentando fugir. – Socorro! Alguém chame a polícia! – Eu sou a polícia – disse Bree, esfregando o distintivo na cara da garota. – Agora vire-se! Você assaltou a vovó errada. Encostou a jovem ladra contra a parede de um posto de gasolina e a revistou dos pés à cabeça. Não encontrou nada na cintura nem nos bolsos do casaco, mas apalpou algo no bolso direito da bermuda. – Por acaso é um cartão de crédito? – Sim – respondeu a garota por sobre o ombro. – Mas é da minha mãe! Já acabou? – Então me mostre – pediu Bree, dando um pequeno passo atrás. – Não sou obrigada a fazer isso! Não vou mostrar! – Sabe de uma coisa? Vá para o inferno! Agarrou a pequena suspeita pelo braço e enou a mão em seu bolso. Como já esperava, Bree encontrou três notas de vinte molhadas de suor e um cartão que ela conhecia. Na parte da
frente estava gravado o nome de Regina Cross. – Sua mãe, não é? – Está bem, está bem! Um menino ali na rua me deu de presente. Juro por Deus! Ele está bem ali! – falou, apontando em direção à praça. – Vamos – disse Bree, ignorando aquela mentira. A garota não tinha alternativa a não ser acompanhá-la. – O que está fazendo? Para onde vai me levar? Não pode me prender. Sou menor de idade! – Não estou prendendo ninguém. Vai me mostrar onde jogou a bolsa e depois irá pedir desculpas pelo que fez. Mas tenha cuidado com o linguajar, mocinha!
capítulo 46
NANA ESTAVA NO SOFÁ quando Bree entrou rebocando a assaltante. Fez questão de se levantar e ir ao encontro das duas. – Ai, meu Deus! – exclamou ela, olhando a garota de cima a baixo. – Não sei o que dizer. Falei à mulher do meu neto aqui que você era enorme! – continuou, apontando um dedo encurvado para o boné encardido na cabeça da menina. – Não pode usar isso dentro da minha casa. É falta de educação. – Você deve estar de brincadeira – debochou a garota, mas Bree imediatamente arrancou o boné de sua cabeça. À primeira vista seus cabelos pareciam os de um bebê, mas um olhar atento deixava claro que algumas tranças haviam sido cortadas. Talvez para que ela casse com o aspecto de um menino, imaginou Bree. No apertado corredor da entrada, era possível perceber que a garota não tomava banho havia muito tempo. – Qual é seu nome? – perguntou Nana. A menina arremessou a bolsa de couro em direção à avó de Alex. – Me desculpe – falou, mas suas palavras não soaram sinceras. – Não foi isso que perguntei – rebateu Nana, ignorando a bolsa jogada no chão. – Quero saber seu nome. – Ava – resmungou a garota, que a essa altura pendurava a bolsa no corrimão da escada e olhava para Bree. – Eu já pedi desculpas. Posso ir agora? Mas a senhora não tinha terminado. – Me diga uma coisa, Ava... aliás, é um belo nome. O que você ia comprar com esse dinheiro? – Ahn? – Ahn não é uma resposta. Quero saber por que precisou arrancar minha bolsa. Você acabou me derrubando! Acho que mereço saber o motivo. Bree estava quase começando a sentir pena da garota. O rosto de Ava parecia uma máscara de pedra, mas naquele momento uma lágrima escorreu por sua face. A menina então a enxugou com a manga do casaco. – Eu não sei – respondeu finalmente. – Bem, se você não sabe, então não pode ir embora – retrucou Nana. – O quê? – disse a menina, espantada. – Era o que eu costumava dizer a meus alunos. Sabe, fui professora há uns cem anos ou talvez mais. Acho que precisa de um tempo para pensar numa boa resposta. As lágrimas escorriam mais depressa. – Eu nunca tinha feito isso antes – disse a garota abruptamente. – Juro! – Deve ser verdade. Eu a encontrei no meio da praça – interveio Bree.
– Venha, Ava. Vou lhe preparar uma xícara de chá – falou Nana, dando as costas para as duas e se dirigindo à cozinha. – Algo me diz que você também não recusaria um sanduíche. A menina não se moveu, mas Bree notou que ela não estava mais virada para a porta da casa. – Não gosto de chá – rebateu Ava de mau humor. – Calma, você vai ver como o meu é gostoso! – disse a avó de Alex, desaparecendo do outro lado da porta de vaivém.
capítulo 47
SE BREE NÃO TIVESSE LIGADO para contar a novidade, eu teria levado um susto à noite. Nana tinha recolhido uma menina de rua naquela tarde e a garota ainda estava lá em casa quando cheguei após um longo dia de tarefas burocráticas. Eu podia ouvir todo mundo falando e rindo quando cheguei à varanda dos fundos, mas eles se calaram assim que atravessei a porta da cozinha. Parecia uma cena de filme de faroeste. Jannie e Ali estavam à mesa com Ava. As três crianças tinham diante de si um prato de lasanha, mas a menina era a única que comia. Em meio ao silêncio, ouvi a secadora de roupas funcionando no andar de baixo e reconheci a velha camiseta de Bob Marley que ela vestia. Damon achara melhor não levá-la para o internato. – Alex, esta é Ava – adiantou-se Nana. Apesar dos curativos, minha avó não parecia mal. Na verdade, percebi que ela estava um tanto satisfeita. – Olá, Ava. – Olá. A menina não levantou os olhos e continuou comendo, os cotovelos plantados dos dois lados do prato como se alguém fosse roubá-lo a qualquer momento. Jannie e Ali, as costas eretas como um casal de suricatos, esperavam para ver qual seria minha reação. Nem eu mesmo sabia. – Nana, posso ter uma palavrinha com a senhora na sala? – perguntei. – Sou uma velha, Alex. – Por favor... Segurei a porta para ela e fomos até o outro extremo da casa sem que trocássemos uma única palavra. Ela então tomou a iniciativa: – A garota não tem para onde ir. Ela só precisa de um lugar para dormir. Passei a mão na cabeça, tentando encontrar o último vestígio de paciência ao nal daquele dia tão longo. – É para isso que serve o Juizado de Menores – falei. – Para quê? Para jogá-la no depósito? – retrucou Nana, apontando o indicador para mim. – Sei muito bem que esse é o nome que a polícia usa. Não venha me enganar, Alex. Eu não nasci ontem. Minha avó tinha razão. As instalações para onde a menina seria levada eram muito sombrias e de fato conhecidas como “depósito”. – A pobrezinha está na rua há um mês – acrescentou. – É o que ela diz. – Olhe para ela, Alex! Não é preciso ser muito inteligente para perceber que ninguém vai cuidar dessa criança!
Bree tinha vindo atrás de nós. Até aquele momento ela se mantivera calada, mas resolveu dar sua opinião: – Alex, acho que a menina está falando a verdade. Ela disse que a mãe se chamava Olivia Williams. Uma mulher com esse mesmo nome morreu de overdose de heroína no Hospital Washington em 10 de agosto. Além disso, a Escola Kramer tinha até o ano passado a matrícula de uma Ava Williams. Mas a aluna não apareceu mais este ano. Nana parecia me fuzilar com os olhos. Eu estava perdendo o controle da situação. – Ela tem pai? Parentes?– perguntei. – Você verificou essas coisas? – Não existe nada nos arquivos da escola. Acho que ela não tem ninguém – disse Bree. – O quarto de Damon está vazio – emendou Nana. – Aliás, eu já troquei a roupa de cama. O fato de eu ser o dono da casa parecia não importar. Ao menos, não muito. – Tudo bem – cedi. – Uma noite. Mas amanhã de manhã Bree vai levá-la ao Juizado. – Veremos! – disse Nana. – E vou trancar a porta do quarto de Damon por fora. – Você não vai fazer isso! – gritou minha avó. – Se quiser, durma no corredor! Agora me dê licença, pois temos uma convidada nos esperando na cozinha. Olhei para Bree, mas a expressão em seu rosto parecia dizer: Se você não consegue convencer sua avó, quem sou eu para conseguir isso? – Uma noite! – repeti. – Veremos! – disse Nana mais uma vez.
capítulo 48
DEPOIS DO JANTAR, Bree tirou um rápido cochilo antes de seguir para o trabalho. Fiquei a seu lado até ela fechar os olhos e então fui para o sótão resolver algumas coisas. Devo ter caído no sono em cima da escrivaninha, pois quando acordei Bree já havia partido e todo mundo estava dormindo. Resolvi dar uma olhada em Ava: ela roncava alto no quarto de Damon. Fui então sozinho para a cama. Detestei sair para trabalhar na manhã seguinte com tanta coisa por fazer em casa, mas não havia clima para alegar doença e tirar o dia de folga. Levantei-me às quatro e meia e parti para Langley às seis. A manhã estava linda, uma explosão de cor laranja no horizonte, mas era uma pena eu não poder assistir com mais calma àquele espetáculo. A verdade é que eu não queria car preso no LX1. Policiais são criaturas dependentes do trabalho de campo. É aí que damos nosso sangue. Eu queria estar na rua procurando pistas, conversando com as pessoas. Era onde eu talvez pudesse fazer alguma coisa útil. Felizmente no começo da tarde consegui o que queria. Ou melhor, não era bem aquilo que eu esperava. Passava de uma hora quando Peter Lindley saiu de seu escritório improvisado no centro de comando e acenou para mim. Uns cinco agentes e supervisores vinham atrás dele, que continuou a gesticular em minha direção. Enquanto eu atravessava o salão percebi que Mahoney me olhava. Encolhi os ombros indicando que eu não fazia ideia do que me esperava. Meu amigo pediu com um gesto que eu ligasse para ele depois. Fiz que sim com a cabeça. Ned não admite, mas ele odeia ser excluído das coisas. Ele é muito mais ambicioso do que as pessoas pensam. – Entre – disse Lindley. – E feche a porta, por favor. Aquele espaço era normalmente usado para reuniões, mas a maioria das cadeiras havia sido retirada. Ele estava sentado a uma mesa dobrável no meio da sala e tinha à sua disposição três monitores, como todos os outros ociais, além de seis aparelhos de telefone. Um deles estava em sua mão e Lindley ainda segurava um pedaço de papel. – Pediram que eu ligasse para a Casa Branca assim que o encontrasse – falou, sacudindo o papel em que havia um número de telefone escrito. – Sabe quem é Nina Friedman? – Não – respondi. – Deveria saber? – É a assistente-chefe de Regina Coyle. O que houve, Alex? Por que o gabinete da primeiradama está atrás de você? Tem alguma coisa para me contar? Eu não sabia se Lindley havia tomado muito café ou estava apenas irritado, querendo se manter informado de tudo o que estava acontecendo. Assim como Ned Mahoney, talvez ele não gostasse de ficar por fora. – Peter, não sei o que dizer – respondi. – Imagino que tenha a ver com o sequestro. Por que
não liga para esse número? Assim nós dois descobrimos. Lançou-me um olhar de poucos amigos por cima dos óculos como se eu estivesse escondendo alguma coisa, mas acabou seguindo meu conselho. Quando peguei o telefone de sua mão, ouvi uma voz feminina: – Detetive Cross? – É ele mesmo. Em que posso ajudar, Sra. Friedman? – Aqui é do gabinete da primeira-dama, na Ala Leste – disse ela desnecessariamente. Seu tom de voz era formal. – Estaria disponível para uma reunião com a Sra. Coyle? A formalidade se estendia à pergunta. Desde quando eu não estaria disponível para um encontro com a primeira-dama dos Estados Unidos? – Claro – respondi. – Chegarei aí em 45 minutos. – Ótimo. Seu nome estará no Portão Leste. Aguardo-o no m do caminho de acesso. Mais precisamente sob o pórtico principal. Se eu não estava enganado, nosso encontro aconteceria longe dos olhos da imprensa. Não seria uma reunião secreta, mas a discrição era um elemento importante. Lindley ainda me encarava quando desliguei. Dois de seus telefones não paravam de tocar, mas ele os ignorava, à espera de uma explicação. – E aí? – perguntou. – Minha mesa não pode ficar vazia. – respondi, dando de ombros. Não me importava se ele pensava que eu estava desaando-o. Eu tinha uma reunião na Casa Branca.
capítulo 49
O APARATO DE SEGURANÇA no Portão Leste da Casa Branca era de uma sosticação impressionante. Além disso, havia dezenas de agentes do Serviço Secreto e policiais espalhados pela área. Eu me perguntava quantos fuzis e câmeras de segurança apontavam para mim enquanto eu subia a pequena curva que levava à entrada principal da Ala Leste. Era uma pena que Sampson não estivesse ali para ver aquilo. Sem falar de Bree. Além de Nana e as crianças. Um belo cenário para uma foto de família. Como havia prometido, Nina Friedman me aguardava debaixo do pórtico. Pessoalmente, tinha a mesma eciência demonstrada ao telefone, fazendo malabarismos com seu telefone para apertar minha mão enquanto nos virávamos para entrar no prédio. – Obrigada por ter vindo. Queira me acompanhar. – falou, sem dar nenhuma explicação adicional. Depois de passar pela segurança e por mais um detector de metal, eu esperava ser conduzido a uma sala de reuniões ou ao gabinete da primeira-dama no segundo andar. Mas logo percebi que estava enganado. Atravessamos a antessala da Ala Leste e saímos do outro lado. Mantive a boca fechada enquanto passávamos de um edifício a outro, avançando ao longo da Colunata Leste com sua vista para o Jardim Kennedy, e nalmente chegamos ao térreo da própria Casa Branca. Pensando bem, aquilo fazia sentido. O Serviço Secreto devia estar limitando ao máximo os movimentos da Sra. Coyle, restringindo sua agenda aos compromissos indispensáveis. Fui obrigado a apresentar novamente minhas credenciais ao pé da escadaria principal e mais uma vez no patamar do primeiro andar, antes de entrarmos na área residencial. Quando chegamos ao segundo pavimento, os agentes pareciam estar à nossa espera, pois se limitaram a cumprimentar a Srta. Friedman. A decoração que conferia uma atmosfera de museu aos andares inferiores foi substituída por elementos tipicamente residenciais. Havia tapetes de veludo azuis e dourados, um piano de cauda e estantes com livros que pareciam ter sido lidos. Não vou dizer que não quei um pouco deslumbrado com aquele lugar. Eu pensava em todos os presidentes e primeiras-damas que passaram por ali nos últimos duzentos anos. Acho que reverência seria a palavra certa para descrever o que eu sentia. O corredor se estreitou e dali a alguns metros voltou a se estreitar, chegando a uma arcada que se abria numa sala iluminada pela luz do sol. Avistei a Sra. Coyle entre duas assistentes. À minha direita cava o Quarto de Lincoln. Aquela cena não tinha nada de surreal: eu estava no centro do poder. A assistente-chefe da primeira-dama iniciou as apresentações: – Sra. Coyle, este é... – O detetive Cross. Sim, eu já o conheço.
Quando Regina Coyle se aproximou para apertar minha mão, percebi que seus olhos estavam vermelhos como se ela tivesse acabado de chorar. O que era provável. – Muitíssimo obrigada por ter vindo – falou. – Espero que possa me ajudar.
capítulo 50
– SRA. COYLE, SINTO MUITO por tudo o que aconteceu – lamentei. – Farei tudo o que estiver a meu alcance para ajudá-la. Ela acenou para que eu entrasse na sala enquanto suas assistentes se retiravam em silêncio. Dali a pouco percebi que eu estava a sós com a primeira-dama num aposento residencial. Regina Coyle se sentou num comprido sofá atrás do qual se via o prédio do Tesouro americano. Acomodei-me numa das cadeiras estofadas de amarelo, a mesma cor das paredes e das cortinas, enquanto ela servia café num conjunto de porcelana com a insígnia da Casa Branca. – Soube que tem experiência na investigação de sequestros, não é? – começou ela. – O caso Gary Soneji, entre outros... – Sim, senhora. Cuidei de mais três casos depois do Soneji. Essa não é bem a minha especialidade... – Mas você é bom nisso – falou. Aquilo não era uma pergunta, mas percebi que ela aguardava uma resposta. – A experiência nos ensina muitas coisas – disse eu. – Sendo assim, sou bom nisso. A Sra. Coyle assentiu e olhou para o chão. Parecia pensar no que ia dizer. Até onde eu sabia, era uma primeira-dama tranquila. Ela e o marido vinham de famílias de fazendeiros de Minnesota, portanto eu tinha minhas dúvidas se aquela mulher apreciava o caráter absolutamente conspícuo de suas funções. Quando levantou o rosto, seu olhar estava mais rme do que nunca. Percebi que ela era tão forte quanto o marido. – Sei que as pessoas não esperam encontrar Ethan e Zoe com vida – disse a primeira-dama, sua voz desprovida de emoção, como se ela constatasse um fato consumado. – Conheço muito bem as estatísticas dos casos de sequestro. – Não, senhora. Espero que também saiba que os melhores prossionais do mundo estão trabalhando neste caso. Desde o primeiro dia. – Claro – disse ela, voltando a ficar calada. Era evidente que ela havia pensado algo mais. Falei mais algumas coisas que me vinham à cabeça e esperei em silêncio que ela continuasse. Foi quando Regina Coyle me surpreendeu: – Seu lho também foi sequestrado, não foi? Ficou sob poder dos criminosos durante meses. E ele tinha acabado de nascer. A primeira-dama havia feito a lição de casa. Era verdade. A mãe de Ali, Christine, fora raptada quando ainda estava grávida. Lembrar daquele episódio me deixava mal. Christine e eu nunca nos recuperamos dos traumas do sequestro. – Foi o pior ano de minha vida – comentei. – E também o da mãe de Ali. – E como está seu filho agora? – perguntou.
– Ótimo. Cada dia maior. Tenho muito orgulho dele. – Então você entende – disse ela. Aquele olhar seria o mais próximo de um sorriso que eu veria no rosto dela. Era possível afirmar que o contorno de seus olhos estava menos tenso. Agora eu percebia aonde a primeira-dama queria chegar. Se Ali tinha voltado para a família dele, então Ethan e Zoe poderiam voltar para a deles. Quando tornou a falar, a Sra. Coyle parecia escolher as palavras com cuidado: – Detetive Cross, não tenho a pretensão de ensiná-lo a fazer seu serviço. Mas posso lhe garantir que, se procurar seu superior depois deste encontro e armar seu desejo de se envolver ainda mais no caso de Ethan e Zoe, a resposta será positiva. Com total liberdade de ação. Aquela era a Regina Coyle que eu não conhecia: a esposa de um político. Não digo isso de maneira pejorativa. Eu estava diante de uma mulher que vivia seu pior pesadelo e que faria qualquer coisa para salvar os filhos. Depus a xícara na mesinha lateral e tirei uma caneta e um bloco de anotações do bolso de meu paletó. – A senhora se importaria de responder a algumas perguntas? – falei. – Claro que não. Eu precisava começar do zero com a esposa do presidente. – Fale um pouco sobre Ethan e Zoe. Como são seus filhos?
capítulo 51
SUAS MÃOS ESTAVAM NO PESCOÇO do demônio. Era hora de apertá-lo com força. Hala se encontrava sentada na cama com o laptop no colo. Arrastou para uma pasta vários arquivos que separara e os examinava mais uma vez antes de gravá-los num disco criptografado. Quando a gravação estivesse concluída, os membros da Família em Washington poderiam acessar seu conteúdo por meio de uma senha com 16 dígitos. Graças ao código que Hala recebera, ela e Tariq tomaram conhecimento de cada etapa da missão que a Família lhes designara. Enquanto trabalhava no computador, a médica ouvia a TV , que naqueles dias mostrava rostos assustados, boletins de trânsito e, claro, especulações sobre o que poderia vir pela frente. Sentia-se orgulhosa de ser a única pessoa a ter resposta para todas aquelas perguntas. Anal, Tio lhes conara vários alvos importantes. Cabia a eles decidir por onde começar, distribuir as tarefas e dar as ordens. Cada alvo destruído poderia signicar um novo marco na história, mais signicativo do que um ataque simultâneo a todos eles. Era exatamente o que Hala esperava conseguir. Cada cidadão americano eliminado era um passo a mais na direção certa. Os Estados Unidos mereciam ser duramente castigados. Ou, como dizia um ditado que resumia bem o espírito daquele país de excessos e ganância: mais é mais. – Hala! – Tariq apareceu molhado à porta do banheiro, o corpo rechonchudo coberto de espuma. – Você está ridículo – disse ela rindo. A médica gostava de ver o marido à vontade. Tariq estava nitidamente deslumbrado com a sorte que eles vinham tendo. – Ha-laa! – chamou, ensaiando uma pequena dança. – Venha aqui! A banheira está uma delícia. – Agora estou trabalhando, querido. E não se esqueça da Julia... – É verdade – lembrou-se ele, abrindo em seguida um largo sorriso. – Me esqueci de que estou apaixonado por outra mulher. Agora eles se chamavam Julia e Daniel Aziz, da Filadéla, e seus passaportes americanos comprovavam a nova nacionalidade. Chegaram àquele hotel cinco estrelas no dia anterior. Segundo Tio, ali eles estariam escondidos nas barbas do inimigo. O ritmo daquelas mudanças era de tirar o fôlego. Dois dias antes o casal não fazia ideia do que iria acontecer... e agora, aquilo. Tariq voltou para a banheira enquanto Hala se concentrava em seu trabalho. Vou deixar o pobrezinho desfrutar um pouco a depravação americana, pensou ela. Quanto menos seu marido se preocupasse, melhor para todo mundo. Na visão de Tariq, tudo havia mudado para eles.
Mas não era verdade. Os chefes ainda estavam de olho no casal. Eles precisavam mais do que nunca causar boa impressão. Se não tivessem cuidado, se tornariam dispensáveis para a Família com a mesma rapidez com que haviam alcançado aquela posição. Estejam preparados para morrer a qualquer momento. O lema continuava em vigor. Aquela não era uma simples oportunidade que lhes tinha sido dada. Era também um teste. Aquela guerra estava em suas mãos.
capítulo 52
NÃO VOU DIZER QUE FIQUEI surpreso ao saber que Nana Mama não deixara Bree levar Ava para o Juizado de Menores no dia seguinte. Pouco importava que eu tivesse insistido. Minha mulher me disse ao telefone naquela tarde que Nana estava irredutível. Portanto, cheguei em casa determinado a cuidar pessoalmente do caso. Minha avó já me esperava à mesa da cozinha lendo um livro, com a postura de um guarda. – Preciso conversar com você – disse ela. – Não vou discutir isso. Não podemos ajudar todas as crianças de rua de Washington – falei, andando diante dela. – Mas quem disse isso? – gritou às minhas costas enquanto eu subia a escada. Odeio fazer o papel de malvado. Não que eu achasse que minha avó estivesse louca por sentir o que sentia por Ava, mas eu tinha certeza de estar agindo da forma correta. Seria melhor para todos, inclusive para a menina. Era o que eu achava até ver o que estava acontecendo. Quando cheguei ao quarto de Damon, no segundo andar, Ava lia uma revista do X-Men de meu filho. – Ava, precisamos ir – falei. – Vou levá-la para o abrigo, conforme combinamos ontem à noite. Ela nem sequer olhou para mim. Deu de ombros com a maior frieza e colocou os pés no chão. Talvez seguisse orientações de Nana. Então, quando ela se levantou para vir até a porta arrastando os pés, notei uma coisa no chão, atrás dela. Algo debaixo da cama. – O que é aquilo? – perguntei, apontando com o indicador. – Nada. Ela me ignorou. A menina era uma grande mentirosa. – Espere aí. Ajoelhei-me no tapete para dar uma olhada. Havia comida entre a cama e a mesinha de cabeceira. Meia fatia de pão, algumas bananas, um pacote de biscoitos, um pote de creme de amendoim. Não quei surpreso. Crianças de rua costumam esconder comida quando têm a oportunidade. Tampouco eu estava irritado. Ava devia ter feito aquilo por instinto. Instinto de sobrevivência. Talvez por isso eu tenha cado comovido. Por que uma menina de 13 anos precisava se preocupar com sua próxima refeição? Por que Ava? Ou quem quer que fosse? Foi quando algo mudou dentro de mim. Às vezes as coisas acontecem quando a gente menos espera ou deseja. Mas de repente a menina correu em direção à escada. Quando me virei, ela tinha sumido.
– Ava, espere! Ao chegar ao vestíbulo, vi que ela segurava a maçaneta da porta da frente. Como o trinco da porta é difícil de abrir, a menina não estava conseguindo sair. – Ava! – chamei novamente. Quando me aproximei, ela correu para os fundos da casa, atravessando a porta de vidro. Apenas tive tempo de ouvir o barulho do vidro se estilhaçando, seguido pela voz de Nana: – Que diabos está...? Assim que cheguei à porta, Ava ainda estava lá e sua mão sangrava. Ela olhava para os dedos vermelhos de sangue, paralisada como um animal preso numa armadilha. – Tudo bem – falei, espalmando as mãos à frente. – Tudo bem mesmo. Está tudo bem... Nana pegou um pano de prato para enrolar a mão da menina, passou o braço em volta de seus ombros e a colocou sentada. – Não precisa se preocupar – disse carinhosamente minha avó. – Foi só um pequeno corte, mas, se quiser chorar, pode chorar. Não se preocupe. – Me desculpe – disse Ava olhando para Nana. – Não tive a intenção... – Não precisa se preocupar – falei. – Nem com a comida nem com a porta. A gente resolve isso tudo. Ainda assim, Ava tentou correr em direção à porta. Ela se levantou, mas Nana a puxou de volta com sua força surpreendente. – Sente-se aí agora! – ordenou. – Não vai a lugar nenhum, mocinha! Fiquei onde estava, dando um tempo para a menina respirar. – Sabe de uma coisa, Ava? – comecei. – Nana tem razão. Não precisamos tomar nenhuma decisão quanto a isso hoje. Aquilo não era verdade. Eu já tinha tomado uma decisão. Mas Nana estava certa. Talvez não conseguíssemos ajudar todas as crianças de rua de Washington, só que não havia um bom motivo para não ajudarmos aquela. E logo. Nem que fosse por um tempo. Eu iria fazer umas ligações, dar uma olhada nos bancos de dados da prefeitura, mexer uns pauzinhos se fosse preciso. Eu resolveria a situação daquela menina. – Só peço que você fique. – falei. – Por favor.
capítulo 53
NA MANHÃ SEGUINTE, BREE ASSUMIU o controle da casa e eu fui trabalhar. Não sei quais tinham sido as ordens da primeira-dama, porém não tive problema para entrar no Colégio Branaff. Cheguei cedo para sentir a atmosfera do lugar antes do início das aulas. Meu objetivo era reconstituir, na medida do possível, os passos de Ethan e Zoe na manhã de seu desaparecimento. Quando me aproximei da Casa Branaff, uma mansão de estilo georgiano que fazia parte do conjunto principal do colégio, não pude deixar de pensar na pequena escola que John e Billie Sampson estavam tentando criar a poucos quilômetros dali. Não havia dúvida de que aquele era um mundo à parte. A Casa Branaff era a joia da coroa de uma área de 320 mil metros quadrados que fazia com que alguns pais pagassem uma mensalidade de 4 mil dólares por uma escola de ensino fundamental. E tinha sido ali que os lhos dos Coyle foram vistos pela última vez. O que teria acontecido a eles? Comecei pelo saguão principal. Segundo os relatos que eu lera, havia sido naquele lugar que começara a briga entre Zoe e Ryan Townsend. A confusão não durou muito, pois logo o agente Findlay levou os lhos do presidente até o auditório. Às 8h22, Findlay informou pelo rádio à sua equipe que ele dera dois minutos para que as crianças conversassem em particular. Às 8h24, ele abriu a porta e constatou que o auditório estava vazio. Cerca de um minuto e meio depois, a van dirigida por Ray Pinkney saiu em disparada pelo portão leste sem Ethan e Zoe. Havia uma janela de 3 minutos e meio entre a última vez que Findlay vira as crianças e a saída da van do colégio. O sequestro ocorreu em algum momento desse intervalo. O que teria acontecido naqueles três minutos e meio? Entrei no auditório e fechei a porta. O salão tinha pé-direito alto e vários retratos me encaravam das paredes. Aquelas imagens inspiravam um misto de medo e respeito. Até um homem grande como eu se sentia pequeno ali. Fosse lá o que tivesse acontecido naquele auditório, Zoe e Ethan não caram ali por muito tempo. O relógio seguia sua marcha implacável durante aqueles três minutos e meio, quer eles soubessem ou não. Havia duas portas na frente e ambas eram vigiadas por uma câmera de segurança do lado de fora. Além das portas, as únicas saídas eram as cinco janelas ao fundo. O agente Findlay disse que encontrara a janela do meio destrancada. Resolvi me aproximar dela. Subi no ar-condicionado, abri a janela e pulei para fora.
Depois de uma aterrissagem tranquila, vi-me escondido atrás de um enorme arbusto de lilases. As pegadas encontradas naquele dia eram do tamanho dos calçados de Ethan e Zoe, confirmando que os dois haviam passado por ali. Mas para onde teriam ido? Eles ainda estariam sozinhos? Em que momento a situação saiu do controle? Tínhamos pouquíssimas provas. O que teria acontecido depois não passava de suposições. Mas havia outra peça do quebra-cabeça já conhecida. Eu só precisava que alguém da escola a mostrasse para mim.
capítulo 54
GEORGE O’SHEA, RESPONSÁVEL pela manutenção do Branaff, era ruivo, atarracado como um hidrante e tinha braços que se apertavam contra as mangas do uniforme da mesma maneira que a barriga saltava sobre os botões da calça. Encontrei-o em seu escritório no porão da casa principal. – Prazer em conhecê-lo – disse ele, quase esmagando minha mão. – Veio dar uma olhada no túnel, não é? Já ligaram da diretoria. – Se você puder me mostrar o local... – falei. – Venha. Vou cobrar um preço módico. Cinco centavos de desconto. – Fechado. Durante alguns dias a imprensa não parou de fazer especulações sobre a passagem subterrânea do Branaff, levantando a hipótese de que ela havia sido usada no sequestro. O que o público não sabia era que os localizadores eletrônicos de Ethan e Zoe foram encontrados destruídos no m do túnel. Se alguém os plantara ali para nos despistar ou os deixara cair, aquela ainda era uma questão em aberto. Segui O’Shea até uma velha porta preta de aço nos fundos do porão. Parecia pertencer à construção original, exceto pelo cadeado e pelo ferrolho afixados nela recentemente. O homem abriu a porta com uma chave presa a uma argola à sua cintura e acionou um interruptor que ficava na parede para acender a luz. – O lugar tem o formato de um “T” – falou, tomando a frente. – Ali à esquerda há um alçapão trancado, onde cava o depósito de carvão. Mas, se dobramos à direita, chegamos à cabana do zelador perto do campo de esportes. No século XIX, quando a propriedade ainda pertencia a Noah Branaff, uma ferrovia atravessava aquele túnel. Após uma reforma que instalou vigas, piso de concreto e ladrilhos no teto arqueado, o local passou a ser usado como depósito. Perto da entrada havia armários de tela repletos de material de limpeza. Mais ao fundo, instrumentos de jardinagem e equipamentos esportivos. O lugar estava em perfeita ordem e surpreendentemente limpo. O’Shea foi o único a falar durante nosso passeio. Trabalhava no colégio desde os anos 1990 e viu “importantes” famílias passarem por lá, embora nenhuma fosse mais importante do que a Coyle. – Qual é sua opinião sobre Ethan e Zoe? – perguntei. – Ethan é um bom garoto, além de ser bastante esperto. Várias crianças o acham meio esquisito, tiram sarro dele. Fazem isso o tempo todo. – E quanto a Zoe? De início o homem não respondeu, passando os dedos pelos cabelos e parecendo nervoso com a pergunta.
– Imagino que você queira saber a verdade. – Não se preocupe, Sr. O’Shea. Não vou anotar nada disso – falei. – Muito bem, vou ser franco. Zoe Coyle só arruma problemas. Quem disser o contrário estará mentindo ou puxando o saco. E, acredite em mim, não faltam puxa-sacos nesta escola! – Eu acredito – foi minha vez de ser franco. – Não me entenda mal. Rezo todas as noites por aquelas duas crianças, mas Zoe só faz besteira e sempre sai impune! Precisei expulsá-la daqui mais de uma vez: ela e seus amiguinhos chegados a um cigarro. E a garota me diz cada palavrão! – acrescentou, parando em seguida, uma vez que tínhamos chegado ao fim da galeria. – Bem, cá estamos! Diante de nós havia alguns degraus de concreto que subiam até uma porta. Ali foram encontrados os localizadores eletrônicos, embora a cena do crime já tivesse sido desfeita dias antes. Não havia muito para ver agora, mas eu queria andar por ali pelo menos uma vez. Seguimos em frente e saímos na “cabana” do zelador, que era aproximadamente do tamanho de minha casa. Estávamos ao lado do gramado da escola, próximo ao campo de esportes e ao portão sul. No alto da colina, além de uma leira de carvalhos, avistei a casa principal que tínhamos deixado para trás. Era uma paisagem belíssima, o último lugar do mundo que alguém associaria a uma tragédia. – Por ali – O’Shea apontou para as janelas do auditório. – Imagino que elas tenham saído por ali. Olhei ao redor, observando aquele cenário com atenção. Eles vieram por ali? Estariam conscientes? Drogados? – É uma reta lá de cima até este ponto onde estamos – disse o homem. – Depois é direto até o portão. Acha que foi aqui que pegaram as crianças? – Talvez sim, talvez não – respondi. – As pessoas nem sempre se deslocam em linha reta. Especialmente quando querem esconder alguma coisa. O’Shea concordou como se também fosse um policial. – Bem – disse ele –, você deve saber o que diz.
capítulo 55
PASSEI O RESTANTE DO DIA conversando com o maior número possível de pessoas no Branaff. Enquanto eu não conseguisse a autorização dos pais, os alunos não podiam chegar perto de mim, por isso me ocupei dos professores e demais funcionários. O diretor se chamava Dale Skillings. Notei certa irritação no início, o que era compreensível para quem enfrentara o rolo compressor da imprensa e dos pais. Todos queriam entender como um incidente daqueles tinha acontecido no Branaff. Além disso, algumas acusações já haviam chegado à sua mesa. Se ele se mostrava lacônico e na defensiva, eu compreendia o motivo. – Inimigos? – respondeu ele quando perguntei. – Elas são as crianças mais famosas do mundo! É impossível não sofrerem algum tipo de hostilidade. Mas, se quer saber sobre a briga de Zoe com Ryan Townsend, não posso conversar sobre o assunto com você. Procure o pai ou a mãe dele. Na verdade eu já havia ligado algumas vezes para a Sra. Townsend. Skillings não podia fazer nada quanto à autorização dos pais, porém me permitiu livre acesso à sua equipe, deixando-me agradecido por seu gesto. Eleanor Ruff, uma das professoras de matemática do sexto ano, me disse que Zoe mal prestava atenção às suas aulas, ao passo que Ethan tinha um rendimento fora do comum, o que não era nenhuma surpresa. Eleanor trabalhava havia anos na escola e se mostrou tão arrasada como todos os outros funcionários com quem conversei. – É difícil imaginar uma coisa dessas acontecendo – falou, andando pela sala e molhando as plantas com um regador. Enquanto isso, quei sentado numa carteira que talvez comportasse alguém com metade do meu tamanho. – Mas de repente tudo mudou! Felizmente levaram os dois juntos. Ao menos eles têm um ao outro... – No mesmo instante a mulher levou a mão à boca e começou a chorar. – Oh, meu Deus! Não era isso que eu queria dizer. De jeito nenhum! Eu sinto muito! Passei-lhe o lenço de papel que tirei de uma caixa sobre a mesa e disse que não fosse tão dura consigo mesma. Todos os funcionários daquela escola tinham sido interrogados várias vezes pela Polícia Metropolitana, pelo FBI e pelo Serviço Secreto. Os nervos pareciam cada vez mais à or da pele. Mas é justamente nessas ocasiões que as pessoas costumam dizer coisas que não falariam em outras circunstâncias. O enfermeiro do colégio, um sujeito chamado Rodney Glass, estava mais tranquilo. Antes de ir para o Branaff, ele passou um tempo trabalhando em Uganda, onde testemunhou situações dramáticas. Eu também conhecia a África e sabia muito bem do que ele falava. – Ethan? Sim, o menino costumava almoçar comigo no refeitório – contou. – Acho que ele se sente mais à vontade entre os adultos. – Ele vinha muito aqui? – perguntei, examinando a minúscula e bem organizada enfermaria. – Às vezes. Ethan falava que aqui era um lugar tranquilo. Crianças como ele adoram
frequentar a biblioteca, a enfermaria ou a sala dos orientadores. A propósito, você devia procurar Pam Fitzhugh. Ela conhece aquelas duas crianças como ninguém. Por sorte consegui conversar alguns minutos com a Sra. Fitzhugh. Ela e outra orientadora acompanhavam crianças com algum tipo de problema. – Ethan ou Zoe vinham apresentando comportamento estranho? Andavam estressados? – perguntei. – Nada de anormal – respondeu. – Mas tudo isso é relativo. Não é fácil ser lho do presidente ou de qualquer pessoa famosa. Na verdade, os dois se cobravam muito. – Pode ser mais específica? – pedi. – Digamos que Zoe gasta muita energia tentando não ser a primeira-lha que todo mundo espera que ela seja. Já Ethan é o oposto: se recebe uma nota menor do que cinco, ele ca para baixo. Ela abriu um sorriso melancólico como se acabasse de se lembrar de alguma coisa que um dos irmãos zera. Talvez também se perguntasse, como todo mundo, se algum dia voltaria a vêlos. – Pobres crianças – falou. – Eu gostaria tanto que alguém as encontrasse. Eu também.
capítulo 56
COMO DE COSTUME, A COMITIVA do secretário de Estado estava atrasada. Martin Cho deixara os chefes dos Comitês de Inteligência da Câmara e do Senado esperando a maior parte da manhã e agora corria para a reunião com o embaixador da Arábia Saudita. – Ligue para o gabinete e diga que estamos a caminho – ordenou Cho à assistente que se encontrava diante dele na pequena limusine Mercedes. A inteligente Melissa Brandt acabara de se formar em Harvard, mas era um tanto jovem e ingênua para o cargo. – Sr. Secretário, o departamento encarregado da agenda já os informou. Liguei para eles... – Por favor, Melissa, telefone novamente – insistiu o secretário. – Não quero que o embaixador pense que nos esquecemos dele. Eles gostam disso. É uma gente muito sensível. O embaixador passou a vida sendo paparicado. – Sim, senhor. Havia alguns dias que os dois países mantinham discretas conversações sobre a crise. Como o presidente ainda não se sentia bem, cabia ao secretário sentar-se à mesa para conversar. As relações políticas com o outro país andavam estremecidas ultimamente e em nada se pareciam com os fortes laços observados antes do 11 de Setembro. Quando Melissa Brandt ligou para o Departamento de Estado, olhou pela janela para ver em que altura estavam da Constitution Avenue. – Olá, Don, aqui é Melissa, do gabinete do secretário – falou, ainda olhando para a rua. – Estaremos aí em alguns minutos. Estamos passando pelo... pelo... A jovem arregalou os olhos azuis. – Oh, meu Deus! – exclamou. – Vão bater em nosso carro! Secretário Cho, olhe! O secretário se virou a tempo de ver a van branca se chocar contra a lateral do carro. Uma picape de sua comitiva avançou para abalroar o intruso, mas era tarde demais. Os três carros então pararam bruscamente. O espaço interno da limusine parecia ter se reduzido à metade e Cho havia sido arremessado contra a porta. Uma dor insuportável tomou conta de seu peito quando algumas costelas perfuraram seu pulmão direito. – Sr. Secretário? – chamou o chefe da equipe de segurança, a testa sangrando, virando-se com dificuldade no banco da frente. – Está me ouvindo? Cho ouvia, porém não conseguia se mexer. O menor movimento provocava uma dor que se espalhava pelo corpo, aumentando seu desespero. Seus olhos correram para a van ao lado do carro. O motorista estava saindo da cabine. Não passava de um garoto. Trazia na mão uma espécie de cilindro prateado e vermelho. O que seria aquilo? – Senhor? – insistiu o agente. – Está me ouvindo? A boca de Cho se abriu, mas logo voltou a se fechar. O ar não chegava aos seus pulmões. Ele
pensava nas palavras que queria dizer, mas elas morriam na boca. Seu desejo era berrar: “Bomba! Ele está com uma bomba! Aquele rapaz...” O secretário reconheceu o detonador na mão do garoto um segundo antes de este se virar para fugir. Não havia dúvida de que era um detonador. A explosão destruiu os três veículos. Os motoristas dos carros mais próximos viram o clarão incandescente, seguido por uma enorme bola de fogo laranja e nalmente por uma nuvem compacta cor de carvão. Estilhaços de vidro voavam por toda parte, com alguns pedaços de metal ainda em chamas. A cena foi coroada por uma chuva suave de folhas e galhos das árvores ao longo da avenida, antes que tudo mergulhasse num silêncio estranho e assustador.
capítulo 57
– TARIQ, VENHA VER! Rápido! Hala estava com os olhos grudados na TV . Aquela avalanche de notícias era ridícula, mas tinha lá suas vantagens. Minutos após a explosão dos carros na Constitution Avenue, ela estava na primeira fila assistindo ao espetáculo. Ninguém ainda tinha dito nada sobre vítimas. No entanto, a visão da limusine incendiada lhe dava a certeza de que a missão fora bem-sucedida. O secretário de Estado Martin Cho, um dos principais arquitetos da política externa americana, fora eliminado em plena capital do país! Aquele golpe tinha sido certeiro. Naquela noite as pessoas dançariam nas ruas de Riad e em breve haveria mais motivos para comemorar. Tariq se levantou da cama e ficou assistindo detrás do sofá. “Estamos ao vivo de Washington, onde há pouco ocorreu um possível ataque terrorista...” – Onde fica isso? – perguntou ele. – Perto do hotel? – Não é longe daqui – respondeu Hala. A médica queria ir até a avenida dar uma olhada, mas não valia a pena correr o risco. Certamente a polícia estaria filmando as pessoas presentes no local. Enquanto assistiam ao noticiário, ela secava os cabelos com uma toalha. A cor deles não estava muito diferente (um tom mais acastanhado), porém caram bem mais curtos. Para o bem ou para o mal ela começava a ficar parecida com uma americana. – Você conseguiu! – disse Tariq, pousando delicadamente a mão no ombro da esposa. – Eu não – rebateu ela. – A Família! Hala sabia que dar importância ao próprio papel era sinônimo de vaidade. Ainda assim, as imagens da TV a enchiam de um orgulho indescritível. Um dos piores demônios dos Estados Unidos estava morto porque ela (e só ela!) decidira que ele seria o primeiro. Quando Hala estendeu o braço e puxou Tariq para si, o marido resistiu. Ela proibira qualquer intimidade desde a chegada àquele país. Era algo que podia desconcentrar o casal, ela lhe dissera. Não podiam ceder à tentação. Mas, como ambos sabiam, Hala estava no comando. – Me beije – disse ela. – Agora! Tariq não precisou de um segundo convite. Inclinou-se e beijou o pescoço da esposa. Em seguida suas mãos acariciaram-lhe o rosto e os seios macios. Quem olhasse para ele talvez não percebesse, mas o marido de Hala sabia exatamente como satisfazer uma mulher. O coração da médica disparou quando ele contornou o sofá e se pôs diante dela. – Eu te amo, Hala. Tenho muito orgulho de você. – Eu também te amo – retrucou ela, que de fato amava o marido. Tariq se ajoelhou no tapete, afastou as dobras do robe branco do hotel que a mulher usava e beijou-lhe a coxa. Hala começou a respirar mais forte, deixando que o prazer dominasse seu
corpo. “... sabemos que o ataque foi direcionado a uma comitiva do governo, mas a identidade dos passageiros...” Quando Tariq estendeu a mão para pegar o controle remoto da TV, ela o impediu. – Não – disse a médica. – Deixe a televisão ligada. Ela manteve os dedos nos cabelos dele e os olhos na tela, enquanto as mãos e a boca de Tariq buscavam outros recantos a explorar. E, por um breve instante, Hala sentiu uma paz que nunca imaginara que uma mulher pudesse sentir.
capítulo 58
LOGO QUE A NOTÍCIA DO ATENTADO foi divulgada, uma equipe especial de agentes do Serviço Secreto deixou seu posto de comando, conhecido ocialmente como W-16. Saíram da comprida sala retangular, subiram um único lance de escada e, sem bater, entraram na Sala Oval logo acima. – O que foi agora? – perguntou o presidente, cando de pé quando os homens abriram a porta. – Senhor, queira nos acompanhar – falou o supervisor do turno. Ele e mais um agente passaram por trás da famosa mesa presidencial e zeram algo inédito: puseram as mãos no comandante em chefe e o tiraram da sala à força. – O que está acontecendo? O que houve? – perguntou a secretária do presidente quando os homens atravessaram a antessala. – Não saia daí – ordenou um terceiro agente, tomando a frente para abrir caminho. A notícia já se espalhara pela Ala Oeste. O edifício ia ser interditado. Ninguém poderia entrar nem sair, exceto o presidente e a primeira-dama. – Comando, Torchwood a caminho – falou o agente pelo rádio. – Tucson também – ele ouviu em resposta. Naquele mesmo instante outro grupo retirava a Sra. Coyle do local. – Estamos a caminho do Gramado Sul. – Será que alguém poderia me dizer o que está acontecendo? – perguntou o presidente a quem quer que pudesse escutá-lo. – Houve um incidente, senhor. Não sei dos detalhes. Receberá as informações no helicóptero Marine One – foi só o que o chefe da equipe disse ou talvez pudesse dizer. Descendo rapidamente até o térreo, o grupo atravessou a ala principal e saiu pela porta escondida sob as escadas do Pórtico Sul. O complexo da Casa Branca havia sido isolado. Agentes armados da Polícia do Capitólio se enleiravam de ambos os lados da Executive Avenue e não havia fuzileiros de uniformes azulmarinho para recebê-los quando o helicóptero modelo Sea King de capota branca desceu no gramado. Assim que o aparelho pousou, a porta dianteira se abriu e a escada tocou no solo. Só então o presidente foi conduzido às pressas até o gramado no centro de um escudo humano composto de dez homens. Dois passageiros esperavam a bordo, o que signicava mais uma quebra no protocolo. Ron Burns, diretor do FBI, e a conselheira antiterrorismo Norma Tiefel caram de pé quando Edward Coyle entrou na cabine principal. A Sra. Coyle chegou com sua escolta poucos segundos depois e todos tomaram seus assentos. Quatro agentes do Serviço Secreto permaneceram no aparelho. Quando a porta se fechou e o Marine One partiu, os homens seguiram para a parte traseira do helicóptero, deixando o
presidente a sós com seus três acompanhantes. – Me diga o que aconteceu – ordenou Edward Coyle a Ron Burns. – Quero saber tudo – acrescentou, de mãos dadas com a esposa. – Senhor, sinto informá-lo que o secretário Cho e três membros de sua equipe foram mortos numa explosão. – Oh, meu Deus! Martin Cho! – Um ataque contra sua comitiva, para ser mais exato – continuou Burns. – Provavelmente de autoria da Al Ayla, embora ainda não possamos armar com certeza. Mas essa hipótese é coerente com as informações que recebemos. – Como assim? Quais informações? – quis saber o presidente. – Temos uma informante no grupo. Não sabemos se ela participa ativamente da organização, mas suas informações são confiáveis. – Ela? – perguntou Coyle. Burns fez que sim e continuou: – A Al Ayla é uma das possibilidades. A Al Qaeda, o Hezbollah e outras organizações também reivindicaram a autoria do atentado. – E quanto às crianças? – foi a vez de Regina Coyle. – A tal informante disse alguma coisa sobre Ethan e Zoe? – Infelizmente, não – respondeu Burns. – Recebemos uma lista de possíveis alvos. Algo que, para ser franco, parecia improvável até 15 minutos atrás. – Diga logo, Ron! – ordenou o presidente. – Que alvos são esses? – Alvos humanos, senhor – respondeu o diretor do FBI. – Uma lista com 18 nomes. O vicepresidente Flynn é o primeiro. O último é Ribillini, secretário de Segurança Nacional. – Oh, Deus! – exclamou Coyle depois de ouvir tudo o que precisava saber. – Diga que Martin Cho não estava nessa lista! – Infelizmente estava. Logo acima dos presidentes da Câmara e do Senado. – Isso quer dizer que... – começou o presidente devagar. – Sim, senhor – adiantou-se Burns. – Estamos falando de toda a linha de sucessão da presidência.
capítulo 59
NORMA TIEFEL, CONSELHEIRA antiterrorismo, foi a próxima a falar: – Todos nessa lista serão protegidos por uma unidade especial, sem mencionar o aparato de segurança que já é empregado. Estamos falando de centenas de agentes à disposição 24 horas numa complexa infraestrutura de logística e transporte. Além disso, precisaremos restringir ao máximo os deslocamentos dessas pessoas. – Eles não podem paralisar o governo! – gritou o presidente a Tiefel. – Não veem que é isso que essas pessoas querem? Foi por esse motivo que voltei a Washington! Lembram-se de como George W. Bush foi criticado por estar em trânsito em 11 de setembro de 2001? – Ele não teve culpa, senhor. Sei que não foi culpa dele – disse Tiefel no tom mais diplomático possível. – Sim, tenho certeza de que não foi culpa do presidente Bush – retrucou Coyle. – Ele odiava fazer tantos deslocamentos. A obrigação de viajar pelo mundo. Esse foi o verdadeiro peso de sua presidência. – Por enquanto, senhor – retomou Tiefel –, o melhor a fazer é car num lugar ignorado pelo público. – Outra vez... – resmungou o presidente, girando em seu assento e dando as costas àquela bateria de recomendações. – Archie, aonde estamos indo? – gritou ele em direção à frente do helicóptero. O agente Walsh, chefe da equipe de segurança de Edward Coyle, cou de pé no estreito corredor entre eles e o piloto. – Andrews, senhor. O Air Force One está nos esperando. – E daí? Não foi isso que lhe perguntei! Envergonhado, Walsh permaneceu onde estava, não respondendo à pergunta. – Mas que droga! – vociferou o presidente para si mesmo. Ele sentia a mão suave e rme de Regina sobre a sua. Quando olhou para a esposa, ela parecia íntegra e determinada. Ele devia demonstrar o mesmo autocontrole diante da esposa e dos dois subordinados. Anal, todos estavam em perigo naquele momento. – E quanto à família de Cho? – perguntou ele ao diretor do FBI. – Temos agentes em Bethesda e em Oakland – respondeu Burns. – Em breve eles terão uma unidade de segurança à disposição. A Sra. Cho, seus dois filhos e a mãe do secretário. – E quero falar diretamente com Lottie. – Sim, senhor. Quando decolarmos, teremos uma videoconferência com os chefes das Forças Armadas – disse Tiefel. – Depois disso, podemos contatar o grupo de trabalho da CIA, em Langley. Acho que seria uma boa ideia. – Claro que é uma boa ideia – falou o presidente. – Alex Cross faz parte desse grupo, não faz? – perguntou a Sra. Coyle.
– Sim, senhora – respondeu Burns, antecipando-se à pergunta que viria a seguir. – E vai continuar trabalhando conosco. – Ótimo. – disse ela. Já não era segredo que a primeira-dama havia indicado o famoso detetive da Polícia Metropolitana para a investigação do sequestro. Aliás, ninguém contestava a escolha de Regina Coyle. – O mundo está de olho em nós, Ron – observou o presidente. – Principalmente nossos inimigos. Precisamos assumir o controle da situação. Quero relatórios de hora em hora, além de um resumo de todas as opções que temos. Entendido? – Sim, senhor. Perfeitamente. – Eu falei todas as opções. – Claro, senhor. – Não quero mais saber de enrolação aqui... – Ed... – disse a primeira-dama, apertando o braço do marido. – Desculpe – falou. – Desculpe! Agora chega de papo! O presidente se recostou no banco. Observava pela janela um dos quatro helicópteros idênticos que voavam ao lado do seu, um procedimento-padrão para reduzir os riscos de um possível ataque. Àquela altura tudo era possível. A partida da Casa Branca acontecera sem problemas. Agora a comitiva presidencial se dirigia para sudeste, rumo a Andrews, a vinte quilômetros de onde estavam. Depois disso, Edward O. Coyle, o homem mais poderoso do mundo, não tinha a menor ideia do que iria acontecer. Ele inclusive poderia estar morto dali a alguns minutos. O impensável não era mais tão impensável assim.
capítulo 60
O QUARTEL-GENERAL DA CIA parecia uma caixa uorescente quando lá cheguei tarde da noite. A diretoria da Agência resolveu partilhar o que sabia com o grupo de trabalho recém-formado. A informação repassada era assustadora. Um informante dissera que o próximo alvo da Al Ayla seria toda a linha de sucessão da presidência americana. O assassinato do secretário de Estado Martin Cho era uma prova de que a nova ameaça deveria ser levada a sério. O simbolismo daquele ataque era impressionante. Cho não apenas representava os Estados Unidos perante outras nações como a Al Ayla nitidamente usava o atentado como forma de se tornar conhecida no cenário internacional. Declarações reivindicando a autoria do ataque haviam sido veiculadas pela Al Jazeera, mencionando pela primeira vez o nome da organização. De Jacarta, na Indonésia, a Madison, no estado de Wisconsin, a notícia corria o mundo. A Al Ayla parecia pronta para o último round. E, o que era pior, até agora ela estava ganhando. – Eles nos pegaram de surpresa – falou Evan Stroud aos 12 ociais presentes na sala. – Mas isso não vai se repetir. Não com as pessoas naquela lista. – Será que vale a pena dizer ao grupo que há um informante entre eles? – perguntou um agente do FBI. – Criar um racha dentro da organização? Se dividirmos a Al Ayla, talvez consigamos algum resultado. Andrew Fatany, o analista de Riad, tomou a palavra: – Acredito que eles já tenham se dividido – disse ele. Fatany era quem mais falava naquela noite, revelando o que o escritório saudita do Serviço Clandestino sabia sobre o grupo. – Essas novas organizações são mais exíveis do que outras que conhecemos. É possível, ou até provável, que a Al Ayla tenha delegado certa autonomia a seu pessoal em Washington. Quanto mais rápido eles criam essas células autônomas, mais difícil é chegar ao centro da organização. Talvez já seja tarde demais. – Tarde demais para quê? – perguntei. – Para descobrir o que é exatamente a Al Ayla. Precisamos concentrar nossos esforços em encontrar os líderes e os contatos que eles têm aqui no país. Mas temos de agir com cuidado. Eliminar uma célula é como cortar o braço de uma estrela-do-mar. A organização continua viva e desenvolve um novo membro. – Espere um pouco – interveio Peter Lindley. – Está dizendo que devemos dar liberdade a essas pessoas para que elas talvez nos levem a seus líderes? Não consigo acreditar numa coisa dessas! E acho que o presidente também não! Fatany engoliu o próprio desânimo. Assim como todo mundo ali, ele estava abatido e cansado: – O que quero dizer, e me desculpem por armar o óbvio, é que devemos ter consciência do
que estaremos perdendo se os eliminarmos. Um sujeito com cabelo à escovinha da Agência de Segurança Nacional manifestou seu descontentamento aos berros: – Precisamos descobrir quem são esses desgraçados e obrigá-los a falar na base da pancada. Devemos usar a legislação cabível para mandar essa turma de volta para o Egito. A prioridade aqui é salvar vidas americanas. Simples assim! Pelo menos deveria ser! Fatany espalmou as mãos para o alto. Ele apresentara o ponto de vista do escritório de Riad, mas as providências a serem tomadas não cabiam a ele. – Vamos levar tudo isso ao presidente – disse Stroud, tentando diminuir a tensão na sala. Não que aquilo fosse possível. A crise era um incêndio a ser combatido o mais rápido possível. Qualquer coisa fora desse propósito seria inútil. Enquanto isso as chamas se alastravam e pareciam fugir de controle.
capítulo 61
NED MAHONEY E EU NOS ARRASTAMOS para fora do quartel-general da CIA por volta de duas da madrugada. Parecia que estávamos saindo de um casulo (o que não deixava de ser verdade) pouco aconchegante e amigável. O presidente entrou em contato conosco à meia-noite, dez horas depois do atentado contra a comitiva de Cho. Ele faria um comovente discurso à nação pela manhã, condenando o ataque e conclamando os Estados Unidos a se lembrar das vítimas por tudo o que elas representavam na luta contra criminosos como aqueles. – Eu me sentia melhor quando estava fora do círculo – falei. Era difícil não se sentir sobrecarregado e impotente. Minha intenção era voltar ao Branaff o mais rápido possível, mas havia vários outros lugares em que eu achava que podia e provavelmente devia estar. A vigilância na capital iria aumentar ainda mais. O governo passaria a noite redigindo uma série de declarações e esperava-se a emissão de mandados de busca para o começo da tarde. Isso signicava despachar equipes para todos os tipos de lugares ainda não visitados: novas mesquitas, centrais telefônicas, escritórios de sites da internet. A demanda de pessoal seria algo sem precedentes. – Para onde você vai? – perguntei a Ned. – Quantico. A menos que a Equipe de Resgate de Reféns precise se deslocar. Mas vou fazer um pouco de trabalho de campo. Seu telefone vai estar ligado? – Só na hora do almoço – respondi, impassível. – Se eu descobrir alguma coisa, ligo para você – falou. – Certo. Vou fazer o mesmo. Não chegamos a discutir o assunto, mas Ned e eu parecíamos ter entrado num acordo. Eu teria seu apoio nesse caso e ele, o meu. Antes de chegarmos ao estacionamento, ele parou e pôs a mão em meu ombro. – Gosto de saber que estamos no mesmo lado – disse ele. – Sei que andou meio chateado comigo, mas isso não vai se repetir. Prometo. – Esta é a hora em que cortamos os polegares e fazemos um pacto de sangue? – perguntei. – Essa eu dispenso. Não sei onde você andou enando esse dedo! – disse ele rindo e começando a atravessar o gramado em direção a seu carro. – Mas a partir de agora vou atender suas ligações.
capítulo 62
O SEQUESTRADOR SEMPRE LEVAVA o gravador em suas caminhadas pela mata. Era difícil prever os momentos de inspiração, que não podiam de jeito nenhum ser desperdiçados. Gravar. “O primeiro quilômetro é um pouco acidentado, mas consigo vencê-lo depressa. Aos poucos o terreno ca íngreme, quando começa a montanha. Acabo perdendo um pouco de tempo, mas estou cada dia melhor na escalada. Eu poderia subir de carro pelo outro lado, mas isso só vai acontecer uma vez. Após terminarem de ler o livro, vocês entenderão o porquê. Enquanto isso, sigo a trilha mais longa. Talvez eu até consiga emagrecer! Acho que estou me saindo muito bem.” Parar. O livro estava progredindo. Ultimamente ele não encontrava diculdades para preencher as tas. Qualquer pessoa que se prezasse reconheceria que aquela era uma grande história. Ainda maior do que ele imaginara no começo. Enou o gravador de volta no bolso e pegou o arco que carregava no ombro. A vegetação era cada vez mais esparsa. Logo encontraria algum animal. Enquanto avançava, pôs uma echa no arco e começou a chutar os arbustos, em busca de uma caça escondida ou de um movimento qualquer. Como ele já esperava, avistou um coelho logo após o topo da primeira colina. O animal incauto vinha em sua direção, mas de repente mudou de rumo. Deixou que o coelho se afastasse. Qualquer distância menor que vinte metros era como pescar peixe de um aquário. Então ergueu o arco, crispou os lábios e disparou a flecha. O impacto fez o coelho voar longe, aterrissando no topo de um arbusto. Quando ele se aproximou, o animal ainda estrebuchava. Torceu rapidamente seu pescoço e pôs m àquele sofrimento. No minuto seguinte o coelho estava amarrado a um barbante e o sequestrador seguiu em frente. Andando depressa, avançou pela próxima encosta e cruzou uma pequena ravina. Levou mais vinte minutos para subir o outro lado, parando diante de um enorme pinheiro que havia próximo ao cume. Gravar. “É difícil imaginar olhando essas árvores, mas provavelmente elas demarcavam os limites de alguma propriedade. Isso numa época em que esta região era uma grande produtora de laticínios. Agora este é nosso pequeno recanto longe de casa. Não dá para compará-lo com a Casa Branca. Para minha sorte, porém, não há necessidade disso.” Parar. Ficou alguns minutos entre as árvores, examinando o terreno lá embaixo. Quando teve
certeza de que era seguro seguir pela área descampada, atravessou a leira de sempre-vivas e começou a descer o vale, onde a antiga fazenda ia aos poucos se deteriorando.
capítulo 63
JÁ NÃO HAVIA MAIS SINAL da cerca e a parte dos fundos da casa vergava sobre si mesma, como numa reverência nal. E a estrada de acesso (ou o que sobrara dela) estava coberta por um extenso tapete de capim, com marcas de pneus quase imperceptíveis. O celeiro, porém, ainda se encontrava de pé. Ou quase isso, já que arbustos e trepadeiras tornavam a parte dos fundos praticamente inacessível. Alguém tinha arrancado as duas grandes portas da frente e a janela que dava acesso ao palheiro, mais acima. Como faltavam algumas tábuas perto do telhado, o conjunto parecia um rosto cheio de buracos. O sequestrador via a entrada como uma boca. Já do lado de dentro, desamarrou o coelho e o deixou junto ao último animal que ele havia caçado. Retirou da bolsa uma caixinha com soda cáustica em grãos e uma pequena garrafa plástica que ele enchera com água em casa. Em seguida esvaziou os dois recipientes sobre o coelho. A soda cáustica acelerava a decomposição dos tecidos e a água servia como catalisador daquela substância corrosiva. Era uma brincadeira típica de quem morava em fazenda, além de ser uma boa maneira de afugentar estranhos. Não que alguém se desse o trabalho de ir até ali, mas por via das dúvidas... Ninguém gosta de topar com uma carcaça de animal pelo caminho. Nos fundos do celeiro, mais precisamente na última baia do estábulo, afastou uma pilha de tábuas apodrecidas e retirou várias camadas de papelão umedecido. A tampa do alçapão não tinha mais puxador, apenas um vão entre as tábuas, por onde era possível levantá-la. Ele a abriu, encostou-a na parede da baia e desceu pela escada de madeira. A antecâmara do porão (caso aquele espaço houvesse sido usado para esse m) tinha pouco menos de quatro metros quadrados. O espaço do outro lado da porta teria o dobro dessa medida. A luz que vinha do alto mal iluminava a porta de correr que ele instalara havia muito tempo. Ele a abriu e jogou as barras de cereais e as caixas de suco. Nenhum dos dois que estavam ali dentro falou com ele. Eles tinham parado de puxar conversa logo nos primeiros dias. Mas o sequestrador ouviu alguém se mexer. – Ethan? Ethan, aqui. Ouviu o ruído de plástico sendo rasgado e depois o barulho das crianças devorando a comida. A fome que sentiam era tão grande que talvez não tivessem ligado se soubessem o que havia misturado ao suco. O sequestrador cou agachado com as costas apoiadas à porta, ouvindo o que se passava à sua frente. A respiração dos meninos voltava ao normal sempre que terminavam de beber o suco. Em poucos minutos ambos estariam apagados. Gravar. “Todo mundo vai querer saber o que eu estava pensando, descobrir que monstro seria capaz de fazer uma coisa dessas. Já consigo imaginar as centenas de hipóteses levantadas.
Mas talvez – repito, talvez – tudo isso seja por um motivo que vocês ainda não consigam perceber. Chego a me perguntar se isso já não lhes passou pela cabeça. Ethan e Zoe não merecem esse destino, mas eu também não mereço. Acham que eu não preferiria estar em outro lugar agora, sem falar nada? Quem dera eu tivesse essa sorte. Então é isso. Se querem saber o que passa pela minha cabeça enquanto gravo estas palavras, lá vai. A resposta é simples. Penso no meu lho. O amor da minha vida. Em que vocês estão pensando?” Parar.
capítulo 64
RYAN TOWNSEND ERA UM MENINO AGITADO, mas eu não podia culpá-lo por isso. Anal, ele estava diante de um detetive de polícia e dos próprios pais. Seus pés não paravam quietos durante nossa conversa. Precisei telefonar algumas vezes, mas o deputado e a Sra. Townsend acabaram me liberando para uma rápida conversa com seu lho. Obviamente dentro das condições estabelecidas por eles. Encontramo-nos às 8h30 do sábado em sua enorme casa com mansardas na Rua 30, em Georgetown. – Vai ser rápido – foi a primeira coisa que eu disse ao menino. – Bem, li o que você declarou aos agentes do FBI. A maior parte é sobre a briga que teve com Zoe na manhã do sequestro. – Não foi uma briga – interveio o deputado. Ele e a esposa estavam sentados à minha frente num sofá com pés em forma de garra. – Com o devido respeito, Zoe acertou o nariz de Ryan com um livro, fazendo-o sangrar. Quero que isso fique claro. O menino afundou na cadeira e seus pés descalços passaram a roçar o piso de madeira com mais velocidade. – Muito bem – tentei novamente. – Ryan, o que eu quero saber é por que as coisas começaram a se complicar entre você e Zoe. – Isso tem importância? – perguntou a Sra. Townsend. – Não me diga que Ryan tem alguma coisa a ver com isso! – De jeito nenhum – respondi. – Estou apenas tentando descobrir o máximo possível sobre Ethan e Zoe. Acho que seu filho pode ajudar. Era por esse motivo que eu queria conversar com Ryan a sós, mas isso estava fora de questão. Os pais do menino tinham o direito de permanecer ali e pareciam não querer abrir mão disso. – Continue, lho – disse o pai ao garoto. – Não temos nada a esconder. Pode responder à pergunta. – Foi Zoe quem começou – disse ele após respirar fundo e encher as bochechas de ar. – Deixei meu celular no ônibus durante uma excursão ao Museu Aeroespacial no ano passado. Ela então leu uma mensagem minha. Quero dizer, minha não, que estava no meu telefone. E aí ela pirou! – Querido, já disse que não gosto de gírias – disse a Sra. Townsend, dirigindo-me um sorriso. Ryan revirou os olhos enquanto o deputado consultava seu celular. – Ela me xingou e não acreditou quando eu disse que não tinha escrito aquilo. Então eu resolvi deixar para lá. Desde então ela se virou contra mim. Eu não achava que iria ouvir a história inteira, mas ao menos era o próprio Ryan quem estava falando. Eram suas palavras, os detalhes que ele lembrava. – Você sabe o que estava escrito na mensagem? – perguntei. – Não fui eu que a enviei – respondeu imediatamente. – Juro!
– Tudo bem. Só quero saber o que aconteceu – pedi. – Pode falar. – Ryan, responda à pergunta do detetive. Você sabia ou não o que estava escrito na mensagem? – perguntou o deputado. O menino me encarava pela primeira vez desde o início da conversa. Enrolou num dedo os cordões do capuz de um agasalho do Branaff e depois o desenrolou. Em seguida voltou a enrolar. Por fim ele disse: – Você acha que eles estão mortos? – Ryan! – exclamou a mãe. – Que coisa horrível! Acho que ele apenas tentava mudar de assunto, mas de todo modo segui em frente: – Espero que não – respondi, arrancando uma folha de meu bloco de anotações e deslizando-a por cima da mesa. – Que tal escrever a mensagem neste papel e terminamos logo esse assunto? Ryan girou em sua cadeira e olhou novamente para o pai. O deputado fez que sim com a cabeça e eu entreguei a caneta ao menino. Ele colocou as mãos em concha e escreveu alguma coisa, virando a folha em seguida e colocando-a sob uma pequena escultura na mesinha de centro. – Posso ir? – perguntou ele. – Pode sim. Obrigado, Ryan – agradeci. – Você ajudou muito. Depois que o menino saiu da sala, virei o papel de modo que seus pais e eu conseguíssemos ver o que estava escrito. Numa letra repleta de garranchos, típica de uma criança, foi possível ler: Zoe, quero beijar suas tetas! – Oh, meu Deus! – disse a Sra. Townsend desviando os olhos. – Isso é repulsivo! O deputado pegou o bilhete na mesa e o enou no bolso sem considerar a hipótese de o papel ficar comigo. – Vamos conversar com o diretor Skillings sobre isso, à parte de qualquer outra coisa! – falou. Eu entendia seu constrangimento, mas aquela mensagem me pareceu uma brincadeira de garoto. O tipo de coisa que um menino escreve para impressionar os amigos assim que os hormônios começam a atuar, ainda que ele não saiba bem o signicado daquilo. De qualquer maneira, agradeci aos Townsend e saí tranquilamente da casa. Quando cheguei ao carro, escrevi uma frase em meu bloco de anotações. Eu voltaria a ela mais tarde: Onde está o celular de Zoe?
capítulo 65
PASSEI A MAIOR PARTE DO DIA cruzando a cidade, conversando com outros alunos do Branaff que conheciam Zoe ou Ethan e se relacionavam com eles. No m da tarde segui até Riverdale, no estado de Maryland, para uma visita que não havia sido combinada. George O’Shea morava numa casa gradeada de esquina num bairro de classe média próximo à Rodovia Leste-Oeste. Entrei no acesso para carros recém-asfaltado, estacionei sob a cesta de basquete e fui tocar a campainha. O sujeito fumava um charuto quando veio à porta. O uniforme que usava no Branaff estava sempre limpo e passado, mas naquele dia ele vestia uma velha camisa de anela aberta no peito. Eu podia ouvir o som de uma partida de beisebol na TV em algum lugar dentro da casa. – Detetive Cross, não é isso? – perguntou, olhando-me com os olhos apertados através da tela cheia de sujeiras de mosca. – Desculpe incomodá-lo num sábado – falei. – Estamos trabalhando nesse caso dia e noite. Se não se importar, eu gostaria de fazer mais algumas perguntas. Por alguns segundos o homem pareceu incomodado, como se não tivesse certeza de que eu contava toda a história; e ele tinha razão. Volta e meia eu me pegava pensando em O’Shea e era difícil dizer o motivo. Tinha um ligeiro pressentimento de que ele escondia alguma coisa por trás daquele sorriso e de seu interesse pelo trabalho da polícia. Tudo não passava de simples intuição, mas era o que bastava para eu estar ali. – Como anda a investigação? – perguntou. – Alguma pista quente, ou seja lá como vocês chamam? – Por enquanto não temos nada conclusivo – respondi. Balançou a cabeça e inclinou o corpo para trás, apoiando o peso nos saltos do sapato. – Certo, eu entendo. Mas deve ser um trabalho interessante, não? Olhei-o através da porta de tela. Em que ele estaria pensando? – Posso entrar um pouquinho? – perguntei. – Ah, sim. Claro! – respondeu, como se ainda não tivesse imaginado aquela possibilidade. – Eu estava fazendo café. Aceita uma xícara? – Não, obrigado. Vou ser breve. Ele apontou para trás com o polegar assim que atravessei a porta: – Vou desligar a cafeteira. Fique à vontade. Parei onde estava e examinei o homem seguindo em direção à cozinha. – Deve ser um saco trabalhar no m de semana – gritou ele lá de dentro. – Essa é uma vantagem do meu emprego. Ao menos tenho um horário fixo. – Sei... – respondi, observando sua correspondência na mesinha ao lado do sofá. Eram contas em sua maioria, e a maior parte delas ainda não tinha sido aberta. Havia alguns saleiros e
pimenteiros empoeirados num armário de vidro junto à parede. – Por falar nisso, você tem a escala de horário dos faxineiros do colégio? O’Shea não respondeu. O locutor da TV berrava sua indignação pelo fato de um jogador ter desperdiçado a chance de fazer um home run. Eu então percebi que havia algo errado. – George? Quando cheguei à cozinha, não encontrei mais ninguém. George tinha sumido. A porta dos fundos estava escancarada e avistei O’Shea no gramado, pulando o alambrado do quintal para ganhar a rua. O desgraçado estava fugindo.
capítulo 66
NÃO EXISTE NADA MAIS IRRITANTE do que uma corrida inesperada. Se não estou enganado, quebrei a porta de tela ao sair correndo da casa de George O’Shea, meio segundo depois. Ele era um sujeito grandalhão a quem os alunos chamavam de Rúbeo Hagrid pelas costas. Mas O’Shea era mais rápido do que eu imaginava. Quando cheguei à rua, ele já estava no meio do quarteirão. Ele devia ter motivo para correr de mim. – Espere, George! Um sujeito que varria folhas com um ancinho já estava com o celular na mão quando passei à sua frente. – Chame a polícia – berrei, antes de ele tirar uma foto minha. Dois garotos que brincavam na calçada gritaram em minha direção, pedalando seus velocípedes como loucos para tentar acompanhar meu ritmo. O quarteirão terminava numa rua sem saída. O’Shea passou por entre duas casas e continuou em sua fuga. Quando o avistei novamente, ele tentava pular a cerca de um quintal. Ele conseguiu se agarrar ao topo da estrutura na segunda tentativa e agora içava o próprio corpo. Só que uma das tábuas se partiu e ele escorregou no momento em que o alcancei. O homem caiu em cima de mim e me derrubou no chão. Mas o espetáculo não tinha chegado ao fim. Eu estava com as algemas na mão quando O’Shea, de joelhos, me deu uma cotovelada no queixo, jogando-me para trás. Senti o sangue na boca. Foi aquele gosto metálico que me ajudou a despejar rapidez e potência no soco que lhe apliquei com a direita, derrubando-o sentado. Achei melhor sacar minha pistola. – Deite-se de bruços e mãos na cabeça! – gritei. Ele parecia meio fora de si, pois partiu para cima de mim e só parou quando viu minha arma a poucos centímetros de sua testa. – George, não faça isso. Não! – berrei. Foi como se toda a sua energia se esvaísse de repente. Seu rosto também demonstrava sinais de cansaço, e o homem simplesmente desabou. Quando coloquei as algemas em seus pulsos, ele começou a chorar. – O que eu fiz? – repetia o tempo todo. – Ó meu Deus, o que eu fiz? Era exatamente isso que eu queria saber.
capítulo 67
A SESSÃO DE LAMÚRIAS COMEÇOU em meu carro e continuou por muitas horas. George foi levado para a cadeia do FBI em Washington. Eu o conduzi pessoalmente até lá, entrando pelo portão lateral e seguindo até a portaria do prédio principal. Dali foi um pulo até as salas de interrogatório no térreo. Ninguém estava sabendo de nada. O Bureau não se pronunciaria sobre a prisão por enquanto. Não até que O’Shea começasse a falar. Uma equipe de peritos seguiu até a casa dele em Riverdale e outra foi dar uma olhada em seu escritório no Branaff para ver se descobriam alguma coisa. Não havia dúvida de que George estava escondendo algo. Era apenas uma questão de tempo até descobrirmos o que era. A equipe em Riverdale entrou em contato por volta das sete, dizendo ter encontrado um laptop no closet de George. Pelo visto o HD estava repleto de fotos pornográcas, a maioria de crianças. O’Shea parecia ter uma queda por meninas de três ou quatro anos. Era uma coisa repugnante, uma prova mais do que suciente para mantê-lo atrás das grades. Quando Peter Lindley chegou, um burburinho tomava conta do compartimento anexo à sala de interrogatório. – O que temos aqui? – perguntou, pegando uma pasta de um dos agentes especiais que estavam de serviço. – George O’Shea – respondeu o ocial. – É o responsável pela manutenção do Colégio Branaff. – Pelo amor de Deus, isso eu já sei! Quero saber o que está acontecendo! – insistiu Lindley, mal-humorado como sempre. Alguns ociais abriram caminho para que ele se aproximasse do vidro. Do outro lado do espelho de face única, O’Shea estava sentado diante de Ken Mugatande, supervisor da Unidade Antissequestro Infantil do FBI. O interrogatório já durava duas horas. George estava curvado para a frente, a cabeça apoiada nos punhos cerrados. – Ele admitiu ser o dono das fotos – contei a Lindley. – Mas jura que não sabe de nada sobre o desaparecimento de Ethan e Zoe. – Ele está pedindo um detector de mentiras – disse o agente especial. Lindley se virou e lançou um olhar fulminante para o homem. – O escritório desse sujeito não ca a oito metros do túnel da escola? – Sua pergunta era retórica. – Então que diabos estamos fazendo aqui? Vamos levá-lo para a sala do detector de mentiras. Agora!
capítulo 68
A SALA DO DETECTOR DE MENTIRAS do FBI era parecida com uma sala de interrogatório: uma mesa pequena, duas cadeiras, paredes brancas e um grande espelho de face única. A grande diferença era o espaço exíguo reservado à observação: éramos 12 homens espremidos num cubículo. – Qual é seu nome? – George Luther O’Shea. – Endereço? – Edgewood Road, 1109. Riverdale, estado de Maryland. Tinha sido O’Shea quem pedira para ser submetido ao detector de mentiras, mas agora ele parecia ainda mais nervoso. Havia os presos a seu peito, um medidor de pressão enrolado no braço e dois terminais plásticos ligados aos dedos, e tudo se conectava a um laptop sobre a mesa. A psicóloga forense Sue Pilgrim tinha sido deslocada do Edifício Hoover para operar o detector. Ela estava sentada de costas para O’Shea, de modo que ele não pudesse vê-la durante o teste. As primeiras perguntas eram padrão (nome, endereço e algumas informações pessoais) e serviam para estabelecer um parâmetro às que viriam em seguida. Após George respondê-las, a psicóloga começou de fato o interrogatório. – O senhor já baixou intencionalmente alguma imagem pornográca infantil em seu computador? – perguntou Pilgrim. – Sim – respondeu O’Shea, demonstrando insegurança no olhar. – Enviou intencionalmente pela internet alguma imagem pornográfica infantil? – Não. Ambas as respostas foram acompanhadas por um gesto positivo da psicóloga. A julgar por ela própria e por sua máquina, o homem dizia a verdade. – O senhor conspirou com algum grupo ou cidadão de outro país para cometer um ato ilegal nos Estados Unidos? – perguntou ela. – O quê? – O’Shea girou a cadeira e olhou diretamente para a mulher. – De que diabo está falando? A psicóloga se referia à Al Ayla. Era uma possibilidade que precisávamos investigar. George poderia nos fornecer alguma pista sobre a Família caso a organização estivesse por trás do sequestro. Talvez ele fosse o homem do grupo dentro do colégio, alguém pago para repassar informações. Pilgrim reagiu à explosão de fúria com profissionalismo: – Sr. O’Shea, preciso que responda às perguntas da forma mais simples possível. Quer fazer uma pausa antes de continuarmos? – Não – disse ele, voltando à posição original. – Eu só... eu só não entendo aonde querem chegar com isso. O que quer dizer com... conspirar com outro país?
– Vou perguntar de novo – falou ela, repetindo a pergunta com as mesmas palavras. Dessa vez O’Shea respondeu com um simples “não” e mais uma vez a psicóloga fez um sinal positivo. Em seguida a mulher abriu uma pasta e colocou uma foto de 20x25cm na mesa diante dele. Era uma imagem de Ray Pinkney, o motorista da van. – Conhece este homem? – perguntou ela. Observei o rosto de O’Shea enquanto ele examinava a foto. Seu olhar estava xo e concentrado na imagem. – Nunca vi este homem em minha vida – falou. – O senhor sabe onde Zoe Coyle está neste momento? – perguntou Pilgrim. – Não. – E Ethan Coyle? – Também não! Todas as respostas eram acompanhadas por um gesto positivo da psicóloga. O detector de mentiras não é cem por cento infalível. Na realidade, ele apenas é uma ferramenta que aponta a direção a ser tomada. Ainda assim, parecia que estávamos chegando a uma conclusão a que não queríamos chegar. Podíamos sentir isso no ar. George O’Shea não era quem procurávamos. Aquele homem não tinha nada a ver com o sequestro.
capítulo 69
GEORGE O’SHEA TERMINAVA de ser submetido ao detector de mentiras quando recebi uma ligação. Pouquíssimas pessoas conseguiriam me arrancar daquela sala, mas uma delas estava do outro lado da linha. – Detetive Cross, aqui é Nina Friedman, da Casa Branca. O senhor poderia falar com a primeira-dama? Simples assim. Um telefonema de Regina Coyle, algo que acontece todos os dias. Mas era óbvio que eu podia falar com a primeira-dama! Saí e fui até uma das salas de interrogatório vazias. Quando fechei a porta atrás de mim, a Sra. Coyle entrou na linha. – Em que posso servi-la, senhora? – O que pode me dizer sobre esse tal de O’Shea? Sua pergunta me pegou desprevenido. O fato de ela já saber da prisão de George não era nenhuma surpresa, mas ainda assim eu me vi numa situação difícil. – Desculpe por perguntar, mas o que a senhora já sabe da história? – Sei quem ele é e os motivos pelos quais foi preso. Mas o que quero saber é o que você acha dele. – Posso lhe dizer que ele passou pelo detector de mentiras – respondi. – Mas há pessoas que conseguem driblar o aparelho. Já vi isso acontecer antes. – Sim, mas o que você acha, Alex? Você é meus olhos e ouvidos nesse caso. Não quero uma resposta categórica – falou. – Apenas algo que nos dê esperança. Quanto mais eu conhecia a Sra. Coyle, mais me sentia ligado a ela, uma proximidade em virtude de ambos termos filhos. Provavelmente eu disse mais do que devia: – Acho que ele não sabe onde Ethan e Zoe estão. Sinto muito. – Entendo – disse ela. Seguiu-se um longo silêncio do outro lado da linha. Eu podia ouvir as pessoas no corredor, saindo da sala de observação. O’Shea deveria ser transferido para o centro de detenção da Polícia Federal. Em seguida seria levado perante um tribunal de acusação e por fim conduzido à prisão. A acusação de pedofilia era o bastante para mantê-lo atrás das grades. – Sra. Coyle? – falei. – Ainda estou na linha. – Aproveitando a oportunidade desta conversa, eu gostaria de fazer uma pergunta sobre a manhã do sequestro. Se não houver problema quanto a isso. – Não há problema algum – disse ela. Àquela altura, qualquer coisa que desviasse seus pensamentos daquela última e decepcionante revelação seria bem-vinda. – Sabe se Zoe levou o telefone para a escola naquela manhã? – perguntei.
– O celular dela? – Isso. As crianças andavam falando de uma confusão a respeito de uma mensagem de texto no ano passado. Um incidente em que Zoe esteve envolvida. Eu me perguntava se... – Zoe não tem telefone – respondeu a Sra. Coyle. – Até onde sei. E, ainda que o Serviço Secreto autorizasse, nem o pai dela nem eu deixaríamos. Acredite em mim, detetive: isso foi motivo de briga em nossa família. Minha mente começou a repassar os acontecimentos daquele dia, bem como todas as informações que eu tinha sobre Ethan e Zoe desde o começo das investigações. – É possível que ela tivesse um celular? Quero dizer, um aparelho mantido em segredo? – perguntei. – Claro. Estamos falando de Zoe – respondeu. – Ela sempre consegue o que quer. Cá entre nós, todo mundo fala da inteligência de Ethan, mas, se quer saber minha opinião, acho que é minha filha quem tem futuro na política. Gostei daquela palavra. Futuro. Não iria me esquecer dela tão cedo. – Espero que investigue isso – disse a Sra. Coyle. – Claro – afirmei. – Já estou investigando.
capítulo 70
ÀS 23H15 DAQUELE SÁBADO, Ned Mahoney e alguns de seus melhores homens da Equipe de Resgate de Reféns entraram numa van do FBI sem identicação que estava parada no heliporto do Terceiro Distrito da Polícia Metropolitana. Mahoney preferia agir à luz do dia, especialmente nas primeiras horas da manhã. Mas, em virtude do caráter especial daquela operação, eles não podiam esperar. A ordem viera de Quantico uma hora e meia antes. O plano era deter quatro suspeitos sauditas escondidos num hotel ao sul de Silver Spring, Maryland. Provavelmente eram membros da Al Ayla, mas não havia nenhuma menção a isso no fax recebido por Mahoney. Ele examinava a planta do lugar enquanto a van cruzava Washington a toda a velocidade, rumo ao norte. O quarto 122 não apresentaria grandes diculdades: quarto principal, antessala, closet e banheiro. A única via de acesso era a porta da frente, que abria para o estacionamento. Uma equipe pequena, composta por quatro agentes do FBI, invadiria o local. – Aqui é a Equipe Vermelha. Estamos na Rua 16 seguindo na direção norte – disse Mahoney pelo rádio, comunicando-se com a unidade de comando, estacionada num antigo ponto de táxi a poucos quarteirões do hotel. – Qual é a visão que vocês têm do alvo? – Copiado, Equipe Vermelha – foi a resposta da unidade de comando. – Parece que todo mundo se recolheu para dormir. A equipe de reconhecimento já tinha chegado e discretamente retirara os hóspedes dos quartos vizinhos. O Grupo de Operações Especiais zera o cerco da área, espalhando seus homens em três telhados ao redor do hotel. A Polícia Metropolitana e os serviços de emergência também estavam a postos. Como sempre, a Equipe de Resgate de Reféns seria a primeira a entrar. Quando a van se aproximou, Mahoney colocou os óculos de proteção e levantou o polegar para os três agentes atrás dele, que retribuíram o gesto. Samuels, Totten e Behrenberg se encontravam prontos para entrar em ação. A unidade estava vestida e equipada para combate: macacões reforçados, coletes e capacetes à prova de bala e submetralhadoras. O equipamento pesado dicultava os movimentos, mas a adrenalina que corria nas veias daqueles homens compensava a desvantagem. O veículo nem chegou a parar totalmente quando as portas se abriram e a equipe desembarcou, tocando no chão e correndo em linha reta até o quarto 122. – Aqui é a Equipe Vermelha – disse Mahoney pelo rádio, atravessando o pátio. – Estamos entrando! Aqueles suspeitos tinham de ser da Al Ayla.
capítulo 71
– AQUI É O FBI! ABRAM! – gritou Mahoney. Ao mesmo tempo uma enorme barra de ferro arrombava a porta. A ação não levou mais do que um segundo. Ainda do lado de fora, Ned viu a porta do banheiro nos fundos do quarto bater. Avançou até lá com Samuels às suas costas. Totten e Behrenberg se separaram, vasculhando as camas, o closet e uma pilha de malas junto à parede. Uma corda com roupas brancas penduradas atravessava a antessala. Aquelas pessoas estavam hospedadas ali havia algum tempo. Com a sola da bota, Mahoney arrebentou a fechadura barata da porta do banheiro, que se abriu revelando quatro pessoas agachadas. Na mesma hora ele teve a impressão de estar diante de uma família: mãe, pai e dois lhos adolescentes. Os adultos faziam uma barreira na frente dos garotos, escondidos dentro da banheira. Havia sangue escorrendo pelo queixo dos quatros suspeitos. Ó meu Deus! – As mãos! Mostrem as mãos! – gritou Mahoney, segurando a submetralhadora diante de seus rostos. Samuels repetiu a ordem em árabe, mas nenhum dos quatro se mexeu. Agarravamse uns aos outros, os olhos arregalados sem qualquer sinal de medo. Aquela gente parecia disposta a morrer. – Comando, aqui é a Equipe Vermelha. Encontramos os quatro suspeitos no banheiro. Acho que acabaram de engolir as cápsulas. Provavelmente cianureto. Mandem uma ambulância o mais rápido possível. – Queremos eles vivos! – replicou a unidade de comando. Era só o que faltava, pensou Mahoney. A operação só valeria a pena se eles descobrissem alguma coisa sobre a Al Ayla. Ele se virou para Samuels e disse: – Pergunte se eles sabem algo sobre o grupo. A mãe e um dos meninos então começaram a ter convulsões. Quando Samuels tentou se aproximar, os outros dois se colocaram à sua frente. Os quatro ofegavam muito, dando a impressão de que respiravam com dificuldade. – Cadê os paramédicos? – gritou Mahoney pelo rádio. – Esqueça isso, chefe – berrou Totten do quarto. – Temos um problema aqui. Mahoney se virou e viu o agente deitado no chão, olhando alguma coisa debaixo de uma das camas. – Isso aqui parece um tijolo cinza. E tem uns os conectados... Ó meu Deus, precisamos sair daqui agora! – Totten, Behrenberg! – gritou Mahoney. – Vamos dar o fora! Já! Samuels, pegue uma dessas pessoas. Veja quem está com o detonador!
O agente estendeu o braço em direção a um dos garotos. A mulher, deitada no piso do banheiro, imediatamente ergueu a mão e sorriu com os dentes vermelhos de sangue. Seus dedos trêmulos seguravam um detonador cilíndrico. – Deus do céu! Mahoney então agiu por instinto. Bateu a porta para proteger os dois colegas no quarto e correu com Samuels para os fundos do banheiro no momento da explosão, que lançou os dois longe. Naquele espaço exíguo, eles caíram sobre os corpos da família. Pedaços de gesso pendiam do teto e a água do cano do chuveiro jorrava por uma longa rachadura na parede. Mahoney cou de pé com diculdade. Olhou ao redor e viu que o quarto estava em chamas. Não conseguiu enxergar Totten nem Behrenberg. Esperava que os dois estivessem a salvo e não... mortos. A explosão havia destruído toda a parte da frente do quarto, inclusive a grande janela de vidro. – Vamos sair daqui! – disse Mahoney, levantando Samuels do chão e empurrando o colega para fora. Deu uma rápida olhada e viu que um dos quatro suspeitos ainda se mexia. Era o garoto que Samuel tentara ajudar alguns segundos antes. Suas pálpebras mal se abriam e seu rosto estava roxo. Mahoney agarrou os braços do menino por baixo e começou a puxá-lo. O calor no quarto era intenso. Sentia a pele arder enquanto arrastava lentamente o menino, mantendo o corpo o mais curvado possível, ignorando a dor que castigava seus músculos. Movia-se bem devagar. De repente o menino soltou uma golfada de sangue e teve um último espasmo. Antes de chegar à porta do quarto, Mahoney já sabia que arrastava um cadáver.
PARTE QUATRO
O MAL NECESSÁRIO
capítulo 72
– FIQUE NA PONTA DOS PÉS! Isso mesmo. Ombro para a frente. Ótimo, perfeito! Agora pegue aquela lata de coca-cola. Ava estendeu a mão e pegou o refrigerante na prateleira onde eu o colocara. – Isso. Muito bem! Agora devolva-o ao mesmo lugar – falei. Ela obedeceu e em seguida soltou os braços ao lado do corpo, revelando sua insatisfação: – Achei que boxe fosse dar socos! – O que você acha que está aprendendo? Vamos lá, agora mantenha o cotovelo junto ao corpo – falei, demonstrando como ela devia fazer. – Braços fechados. Observe meus movimentos. – Não abra a guarda – disse Ali, também fazendo uma pequena demonstração. Ele estava adorando ser o professor de uma garota de 13 anos. Ava não dava muita bola para ele, já que não desgrudava os olhos de mim. – Como vou aprender se você não me deixa usar luvas? – Irá usá-las quando estiver preparada – respondi. – Agora pegue a lata novamente. Eu não sabia se a ideia de ensinar boxe a Ava era boa ou ruim. Mas ela havia demonstrado interesse e isso foi o suficiente para eu tentar. – Está gostando de sua nova escola? – perguntei, fazendo um gesto para que ela e Ali fossem até o centro do porão. Eles já conheciam o exercício. Ava manteve os cotovelos junto ao corpo enquanto levantava as mãos e colocava o pé esquerdo para a frente. Ali fez o mesmo. – Estou. A Sra. Hopkins é legal. A resposta podia não parecer grande coisa, mas era um enorme avanço em se tratando de Ava. Crianças de rua costumam ter duas atitudes básicas: ou se abrem muito depressa, demonstrando não conhecer limites, ou cam caladas sem dizer nada. Ava era deste jeito. Até aquele dia estávamos conseguindo nos entender: algumas vezes mais, outras, menos. Ainda havia muitas perguntas a serem feitas. Por exemplo: aconteceu alguma coisa com você enquanto morava na rua? Você sabia que sua mãe ia morrer? Por que se sente tão segura, Ava? Afinal, quem é você? As respostas acabariam vindo à tona uma hora. Por enquanto, eu me limitava a coisas mais simples como escola, comida, diversão e... boxe. Ensinei-lhes algumas técnicas de equilíbrio, demonstrei certos movimentos e depois deixei as crianças brincarem com o saco de areia. Aquela era uma das diversões favoritas de Ava. A garota abria um de seus raros sorrisos enquanto ela e meu lho esmurravam o saco, pulando e contornando as bolas de treinamento no chão. Os dois finalmente começavam a se entender. Dali a pouco Jannie desceu a escada e enfiou a cabeça por baixo do corrimão: – Pai, o Sr. Mahoney quer falar com você lá em cima. E Nana mandou parar com essa
confusão. Ela disse que está na hora de dormir. Olhei para o radiorrelógio no parapeito da janela. Eram 21h45 de um dia de semana. Ops! O que será que Ned quer a esta hora? – Tudo bem, crianças. Chega por hoje! O treino está encerrado – falei. – Só mais um pouquinho – pediu Ava, segurando o saco de areia com as mãos. – Negativo. Já passou da hora de dormir. Ali também. Vamos! – Eu nunca tive hora para dormir! – disse ela com a cara amarrada, dando um empurrão no saco de areia e derrubando Ali. Enquanto meu lho começava a chorar, Ava subiu a escada batendo os pés. Isto é, subiu até eu obrigá-la a descer e pedir desculpas. Primeiro a Ali e depois a mim. – Não haverá mais aula de boxe esta semana – determinei. – Você precisa de um tempo! Não é assim que as coisas funcionam nesta casa! – E alguém perguntou alguma coisa? – disse ela, daquele jeito encantador que é típico dos adolescentes. Em seguida se virou para subir. Como eu disse, estávamos conseguindo nos entender. Algumas vezes mais, outras, menos. Às vezes as duas coisas ao mesmo tempo.
capítulo 73
AVA AINDA ESTAVA DE CARA AMARRADA quando voltamos ao térreo. Passou reto por Mahoney, que esperava no vestíbulo. Ned apontou para as crianças que passaram à sua frente, olhou para os dedos da mão e perguntou, confuso: – Três? – Não pergunte nada – falei. – Essa daí é Ava. – Boa noite, Ava! – gritou ele em direção à escada. – Boa noite – disse Ava sem olhar para trás. Pelo menos ela havia respondido. – Boa noite, Sr. Mahoney! – Boa noite, Jannie. Boa noite, Ali. Boa noite a todos! Jannie e Ali gostavam de Ned tanto quanto eu. Quando as crianças sumiram no andar de cima, Mahoney abandonou o papel de “tio” e assumiu uma expressão grave. Eu não conversava com ele desde a incursão ao hotel, três dias antes. Acho que era a primeira vez que eu via meu amigo barbado e com pressa de ir embora. – Como estão os rapazes? – perguntei. – Já viveram dias melhores. Totten já voltou para casa, mas Behrenberg vai car na unidade de queimados por pelo menos mais duas semanas – respondeu balançando a cabeça. – E você? Tudo bem? Ned deu de ombros e disse: – Estou aproveitando a folga forçada para dar uma força à esposa de Behrenberg no hospital. Mas amanhã volto à ativa. – Isso é bom, não é? – Claro! Nada é pior do que ficar parado. Se não trabalhar, eu enlouqueço! Eu imaginava que Ned devia se sentir responsável pelo que acontecera. No lugar dele eu sentiria a mesma coisa. – Ned, se você quiser conversar sobre... – Obrigado – falou. – Já estou conversando com uma psicóloga do FBI. Ela é muito boa, além de ser mais bonita que você. Fiquei feliz em ver que Ned não tinha perdido o senso de humor. – Bem, quer beber alguma coisa? Tenho um uísque que você não vai recusar... – brinquei. – Na verdade... – disse Ned, dando um passo em direção à porta. Meu amigo estava com as chaves do carro na mão e exibia um olhar que eu já conhecia. O olhar que indicava que ele não conseguia se afastar do trabalho. – Estava pensando se você não gostaria de dar uma volta. Há uma coisa que talvez você queira ver. Algo interessante. Com certeza vai gostar. – Então vamos logo, Ned!
capítulo 74
MEIA HORA DEPOIS, MAHONEY E EU chegamos a um edifício de tijolos vermelhos de quatro andares na esquina da Rua 6 com a P , diante da mesquita Al-Qasim. Estacionamos atrás do prédio, subimos pelas escadas até o terceiro andar e entramos num apartamento com vários pequenos quartos. O lugar estava praticamente vazio. Havia algumas poucas cadeiras de plástico e enormes mesas dobráveis, todas repletas de equipamentos de escuta. Dois agentes estavam sentados com fones de ouvido e uma mulher se encontrava na cozinha com dois laptops à sua frente na bancada. Eu nunca tinha visto nenhum daqueles ociais antes, mas Mahoney parecia conhecê-los de longa data. Apresentou-me a Cheryl Kravetz na cozinha e apontou para Howard Green e Andrew Landry, a dupla com os fones. – Obrigado pelo convite – disse Mahoney a Kravetz. – Não vamos atrapalhar. – Sem problema – respondeu a agente. Kravetz continuou trabalhando enquanto conversava com Ned. Percebi que as duas telas à sua frente apresentavam imagens de seis diferentes câmeras de vigilância, todas controladas por um teclado externo ligado aos dois computadores. A julgar pelas imagens que eu via naquele momento, parecia não estar acontecendo nada de importante: um corredor vazio, uma espécie de sala de aula, um beco escuro. – Os éis da oração da noite se foram há cerca de uma hora – disse ela. – Ainda não sei o que está acontecendo. – Alguém foi atrás deles? – perguntou Ned. – Qual foi a última vez que prendeu alguém na porta de uma mesquita? – rebateu Kravetz. – Ou de uma igreja? Isso é muito complicado. Aliás, precisamos ser discretos. Achei melhor não falar nada, pois aquela operação não era minha. Mahoney se limitava a me dizer que o contato dentro da Al Ayla vinha passando várias informações sobre o grupo. O FBI devia prender alguém naquela noite, mas eu não fazia a menor ideia de quem fosse. Uma hora se passou sem que nada de relevante acontecesse. Ned e eu conversávamos em voz baixa quando um dos agentes com fones de ouvido levantou a mão e estalou os dedos. – Venham ver! – disse Kravetz. Ficamos atrás dela e vimos duas imagens nas telas dos laptops. Pareciam a parte da frente e os fundos da mesquita. Dali a um segundo uma das portas duplas que dava para a rua se abriu e uma mulher de véu islâmico e casaco comprido saiu de costas para a calçada. – Que diabo...? No instante seguinte conseguimos ver o homem na cadeira de rodas. Após passar pela porta, a mulher deu um giro de 180 graus e começou a empurrar a cadeira em direção à rua. – São eles? – perguntou Mahoney.
Os dois eram atarracados e deviam estar na casa dos 60 anos. O homem quase não tinha pescoço e poucos os de cabelo eram vistos em sua cabeça. A mulher parecia andar com dificuldade. Olhando melhor, era possível perceber que ela mancava. Kravetz mexia em seus controles, tentando aproximar o foco da câmera. – Vamos ver... vamos ver... – disse ela. Assim que o casal começou a se mover pela calçada, dois carros do FBI pararam junto ao meio-o. Numa fração de segundo meia dúzia de agentes cercou a dupla, um deles assumindo o controle da cadeira de rodas e outro algemando a mulher. Eu podia ouvir o homem da cadeira gritando, mas não conseguia entender o que ele dizia. Tudo aconteceu muito rápido. Mal a mulher sumiu dentro de um dos carros, uma van adaptada para cadeirantes parou no local. Certamente o FBI estava preparado para aquilo. Embarcaram o homem no veículo e então partiram como se nada tivesse acontecido naquela esquina tranquila. Olhei para Ned quando a operação chegou ao m. Ele encarava a tela com um olhar vazio. Algo me dizia que ele pensava no terrível episódio do hotel. Será que aquele casal era o responsável? Eles teriam planejado tudo? – Para onde vão levar aqueles dois? – perguntei a ele. – Alguma ideia? Mahoney deu de ombros e respondeu: – Espero que seja para o inferno.
capítulo 75
O HOMEM NA CADEIRA DE RODAS se chamava Faizal Ahmad Angawi. Segundo a informante, ele era conhecido como “Tio” pelos membros da organização. Quando o casal chegou ao seu destino, o homem foi retirado da van e seus olhos foram destapados. – Seus malucos! Que lugar é este? – gritou ele aos agentes do FBI. – Estão violando suas próprias leis! Eles se encontravam numa ampla garagem sem aquecimento nem janelas, tudo para que os dois não soubessem onde estavam. Havia uma plataforma de carga e uma longa leira de prateleiras de aço vazias numa das paredes. Lâmpadas uorescentes pendiam do teto alto. E, claro, fazia muito frio. Matt Sivitz, interrogador da CIA, se postou diante de Angawi. Suas mãos estavam cruzadas às costas e o homem sentado à sua frente não parava de esbravejar: – Tenho meus direitos! Não podem fazer isso. Chamem meu advogado agora! – Claro – disse Sivitz. – Seu advogado chegará aqui assim que acordar desse sonho, Sr. Angawi. Ou devo chamá-lo de Tio? – Tio? O que signica isso? – perguntou o homem na cadeira, assumindo uma expressão de surpresa que crispava os cantos de sua boca. – Não seja atrevido. Sabe muito bem do que estou falando! Sivitz buscou uma cadeira dobrável na plataforma e se sentou diante de Angawi, tando-o nos olhos. – Quer saber o que eu acho? – começou ele. – Acho que está envolvido em alguma coisa e não quer me contar. Você responde a alguém na Arábia Saudita e transmite as ordens ao pessoal daqui. Mas ao mesmo tempo não controla nada. Tem conhecimento mas não tem poder. E é isso que o torna vulnerável. Acertei? – Acertou o quê? – gritou Angawi. – Isso é um absurdo! Sou um cumpridor das leis. Olhe para mim! – exclamou ele, levando as mãos às rodas da cadeira, que estavam travadas. Sivitz levou o indicador aos lábios, num gesto que também era de advertência. – Estamos vigiando você há muito tempo. O agente retirou um pedaço de papel do bolso, desdobrou-o, deu uma rápida conferida e então se dirigiu a Angawi: – O número 20852409 signica alguma coisa para você? Não? Por acaso tem diculdade para decorar números de contas? Já ouviu falar do Banco Trinity, agência de Washington? E do Banco Britânico Saudita, em Riad? O homem na cadeira de rodas não aguentava mais aquela situação: – Você não pode me intimidar! – cuspiu ele. – Todas as minhas contas são perfeitamente legais.
– Todas as contas de Faizal Ahmad Angawi são legais. É verdade... – debochou Sivitz, concordando com a cabeça. – Mas não as que você abriu em nome de Muhammed Al-Athel! Ou da Instituição Esperança! Ou das Propriedades Chesapeake – continuou o interrogador, observando o homem enquanto falava, avaliando suas reações. – É para onde vai o dinheiro da Al Ayla, não é? Por favor, corrija-me se eu estiver errado. Posso estar falando alguma besteira. Angawi não dava o menor sinal de reconhecer qualquer uma daquelas acusações. Era possível detectar apenas um ódio puro e sincero. – Tenho direito a um advogado – repetiu. – Quero que me levem agora de volta à mesquita! Entendeu? Por acaso está gravando esta conversa? De repente Sivitz se levantou, derrubando a cadeira em que estava sentado. – Escute. Escute com atenção. Se quiser ver sua mulher novamente, está na hora de parar com essa palhaçada e abrir o bico. Quem é o seu contato na Arábia Saudita? – Está ameaçando minha mulher? – perguntou o homem, tremendo de raiva. – Eu não, Faizal... Você é quem está! O que estou dizendo é que, pelo andar da carruagem, vocês vão passar o resto da vida em diferentes prisões americanas! Portanto, abra logo o jogo! Quem está no comando das operações aqui em Washington? – Isso é ilegal! Uma atitude racista! Um abuso de... – Onde estão Ethan e Zoe Coyle? Angawi recuou o corpo na cadeira e cuspiu no rosto do agente. Sivitz cou furioso e foi para cima de Angawi, que se encolheu e levou as mãos à cabeça a m de se proteger. Era sinal de que o homem estava baixando a guarda. O interrogador respirou fundo para se acalmar. Ele não iria agredir um aleijado, tampouco produziria um prova contra si. Em vez disso, inclinou-se e agarrou o queixo de Angawi. – Olhe para mim – falou, e o homem lentamente ergueu a cabeça. – Se quiser continuar matando seu povo, vá em frente! Mas inclua sua mulher na lista. Não vai fazer a menor diferença para mim. Fique sabendo que só vamos sair daqui quando me disser algo útil. Mas saiba que vou maltratar você! – falou Sivitz, largando o queixo do homem, que agora parecia visivelmente abalado. – Você sabe o que eu quero, Faizal! Quero nomes, lugares e alvos! Angawi respirou fundo. Pela primeira vez o agente do FBI cou na dúvida de qual seria a atitude do homem na cadeira de rodas. Talvez finalmente fosse conseguir arrancar algo dele. – Eu... quero... ver... meu... advogado – disse Angawi. A lentidão em suas palavras parecia um deboche. Em seguida o homem cruzou as mãos no colo e abaixou a cabeça para descansar ou rezar. Era difícil dizer. Sivitz o observou por um minuto e então se afastou. Pegou um chiclete no bolso e começou a desembrulhá-lo enquanto se dirigia à plataforma. – Preciso de um cigarro! – resmungou para si mesmo. Aquela noite seria longa.
capítulo 76
COM EXCEÇÃO DE UM AGENTE armado junto à parede dos fundos, não havia mais ninguém no corredor da plataforma de carga. O guarda apertou o botão do elevador ao ver que Sivitz se aproximava. – Como vão as coisas? – quis saber o homem. O interrogador ignorou a pergunta e entrou na cabine. Subiu ao sexto andar, onde um agente o esperava. Avançando pelo corredor, passou por vários escritórios às escuras até chegar ao último, com uma réstia de luz passando por baixo da porta. Uma placa junto à parede apresentava seu nome em letras de forma sob o escudo da CIA. Sivitz bateu duas vezes e abriu a porta com a própria chave. Do lado de dentro, a Sra. Angawi se achava sentada à mesa de reuniões com uma intérprete que ele conhecia do quartel-general. Peter Lindley também estava presente, assim como Evan Stroud, da Diretoria de Inteligência, que designara Sivitz para aquela missão. Os quatro tinham diante de si sanduíches, batatas fritas e água, trazidos da copa situada no outro extremo do corredor. – Como estão as coisas? – perguntou Sivitz. – Todo mundo satisfeito e à vontade? A intérprete repetiu calmamente a pergunta à Sra. Angawi, que deu início a uma avalanche verbal em árabe: – Quero sair deste edifício e desta cidade. É um lugar amaldiçoado – disse a intérprete, enquanto a mulher continuava a falar. – Eu não devia estar aqui. Não é seguro para mim. – Diga que ela irá para um hotel ainda hoje. Um lugar totalmente seguro –falou Stroud. – Assim que conseguirmos o que queremos, outras providências serão tomadas em seu benefício. Sivitz preferiu não dizer o que passava pela sua cabeça. Aquela mulher parecia muito simplória. Era surpreendente que o FBI esperasse tanto dela. Mas até aquele instante tudo o que ela tinha dito era verdade. Talvez seu povo a subestimasse também. Percebeu que a mulher não se preocupava em esconder o rosto com o véu mesmo diante de homens desconhecidos. Aquilo dizia muito sobre ela. – Quero uma nova vida – continuou falando por meio da intérprete. – Meu marido mudou muito depois do casamento. Não consigo car indiferente diante de tantas coisas acontecendo. Tenho amigos aqui. Amigos americanos, entende? – Sim, eu entendo – respondeu Sivitz. Ela então começou a dirigir suas palavras ao interrogador. Talvez achasse que não iria conseguir nada com Stroud e Lindley. Mas ele não estava ali para passar a mão na cabeça de ninguém. – Pergunte a ela a quem o marido se reporta na Arábia Saudita. Precisamos saber quem está dando as ordens. – Nós já tentamos, Matt. Você sabe muito bem disso – falou Stroud.
– Pode fazer esse favor? – pediu Sivitz, sentindo a adrenalina ainda correr pelas veias. Àquela altura ele pouco se importava com questões hierárquicas. Stroud acenou para a intérprete, que fez a pergunta à Sra. Angawi. – Eu não sei – traduziu ela. – E quanto aos Coyle? – quis saber Sivitz. – Meu marido diz que a Família é a responsável. Ele disse isso a dois outros sauditas. Os que estão no comando agora, acho eu. – Quem são eles? Os nomes? A aparência? Onde eles estão? Sivitz tentava conter sua impaciência, mas o relógio não parava de correr. – Acho que ela é médica. O homem é bem simples: na aparência e talvez nas próprias ideias. Se não me engano, é a mulher que está no controle. Ela é muito decidida. – Sabe os nomes deles? – insistiu Sivitz. – Não. – Onde eles estão? – Também não sei. – Meu Deus... O interrogador se virou e foi até a janela. A cúpula do Capitólio se projetava alguns quarteirões adiante, com a torre do Monumento a Washington um pouco mais além. Washington era linda à noite, ainda que ele não tivesse tempo de aproveitá-la. Mais uma vez a mulher se manifestou, seguida pela intérprete. Parecia dizer algo importante, já que seu tom de voz era mais alto. – O que posso dizer é onde acontecerá o próximo ataque. E talvez quando ele ocorrerá. A sala mergulhou num profundo silêncio. Quando Sivitz se aproximou da mesa, a expressão da Sra. Angawi havia mudado. Ela estava sorrindo? Os cantos de sua boca pareciam arqueados. – Então diga – falou Sivitz, enquanto Lindley já discava seu celular. – Diga o lugar, o horário... tudo que souber! Depois atenderemos a seus pedidos. A mulher se recostou na cadeira com um sorriso no rosto. Conseguia ser tão petulante quanto o marido. Lentamente pegou a metade do sanduíche que sobrara, embrulhou-a com cuidado num guardanapo, guardou-a na bolsa sobre a mesa e acomodou-a em seu colo. Enquanto isso, falou bem devagar: – Quando me tirar desta maldita cidade, eu direi tudo o que você quer saber.
capítulo 77
A PRIMEIRA COISA QUE FIZ na manhã seguinte foi sair à caça do celular de Zoe Coyle. O número que suas amigas me deram me levava a um aparelho pré-pago, desses à venda em qualquer loja de conveniência e sem necessidade de plano nem cadastro. De qualquer maneira, Zoe deve ter tido dificuldade para mantê-lo em segredo. Eu me perguntava onde o celular da menina estaria naquele momento. Enterrado em algum lugar? Despedaçado no acostamento de uma estrada? No porta-luvas do carro de algum maluco? Nenhuma daquelas opções era boa. Tão logo consegui as assinaturas necessárias, enviei por fax uma intimação para a operadora, que cava em Jacksonville, na Flórida. Dei a eles uma hora para me passarem os registros telefônicos de Zoe. Como não tive resposta, resolvi ligar e deixar uma mensagem para um dos diretores: uma nova intimação já estava a caminho. Dessa vez ele entregaria os registros diretamente a um juiz, se era assim que as coisas funcionavam. Meu telefone tocou cinco minutos depois. – Detetive Cross, aqui é Bill Shattuck, da Operadora Essential. Como posso ajudá-lo? – Acho que não preciso repetir. É só dar uma olhada no fax – respondi, curto e grosso. – Estou com os registros telefônicos aqui na minha frente. Mando isso por e-mail? – Por favor... E muito obrigado. – Mais uma coisa – disse o homem após pigarrear. – O documento traz os números de todos os torpedos e chamadas de voz. Mas o conteúdo das mensagens ca armazenado em nosso sistema durante sete ou oito dias e então é apagado. E o último registro de mensagem nesse número é de... deixe-me ver... vinte dias atrás. Um torpedo recebido em 9 de setembro. Aquilo não foi nenhuma surpresa, apenas um soco leve na boca do estômago. Nove de setembro era o dia do sequestro. – Então mande o que tem. Obrigado mais uma vez – falei, desligando em seguida. O e-mail chegou no minuto seguinte. Fui até o nal do documento e examinei o dia 9 de setembro. A mensagem de que ele falara era o único registro naquela data. O torpedo chegara ao telefone de Zoe às 8h05, no horário das aulas do Branaff. E cerca de 15 minutos antes do desaparecimento de Ethan e Zoe. Precisei fazer uma única ligação para descobrir quem havia mandado aquela mensagem. O número estava registrado em nome de uma certa Cathy Allison, moradora de Foggy Bottom. Eu me lembrava até da casa. Tinha ido lá no sábado anterior para conversar com a lha da Sra. Allison, Emma, uma das amigas mais próximas de Zoe. Olhei para o relógio. Eram 10h15. Emma devia estar assistindo à terceira aula do dia. Peguei a chave do carro e me encaminhei para a porta. Eu chegaria ao Branaff no início da quarta.
capítulo 78
EMMA ARREGALOU OS OLHOS quando saiu do laboratório de ciências e deu de cara com o diretor do colégio, que estava um pouco à minha frente. – Emma, o detetive Cross quer fazer algumas perguntas – disse o Sr. Skillings. Tive a impressão de estar diante de uma garotinha assustada, mas o lápis carregado em volta dos olhos e a calça rasgada me deram certeza de que Emma tinha 13 ou 14 anos. As botas de sola grossa eram parecidas com as que Zoe usava na manhã de seu desaparecimento. – Eles acharam Zoe? – a menina deixou escapar. – Diga que sim! Por favor, diga que a acharam! – Não. Sinto muito, Emma – respondi. – Na verdade, eu gostaria de dar uma olhada no seu celular. – Meu celular? Mas por quê? Aconteceu alguma coisa? – O aparelho está com você? – Espero que não – disse Skillings enfaticamente. – Os alunos não podem levar qualquer aparelho eletrônico para a sala de aula. Não é, Emma? – Ele está no meu armário – respondeu a menina. Sem disfarçar sua impaciência, o diretor fez um gesto para que ela seguisse pelo corredor. Eu já havia esperado uns 15 minutos em seu gabinete enquanto ele tentava localizar a Sra. Allison e conseguia permissão para falar com Emma. Caminhando à nossa frente, a menina saiu do corredor, atravessou uma passagem coberta e entrou num dos vários edifícios anexos de tijolos vermelhos. Parou no meio de outro corredor e girou a combinação de seu cadeado diante do armário 733. Abriu a pequena porta, pegou um iPhone protegido por uma capa de silicone zebrada e o estendeu para mim na palma da mão. A garota tomou um susto quando eu calcei um par de luvas de borracha para pegar o telefone. – Emma, quando conversamos no sábado, você disse que seu último contato com Zoe havia sido na tarde anterior ao sequestro. Isso é verdade? – perguntei. – Sim. Foi antes da aula de Estudos Sociais. Ela esticou o pescoço tentando ver o que eu estava fazendo. Eu tinha ligado o aparelho e agora examinava a pasta de mensagens enviadas. Lá estava: 9 de setembro, 8h05. Oi, Zoe! Que tal um cigarro antes da palestra? Diz que sim! Por favor!!! Tenho umas novidades. Bjs! – E vocês não se falaram na manhã em que ela e Ethan desapareceram? Não trocaram nenhuma mensagem? – perguntei. – Não – respondeu Emma. – Eu cheguei aqui, guardei o celular no armário e fui direto para a aula, como sempre acontece. Por quê?
– Tem certeza, não é? Isso é importante, Emma. Muito importante. – Claro que tenho. Eu juro! – exclamou, apertando nervosamente a pulseira roxa no braço. A maioria dos alunos e funcionários da escola fora obrigada a usá-la depois do sequestro. – Por quê? Fiz alguma besteira? – Não – respondi. – Mas vou ficar com seu telefone por algum tempo. No minuto seguinte eu voltava depressa para o carro, parado no estacionamento dos visitantes. Finalmente tínhamos um padrão naquele caso, ou algo parecido com isso. A mensagem enviada anteriormente pelo celular de Ryan Townsend seria uma espécie de ensaio? Existiriam outras? E o mais importante: se o telefone de Emma Allison estava dentro do armário naquela manhã e aquela mensagem não tinha sido enviada por ela, quem então a teria mandado? Só podia ser o sequestrador. Ou haveria outra pessoa?
capítulo 79
DE UMA HORA PARA OUTRA MILHARES de coisas estavam acontecendo, muito mais do que eu podia imaginar. Quando voltei ao quartel-general, recebi um telefonema de Ned Mahoney. – Aqui é o amor da sua vida – disse ele rindo. – Precisa entrar na la. E depois de Bree, Nana Mama e John Sampson – falei. – Mas diga: o que manda? – É sobre aquelas duas detenções de ontem à noite. O sujeito da cadeira de rodas e a cúmplice de 60 e poucos anos. Não sei em que estão envolvidos, mas acho que um deles tinha uma informação quente. A Força-Tarefa Conjunta Antiterrorismo está armando outra grande operação para amanhã à noite. Eles já estão vigiando um edifício-garagem em Chinatown. É tudo o que sei até agora. O negócio vai ser grande, Alex. Só que dessa vez não vamos car só assistindo. Eu não conseguia entender aonde Ned queria chegar. Na realidade, eu ainda tentava assimilar os últimos acontecimentos no Branaff. – Obrigado, Ned, mas estou cheio de trabalho aqui – falei. – E não é justamente para isso que tenho você? – Na verdade, meu chapa... quero dizer, meu amigo e companheiro de todas as horas... eu liguei para perguntar se você me aceita em sua equipe. Essa operação vai car a cargo do Grupo de Operações Especiais. Mas soube que eles estão pegando o pessoal do caso do sequestro para esse trabalho. Por isso acho que dessa vez você é quem vai me integrar a uma equipe. – Ned, eu nem sei do que está falando... – Mas saberá. Eu não caria surpreso se neste exato momento seu chefe estiver deixando um recado sobre esse assunto na sua secretária eletrônica. Haverá uma reunião às duas horas na Academia de Polícia em Southwest. – Southwest? Por que tão longe? – perguntei. – Eles precisam de espaço. Vão passar a noite inteira envolvidos nisso. Como falei, é um negócio enorme. Prometa que vai me aceitar, companheiro. – Você não precisa de minha permissão para isso, Ned. – Desta vez eu preciso. Era inacreditável. Pensei em todas as coisas que ainda tinha por fazer: algumas pessoalmente, enquanto outras acabaria delegando a alguém. Também precisava examinar os números no registro telefônico de Zoe. Aliás, eu tentaria contatar a primeira-dama se fosse possível. – Vou facilitar as coisas para você – disse Ned, interrompendo minha linha de raciocínio. – Você vai à reunião. Pronto. Estamos combinados? Eu tenho certeza de que corre cafeína nas veias de Ned. O cara parece uma locomotiva! Mas ele estava certo. Se aquilo tinha alguma coisa a ver com o sequestro, eu devia participar, não importava se eu tivesse tempo ou disposição.
– Está bem, você venceu – falei. – Academia de Polícia de Southwest, duas da tarde. A propósito, onde fica esse edifício-garagem?
capítulo 80
ÀS SEIS EM PONTO DAQUELA TARDE de quinta-feira, a equipe de Hala e Tariq se reuniu no segundo andar do edifício-garagem na Rua H, em Chinatown. Eram quatro casais, que chegaram separadamente e que também seguiriam em seus próprios carros até o local da ação. Todos usavam trajes de negócios ocidentais, conforme lhes fora recomendado. Os paletós dos homens e as blusas das mulheres tinham sido feitos sob medida para esconder as pistolas que cada um iria receber. Tariq era o único a não portar arma. Ele não queria participar da missão, mas Hala insistira em que o marido ao menos estivesse presente. Ele distribuiu fones de ouvido, transmissores e crachás enquanto ela iniciava a reunião. – Serei o mais breve possível – disse Hala. – Justin Pileggi, secretário do Interior dos Estados Unidos, irá discursar na Feira Internacional de Energia Alternativa às 19h30 de hoje. Ele estará acompanhado de uma equipe de segurança, que o manterá circulando pelo centro de convenções. Seu discurso pode começar antes ou depois desse horário. Nossos movimentos também devem ser imprevisíveis. Não podemos nos esquecer de que estaremos em grande número. Ninguém pode nos deter. Houve alguns sorrisos de aprovação no grupo e também alguns olhares de nervosismo, mas todos pareciam ter entendido o plano. – Se a qualquer momento estiverem perto do alvo, atirem – continuou Hala. – A essa altura os demais saberão o que fazer. Fugir se for possível. Mas, caso não consigam... Com uma das mãos ela retirou a cápsula de cianureto do bolso, enquanto a outra se fechava sobre o cabo da pistola. – Estas são as opções. Alguma pergunta? Ninguém mais sorria. – Tenho uma pergunta – disse um homem, o mais alto do grupo, com uma expressão de poucos amigos no rosto. – Sabe alguma coisa sobre as prisões na mesquita Al-Qasim? Ainda que tivesse levado um susto com a pergunta, Hala continuou impassível. Ela não imaginava que alguém soubesse daquele episódio, muito menos do desaparecimento de Tio. – O que têm elas? – quis saber Hala. – Isso é preocupante, não é? O resto do grupo cou em silêncio, os olhares se dividindo entre o rosto de Hala e o do homem. A médica percebeu que aquele sujeito era irritante e perigoso. No momento adequado ele receberia a lição merecida. – Sim, houve algumas prisões – respondeu ela. – Assim como assassinatos, suicídios e atentados a bomba. Estamos em guerra, caso você não tenha percebido! – Mas quem está no comando? – perguntou ele. – Quem é o líder aqui em Washington? – Sou eu – disse ela sem hesitar. – É assim que a Família funciona. Se um cai, outra pessoa
assume o posto. Não duvide que Washington cairá de joelhos. Onde está sua lealdade, irmão? – Não quero ouvir sermões, irmã. Sou leal apenas a Alá e à Família. Não devo nada a você. Sabe ao menos se haverá outras ações depois dessa? Hala não sabia, já que não recebera nenhuma instrução a esse respeito. Mas ela nem sequer teve tempo de responder àquela pergunta insolente. Antes que o grupo percebesse o que estava acontecendo, três granadas de efeito moral riscaram o piso de cimento e explodiram com um barulho infernal. Homens com máscaras antigás e de uniformes escuros começaram a brotar das escadas, munidos de armas de grosso calibre. Foi quando mais duas granadas explodiram. Uma delas estourou aos pés de Hala, que cou surda antes de começar a correr.
capítulo 81
FOI UMA OPERAÇÃO GIGANTESCA e muito bem coordenada. Grupos de operações especiais de três diferentes agências estavam na linha de frente. Mahoney e eu nos encontrávamos espremidos no poço da escada, esperando o sinal verde do comandante. Assim que os suspeitos fossem detidos, entraríamos na segunda leva de homens, que prenderia, transportaria e interrogaria os suspeitos. Ouvi a explosão de três granadas ecoando pelo prédio, antecedida pela correria e pelos gritos dos oficiais entrando em ação. Nosso objetivo era pegar aquelas pessoas desprevenidas e detê-las antes que engolissem as cápsulas de cianureto. Se havia uma coisa que sabíamos sobre a Al Ayla, era que a organização não tinha o menor respeito pela vida humana: inclusive a de seus próprios membros, que não passavam de seres descartáveis. Mais granadas explodiram, reverberando pelas paredes e pelo piso de concreto. Mesmo estando no poço da escada, o barulho pareceu estourar meus tímpanos. Meu coração também martelava dentro do peito. Mahoney estava nervoso, parecendo um cavalo de corrida antes da largada. Meu amigo não costumava ficar quieto numa situação daquelas. De repente ouvi o disparo de uma arma de fogo. E então silêncio. Em seguida mais dois tiros cortaram o ar. – Suspeito atingido! – gritou alguém. Duas pessoas passaram correndo diante da porta da escada numa tentativa de fugir do confronto. Eram um homem e uma mulher em trajes de negócios. Mahoney não hesitou. Partiu atrás deles, comigo em sua cola. O casal seguia em direção à rampa circular no outro extremo da garagem. A mulher segurava uma pistola e volta e meia atirava para trás, por cima do ombro, sem parar de correr. Mesmo naquelas condições ela se mostrava hábil com a arma. Escondemo-nos atrás de um carro. Uma bala ricocheteou no capô e arrancou uma lasca da pintura prateada. Aquela havia passado bem perto. A polícia sempre está em desvantagem num tiroteio. Criminosos ignoram quaisquer regras, ao passo que precisamos saber exatamente em que atiramos e o que se encontra além do alvo. A melhor estratégia é se mover de forma imprevisível. Fiquei agachado e fui até a outra extremidade do carro, levantando-me de repente e atirando antes que eles me vissem. Meus olhos não se desgrudavam daquela dupla. Num relance percebi um brilho vermelho. Eu atingira a mão direita do homem. Ele gritou, mas os dois não diminuíram a velocidade. A mulher deu mais um tiro para trás enquanto empurrava o homem. Era uma excelente atiradora.
Passaram entre dois carros e avançaram aos tropeços rumo a uma barreira de concreto. Um segundo depois eles pularam para o andar inferior e desapareceram. Àquela altura, Ned Mahoney e eu voltamos a correr. – Cuidado, Ned! Ela atira muito bem!
capítulo 82
JOGUEI-ME POR CIMA DA BARREIRA atrás de nossos dois fugitivos, saltando de uma altura de uns três metros. A aterrissagem no concreto não foi suave. Rolei no chão para amortecer o impacto e não quebrar as pernas. Percebi pequenas manchas vermelhas no lugar onde caí, mas nada que indicasse a direção que eles tomaram. O sujeito devia ter enrolado algum pano na mão. A paisagem ao meu redor se resumia a centenas de carros estacionados, concreto e umas dez saídas para a rua. – Droga! – gritou Mahoney, correndo atrás de mim. Vários agentes também desciam a rampa do andar superior. – Para onde eles foram? – Algum sinal dos suspeitos? – perguntou o comando pelo rádio. – Negativo – respondi. – Vigiem as saídas e isolem o quarteirão. Espero que não seja tarde demais. Espalhamo-nos pelo edifício-garagem, examinando os telhados dos prédios vizinhos, abrindo portas, olhando debaixo de carros. Mas foi em vão. Eles tinham fugido. Sabe-se lá como, conseguiram escapar debaixo do nosso nariz. A mulher era uma prossional. Não entrou em pânico e manejava com habilidade uma arma de fogo. Havia ainda a chance de alguém os pegar na rua. Seus rostos já eram conhecidos e todas as viaturas da polícia seriam alertadas. O Departamento de Segurança Nacional poderia bloquear as pontes e os postos de controle nas estradas, mas essa decisão não cabia a mim. Quando Ned e eu voltamos ao andar superior, a situação estava sob controle. Enrique Vaillos, sargento de um dos grupos de operações especiais, recostava-se no carro atrás do qual Mahoney e eu tínhamos nos escondido. Ele passava a mão na boca. Ao que parecia, o estilhaço de uma granada passara próximo de seu rosto. – E aí. O que conseguimos? – perguntou Ned. – Cinco detidos, um morto – respondeu ele –, e dois... – Ainda desaparecidos – completei. Enxerguei mais adiante um sujeito alto, moreno e de terno cinza caído no chão. Como o rosto estava virado para nós, era possível perceber seus olhos abertos e vidrados... assim como o buraco de uma bala em sua testa. Aquela imagem me deu um frio na espinha. – O que houve? – perguntei. – Foi uma das coisas mais inacreditáveis da minha vida – respondeu Vaillos, sacudindo a cabeça. – Sabe a mulher que fugiu? Antes de começar a correr, ela se virou e deu um tiro à queima-roupa na cabeça do sujeito. Sei lá por que fez isso! Pelo menos a desgraçada não teve tempo de matar nenhum dos meus homens. – Vaillos se virou e cuspiu uma massa vermelha no
piso de cimento. – Dane-se! Não vou perder meu sono pensando nisso. Se essas pessoas querem agir como um bando de animais, o problema é delas! Isso só facilita nosso trabalho! Eu pensava novamente na mulher, achando que ela jamais facilitaria nosso trabalho.
capítulo 83
OS “CINCO DA AL AYLA” foram transferidos para o centro de detenção federal na Massachusetts Avenue. Várias salas de interrogatório com revestimento acústico foram isoladas e para lá os suspeitos seriam levados um a um, sem que houvesse contato entre eles. Trabalhávamos em equipes, revezando-nos de suspeito em suspeito. Eu, Mahoney, um psiquiatra forense da CIA e um representante do Departamento de Segurança Nacional nos reportávamos a Corey Sneed, um alto ocial do FBI. Gostei daquele arranjo, pois assim eu podia me concentrar no que me interessava: o sequestro dos Coyle. Provavelmente aquelas pessoas eram sauditas, ainda que nenhuma delas tivesse qualquer documento e se dispusesse a falar conosco. Elas nem sequer exigiram um advogado, embora desconfiássemos que falassem inglês. A hipótese mais provável era que o grupo fosse formado por quatro casais, considerando-se o modus operandi da Al Ayla até então. Se estivéssemos certos, o marido de uma daquelas mulheres havia sido morto. Poderíamos usar aquilo a nosso favor. Depois de duas horas inúteis de interrogatório, tive uma ideia e pedi para conversar a sós com a mulher que me parecia mais nervosa. – Vá em frente – falou Sneed, num tom que parecia de desafio. Antes, comprei uma garrafa de água numa das máquinas do corredor. Não era grande coisa, mas eu queria entrar na sala com algo além de papéis e perguntas. Quando abri a porta, a mulher levantou a cabeça bruscamente, como se tivesse sido pega desprevenida. Os cabelos pretos estavam presos numa trança e a blusa de seda vermelha com a saia risca de giz não lhe caíam bem, resultando numa concepção equivocada de trajes ocidentais. Aproximei-me e a liberei da algema afixada à mesa. Ela esfregou a marca vermelha em volta do pulso enquanto eu me sentava, mas ignorou a garrafa de água que lhe ofereci. – Quero mostrar uma coisa – falei. – Você ao menos podia dar uma olhada. Abri uma de minhas pastas e peguei uma cópia da imagem capturada pela câmera de segurança do edifício-garagem. Ainda que a resolução não fosse das melhores, era possível ver oito pessoas ao lado de dois carros. Coloquei a foto sobre a mesa, apontando para a mulher no centro do grupo. – Foi esta aqui que matou seu marido – falei, observando sua reação. Eu não tinha certeza se o homem era realmente seu marido... até o momento em que seus olhos piscaram e seus lábios se crisparam, como se ela represasse um grito ou algo até pior. – Qual é o nome dela? – perguntei. Para minha surpresa, a mulher respondeu. – Não sei – disse num forte sotaque árabe. – Se eu pudesse, ajudaria a encontrá-la. Cadela...
Desgraçada... Controladora! – Ela está no comando da célula de Washington? – continuei, mas a mulher já havia se calado. – Outra coisa. O sequestro dos filhos do presidente. A Al Ayla é a responsável? A resposta veio na forma de um silêncio contundente. Ela nem sequer olhava para mim. – Ainda podemos fazer um acordo. O que acha? – perguntei, e a mulher me lançou um breve olhar. – O primeiro de vocês a abrir o jogo será colocado num avião para Riad. Mas os outros ficarão aqui ainda por muito tempo. – Um acordo? – disse ela finalmente. – Acha que sou idiota? A pergunta em si era um avanço. Pelo visto ela estava interessada. – Você pode achar o que quiser – respondi dando de ombros. – A proposta está de pé enquanto outra pessoa não se manifestar. Mas, se alguém bater naquela porta – continuei, apontando o polegar por cima do ombro –, será fim de papo. Como eu não queria dar tempo para a mulher pensar, inclinei-me sobre a mesa e disparei a falar, dizendo tudo o que vinha à minha cabeça: – Se seu marido tivesse sofrido um martírio ou se tivessem dado a ele a chance de tirar a própria vida, eu entenderia seu silêncio. Mas não foi isso que aconteceu. Ele foi morto por alguém de vocês, pela Al Ayla! Acho que não foi para isso que se uniram à organização. O que você lhes deve agora? O que deve à assassina de seu marido? Ela estava agitada, mas não tirava os olhos de mim. Entendi aquele gesto como um sinal verde. Então, lentamente, sem qualquer mudança em sua fisionomia, ela disse: – Houve alguns boatos. – Que tipo de boatos? – Conversas entre alguns membros do grupo. Disseram que a Al Ayla sequestrou as crianças. Que o presidente de vocês teve o que merecia. – Sabe se as crianças ainda estão vivas? Diga apenas isso! – Não sei – respondeu, soltando o corpo contra a cadeira, talvez se odiando pelo que estava fazendo ao abrir-se comigo. Aquilo era contra todas as suas crenças, não era? – Sabe para onde foram levadas? – insisti. Dessa vez a mulher se limitou a balançar a cabeça. Eu começava a me perguntar aonde chegaríamos com aquilo, se é que chegaríamos a algum lugar. Será que ela sabia mais do que estava dizendo? Provavelmente, sim. – Qual é sua opinião sobre essa história? – perguntei. – Acha que esses boatos têm fundamento? Que as crianças estão em poder da Al Ayla? Sua expressão mudou. Era como se eu enxergasse as engrenagens se movimentando. A mulher tinha baixado a guarda, mostrando-se desprotegida, e agora era possível ler seus pensamentos. – Claro que têm fundamento – respondeu com alguns segundos de atraso. Ela estava num beco sem saída e ambos sabíamos disso. A mulher queria e precisava acreditar naqueles boatos, mas não conseguia. Agora não lhe restava nada a me dizer. Ela não
tinha mais como comprar sua liberdade. – Acho que chegamos ao m – sentenciei, contando mentalmente até dez. Como ela não se manifestou, levantei-me para ir embora. Quando cheguei à porta, virei-me e disse: – Só para você saber, o secretário do Interior não iria à Feira hoje à noite. A missão de vocês fracassou antes mesmo de começar. Seu marido morreu à toa. Deixei a sala com a consciência tranquila. Ambos tínhamos mentido um para o outro. Não havia acordo algum. Não houve e tampouco haveria. Eu nem sequer tinha discutido o assunto com minha equipe. Alguns dias são assim. Você faz o que é preciso para cumprir sua tarefa. Qualquer coisa. Mas talvez no dia seguinte eu não estivesse com a consciência tão tranquila assim.
capítulo 84
NAQUELA MANHÃ, OS 12 CUBÍCULOS da Divisão de Casos Especiais estavam um pandemônio. Funcionários e agentes corriam pelos corredores, telefones não paravam de tocar e detetives trocavam informações aos berros. Uma cena típica do lugar, porém com uma dose a mais de loucura naqueles dias, já que milhares de pistas e boatos vinham sendo checados. Eu nem sequer me dava conta do que acontecia atrás de mim, já que estava debruçado sobre minha mesa com várias fichas dos funcionários do Branaff espalhadas. Não importava o que tinha acontecido ou deixado de acontecer na noite anterior, pois ainda havia 17 funcionários do colégio, entre professores e demais membros da equipe, sobre os quais não tínhamos nenhuma informação do que faziam no momento em que alguém usou o telefone de Emma Allison a fim de armar uma cilada para Zoe Coyle. Àquela altura eu começava a me perguntar se Ethan não seria uma vítima acidental daquele sequestro. A briga de Zoe com Ryan Townsend não atrapalhara os planos do criminoso? A princípio a menina não seria o único alvo? Eu estava atolado em chas e perguntas quando alguém bateu na parede de vidro de meu cubículo. – Detetive? Era Dennis Porter, um de nossos investigadores. Ele tinha acabado de sair da academia, mas já mostrava ser um ocial interessado e bastante perspicaz. As olheiras roxas e a barba por fazer eram provas de sua dedicação. – O que foi, Denny? – Talvez não seja nada, mas encontrei isto aqui – falou, colocando na minha mesa a cópia de um atestado de óbito. O documento havia sido expedido pelo Departamento de Estatísticas Demográcas do condado de Dauphin, Pensilvânia, em 10 de novembro de 2006, e o nome que gurava na primeira linha era o de Zachary Levi Johnson-Glass. – Glass? – disse eu. – Será que... – Acho que sim – disse Porter. – Consegui a certidão de nascimento da vítima. Filho de Rodney Glass e Molly Johnson, naturais de Harrisburg, também na Pensilvânia. O garoto tinha só 8 anos de idade. Achei um contrato de aluguel de 1998 com o mesmo número de matrícula na Previdência Social de Rodney Glass, do Branaff. Como eu disse, talvez isso não signique nada, mas achei melhor informá-lo. Rodney Glass, o enfermeiro da escola, era um dos 17 nomes da lista. Eu já estava retirando a ficha dele da bagunça na minha mesa. – Comece a investigar esse sujeito – ordenei. – Procure em todos os bancos de dados. Consulte também a Interpol. Quero saber onde ele morou, os empregos que teve até hoje, cada tíquete de estacionamento que pagou, cada gripe que pegou... Prenda quem for preciso que eu
assino embaixo. Faça o que tiver de fazer e ponto final! – O senhor não tem essas informações em seus arquivos? – perguntou o investigador, um tanto hesitante. – Acho que estamos apenas começando – respondi, sacudindo o atestado de óbito e olhando para Porter. Ele sorriu por um segundo, mas logo se lembrou de que a situação não era para brincadeiras. – Vou cuidar disso imediatamente – falou, saindo apressado de meu cubículo. Ainda não era hora de car empolgado. Eu já havia testemunhado policiais experientes se enganarem diante de indícios como aquele. Mas isso não me impedia de enxergar Rodney Glass de modo diferente. Uma coisa que me chamava a atenção era o fato de o sequestro parecer algo pessoal. Não havia sinal de que Ethan e Zoe seriam devolvidos aos pais. Rodney Glass também não perdera o filho? Poderia existir algo mais pessoal do que isso? Também me lembrei de nossa última conversa: “Ethan costumava almoçar comigo no refeitório” , o enfermeiro me dissera. Aos poucos ele deve ter ganhado a conança do menino e talvez descoberto o número do celular de Zoe. Sem mencionar o fato de que alguém deixara Ray Pinkney chapado na manhã do sequestro e provavelmente dopara Ethan e Zoe antes de retirá-los do colégio. A maneira mais rápida de conseguir isso é por meio de uma injeção. Não que seja necessário ser enfermeiro para fazer esse tipo de coisa, mas com certeza ajuda. Depois de passar alguns minutos pensando naquelas possibilidades, eu estava pronto para entrar em ação.
capítulo 85
MOLLY JOHNSON ERA A PESSOA com o parentesco mais próximo de Rodney Glass que consegui localizar. Ela não adotara o sobrenome do marido quando os dois se casaram e o divórcio havia ocorrido fazia mais de quatro anos, cerca de seis meses após a morte do lho do casal. Concordou em se encontrar comigo no nal de seu turno de trabalho como recepcionista no restaurante Fire House, em Harrisburg. Parti de Washington tão logo nos despedimos ao telefone e já estava à sua espera no estacionamento quando ela apareceu. Iríamos conversar ali mesmo no meu carro. – Não sei em que posso ajudar – começou. – Eu nem sabia que Rod tinha voltado aos Estados Unidos. Um amigo me disse que ele ainda estava na África. – Há três anos que ele mora em Washington. – Puxa! O tempo voa! Olhou pela janela e distraidamente mexeu no crucixo de ouro pendurado ao pescoço. Dava para perceber seu nervosismo. Até aquele momento ela sabia apenas que eu iria fazer algumas perguntas sobre seu ex-marido. Por que estava tão agitada? – Posso então deduzir que a separação de vocês não foi amistosa? – perguntei. – É, não foi. Nosso relacionamento piorou muito depois da morte de Zachary. – Pode me dizer como seu filho morreu? – A verdadeira causa da morte foi desnutrição severa – respondeu, sorrindo de um jeito que as pessoas sorriem quando tentam não chorar. – Mas nunca descobrimos por que seus órgãos começaram a parar de funcionar. Consultamos vários especialistas em busca de uma explicação. – Deve ter sido um pesadelo para você. Quero dizer, para vocês dois. Sinto muito – falei. A mulher espontaneamente retirou uma carteira de couro vermelha da bolsa e me mostrou uma foto 3x4 de um garotinho lindo, com os mesmos cabelos escuros e olhos azul-claros de Rodney Glass. Senti uma pontada de dor pelos pais daquela criança. – Zach queria ser médico como o pai – falou. – Isto é, como o pai iria ser. Rod estava na faculdade de medicina quando nosso lho cou doente. A enfermagem seria algo temporário. É engraçado como a vida dá voltas. – Foi a partir daí que as coisas ficaram difíceis entre vocês? – perguntei. – Rod mudou muito – respondeu, balançando a cabeça enquanto guardava a foto na carteira. – Quero dizer, para ser honesta, ambos mudamos. Mas ele cou paranoico. E muito revoltado. Acho que meu ex-marido se sentia culpado por não ter se tornado o médico que poderia ter salvado a vida do próprio filho. Mas, por fora, ele culpava todo mundo. – E quando você diz todo mundo... – Quero dizer todo mundo – respondeu. – Os médicos, o hospital, o péssimo sistema de saúde. Na época não tínhamos condições de pagar um plano. Então você pode imaginar! Se naquela ocasião você perguntasse a Rod, ele provavelmente atribuiria a responsabilidade da
doença de Zach ao sistema de saúde. – De repente Molly olhou para mim como se tivesse lembrado alguma coisa. – Mas o que meu ex-marido aprontou? Rod se meteu em alguma encrenca? Até aquele momento eu a observara atentamente, avaliando aonde eu poderia chegar. Eu não desejava ir embora sem conseguir o que queria, então segui em frente, assumindo um risco calculado: – Molly, eu disse que Rodney está em Washington há três anos. Mas não contei que ele trabalhou no Colégio Branaff esse tempo todo. Ela me lançou um olhar inexpressivo. Ao que parecia, o nome da escola não signicava nada para aquela mulher. – É o colégio onde Zoe e Ethan Coyle estudam. – falei. – Foi lá que ocorreu o sequestro. – Espere um pouco! Está me dizendo que Rod é suspeito do sequestro? – Em tese, todos os funcionários do colégio são suspeitos. Era o tipo de resposta que eu precisava dar e ela entendeu isso. Mas então sua atitude mudou completamente. Ela ficou ainda mais nervosa. Suas mãos se fecharam sobre o crucifixo e suas sobrancelhas se ergueram. – Não posso acreditar nisso. Não. Quero dizer... ele não faria isso... faria? – Não sei, Molly – respondi calmamente. – O que você acha? Ela demorou a responder. Abaixou a cabeça e cou de olhos fechados por alguns segundos. Seus dedos agarraram o crucixo com mais força e eu me perguntei se aquela mulher estava rezando, e se ela também não estaria envolvida no sequestro. Quando levantou os olhos, Molly Johnson tremia da cabeça aos pés. – Preciso contar uma coisa – falou. – E talvez seja importante.
capítulo 86
– COMEÇOU POUCOS MESES DEPOIS da morte de Zachary – disse Molly Johnson. – As coisas caram péssimas entre mim e Rod. Mas então uma noite ele chegou em casa e me convidou para dar uma volta. A mulher ainda tinha o olhar perdido e se concentrava apenas nas lembranças daquela noite. Havíamos aberto uma espécie de caixa de Pandora. Àquela altura preferi car de boca fechada, limitando-me a ouvi-la. – A última coisa que eu desejava era ir a algum lugar com aquele homem. Mas vínhamos brigando tanto que achei mais fácil aceitar o convite. Então entrei no carro e ele deu a partida. Depois de algum tempo Rod pegou a garrafa térmica que costumava levar para o trabalho. Falou que a enchera no caminho de casa, na lanchonete onde eu sempre tomava chocolate quente. Ele estava sendo gentil, por isso tomei um pouco da bebida. Mas percebi que só eu tinha provado o chocolate. Eu já sabia como aquilo iria terminar. Senti um arrepio pelo corpo, além de pensar em Molly e também em Ethan e Zoe. – Logo comecei a sentir sono – continuou. – Uma sonolência estranha. Tudo foi muito rápido. Quando voltei a mim, eu estava naquele lugar. Uma espécie de porão ou adega, não sei ao certo. Lembro apenas que fedia a lama, se é que isso faz algum sentido. – Molly, tem alguma ideia de onde ca esse lugar? – perguntei. Àquela altura era impossível ficar calado. – Lembra-se de algum detalhe no caminho até lá? – Dessa parte, não – respondeu, sacudindo a cabeça. – A única coisa de que me lembro é que Rod deixou alguns sanduíches e água, e tenho certeza de que neles havia a mesma substância que meu ex-marido pusera no chocolate. Mas era como se eu nem me importasse com aquilo. Às vezes chego a me perguntar se tudo isso não é fruto de minha imaginação. – Acho que não, Molly. Mas, por favor, continue. Por quanto tempo ficou lá? – Três dias. Eu perdia e recuperava a consciência o tempo inteiro. Mas a certa altura acordei e vi que estava em casa! Em minha própria cama! Rod deixara um bilhete pedindo desculpas, mas todas as coisas dele tinham desaparecido. – A mulher deu um longo suspiro e olhou para mim pela primeira vez desde que começara a contar aquela história. Ela agora tremia menos. – Bem, foi isso. Liguei para um advogado na semana seguinte e dei entrada no pedido de divórcio. Rod não se opôs. – Você nunca o denunciou? – perguntei. – Jamais contei isso a ninguém. Ninguém! Sei que pode parecer estranho, mas sei lá! Depois da morte de Zach e de tudo o que aconteceu, eu não conseguia mais olhar para trás. Era como se eu fosse enlouquecer caso pensasse naquilo de novo. A única coisa que eu queria era continuar vivendo – acrescentou com um sorriso triste, abaixando o rosto. – Você deve me achar patética.
– Não – respondi. Estendi a mão e segurei a dela, lutando para conter as lágrimas. – Muito pelo contrário. Acho que você é uma guerreira!
capítulo 87
NO CAMINHO DE VOLTA A WASHINGTON , liguei para Bob Shaw, chefe do Departamento de Homicídios da Polícia Metropolitana, e concordamos que estava na hora de vigiar os passos de Rodney Glass. Deveríamos ser o mais discretos possível, o que incluía, entre outras coisas, utilizar carros de passeio naquela operação. Dei a Bob uma lista de nomes do Departamento de Narcóticos e do Esquadrão de Mandados: todos eles ociais bem treinados e que facilmente passariam despercebidos naquele trabalho de rua. Eu não queria ninguém que tivesse ido ao Branaff desde o início das investigações, o que também me deixava de fora. Anal, eu conversara com Glass na escola. Eu assistiria a tudo de longe. Às quatro da tarde eu estava de volta à cidade e tínhamos três veículos posicionados estrategicamente nos arredores do colégio, de onde dali a pouco Glass sairia após mais um dia de trabalho. Toda a equipe contava com GPS, de modo que eu podia rastreá-los com o laptop em meu carro. Iríamos nos comunicar por um canal exclusivo de rádio, que nos daria uma tranquila privacidade. Estacionei a vários quarteirões de distância e fiquei na escuta. – Aqui é Tango. Ele saiu pelo portão sul num Subaru verde. Tomou a direção norte na Wisconsin. – Vá em frente, Tango. Aqui é Raio X. Vou fazer a volta e encontrar você em algum ponto depois da Rua 37. – Copiado. Bravo, tente manter distância do suspeito. – Entendido. Estávamos em número suciente para ir atrás de Glass sem levantar suspeita. Um veículo seguiria o Subaru de perto durante um tempo até ser substituído por outro, numa espécie de rodízio. Esperei dois minutos e então parti, mantendo uma boa distância do grupo. – Quem está atrás do suspeito? – perguntei ao tomar a direção da Wisconsin, seguindo pelo mesmo caminho deles. – O que Glass está fazendo? – Aqui é Bravo. Ele está dirigindo... Dirigindo e ouvindo música, acho eu. Consigo enxergálo tamborilando no volante. O sujeito não parece muito preocupado... – Eu não teria tanta certeza, Bravo. Glass se manteve na Wisconsin por três quilômetros. Dava a impressão de seguir para Maryland, mas então ouvi pelo rádio que ele iria parar no centro comercial Friendship Heights. Deixou o carro diante da loja Bloomingdale’s e atravessou a rua em direção ao shopping Mazza Gallerie. Mandei dois ociais irem atrás dele e deixei um homem vigiando o quarteirão. Em seguida parei numa rua atrás do estacionamento, de onde eu podia enxergar o carro de Glass. Os 45 minutos seguintes foram enfadonhos, típicos de qualquer operação de vigilância.
Fiquei na escuta enquanto Glass ia ao McDonald’s, comprava um hambúrguer, sentava a uma das mesas e lia Guerra, de Sebastian Junger, livro que eu já lera. Ele parecia não ter pressa. Provavelmente não faria mais nada naquele dia. Quando por m se levantou, Glass se encaminhou até a Neiman Marcus, seguido pelos agentes, que caram vigiando a frente da loja enquanto ele olhava camisas e sapatos masculinos. Cheguei a desconar que o funcionário do Branaff tivesse algum motivo para deixar o tempo passar. Foi quando ele sumiu. – Tango, está vendo o suspeito? – ouvi pelo rádio. – Negativo. Espere um pouco. Espere! Acho que entrou no banheiro! Mais 15 segundos se passaram. Vamos logo, rapazes! – O que está acontecendo? – perguntei. – Aqui é Tango. O suspeito não está no banheiro! Acho que o perdemos de vista! – Perderam de vista? – repeti, querendo voar no pescoço de um dos ociais. – Ou será que ele escapou de vocês? – Não sei – respondeu Tango. – Mas precisamos de reforços. Resisti ao impulso de entrar no shopping. Eu não podia perder a cabeça e pôr tudo a perder. Mas ao mesmo tempo eu não queria perder Rodney Glass de vista.
capítulo 88
AQUELA SITUAÇÃO ERA UM DESASTRE e a culpa era toda minha. Eu estava furioso comigo mesmo, ainda que não pudesse ter feito nada diferente. Eu não entendia mais nada, pois enxergava o Subaru vazio de Glass à minha frente e ouvia o silêncio do rádio enquanto meus homens vasculhavam as redondezas. Os dois centros comerciais. Os estacionamentos. As ruas próximas. Então, quando passava das sete, finalmente avistei Glass. Deu a volta na frente do Friendship Heights e cruzou o estacionamento na diagonal. Desgraçado! – Suspeito localizado – falei pelo rádio. – Está voltando para o carro. Preparem-se para seguilo. A noite havia caído, mas o estacionamento era bem iluminado. Por meio de um binóculo, consegui ver que Glass carregava alguma coisa. Ele estava de mãos vazias quando chegara. Agora trazia numa das mãos a sacola de uma butique descolada em que talvez meus lhos zessem compras. Ou quem sabe os lhos do presidente. Lá não havia nada para um sujeito como ele. Até onde eu sabia, Glass gostava de lojas populares de departamentos. O que significava aquilo? Com a outra mão ele segurava um copo enorme com a marca de uma rede de cinemas. Deus do céu! Eu tinha passado as últimas três horas com o coração nas mãos enquanto Rodney Glass curtia um filme! Ou era isso que ele queria que pensássemos? Tudo não passava de encenação? Onde mais ele poderia ter estado durante aquele tempo? Enquanto eu o observava jogar a sacola no banco traseiro do carro de modo um tanto displicente, senti um aperto no estômago. Eu não tinha como provar, mas algo dentro de mim dizia que Rodney Glass sabia que estava sendo vigiado.
PARTE CINCO
CORRIDA ATÉ A LINHA DE CHEGADA
capítulo 89
HALA SEGUIA PELA RUA 1 com a cabeça baixa, escondendo o rosto. Cruzou a K e dobrou à esquerda num beco próximo à rodoviária. Tariq a esperava escondido atrás de caçambas de lixo, pedaços de madeira e móveis quebrados. Seu marido estava ainda mais abatido. Parecia ter perdido muito sangue, o que o transformava num peso indesejado. – Conseguiu? – perguntou ele. – Algumas coisas – respondeu Hala, ajoelhando-se diante de Tariq, que estava encostado na parede. De dentro da blusa, ela tirou uma cartela de analgésico, um rolo de gaze e um de esparadrapo. Tudo o que conseguiu roubar da farmácia sem ser vista. – Deixe eu ver sua mão. Por favor, deixe eu ver. Desenrolou a tira de pano que envolvia o ferimento. A mão dele se encontrava num estado lastimável. A bala a atravessara de um lado a outro e provavelmente havia destruído os ossos do polegar direito, que perdera sua capacidade de movimento. Se não conseguissem logo atendimento médico, ela precisaria extrair o tecido morto em processo de decomposição. Hala poderia fazer isso sem problema. Tariq gemeu quando a esposa fez o novo curativo, colocando primeiro a gaze e depois o esparadrapo. Percebeu que o marido sentia muito dor. Quando Hala estendeu a cartela de analgésico, ele balançou a cabeça e disse: – Isso não basta. Sabe muito bem o que eu quero. Ela sabia, e foi justamente por isso que lhe conscara o cianureto. As duas cápsulas agora estavam em seu bolso, de onde Hala não pretendia tirá-las. Eles ainda tinham a pistola. Todas as outras coisas (passaportes, dinheiro, computador) caram no hotel cinco estrelas. Mesmo se estivessem trancadas num cofre, não faria diferença. Na rápida visita que zera à farmácia, ela vira a própria foto na primeira página de vários jornais. Eles jamais conseguiriam fugir de Washington. Aquela cidade horrível era agora sua prisão e Tariq sabia disso. Seu olhar vazio e derrotado dizia tudo o que Hala precisava saber. – Por favor – insistiu ele. – Não há nenhuma desonra nisso. Fizemos o que estava ao nosso alcance. Ela fechou a mão de Tariq sobre a cartela de analgésico e disse: – Tome. Cone em mim, meu amor. Ainda estamos vivos e temos um longo caminho pela frente. Hala já pensava em outra possibilidade. Era arriscada, porém mais segura que as cápsulas em seu bolso. Quando ela se levantou para ir embora, Tariq seguiu atrás como uma criança que não gosta de ser deixada sozinha.
– Aonde você vai? – gemeu ele. – Não muito longe. Me espere aqui. Prometo que volto para buscá-lo.
capítulo 90
HALA DEIXOU TARIQ NO BECO e atravessou a rua em direção à rodoviária. A médica tinha motivo para estar apavorada, porém não estava. Quanto mais Tariq se entregava, mais forte ela cava. Eles se encontravam numa situação dramática, entretanto estavam preparados. O duro treinamento a que foram submetidos previa quaisquer eventualidades. Caso acontecesse o pior, se no m das contas as cápsulas fossem necessárias, ainda haveria nove cartuchos em sua pistola, o que significava mais nove americanos mortos antes dela. Dentro do terminal de ônibus quase deserto, Hala atravessou o salão de espera e se dirigiu a uma leira de orelhões na parede dos fundos. Para sua surpresa, o primeiro aparelho do qual retirou o fone do gancho estava funcionando. Foi necessário um tempo irritantemente longo até completar a chamada a cobrar para a Arábia Saudita, e o telefonista americano pouco a ajudou. Mas logo uma voz familiar surgiu do outro lado da linha, aceitando a ligação. – Hala, querida! – disse sua mãe em árabe. – Onde você está? – Nos Estados Unidos, mamãe. – Era estranho falar a própria língua após passar tanto tempo usando apenas o inglês. – Ainda não terminamos nosso trabalho. Tariq e eu estamos na Rua 1. Entre a K e a L. – K e L? O que é isso, minha filha? – É onde estamos agora. – Quando vai voltar para casa? – quis saber a mãe. – Fahd e Aamina perguntam por vocês todos os dias. Estão morrendo de saudade. Hala fechou os olhos para conter as lágrimas que ameaçavam escorrer pelo rosto. Não podia chamar atenção. Jamais. Não ia se permitir chorar nem mostrar qualquer sinal de fraqueza. – Dê lembranças a eles. Por favor! – Eles estão aqui... – retrucou a mãe. – Não! Preciso desligar – disse ela em vão. Dali a um segundo ouviu a voz doce de Fahd. – Mamãe! Estou com saudade! – Eu também. Está se comportando direito? – perguntou Hala com a voz embargada, torcendo para que o filho não percebesse o choro iminente. Aquilo era de partir o coração. – Estou, mamãe. Começamos a estudar geograa na escola. Sabe o que é uma rocha sedimentar? – Claro que sei. Fahd, agora não posso falar. Preciso ir embora – acrescentou, ouvindo a pequena Aamina gritar ao fundo, pedindo para falar com a mãe. – Tenho de voltar para a Rua 1, entre a K e a L. Do outro lado da rodoviária. – O quê, mamãe? – Preciso ir – falou rapidamente. – Diga à sua irmã que papai e eu a amamos muito. Amamos
você também. Vocês dois são os melhores filhos do mundo. – Vocês vão voltar? – perguntou ele. Hala deu a única resposta possível: – Vamos, filho. Em breve, muito em breve. Desligar o telefone foi tão difícil quanto qualquer uma das coisas que vinha fazendo naquele país, mas igualmente necessário. Cada segundo em público representava um grande risco. Assim que se recompôs, virou-se e tomou o caminho de volta. Agora só lhe restava rezar para que as pessoas certas, e não as erradas, tivessem ouvido aquela ligação. A Família era bastante disciplinada nesse sentido, mas muita coisa havia mudado nos últimos dias. Só o tempo iria dizer se eles ouviram suas palavras e providenciariam logo o resgate dela e de Tariq. Inshallah.
capítulo 91
NA MANHÃ SEGUINTE ACORDEI com o som de uma mensagem de texto no meu celular, enviada pelo assistente de Peter Lindley: “8h30, Liberty Crossing, reunião importantíssima com Lindley. Confirmar presença.” A última coisa que eu desejava era voltar ao LX1. Agora tínhamos três equipes de olho em Rodney Glass, revezando-se em turnos de oito horas. Se ele zesse algum movimento suspeito, eu queria estar por perto. Eu sentia algo além de simples nervosismo enquanto seguia para Langley. Esperava participar de uma reunião com nosso grupo de trabalho, mas encontrei apenas Lindley, meia dúzia de agentes e alguns chefes de equipe. Através da parede de vidro, eu enxergava o movimento frenético no centro de comando, dois andares abaixo. – Que bom que você veio – disse Lindley, convidando-me com um gesto a entrar na sala. Os outros ociais pareciam estar ali havia algum tempo. Assim deduzi ao ver as gravatas afrouxadas, as mangas das camisas dobradas e a mesa cheia de pastas, a maioria delas com o símbolo do FBI estampado na capa. – Antes de mais nada – continuou ele –, temos mais um suspeito de participação no sequestro. Um dos agentes pôs uma pasta na minha frente. Eu a abri e encontrei uma foto presa com um clipe a vários relatórios de prisão. Os documentos tinham um mesmo nome: Deshawn Watkins. – O que tem ele? – perguntei. – Quem é esse sujeito? – A namorada dele nos procurou – respondeu Lindley. – Tinha umas coisas interessantes a dizer. Falou que o Sr. Watkins foi contatado via internet e recebeu 500 dólares por seus serviços, além de uma boa quantidade de uma droga fortíssima. – Assim como nosso motorista da van, o Sr. Pinkney – comentei. – Nosso primeiro motorista da van – corrigiu Lindley. – Ao que parece, são dois. Comecei a examinar as folhas à minha frente. Watkins tinha uma cha quilométrica de pequenos delitos e alguns crimes graves, incluindo uma passagem pela cadeia por assalto à mão armada. Além disso, prestara serviços comunitários no período de reabilitação. – A namorada contou que Watkins foi orientado a levar uma van até a cabana do zelador no Branaff na manhã do sequestro e esperar que lhe entregassem algum tipo de encomenda. Depois disso, segundo ela, Watkins levou a tal encomenda ao estacionamento do aeroporto Reagan. O porta-malas do veículo estava trancado, portanto ele não tinha como saber qual era a carga. – Nem quem colocou a “encomenda” na van – concluí. – Isso mesmo – concordou Lindley. – Gente esperta – falei.
Eu começava a entender como Rodney Glass tinha conseguido retirar Ethan e Zoe das dependências do colégio sem a necessidade de se ausentar do posto de trabalho. Tudo o que ele precisaria fazer era pegar o carro no aeroporto mais tarde, talvez dopando as crianças novamente, e seguir até o cativeiro. Se alguma coisa desse errado nesse meio-tempo, Glass estaria protegido pelo anonimato. Mesmo se quisessem, Pinkney e Watkins não poderiam entregá-lo. Afinal, os dois não faziam a menor ideia de quem ele era. – Onde Watkins está agora? – perguntei. – É isso que a namorada quer saber – respondeu um dos agentes, após alguns risos de deboche de seus colegas. – Soubemos que ele saiu da cidade duas noites atrás com a irmã mais nova da namorada. – continuou Lindley. – Acho que ela não tem mais nenhum motivo para querer protegê-lo. A jovem veio aqui mais cedo acompanhada de um advogado e abriu o bico. O nome dele já foi colocado na base de dados federal e a esta hora o sujeito está sendo procurado em todo o país. Porém, Deshawn Watkins não é nossa principal preocupação neste momento. Levantei os olhos da pasta. Lindley estava pegando uma maleta de aço do chão. Colocou-a à sua frente com as mãos sobre as travas da combinação dupla e fez um aceno de cabeça aos demais homens na sala. – Por favor, podem nos deixar a sós por um instante?
capítulo 92
ASSIM QUE O ÚLTIMO OFICIAL saiu da sala e fechou a porta, Lindley abriu a maleta. O robusto laptop dentro dela ligou automaticamente e o diretor digitou uma senha extensa a m de acessar o que ele queria mostrar apenas para mim. – Nosso escritório em Richmond recebeu este vídeo hoje cedo. O CD já seguiu para análise. De qualquer maneira, a primeira-dama pediu pessoalmente que você desse uma olhada. Aquilo talvez explicasse o fato de eu ser a única pessoa estranha ao FBI presente à reunião. Bem ou mal, a Sra. Coyle conava em mim. E eu sentia que até aquele momento a estava decepcionando. Lindley girou a maleta de modo que eu enxergasse a tela e em seguida apertou a barra de espaço para acionar o vídeo. Parecia que nada estava acontecendo. Então percebi um movimento vago, como se alguém carregasse a câmera através de uma sala escura. Senti os pelos dos braços se arrepiarem, prevendo o que iria acontecer. Um clarão de luz varreu a tela, semelhante ao facho de uma lanterna. Consegui reconhecer as dobras de um cobertor azul-escuro. A câmera continuou em movimento e de repente a mão de alguém entrou em foco, antecedida pelo rosto de Zoe. A menina parecia dormir um sono profundo. Provavelmente estava sob o efeito de um sedativo, a julgar pelo que Molly Johnson me contara. A imagem era fechada, portanto eu não conseguia ver onde ela se encontrava. Seria o porão a que a ex-mulher de Glass havia se referido, que fedia a lama? Deus do céu, que lugar era aquele? – O vídeo está com a data de dois dias atrás – falou Lindley. – Claro que é possível falsicar uma coisa dessas. Porém, até agora esse é o indício mais forte de que eles estão vivos. Na verdade aquele era o único indício, mas achei melhor ficar quieto. A câmera cou sobre Zoe por mais dez segundos. Após um movimento brusco, Ethan entrou em foco. Seu rosto estava tão sujo e abatido quanto o da irmã. Não percebi sangue nem cicatrizes, nada que indicasse algum sinal de agressão física. – O desgraçado está deixando as crianças passarem fome – desabafei, sentindo os olhos se encherem de lágrimas. Era difícil não se emocionar com aquelas imagens. Fui obrigado a desviar os olhos da tela. A meu lado, Lindley pigarreou: – São 33 segundos de duração. Depois... isso. A tela cou escura como se a câmera tivesse sido desligada. Dali a alguns segundos a imagem voltou, uma folha branca com alguma coisa impressa numa fonte simples e pequena. A câmera se aproximou e as palavras finalmente ficaram legíveis. Acredite no que quiser, Sr. Presidente. – Sempre a mesma tortura – falei. – O sujeito insiste em bater nessa tecla. Quer que o
presidente veja os filhos definhando, assim como Rodney Glass viu o menino dele morrer. – Difícil não concordar – disse Lindley, assumindo uma expressão grave. – Está na hora de pôr as cartas na mesa. – Como assim? – Eu não sabia se aquilo era bom ou ruim. – Como assim?! – repetiu ele. – Bem, se não for tarde demais, temos uma última chance de salvar Ethan e Zoe. Precisamos submeter Glass a um interrogatório. – O quê? – É um risco que precisamos correr. Tudo o que temos até agora são alguns indícios. Glass precisa se sentir acuado. Uma confissão é nossa única chance! – Espere aí! Será que acabamos de ver o mesmo vídeo? – perguntei. – O que acha que vai acontecer com as crianças se formos em cima de Rodney? Lindley não gostou de ver sua autoridade questionada. Percebi pela maneira como levantou o queixo ao olhar para mim. – O que está insinuando, Alex? Que não devemos fazer nada? Que esperemos aqui sentados para ver o que acontece? – Vamos considerar todas as possibilidades enquanto ainda há tempo – respondi, andando de um lado para outro na tentativa de pensar com mais clareza. – Talvez possamos inventar uma história. Dizer que encontramos as impressões digitais dele no CD ou algo que faça Glass achar que está sem saída. Mas Lindley não me ouvia mais. Seu celular tinha emitido um sinal. Ele já lia a mensagem que acabara de chegar. – Tarde demais – falou. – Glass está aí fora.
capítulo 93
RODNEY GLASS ERA UM EXCELENTE ATOR. Ele parecia perplexo com o fato de ser interrogado mais uma vez. Mas aquele sujeito não me enganava. Ele havia entrado na faculdade de medicina. Sem dúvida era uma homem inteligente. – Quantas vezes vou ter de repetir? – perguntou ele no início do interrogatório. – Eu cuidava do nariz de Ryan Townsend quando Ethan e Zoe desapareceram. Além do próprio Ryan, há pelo menos um agente do Serviço Secreto que pode conrmar isso. Portanto, alguém se incomodaria em me explicar o que estou fazendo aqui? Glass tinha um jeito arrogante, tipicamente adolescente, que se manifestava da cabeça aos pés. Será que aquilo também fazia parte da encenação? Uma outra maneira de ganhar a conança dos alunos do Branaff? Eu desconava que ele havia tomado um calmante a m de parecer mais tranquilo. Glass com certeza tinha intimidade com remédios. – Onde você estava pouco antes do desaparecimento de Ethan e Zoe? – perguntei. – É impressão minha ou já ouvi essa pergunta antes? – disse ele. – Responda! – ordenou Lindley. Após nossa discussão inicial, Peter e eu chegamos a um consenso. Agora que Glass estava ali, precisávamos ir para cima dele com tudo de que dispúnhamos. E talvez com algumas coisas de que não dispúnhamos também. – No banheiro dos professores. Fazendo cocô, se querem mesmo saber! Lindley rabiscou alguma coisa em seus papéis. – Quanto tempo demora para ir do banheiro à enfermaria? – perguntei. – Não sei – respondeu Glass, balançando a cabeça. – Um minuto e meio, dois minutos? Você deve saber! – Mais ou menos um minuto e meio – falei. – Mas você não estava voltando do banheiro, estava? – E isso não é uma pergunta, é? – rebateu. – Um minuto e meio também é o tempo necessário para voltar pela passagem subterrânea, andando depressa – afirmei. – Eu cronometrei. – Ah, parabéns! – ele debochou. Eu odiava aquele sujeito do fundo da minha alma. Eu estava cada vez mais irritado. Pouco me importava se Glass tinha perdido um filho. Isso não era desculpa para a maneira como ele se comportava. – Antes você mandou um torpedo para Zoe Coyle do celular de Emma Allison – continuei. – A mensagem que a fez descer ao túnel. Eu me pergunto se você imaginava que Ethan iria aparecer com a irmã. Glass arreganhou os dentes e olhou para todos os ociais na sala. Éramos cinco, incluindo dois agentes que gravavam o interrogatório com uma câmera e um laptop.
– Sinto no ar o cheiro de armação – sentenciou, olhando diretamente para a câmera. Lindley depôs a caneta e fechou a pasta à sua frente, como se o interrogatório fosse começar naquele instante. – Sr. Glass, houve algum incidente entre você e sua ex-mulher em março de 2007? – perguntou. O enfermeiro demonstrou uma surpresa exagerada, olhando para mim e para Lindley alternadamente. – O que está acontecendo aqui? Que papo é esse? Será que perdi alguma coisa? – Ela disse que você a dopou e a manteve refém por três dias. Pouco depois da morte de seu filho. – O quê!? – disse ele boquiaberto. Pela primeira vez Glass parecia realmente surpreso. – Então é essa a estratégia de vocês? Usar meu filho para me comover? Devem estar brincando! Fiquei de pé. Eu estava tão furioso que não aguentava mais ficar sentado. – Alguém aqui parece estar brincando? – gritei irritado. Sem se levantar da cadeira, Lindley perguntou no mesmo tom de voz calmo: – Poderia nos mostrar o lugar para onde levou as crianças? – Não posso! – gritou Glass em sua direção. – Não posso porque isso nunca aconteceu! Vocês se deram o trabalho de examinar o histórico médico de Molly? Ela sofreu um colapso nervoso logo depois da morte de Zach. O problema foi diagnosticado. Mas se ela imagina que eu a z refém, ou seja lá o que for, isso é problema dela, não meu! – Parceiro, seu sentimento de solidariedade é decepcionante! – falei. – Jura? Não é muito diferente de sua habilidade como policial – retrucou. – Deus do céu! Se Ethan e Zoe aparecerem mortos, ao menos iremos saber de quem é a culpa. Então aconteceu. Eu explodi. Quando me dei conta, estava debruçado sobre a mesa, agarrando a camisa de Glass com as duas mãos. – Onde eles estão? – gritei. – Alex! Foi um momento de pura adrenalina. Se pudesse abrir a cabeça do enfermeiro para arrancar aquela informação, eu não pensaria duas vezes. – Tirem ele daqui! – gritou Lindley atrás de mim. – Isso não vai trazer seu lho de volta! – Eu não parei de gritar: – Desista, Glass, pelo amor de Deus! Não deixe aquelas crianças morrerem! Eu ainda berrava quando eles me arrastaram para o corredor. A última coisa que vi antes que a porta se fechasse foi Rodney Glass erguendo a mão num gesto de despedida. Deus do céu! O que eu acabara de fazer? Ele tinha conseguido exatamente o que queria. Eu mordi a isca.
capítulo 94
AGACHADO JUNTO A UMA PAREDE no corredor, eu respirava fundo, tentando me acalmar. Sentindo um misto de raiva e constrangimento pelo que acabara de acontecer, percebi alguém se aproximar e parar à minha frente. – Quer dar uma volta? Levantei os olhos do par de botas pretas com biqueira prateada e vi a mão de Ned Mahoney estendida. – Como sabia que eu estava aqui? – perguntei. – Depois daquela cena? Bem, acho que todo mundo sabe que você está aqui – respondeu Ned, com várias pessoas paradas atrás dele me olhando. – Venha, vamos tomar um pouco de ar. – Não respondeu à minha pergunta. – Mas é verdade – insistiu Ned, adiantando-se pelo corredor. Não me restava outra opção além de me levantar e ir atrás dele. Descemos ao térreo do Liberty Crossing e saímos pelo saguão oeste. O enorme edifício tinha a forma de “x” com uma praça de concreto na interseção das duas alas principais. Resolvemos nos sentar num dos vários bancos com vista panorâmica para o estacionamento logo abaixo. A temperatura mais agradável ali não esfriou meu ânimo enquanto eu contava a Ned o que havia acontecido. Falar sobre aquilo só me deixava pior. – Estraguei tudo, Ned! Glass vai dormir em casa hoje, enquanto Ethan e Zoe... – falei, balançando a cabeça sem conseguir terminar a frase. – Isso acabaria acontecendo de qualquer maneira – retrucou Ned. – Você mesmo disse que o sujeito é inteligente e parecia estar limpo. – Limpo como lama – retruquei. – Droga! Mas sei que podemos pegá-lo! Estranhamente, Ned demorou a responder. Em geral seu cérebro tem uma ligação direta com a boca. Por fim ele disse: – Tem certeza de que Glass é o cara que estamos procurando? – Absoluta – respondi. – E pode provar isso? – Posso. Mas não a tempo de encontrar aquelas crianças com vida. – Então talvez seja hora de pensar em alternativas – falou. Senti um frio na espinha, e não era por causa do vento gelado que soprava do estacionamento. Deixei que Ned continuasse: – Escute, eu visto a camisa da corporação quando é preciso. Se o sistema não funcionasse na maior parte do tempo, eu jamais ganharia a vida fazendo o que faço. Mas sabe de uma coisa, Alex? Ele não está funcionando. Não neste caso. Longe disso! – É difícil discordar. Glass é um sujeito diferente, mais esperto que a maioria das pessoas.
Eu não conseguia fazer com que Ned olhasse para mim. Ele encarava os próprios pés enquanto falava. Anal de contas estávamos em Langley, um lugar onde até os bancos tinham ouvidos. – Ned, você está falando de... – Não estou falando de nada. Mas, se estivesse, eu lhe diria que posso facilmente conseguir algumas coisas de que você talvez precise. E também que não vou deixá-lo na mão, caso queira saber. Eu queria perguntar do que ele estava falando, mas algo me dizia que eu já sabia. Antes que eu pudesse falar alguma coisa, Ned se levantou. – Vá para casa, Alex. Você tem o número do meu telefone. Se quiser conversar... – Conversar – repeti. – Está bem. Eu tenho seu número. Ele encolheu os ombros para se proteger do vento e soprou nas mãos. – Não dá para vir aqui fora sem um casaco – falou. – Faz um frio insuportável. Então se virou e foi embora. O frio era realmente insuportável.
capítulo 95
GRAVAR. “Depois que me afastei de Cross, quase me deixei abater pela emoção. Eu consegui, eu venci. Estou vencendo todas as batalhas. Todas, sem exceção. Mas percebo uma ligeira mudança dentro de mim. Será que me sinto culpado porque... me tornei uma pessoa diferente? Por que não ataquei Cross? A verdade é que não quei tão impressionado com ele como achei que caria. Será que ele estava jogando comigo? Provocando-me para ver se eu o matava? Sua forma física impressiona, além de ele ser um sujeito muito inteligente. Uma coisa é certa: o detetive é apaixonado pelo que faz. Mas não acho que ele vá conseguir me colocar atrás das grades pelas coisas terríveis que fiz. Não tenho medo de Alex Cross. Mas o que estou sentindo agora não tem a ver com o detetive: tem a ver comigo. Se eu realmente quiser me sentir seguro, não devo fazer nada com ele. Sou capaz de imaginar e executar as piores coisas possíveis e ainda sair impune. Então por que não agi? O que me impediu? Sentimento de culpa? Remorso pelo que z com as crianças? Talvez alguma coisa tenha me tocado: algo que tenha a ver com os lhos de Cross, sua mulher ou com o próprio detetive. O comprometimento dele é impressionante. Ou será que é isto: vou continuar até que Cross consiga me parar? Não, acho que não. Não acho que eu queira parar. Eu venci... e isso me deixa bastante satisfeito.”
capítulo 96
QUANDO CHEGUEI EM CASA naquela noite, ouvi as crianças no porão. Desde que Ava passara a morar conosco, os três não paravam de aprontar, transformando a parte inferior da casa numa espécie de clube, ringue de boxe e cinema. Bree e Nana estavam na sala, fechando envelopes com folhetos em prol da Casa das Crianças, a escola experimental que John e Billie ainda se esforçavam para criar... sem muita ajuda de minha parte naqueles dias. Joguei-me no sofá com meu prato de comida e uma lata de cerveja. – Tudo bem? – perguntou Bree, beijando-me no rosto. Senti o cheiro bom de minha mulher, sua pele macia. Eu estava com saudade. – Tudo mal – respondi. Eu não conseguia tirar da cabeça a proposta de Mahoney, mas aquela não era a hora nem o lugar para discutir o assunto. Eu estava em casa. Estendi o braço e peguei do chão um exemplar amassado do livro Preciosa, que alguém esquecera ali. A capa trazia uma foto da excelente atriz Gabourey Sidibe, protagonista do lme homônimo. – Por acaso Jannie está lendo isto aqui para a escola? – perguntei. – A história é forte. Uma excelente leitura. – Na verdade eu trouxe para Ava – interveio Nana. – Eu disse a ela que, além de quadrinhos, era importante ler livros. – Por falar em Ava... – disse Bree. – Anita, do Juizado de Menores, ligou para cá hoje. Queria saber como estão indo as coisas. – Isso então signica que ainda não arrumaram um lugar para ela? – perguntei, pegando com o garfo um pouco de carne e batata-doce. – É, mas Anita acha que não vai demorar muito – respondeu Bree. Levantei os olhos do prato e vi que as duas olhavam para mim. – Que cara de surpresa é essa, Alex? – perguntou Nana. – Você sabe que o Juizado está cuidando disso! – Sim, eu sei. Precisamos encontrar um lar para Ava antes que ela se apegue demais às pessoas ou a esta casa. Nana jogou longe o envelope e o folheto que segurava e disse: – Você deve estar cego, Alex! – O quê? – Parece que você é o único desta casa a não enxergar que Ava já está apegada à nossa família. E a maioria de nós também está apegada a ela! Coloquei meu prato de lado e esfreguei os olhos. A última coisa que eu queria naquele momento era receber um sermão de minha avó ou brigar. Afinal, eu estava em casa!
– Nana, acho melhor conversarmos outra hora. – E eu acho melhor você entender que pouco me importo com o que acha. Já reparou que Ava nunca sorri para você? Por que será que todo mundo ca quieto quando entra na sala, Alex? É porque você nunca está aqui! Ou pensa que ela age assim com todos nós? – Se a senhora não sabe, estou tentando encontrar duas crianças, fazendo o máximo para que elas voltem para seus pais – retruquei, mal conseguindo me controlar. – Sim, porque, pelo visto, deste caso aqui você não quer saber! Desculpe, Alex, mas há milhares de pessoas preocupadas com os lhos do presidente. Mas quem se preocupa com Ava? Nós! Nós somos tudo na vida dessa garota! – Isso não é justo! – protestei. – Então me avise quando tudo se tornar justo por aqui! Nana arrancou o livro de meu colo e saiu da sala. No instante seguinte ouvi a porta do porão se abrir. – Quem quer sorvete? – gritou ela como se nada tivesse acontecido, sendo obedecida por um tropel de pés subindo a escada. – Tem de chocolate, menta, flocos... Respirei fundo uma vez. E depois novamente. – Que dia maravilhoso! – desabafei. Bree me mostrou um sorriso solidário. Eu não sabia de que lado minha esposa estava, mas ela não ia se voltar contra mim por causa daquele assunto. Ao menos naquele momento. – Venha cá, valentão – falou. – Acho que está precisando de um bom sorvete de chocolate. Você merece!
capítulo 97
PELO VISTO, SERIA IMPOSSÍVEL dormir aquela noite. Sem a companhia de Bree, que tinha ido para o trabalho, a cama parecia grande demais, restando-me apenas car entregue aos meus pensamentos, que incluíam a pobre Ava. Sempre que eu fechava os olhos, a imagem dos rostos sujos e abatidos de Ethan e Zoe me vinha à cabeça. E, sempre que os abria, pensava no que Mahoney havia me dito depois de meu encontro com Glass. Ou melhor, em tudo o que ele não dissera. Aquilo parecia uma bola pesada sobre meu peito, um misto de medo e empolgação. Se eu não estava enganado, Ned se referia a algo a que sempre resisti desde que me tornei policial, uma linha que nunca tinha ultrapassado. Talvez eu nunca tivesse agido assim porque jamais havia sido necessário. Quem sabe aquela não seria a noite (e talvez a hora e o minuto) que faria diferença para Ethan e Zoe? Será que eu podia viver com essa dúvida? E se as vítimas fossem meus lhos, ou a própria Ava? Será que eu estaria ali me perguntando o que fazer? Claro que não. Estranhamente, minha briga com Nana trouxe o sequestro para dentro de casa. Eu faria qualquer coisa para salvar aquelas crianças. Passava da meia-noite quando decidi que não caria mais olhando o teto. Sentei-me rapidamente. Há duas coisas que consigo encontrar no escuro: meu telefone e minha pistola. Peguei o celular e disquei o número de Sampson. – Alô – atendeu ele com uma voz gutural. – Alex? – Não queria acordar você, John, mas preciso conversar. Na verdade, preciso de sua ajuda. – Sem problema, coração – brincou. – Prepare um café que já estou indo para aí. – Tudo bem. Vesti uma roupa, lavei o rosto e saí porta afora. A caminho da casa de Sampson, telefonei para Mahoney, que atendeu no primeiro toque. – Eu sabia que você ia ligar – falou.
capítulo 98
SAMPSON CONCORDOU EM PARTICIPAR assim que lhe contei qual era meu plano. Eu não podia pedir aquilo abertamente, John sabia disso, por isso ele se ofereceu e eu, desesperado, acabei aceitando. Meu amigo tem 2,10m de altura e braços de dar inveja a qualquer garoto de academia. Além disso, tinha todas as habilidades que seriam úteis naquela empreitada. Já Ned Mahoney cuidaria das ferramentas. Ele carregava uma pequena bolsa de pano quando o pegamos num estacionamento em North Fairlington. Com 12 anos de experiência na Equipe de Resgate de Reféns, Ned seria o especialista em arrombamentos de nosso grupo. Só ele falou durante todo o percurso, denindo a melhor estratégia a ser empregada. Eu me limitava a dirigir e ouvir. Por volta das 2h30, nós três estávamos reunidos nos fundos da residência de Rodney Glass, em Alexandria. Era um sobrado geminado com uma entrada de garagem bem iluminada, comum a todos os moradores. A parte de trás, com um gramado e uma piscina, estava apagada e fechada àquela hora. Eu segurava uma pequena lanterna para Ned enquanto ele desenrolava um estojo de couro cheio de ferramentas que eu jamais tinha visto na vida. Normalmente Ned usa uma barra de ferro de vinte quilos no dia a dia, mas ele também tem habilidade com instrumentos menores e mais silenciosos. Dez segundos depois de ele enar uma espécie de chave na trava no alto da porta, ela se abriu com um pequeno clique. A fechadura junto à maçaneta foi ainda mais fácil. Tomei a dianteira e entrei. O térreo estava escuro e silencioso. Cobrimos nossos rostos com máscaras pretas. Eu não me sentia bem fazendo aquele tipo de coisa, mas agora era tarde demais. Eu só queria salvar as crianças, caso elas ainda estivessem vivas. Subimos a escada que levava até a parte de cima da casa. Os degraus eram acarpetados, portanto não fazíamos barulho. Logo chegamos à porta do quarto de Glass. Eu o ouvia roncar e enxergava sua silhueta. O enfermeiro dormia de costas, com um braço sobre a testa. Gesticulei para que John casse de um lado da cama e segui rapidamente para o outro. Mahoney se postou ao pé da cama, com uma seringa na mão, a agulha pronta. Fiz a contagem regressiva com os dedos. Três... dois... Glass então acordou. Rolou em minha direção e esticou a mão para pegar alguma coisa de baixo da cama, gesto interrompido por John, que puxou o braço dele para trás. Enei a mão no mesmo lugar e senti o cano de uma pistola. Eu sabia que o enfermeiro gostava de caçar e tinha várias armas registradas em seu nome. Assim que Sampson o dominou, cortei um pedaço de ta isolante e o colei na boca de Glass. Em seguida o virei de bruços e John o algemou. Finalmente Mahoney entrou em cena. Ajoelhou-se no colchão, afastou o cobertor e enou a
agulha na coxa de Glass. O homem deu um grito que foi abafado pela ta e então seu corpo se enrijeceu, como se ele tivesse sido acertado por uma pistola de choque. A descarga de adrenalina parecia ter deixado seu corpo ainda mais pesado, o que dicultaria o transporte. Mas dali a um minuto seus membros começaram a relaxar e os gemidos que ele emitia foram cando mais fracos, até se reduzirem a um sussurro baixo e constante. Seu corpo estremecia como sempre acontece momentos antes de cairmos no sono. Glass não estava inconsciente, porém já não representava qualquer perigo. Por enquanto. – Pronto – falou Ned. – Podemos ir. Nós o vestimos com uma calça e o levamos escada abaixo, suspendendo o corpo e deixando que suas pernas se arrastassem no chão. Na porta, joguei um casaco sobre seus ombros para esconder as algemas. Então o conduzimos até o carro, formando uma barreira. Quando partimos, eu já não tinha nenhuma dúvida de que estava agindo da forma certa. Rodney Glass sabia o paradeiro de Ethan e Zoe. Era impossível ele não saber. Deus nos ajude se eu estiver errado, pensei. Deus precisava nos ajudar. Estávamos sequestrando Rodney Glass.
capítulo 99
– ACORDE! ESTÁ ME OUVINDO? Acorde! Tudo aconteceu muito rápido. Hala não queria ter caído no sono. Mas agora alguém iluminava seus olhos com uma luz forte. Num gesto instintivo, sua mão foi direto à pistola em sua cintura. Antes que pudesse alcançá-la, o cano de um revólver entrou em seu campo de visão e parou a poucos centímetros de sua testa. – Não faça isso, irmã! – disse uma voz feminina. – Por favor! Somos da Família. Viemos buscá-los. Queremos apenas ajudar. – Hala? – chamou Tariq, mal conseguindo se mexer. A mão infeccionada tinha provocado febre e sua visão estava turva. – O que é isso? – Não sei – respondeu ela. – Alguém aí diz pertencer à Família. – Não podemos demorar – falou uma voz masculina. – Agora me dê essa arma! O dedo de Hala chegou mais perto do gatilho. – Não – disse ela. – Irmã, precisa me ouvir – aconselhou a mulher, dando um passo atrás e abaixando a lanterna. Sua voz era calma e amigável. – Você fez uma ligação internacional, querendo que fosse interceptada, não é verdade? Hala olhou para os dois estranhos, mas era impossível reconhecer seus rostos naquela escuridão. Além disso, não conseguia pensar com clareza. Eles não tinham comido nem bebido nada nas últimas 24 horas. No entanto, aquelas duas pessoas falavam a verdade e ela não tinha alternativa. – Tudo bem – Hala cedeu, entregando a pistola ao homem. – Mas vou querer minha arma de volta. – Claro – concordou ele. Os Al Dossari foram colocados de pé e obrigados a levantar a blusa, mostrando que não carregavam nenhum aparelho de escuta. Em seguida o casal foi submetido a uma revista. – Só por precaução – garantiu a mulher. Quando apalpou o bolso da blusa de Hala, encontrou as duas cápsulas de cianureto. – Não vão mais precisar disso. Vocês dois são heróis. A Família inteira reverencia seus nomes e os atos que praticaram. Pela primeira vez em muitos dias, Hala sorriu. Uma picape Toyota os esperava no nal do beco. À luz dos postes, a médica viu que os dois desconhecidos tinham pele morena e olhos escuros. Os cabelos da mulher estavam tingidos de louro e os do homem haviam sido cortados rente, deixando à mostra a tatuagem de um falcão árabe na parte de trás da cabeça. Os trajes elegantes davam impressão de que ambos estavam voltando de algum evento social. Até onde Hala sabia, aquilo era verdade. Ela empurrou Tariq para o banco traseiro e sentou-se ao seu lado. – A polícia americana deu um tiro na mão do meu marido – disse ela assim que o carro
partiu. – Vou precisar de antisséptico, antibióticos... – Tome – falou a mulher, passando uma sacola de compras por cima do banco. – É tudo o que temos por enquanto. Antes de mais nada, precisamos tirá-los de Washington. Quando Hala examinou o conteúdo da sacola, cou aliviada. Havia garrafas de água, barras de chocolate, amêndoas, um estojo de primeiros socorros e um frasco de antibióticos. Se duas semanas antes alguém lhe contasse que aquilo iria acontecer, ela acharia loucura. Mas nalmente ela aprendera, assim como os americanos, a não subestimar o poder e os recursos da Família. Hala segurou a mão boa de Tariq e a apertou entre as suas, num gesto carinhoso. Se o marido tivesse feito o que queria no beco, ele estaria morto àquela altura. – Obrigada – agradeceu a médica aos dois ocupantes do banco da frente. – Não – replicou a mulher. – Agradeça a Alá e à Família.
capítulo 100
MAHONEY ASSUMIU A DIREÇÃO, com Sampson ao seu lado e eu no banco de trás na companhia de Glass, que àquela altura estava menos grogue. Volta e meia seus olhos giravam nas órbitas. Esperei que entrássemos na autoestrada para arrancar a fita de sua boca. – Que diabo está acontecendo? – perguntou, enrolando as palavras como se estivesse bêbado. – Seus imbecis, vocês se meteram na maior enrascada... Sampson se virou no banco e deu um tapa na cabeça de Glass. Deve ter doído, porque ele logo se calou. – Primeiro você ouve – disse John com o dedo na cara do enfermeiro. – Depois você fala. Glass se agachou, tentando se esquivar de Sampson, mas ele parecia mais irritado do que assustado. Era o efeito da escopolamina, o sedativo que lhe havíamos injetado. – Estou pouco me lixando – falou. – Rodney – chamei. – Escute. Vou lhe fazer algumas perguntas sobre Ethan e Zoe Coyle. É por isso que está aqui! Sabe onde eles estão? Ele estalou os lábios algumas vezes e seus olhos não paravam de piscar. – O que vocês me deram? Tiopental? Parece que tem areia na minha boca. – Glass! Cadê Ethan e Zoe? – insisti. – Sei que eles estão num porão. O piso é enlameado. O que mais? – Não sei do que estão falando – falou numa voz quase incompreensível. A escopolamina não é propriamente um “soro da verdade” . Do ponto de vista cognitivo, porém, mentir é mais complexo do que dizer a verdade. A droga torna essa tarefa ainda mais difícil. Minha ideia era fazer perguntas simples e diretas. No m das contas ele acabaria revelando alguma coisa. – Ethan e Zoe estão num porão – repeti. – Não é verdade, Rodney? Sua cabeça pendeu para trás enquanto ele engolia em seco algumas vezes. – Por que eu deveria lhes dizer? – ironizou ele. John ameaçou acertá-lo, mas levantei a mão para impedi-lo. – Eles estão num porão, Rodney? Ou é uma espécie de caverna? – Eu, hummm... – Estão ou não estão? Diga alguma coisa! – Não – respondeu nalmente. – Quero dizer... sim. Mas não num porão. É um... ahn... Está mais para um celeiro – acrescentou, dando uma risada baixa e estranha. – Qual é a graça? – perguntou Sampson. – Você, cara – respondeu rindo novamente. – Quero dizer... vocês são policiais, certo? Mas agora vocês é que vão para a cadeia. Isso é engraçado. Muito engraçado.
capítulo 101
TIVEMOS DE APLICAR UMA SEGUNDA injeção e perder um bom tempo até conseguir arrancar novas informações de Glass. Quanto mais perto da verdade chegávamos, mais graça ele achava daquela situação. Minha vontade era arrancar seu sorriso na base da pancada ou deixar que Sampson fizesse isso. Depois de duas intermináveis horas, chegamos a uma estrada de terra em algum ponto ao sul da divisa com a Pensilvânia e às margens do Parque Estadual Michaux. Trocando em miúdos: estávamos no fim do mundo. Mahoney dirigia devagar, o farol alto ligado. Por enquanto seguíamos sem destino certo. – Pare o carro! – falou Sampson de repente. – O que é isso? Ned pisou no freio. Naquele ponto o capim e os arbustos na beira da estrada estavam amassados, como se alguma coisa pesada tivesse passado por cima. Um pouco além via-se algo parecido com o rastro de um trator ou talvez uma estrada de acesso, que seguia mata adentro. Glass deu outra longa risada de bêbado. – Vou entender isso como um sinal verde – disse Ned, engatando a primeira e virando o volante. Quando avançamos, percebemos que havia apenas duas marcas recentes de pneus, dando a impressão de que pouca gente circulava por ali. Será que Glass tinha passado naquela estrada? Eu ainda estava confuso com aquela descoberta. Após percorrermos cerca de cem metros, o número de árvores diminuiu e enxerguei uma velha casa de fazenda mais à frente. A construção estava caindo aos pedaços, com vários buracos na fachada de madeira. Em meio ao breu, percebi um celeiro de três andares em melhores condições ao lado da casa. Meu coração veio à boca. Era o tipo de lugar onde poderia existir um porão. Ned freou bruscamente, os faróis iluminando o interior do celeiro. Aquele cenário era assustador, embora fôssemos nós, em tese, que estivéssemos no controle da situação. Só que ainda dependíamos de Glass. – Que lugar é este? – perguntou-se Mahoney. A carcaça de um animal em decomposição, ou talvez mais de uma, havia sido abandonada à porta do celeiro. – Isso que é recepção! Alguém aqui adora receber visitas! – exclamou Sampson. – Viemos ao lugar certo. – Algeme-o na maçaneta da porta do carro! – falei, já no meio do terreno. Eu sentia a adrenalina correr pelas minhas veias. Entrei correndo no celeiro, atravessando um corredor formado por uma leira de baias e por uma parede com ganchos para pendurar arreios.
– Ethan! Zoe! – gritei a plenos pulmões. – Tem alguém aí? A única resposta foi o riso detestável de Glass do lado de fora. Na parte dos fundos, era possível enxergar as vigas do telhado. Os únicos sinais de vida naquele lugar se resumiam às trepadeiras e aos arbustos que passavam por entre os buracos nas paredes. – Descobriram alguma coisa? – gritei para os outros, que estavam mais atrás. – Aqui, nada – berrou Sampson de volta. – Aqui também não – disse Ned. – Deve haver alguma maneira de descer. Uma escada, alguma coisa... Voltei até o corredor entre a parede de arreios e as baias e apontei a lanterna em todas as direções. Será que estávamos deixando de ver alguma coisa? Ethan e Zoe estariam ali? Olhando com atenção, percebi que a última baia, a mais distante da porta do celeiro, era a única que não estava vazia. Aproximei-me e vi uma pilha de lixo, como se alguém tivesse pegado aquilo e jogado ali dentro. Por quê? – Ei! Me ajudem aqui! Quando Ned e Sampson vieram ao meu encontro, eu já jogava vários pedaços de madeira para fora da baia. Havia um eixo de carro, rolos de o enferrujado, tijolos e um debulhador de milho, algo que eu não via desde minha infância na Carolina do Norte. Assim que limpei a área, coloquei-me de joelhos e meti a mão num monte de lama, pedra e palha. Enquanto cavava, notei que alguns pedaços caíam através de uma fenda no piso de madeira. Após alguns segundos percebi que não havia apenas uma, mas várias fendas, que formavam o perfeito contorno de uma tampa. – É um alçapão! – gritou John, já tentando suspender a madeira. Com algum esforço conseguimos abrir a tampa. Pegamos as lanternas e apontamos para baixo. – Ó meu Deus! – exclamou Mahoney. – Oh, não! Sampson e eu ficamos parados, boquiabertos. Uma camada de terra escura e úmida preenchia todo o espaço, dando a impressão de que alguém tinha acabado de tapar aquele buraco. Outra coisa que me chamou a atenção foi a parte de cima de uma escada de madeira, com os últimos degraus brotando da lama. Parecia que eu estava diante de um túmulo. Às minhas costas, eu ouvia Rodney Glass gargalhar no carro.
capítulo 102
ÀS 6H30, A VELHA FAZENDA era uma perfeita cena de crime, iluminada como um estádio em noite de nal de campeonato. A tensão atingia limites impressionantes, perceptível em cada um dos rostos ali presentes, inclusive o meu. Uma equipe de escavação do exército fora trazida de Fort Detrick. Já Peter Lindley destacara a Unidade de Gerenciamento de Crises para supervisionar a logística e a segurança da área. Até a delegacia do Condado de Frederick foi chamada para ajudar. Havia ainda rumores de que o diretor do FBI, Ron Burns, estava a caminho. Não tinha como duvidar disso. Cheguei a me perguntar se o presidente e a primeira-dama também apareceriam na fazenda. Eu sinceramente esperava que não, a fim de que fossem poupados. A pior parte era não ter ideia do que poderíamos encontrar. Havia um clima de forte emoção na fazenda. Eu jamais tinha visto uma operação tão complexa ocorrer em tamanho silêncio e mistério. Após uma rápida consulta à equipe de engenharia de Quantico, decidiu-se que o trabalho de escavação seria feito manualmente. Havia uma perfuradora e uma miniescavadeira num canto do terreno, mas as condições do subsolo do celeiro eram uma incógnita. A trepidação das máquinas poderia colocar tudo a perder. Três soldados do exército munidos de capacetes com lanternas e pequenas pás começaram a trabalhar, retirando rapidamente a terra na parte próxima à superfície e colocando-a em baldes, que seriam levados ao laboratório de análises do FBI. Ned, Sampson e eu nos separamos. John ajudou a transportar os equipamentos e depois os baldes de terra. Mahoney não tirava os olhos de Rodney Glass, que dormia dopado no banco traseiro de um carro do FBI. Não sei do que o enfermeiro se lembraria ao recobrar a consciência, mas naquele instante eu estava com outras preocupações em mente. Eu não me desgrudava de dois agentes do FBI, Wardrip e Daya, que tinham grande experiência em psicologia do trauma infantil e conheciam bem o efeito que um episódio daqueles provocava numa criança. Encontrar Ethan e Zoe com vida era apenas o começo do trabalho. Contei a eles tudo o que eu sabia sobre o caso numa conversa franca e dura. Tínhamos de estar preparados para todos os cenários possíveis. Quanto mais aquela situação se prolongasse, mais difícil seria manter o otimismo. Porém, tudo mudou quando passava das 7h30. Eu estava do lado de fora com Wardrip e Daya quando começou o burburinho de que a equipe havia encontrado alguma coisa. Corremos até o celeiro. Ao me aproximar da baia, vi um dos três soldados em pé dentro do buraco, cuja profundidade já chegava à cintura. Ele conversava com um agente do FBI enquanto os outros dois continuavam a retirar a terra.
Até aquele instante eles tinham achado apenas uma velha parede que passava sob o celeiro. Mas agora o trabalho havia sido suspenso em função de uma estrutura de madeira que parecia esconder uma placa de aço. Ou talvez uma porta. Eu podia ouvir a conversa do soldado com o agente. O homem estava nervoso e sua voz era mais alta que o barulho daquele lugar. – Senhor, até agora não estávamos cavando o porão do celeiro – falou. – Acho que acabamos de encontrá-lo!
capítulo 103
OS SOLDADOS VOLTARAM A CAVAR num ritmo intenso. Ninguém dizia uma palavra dentro da baia, os baldes de terra sendo passados de mão em mão, levados para fora do celeiro. Algumas vezes os homens suspendiam o trabalho e batiam na porta com a pá. – Alguém aí? Ethan? Zoe? Ainda não ouvíamos nenhuma resposta. Quando houve espaço suciente para abrir um buraco na porta, os dois soldados que cavavam se afastaram, exaustos, enquanto seu colega descia com uma serra. Dali a um segundo o barulho estridente da ferramenta ecoou pelo celeiro, interrompido quando o homem mudou de posição e começou a cortar uma peça de aço. Em menos de cinco minutos a porta foi cortada e agora os soldados usavam um pé de cabra para abri-la. Quando nalmente retiraram a madeira, os homens saíram e abriram caminho para dois paramédicos. Eu estava na entrada da baia, observando a estrutura ali montada para socorrer Ethan e Zoe. Havia um carrinho com desbrilador, equipamentos e duas macas, enquanto três ambulâncias e dois helicópteros aguardavam no terreno. Um dos paramédicos lentamente sumiu dentro do buraco, enquanto seu colega lhe passava um estojo de primeiros socorros, seguindo logo atrás. Todos ali presentes pareciam prender a respiração. Aproveitei o silêncio para fazer uma oração. Meu Deus, faça com que as duas crianças estejam aí embaixo. Vivas e com saúde.
capítulo 104
EM MENOS DE UM SEGUNDO um dos paramédicos falou lá de baixo, a voz emocionada: – Tem alguém aqui. Aguardamos no mais profundo silêncio. Esperançosos, porém com uma ponta de apreensão. – Achamos. Eles estão aqui. O homem falava baixo, talvez por causa das crianças, mas nada impediu a explosão de alegria no celeiro. Os ociais riam, se abraçavam e apertavam as mãos, sem falar das lágrimas que escorriam em alguns rostos. A sensação de alívio era enorme. Mahoney me deu um abraço. Depois foi a vez de Sampson. Até Peter Lindley me puxou para junto de si. Foi quando os agentes Wardrip e Daya assumiram o controle da operação. Pediram que as luzes fossem direcionadas para o buraco, dispensaram a equipe do exército e desceram para resgatar Ethan e Zoe. Em alguns minutos fomos avisados de que as crianças estavam prontas para serem retiradas. Zoe foi a primeira a sair. Um misto de esperança e tristeza tomou conta do celeiro assim que a menina surgiu do buraco, trêmula e agarrando-se a Wardrip. Suas roupas se resumiam a trapos imundos e os olhos estavam arregalados e sem brilho. Mas a menina se encontrava consciente, percebendo o que acontecia à sua volta. Ela foi colocada numa maca e imediatamente recebeu oxigênio e soro, e em seguida foi coberta até os ombros com um pesado cobertor, que nos impedia de ver seu real estado de saúde. Wardrip não saiu do lado da menina, falando baixinho em seu ouvido, enquanto Ethan era retirado. O garoto estava tão abatido quanto a irmã, mas o fato de ele ser menor parecia tornálo mais vulnerável. Quando saiu do cativeiro onde passara as duas últimas semanas com Zoe, ele murmurava alguma coisa no ombro de Daya. Eu podia ver seus lábios secos e rachados se mexendo, mas não conseguia ouvir o que ele dizia. Assim que Ethan foi colocado na maca, Zoe estendeu a mão por sob o cobertor e segurou a do irmão. Ninguém fez qualquer menção de separá-los. Os dois se encaravam como se estivessem sozinhos ali e a boca de Zoe também começou a se mexer. Apenas quando as macas passaram à minha frente, com os dois irmãos ainda de mãos dadas, consegui ouvir o que eles diziam. – Obrigado, muito obrigado. Obrigado. Muito obrigado. Não poderia haver palavras mais simples nem tão significativas.
capítulo 105
EU PENSAVA APENAS EM ETHAN e Zoe quando saí do celeiro, portanto só senti falta de Rodney Glass ao perceber que ele tinha sido levado embora. O carro ao qual o enfermeiro cara algemado também não estava mais lá e, a certa altura daquela confusão, eu também tinha perdido Mahoney e Sampson de vista. Foi quando vi Ron Burns. Quero dizer, ele me viu. – Cross! – gritou, apontando o dedo em minha direção. Assim que me aproximei, ele me deu as costas e começou a se afastar de um grupo de ociais. A missão de resgate estava chegando ao m e a equipe de investigadores começava seus trabalhos. Peritos descarregavam material de suas vans, fotógrafos se espalhavam pelo terreno e dois técnicos montavam suas câmeras para filmar cada recanto da fazenda. Alcancei Burns próximo à varanda da casa. Percebi que ele estava furioso. – Rodney Glass disse que não faz ideia de como veio parar aqui – cuspiu o diretor do FBI, indo direto ao ponto. – E continua a afirmar que não tem nada a ver com o sequestro. Eu não sabia por onde começar. Burns e eu nos conhecíamos de outras investigações e nem sempre partilhávamos o mesmo ponto de vista. Mas ainda assim eu confiava nele. – Ron, eu... – Não quero saber! Quanto menos você falar, melhor será para nós dois! – continuou, levando as mãos à cintura e abrindo ligeiramente o paletó. Fiquei surpreso ao ver que ele estava armado. Mas a fúria de Burns ainda não tinha chegado ao m: – Seja lá o que você e sua equipe tenham arrancado de Rodney, e prero nem saber como conseguiram isso, saiba que considero essa atitude inadmissível! Fui claro, Alex? Era melhor não responder. – Não temos nenhuma prova para manter Glass atrás das grades – continuou. – Podemos deixá-lo preso por 24 ou 36 horas, mas, a menos que surja alguma novidade, amanhã à noite ele estará livre. Não consegui mais me conter: – Ron, ainda não terminei meu trabalho com Glass. Nós vamos pegá-lo, temos uma equipe vigiando-o dia e noite. Podemos colocar um GPS no carro dele... – Francamente, Alex – interrompeu-me Burns, levantando a mão. – Alguém já disse que você fala demais? – Respirou fundo, gesto que pareceu acalmá-lo, a julgar pelo tom de voz, que se tornou mais baixo: – Ninguém está achando que você fez uma coisa banal. Longe disso. Provavelmente essas crianças só estão vivas por causa de seu esforço. É óbvio que pessoas muito poderosas vão ter uma gratidão eterna por você. Portanto, não tenho a menor intenção de meter a mão à toa numa casa de marimbondos, entende? Desde que Glass não apresente uma queixa à Justiça, e ele seria idiota se zesse isso, eu diria que essa é sua chance de car de bico
calado e pular fora. Ele apontou o lugar para onde alguém tinha levado meu carro. Vi Sampson sentado no capô, olhando para nós. – Não quero pular fora – falei para Burns. O diretor do FBI balançou a cabeça como se sentisse pena de mim e começou a andar em direção ao celeiro. – Eu sei disso – disse ele por cima do ombro.
capítulo 106
QUANDO O SOL FOI SURGINDO lentamente no horizonte, Hala percebeu que eles tinham chegado ao litoral, às águas do imponente e cinzento oceano Atlântico. Talvez estivessem em Massachusetts. Ou quem sabe Connecticut. Após saírem da autoestrada, tornou-se ainda mais difícil se orientar pelas placas de trânsito. Bangalôs de madeira se alinhavam ao longo da praia, com as ondas quebrando ao fundo, numa orla ainda deserta à primeira luz da manhã. Hala então percebeu que a praia não estava totalmente vazia. Enxergou um homem orando ajoelhado em direção ao mar, em direção a Meca. Ela conseguia ver apenas a silhueta masculina. O Mercedes prateado ao lado do qual a picape estacionou só poderia ser dele, pois o resto da praia estava deserto. Tariq levantou a cabeça do ombro da esposa. Sua mão ainda estava inchada, mas ao menos Hala tinha feito um novo curativo e ele tomara alguns antibióticos. – Onde estamos? – perguntou. – Estamos... aqui – respondeu ela. Era a única resposta que Hala podia dar. Aliás, o lugar era menos importante do que a pessoa com quem iriam se encontrar. Quem quer que fosse aquele homem, eles tinham viajado a noite inteira para chegar ali. Nenhum dos ocupantes do banco da frente disse nada. Esperaram que o desconhecido terminasse suas orações, abriram as portas do carro e saíram. Hala e Tariq seguiram atrás deles. Os quatro caram ao lado do Mercedes enquanto o homem vinha andando da praia lentamente, sacudindo a areia do tapete de orações. Era um sujeito idoso, mais velho do que Tio, porém em melhor forma física. Seus cabelos brancos estavam penteados para trás e ele usava um conjunto esportivo que um homem de negócios americano usaria no m de semana: azul-escuro com uma única lista branca. Seus pés se achavam descalços e ele trazia um par de chinelos Adidas em uma das mãos. Hala estava empolgada. Antes de chegar aos Estados Unidos, ela jamais tinha imaginado que poderia conhecer uma grande autoridade da Família. Tio havia sido o primeiro. Agora, tudo era possível. Ela sorriu, os olhos voltados para baixo. Os Estados Unidos da América de fato era a “terra das oportunidades”, pensou ela, achando graça da ironia naquela expressão. Ao se aproximar, o velho abriu um sorriso e abraçou Tariq, beijando-lhe o rosto. Em seguida apertou a mão de Hala num gesto afável e respeitoso. – Fico feliz por conhecer nossos famosos guerreiros de Washington – disse ele num forte sotaque najdi. – A Família tem uma enorme dívida de gratidão pelo que fizeram. – Obrigada pela oportunidade e por salvar nossas vidas – agradeceu Hala, ciente da necessidade de não se mostrar orgulhosa. – Não merecíamos tanto. – Cá entre nós – disse o velho, piscando o olho –, vocês foram corajosos ao fazer aquela
ligação. Uma atitude arriscada. Mas valeu a pena. Vocês conseguiram! O homem era ainda mais simpático que Tio, pensou Hala. O fato de ele se dirigir mais a ela do que a Tariq demonstrava o quanto estava bem informado. – Desculpe – disse a médica. – Mas, se me permite fazer uma pergunta: quem é o senhor? – Eu imaginava que uma pessoa inteligente como você fosse perguntar isso – respondeu. – De qualquer maneira, não tem importância quem eu sou. Somos todos anônimos neste país, não é? Hala se permitiu um riso. E, antes que o velho voltasse a falar, ela se deu conta de quem ele era. – Se quiser, pode me chamar de Jiddo – falou. Jiddo foi a primeira palavra em árabe que algum daqueles desconhecidos lhe falara. E era exatamente a que ela esperara ouvir. Significava “avô”.
capítulo 107
– EU AMO ESSE MAR – DISSE JIDDO. – É a única coisa neste país que lembra nossa terra. Hala e Tariq se encontravam ao lado do homem na beira da água, olhando para as ondas. O ar estava frio, mas o céu era de um azul resplandecente, com apenas uns apos de nuvens pairando no horizonte. Lá no alto, gaivotas planavam ao vento. – Eu nunca tinha visto o Atlântico – disse ela. – Bem, agora você já viu – falou Jiddo, num tom que indicava que a conversa retornaria aos assuntos da Al Ayla. Tariq continuou calado e apertou a mão da esposa, induzindo-a a não dizer mais nada. – Nossas operações em Washington chegaram ao m – retomou o velho. – Na verdade, eu diria que elas estão suspensas. – Sinto muito ouvir isso – disse Hala com franqueza. – Gostaríamos de ter ido mais longe. – Não lamente. Você tem grande valor, é um soldado admirável. Vejo que nós a treinamos muito bem. – É verdade – concordou ela. – O jihad não acabou. Os Estados Unidos ainda não caíram de joelhos. Enquanto eles lambem suas feridas de um lado, vamos atacá-los de outro. Será assim até eles não resistirem mais. Hala sorriu novamente. Estava empolgada por ouvir aquelas palavras da boca de Jiddo. – Espero que haja um lugar para nós nessa missão – disse ela. – Claro – retrucou ele. – Na verdade, a missão começa agora. Hala se virou e viu o homem mais jovem tirando do porta-malas do Mercedes uma pasta que lhe era familiar. O laptop que ela e Tariq tinham trazido da Arábia Saudita. A pasta que o casal deixara para trás no hotel cinco estrelas. – Como vocês...? – perguntou ela para o velho. – Não, nada de perguntas! Vamos logo ao que interessa! O jovem trouxe a pasta e a abriu em cima do capô do carro. – Criamos um sistema muito seguro – começou Jiddo. – Talvez seguro até demais. Uma vez que não podemos mais contar com Tio, nosso acesso a determinadas informações cou... um pouco restrito. Hala entendeu o que ele queria dizer. – Vocês querem que eu acesse meus arquivos – falou, recebendo em troca um sorriso de aprovação. Ela se aproximou do laptop, que já estava ligado, e a senha de 16 caracteres uiu de seus dedos como num passe de mágica: 23EE4XYQ9R21WV0W. A tela piscou, revelando vários ícones que ela conhecia de cor. Hala examinou-os rapidamente para se certicar de que nada havia sido apagado: alvos, endereços, agendas das autoridades políticas e mapas. – Acho que está tudo aqui – falou.
– Ótimo – disse Jiddo. – Agora... Antes que o velho continuasse, Tariq chamou a esposa numa voz estranhamente grave: – Hala! Ela se virou e viu o casal atrás deles. O homem estava com a mão estendida, mostrando as duas cápsulas de cianureto que tinham sido retiradas do bolso de Hala mais cedo. A mulher se achava um pouco afastada, apontando a pistola na direção deles. – Agora – retomou Jiddo –, queremos lhes pedir um último ato de dedicação à Família.
capítulo 108
HALA OLHOU PARA O VELHO, entendendo tudo e ao mesmo tempo não entendendo nada. Pensava que a Família tomasse apenas decisões inteligentes e sábias. – Não pode estar falando sério – disse a médica. – Acho que conhece as regras – retrucou ele. – As autoridades americanas precisam acreditar que a morte de vocês foi suicídio. Hala teve a impressão de levar um soco na boca do estômago. Aquelas palavras zeram-na se lembrar da noite em que ela e Tariq foram ao Hotel Harmony e disseram a mesmíssima coisa ao outro casal. Aquelas duas pessoas que Hala supunha serem traidores. Ou melhor, que a Al Ayla dissera serem. – Como podem fazer isso depois de tudo que fizemos? – perguntou ela. – Vocês vieram para este país sabendo que poderiam morrer a qualquer momento – respondeu Jiddo, impassível. – Viemos pela causa! – rebateu Hala. – Não para isto! Não para sermos eliminados quando a Família bem entendesse! – E qual é a diferença? Agora façam a escolha certa! Se não me engano, vocês têm dois lhos, não é? – Vocês não fariam isso! – gritou ela, mesmo sabendo que a organização não costumava hesitar. – Hala! – interveio Tariq, com uma lucidez que deixou a esposa surpresa. – Precisamos fazer isso! Seus pais cuidarão de Fahd e Aamina. Além disso... – Não acredito que isto esteja acontecendo! – exclamou ela. – Não vou falar novamente – disse Jiddo. Como num pesadelo, Hala viu Tariq estender a mão e pegar as cápsulas da mão do homem, colocando uma delas entre os dedos trêmulos da esposa. Em seguida a beijou sem nenhuma expressão de piedade. Havia lágrimas em seus olhos. E também amor: muito amor. – Iremos nos rever em breve – disse ele. – Tariq, não!
capítulo 109
ERA TARDE DEMAIS. Ele enou a cápsula na boca e a mordeu. Hala viu o marido estremecer quando os cristais de cianureto cortaram suas gengivas. O sangue então começou a escorrer pelos lábios. A morte era uma questão de minutos. Seu amado Tariq estava morrendo. Hala se virou para o velho, baixou os olhos para a pílula que segurava e voltou a encarar o rosto enrugado à sua frente. Podia ver a arrogância nos olhos dele. – O senhor falou uma coisa agora há pouco – disse ela, sentindo a voz falhar. – E era verdade. – O que eu disse, minha filha? – perguntou Jiddo solicitamente. – Que eu fui muito bem treinada. Hala então se virou e agarrou a mão da mulher, quebrando-a com um movimento rápido e simples. A mulher começou a gritar de dor, soltando a pistola. A médica pegou a pistola no ar e numa fração de segundo deu um tiro à queima-roupa no rosto da mulher. Ela não podia perder mais tempo com divagações. Precisava agir com rapidez. Com um disparo certeiro atingiu o peito do homem mais jovem, que já estava perigosamente próximo. Jiddo então correu para se esconder atrás do Mercedes, mas Hala foi mais rápida e acertou um tiro em sua nuca. O velho caiu sobre o capô, largou o laptop e desabou ao lado do carro, deixando um rastro de sangue no chão. Quando ela se virou, Tariq estava de joelhos. As convulsões tinham começado e sua cabeça tremia cada vez que ele tentava respirar. – Vá embora! – ordenou ele, ofegando. – Vá embora. Agora! – Não! – falou Hala, ajoelhando-se ao seu lado. Pela primeira vez desde o início de sua missão, ela se sentia paralisada, incapaz de agir. De repente alguma coisa se mexeu atrás de Hala. Tariq arregalou os olhos e gritou o nome da esposa. A médica se virou puxando o gatilho e a bala atingiu em cheio a testa do jovem. Imediatamente ela cou de pé, furiosa, gritando como um animal selvagem e esvaziando a arma contra os corpos espalhados pelo chão. Berrando palavrões, Hala começou a chutá-los, desferindo pontapés em seus rostos. Parecia que toda a raiva que sentia não era o bastante para fazer aquelas pessoas pagarem por seus pecados. Eles chegariam desfigurados ao outro mundo. Finalmente ela deu um passo atrás e caiu, ofegante, tomando o marido nos braços. Tariq estava de lado no mesmo lugar onde caíra. Os olhos arregalados pareciam encarar o céu. A médica imaginou que os últimos pensamentos dele antes de morrer devem ter sido direcionados para Deus. As horas se passaram. Mais tarde, Hala não conseguiria lembrar quanto tempo cou ali com o marido. Aos poucos, porém, ela recuperou a consciência. Precisava agir logo. Não podia confundir a tristeza que sentia com fraqueza. Ela era uma mulher forte, treinada para ser uma
guerreira, para sobreviver a quaisquer eventualidades. Era isso o que iria fazer. Sem se levantar, arrastou-se até os outros corpos. Vasculhou os bolsos do jovem, encontrou as chaves do carro e pegou tudo o que eles tinham: dinheiro, cartões de crédito e até o sobretudo preto da mulher. Os bolsos de Jiddo estavam vazios. A única coisa que Hala levou do velho foi o laptop. Não sabia se as informações dentro dele seriam úteis. Talvez pudessem ser usadas para resgatar os filhos do casal. Finalmente cou de pé, mas a sensação que teve era de andar dentro da água. Tudo parecia muito lento quando entrou na picape, deu ré e pegou a estrada. Dirija devagar. Não faça nada que chame a atenção. Ao chegar àquele país, a médica estava preparada para morrer a qualquer momento. De certo modo, ela percebeu, sua vida acabara de chegar ao m. A vida de Hala Al Dossari fazia parte do passado. Era preciso iniciar uma nova. Em algum lugar e de alguma forma, sua vida de guerreira iria continuar. Mas contra quem eu vou lutar?, Hala se perguntou.
capítulo 110
QUANDO TIVE PERMISSÃO para conversar com Ethan e Zoe, a ordem veio do mesmo lugar de onde viera meu último convite à Casa Branca: da Ala Leste. Uma semana havia se passado desde o resgate e o circo montado pela mídia ainda estava de pé. Eu jamais tinha visto tantos repórteres diante da Casa Branca, e isso não é pouco quando se trata de Washington. A segurança do outro lado das grades também era impressionante. A assistente da Sra. Coyle levou 45 minutos para me levar do Portão Leste até a residência. Quando chegamos ao corredor do segundo andar, Regina Coyle estava lá para me receber pessoalmente. Veio em minha direção e segurou minhas mãos. – É bom ver você, Alex – falou. – Nem sei dizer o que estou sentindo. Não tenho palavras. – Obrigado por me receber – foi só o que eu disse. Não tinha sido nada fácil conseguir aquele encontro. Eu não imaginava ninguém a não ser a primeira-dama capaz de me conceder aqueles minutos. Conduziu-me pelo corredor na direção oposta à que tomamos da última vez, enquanto dois agentes do Serviço Secreto nos seguiam a respeitosa distância. – Zoe deve se mostrar um pouco reticente – disse ela. – Mas Ethan estava ansioso para falar sobre o sequestro. Eu e a equipe de psicólogos já repassamos o episódio com eles várias vezes. Pergunte o que achar necessário. Atravessamos o famoso Salão Oval e chegamos a um cômodo amplo e ensolarado, com vista para o Gramado Sul. Ethan e Zoe estavam sentados num dos sofás, assistindo a Meu malvado favorito num enorme aparelho de TV xado à parede. Reconheci a mãe do presidente tricotando ao lado da janela. Ela sorriu, fez um aceno de cabeça, mas não se levantou. – Ethan? Zoe? – chamou a Sra. Coyle. – Vocês podem desligar isso um minutinho? Este é o detetive de quem lhes falei. Este é Alex Cross.
capítulo 111
AS CRIANÇAS ME OLHARAM por cima do ombro, mostrando-se não muito interessadas. – Oi – disseram os dois em voz baixa. – Venha aqui, por favor – falou a Sra. Coyle, fazendo um gesto para que eu me aproximasse e tomasse um lugar no sofá. Comecei devagar, primeiro fazendo perguntas que admitiam apenas “sim” ou “não” e em seguida deixando-os à vontade para falar o que se lembrassem ou o que quisessem me contar. Como sua mãe previra, Zoe se mostrou mais reservada. Cruzou as pernas e começou a traçar pequenos círculos no braço do sofá, mantendo os olhos baixos o tempo todo. Ethan era o oposto da irmã. Olhava-me de perto e sempre tomava a iniciativa de responder, com a mesma clareza observada em crianças vítimas de algum trauma. – Nós cávamos conversando um com o outro – falou ele a certa altura. – Eu sabia que tínhamos alguma chance enquanto estivéssemos vivos. A sorte, se é que podemos chamar isso de sorte, é que nenhum dos dois se lembrava de muita coisa do período que passaram no cativeiro. Considerando a alta concentração de Rohypnol encontrada no organismo de Ethan e Zoe ao ser resgatados, não era nenhuma surpresa. Nenhum dos dois sabia muita coisa a respeito do sequestrador. Toda a comida e bebida que recebiam era entregue através de uma abertura na porta. Não houve qualquer conversa entre eles e o sequestrador. – Ele nos ignorava – disse Ethan. – Parecia que não estávamos ali. – Mas você sabia que era um homem? – perguntei. O menino não sabia nada sobre Rodney Glass, nem sequer que ele tinha sido libertado sob custódia por falta de provas. – Vi as mãos dele duas vezes. Eram mãos masculinas. Às vezes eu o ouvia falando do outro lado da porta – disse Ethan. – Falando? – Sim. Ele pensava que estávamos dormindo. Algumas vezes estávamos mesmo. Mas outras, apenas fingíamos. – Conseguiu ouvir o que ele dizia? Por acaso reconheceu a voz dele? – perguntei. – Eu tentei, mas ele falava baixo. – Ethan de repente cou quieto. Respirou fundo e levantou os olhos, como se estivesse se lembrando de alguma coisa. – Eu ouvia uns cliques também. Zoe olhou para o irmão. – Que tipo de clique? – perguntei. – Era como... – falou, levantando a mão e movimentando o polegar para a frente e para trás. – Como papai costumava fazer. – Você se refere ao gravador? – interveio a Sra. Coyle. – Isso. Lá em Madison.
– Meu marido usava muito o gravador quando ainda advogava – comentou a primeira-dama. – O tempo todo. – Eu também ouvia uns cliques – disse Zoe calmamente, atraindo os olhares de todos nós. Ela reproduzia o gesto que Ethan acabara de fazer. – Era como o clique de ligar e desligar. – É isso mesmo – concordou Ethan, balançando a cabeça de maneira entusiasmada. – Como se ele gravasse as próprias palavras o tempo todo.
capítulo 112
GRAVAR. “Há uma semana venho agindo como um bom rapaz. Não que haja muita escolha. Acho que só numa prisão haveria um número maior de policiais me vigiando. Mas é como se eu realmente estivesse preso. Ao menos posso sair para dar uma volta, esticar as pernas e organizar meus pensamentos. Provavelmente este é o último lugar sossegado que terei por um bom tempo. Eu só descono que ele não vai durar muito, tamanha é a quantidade de curiosos que têm vindo até aqui, na esperança de descobrir o que de fato aconteceu. Esta situação é meio deprimente. O fato de todo mundo saber o que aconteceu não signica saber por quê. E isto é o que importa. Meus novos amigos do FBI e da Polícia Metropolitana acham que não passo de um desgraçado sádico que saiu impune do crime do século. Bem, tenho uma novidade para eles. Até onde sei, o jogo ainda nem começou. E já decidi o que vou fazer. Matar Alex Cross.” Parar. Do alto de uma elevação, ele contemplou a fazenda lá embaixo. A polícia e o FBI já haviam ido embora, mas ainda era possível ver as tas amarelas em algumas árvores e algumas bandeiras cor-de-rosa fincadas no terreno. Sua vontade era descer e dar uma olhada no local, mas ainda era cedo para isso. Não que ele pudesse ser preso por causa de sua curiosidade, mas aquela distância era suciente. Além disso, estava ficando tarde. Deu uma última olhada e então se virou para entrar na mata. Gravar. “Eu não sei... Talvez eu devesse ter matado Ethan e Zoe quando eles estavam sob meu domínio. Se tivessem morrido, tudo faria sentido. Mas não! No m das contas eu só comprovei que minha tese estava certa. Vivemos num mundo onde algumas crianças valem mais do que outras e ninguém liga para isso, a não ser que o próprio filho esteja morrendo ou sofrendo. Mas quer saber de uma coisa? Não sou como essas pessoas. E tampouco sou maluco! Tenho uma boa história para contar. As pessoas precisam ouvi-la e não vou sossegar enquanto não conseguir isso. Você não será esquecido, Zachary. Esta é uma promessa, meu lho! Vou fazer com que você sinta orgulho de mim, nem que seja a última coisa que eu faça. Sua morte vai ter algum significado quando tudo tiver terminado.” Parar. Guardou o gravador no bolso e cou com o arco na mão durante todo o percurso. Mas naqueles dias até os coelhos pareciam manter distância dele. De todo modo, andava muito agitado para caçar. A noite caía quando ele saiu da mata e chegou à estrada de terra onde costumava deixar o
carro. Sua cabeça estava tão ocupada com seus pensamentos que ele só enxergou o outro veículo quando este parou. Foi então que viu os dois policiais. Reconheceu um deles pela altura. O sujeito media mais de dois metros. O outro tinha um rosto que Rodney Glass nunca iria esquecer. Estivera cara a cara com ele numa sala de interrogatório. Era detetive da Polícia Metropolitana de Washington e se chamava Alex Cross, e também seria derrotado.
capítulo 113
– LARGUE O ARCO, GLASS! – ordenei. – Agora! O braço do enfermeiro estava esticado, com a echa apontada para baixo num ângulo de 45 graus. Era uma arma que eu nunca tinha usado nem visto qualquer criminoso manejar. Não sabia se ele iria disparar, portanto mantive a pistola direcionada para seu peito. Glass cou sem reação por um segundo. Então seu rosto se abriu num largo sorriso debochado. Eu não deveria me surpreender com uma atitude daquelas, mas o enfermeiro era de uma arrogância ímpar. Era impossível não odiá-lo: além de ser um sequestrador, ele tinha a alma de um assassino. – Ora, vejam quem chegou! – exclamou. – Vai me matar aqui no meio da oresta? Para que ninguém fique sabendo de nada? – É isso que acha? – Você ouviu o que ele disse – falou Sampson. – Largue o arco. Agora! Alguma coisa brilhou nos olhos de Glass. Descono que tenha sido a lembrança do soco que Sampson lhe desferiu durante nosso passeio de carro. De qualquer maneira, ele abaixou o braço devagar, olhando para nós, e deixou o arco junto ao seu carro. Em seguida tirou lentamente a bolsa com as flechas do ombro. – O que está fazendo aqui? – perguntei. – Depois de tudo o que aconteceu é no mínimo estranho encontrá-lo nestas redondezas. – Não posso sentir curiosidade? Andaram contando tantas mentiras a meu respeito. Além disso, queria dar uma olhada na confusão toda. – Meu Deus... – murmurou Sampson ao meu lado. – Sabe de uma coisa? Nós também camos curiosos – falei. – Principalmente em relação ao seu gravador. O que você guarda no porta-luvas. Glass inclinou a cabeça, as mãos ao lado do tronco, mas olhando furtivamente para minha arma. – Gosto de registrar meus pensamentos – disse ele. – Isso por acaso é ilegal? – Claro que não – respondi. – E sabe o que também não é ilegal? Conseguir uma autorização e instalar um transmissor em seu aparelho. Enei a mão no bolso e retirei meu gravador, um pouco mais bonito que o dele. Presente de Ned Mahoney e da equipe técnica do FBI. Apertei o play. “Talvez eu devesse ter matado Ethan e Zoe quando eles estavam sob meu domínio. Se tivessem morrido, tudo faria sentido. Mas não!” Glass piscou os olhos. E só. Não perdia nunca o ar arrogante. – Isso não prova nada! – falou. – Rodney Glass, você está preso por sequestro e tentativa de homicídio – armei. – Deite-se
no chão e afaste os braços do corpo. – Pegamos você, Glass! – disse Sampson. – Finalmente! E isso é maravilhoso!
capítulo 114
GLASS PERMANECEU ONDE ESTAVA, o riso ainda estampado no rosto. – Sabem de uma coisa? – falou. – Tem algo errado nesta história. Vocês estão fora de sua jurisdição. Voltem para Washington! Sampson, que também segurava uma arma, debochou: – Ué, mas nós vamos voltar para Washington! – Acho que não – retrucou Glass, revirando os olhos e dando as costas como se estivesse indo embora. – Glass! Mas aquilo era uma jogada. Ele rapidamente se virou para nós, tirando alguma coisa de baixo do casaco. Uma pistola. – Glass, não faça isso! – Glass! As palavras saíram ao mesmo tempo que puxei o gatilho, acompanhado por Sampson. Glass acabou atirando a esmo, pois recebera dois tiros no peito. Não estávamos brincando. Atiramos para matar e o enfermeiro desabou morto no chão. Continuei com as duas mãos na pistola, mantendo Glass sob mira enquanto me aproximava dele. Seus olhos estavam fechados e não se percebia nenhum movimento em seu corpo. Será que tínhamos chegado ao fim? – Reviste-o – falei a John. – Com cuidado. Sampson chutou a arma de Glass para longe e rapidamente apalpou as pernas e os lados do corpo, certicando-se de que não havia outras armas. Então levou o indicador e o médio à carótida do enfermeiro. – Está vivo – falou, antes de ir até o carro. – Vou pedir socorro. Glass soltou um leve gemido. – Rodney? – falei. – Está me ouvindo? Aguente firme. A ambulância está a caminho. Ele não disse nada, porém já não ria mais. Cortei o agasalho dele com minha faca. Havia dois buracos escuros na altura do peito. Parecia que nenhuma das duas balas tinha atravessado o corpo. – Aqui é o detetive Sampson, do Departamento de Polícia de Washington – falou John ao telefone, em tom urgente. – Precisamos de socorro agora! Estamos numa estrada de terra perto de Hampton Valley. Ainda com o celular na mão, Sampson me passou uma sacola plástica. Eu a pressionei contra o peito de Glass, tentando estancar a hemorragia. Ele balançou a cabeça e procurou afastar meu braço. – Não adianta – balbuciou. Um de seus pulmões deve ter sido atingido, se não os dois. Toda vez que ele respirava, um
pequena quantidade de sangue minava dos buracos. Glass tinha consciência de que iria morrer sufocado. Afinal de contas, ele era enfermeiro. – Meu menino... não devia ter morrido – balbuciou. O sorriso assustador reapareceu em seus lábios. – Você é que devia ter morrido. Você estragou tudo. Antes que Sampson largasse o telefone, Rodney Glass deu o último suspiro. A vida é feita de reviravoltas estranhas. Num segundo você está tentando evitar que uma pessoa o mate. Já no segundo seguinte você faz de tudo para salvar a vida dela. Eu poderia armar que senti alguma coisa quando Glass fechou os olhos, mas seria mentira de minha parte. Não quei alegre, mas tampouco lamentei. Depois de todas as coisas que tinham acontecido, tudo pareceu terminar rápido demais: da mesma forma que a história que Glass vinha tentando contar durante todo esse tempo, daquela sua forma equivocada. Ele nunca atingiu o objetivo que tanto desejava, mas acabou recebendo o que merecia.
EPÍLOGO
LAÇOS DE FAMÍLIA
capítulo 115
– VAMOS, VAMOS! Estou pronto. Vamos logo! Ali já estava de camisa e gravata, o que para ele signicava hora de sair. Quanto mais cedo saíssemos, mais cedo ele poderia voltar para casa, sem aquela gravata no pescoço. – Espero um minuto, rapaz – falei. – Seu irmão mais velho quer jogar um pouco de wakeboarding com você. Fiz o que jamais me prometera fazer e coloquei Ali diante do videogame para distraí-lo. Damon, que passava o feriado de Ação de Graças em casa, pegou o outro controle. – Fico feliz por estar aqui, Damon – disse eu. – Sentimos muita saudade de você. – E eu sinto saudade de derrotar Ali – rebateu ele, já apertando a tecla play. – Vamos lá, rapaz! As mulheres da casa ainda estavam se arrumando. Subi a escada correndo e bati na porta do quarto de Jannie, onde o aparelho de som estava no último volume. – Não entre! – gritou ela por cima da música. – Dez minutos, Srta. Cross. Ava já estava vestida. De porta aberta, vi que se encontrava deitada na cama lendo Crepúsculo, livro que Nana acabara de lhe dar. – Está gostando? – perguntei. Ela deu de ombros, o que já era sua marca registrada, e respondeu: – É legal. Um pouco esquisito. – Pelo menos está lendo – falei. – E isso é bom. Limitou-se a balançar a cabeça e virar a folha. Mais uma brilhante conversa entre nós dois, mas o importante era que as coisas continuavam andando. O pedido de um novo lar para Ava estava em tramitação. Bree e eu tínhamos cumprido as 27 horas de treinamento exigidas pelo Juizado de Menores e, ao que parecia, Ava ainda caria conosco por um bom tempo. Damon dividiria o quarto com Ali enquanto não voltasse para o internato e no ano seguinte... bem, discutiríamos aquela questão mais para a frente. Eu estava atrasado, mas ainda assim queria tomar um banho rápido. Encontrar Bree debaixo do chuveiro foi o que se costuma chamar de feliz acaso. – Se importa se eu entrar aí? – perguntei, sacudindo a cortina. – Vai ter de pedir permissão ao meu marido – falou. – E, por favor, pegue uma toalha para você. Quinze minutos depois todos estávamos reunidos no térreo. Nana ajeitava a gravataborboleta que ela me dera de aniversário enquanto Bree arrumava o cabelo de Jannie, que dava os últimos retoques na maquiagem. – Por que está rindo desse jeito? – perguntou minha lha, olhando-me pelo espelho do corredor.
– Estou feliz por estarmos todos juntos – respondi. – Não é sempre que isso acontece. – Sei disso... – disse Nana em tom severo, antes de fazer um último ajuste na minha gravata e dar um tapinha em meu peito para indicar que estávamos prontos para sair. Finalmente a família Cross atravessou a soleira da porta. Damon ainda me deu uma última cutucada: – Você fica bem com essa gravata, sabia? – Um gato – reforçou Jannie.
capítulo 116
O AUDITÓRIO DO ST. ANTHONY estava lotado naquela noite. Já havíamos transferido o evento do restaurante quando soubemos que Regina Coyle iria falar. Tive o prazer de apresentar a primeira-dama à plateia, impressionando algumas senhoras patriotas quando ela me beijou no rosto ao subir ao palco. Em seguida fez um belo discurso, falando sobre a importância das boas escolas de bairro e revelando sua admiração pelos colégios experimentais. Disse ao público que estava convencida de que a Casa das Crianças seria um grande sucesso quando abrisse suas portas. – E, com a ajuda de vocês, elas se abrirão. Não tenho a menor dúvida disso. – falou a Sra. Coyle. O marido dela não havia tido uma boa votação ali no bairro na eleição anterior, mas isso não impediu que todos a aplaudissem de pé ao nal de seu discurso. Depois da cerimônia, camos alguns minutos com a Sra. Coyle, quando tive a oportunidade de lhe apresentar minha família. – Lamento que o presidente não possa estar aqui hoje – falou. – Ele gostaria muito de ter vindo. – Talvez numa próxima vez – disse Nana, piscando o olho. – Eu gostaria de conversar com ele sobre suas propostas na área da educação. – Esta é minha esposa, Bree – continuei. – E estes, meus dois lhos mais velhos, Jannie e Damon. – Admiro muito o pai de vocês – falou a Sra. Coyle, apertando a mão das crianças. – Nós também – disse Jannie. – Quero dizer, na maior parte do tempo. A Sra. Coyle riu e imaginei que Jannie talvez lhe lembrasse a pequena Zoe. – E esses são Ali e Ava. Os dois vão frequentar a escola experimental quando ela abrir. – Que maravilha! – disse a primeira-dama. – Isso quer dizer que vocês vão poder ir à escola a pé? Ava olhou espantada para Regina Coyle. A menina mal a cumprimentou com um aceno de cabeça antes de se virar e se afastar, mas percebi um sorrisinho no canto de seus lábios, o que na minha opinião foi o ponto alto da noite. A menos que tenha me enganado, eu nalmente conseguira impressionar Ava. Bastou apresentá-la à primeira-dama dos Estados Unidos! Passei o resto da noite sentindo-me bem comigo mesmo, achando, mesmo que por breve período de tempo, que eu era uma pessoa importante. Espero que Nana nunca saiba disso!
capítulo 117
– SENHOR, FAZ DOIS MESES que os corpos foram encontrados na praia de Truro. Desde então, até onde sabemos, não houve mais ataques da Al Ayla. Nossas fontes na Arábia Saudita dizem que a célula de Washington foi desativada. O presidente Coyle lançou um olhar por cima de sua mesa aos 12 homens e mulheres do alto escalão reunidos no Salão Oval. Os acontecimentos dos últimos meses tinham deixado aquelas pessoas exaustas. Ele percebia isso nos olhos delas. Mas também haviam renovado o sentimento de unidade nos serviços de inteligência. O conhecimento e a experiência reunidos ali naquela noite eram consideráveis. – E quanto aos corpos? Descobriram alguma coisa? – perguntou Coyle. – Ainda não conseguimos identicar três deles – respondeu Norma Tiefel. – O quarto era de Tariq Al Dossari, o marido da mulher que acreditamos ser a líder da célula de Washington antes de tudo acalmar. – E agora ela está...? – Ninguém sabe de seu paradeiro. Talvez tenha desaparecido. Achamos que ela matou os outros. Coyle girou uma elegante caneta de ouro no polegar como se fosse uma hélice. Zoe lhe ensinara aquela brincadeira no avião a caminho da China nas férias anteriores. O que, diga-se de passagem, parecia fazer parte de um passado distante. – E quanto às outras cidades? Nova York, Chicago, Los Angeles? – Tudo sob controle, senhor – respondeu Ron Burns, diretor do FBI. – Não podemos descartar a hipótese de que a Al Ayla esteja se rearticulando – continuou Evan Stroud, da CIA. – Só que nossas principais agências costumam receber alertas nesse sentido. E até agora não estamos sabendo de nada. – Sim, mas nunca fomos surpreendidos antes – rebateu o presidente. – Desculpe, senhor, não tive a intenção de simplicar as coisas. O que eu quis dizer é que as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita não andam muito bem. – Sim, que é a mesmíssima coisa que dizer “vamos esperar para ver” – rosnou Coyle, recostando-se na cadeira e encarando cada um de seus subordinados. – Bem, acho que todos os senhores já sabem que não costumo me esquivar dos grandes desaos – falou, percebendo alguns sorrisos afáveis naqueles rostos cansados. – Pretendo continuar o trabalho que venho realizando por este país e sugiro que os senhores façam o mesmo. – Sim, senhor – disseram os presentes em coro. – Vou reformular minha frase. Espero que vocês façam o mesmo. Todos se levantaram, acompanhando o gesto do presidente quando ele se pôs de pé e saiu pelas portas da Colunata Oeste. Devia haver opiniões divergentes naquela sala, pensou Coyle enquanto voltava à ala residencial. Ele não tinha nenhuma ilusão de que existisse um consenso absoluto sobre aquele assunto, nem desejava que assim fosse. O que ele tinha, porém, era conança naquilo que mais importava. Cada um dos homens e mulheres que participaram da reunião, Coyle estava seguro, nutria profundo respeito pelo país ao qual servia, pela própria presidência e pela tarefa que todos tinham diante de si. Liderar.
James Patterson
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