Biblio "SEBO"
Vivian tem tudo para se sentir realizada. Ou melhor... Quase tudo. Além de linda e graciosa, ela tem uma carreira promissora como violinista e um relacionamento afetuoso com a família e os amigos. Mas há um lado de sua vida que permanece incompleto e que somente um lindo sonho de amor poderia preencher. Um amor que Vivian não acredita existir na vida real... Até o momento em que ela se depara com o atraente esgrimista que se apresenta no festival anual da cidade. Os beijos de Lucas contêm uma promessa de felicidade com a qual Vivian jamais ousou sonhar... Mas um problema de família a obriga a viajar, e durante sua ausência, uma notícia de jornal gera um mal entendido que ameaça destruir aquele relacionamento, até então, perfeito.
O estojo contendo o violino de Vivian Alden McAllister roçava suavemente o casaco longo e negro, que a protegia da chuva fina.
Vivian estava atrasada para o ensaio da orquestra, que naquela tarde se reuniria, extraordinariamente, no complexo esportivo do campus universitário.
Á passos rápidos, ela subiu a escada e entrou no amplo saguão, fortemente iluminado. Com a mão livre, retirou o chapéu de feltro que lhe protegia os cabelos negros, fazendo-os dançar em torno do rosto com um gracioso movimento de cabeça. Seus olhos verdes fixaram-se no grande relógio sobre o balcão da recepção, que indicava cinco horas e sete minutos.
Numa corrida ágil, de passos miúdos, Vivian seguiu por um corredor à direita, aprofundando-se na imponente estrutura arquitetônica da Universidade de Richmond.
Poucas pessoas circulavam por ali, àquela hora. E logo Vivian chegou à porta que dava acesso ao ginásio. Ignorando o aviso de Não Entre, abriu-a e desapareceu dentro do ambiente em penumbra. O som dos instrumentos, que os músicos afinavam, envolveu-a por completo.
Cuidadosamente, Vivian desceu os degraus de concreto em direção ao halo de luz que demarcava a posição da orquestra, à esquerda da quadra principal do ginásio. Dentro de alguns dias seria realizada, na quadra principal, a solenidade de abertura dos Jogos Universitários da Primavera.
O maestro titular, Rudney Bacarowitz, regia a orquestra naquela tarde. Do pódio, ele observou a chegada discreta de Vivian e franziu o cenho, numa evidente desaprovação.
Ocupando seu lugar na primeira fila do naipe dos violinos, Vivian colocou o estojo e o chapéu no chão. Em seguida juntou a mãos, num gesto de súplica, meio cômico e meio sério, dirigindo um sorriso tímido ao maestro.
Rudney assentiu levemente, retribuindo o sorriso.
Todos, na orquestra, sabiam da grande responsabilidade que pesava sobre os ombros de Vivian. Afinal, ela era a mais jovem violinista ali presente. E desempenharia um papel tão invejável quanto difícil e honroso, no concerto para o qual estavam ensaiando.
Com apenas vinte e três anos de idade, Vivian fora escolhida para ocupar o lugar do primeiro violino da orquestra, o lendário Klaus Schneider, que estava se recuperando de uma forte gripe.
A direção da orquestra chegara a cogitar na contratação de um substituto à altura do famoso violinista, já que a abertura dos jogos teria como tema, nada menos que A Primavera, da obra As Quatro Estações, de Vivaldi. Mas o voto da orquestra e o apoio do maestro acabaram por convencer a direção a conceder à jovem violinista uma chance de mostrar do que era capaz.
Tratava-se de uma oportunidade ímpar, daquelas que ocorriam poucas vezes na vida de um músico. E Vivian aceitara o teste com dignidade.
Agora, ali estava ela, pronta para mais um ensaio. Depois de arrumar as partituras na estante e afinar o instrumento, fez um sinal ao maestro, avisando-o de que estava preparada para começar.
Rudney Bacarowitz bateu três vezes, com a batuta, em sua estante de madeira, pedindo a atenção da orquestra. Imediatamente, fez-se silêncio no interior do ginásio de esportes. Uma espécie de expectativa pairava no ar. Vivian levantou-se e, com o violino sob o queixo, elevou o arco, mantendo os olhos fixos no maestro. Abrindo os braços, que pareciam abranger todos os músicos sob seu comando, Rudney sorriu. Então fez a batuta vibrar no espaço, desencadeando, com doce energia, os primeiros acordes da Primavera, do genial padre italiano, Antônio Vivaldi.
Na sala da reitoria da Universidade, Lucas Northon Benson ergueu-se de seu lugar, à mesa de reuniões. Dez outros conselheiros o imitaram, pondo fim à longa sessão que se iniciara às três da tarde. Durante a reunião, haviam sido acertados os últimos detalhes para a solenidade de abertura dos Jogos Universitários, a se realizar na semana seguinte.
O pai de Lucas, o milionário Benjamin Benson, que havia se doutorado em Direito, naquela Universidade, era membro do conselho permanente. Seguindo os passos do pai, Lucas formara-se em Direito Empresarial. Mas não estava ali pelo curso brilhante que fizera e sim por sua reputação como esportista, adquirida ao longo da vida acadêmica.
Lucas já conquistara duas medalhas olímpicas, em esgrima. Sua presença na organização daquele evento devia-se a seu valor como esportista, aos contatos importantes que mantinha no meio esportivo e, também, á seu sobrenome famoso, que lhe abria todas as portas do mundo social.
Consultando o relógio de pulso, Lucas verificou que era quase cinco e dez; fato que o aborreceu ligeiramente. Detestava fazer-se esperar e tinha um compromisso marcado com Vadja Miezislaus, um famoso esgrimista polonês, no ginásio de esportes.
Despedindo-se de todos, Lucas deixou a sala de reuniões a passos largos e dirigiu-se ao estacionamento. Cerca de dois quilômetros separavam o prédio da reitoria e o complexo esportivo.
Consultando uma vez mais o relógio, Lucas calculou que chegaria ao encontro, marcado para as cinco horas, com vinte minutos de atraso.
Maldizendo a chuva fina, que caía sem cessar na tarde escura e fria, ele acomodou-se em seu Alfa Romeo e partiu.
Dirigindo com cautela pelo asfalto molhado, Lucas pensava no prazer que teria em rever Vadja, depois de tantos anos. Ambos se confrontariam, numa exibição de esgrima, na abertura dos Jogos Universitários. Essa seria uma das principais atrações do evento.
Minutos depois, Lucas chegava ao ginásio de esportes. Estacionou nos fundos do prédio e lançou um olhar à entrada de serviço. Por ali chegaria mais rápido às salas espelhadas do ginásio, onde o esgrimista polonês já devia estar à sua espera.
Pegando o estojo que continha seu florete, no banco traseiro, Lucas saiu do veículo e correu até a marquise da entrada de serviço, para abrigar-se da chuva.
Recordações do tempo de estudante tomaram de assalto a mente de Lucas, no momento em que ele abriu a porta metálica, pintada de verde-escuro. Uma grande parte de sua vida estava ligada àquele local. Percorrer novamente os corredores estreitos e mal iluminados da entrada de serviço do ginásio era como penetrar no passado. Ele sorriu, surpreendendo-se com aquela onda de intensa emoção.
Aos vinte e oito anos de idade, Lucas já tinha um passado considerável. Era um brilhante esportista e tivera uma vida acadêmica exemplar. Na carreira profissional, o sucesso tampouco demorara a chegar. No comando de inúmeros negócios, Lucas demonstrava uma segurança extraordinária, que transparecia em todas as suas ações. No entanto, poucas pessoas sabiam que aquele homem talhado para o êxito possuía um coração sensível e um gosto refinado pelas artes em geral. Sua cultura acadêmica fora testada, negada em grande parte; e depois acrescida de dados extraídos de sua experiência pessoal, nas incontáveis viagens que fizera pelo mundo. Além do mais, Lucas era aficionado às línguas neolatinas. Lia em Espanhol e Português tão bem quanto em Inglês e Alemão. Nada lhe era indiferente, a não ser a política e o poder, que considerava como males inevitáveis.
Quanto ao amor, Lucas era um cético. As inúmeras relações que tivera o haviam decepcionado. Nenhuma das mulheres que conhecera parecia entender que por trás de suas ações brilhantes, e do sobrenome poderoso, existia um homem simples, sensível, afetuoso e até mesmo carente de compreensão.
Com o acúmulo de decepções, Lucas assumira uma postura básica, que consistia em aceitar o que as mulheres podiam lhe dar... E isso, que não significava muito, resumia-se apenas em sexo e algumas horas de entretenimento.
As recordações do passado, bem como as conseqüentes reflexões, o abandonaram assim que ele cruzou as portas de vidro da sala espelhada, onde Vadja se exercitava já vestido e pronto para o treino.
Desculpando-se pelo atraso, Lucas estreitou a mão do polonês, num cumprimento cordial, e foi ao vestiário se trocar. Voltou logo depois, usando o uniforme completo de esgrima, com a máscara protetora erguida sobre a testa.
O treino seria informal, por puro prazer esportivo. Por isso não havia auxiliares, nem juiz, presentes.
Os dois homens se aproximaram do centro da sala. Sorrindo, elevaram os floretes verticalmente, em frente ao rosto, num cumprimento formal. Então, abaixaram as máscaras e cruzaram as lâminas no espaço.
— Sr. Lester... — disse Rudney Bacarowitz, com sua voz nasalada, dirigindo-se ao violoncelista. — O que está escrito em sua partitura, na dinâmica do compasso 87?
— Pio dolce, maestro.
— Pio dolce — Rudney repetiu, com sutil ironia. — Isso quer dizer... Muito suave. Certo?
— Exato maestro.
— E por que não o fazem?
Um ligeiro frêmito de risos contidos correu entre a orquestra, enquanto o Sr. Lester olhava significativamente para seus colegas de naipe.
Depois, Rudney voltou-se para Vivian:
— Srta. McAllister?
— Sim, maestro?
— Aproxime-se, por favor.
Com o violino na mão esquerda e o arco na direita, Vivian caminhou até o pódio.
Rudney curvou-se e sussurrou, destacando bem as palavras:
— Mais leveza, Vivian. Seu mezzo forte está soando como forte.
— É a emoção, maestro. Desculpe.
— Sua emoção levou a orquestra inteira para o fortíssimo.
— Eu sinto muito.
— Sinta menos — Rudney retrucou, num tom seco. Depois, com um sorriso bondoso, prosseguiu — Filtre a emoção na técnica.
Vivian baixou o rosto, ruborizada.
— Olhe para mim — ele ordenou.
Ela ergueu os olhos enevoados pelas lágrimas contidas.
— Você está em condições de prosseguir?
Vivian queria dizer não. Seus nervos estavam esticados ao máximo. Fechando os olhos, respirou profundamente, uma, duas, três vezes. Então seus olhos se abriram e ela disse, com firmeza:
— Sim.
O maestro esboçou um leve sorriso e, enquanto Vivian voltava a seu lugar, percutiu a batuta na estante de madeira, por quatro vezes:
— Senhoras e senhores; vamos começar de novo. E, desta vez, sem interrupções.
O som das partituras sendo folheadas, nas estantes, preencheu o espaço com um sussurro semelhante ao do vento nas folhas secas.
— Embora o clima lá fora seja frio e úmido... — disse o maestro — estamos tratando, aqui, de outra estação: a primavera, nascida de um inverno turbulento. Ouçam os pássaros, sinta o céu azul, o perfume das flores. Alegrem-se, brinquem com seus instrumentos. Eu quero vida. Só assim poderemos interpretar, à altura, esta grande obra do período barroco. Estão prontos?
Os músicos acenaram em concordância. Então, o maestro voltou-se novamente para Vivian:
— Srta. McAllister...?
— Estou pronta, maestro — ela respondeu, num tom sereno.
Rudney abriu os braços, com uma concentração absoluta. A batuta vibrou, no ar.
— Para mim, chega! — exclamou Vadja, apontando o florete para o chão e erguendo a máscara. — Meu amigo, você está em grande forma.
— Bondade sua — respondeu Lucas, retirando a máscara protetora da cabeça. — Tenho treinado muito pouco.
— É o que acaba ocorrendo a todos nós; veteranos. Também não venho treinando quanto deveria.
— Ora, mas você não dá aulas de esgrima, na Espanha?
— Sim, mas para pouquíssimos alunos. O interesse pela esgrima diminuiu muito, entre os jovens, nos últimos anos. Eles só pensam em esportes radicais. — Vadja fez uma pausa, antes de confessar: — Seria impossível, para mim, sobreviver apenas com o que ganho nas aulas.
— Não diga! — Lucas se surpreendeu. — E o que você está fazendo, para melhorar o orçamento?
— Resolvi tirar meu diploma de arquiteto da gaveta. Afinal, sempre gostei dessa profissão que, atualmente, me rende bem mais do que as aulas.
— Antes assim — Lucas comentou. — Mas, diga-me, Vadja, você tem algum compromisso para hoje à noite?
— Vou sair com umas garotas que conheci em Nova York. Elas estão na cidade e quero aproveitar para... Digamos... Estreitar as relações, se é que você me entende.
Lucas sorriu, antes de responder:
— Entendo perfeitamente. De qualquer forma, você tem meu telefone. Ligue-me quando quiser. Precisamos marcar um encontro, para colocar os assuntos em dia.
— Combinado.
Os dois se despediram com um caloroso aperto de mão. Vadja retirou-se para o vestiário, deixando a porta da sala entreaberta. E foi por ali que os acordes de uma orquestra chegaram até Lucas, com certa nitidez. Tal como estava vestido, ele caminhou em direção às quadras do ginásio, lembrando-se de que a orquestra da universidade tocaria na abertura dos jogos naquele ano.
Soa redundante, Lucas pensou, ao reconhecer a música barroca. Escolheram a Primavera, de Vivaldi, para abrir os Jogos da Primavera. Sorte de o maestro Rudney ter Klaus Schneider como primeiro violino da orquestra.
Lucas continuou a caminhar na direção do som. Seus passos eram inaudíveis, graças aos sapatos que usava; e que faziam parte de seu traje de esgrima.
Lucas abriu a porta que dava para as arquibancadas e entrou no ambiente envolvido em penumbra... E música. Desceu lentamente os degraus de concreto, atento ao som de cada instrumento, sem, no entanto perder a visão do conjunto da orquestra. Então se sentou, colocando o florete atravessado sobre as pernas.
A primeira impressão de Lucas, sobre a orquestra que conhecia desde a adolescência, foi que ela havia se renovado bastante. Dezenas de rostos jovens e desconhecidos destacavam-se; entre os veteranos, que já não constituíam a maioria dos músicos.
Era natural que assim fosse Lucas pensou.
Pois a Universidade de Richmond tinha uma das escolas de música mais famosas do país. A cada ano formavam-se dezenas de jovens músicos eruditos. Alguns deles recebiam o honroso convite para fazer parte da orquestra.
O que não havia mudado, Lucas notou, era a regência, sempre a cargo do competente maestro Rudney Bacarowitz, muito querido pela comunidade universitária e pela população em geral.
Rudney, por sua vez, não abria mão de seus auxiliares diretos. Mantinha-os, havia anos, na orquestra. Eram sempre os mesmos. E comandavam, com total competência, os naipes de instrumentos. Lucas conhecia alguns deles: havia Olga Lang, a primeira flauta. E também Oscar Peterson, o primeiro violoncelo. E ainda Aldous Campbell, o primeiro fagote. E, naturalmente, o mago Klaus Schneider, o primeiro violino.
De onde se encontrava, no meio das arquibancadas desertas, mergulhadas na penumbra, Lucas não conseguia ver Klaus Schneider.
Onde ele estaria? Lucas pensou, observando que o naipe dos violinos permanecia sentado, enquanto Olga, em pé, tirava de sua flauta um som semelhante a gorjeios de pássaros.
Num dado momento, Rudney interrompeu o ensaio para dizer algo a Oscar Peterson, o número um dos violoncelos. O comentário do maestro provocou risos abafados, que fizeram Lucas sorrir. Gostava daquele ambiente de fraternidade que unia os músicos de uma orquestra, durante os ensaios...
Depois, o maestro pronunciou um nome que Lucas desconhecia: Srta. McAllister. Na primeira fila do naipe dos violinos, ergueu-se uma garota de porte esbelto e brilhantes cabelos negros, que lhe caíam abaixo dos ombros.
Lucas não compreendeu por que Rudney se dirigia aquela jovem e bela musicista. Era regra geral, naquela e em quase todas as orquestras do mundo, que o maestro falasse apenas com o número um de cada naipe.
Desde a infância, Lucas compreendera que essa atitude não se devia à prepotência do maestro e sim à funcionalidade da orquestra. Pois, se um dos componentes do naipe de violinos errasse uma nota, ou se enganasse no ritmo, ninguém melhor que um músico experiente para detectar á falha e corrigi-la. E esse músico era o chamado número um do naipe, ou espala.
Então, por que Rudney havia chamado aquela garota, entre tantos violinistas?
A pergunta que Lucas agora se fazia tinha uma resposta lógica. Só que ele não conseguia aceitar, de imediato, o que já parecia evidente. A ausência de Klaus Schneider na orquestra deixava-o desconcertado e conduzia à mesma conclusão...
A compreensão chegou à mente de Lucas, como um choque. Aquela jovem musicista estava ali porque era o número um do naipe de violinos... Ela estava ali para substituir Klaus, na difícil execução da Primavera de Vivaldi.
A surpresa paralisou Lucas, enquanto ele esboçava um gesto, que era como um protesto solitário.
Como aquela jovem violinista ousava interpretar Vivaldi? Como o velho Rudney pudera consentir naquela aventura? Onde estaria Klaus?
Como num sonho, Lucas observou que a violinista voltava ao seu lugar, na primeira fila do naipe dos violinos. E ouviu as palavras do maestro:
— Senhoras e senhores; vamos repetir tudo, do início ao fim. Alegrem-se, brinquem com seus instrumentos. Eu quero vida. Estão prontos? Srta. McAllister; podemos começar?
Todos concordaram. Então Rudney abriu os braços e feriu o ar, com a batuta.
Vivian sabia que aquela era sua última oportunidade de mostrar do que era capaz. Se fracassasse, teria que abrir mão da honra de substituir Klaus Schneider, frente à orquestra.
Não seria nenhum vexame confessar-se despreparada, Vivian pensou. Outros, muito mais experientes, haviam desistido em situações semelhantes. Mas a verdade era que ela, sem falsa modéstia, tinha plena consciência de que era capaz de fazê-lo. Para isso, estudara muito e estava preparada.
Uma calma intensa dominou-a por completo, no momento em que o maestro abriu os braços, dizendo: Estão preparados? Srta. McAllister; podemos começar?
Vivian imaginou-se numa paisagem campestre, onde o vento fresco da primavera brincava-lhe nos cabelos, enquanto suas mãos executavam, no violino, o que sua mente e alma conheciam tão bem.
Transportada pela música, Vivian integrava-se aos sons e aromas da Mãe-Natureza... A tal ponto que ela não apenas podia ouvi-los e senti-los, mas tornar-se parte integrante de um quadro... Um quadro bucólico, onde o sol aquecia os brotos verdes das árvores nas quais pássaros saudavam a chegada da estação das flores que desabrochavam por toda parte. Azuis diáfanos, verdes transparentes, vozes de pastores cantando ao longe... Tudo agora era tão real.
A certa altura, Vivian perdeu a noção de espaço e lugar. Ao mesmo tempo em que se sentia parte de um quadro vivo, de beleza perfeita, também via a si mesma tocando à frente daquela esplêndida orquestra, com um distanciamento que a isolava do senso crítico e do raciocínio lógico.
Estava tomada pela sensação deliciosa de flutuar entre as notas musicais, que se encadeavam magicamente, sem que houvesse nenhum esforço ou tensão em seus dedos ágeis, ou no arco que acariciava as cordas.
A magia era tanta que o tempo, em sua forma habitual, parecia ter deixado de existir...
Os ecos dos últimos acordes dissolveram a paisagem, para onde Vivian se remetera. De súbito, ela se viu de volta à realidade...
Ou ao menos ao que as pessoas costumavam chamar de realidade. Estava novamente em seu lugar, na primeira fileira do naipe dos violinos. Perplexa, com os olhos verdes muito abertos, Vivian fitava o rosto expressivo de Rudney Bacarowitz.
De olhos fechados, o maestro encostava a ponta dos dedos da mão direita ao polegar, como se segurasse o fio da melodia, ainda por um instante, antes de ele ser absorvido pelo silêncio pleno que se fez.
E foi em meio àquele silêncio, ainda impregnado da magia da música, que o ruído metálico de algo rolando pelas arquibancadas fez com que toda a orquestra se voltasse naquela direção. O operador de iluminação, que até o momento havia mantido o foco de um refletor fixo no maestro, guiou-o na direção dos olhares.
A emoção continuava vivida nos olhos úmidos de Vivian, que sorriu ao ver um espadachim, iluminado pelo potente refletor. Com gestos precisos, ele apanhou o florete, que havia caído ao chão, colocou-o verticalmente em frente ao rosto e saudou Vivian, num italiano irrepreensível:
— Bravo... Bravíssimo...
Diante da expressão perplexa de Vivian, bem como de todos os outros integrantes da orquestra, o espadachim subiu pelas arquibancadas com agilidade e desapareceu pela entrada de serviço, no momento em que todas as luzes da quadra se acendiam. O ensaio havia chegado ao fim.
Ao ser iluminado pelo refletor, no ginásio de esportes, Lucas havia reagido sem pensar.
Pegando o florete que caíra ruidosamente, sobre o piso de concreto, ele saudara a orquestra e, particularmente, a violinista que o comovera por sua juventude e competência.
Raramente Lucas se permitia manifestações emocionais em seu cotidiano, muito menos em público. Mas fora colhido de surpresa, ao presenciar o desabrochar de um talento ímpar, numa linda e jovem mulher.
Quem seria ela? Pensou. Que doces segredos e mistérios se esconderiam por trás de tanta sensibilidade?
A curiosidade havia acompanhado Lucas, em sua rápida saída do recinto. Sentia-se um tanto aborrecido, por ter feito um papel ridículo. Ao erguer-se intempestivamente, no final da música, esquecera-se por completo de que tinha o florete sobre os joelhos.
Com um pouco de sorte, não teria sido identificado por seus conhecidos na orquestra, ele pensou, sem muita convicção.
Caminhando até o vestiário, tomou um banho e trocou de roupa. Ao sair, seguiu pelo corredor principal, que levava direto ao balcão de recepção do ginásio. Lá chegando, observou o quadro de avisos, examinando-o atentamente, até encontrar o que procurava: a convocação para o ensaio da orquestra, naquele dia. Havia uma lista dos integrantes da orquestra. Lucas correu os dedos sobre os nomes, até encontrar o de Klaus Schneider, primeiro violino, riscado a lápis. Ao lado, em letras de forma, estava escrito um nome feminino: Vivian Alden McAllister.
Lucas sorriu. Então a Srta. McAllister chamava-se Vivian, ele constatou, com agrado. O nome combinava perfeitamente com a figura bela e encantadora da violinista.
Quanto ao sobrenome, Lucas pensou, soava-lhe familiar.
Na época em que freqüentava a universidade, ele tivera um professor de literatura, cujo sobrenome era McAllister. Puxando pela memória, Lucas recordou que o professor se chamava Gerald McAllister. Era doutor em literatura anglo-americana e mantinha uma coluna semanal no suplemento literário do maior jornal de Richmond.
O interesse de Lucas pelas línguas anglo-saxônicas e neolatinas aproximara-o do mestre. Por duas ou três vezes, Lucas tivera oportunidade de ir à casa de Gerald, situada no campus universitário, para consultas e conversas esclarecedoras, além de muito agradáveis.
Daqueles encontros, Lucas guardava uma impressão de simpatia pelo mestre, um homem sensível, culto e equilibrado, que o tratara com benevolência. Lembrava-se também, vagamente, da presença de crianças na casa, mas não prestara atenção especial a nenhuma delas.
Agora, dez anos haviam se passado. E uma daquelas crianças bem poderia ter se transformado na bela mulher cujo talento tanto o impressionara.
O som de vozes, vindo do corredor à direita, indicava a Lucas que os componentes da orquestra estavam deixando o ginásio de esportes. Sentindo-se embaraçado, ele se colocou atrás de um painel que exibia fotos do complexo esportivo da universidade, e ali ficou observando a saída do pessoal.
Não demorou muito para que avistasse Vivian, caminhando ao lado do maestro, com quem conversava amavelmente. Sob as fortes luzes da recepção, ela parecia ainda mais jovem e elegante, em seu casaco negro, longo. Chegando à porta, despediu-se de Rudney e pôs um chapéu de feltro, antes de descer as escadas, rumo ao estacionamento.
Lucas aproximou-se da porta envidraçada e viu quando ela colocou o estojo, contendo seu violino, sobre o capo de um Honda Civic azul. Depois abriu a porta do veículo e guardou o estojo no banco traseiro. Em seguida, partiu.
Nada mais tendo a fazer no saguão, onde se arriscava a um encontro inoportuno com algum de seus conhecidos da orquestra, Lucas apressou-se a deixar o ginásio de esportes. Voltou pelos corredores que conduziam às salas espelhadas e de lá se dirigiu ao estacionamento dos fundos, onde seu carro o aguardava.
Durante o percurso pelo vasto complexo esportivo da universidade, Lucas tentava se lembrar de onde ficava a casa do professor McAllister. Era dentro do campus universitário, na área reservada ao corpo docente.
Mas onde, exatamente? Perguntou-se.
Ele conhecia muito bem aquele espaço, aquele mundo que era um dos principais; marcos e orgulho de Richmond. Por isso, apostando em seu senso de localização bastante desenvolvido, dirigiu-se à área reservada aos professores.
Depois de rodar bastante pelas ruas arborizadas do setor, na noite escura e chuvosa, chegou à conclusão de que seria inútil prosseguir naquela busca insana. Estava agindo como um adolescente impulsivo e romântico, impressionado por uma garota que nem sequer conhecia.
Rindo de si mesmo, dirigiu-se à saída do campus e de lá ganhou a pista que levava ao centro da cidade.
— Há alguém em casa? — disse Vivian, ao abrir a porta.
— Todos já chegaram menos sua mãe — respondeu Gerald, erguendo-se de sua poltrona predileta, ao lado de um grande abajur, com pedestal. — Como foi o ensaio?
— Difícil... — Vivian fechou a porta e colocou o violino sobre uma mesa baixa, juntamente com o chapéu. — Houve um momento em que o maestro chegou a me perguntar se eu estava em condições de prosseguir.
— Você ficou muito nervosa, filha?
— Apavorada. — Ela extraiu um sorriso tímido de sua expressão compenetrada. — Mas consegui, afinal.
— Não poderia ser de outra forma. Afinal, você estudou muito. — Gerald ajudou-a a tirar o casaco úmido e colocou-o na guarda de uma cadeira. — Venha se aquecer perto do fogo, querida. Suas mãos estão geladas.
Vivian puxou uma poltrona para perto da lareira, onde achas de pinho crepitavam envoltas em labaredas dançantes.
— Quer tomar alguma coisa, filha? — Gerald ofereceu. — Um brandy, talvez?
— Prefiro licor de café, papai, obrigado.
Viviam tirou os sapatos e estendeu as pernas esguias em direção ao fogo. Uma sensação de paz e plenitude a invadiu lentamente.
Gerald serviu um cálice com licor de café e entregou-o à filha. Depois, voltou a se acomodar em sua poltrona favorita. Estivera lendo, como sempre. Quatro ou cinco livros estavam espalhados sobre uma banqueta, ao alcance de suas mãos. Havia também um bloco de anotações, com várias páginas manuscritas.
— Está escrevendo sua coluna semanal, papai? — Vivian perguntou, num tom carinhoso.
— Não. Estou colhendo dados para uma monografia sobre os sotaques característicos da região dos Apalaches.
— Parece um trabalho interessante — Vivian comentou.
— De fato...
Algo na voz de Gerald fez com que ela perguntasse:
— Você está bem, papai?
Gerald sorriu, tirando os óculos e esfregando os olhos com a palma da mão direita.
— Não se pode esconder nada de você, não é verdade?
— Eu o conheço... Afinal, sou a mais velha de seus filhos. O que está havendo?
— Sinto-me preocupado com sua mãe. Ela não me parece feliz.
Vivian fitou-o com espanto.
Ann Margareth Alden McAllister era a própria personificação da alegria e do otimismo.
Casara-se com Gerald quando era ainda estudante e com ele tivera três filhos.
A vida familiar jamais a impedira de desenvolver suas atividades profissionais. Depois de se formar em filosofia e artes plásticas, Ann dedicara-se a uma brilhante carreira de designer, ficando conhecida internacionalmente pelas capas de discos de vinil, e depois de CDs, que fizera para grupos de rock, nos anos 80 e 90. Agora, aos 44 anos, cuidava de sua grife, a Ann Alden Fashion, voltada para a moda ultra-jovem com um sucesso inquestionável.
— O que há com mamãe? — Vivian indagou apreensiva. — Ela está com algum problema de saúde?
— Não se trata disso, filha. A saúde de Ann é perfeita. Nem poderia ser de outra forma, já que ela se cuida muito bem.
— Então, o que houve? Vocês discutiram? Estão com algum problema sério?
— Discordamos em certos pontos, mas, na verdade, não é isso que a está incomodando.
— Então, do que se trata?
Gerald franziu o cenho, como se buscasse a definição correta para o que sentia estar acontecendo. Após alguns instantes, sua voz soou calma e compassada, ao dizer:
— Creio que Ann está vivendo aquela fase que toda mulher atravessa, na meia-idade. Uma fase na qual as realizações do passado parecem insuficientes, diante da perspectiva do inevitável declínio.
— Desculpe-me, papai, mas não consigo imaginar mamãe preocupada com a idade. Aliás, ela nunca me pareceu tão jovem e combativa, como nos últimos tempos.
— Esta é a impressão que todos nós tomos, sobre Ann. Mas às vezes me pergunto se essa visão não seria um tanto injusta... Não para nós, mas para ela.
— Injusta? — Vivian repetiu. — Confesso que não estou entendendo.
— Pense bem, filha... Estamos acostumados a desfrutar a força inabalável de Ann, bem como sua fé indestrutível. Creio que nos acomodamos a essa circunstância e nos esquecemos de que, no fundo, sua mãe é um ser humano, como todos nós... Uma mulher maravilhosa, mas nem por isso a salvo da angústia, das dúvidas, da insegurança e do medo.
— Mas mamãe tem a nós, sua família, que a ama incondicionalmente — Vivian protestou. — Ela sabe que pode contar conosco, para o que der e vier.
— Será?
O rosto nobre de Gerald deixava transparecer uma dúvida, que por certo o inquietava havia muito tempo. Vivian sabia que qualquer coisa que dissesse, naquele momento, desviaria o fluxo dos pensamentos do pai. Portanto, calou-se, esperando que ele desenvolvesse a idéia que se formava em sua mente... Uma idéia que não tardou a tomar forma, nas palavras que se seguiram:
— Sua mãe é uma doadora nata, que passou a vida insuflando segurança onde havia apenas dúvidas e incertezas. A verdade é que ela nos acostumou mal, sabe? Ao longo dos anos, acabamos adquirindo o hábito de esperar, sempre, que ela nos desse as soluções é alternativas para os inúmeros problemas que a vida nos apresentava. E agora eu pergunto: se sua mãe sempre veio em nosso socorro, em todas as situações de dificuldades que atravessamos a quem de nós ela poderia recorrer se tivesse um problema que a afligisse?
— Percebo seu ponto de vista — disse Vivian, baixinho. — Creio que qualquer um de nós ficaria chocado se mamãe perguntasse o que fazer, numa situação difícil.
— Então você está me entendendo?
— Sim. Mas continuo me perguntando o que poderia causar um abalo dessa natureza, num caráter como o de mamãe.
Gerald fez um gesto de exasperação contida.
— Quem saberia dizer o quê, exatamente, poderia deflagrar uma crise na personalidade de uma mulher forte como Ann?
— Vou tentar conversar com mamãe sobre o assunto — Vivian decidiu.
—Faça isso, querida. Você é a filha mais velha e talvez consiga convencer Ann a se abrir. Eu, sinceramente, desisti.
— Quer dizer que já tentou?
— Várias vezes. Na última, ela me fitou e disse, sorrindo: Gerald, francamente... Você está sendo ridículo. Acha mesmo que tenho tempo a perder com crises de meia-idade? — Ele imitava, com perfeição, o modo de falar da esposa. Vivian riu e terminou de tomar o licor de café.
— Vou falar com ela. Talvez o que esteja incomodando seja algo passageiro. Ou talvez você tenha superestimado o fato, papai.
— Pode ser, mas não acredito nisso. Em todo caso, boa sorte. — Gerald sorriu, significativamente. — Não será uma conversa fácil, você sabe.
— Não se preocupe. Tomarei cuidado para não ofendê-la. — Vivian calçou os sapatos e se ergueu. Aproximando-se do pai, beijou-o na testa, acariciando levemente seus cabelos finos e negros, onde fios brancos já denunciavam a passagem do tempo.
Gerald tornou a colocar os óculos e voltou a seus afazeres.
Vivian apanhou seus pertences sobre a mesa e subiu a escada que conduzia ao pavimento superior da casa, onde ficavam os dormitórios.
Ao passar pela porta entreaberta do quarto de Alex, seu irmão adolescente, Vivian deteve-se por um instante, enquanto um sorriso desenhava-se em seu rosto.
Deitado na cama, com os pés apoiados na parede e uma revista em quadrinhos nas mãos, Alex ouvia rock pesado, em alto volume...
Aquele era um sinal evidente de que o garoto estava de humor sombrio, Vivian concluiu.
Portanto, não seria nada aconselhável tentar uma aproximação, naquele momento. A prática ensinara a Vivian interpretar os estados de espírito do caçula, de acordo com suas ações exteriores.
E ela raramente se enganava, em suas conclusões.
Aos dezesseis anos, Alex estava passando por aquela fase difícil, em que a sensibilidade e a razão quase nunca entravam num acordo... Mas possuía á seu favor, um senso de humor surpreendente, aliado a uma inteligência viva.
Pesando os prós e os contras, Vivian resolveu prosseguir até seu quarto, sem falar com o irmão. Sabia que o mau humor do caçula durava pouco. Quanto a ela, precisava de um banho longo e relaxante.
Na copa-cozinha da casa, Chantal preparava o jantar: filés de peixe, grelhados, ao molho de alcaparras. O prato seria servido com purê de batatas e legumes refogados na manteiga.
Chantal adorava cozinhar e vez por outra brindava a família com seus dotes culinários.
Aquelas refeições anunciadas de última hora, nas quais Chantal exigia a presença de todos, já haviam se tornado um ritual na casa dos McAllister.
Segunda filha de Gerald e Ann, Chantal era uma esportista nata. Encontrara sua vocação profissional fotografando esportes radicais, que adorava desde a infância. Desde alguns anos atrás, Chantal passara a trabalhar com a mãe, na grife Ann Alden Fashion.
Um ano mais jovem do que Vivian, Chantal era do tipo mignon, com sardas e cabelos ruivos, que trazia sempre curtos. Adorava dançar e era muito popular entre os jovens, que admiravam sua companhia sempre extrovertida e alegre.
Erguendo a tampa da panela onde o molho de alcaparras apurava em fogo brando, Chantal aspirou ao delicioso aroma e resolveu que havia chegado o momento de acrescentar mostarda ao molho.
— Está cheirando divinamente, Chantal — disse Vivian, do último degrau da escada. — O que teremos para o jantar?
— Veja você mesma. — Chantal afastou-se do fogão, para dar espaço à irmã.
— Que maravilha... Não sei onde você arranja tempo para cozinhar, em meio a tantas atividades.
— Voltei mais cedo para casa. E quanto a você, maninha? Como foi o ensaio com a orquestra?
— Consegui sobreviver. — Vivian puxou uma cadeira e sentou-se à cabeceira da mesa. — Nunca imaginei que ficaria tão nervosa.
— Então você vai mesmo substituir Klaus Schneider, na abertura dos jogos?
— Parece que sim. Essas coisas não se falam, mas pode-se sentir no ar. O maestro me deu os parabéns, no final do ensaio. E senti que os músicos, em geral, me apoiaram.
— Quando será anunciada a decisão da direção da orquestra?
— Amanhã, ao meio-dia, haverá uma entrevista coletiva com a mídia e será anunciada a ausência de Klaus Schneider e sua substituição na orquestra.
— Por você...
— É o que espero.
— Parabéns, maninha — disse Chantal, colocando as batatas e o espremedor numa travessa em frente á Vivian. — O purê dessa noite terá um sabor especial. Não é todo dia que se tem o primeiro violino da Orquestra Sinfônica da Universidade de Richmond como ajudante de cozinha.
— Se tudo correr bem, eu estarei substituindo o primeiro violino apenas nessa apresentação. O titular continuará sendo Klaus Schneider, não se esqueça. — Vivian fez questão de explicar.
— De qualquer forma, este será um grande passo em sua carreira, não é verdade?
— Dependerá muito da crítica especializada. Você sabe... Eles podem elevar ou arrasar um músico, apenas com algumas palavras.
— Isso a preocupa?
— Estranhamente, não. Tenho plena consciência de que estou fazendo tudo o que posso. Seria tolice me preocupar com algo que não depende de mim.
— Olá, minhas queridas. — cumprimentou Ann, entrando na cozinha.
— Oh, você chegou tarde, mamãe — Vivian comentou depois de beijar Ann em ambas as faces. — Problemas no trânsito?
— Fui convidada de última hora para uma reunião na prefeitura. Neste ano, os eventos da primavera darão um destaque especial aos esportes radicais. — Olhando de Vivian para Chantal, Ann concluiu: — E isso, de alguma forma, nos diz respeito.
— Que boa notícia, mamãe — Chantal comentou, antes de anunciar: — Bem, o jantar está quase pronto. Poderemos falar desse assunto durante a refeição.
— Claro — Ann concordou. Voltando-se para Vivian, disse: — Seu pai me contou que tudo correu muito bem, no ensaio da orquestra. Fico feliz por você, querida. Bem... Vou tomar um banho rápido e já volto para o jantar — disse, por cima dos ombros, com aquele sorriso alegre de sempre.
Vivian havia observado a mãe, discretamente, atenta a qualquer sinal de infelicidade ou desgosto em seus olhos e gestos... Em vão. Ann continuava a mulher maravilhosa e bem disposta de sempre.
Se houver algum problema, Vivian pensou, deve ser de natureza tão profunda e secreta, a ponto de não deixar nenhum sinal, na superfície.
Por outro lado, Vivian não via motivos para duvidar das afirmações feitas pelo pai. Era verdade que Gerald, sempre mergulhado em seus estudos, podia dar a impressão de estar ausente da realidade cotidiana. Mas Vivian sabia que o pai jamais se enganava, em sua aguçada percepção.
Sabia, também, que ele era um grande observador dos seres humanos... Principalmente quando se tratava de seus familiares.
Vivian suspirou, profundamente. Só lhe restava aguardar a oportunidade para ter uma conversa particular com a mãe. Mas sabia, de antemão, que isso não seria nada fácil.
Vivian acordou às sete horas, como de hábito, sem o auxílio do despertador. O condicionamento a que vinha submetendo seu organismo, acordando todos os dias à mesma hora, funcionava como um relógio biológico natural, que não falhava nunca. O único problema era que não dava para desligá-lo aos domingos e feriados, ou quando estava em meio a um sonho maravilhoso, do qual não queria despertar... E foi exatamente isso que aconteceu, naquela manhã cinzenta e úmida.
No estágio de semi-consciência que ocorre, quando se acorda subitamente, Vivian tentou resgatar as doces imagens multicoloridas do sonho... E, por alguns instantes, conseguiu focar a beleza comovente de um sol de primavera incidindo sobre um campo em flor. Mas as imagens escorregavam e se diluíam absorvidas pelo inconsciente que as havia gerado.
Frases musicais inteiras do Adágio em Sol Menor, de Tomaso Albinoni, flutuavam na mente de Vivian, com ressonâncias insuspeitas. Era como se a natureza do sonho que se apagava fosse, em sua essência, a própria música. E havia alguém para onde convergiam todos os sons: um espadachim de malha negra, encostado a uma macieira. Nele se concentravam o calor e o brilho do sol.
Com os olhos fechados e um doce sorriso, Vivian esforçou-se para penetrar, novamente, no território dos sonhos. Sentiu-se flutuar na direção do espadachim, cujos lábios, naturalmente corados, formaram as palavras Bravo... Bravíssimo. Então, umas infinidades de notas musicais espalharam-se pelo espaço, e o espadachim começou a regê-las, usando a espada como se fosse a batuta de um maestro.
— Como é seu nome... Quem é você? — Vivian ouviu alguém dizer.
Mas o espadachim já havia desaparecido, levando consigo a magia da música e as paisagens encantadoras.
Tentando compensar-se pelo despertar cruel que havia lhe roubado o sonho, Vivian rolou na cama, procurando uma posição mais confortável. Logo voltou a mergulhar numa sonolência benfazeja... Mas o sonho, decididamente, já havia ficado para trás.
Uma hora mais tarde, Alex entrou no quarto de Vivian, trazendo seu desjejum.
— Acorde maninha. Todos os seres responsáveis desta casa já estão alimentados e a caminho do trabalho. Sobramos nós, os músicos da família.
Sentando-se na cama, ele colocou a bandeja ao lado de Vivian que resmungou sonolenta:
— Que horas são?
— Passa um pouco das oito. Fiz suco de tomate, torradas com manteiga e café.
— Você é um anjo, Alex. — Ela recostou-se na cabeceira da cama e colocou a bandeja no colo. Depois, observando o irmão com atenção, perguntou: — Qual é o golpe?
— Que golpe?
— Bem, esse seu ataque de gentileza deve ter algum motivo. Se você está querendo carona para algum lugar, pode tirar o cavalinho da chuva, pois hoje terei um dia atribulado — ela sentenciou, trincando uma torrada entre os dentes — Puxa, está uma delícia.
— Você tem uma mente pervertida, Vivian. — Alex protestou, com indignação teatral. — Você deveria se envergonhar por tratar seu irmão caçula como um reles aproveitador.
— Sei! — Vivian exclamou, num tom divertido.
— Além do mais, sempre preferi andar de bicicleta, a andar de carro. Falando nisso, minha bike já saiu da oficina e está em ótimas condições.
Vivian provou o suco de tomate e comentou:
— Você colocou umas gotas de limão, como eu gosto. Isso é altamente suspeito.
— Como você é injusta! Onde já se viu interpretar um gesto puro, de amor fraterno, como sórdido interesse material?
— Então, não é carona que você quer. — Vivian concluiu pensativa. — Vejamos o que mais poderia ser? Ah, sim... A festa em Lakeside, hoje à noite. Não se fala em outra coisa, lá no campus. Deixe-me adivinhar... Você está quebrado, pois pagou a oficina. Portanto, espera que sua irmã mais velha abra a bolsa e lhe passe um dinheirinho... Certo?
— Horror dos horrores! — Alex exclamou num exagerado tom dramático. — A que ponto pode-se deteriorar a relação familiar! E pensar que o mesmo sangue corre em nossas veias...
— Também não é dinheiro? — disse Vivian, contendo um sorriso. — Agora sim, você está me deixando realmente preocupada. Vamos lá, garoto, diga o que quer de mim, de uma vez por todas. — Antes que o irmão respondesse, ela acrescentou: — Aproveite, porque estou de bom humor. Qual é o problema?
— Jamille Campbell — disse Alex, subitamente sério.
— O que há com Jamille? Ela está lhe causando problemas?
— Não — ele apressou-se a responder. — Ou melhor, sim... Não. Quero dizer...
— Quando você se decidir, me avise, está bem?
— O problema é que Jamille não está me causando; problemas... Entendeu?
— Claro que não.
— Eu simplesmente não existo para ela; este é o problema.
— Mas, Alex... — Vivian comentou, com estranheza. — Seis meses atrás você vivia dizendo que fazia qualquer coisa do mundo, para se livrar de Jamille... Que seria, inclusive, capaz de dar a sua bicicleta, desde que Jamille prometesse que nunca mais o procuraria.
— Minha bicicleta? — o garoto repetiu, com espanto. — Ah, eu nunca falei isso. Você está maluca?
— Falou, sim, que eu me lembro.
— O que eu disse é que daria um braço para me ver livre dela.
— Pois é... Você conseguiu. E sem perder o braço. — Vivian suspirou, fechando os olhos por um momento. — Jamille aceitou o fora que você lhe deu e conseguiu superar a crise, sabe-se lá de que maneira. Afinal, ela estava realmente apaixonada.
— Você acha, mesmo? — Alex perguntou, com um brilho de excitação nos olhos.
— Escute aqui, garoto, isso não é brincadeira. Estamos falando de sentimentos, compreende? Depois que você rompeu o namoro, a pobre Jamille teve que procurar auxílio psicológico, para sair da depressão.
— Ela sempre foi exagerada em tudo.
— Claro — disse Vivian, com ironia. — Continue enumerando os defeitos dela... Quem sabe assim você consiga descobrir por que a deixou.
— Mas eu não deixei Jamille por causa de seus defeitos — Alex afirmou, com sinceridade.
— Então, por que foi?
— Porque pensei que estivesse apaixonado por Katty.
— E não estava?
— No começo, sim. Mas Katty é estranha demais. Você acredita que ela preferiu assistir ao show do Charles Mason, em vez de ir comigo à apresentação do Rage Against The Machinel
— Alex...
— Sim?
— Vá plantar batatas.
— Não tenho tempo para isso; mana, pois estou louco de paixão, — Ajoelhando-se na cama, Alex pediu: — Por favor, me ajude, Vivi. Se as coisas continuarem assim, acabarei ficando maluco.
— Você já é maluco.
— Falo sério, maninha. Estou arrasado. Minha vida é pensar em Jamille, dia e noite. Eu não como, não durmo...
— É mesmo? — Vivian sorriu. — Pois ontem você repetiu duas vezes o filé de peixe feito por Chantal. Depois, quando passei pelo seu quarto, você estava dormindo como um tijolo... E com o som ligado. Portanto, que história é essa de não conseguir comer, nem dormir?
— É força de expressão. Vamos, não seja cruel, Vivi... — E Alex repetiu, num tom de súplica. — Por favor, me ajude.
— O que você quer que eu faça? — Vivian perguntou impaciente.
— Converse com Jamille. Diga a ela que mudei muito... Não sou mais aquele sujeito inconseqüente de antes. Estou arrependido e quero que ela me dê uma chance.
Vivian considerou as palavras do irmão, por alguns instantes. Então, respondeu categórica:
— Não.
— Por favor... Ela gosta muito de você. Tenho certeza de que vai ouvi-la com atenção.
— Por isso mesmo é que não vou me meter nessa história. Jamille sofreu demais, Alex. E acho que vocês deveriam ficar exatamente como estão, ou seja, cada um no seu lado.
— Então é assim? Eu venho até aqui para abrir meu coração, com toda a sinceridade, e o que encontro? Um sonoro não. Como é que você pode ter coragem de negar ajuda a um irmão que está sofrendo?
Vivian fitou-o por um longo momento. Os olhos demonstravam uma aflição comovente.
Alex parecia realmente sincero, Vivian pensou. E, com um gesto de desistência, cedeu:
— Ouça-me bem, Alex...
— Sim?
— Vou ajudá-lo, mas com uma condição.
— Farei tudo o que você quiser — ele apressou-se a dizer.
— A condição é que você venha falar comigo sobre esse assunto dentro de quinze dias...
— Quinze dias? — ele repetiu, indignado.
— Isso mesmo. Nem um dia a mais, nem a menos.
— Mas, Vivi...
— E olhe que estou sendo bastante generosa, diante das circunstâncias. — Apôs uma pausa, ela acrescentou: — O pai de Jamille foi meu professor e, hoje, tocamos na mesma orquestra.
— Eu sei disso.
— Conheço Jamille desde menina. Gosto muito dela e não quero vê-la sofrer de novo, só por causa de um capricho seu.
— Não é um capricho. — Alex meneou a cabeça, fazendo esvoaçar os cabelos longos. — Eu realmente gosto dela.
— É o que veremos. Se dentro de quinze dias você ainda conseguir me convencer de sua seriedade de propósitos, em relação á Jamille, falarei com ela.
— Não vai ser nada fácil esperar tanto tempo — ele disse, com tristeza.
— Você sobreviverá, pode apostar nisso.
— É... Acho que sim. — Alex ergueu-se, com ar de desalento, e saiu do quarto.
Vivian saltou da cama e, pegando uma toalha no guarda-roupa, dirigiu-se ao banheiro. Teria um longo dia pela frente.
O carro de Vivian trafegava suavemente, na manhã que ia se tornando azul e ensolarada, com o correr das horas.
Vivian consultou o relógio, no painel do carro. Tinha um encontro marcado às nove e meia, em Church Hill, e ainda estava no Central Garden.
Acelerando ao entrar na Farmount Avenue, ela repassou, na memória, tudo o que pretendia dizer a Edward Garnier. Com isso colocaria; um ponto final definitivo nesse relacionamento que vinha lhe causando aborrecimentos.
Conhecera Edward há cinco meses, numa turnê que começara em Richmond e terminara em Montreal, no Canadá.
Ele era barítono e fazia parte do octeto que cantava à frente da orquestra, naquela viagem. O namoro começara por dois motivos básicos: simpatia recíproca e a solidão que sempre ocorria, nas turnês.
Na verdade, Vivian nunca tivera real intenção de iniciar aquele caso. Não havia, entre ambos, a química necessária para um relacionamento físico. Isso ficara bem claro, para ela, durante o primeiro beijo e algumas carícias.
Ao voltar a Richmond, no final da turnê, Vivian julgara que o namoro se encerraria naturalmente, por falta de interesse de ambas as partes. Mas as coisas transcorreram de outro modo... Edward a procurava com insistência, telefonando quase todos os dias e aguardando-a, depois dos ensaios ou apresentações, com um belo sorriso e palavras sempre gentis.
A princípio, Vivian aceitara as homenagens e a presença de Edward. Afinal, ele era um belo homem, e praticamente não exigia nada, além de estar em sua companhia. Mas tomava-se óbvio, a cada encontro, que Edward sofria por causa da indiferença com que ela tratava seus desejos contidos e cada vez mais evidentes.
Interrogando-se com aquela honestidade que lhe era característica, Vivian chegara à conclusão de que jamais poderia corresponder aos sentimentos de Edward. Era cruel e injusto mantê-lo naquela expectativa inconfessada, mas nem por isso menos real.
Por tudo isso, decidira romper a relação. Fazia mais de uma semana que estava à espera de uma oportunidade para conversar com Edward. E quando ele sugerira dois dias atrás que fossem juntos; à entrevista coletiva que a direção dos Jogos Universitários da Primavera daria à imprensa naquele dia, ela aceitara sem hesitar. Chegara o momento de encerrar aquela história sem sentido.
O relógio marcava nove e trinta e dois, quando Vivian estacionou em frente à casa de Edward, que a aguardava na varanda. Erguendo-se, ele veio a seu encontro. Debruçando-se na janela do carro, procurou beijá-la nos lábios. Com um leve movimento de cabeça, Vivian ofereceu o rosto, evitando o contato mais íntimo.
Sem demonstrar desapontamento pela sutil rejeição, ele cumprimentou-a, sorridente:
— Bom dia, Vivian. Que manhã maravilhosa, depois de tanta chuva, não?
— Sim, Edward — ela respondeu, num tom amável. — É o anúncio da primavera... Podemos ir?
— Claro. Mas ainda temos tempo para um café. Você não gostaria de entrar?
— Não, obrigada. Acho melhor irmos agora.
— Está bem. — Edward contornou o veículo e acomodou-se no banco do passageiro. — Como foi o ensaio, ontem?
— Difícil. Mas creio que consegui ir um pouco além do razoável — ela respondeu, com modéstia, dando a partida no motor.
— A palavra razoável não existe para o maestro Rudney Bacarowitz, quando se trata de um solista. Se ele não aprovasse sua performance, teria dito a você.
— De qualquer forma, ficaremos sabendo em poucas horas — Vivian comentou.
— É verdade.
Um silêncio tenso instalou-se entre ambos.
Dirigindo em baixa velocidade, Vivian olhou rapidamente para Edward sentado a seu lado, e chegou a desejar que o sentimento que nutria em relação a ele fosse diferente. Mas não era assim que as coisas funcionavam. Não havia como comandar o coração, ou compreender seus mistérios.
Além do mais, Vivian pensou a decisão já fora tomada.
Agora, era uma questão de coragem, clareza e, sobretudo, sinceridade. Tomando fôlego, escolhendo bem as palavras, ela disse:
— Sabe Edward, tenho refletido bastante sobre o nosso relacionamento.
— Sim?
— E cheguei à conclusão de que devemos parar de nos ver.
— Por quê? — ele perguntou, num tom neutro, disfarçando com habilidade o choque que as palavras de Vivian lhe causavam. — Pensei que você gostasse da minha companhia.
— E gosto. Mas é só isso que sinto por você, Edward: carinho, amizade...
— E quando foi que lhe pedi algo mais? — ele a interrompeu.
— Nunca — ela apressou-se a dizer. — Você sempre agiu de forma correta a meu respeito e quero que saiba que lhe sou muito grata por isso.
— Que forma estranha de demonstrar gratidão — disse Edward, com uma ponta de amargura na voz grave e bem modulada.
— Eu bem que gostaria que fosse diferente — Vivian afirmou. — Mas não posso levar adiante algo em que não acredito.
— Você não acredita... Em mim?
— Em nós — Vivian respondeu, com pesar. — Não vejo perspectivas de crescimento numa relação platônica...
— Platônica porque você quer assim — ele contrapôs, de imediato. — Ou será que ainda não deixei claro quanto a desejo?
— Aí é que está o problema, Edward. Eu não sinto o mesmo...
— Pois eu volto a repetir que nunca lhe pedi nada, Vivian. Para mim, estar em sua companhia, desfrutar de sua presença encantadora, tem sido o bastante, entende?
— Entendo e agradeço Edward.
— Não me agradeça — ele retrucou visivelmente ofendido, voltando-se para fitá-la. De súbito, perguntou: — Quantos anos você tem?
— Vinte e três. E você sabe disso muito bem.
Ignorando o comentário, ele prosseguiu:
— Pois eu tenho trinta e seis. Para mim, as ilusões adolescentes ficaram para trás. Posso perfeitamente esperar que um dia você acorde dessa espécie de sonho, que ocorre com freqüência na sua idade, para enfim enxergar o quanto vale um amor sincero, fiel e estável, como o que tenho a lhe oferecer.
— E se isso não acontecer nunca?
— É um risco que me disponho a correr, Vivian. Afinal, você representa muito para mim.
— Acontece, Edward, que não estou disposta a apostar nas suas esperanças. Para mim, quem está sonhando é você... E trata-se de um sonho equivocado, já que não podemos compartilhá-lo, já que não posso corresponder a suas expectativas. — Após uma pausa, ela concluiu: — Por favor, tente entender algo muito simples: é preciso dois, para amar.
— E o que você sabe a respeito do amor? — ele retrucou, elevando ligeiramente a voz.
— Pouco ou muito, tanto faz. Mas tenho certeza de que não o amo e quanto a isso; nada posso fazer. Portanto, será melhor terminarmos aqui.
— Vivian... Você pode se arrepender dessa decisão. Já pensou nisso?
— De fato, existe esta possibilidade. Mas, se tenho que acreditar em alguma coisa, ou em alguém; prefiro que seja em mim mesma e não em suas esperanças infundadas.
— Está bem. Se for isso mesmo que você quer...
— É isso — ela declarou, com firmeza.
— Certo — ele assentiu, com gravidade. Mudando subitamente de tom, disse: — Você pode me deixar no próximo cruzamento, por favor. Tomarei um táxi.
— Não seja ridículo, Edward — ela protestou, com veemência. — Estamos indo para o mesmo lugar.
— Não quero impor minha presença a você, por mais tempo. E então? Você vai parar, ou terei de saltar deste carro em movimento?
Sinalizando à direita, Vivian encostou-se ao meio fio.
— Edward, eu sinto muito — disse penalizada.
— Não, Vivian... Você não sente. Adeus. — Edward desceu do carro com dignidade, fechando a porta com delicada precisão.
Tristemente, Vivian o observou afastar-se em direção a um ponto de táxi. Com lágrimas nos olhos, ela acelerou e logo foi envolvida pelo trânsito incessante e bem movimentada daquela hora.
À mesa de refeições, a elegante Sarah Northon Benson fitou o filho com uma expressão de curiosidade nos belos olhos castanhos.
— Então é verdade que você terminou com Lisa Carter? — perguntou.
— Disse a ela que não perdesse mais tempo comigo — Lucas resumiu, com evidente impaciência.
— E como Lisa reagiu?
— Muito mal. Acusou-me de ser frio e egoísta, teve uma crise de choro e depois foi embora.
— Pobre Lisa.
— Você se preocupa demais com os sentimentos dela, mamãe. Mas saiba que Lisa não é tão profunda quanto parece. Apenas, tem um gênio forte e não gosta de ser contrariada.
— Ninguém consegue reagir bem, numa situação como essa — Sarah sentenciou. — Caroline me contou, por telefone, que a filha estava inconsolável.
— Na semana que vem, Lisa participará de um torneio de tênis, no México. Aposto que voltará de lá com um novo romance — Lucas afirmou irônico.
Sarah colocou a xícara de chá sobre o pires, antes de dizer:
— Sabe de uma coisa, filho? Você às vezes me assusta.
— Por quê? — Lucas indagou surpreso.
— Sua descrença nos sentimentos femininos chega a me parecer crueldade — ela confessou.
Levantando-se, com um sorriso terno no rosto bem escanhoado, Lucas retrucou:
— Não tenho culpa por não mais existirem mulheres como você, mamãe.
— Não me venha com bajulações — Sarah rebateu, com um meio sorriso. — O assunto é sério.
— É mesmo? — Lucas provocou-a, num tom bem-humorado. — E do que se trata mamãe?
— De seu futuro. Você já completou vinte e oito anos de idade. E, até agora, nenhum relacionamento teve real importância em sua vida afetiva. Você não acha que já é hora de constituir sua própria família?
— Sinceramente, não vejo motivos para toda essa pressa. Além do mais, não se pode forçar a natureza. Quando o momento chegar e a pessoa certa aparecer, estarei pronto para assumir a responsabilidade de um relacionamento duradouro.
— É o que você vem dizendo, nos últimos anos...
Lucas aproximou-se da mãe e, inclinando-se, beijou-a no rosto com muito carinho.
— Agora preciso ir. Pare de se preocupar comigo, sim?
— Vou tentar. — Sarah respondeu, sem nenhum entusiasmo.
Com um aceno de despedida, Lucas atravessou a sala, o hall, e saiu da mansão.
O sol brilhava intensamente, num céu muito azul, o que deixou Lucas de bom humor. Estava cansado do longo inverno, com suas manhãs úmidas e cinzentas.
Sentando-se ao volante do Alfa Romeo, estacionado no pátio da mansão, Lucas contornou a fonte, com suas esculturas de mármore. Depois, tomou a longa alameda que ligava a mansão à estrada vicinal daquele elegante bairro onde nascera e fora criado.
Com um rápido olhar para o relógio de pulso, constatou que teria tempo suficiente para chegar à prefeitura, antes que o pessoal da mídia invadisse o saguão e os corredores.
Por ser uma personalidade bastante conhecida, devido a sua atuação nas olimpíadas, Lucas queria evitar declarações e entrevistas, antes que o prefeito passasse a palavra aos organizadores dos Jogos Universitários. Era uma questão de não ferir suscetibilidades, na complicada hierarquia local.
No cruzamento de duas grandes avenidas, Lucas freou diante da luz vermelha de um semáforo, parando ao lado de um Honda Civic azul. A mulher, ao volante, pareceu-lhe vagamente familiar, com seus brilhantes cabelos negro e o perfil clássico, muito belo. Parecia-se por demais com a violinista que tanto o impressionara, na véspera. Aliás, Lucas lembrava-se, perfeitamente, de que a vira entrar num Honda daquela cor.
— Seria muita coincidência — pensou, em voz alta. — Acho que estou tendo visões — completou, com bom humor.
Sem ter consciência de que estava sendo observada, Vivian olhava fixo para frente, com as mãos apoiadas no volante. Depois, inclinando-se, abriu o porta-luvas e retirou uma pequena caixa.
Curioso, Lucas acompanhou o movimento da mulher que, manuseando a caixinha colorida, sacou dela um lenço de papel, que passou pelos olhos e nariz.
A bela está resinada, ele concluiu, para logo se corrigir: Não... Ela esteve chorando, compreendeu consternado.
A constatação de que aquela mulher tão jovem estava sofrendo chocou Lucas de maneira inesperada. Uma súbita e inexplicável necessidade de consolar a desconhecida, que podia ou não ser a violinista McAllister, apoderou-se dele.
Antes que conseguisse analisar o que se passava em seu íntimo, Lucas foi assaltado pelo forte som da buzina do carro atrás do seu. O motorista, visivelmente irritado, alertava-o para a luz verde estampada no semáforo. Arrancando, Lucas tentou continuar observando o Honda, cuja fila avançava bem mais rápida que a sua. Mas não conseguiu e logo o perdeu de vista.
Em meio ao grupo dos organizadores do Festival Universitário da Primavera, Lucas tentava se concentrar no discurso, mas as frases feitas e as entonações estudadas causavam-lhe um tédio mortal. Fazia já vinte minutos que a cerimônia se arrastava... E, pelo visto, não terminaria tão cedo.
Olhando ao redor, Lucas procurava avistar a bela violinista... Sem nenhum sucesso. O assessor do prefeito dissertava agora sobre o parque temático Paramount's Kings Dominion onde a orquestra da Universidade de Richmond-hayifcse apresentado, com um sucesso estrondoso, no Festival da Primavera do ano anterior. Só então o assessor pareceu lembrar-se da presença dos músicos e, conseqüentemente, do representante da Universidade de Richmond e do conselho-diretor dos Jogos Universitários. Dirigindo o discurso, com muita habilidade, para o tema dos jogos universitários, o assessor passou a palavra ao porta-voz do grupo.
Para alívio de todos os presentes, os representantes foram breves e sucintos. Em apenas algumas frases, bem colocadas, deram informações sobre o calendário de eventos, destacando a participação de Lucas Northon Benson na abertura dos jogos, fazendo questão de frisar que ele era bi-campeão olímpico de esgrima.
Erguendo-se, Lucas agradeceu os aplausos, com um sorriso e uma leve reverência. Enquanto voltava a se sentar, o porta-voz da Universidade convidou o maestro Rudney a dizer algumas palavras.
Com a experiência dos longos anos de trato com o público, Rudney falou, em voz pausada, sobre a atuação da orquestra, não apenas nos Jogos Universitários, mas no Festival da Primavera.
Ao encerrar seu breve discurso, Rudney anunciou que, naqueles eventos, o primeiro violino, Klaus Schneider, seria substituído por Vivian Alden McAllister, uma jovem de talento notável que, com coragem ímpar, aceitara ocupar o honroso posto.
Lucas sentiu o coração pulsar mais rápido quando o maestro, lançando um olhar geral à sala lotada, localizou Vivian e convidou-a, com um gesto, a se aproximar.
E lá estava a mulher, que tanto o impressionara por sua juventude e rara beleza, caminhando com graça e natural elegância em direção ao maestro.
Era evidente, para Lucas, a forte impressão que a jovem violinista causava no público e nos repórteres. A beleza e simpatia que irradiava pareciam aquecer o ambiente em torno. Os aplausos foram breves, mas calorosos.
Vivian colocou-se ao lado do maestro, que lhe passou o microfone. Numa voz modulada e macia, ela fez um breve discurso de agradecimento e, com uma expressão modesta, voltou ao lugar que ocupara nos fundos da sala.
Ela é magnífica, Lucas concluiu tomado por uma intensa emoção. Preciso conhecê-la, e rápido.
Havia muitos conhecidos de Lucas, na sala. Mas antes que alguém viesse abordá-lo, ele afastou-se rapidamente, escapando pela saída privativa do gabinete do prefeito.
No estacionamento, procurou atentamente por um Honda Civic azul. Havia dois, bem distantes um do outro. Lucas aproximou-se de um deles e logo se afastou, ao ver um maço de cigarros sobre o painel. Jamais Vivian McAllister se entregaria a um hábito tão primitivo, Lucas pensou.
Examinando o segundo veículo, através do pára-brisa, sorriu ao ver a caixa de lenços sobre o banco de passageiros. Então foi ela mesma quem vi no semáforo, tentando apagar os vestígios das lágrimas com um lenço de papel, concluiu.
O que a teria feito chorar?
A pergunta ficou sem resposta, enquanto ele procurava um local para aguardar a chegada de Vivian.
Não ocorria a Lucas arquitetar um plano para abordá-la. Tampouco pensava em qual seria a reação dela. A necessidade de estabelecer contato direto com aquela mulher encantadora era tudo o que o impulsionava. Por um breve momento, teve plena consciência de que estava agindo de modo intempestivo. Mas simplesmente não podia, e nem desejava, se controlar.
Encostado a um poste de iluminação do estacionamento, percebeu que Vivian se aproximava, apesar de seu rosto estar parcialmente coberto pelo grande buquê de flores que ela trazia nos braços.
Vivian movimentava-se com desembaraço, transpondo o espaço que os separava. Logo alcançou o carro, a poucos passos de onde Lucas se encontrava.
— Posso ajudá-la? — ele perguntou, num tom solícito, aproximando-se.
— Oh, sim... Obrigada.
Lucas tomou nas mãos o grande buquê, enquanto Vivian procurava as chaves do carro, na bolsa. Depois de abrir a porta do veículo ela se voltou, sorrindo. Fitando-o bem dentro dos olhos, agradeceu:
— Obrigada pela gentileza, Sr. Benson.
— Então a senhorita me conhece? — ele reagiu gratamente surpreso.
— Sim, não pude deixar de vê-lo, ainda há pouco. Afinal, estávamos na mesma sala.
— É verdade — ele concordou.
— Aliás, se não me engano, o senhor é o espadachim que nos surpreendeu ontem, no ginásio de esportes, com um elogio inesperado. — E ela o imitou, sem nenhum traço de ironia ou reprovação, no belo rosto: — Bravo... Bravíssimo!
Isso encorajou Lucas a dizer, com uma sinceridade desarmaste:
— Fiquei tão encantado com sua performance, que me esqueci totalmente que tinha o florete sobre os joelhos, quando me levantei para aplaudir. Creio que fiz um papel ridículo — confessou um tanto embaraçado.
— Tomo isso como uma homenagem pessoal — ela respondeu, com graça.
Ambos ficaram se olhando, por alguns instantes. Era como se cada um estivesse aguardando que o outro prosseguisse com a conversa.
— São verdes... — ele disse, por fim.
— Como?
— Seus olhos. Da arquibancada do ginásio, pensei que fossem negros, como os cabelos.
— Tive a mesma impressão dos seus, quando o refletor o iluminou, no ginásio. Mas agora vejo que são azuis... — Como que hipnotizada, Vivian acrescentou: — E seus cabelos são castanhos...
— Sim — disse Lucas, fitando-a com intensidade.
— As flores... — Vivian murmurou, após um longo momento.
— O que tem as flores?
— O senhor pretende ficar com elas? — Vivian apontava o buquê, sorrindo deliciosamente.
— Oh... Não sei o que há comigo... — Lucas apressou-se a entregar-lhe as flores.
Ainda sorrindo, ela inclinou-se graciosamente e colocou o buquê no banco traseiro do carro.
A visão das curvas perfeitas e dos quadris generosos de Vivian; atingiram Lucas em cheio, provocando-lhe uma onda de desejo. Respirando fundo, ele meneou a cabeça levemente; surpreso com a intensidade daquela súbita sensação.
— Meu nome é Vivian McAllister — ela se apresentou, voltando a fitá-lo, com a mão estendida. — Foi um prazer conhecê-lo, Sr. Benson.
— Lucas — ele sugeriu, envolvendo a mão delicada, de dedos longos e afilados, entre as suas. — Por favor, me chame de Lucas.
— Certo Lucas. Pode me chamar de Vivian.
— Vivian... — ele repetiu, com evidente prazer. — Seria precipitado de minha parte pedir para que nos víssemos outra vez, Vivian?
— Não — respondeu subitamente séria. — Gostaria muito de conhecê-lo melhor, Lucas...
— Poderíamos, então, marcar um encontro... Um jantar, talvez? — perguntou, tomado por um misto de ansiedade e alegria.
— Não me entenda mal, por favor. Mas o momento não é propício.
As palavras de Vivian trouxeram à mente de Lucas a cena que ele presenciara no semáforo, horas antes. Então, não havia se enganado ao julgar que ele estivera chorando. Evidentemente, devia estar com algum problema de ordem emocional... E qualquer ação precipitada poderia romper a delicada ponte que aquela breve conversa havia estabelecido entre ambos.
— Sem problemas — ele disse, por fim. Tirando a carteira do bolso, pegou um cartão e entregou-o a Vivian. — Quando você achar que chegou o momento, por favor, ligue para mim.
— Eu farei isso. Até qualquer dia, Lucas.
— Até mais, Vivian.
Ela entrou no carro e deu a partida. Lucas fechou a porta com delicadeza e afastou-se; alguns passos, para que Vivian manobrasse.
O carro deixou o estacionamento, lentamente, sob o olhar pensativo de Lucas.
Lucas diminuiu a marcha do carro, logo depois de transpor Boulevard Bridge, a ponte sobre o rio James.
O imóvel à venda ocupava quase meio quarteirão. Lucas tinha enviado alguns especialistas, alguns dias atrás, para inspecionar as condições do prédio. Estava interessado em comprá-lo, mas antes queria fazer uma verificação acurada, pessoalmente.
Estacionou o carro e atravessou a rua, entrando no saguão escuro e mal conservado do prédio.
O porteiro, que parecia tão velho e desgastado quanto á construção, ergueu os olhos do jornal que estava lendo e fitou Lucas através das lentes grossas dos óculos.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa? — perguntou, com visível desânimo.
— Sou Lucas Northon Benson, senhor. Vim conhecer o imóvel.
— Trouxe a autorização da administradora?
Lucas mostrou um cartão rubricado, que o porteiro examinou displicentemente:
— Está certo. Mas não posso acompanhá-lo em sua visita, pois estou sozinho. O outro porteiro saiu para tomar um lanche.
— E haveria algum problema, se eu desse uma olhada no imóvel?
— Nenhum. A maioria das salas está desocupada e aberta. O senhor pode ficar à vontade.
— O elevador funciona bem?
— De certo modo, sim — o porteiro respondeu, com uma expressão de cansaço.
— O que o senhor quer dizer com "de certo modo"?
— Quero dizer que é preciso conhecer bem o elevador, para fazê-lo obedecer aos comandos. Por exemplo: ele não para em alguns andares ímpares, a menos que o senhor pressione o botão de emergência, no momento certo. — Com um gesto vago, o porteiro concluiu: — Em resumo, vá pelas escadas que é mais seguro.
— Está bem — disse Lucas, aborrecido, enquanto se afastava. O primeiro piso era exatamente como mostrava a planta do edifício. E Lucas percorreu as salas, sem grande interesse.
Seria muito fácil remover as paredes intermediárias e conseguir um espaço mais amplo, sem abalar a estrutura, ele considerou, por um momento.
O segundo e terceiro andar não apresentaram grandes surpresas. Mas o quarto andar e a laje, tal como já haviam dito os especialistas, precisariam de reforço para suportar a cobertura com piscina, que Lucas pretendia construir, caso adquirisse o imóvel.
Do alto da laje, contemplou a ponte e o rio James, que refletia a luz intensa do sol.
A paisagem que dali se descortinava era magnífica, ele constatou.
Agora entendia por que seu pai insistira para que ele conhecesse o prédio pessoalmente, antes de descartar a possibilidade de compra.
O celular vibrou no bolso do casaco de Lucas e ele atendeu, sem desviar os olhos da bela paisagem.
Quem ligava era Norma, sua irmã caçula. Queria lembrá-lo do almoço que haviam marcado, no Restaurante Lou's, às duas da tarde. Norma acabara de chegar da Europa e estava ansiosa para revê-lo.
Confirmando o encontro, Lucas desceu as escadas, pacientemente. Estava conseguindo manter o humor em alta, desde a conversa com Vivian, no estacionamento, quatro dias atrás.
Algo, na jovem violinista, despertara nele um sentimento que não experimentava havia muito tempo... Uma excitação que lembrava os primeiros amores da adolescência, uma espécie de alegria sem causa, que era como um renovar de esperanças.
Tentando entender o porquê daquela forte atração, Lucas reconhecia que a beleza física de Vivian o impressionara bastante. Isso não havia como negar. Mas, por outro lado, a beleza era apenas mais um atributo da personalidade apaixonante de Vivian. Tudo, naquela mulher, parecia vibrar em perfeita harmonia: a voz, o movimento dos quadris ao andar, o riso claro, a sensibilidade, o senso de humor, tudo nela era por demais agradável.
Precisava revê-la mesmo que fosse apenas para constatar a realidade de sua existência.
Tão logo formulou esse pensamento, Lucas lembrou-se das palavras de Vivian, ao recusar seu convite para um encontro: Não me entenda mal, por favor. Mas o momento não é propício.
Lucas havia sido sincero, ao aceitar a recusa. Mas, com o passar dos dias, começava a perceber que era impossível continuar esperando que Vivian se decidisse a estabelecer contato.
Pensando em como realizar seu desejo, Lucas deixou o prédio e, entrando no carro, partiu ao encontro da irmã.
Aos vinte anos de idade, Norma tinha um histórico precoce, que prometia surpresas e sobressaltos para a família e a sociedade. Atriz e bailarina, fora capa de revista numa incursão pelo mundo da moda, onde trabalhara por pouco tempo.
Oito anos mais jovem que Lucas, Norma recebera dele um apoio incondicional à sua personalidade turbulenta e polêmica, que mantinha os paparazzi locais sempre atentos as suas aprontasses.
A relação deles era carregada de ternura e compreensão. Apesar da diferença de idade, não havia entre ambos nenhuma restrição ao compartilhar dúvidas e problemas pessoais, mesmo os mais íntimos. Em resumo, além de irmãos, eram grandes amigos.
Entrando na North Laurel Street, dirigindo seu carro, Lucas antecipava o prazer de reencontrar a irmã, depois de três meses de separação.
Ao entrar no restaurante, avistou-a sentada a uma mesa nos fundos do salão, saboreando uma taça de vinho branco.
Norma trazia os cabelos bem curtos, em estilo punk, pintados de roxo. Sem nenhuma maquiagem no rosto, a não ser um batom róseo, ela vestia uma blusa Dior de seda, com estampas que combinavam à sua maneira, com uma saia preta, justa e curta. Botas pretas, de cano longo, cobriam-lhe as pernas bem torneadas, quase até os joelhos.
Sorrindo interiormente, Lucas aproximou-se da mesa. As concepções estéticas da irmã mudavam sempre, de acordo com seu estado de espírito. Pelo modo como Norma estava vestida, pelo corte e cor dos cabelos, Lucas podia deduzir facilmente que a encontraria combativa e um tanto anárquica, depois dos três meses na Europa.
— E então? — disse ele, inclinando-se para beijá-la. Recorrendo ao apelido carinhoso com que a tratava desde muito tempo, perguntou: — Como está meu pequeno esquilo de dentes aguçados?
— Farta do velho mundo e de sua civilização decadente — Norma respondeu, levantando-se para abraçá-lo. Depois, fitando-o com uma expressão crítica, disse: — Você emagreceu... Muito trabalho?
— Nem tanto. — Lucas sentou-se em frente a ela, sorridente e feliz. — E então, quais são as novidades?
— Não muitas. Abandonei o curso de dança em Londres e fui para Estocolmo, com um grupo de rock. Lá aprendi a tocar um instrumento primitivo, chamado berimbau, com um percussionista brasileiro. Diverti-me um bocado, fazendo interferências na banda com o tal instrumento. — Norma sorriu, vagamente.
Retribuindo o sorriso, Lucas perguntou:
— Está feliz por voltar para casa?
— Aliviada. Sabe essa viagem não foi lá muito agradável. Ou, melhor dizendo, não gostei muito do que vi por lá.
Um garçom aproximou-se para receber o pedido de Lucas que, depois de consultar Norma, ordenou o almoço. O rapaz se afastou e então, Lucas disse:
— Espero que a chegada da primavera, em Richmond, ajude você a se sentir melhor. Seja bem-vinda ao lar, esquilinho.
— Obrigada, querido. É bom estar de volta. Mas já chega de falar de mim. Conte-me sobre você... Como vai seu caso com Lisa Carter?
— Acabamos de romper.
— Já não era sem tempo. Ela deve ter feito uma cena... Lisa é tão teatral.
— De fato. O pior é que mamãe tomou suas dores e veio com aquele velho discurso sobre minha idade e a urgência de constituir família...
— Só de imaginar você casado com alguém como Lisa me dá arrepios.
— Ora, Norma... — ele protestou. — Ela não é tão má assim.
— Claro que não. Se fosse má, seria alguma coisa... E Lisa não é nada.
— Você está sendo cruel — Lucas a advertiu. — Todos os seres humanos têm um lado positivo.
— Para ser humano é preciso ter sentimentos verdadeiros, dos quais Lisa carece. Não sei como você pôde se envolver com ela.
— Curiosidade, eu creio.
— Valeu á pena?
— Quero acreditar que sim.
— Isso é o mesmo que dizer não.
— Oh, por favor, Norma... Vá com calma — pediu, sorrindo.
— Está bem, deixemos Lisa em paz, com sua estupidez congênita. Conte-me mais sobre você... Conheceu alguém interessante, ultimamente?
— Por incrível que pareça, sim.
Os olhos de Norma fixaram-se no rosto do irmão, com indisfarçável curiosidade.
— Muito interessante?
— Mais que isso — ele afirmou com um olhar sonhador. — Ela é adorável.
— E esse fenômeno tem nome?
— Vivian — Lucas respondeu, com visível emoção. — Vivian Alden McAllister.
— Eu conheço uma McAllister, ligada aos esportes radicais — disse Norma. — Seria ela?
— Não... — Lucas meneou a cabeça. — Não creio. A pessoa a quem me refiro toca violino como um anjo. Aliás, ela está substituindo Klaus Schneider na orquestra da Universidade.
— E quantos muitos anos têm essa beldade... Quarenta?
— Vinte e poucos — ele respondeu, mantendo a expressão de encanto no rosto.
— Espere um pouco... Você quer dizer que está interessado em uma daquelas meninas-prodígio que dormem abraçadas com um violino desde os seis anos de idade?
Lucas riu, divertido:
— Duvido que Vivian tenha esse hábito. É equilibrada demais para isso.
— Vocês já saíram juntos?
— Não. Na verdade, só conversamos uma vez, no estacionamento da prefeitura.
— E você deixou escapar essa preciosidade?
— Tentei marcar um encontro, mas Vivian me pediu tempo. Acho que está passando por algum problema de ordem emocional.
— Mas por que você aceitou a recusa?
— Não havia outra saída — explicou, aborrecido. — Só que não consigo deixar de pensar em Vivian. Ela está em minha mente o tempo todo.
— Nesse caso, faça alguma coisa — sugeriu Norma.
— Não posso. De algum modo, concordei em esperar que ela me ligasse — confessou, com pesar.
Era evidente a ansiedade que transparecia nas palavras e gestos de Lucas, ao menos para Norma, que o conhecia tão bem.
— Espere um momento! — ela exclamou, de súbito, tirando o celular da bolsa. — Talvez haja uma ligação entre a McAllister esportista, que conheço, e a sua violinista.
— O que você vai fazer? — Lucas perguntou, preocupado.
— Uma sondagem, querido. Confie em mim. — Consultando a agenda, Norma teclou um número e logo foi atendida. — Olá, Chantal, como vai? Aqui é Norma Benson, lembra-se de mim? Sim, nós nos conhecemos na festa dos Lowers... Isso mesmo. Cheguei ontem à noite. Pois é... Prefiro me entediar aqui em Richmond, mesmo... Não, ainda não tive tempo de saber das novidades. Não me diga! Mas é claro que podemos nos encontrar, para bater um papo... Sem dúvida! Diga-me, Chantal, você é a McAllister que toca violino? — Norma piscou um olho para Lucas, com uma expressão de alegre cumplicidade. — Ah, então é sua irmã... Vivian? Não. Não a conheço, mas gostaria... Como? No Watts Hall, hoje à noite... A que horas? Oito? É uma pena, mas nesse horário estarei jantando com meus pais. Acabei de chegar, você sabe... Mas podemos nos encontrar no Plant Zero, às onze. O que você acha? Certo, está combinado... Um beijo. — E Norma desligou.
— E então? — Lucas perguntou eufórico. — O que foi que ela disse?
— Sua princesa é a irmã mais velha de minha conhecida, Chantal Alden McAllister. Chantal é uma espécie de gerente da Ann Alden, á grife de moda jovem que pertence à mãe.
— Já ouvi falar — Lucas afirmou impaciente. — E o que mais?
— Vivian vai se apresentar hoje à noite, às oito horas, com o quarteto de cordas da Universidade de Richmond.
— Onde?
— No Watts Hall, do Union Theological Seminary. — Com uma expressão triunfante, Norma sorriu: — Viu como foi simples descobrir onde encontrar sua musa?
— Você é o máximo, esquilinho. — Lucas sorriu de volta. Pegando o celular do bolso, ligou para sua secretária: — Nancy, aqui é Lucas. Diga-me; nós recebemos algum convite do Union Theological Seminary, por esses dias? Por favor, verifique e me dê um retorno o mais rápido possível. Obrigado.
O garçom aproximou-se, com o almoço. Lucas e Norma comeram com apetite, num clima alegre e agradável.
O celular de Lucas chamou, enquanto tomavam café. Ele atendeu.
— Pronto? Sim, Nancy, pode falar... Você fez o quê? — Voltando-se para Norma, comentou: — Nancy deu o convite para a cunhada, que adora música erudita. — E falou novamente, ao celular: — Escute, não é preciso incomodar sua cunhada. Ligue para o Union Theological Seminary em meu nome e peça outro. Invente uma desculpa coerente, se necessário... Não, Nancy, eu não estou aborrecido, de modo algum. O importante é que o convite esteja em meu apartamento, até as sete da noite... Certo, Nancy. Até logo. — E Lucas desligou.
— Então você vai tomar a iniciativa? — Norma perguntou, já prevendo a resposta.
— Sem dúvida. Eu não perderia essa oportunidade, por nada no mundo.
— Desejo-lhe boa sorte, querido.
— Obrigado, Norma. Sua ajuda foi preciosa.
— É para isso que servem os irmãos — ela retrucou, sorrindo.
— Só mais uma coisa...
— Sim?
— Você vai mesmo se encontrar com a irmã de Vivian, no Plant Zero, hoje à noite?
— É o que pretendo. Por quê?
— Seria muito pedir a você que estreitasse relações com ela?
— De modo algum. Chantal é uma pessoa interessante, muito inteligente, bem-humorada e divertida.
— Ótimo. Que bom poder contar com você.
Fazendo um sinal ao garçom, Lucas pediu a conta.
Pouco depois, os dois saíram do restaurante. Enquanto caminhavam até o estacionamento, Lucas perguntou:
— Você pretende ficar em Richmond, por algum tempo?
— Uma semana, no máximo. Quero pegar os últimos dias de frio, nas montanhas. — Subitamente inspirada, Norma sugeriu: — Poderíamos combinar um fim de semana, em Blue Ridge. O que você acha?
— Seria divertido. Faz tempo que não vou a Blue Ridge.
— Então, pense nisso com carinho...
— Está bem, querida.
Abraçaram-se afetuosamente. Depois partiram cada um em seu carro.
Às sete e quinze da noite, Lucas saiu do apartamento dúplex, que habitava temporariamente, no centro da cidade. Desceu até a garagem e saiu, dirigindo, rumo ao Ginter Park.
Estava vestido a rigor, usando um smoking impecável e um, sobretudo longo, que a noite daquele final de inverno ainda exigia.
Em sua mente desenhava-se uma cena adorável: a expressão surpresa nos olhos de Vivian, ao reconhecê-lo entre o público do concerto. De sua parte, Lucas não pretendia fingir uma feliz coincidência naquele encontro. Queria deixar bem claro a Vivian seu real interesse por ela.
As luzes do Watts Hall estavam todas acesas, como nos bons dias de festa. A iluminação, disposta ao redor, valorizava a impressionante arquitetura gótica, vitoriana, que datava do final do século XDC.
Lucas estacionou no pátio, entre dezenas de outros carros, e caminhou em direção à escadaria do Watts Hall, a passos largos. Duas senhoras muito elegantes estavam ao lado da recepcionista, que recebeu o convite das mãos de Lucas com um sorriso gentil. Uma das senhoras encarregou-se do, sobretudo de Lucas. A outra conduziu Lucas ao salão nobre onde seria realizada a apresentação, num palco improvisado.
Recusando delicadamente a indicação de um lugar na oitava fila, Lucas subiu a escada lateral e foi sentar-se numa cadeira estofada, na frisa do primeiro andar.
Dali, ele pensou, teria uma visão privilegiada do palco. Veria de perto o quarteto e a mulher que dominava sua mente havia vários dias.
Às oito horas, pontualmente, o apresentador anunciou o Quarteto de Cordas, que entrou sob uma chuva de calorosos aplausos.
As pulsações do coração de Lucas aceleraram sensivelmente, quando Vivian entrou no palco, junto com três outros músicos. Ela estava belíssima, num vestido preto, longo, franzido na cintura e nas mangas, que valorizava seu corpo esbelto e jovem. Trazia os cabelos soltos, que pareciam ainda mais brilhantes, à luz dos refletores. Os lábios muito vermelhos, entreabertos, exibiram dentes brancos e perfeitos quando ela sorriu, agradecendo os aplausos. Seus olhos verdes percorreram a platéia, subindo gradativamente à frisa do primeiro andar, onde Lucas se encontrava, tomado por uma forte emoção. Nada, no comportamento de Vivian, demonstrou que ela o houvesse reconhecido, entre tantos rostos sorridentes e atentos.
Os quatro músicos sentaram-se em frente às estantes e, a um sinal do violoncelo, iniciaram um quarteto do sensível músico norte-americano, Randall Thompson.
Lucas cultivava, desde a infância, o costume de ouvir bem e com prazer. Tinha um gosto refinado e uma cultura musical invejável. Mas nunca lhe ocorrera unir a sensação espiritual que a música lhe proporcionava à sensualidade que a imagem de Vivian lhe despertava. Era um prazer novo... Inigualável.
No momento em que os aplausos saudaram o final da apresentação, Lucas sentiu-se bruscamente arrancado de seus devaneios. Surpreso, consultou o relógio de pulso que, incrivelmente, marcava nove horas e cinco minutos.
Lucas meneou a cabeça, como que se recusando a acreditar nos ponteiros do relógio.
Lembrava-se vagamente de ter ouvido peças de grandes compositores durante a apresentação, tais como Brückner, Albinoni, Haêndel, Brahms... Mas o que ocorrera com o tempo?
A pergunta ficou sem resposta, enquanto Lucas tentava se refizer da surpresa. Erguendo-se, começou a bater palmas, juntando seus aplausos aos da platéia. Com um olhar intenso, observou Vivian agradecendo ao público, inclinando a cabeça, num movimento gracioso. Os outros músicos fizeram o mesmo, mas Lucas não se deu conta disso... Seu olhar era apenas para Vivian, para a aura de beleza e força que dela emanava.
O quarteto deixou o palco, em direção ao saguão.
Sem perda de tempo, Lucas desceu até o andar térreo, procurando se colocar numa posição privilegiada, que lhe permitisse observar a porta por onde os músicos sairiam sem dar muito na vista.
Quando Vivian surgiu na porta, exibindo um sorriso simpático e acolhedor, Lucas foi o primeiro a saudá-la, estendendo a mão e dizendo:
— Parabéns, Vivian... Foi uma apresentação surpreendente.
Sem demonstrar surpresa, ela aceitou o cumprimento com naturalidade.
— Obrigada, Lucas. Que bom vê-lo aqui.
Com o canto dos olhos, ele percebeu um grupo que se aproximava, com o evidente objetivo de abordar Vivian. Com uma audácia que chegou a surpreendê-lo, propôs:
— Gostaria muito de tomar um cálice de vinho com você, num local mais tranqüilo. O que acha da idéia?
Ela fitou-o nos olhos, por alguns segundos, e Lucas sentiu todo seu corpo se tencionar, diante da possibilidade de uma recusa.
— Por favor... — ele insistiu, com a força do encanto que o dominava.
O sorriso simpático que Vivian trazia no rosto foi se iluminando gradativamente, como um botão que se abrisse, em flor, sob o calor do sol. Num tom de cumplicidade, ela disse:
— Encontre-me no estacionamento, em quinze minutos.
Antes que Lucas pudesse esboçar uma reação, o grupo que se aproximava envolveu ambos, num burburinho alegre e excitado. Com um sorriso satisfeito, Lucas afastou-se para pegar seu, sobretudo, na portaria.
Lucas mal podia acreditar em sua boa sorte ao ver, pelo retrovisor, que Vivian o seguia em seu carro pelas ruas de Richmond. Pouco antes, no estacionamento do Watts Hall, ela tentara adiar o encontro, alegando um justificado cansaço após o concerto. Mas ele soubera insistir, com branda determinação. Assim, acabara vencendo as últimas resistências de Vivian.
— Então, deixo à sua escolha o local do encontro — ela dissera, por fim.
E Lucas, subitamente inspirado, sugerira que Vivian o acompanhasse, em seu carro.
Agora, Lucas seguia em direção a um bar e restaurante não muito conhecido, em Chamberlayne Heights. Mantinha a velocidade baixa e sinalizava com prudente antecedência, antes de fazer curvas ou qualquer outra manobra.
Estava ansioso e divertia-se com isso. Era como se flagrasse a si mesmo comportando-se como um adolescente em seu primeiro encontro... Em resumo, sentia-se ótimo, com a alma renovada.
Estava farto do jogo repetitivo da caça e da conquista, que prometia sempre mais do que na realidade tinha a oferecer. Passada a excitação dos primeiros dias, aqueles relacionamentos deixavam em sua alma um vazio profundo, causado pela frustração e pelo tédio. Era desanimador.
Por isso, a expectativa daquele encontro o mantinha eletrizado. Sua intuição, somada à experiência, dizia-lhe que com Vivian tudo seria diferente. Lucas podia sentir isso no ar. E mal conseguia esperar para viver momentos que se anunciavam... Momentos que seriam, sem dúvida, inesquecíveis.
Procurando controlar os excessos de sua imaginação, ele contornou o Tree Lakes Park e sinalizou à direita, entrando numa estrada particular, sempre seguido de perto pelo Honda de Vivian.
Uma pequena placa de madeira, iluminada por um quebra-luz, trazia esculpido em auto-relevo o nome do estabelecimento: Kind of.
Diminuindo a marcha, Lucas entrou no local. Havia cerca de vinte carros estacionados, sob uma fileira de arbustos.
Lucas aguardou que Vivian acabasse de estacionar e então foi á seu encontro.
— Teve dificuldades em me seguir? — perguntou.
— De modo algum — ela respondeu.
Lucas ofereceu o braço, que Vivian aceitou com naturalidade. Assim, entrou no rústico ambiente, Lucas escolheu uma mesa a poucos metros da pista de dança, onde alguns casais se moviam, lentamente, ao som do blues.
— O que você vai beber? — ele perguntou, assim que se acomodaram.
— Algo suave e refrescante — Vivian respondeu. — Apesar desta noite fria, estou com bastante sede.
Ele sorriu, com aquiescência, enquanto movia um pequenino abajur, no centro da mesa. Na verdade; tratava-se de uma graciosa miniatura de um carroção coberto de lona, como os dos antigos pioneiros.
Um rapaz se aproximou, usando um colete de veludo, verde-escuro como as calças, sobre uma camisa branca de mangas compridas, dobradas até os cotovelos.
— O que vai ser? — o rapaz perguntou, com intimidade e simpatia.
— Uma jarra de cidra, na temperatura ideal — Lucas respondeu. — E também uma bandeja de frios.
O jovem garçom não tardou a voltar com o pedido. Colocou as taças e a tábua de frios no centro da mesa, ao lado do pequenino abajur. Depois, com um floreio gracioso, verteu a bebida espumante nas taças. Em seguida, depositou a jarra de louça branca ao lado da tábua de frios.
— Mais alguma coisa? — perguntou.
— Por enquanto é só, obrigado — Lucas respondeu.
— E quanto a essa cidra... Parece deliciosa.
— Totalmente. — Lucas ergueu sua taça, propondo um brinde.
Vivian o imitou, os olhos fixos nos dele. Ao sorver delicadamente o líquido espumante, ela não conteve uma exclamação de prazer:
— Que sabor incrível!
— Também acho. Trata-se de uma receita de família, fazendo o vinho de cidra passar por inúmeras filtragens, até conseguir esse resultado.
— É delicioso. — Vivian tomou todo o líquido dourado da taça. — Puxa; eu estava realmente sedenta. Você pode me servir um pouco mais?
— Sem dúvida. Mas, antes, seria conveniente você provar os frios — Lucas sugeriu. — Essa bebida pode ser muito suave e refrescante, mas tem um teor alcoólico respeitável.
 conversa transcorria de modo fácil e agradável. A cultura de Lucas era ampla, baseada em suas experiências pessoais e no vasto conhecimento que havia adquirido, ao longo dos anos.
Com evidente admiração, Vivian o escutava discorrer sobre os assuntos mais diversos, num tom leve, coloquial, que convidava à cumplicidade.
Lucas, por sua vez, encantava-se com a percepção extraordinária e o raciocínio lúcido daquela jovem mulher, que demonstrava uma simplicidade e um equilíbrio impressionantes.
Os músicos da casa formavam um trio constituído de contrabaixo, piano e bateria. Tocavam muito bem e de maneira descontraída, improvisando a todo o momento. O convidado da noite era um conhecido guitarrista, em visita à cidade.
Vivian acompanhava o ritmo dolente da música, com um leve movimento de cabeça.
— Você quer dançar? — Lucas convidou, a certa altura.
Ela hesitou, antes de erguer-se, com um sorriso encantador.
Lucas estendeu-lhe a mão.
A pista era de tábuas largas e Lucas e Vivian deslizou por ela, em passos cadenciados e suaves, como a música que a tudo envolvia.
— Você dança bem — ele constatou, logo nos primeiros passos.
— Gosto de dançar — Vivian respondeu, com simplicidade. — É outra forma de me expressar, na música.
Ele sorriu, atraindo-a para mais perto de si. Aquele era o primeiro contato físico, verdadeiro, entre ambos. E, tal como Lucas supunha, tudo se encaixava perfeitamente: as mãos, a cintura delgada de Vivian na curva de seu braço, os corpos se tocando com delicada precisão...
Emocionada, Vivian pousou o rosto no peito de Lucas e deixou-se ficar assim, agradavelmente envolvida em seu calor. Era paz o que ela encontrava nos braços daquele homem.
Lucas parecia, simplesmente, o homem com quem ela sempre sonhara... O homem a quem procurara, em vão, no riso e nos olhos de tantos outros, sem nunca tê-lo encontrado.
Agora, Vivian compreendia que o momento tão desejado chegara... Mas só podia contar com a intuição, já que sua experiência no trato íntimo com os homens era pequena, quase insignificante.
E a intuição lhe dizia que o momento não era de resistir ao doce encanto que a embalava... Nem tampouco de se entregar, deixando a Lucas á responsabilidade de conduzir as ações futuras. O mais desejável seria deixar fluir o relacionamento, com a naturalidade das coisas que têm que acontecer como a primavera depois do inverno, como as flores e frutos despontando numa árvore, no tempo certo.
Aos vinte e três anos, Vivian não sabia o que era o amor, mas sentia-o dentro de si, como uma radiosa energia. E, em Lucas, aquela energia se ampliava num crescendo que varria toda e qualquer dúvida que pudesse existir em sua mente.
O trio musical diminuiu a intensidade sonora dos instrumentos, criando um campo harmônico propício ao guitarrista convidado, quê deu asas a seu inegável talento, num solo magnífico de Embraceable You, de Charlie Porter.
— Eu amo essa música — disse Vivian, erguendo o rosto para Lucas.
Sem duvidar um instante do que fazia, Lucas beijou-a, terna e delicadamente.
— Deste momento em diante, esta será a nossa música — murmurou, antes de voltar a beijá-la.
Uma onda de prazer os envolveu. Os corpos se estreitaram, buscando-se com natural segurança, movendo-se como se soubessem, desde sempre, que encontrariam um no outro o complemento exato e necessário que sempre lhes faltara.
Os olhos de Vivian turvaram-se de lágrimas... E ela voltou a apoiar o rosto no peito de Lucas.
— O que foi? — ele perguntou, sorrindo.
— Você demorou tanto a chegar — ela conseguiu dizer, com a voz rouca de emoção.
— Estava procurando por você, Vivian... Acredita?
— Eu sei. Nunca duvidei que esse momento acabasse se tornando realidade. Mas a espera foi tão longa...
Lucas estreitou-a ainda mais, como se quisesse fundir seu corpo no de Vivian. Uma onda de paixão os unia, poderosamente, isolando-os do resto do mundo, de tudo o que não fizesse parte daquele encanto.
Quando a música terminou, num trêmulo acorde da guitarra, Lucas e Vivian permaneceram abraçados, ainda por algum tempo, na pista que se esvaziava lentamente.
De mãos dadas, voltaram à mesa.
— Vocês querem jantar, agora? — perguntou o jovem garçom, aproximando-se.
Lucas consultou Vivian com um olhar interrogativo. Ela negou com um leve movimento de cabeça que fez seus cabelos negros dançar em torno do rosto corado pela emoção do momento.
— Por agora, não queremos nada. Talvez mais tarde... —Lucas respondeu, vagamente.
— O próximo show vai começar em quinze minutos. E só voltaremos a atender as mesas daqui a quarenta e cinco minutos — o garçom avisou. — Então, pense bem...
Lucas voltou a olhar para Vivian, que consultava o relógio de pulso.
— Sinto muito, mas preciso ir — disse penalizada. — Tenho ensaio às sete da manhã.
Com um suspiro resignado, Lucas pediu a conta ao garçom e tomou a mão de Vivian, acariciando-a docemente.
— É uma pena que você não possa ficar. A noite está apenas começando...
— Também sinto Lucas. Mas a disciplina faz parte da vida que escolhi — ela respondeu, com meiguice. — Poderemos voltar outra noite, se você quiser.
— Claro que sim.
O garçom aproximou-se com a conta, que Lucas rubricou sem olhar. Levantando-se, estendeu a mão a Vivian.
Já na porta, enlaçou-a pelos ombros, beijando-lhe os cabelos com ternura. Assim, unidos como se formassem um só corpo, caminharam até o estacionamento, sob os arbustos.
Lucas esperou que Vivian abrisse a porta do carro e então a beijou com ardor.
— Quando poderei vê-la de novo? — perguntou com indisfarçável ansiedade.
— Ligarei para você.
— É uma promessa?
— Sim.
Ambos se olharam com intensidade, de mãos dadas.
Com um gesto delicado, mas decidido, Vivian desprendeu-se e acomodou-se diante do volante. Fechando a porta, desceu o vidro e disse:
— Não me lembro da última vez em que tive uma noite assim... Tão perfeita. Obrigada, Lucas.
— Não há porque agradecer, Vivian. Esta noite foi muito especial para mim, também.
Ela sorriu, deu a partida e afastou-se, desaparecendo na curva da estrada.
Um vento frio e úmido balançou os ramos desfolhados das árvores em tomo. Era como se o inverno que se findava quisesse resistir, ainda, à chegada da primavera.
Lucas andou em direção a seu carro, pensando na palavra felicidade e seu significado. Ele já havia passado por um processo de descrença e desilusão que o levara a empreender um ciclo de viagens pelo mundo, em busca de uma resposta para suas dúvidas existenciais. A conclusão a que chegara era simples e translúcida: o que realmente faltava ao ser humano era amor, em todas as suas formas e variações possíveis.
Então, era preciso amar alguém... E esse alguém, onde estaria?
Sorrindo, Lucas entrou no carro e partiu. Ou estava muito enganado, e ele poderia jurar que não, ou tinha acabado de encontrar aquele alguém que tanto procurara.
Vivian acordou irritada com o zumbido insistente do relógio digital, ao lado da cama. O mostrador indicava seis horas da manhã. Lá fora, ainda estava escuro.
Vivian bocejou. Todo seu corpo parecia reclamar devido às horas de sono insuficientes.
Entorpecida, ela caminhou até o banheiro. Ligando a ducha, entrou sob o forte jato de água morna. Após alguns minutos, já se sentia mais revigorada.
Depois de um breve desjejum, Vivian aprontou-se para sair. Passava das seis e meia, quando partiu, rumo ao ginásio de esportes, para o último ensaio geral da orquestra.
Durante o percurso, Vivian teve tempo de acalentar as doces lembranças da noite anterior, que lhe voltavam à mente com insistência. Analisando cada imagem, cada momento, ela encontrava significados profundos nos gestos, nas palavras, sorrisos e olhares trocados com Lucas.
Como num quebra-cabeça, Vivian ia compondo o homem Lucas, que viera despertá-la de um longo sono de solidão e espera. Agora, sabia que já não estava só... E essa certeza, íntima e poderosa, tinha o dom de transformar as horas, que passaria sem vê-lo, numa expectativa leve e feliz.
O rápido trajeto dentro do campus nunca lhe pareceu tão breve. Logo Vivian estava entre os músicos da orquestra, afinando o violino e pronta para o prazeroso desafio de dar vida à obra de um mestre da música barroca: Vivaldi, conhecido no seu tempo como Padre Rosso, por ser padre, italiano, e ter os cabelos ruivos, quase vermelhos.
O ensaio geral foi longo, repetitivo, rigoroso, com um pequeno intervalo de quinze minutos, por volta das nove e meia. Depois o ensaio recomeçou, para encerrar-se ás onze e quarenta e cinco, quando o maestro, dando-se por satisfeito, liberou a orquestra e técnicos para o almoço.
Em companhia de vários músicos, Vivian dirigiu-se ao refeitório, onde quase nada comeu.
Sentia-se cansada e um tanto indisposta. Uma leve dor de cabeça a aborrecia. A concentração exigida pelo ensaio geral desgastara suas energias, já abaladas pelas poucas horas de sono. Assim, ela resolveu ir para casa e repousar um pouco.
Quando chegou, a casa estava silenciosa e vazia, como era de se esperar, àquela hora.
Percorrendo com os olhos a estante da sala, escolheu um livro ao acaso e subiu para o quarto.
Acomodando-se com um misto de alívio e prazer sob os lençóis macios, Vivian começou a ler. Mas logo depois o livro caiu de suas mãos, enquanto ela mergulhava num sono profundo e reparador.
Passava das cinco horas, quando acordou espontaneamente, sentindo-se leve e bem disposta.
Alcançando a bolsa, sobre o criado-mudo, retirou de dentro o cartão que Lucas havia lhe dado, no estacionamento da prefeitura. Era um retângulo; cor de marfim, tendo ao centro seu nome gravado em itálico, e o número de um telefone. Nada mais.
Bem ao estilo dele, Vivian pensou, com ternura, tocando as letras com os dedos numa suave carícia.
O desejo de ouvir a voz grave e bem modulada de Lucas dominou-a por completo. Num impulso, ela pegou o celular e digitou o número impresso no cartão.
Na terceira chamada, ele atendeu:
— Lucas falando.
— Olá, aqui é Vivian... Você está ocupado?
— Vivian... Que bom ouvir você. Na verdade, estou na laje de um prédio, perto de Boulevar Bridge, mas podemos falar sem problemas.
— Liguei porque senti saudade de ouvir sua voz — ela confessou, com naturalidade.
— Não deixei de pensar em você, nem por minuto. Onde você está?
— Em casa.
— Estudando?
— Não. Acabo de acordar. — E ela explicou: — A noite de ontem, e o ensaio geral da orquestra, hoje de manhã, me deixaram exausta. Eu estava precisando, com urgência, de mais algumas horas de sono.
— Compreendo. E agora, sente-se melhor?
— Ótima.
— Que bom, porque eu estava pensando... — ele fez uma pausa.
— Sim?
— Você tem algum compromisso para esse fim de tarde?
— Até ás dez da noite, estarei livre como o vento — ela respondeu.
— Então, que tal assistirmos a um bom filme? Há uma mostra de cinema sul-americano, no cine Maverick, que parece muito interessante. O que você acha?
— Perfeito. Faz tempo que não vou ao cinema.
Ele riu... E a vibração daquele riso franco preencheu Vivian com um calor intenso.
— E então, como ficamos? Vamos pegar a sessão das seis?
— Vamos — ela respondeu, com entusiasmo. — Podemos nos encontrar ás quinze para as seis, na porta do Maverick?
— Combinado.
Ás vinte para as seis, Vivian estava no amplo saguão do cine Maverick, contemplando os cartazes coloridos que, em seqüência, ofereciam ao público um resumo da mostra de cinema sul-americano.
Um toque em seu ombro fez com que ela girasse sobre os pés. Lucas estava a um passo de distância, exibindo um largo sorriso no belo rosto e trazendo uma rosa branca na mão.
— Para você... — Ele ofereceu-lhe a flor, com um intenso brilho nos olhos azuis.
— Oh, Lucas, quanta gentileza. — Vivian aspirou o perfume sutil da rosa, deixando que as pétalas acariciassem seu rosto por um momento.
— Você está linda — disse Lucas, com a respiração suspensa.
Vivian olhou para o reflexo de ambos no espelho que ocupava uma grande parte da parede lateral do saguão... E gostou do que viu. Formavam um casal harmônico, além de muito bonito.
Lucas usava uma jaqueta cor de camurça sobre a malha branca, de gola role, e jeans. Parecia muito jovem, naquele traje esporte. Vivian vestia um macacão, também jeans, sobre uma blusa cor de creme, bordada à mão, e um casaco feito de retalhos multicoloridos, no qual predominava o preto, como fundo. Sob os cabelos negros e brilhantes, luziam delicados brincos de prata, com pingentes de ágata.
— Você já escolheu o filme? — ele perguntou, tomando as mãos de Vivian entre as suas.
— Não. Estava esperando você chegar, para decidirmos juntos.
— O que acha de vermos um filme com humor?
Vivian aproximou-se do cartaz e leu, em voz alta:
— O Auto da Compadecida. Você já assistiu? Com um ar embaraçado, Lucas respondeu:
— Sim.
— Já sei... — Vivian concluiu. — Você leu o livro como parte do aprendizado do Castelhano...
— Do Português — ele a corrigiu. — O autor, Ariano Suassuna, é brasileiro.
— Como é que você consegue...?
— O quê?
— Pronunciar esse nome... — ela exclamou espantada.
— Suassuna? — ele repetiu, forçando os esses.
— Isso... É um nome extraordinário... Musical. Parece o vento forte, nas folhas das palmeiras.
— Ora... Não é tão difícil assim. Mas isso faz parte da história de minhas andanças pelo mundo, que deixarei num livro de memórias, quando nossos filhos já estiverem criados e nós dois formos bem velhinhos, morando numa cabana nos Apalaches... — ele disse, com um humor feliz e despreocupado.
O sorriso que iluminava o rosto de Vivian, fazendo luzir mais forte seus olhos verdes, foi se apagando lentamente... Até que uma expressão nostálgica, quase triste, dominou seus traços clássicos, de uma beleza comovente.
— O que foi? — Lucas perguntou apreensivo. — Eu disse alguma coisa errada?
— Não... — ela respondeu subitamente séria. — De modo algum.
— Vivian, eu...
— Vá providenciar os ingressos, que eu cuido da pipoca — ela o interrompeu, retomando a animação anterior.
— Então, vai haver pipocas?
— Sem dúvida alguma; cavalheiro. Onde já se viu cinema sem pipocas?
E, logo, devidamente munidos dos ingressos e de uma imensa embalagem de pipocas quentinhas, ambos entraram na sala de projeção.
Mal haviam se acomodado nas poltronas, quando o filme começou...
A paisagem árida era fortemente iluminada por um sol implacável. A cidade parecia uma maquete descuidada, feita por um arquiteto infantil. Nesse cenário surpreendente moviam-se personagens tão reais, em seus andrajos e maneirismos, que Vivian entendeu de imediato que precisava se render àquela realidade transposta à tela. E, assim, ela se entregou, mergulhando numa experiência sensorial totalmente nova, na qual os valores culturais lhe eram absolutamente desconhecidos.
A recompensa veio para Vivian, no momento em que ela compreendeu as proposições do enredo, aquela espécie de farsa onde os atores viviam a loucura dos personagens, numa interpretação genial, hilariante.
Os primeiros risos que brotaram na platéia foram nervosos, inseguros. Mas logo uma onda de alegria percorreu os espectadores... E os risos começaram a espocar, soltos, alternados e depois em cascata. O público deliciava-se, embora ainda estivesse intrigado com aquele espetáculo de humor singular e de uma incrível humanidade, que se adivinhava por trás de cada cena.
Lucas enlaçou Vivian pelos ombros. A princípio, ela não pareceu muito à vontade. Mas depois foi relaxando e, quando Lucas se deu conta disso, tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a com ardor.
Vivian sentiu seu corpo vibrar, até a última fibra. Redescobrir a textura dos lábios de Lucas contra os seus era como voltar á mais tenra infância, quando o mundo era totalmente novo e excitante. Havia uma alegria naquele prazer crescente, que transformava tudo em jogo lúdico, divertido, leve, inconseqüente.
Num dado momento, Lucas tocou os seios de Vivian sobre o tecido da blusa, procurando com a ponta dos dedos os contornos delicados das macias colinas que se enrijeciam ao contato...
A respiração de ambos se acelerava; Vivian gemeu baixinho, os lábios ainda colados aos de Lucas.
Sorrindo com ternura, ele voltou a recostar-se na poltrona. Então Vivian apoiou o rosto, corado pela emoção, em seu peito largo de esportista, onde o coração pulsava cada vez mais forte.
O filme perdera um pouco de seu encanto, ao menos para Vivian, que agora olhava as imagens vibrantes, na grande tela, com um distanciamento de sonho, como se assistisse a uma paisagem passando pela janela de um trem em movimento. Não estava alheia ao contexto da história, nem ao fantástico desempenho dos atores... Mas o centro de sua sensibilidade havia se voltado para ela própria, para a emoção que estava vivendo ao lado de Lucas.
Assim, quando as luzes de serviço se acenderam, na sala de projeção, Vivian olhou ao redor, espantada, esperando o protesto da platéia aborrecida pela interrupção do filme... Só então compreendeu que ele já havia terminado. E que o tempo se escoara, veloz e caprichoso como o sol de sua infância, que ao mergulhar no poente determinava o fim de suas melhores tardes.
— Gostou? — disse Lucas, numa voz quente, carregada de significados.
Fitando aquele rosto másculo, Vivian percebeu uma vez mais a delicadeza dos belos traços fisionômicos do homem á seu lado. Nele se encontravam, em harmonia, as forças de sua natureza rica e complexa.
— Sim — ela respondeu baixinho, pensando ainda no beijo trocado entre ambos. — É uma obra extraordinária.
Comentando algumas passagens do filme, ambos saíram do cinema. Anoitecera por completo e o frio não era de todo desagradável... Esse era um claro sinal da proximidade da primavera. Agora, o clima ficaria assim: ora os dias seriam azuis e ensolarados, ora ainda cinzentos, com muitas nuvens... Até que a primavera se imporia, de vez, sobre Richmond e região.
De mãos dadas, Lucas e Vivian caminharam em direção ao estacionamento. Então, ele sugeriu:
— Há um restaurante italiano muito bom, no próximo quarteirão. Você não gostaria de um copo de vinho e de um jantar a dois?
— Adoraria.
Os dois para lá se dirigiram, sem pressa, desfrutando a companhia um do outro.
Havia um; certo movimento, àquela hora, no pequeno restaurante. Mas o maitre conseguiu uma mesa para Vivian e Lucas, num canto privilegiado do salão, entre vasos de plantas exóticas.
— Quando você atendeu minha chamada, hoje à tarde, disse que estava na laje de um prédio — Vivian comentou num dado momento. — O que você faz na vida, Lucas, além de esgrimir e estudar línguas neolatinas?
Ele sorriu, antes de responder:
— Tenho uma empresa de empreendimentos imobiliários. Uma empresa comum, como tantas... Nada muito interessante.
— Para você, talvez. Mas eu não conheço nada sobre o assunto. — E Vivian pediu: — Fale-me sobre suas atividades.
— Basicamente, nós compramos e vendemos imóveis. Às vezes construímos ou reformamos prédios.
— E você gosta do que faz?
— Há um lado excitante, que é ganhar dinheiro num mercado competitivo e arriscado, como o imobiliário... É um jogo.
— Você não parece muito entusiasmado — ela comentou. Com um suspiro, Lucas serviu um pouco de vinho para ambos e prosseguiu:
— Sabe o que acontece? — Explicou, num tom modesto: — A princípio, queremos provar a nós mesmos do que somos capazes. Isso tem algo a ver com a auto-estima de um jovem empresário querendo se auto-afirmar, entre os grandes do setor. Mas, com o passar do tempo, tudo se torna repetitivo. Ganhar ou perder torna-se, quase sempre, uma questão de visão e cálculo.
— Por que você escolheu essa profissão?
— Venho de uma família rica, Vivian. Já faz muitos anos que senti que precisava ganhar meu próprio dinheiro, para me fazer respeitar, tanto em casa como na sociedade.
— Muitos, em seu lugar, aproveitariam a fortuna da família para desenvolver outros talentos.
Ele riu, exibindo dentes alvos e regulares, entre os lábios corados.
— Aproveitei-me bastante dessa circunstância, na adolescência, em viagens pelo mundo e em minha paixão pela esgrima. Mas sempre detestei a imagem do herdeiro esbanjador, que vive para dissipar o que foi acumulado pelos pais e avós.
— Compreendo. — Vivian sorveu um gole de vinho. — E quanto a seu interesse pelas línguas neolatinas... Aconteceu em decorrência das viagens que fez?
— Não — Lucas respondeu, com um leve meneio de cabeça. — É que, quando estudante, conheci alguns escritores portugueses que me encantaram com suas obras. Camões e Gil Vicente eram os meus preferidos. Depois, foi á vez dos espanhóis entrarem em minha vida: Cervantes, Unamuno, Lorca e tantos outros.
O garçom aproximou-se com o cardápio. Lucas deixou que Vivian escolhesse o prato para ambos: capelletti ao molho branco. Quando ficaram novamente a sós, ele disse:
— Sabe, acho que conheço você há muito tempo.
— Também tenho essa impressão — ela confidenciou.
— Talvez porque seja real... — Lucas sorriu.
— Do que você está falando?
— É que tive um professor de literatura, que me ajudou muito. Na verdade, quando eu lhe falei de minha curiosidade sobre as línguas neolatinas, ele me incentivou a estudá-las. Seu nome era McAllister... Gerald Oliver McAllister.
— Meu pai! — Vivian exclamou surpresa. — Então vocês se conhecem?
— Eu o conheço — Lucas fez questão de frisar. — Provavelmente, ele nem se lembra de mim. Mas estive em sua casa, por diversas vezes, aborrecendo-o com perguntas e mostrando-lhe minhas primeiras tentativas de tradução...
Os olhos de Vivian brilhavam de interesse. Lucas prosseguiu:
— Seu pai costumava me receber na biblioteca. Passávamos momentos agradáveis, pesquisando a origem de certas palavras e a influência do Latim e do Grego nas línguas neolatinas.
— Isso aconteceu há muito tempo?
— Dez anos, mais ou menos. Eu tinha cerca de dezoito anos. E me lembro, muito bem, de ter visto crianças brincando no jardim.
— Na certa, eu estava entre elas — Vivian concluiu mais para si mesma.
— Com certeza. Aliás, vocês me causaram uma forte impressão, na época — Lucas comentou. — Eram crianças tão comportadas e espontâneas, ao mesmo tempo...
Vivian fez um trejeito de dúvida, franzindo as sobrancelhas e curvando um pouco a cabeça para o lado, enquanto dizia:
— É que você nunca nos pegou num dia de chuva, fechados naquela casa. Muitas vezes, meu pai desistia de trabalhar e ia juntar-se a nós, já que era impossível controlar o barulho que fazíamos — ela confessou, com um sorriso nostálgico.
— Lembro-me de um garotinho loiro, que uma vez veio ao meu encontro e, olhando-me dentro dos olhos, perguntou: Você... O que é?
— Ah, esse era o Alex — Vivian esclareceu. — Alex e suas perguntas impossíveis... — Com um sorriso, ela indagou: — E o que você respondeu?
— Naturalmente, eu disse que me chamava Lucas e era aluno de seu pai. Mas ele não me deixou terminar a explicação e protestou, com certa impaciência: Não foi isso que eu perguntei... O que é você?
Vivian agora ria, colocando as costas da mão direita contra os lábios entreabertos. Seus olhos luziam e ela desfrutava ao máximo o prazer de ouvir aquele relato inesperado.
— Por um momento, tive uma espécie de vertigem em meu sistema de raciocínio — Lucas afirmou, sorrindo. — Uma criança me perguntava o que eu era... E toda a filosofia e metafísica que eu tanto estudava, na época, não podiam me auxiliar na resposta.
Vivian continuava a rir. Por fim, conseguiu perguntar:
— E como você se saiu dessa?
— Recebi o auxílio de seu pai que, parado à porta, ouvia o diálogo surpreendente com um meio sorriso no rosto. Aproximando-se, ele disse ao menino: Eu sou um homem maduro, ele é um homem jovem e você é um homem criança.
— E, com isso, Alex deixou você em paz?
— Ele disse Hãããmmm... E saiu correndo — Lucas finalizou.
— Mamãe sempre dizia que era preciso entender as razões das perguntas de Alex, antes de tentar respondê-las. Era um problema sério.
Foi á vez de Lucas desatar a rir. Depois ele comentou, de passagem:
— Nas várias vezes em que fui a sua casa, nunca cheguei a conhecer sua mãe.
— Mamãe é uma pessoa ativa e muito requisitada profissionalmente.
— Todos já ouviram falar da grife Ann Alden — disse Lucas. — Afinal, ela colocou sua marca em Richmond.
— Então você sabe que sou filha de Ann Alden?
— Sem dúvida. Mas nunca tive o prazer de conhecê-la. Vocês se parecem fisicamente?
Vivian sorriu, enquanto negava com um gesto de cabeça:
— Não. Somos muito diferentes... Não apenas no aspecto físico, mas também no caráter, no estilo. Minha irmã, Chantal, é bem mais parecida com ela.
O jantar foi servido e ambos comeram com apetite. A conversa continuava a fluir de maneira agradável e solta, sobre os mais diversos temas!
A certa altura, chegou á vez de Lucas falar sobre sua família: a relação cordial, mas um tanto distante, com o pai; o carinho pela mãe e a profunda amizade com a irmã mais jovem.
— Parece que nossas irmãs se conhecem — ele comentou num dado momento. — Ouvi Norma conversando com Chantal, ao celular.
— É mesmo?
— Sim. E não resisti à tentação de pedir a Norma que perguntasse a Chantal sobre você.
— Você fez isso? — Vivian indagou surpresa com aquela confissão inesperada.
— Fiz e não me arrependo — Lucas admitiu. — Foi assim que soube de sua apresentação no Watts Hall, com o quarteto de cordas.
— E eu, muito inocente, pensando que se tratasse de uma feliz coincidência...
— Bem, o fato de minha irmã conhecer a sua foi realmente uma coincidência feliz — Lucas sentenciou. — Isso você não pode negar.
— Que feio... — ela fez um trejeito, meio a sério.
— Eu não podia esperar mais. Estava ansioso... E você não telefonava... — Lucas desculpou-se com um sorriso encantador, um tanto tímido.
Estendendo a mão sobre a mesa, Vivian acariciou-lhe os dedos longos, enquanto dizia, com emoção contida.
— Fico feliz por você ter agido assim. Aquela noite foi especial, pois fiquei sabendo que você existia e que eu não estava mais sozinha, no mundo.
— Vivian...
— Haja o que houver, serei sempre grata à vida por ter nos aproximado. Agora tudo faz sentido... Compreende?
— Sim.
Virando a palma da mão para cima, ele pressionou levemente os dedos de Vivian e os dois ficaram assim, por um longo momento, olhando-se com encanto e paixão.
O garçom se aproximava da mesa e Lucas, percebendo sua presença, fez um sinal para que trouxesse a conta.
Pouco depois, deixava o restaurante, rumo ao estacionamento. A temperatura havia caído sensivelmente. Abraçados, ambos transpuseram a curta distância que os separava dos respectivos veículos.
Encostados ao carro de Vivian beijaram-se com paixão.
— Agora preciso ir — ela disse sôfrega. — Amanhã será o dia da abertura dos jogos. Terei que levantar cedo.
— Eu sei. Também tenho um encontro com Vadja Miezislaus, o esgrimista polonês, para acertarmos os últimos detalhes da exibição que faremos.
Após um breve silêncio, Vivian falou:
— Então, nós nos encontraremos lá.
Soltando as mãos de Vivian com relutância, ele entrou no carro e, já sentado ao volante, viu quando ela saiu do estacionamento.
Com um suspiro feliz, Lucas sorriu para sua imagem, refletida no retrovisor, e não pôde deixar de dizer:
— Você é um sujeito de sorte.
Dentro do complexo esportivo da Universidade de Richmond, no ginásio de esportes, iniciava-se a cerimônia de abertura dos Jogos Universitários da Primavera.
O reitor da universidade, depois de uma breve saudação, estabeleceu, em linhas gerais, a programação do evento e passou a palavra ao prefeito. Este se estendeu num belo discurso sobre as maravilhas da primavera, dando destaque para a importância da Universidade na vida cotidiana de Richmond.
Sob aplausos, o prefeito entregou o microfone ao mestre de cerimônias que assumiu, a partir daquele momento, o encargo de anunciar e comentar cada atração do evento.
A orquestra da universidade executou A Primavera, de Vivaldi, enquanto a voz modulada do mestre de cerimônias anunciava as equipes locais e visitantes que desfilavam pela quadra do ginásio de esportes. Nas arquibancadas lotadas, um público animado e feliz aclamava os participantes. Num telão gigantesco, o desfile era mostrado com arte, valorizando os detalhes quase imperceptíveis a olho nu.
As câmaras de diversas estações de tevê, como um olho mágico, captavam as imagens, transmitindo-as para o país e para o mundo, via satélite.
Num dado momento, o telão assemelhou-se a um gigantesco painel quadriculado: as melhores imagens do evento, escolhidas pelo diretor de vídeo que comandava a transmissão, foram congeladas na tela. Era como se um imenso álbum fotográfico fosse se formando aos poucos. Numa pequena área reservada, no centro da tela, o desfile prosseguia transmitido em tempo real. Ao redor dessa área, as imagens iam compondo uma espécie de moldura, causando um efeito impressionante.
Uma das imagens escolhidas pelo diretor de vídeo, para a moldura ao redor do centro da tela, era a de Vivian olhando para o maestro com absoluta concentração, o arco paralisado acima das cordas do instrumento, pronto para tocá-las. Outra imagem, entre tantas, era a de um esgrimista, no momento de colocar a máscara de proteção. Seu corpo, moldado por uma vida saudável, revelava-se através da malha justa que recobria os músculos flexíveis e ágeis. Um sorriso confiante iluminava-lhe o rosto de traços perfeitos. O esgrimista era Lucas, alguns momentos antes de iniciar sua demonstração de esgrima, com o convidado polonês. Por um desses caprichos do acaso, que raramente ocorrem no decorrer de uma vida, o diretor de vídeo foi anulando cada imagem da moldura, até que restassem apenas duas: a de Vivian e a de Lucas.
Utilizando efeitos especiais, o editor de imagens juntou ambas no centro da tela. Então as ampliou até que tomasse conta de todo o espaço disponível.
O efeito estético era impressionante. O público reagiu com uma salva de palmas. E a partir daquele momento, antes mesmo que o diretor de vídeo suspeitasse, estava criada a imagem representativa dos Jogos Universitários: a fusão da Arte e do Esporte numa foto de rara beleza e harmonia... O verdadeiro espírito do evento.
Mais tarde, quando Lucas e Vivian se encontraram no estacionamento, ignorava que a mídia havia adotado aquela imagem do telão como símbolo da Primavera, em Richmond.
Ao lado de Lucas, no carro que ele dirigia em velocidade moderada pela College Road, Vivian desfrutava a plenitude daquele momento. A apresentação da orquestra fora um sucesso... E ela estava ao lado do homem com quem sempre sonhara. O que mais poderia desejar?
— Para onde você está me levando? — perguntou, aconchegando-se a ele.
— É uma surpresa — Lucas enlaçou-a com o braço livre, beijando-lhe os cabelos.
— Ora, vamos não me deixe curiosa.
— Você quer mesmo saber?
— Claro!
— Gostaria que você conhecesse o lugar onde moro... — ele respondeu, num tom significativo.
A tarde era azul, como se saudasse a primavera. O sol brilhava no céu sem nuvens.
Com a cabeça encostada no peito de Lucas, Vivian protestou, com voz frágil:
— Você não está planejando seduzir uma pobre violinista exausta... Ou está?
— Estou — ele respondeu, num tom bem-humorado. — Mas, antes, pretendo alimentá-la e cuidar dela para que fique bem e relaxada.
— Ah, assim me parece bastante razoável — ela retrucou, rindo e aconchegando-se ainda mais. — E o que teremos para o almoço?
— Comida oriental. Você gosta?
— Adoro.
— Ótimo.
O motor do carro rugia baixinho sob o capo. O vento sibilava nas linhas aerodinâmicas do veículo e os pneus produziam um ciciar contínuo, em atrito com o asfalto liso e cuidado.
Vivian sentia-se num mundo à parte, suspensa numa espécie de semi-consciência, induzida pelo movimento do carro e a cálida proximidade do corpo de Lucas de encontro ao seu.
Se pudesse, ela chegou a pensar, prolongaria aquele momento mágico por toda a eternidade.
Foi quase com tristeza que percebeu que o percurso estava terminando, quando o veículo entrou na garagem de um prédio de apartamentos, no centro da cidade.
— Chegamos — disse Lucas, desligando o motor.
— Puxa, está tão bom aqui... — Vivian murmurou, sem se mover.
— Vamos preguiçosa. Temos um almoço pela frente e estou faminto.
Lentamente, ela se desprendeu do corpo de Lucas e, abrindo a porta, saltou do carro. Depois esperou que Lucas contornasse o carro e viesse a seu encontro. Abraçados, ambos dirigiram-se ao elevador. O painel de controle tinha apenas oito números. E Lucas apertou o sete. Enquanto a porta automática se fechava, ele inclinou-se, buscando os lábios de Vivian.
A porta do elevador se abriu... E eles continuavam se beijando.
No hall do sétimo andar, gravuras de impressionistas franceses pendiam das paredes, entre vasos de plantas ornamentais. Uma luz amarelada e indireta dava um tom confortável ao ambiente. Havia apenas uma porta, em arco, ao longo da parede. E para lá ambos se dirigiram, com as mãos entrelaçadas.
Lucas abriu a porta e deu passagem a Vivian, para que ela entrasse; primeiro.
— É aqui que você mora?
— Circunstancialmente — ele respondeu, com um largo sorriso.
Pisando o tapete macio, Vivian transpôs o corredor, que levava a uma ampla sala semicircular, cujo limite era um imenso vidro côncavo e transparente que, do piso ao teto, abria-se sobre um belo parque: o Capitol Square Garden.
— Essa visão é de tirar o fôlego, de tão bonita — exclamou Vivian, admirada, contemplando a paisagem. — Mas o que você quis dizer com circunstancialmente?
Depois de ajudá-la a tirar o casaco, Lucas esclareceu:
— Este apartamento dúplex foi consignado à minha empresa, para ser reformado e vendido. Levamos quase um ano para deixá-lo pronto. E enquanto não aparece um comprador, vou ficando por aqui.
— Quer dizer que este apartamento está à venda?
— Sim.
— Mas você não se incomoda com a visita dos eventuais interessados?
— Num negócio desse vulto, não são muitos os pretendentes — disse Lucas, com simplicidade. — E ninguém melhor do que o próprio dono da empresa para recebê-los, não acha?
— Entendo o que você quer dizer.
— Venha, quero lhe mostrar uma coisa.
Tomando a mão de Vivian, Lucas a conduziu a um anexo, também com vista para o parque, onde um piano de cauda dominava o ambiente aconchegante.
— Esta é a sala de som e vídeo. Funciona também como biblioteca...
Mas Vivian não mais o ouvia. Desprendendo-se de Lucas, ela caminhou fascinada, na direção do piano.
— Minha nossa... — murmurou, contemplando o instrumento com profundo respeito e veneração. — Você tem um Stainway & Sons em casa...
— Sim. E ele não pertence ao apartamento — Lucas informou, com justificado orgulho. — É meu.
— Posso...? — Vivian pediu, comovida.
— Por favor...
Ela acomodou-se no banco recoberto de veludo vermelho e, depois de regulá-lo à altura adequada, levantou a tampa do piano.
Removeu o feltro que cobria as teclas e deixou que os dedos corressem sobre elas, num arrepio de volúpia puramente estético.
O som rico, profundo e macio, reverberou no espaço da sala. Então Vivian iniciou, timidamente, uma sonata de Beethoven, encadeando os acordes com naturalidade e um entusiasmo crescente. A melodia foi se desenhando com a intensidade desejada. E Vivian entregou-se totalmente ao prazer de tocar aquele fantástico instrumento.
Parado ao lado do piano, Lucas contemplava Vivian com um brilho de admiração e desejo em seus profundos olhos azuis.
Quando o último acorde soou, Vivian ficou estática, por alguns momentos. Depois se ergueu do piano e, com uma ligeira reverência, um tanto cômica, propôs:
— Agora é a sua vez.
Sem fazer-se de rogado, Lucas sentou-se na banqueta e deixou que os dedos longos e firmes passeassem sobre as teclas, por um bom tempo. Então iniciou um improviso jazzístico de grande precisão e beleza, surpreendendo Vivian.
— Você toca bem — ela comentou, ao aplaudir, no final da execução. — De quem é esse tema?
— Acho que eu mesmo o criei. Na verdade, costumava assoviar essa melodia, percorrendo as trilhas nas montanhas de Blue Ridge, quando garoto.
O interfone tocou, e a governanta avisou que o almoço seria servido.
Ambos saíram do anexo, conversando animadamente.
Na grande sala principal, Lucas fez correr um leve painel, revelando outro ambiente, onde se destacava uma mesa retangular, laqueada, sobre a qual a refeição estava servida.
O aroma tentador da comida oriental aguçava os apetites. As cores e formatos exóticos dos pratos causavam um imediato prazer visual.
Vivian começou por servir-se de frutos do mar com legumes.
Lucas preferiu iniciar com um peixe grelhado, com molho agridoce.
O vinho rose estava na temperatura correta. Vivian e Lucas brindaram, desfrutando uma sensação de doce intimidade, naquele ambiente cálido.
O almoço tardio transcorreu num clima alegre e agradável. Os assuntos eram os mais variados e pitorescos.
Lucas encantou Vivian com histórias bem-humoradas, ocorridas na índia, onde ele convivera com um grupo de europeus, todos jovens e sedentos de aventura. Lucas tinha o dom da palavra fácil e das imagens bem construídas, onde o humor sempre aparecia da maneira mais inesperada.
Sob a influência do momento e também do vinho, Vivian falou de sua infância, dos verões em Virgínia Beach, onde conhecera o mar e aprendera a nadar. Discorreu sobre a relação familiar e a forte identificação com o pai, com quem compartilhava o gosto pela solidão contemplativa e pela reflexão.
A música era um tema que ambos adoravam. Tanto, que falaram muito sobre o assunto: descobriram alegres coincidências, comentaram sobre o experimentalismo, as novas tendências...
O almoço já estava terminando, quando Lucas resolveu esclarecer um fato que o havia intrigado.
— Você ficaria aborrecida, se eu fizesse uma pergunta de ordem pessoal?
Vivian sorriu, como se ele tivesse dito uma tolice.
— Claro que não.
— Por que você estava chorando, no seu carro, no dia da entrevista coletiva na prefeitura?
— Como você sabe disso? — ela perguntou surpresa.
— Eu a vi, do meu carro, num sinal fechado. Você não percebeu que estava sendo observada.
A expressão de Vivian mudou sensivelmente. Seus olhos verdes fixaram um ponto, no centro da mesa.
— Eu havia acabado de romper uma relação com um músico, chamado Edward Garnier — ela explicou, num tom neutro.
— Você o amava?
— Oh, não!
— Então, por que estava chorando?
— Pela reação dele... Pelas palavras duras que trocamos. — Vivian fez uma pausa, antes de prosseguir: — Estávamos em meu carro, a caminho da prefeitura. Ele ficou tão furioso com a conversa, que me fez parar num cruzamento e saltou. Foi muito triste.
— Ele a amava?
— Não sei. As pessoas são surpreendentes... Edward criou uma forte expectativa sobre nosso relacionamento, que não fazia sentido para mim.
— E o que você sentia por ele?
— Companheirismo, amizade... Edward sabe ser divertido e passamos bons momentos juntos.
— Mas, pelo visto, isso não bastava para ele...
— Edward sempre foi correto á meu respeito. Nunca exigiu nada, nem forçou situações. Mas era evidente que estava se contendo o tempo todo.
— Percebo. E isso a deixava numa posição difícil...
— Insustentável, em longo prazo. Na orquestra e, até mesmo em casa, as pessoas passaram a se referir a Edward como meu namorado. Era uma situação dúbia que começava a me angustiar.
— E então você resolveu dizer o que sentia?
— Exato. Mas Edward reagiu pessimamente.
— Pobre homem. Não deve ter sido fácil para ele, também — Lucas concluiu como se pensasse em voz alta.
— Você é muito compreensivo — Vivian comentou. — Na certa, deve ter passado por algo semelhante.
Enchendo novamente as taças de vinho, Lucas refletiu por alguns momentos, antes de confidenciar:
— Quando eu tinha dezessete anos, apaixonei-me perdidamente por uma garota a quem conhecia desde a infância. Nossas famílias eram amigas... — Ele sorriu, ternamente, ao recordar um fato já remoto. — Eu levava o namoro muito a sério. Achava que a garota era minha alma-gêmea, que me faria eternamente feliz. Um dia, surpreendi-a beijando meu primo. E quando a interpelei, indignado, sobre o que estava acontecendo, ela me disse com uma simplicidade chocante: Eu estava apenas me divertindo.
Lucas depositou o copo de vinho sobre a mesa e assumiu uma expressão dúbia, como se não quisesse levar as próprias palavras muito a sério. Por fim, prosseguiu:
— Eu era bastante jovem e sem experiência em questões emocionais. Mas lembro-me de ter pensando, claramente, que aquilo era apenas o princípio do que me aguardava no futuro.
— Foi uma grande desilusão...
— E também um aprendizado. Duro aprendizado, por sinal.
— Mas aposto que você não se deteve por isso...
— Deteve? — ele repetiu.
— No seu desenvolvimento emocional, eu quero dizer — ela explicou, docemente.
Ele sorriu, com um misto de alívio e gratidão, por estar sendo compreendido. Só então respondeu:
— Claro que não. Minha curiosidade era maior do que o medo de não entender.
Sorrindo de volta, Vivian pediu:
— Conte-me mais sobre você... O que viu na vida, o que descobriu o que aprendeu.
— Compreendi a solidão do ser humano... Compreendi que a vida, assim, não tem sentido. — A voz de Lucas soava densa e vibrante. — Concluí então que precisava de alguém, mas alguém especial... Que fosse assim como você, Vivian, que fez reviver todos os meus sonhos e esperanças mais loucas.
A postura impecável, tão própria dos instrumentistas clássicos, era algo natural em Vivian, que a praticava desde a infância. Mas as palavras de Lucas tiveram o dom de abrandar essa postura... Como quem estendesse o corpo, para receber em cheio os raios do sol, ela disse:
— Eu estou aqui, Lucas. Você já me encontrou.
Levantando-se, ele curvou-se sobre Vivian, tomou-lhe as mãos e beijou-as lentamente... Dedo por dedo. Depois, seus lábios percorreram os braços, o rosto, os cabelos, a ponta do nariz... Então as bocas se encontraram, entreabertas, doces como frutos maduros. Vivian se pôs em pé, aconchegando seu corpo ao de Lucas.
— Venha... — ele murmurou, num pedido que; era quase uma súplica.
Ambos saíram pela porta corrediça e subiram a escada em espiral, que levava ao piso superior.
Lá embaixo, os refletores que iluminavam o Capitol Square Garden se acenderam. A tarde declinava. No horizonte, nuvens esparsas refletiam ainda os raios avermelhados do sol, contra o fundo azul-esverdeado do céu. Da janela do piso superior do dúplex, a visão da paisagem ganhava em profundidade e encanto. Era um quadro simplesmente perfeito.
— Então é aqui o seu ninho? — disse Vivian.
— Circunstancial, como já lhe disse.
— Eu sei. E quando você muda de ambiente, o que leva?
— Carrego sempre os livros, o aparelho de som, certos travesseiros que mais gosto, algumas mantas de lã, poucos quadros e duas ou três esculturas, não muito grandes.
— E quanto ao Stainway? — ela perguntou, referindo-se ao magnífico piano de cauda.
— Geralmente fica na casa dos meus pais, na ala que ocupo entre uma e outra circunstância — Lucas explicou, frisando bem a última palavra.
Caminhando pelo quarto, Vivian aproximou-se da cama e, pegando um dos travesseiros, levou-o de encontro ao rosto.
— Este é um dos seus preferidos?
— É o preferido.
— Macio sedoso...
Ainda segurando o travesseiro, ela voltou-se para Lucas e disse:
— Tenho a impressão de que você vai se esquecer dele nos próximos minutos.
— Minutos? — ele repetiu, aproximando-se. — Não seria mais sensato falar em horas? — E Lucas envolveu-a, num gesto que sugeria a intimidade total.
— As horas são compostas de minutos — Vivian murmurou, oferecendo-lhe os lábios.
— Saberei valorizar cada segundo dos minutos e cada minuto das horas — ele prometeu, antes de beijá-la.
O travesseiro caiu sem ruído no tapete aos pés da cama, enquanto os corpos se estreitavam num forte abraço.
Como folhas no outono, as roupas foram caindo lentamente, peça por peça, até que Vivian e Lucas, parados frente a frente, contemplaram-se... Nus.
— Você é linda — o desejo premente tornava a voz de Lucas mais grave e um tanto rouca.
Gorada pela excitação e por uma súbita timidez, Vivian estreitou seu corpo ao dele, afundando o rosto naquele peito másculo, de músculos rijos e bem delineados. Seus lábios desenharam na pele, surpreendentemente macia ao toque, um caminho circular até as duas auréolas castanhas, cercadas de finos pelos castanhos. Em cada uma delas, Vivian depositou um beijo úmido... E as minúsculas protuberâncias enrijeceram-se àquele contato quente, sedutor.
Lucas gemeu de prazer. Seus dedos longos e atilados desceram pelas costas de Vivian, percorrendo as curvas perfeitas dos quadris até sentir, na palma das mãos, as colinas arredondadas e firmes dos glúteos, que pressionou docemente.
Contra a pele sensível do ventre, Vivian sentia o pulsar frenético do desejo de Lucas. Era quente e vivo. Seus joelhos ameaçavam dobrar-se.
— Você está tremendo — ele constatou baixinho. — Venha...
Com a cabeça apoiada no ombro de Lucas, Vivian explorou, com a ponta dos dedos, os músculos bem delineados de seu tórax... Então Lucas, cobrindo-lhe a mão com a dele, levou-a lentamente para baixo, até depositá-la sobre o órgão rijo e vibrante, que parecia ter vida própria, em seus estremecimentos impacientes, incessantes.
Com um leve movimento contínuo, a mão de Lucas, sobre a de Vivian, sugeria o modo de manter aquela força indócil sob aparente controle.
Voltando-se ligeiramente, ele a beijou com um misto de ternura e ardor. Sua mão, agora livre, introduzia-se entre as coxas macias de Vivian, buscando o centro de seu prazer.
Ela gemeu longamente, quando as pontas dos dedos de Lucas leves e sábios iniciaram uma exploração circular, numa carícia alucinante.
O tempo ia deixando de existir, perdendo totalmente o sentido... Pois eram infinitas as sensações prazerosas que sobrevoavam, livres, dos ponteiros do relógio.
Vivian sentiu que seu corpo se contraía, como as cordas tensas de um violino prestes a emitir um som jamais alcançado antes. Um grito abafado escapou-lhe da garganta quando o prazer a tomou de assalto, invadindo-lhe os sentidos. Em sua mão, ainda em movimento, o pulsar do membro de Lucas atingia o ápice, numa erupção de lavas ardentes, que desciam em cascata sobre seus dedos enrijecidos. O gemido de Lucas projetou-se nos lábios de Vivian, que ele agora mordiscava, numa ânsia incontrolável.
A poderosa maré de prazer que os arrebatara foi refluindo lentamente, deixando os corpos entrelaçados e exaustos, sobre a colcha amarrotada. Uma lassidão cálida e perfeita começava a dominá-los, agora.
Seria impossível dizer por quanto tempo ficaram assim, semi-adormecidos, no calor gerado pelo prazer. Mas, num dado momento; Viviam sentiu sobre as pernas o movimento do sexo de Lucas, que despertava. Por um breve momento, ela pensou não poder segui-lo naquela nova onda que começava a se erguer, num horizonte distante. Mas o crepitar de uma centelha elétrica brotou inesperadamente, em algum recanto de seu ser, ligando as conexões nervosas numa velocidade estonteante. Logo, todo o corpo de Vivian era como uma tela viva que pulsava, ansiando pela criatividade do pintor... Esperando pelas cores, pelo calor, pela vida que só ele poderia imprimir em suas fibras.
E todo recomeçou, a partir do ponto já conquistado, lançando os amantes a outros caminhos, outras buscas sugeridas pelo prazer... Não havia limites, naquela procura mútua e interativa.
A língua de Lucas percorria as pálpebras cerradas de Vivian, enquanto seu corpo acomodava-se sobre o dela, num encaixe perfeito. O conhecimento que as mãos haviam experimentado como intermediárias do prazer concedido e proporcionado, agora era aproveitado de uma forma mais direta e eficaz.
A dança ancestral da penetração começava em círculos que se aprofundavam a cada avanço, cada recuo. Vivian sentiu-se desfalecer quando seus quadris, como se tivessem vida própria, projetaram-se para frente e para cima, enquanto ela se abria como uma flor vermelha e ardente, recebendo o seu complemento perfeito...
Algo muito singular estava acontecendo. Algo que fazia desabar todas as estruturas mentais, com seus valores sociais e psicológicos, construídos laboriosamente através dos séculos... Algo que levava aqueles dois seres em êxtase a uma época remota, onde imperava soberano, o fogo primordial dos instintos e da paixão.
Uma vez mais, o tempo cessou de existir...
Desvencilhando-se dos braços de Lucas que, adormecido, ainda a envolvia, Vivian caminhou até o banheiro, onde permaneceu por algum tempo. Depois retornou, envolta numa toalha grande e felpuda, os cabelos negros ainda úmidos do banho.
Vestiu-se em silêncio e depois desceu a escada, sem produzir nenhum ruído. Já na sala, consultou a agenda, ao lado do telefone, e não tardou a encontrar o que procurava: o número de um ponto de táxi. Ligou para lá, deu o endereço e desceu pelo elevador, até a portaria.
Um senhor amável, de olhos bondosos e cabelos totalmente brancos, cumprimentou-a com discrição e acompanhou-a até a porta, aguardando a seu lado a chegada do táxi.
Pouco depois, no estacionamento do complexo esportivo da Universidade, Vivian sentava-se ao volante de seu carro e seguia diretamente para casa.
No dia seguinte, Vivian acordou com Alex o; caçula da família, batendo à porta do quarto. Ele trazia o café da manhã numa bandeja, com o jornal que a família assinava e um buquê de rosas vermelhas.
— Você está no noticiário da tevê e na primeira página do jornal — Alex anunciou, com um sorriso radiante. — A fama chegou ao lar dos McAllister.
— Do que você está falando? — ela resmungou, sentando-se na cama e acomodando a bandeja no colo.
— Disto. — Alex abriu o jornal, diante dos olhos sonolentos de Vivian.
A manchete, em letras garrafais, dizia:
A primavera chegou a Richmond, unindo a arte aos esportes.
Abaixo, em cores vibrantes, estampava-se a foto de Vivian e Lucas, lado a lado. Ela, com seu violino. Ele com o florete.
A reportagem louvava os esforços conjuntos da prefeitura e da universidade, que, na abertura da mais bela estação do ano, atraíam milhares de turistas do país e do exterior, movimentando a economia local. Os dados numéricos eram impressionantes.
— E quanto a essas flores? — Vivian perguntou, tentando ordenar as idéias.
— Chegaram agora há pouco.
— São mesmo para mim?
— Devem ser. Veja o envelope, com seu nome.
Com um doce sorriso, Vivian destacou o envelope da fita que atava o buquê e, abrindo-o, retirou um cartão onde estava escrito, numa letra firme e clara:
Estas rosas são uma homenagem a você, que trouxe a primavera para dentro de minha vida.
Espero que este seja o primeiro dia de toda uma existência feliz.
Com amor, Lucas
Além do cartão, o envelope continha uma pequena chave, que caiu na mão de Vivian, brilhante e plena de significados...
Com um profundo suspiro, ela fechou os olhos e deixou-se invadir pelas recordações da noite anterior. Uma sensação de plenitude envolveu-a por completo. Lucas havia encontrado as palavras mais belas e exatas, para expressar um desejo que ela ainda não ousara manifestar: o primeiro dia de toda uma existência feliz...
Era quase impossível, a Vivian, abranger o significado daquelas palavras simples, em sua total amplitude... Uma existência inteira onde haveria sempre Lucas, seu sorriso franco, sua inteligência arguta, sua sensibilidade e humor surpreendentes... E também suas mãos, a voz grave e quente que se tornava rouca nos momentos íntimos, o corpo viril e musculoso...
— Vivian, você está se sentindo bem?
A voz de Alex parecia vir de muito longe... Vivian sorriu, tentando fixar os olhos no rosto do irmão, parado, em pé, ao lado da cama.
— O que foi? — ela perguntou, por fim.
— Você está com uma expressão tão estranha...
— Estranha?
— É com esse riso bobo no rosto... Parece o gato de Alice no País das Maravilhas.
O riso de Vivian brotou alto e cristalino, fazendo balançar perigosamente a bandeja sobre suas pernas.
— Você vai acabar derramando o suco de lima que lhe fiz, com tanto carinho — disse Alex, contrariado. — Agora me dê essas flores e o jornal. E trate de tomar seu café da manhã.
Vivian obedeceu, mas reteve o envelope e seu precioso conteúdo nas mãos. Por fim indagou num tom conciliador:
— Você ficou zangado, Alex querido?
— É claro. Há dias que você vem se comportando de maneira esquisita. Aliás, todo mundo nesta casa parece meio fora dos trilhos.
Vivian fitou o irmão com ternura. A contrariedade trazia, a seu rosto adolescente, um rubor que o tornava ainda mais belo. Mas os olhos negros de Alex estavam toldados por uma névoa úmida. E isso deixou Vivian preocupada:
— O que é que está perturbando meu irmãozinho querido? — ela perguntou.
— Nada — ele respondeu, olhando para o chão. Colocando a bandeja a seu lado, na cama, Vivian ajoelhou-se no colchão e envolveu Alex num abraço quente e carinhoso.
— Ora, vamos, diga-me o que está acontecendo.
— Eu não sei. — A voz de Alex denotava angústia. — O papai está diferente, sabe? Toda hora eu o vejo olhando pela janela, com uma expressão... — ele relutou, antes de concluir: — triste. Muito triste mesmo.
— Mas você sabe que ele sempre foi assim, pensativo, interiorizado...
— Não é a mesma coisa, Vivi. Às vezes ele parece nem me reconhecer. E ontem vi mamãe chorando na garagem, dentro do carro. Ela não percebeu que eu estava lá, no tablado, consertando meu skate.
— Mamãe chorando? — Vivian reagiu, sobressaltada.
— É. E para piorar as coisas, um garoto lá da minha classe resolveu dar em cima da Jamille. Acho que ela não quer mais saber de mim. Acho que me detesta.
— Alex, eu...
— Você parece que nem liga para tudo que está acontecendo aqui em casa. Vive por aí, com essa cara de boba, rindo à toa...
— Você falou com Chantal sobre tudo isso?
— Chantal...? — Alex sorriu, com ironia. — Ela não liga a mínima para o que todo mundo está sentindo.
— Isso não é verdade — Vivian protestou. — Chantal apenas não sabe lidar muito bem com os sentimentos. Com aquele modo prático e direto de ser, ela tenta manter a unidade familiar, com seus jantares e sua alegria constante.
— Chantal detesta a fragilidade e, até aí, eu posso compreender. Mas acontece que ela confunde fragilidade com sensibilidade, e isso não está certo.
— Concordo com você.
— Ainda por cima, ela tem horror a tudo o que não pode resolver com as mãos, ou com uma conversa direta.
— Minha nossa, Alex! — Vivian exclamou, admirada. — Que análise profunda e adulta você acaba de fazer!
Desprendendo-se do abraço que o envolvia, ele ergueu a cabeça. Com os olhos marejados de lágrimas, disse com firmeza:
— Não sou mais criança, Vivi. Estou vendo e sentindo tudo o que se passa aqui em casa. E confesso que isso me assusta — concluiu baixinho.
— Alex...
— Não Vivi não me abrace. Assim, você me faz sentir como se eu fosse ainda um menino. Mas preciso crescer... E rápido, porque tudo está se desfazendo à minha volta.
— Eu não sabia que você estava se sentindo assim — Vivian confessou, consternada. — O que posso fazer para ajudar?
— Nada... Veja como você agiu, quando pedi que conversasse com Jamille.
— Trata-se de um caso diferente, Alex. Você magoou muito aquela menina.
— E você acha que não sei disso? — ele retrucou exaltado. — Tratei Jamille como se ela não tivesse sentimentos... Como se não fosse um ser humano.
— Exatamente.
— Só que já entendi o que fiz e quero uma chance de mostrar a ela que cresci...
— Então, mostre. Use um pouco do que você tanto condena em Chantal. Seja direto. Vá procurá-la e diga-lhe o que está sentindo.
— Acontece que Jamille não quer falar comigo — ele argumentou, desanimado. — Principalmente depois que aquele outro garoto começou a...
— Este não é o centro da questão — Vivian o interrompeu; categórica.
— Então, qual é o problema?
— O seu orgulho. Você está preparado para aceitar, com maturidade, um não de Jamille?
— Não sei — Alex respondeu, com sinceridade. — Mas nada é pior do que ficar assim, desse jeito. Eu quero ao menos tentar.
Vivian sorriu, enternecida. Voltando a sentar-se na cama, pediu:
— Vá buscar o número do celular de Jamille.
— Isso eu sei de cor. — Alex recitou o número, sem alterar a expressão do rosto.
— Alcance minha bolsa, por favor — Vivian pediu.
O garoto obedeceu.
— Obrigada. — Vivian fez a ligação e logo foi atendida: — Jamille? Como vai? Aqui é Vivian... Sim, está tudo bem. Escute querida, Alex precisa falar com você. Trata-se de um assunto sério. E eu gostaria muito que você ouvisse o que ele tem a dizer. Sim, eu sei, e ele também... Só lhe peço que o ouça nada mais. Está bem... Eu direi a Alex... Um beijo e obrigada. — Vivian desligou.
— E então? — Alex a olhava, aflito.
— Ela vai conversar com você, às onze horas, no Brooker Hall of Music.
— No Brooker Hall?! — ele repetiu, enquanto seus olhos se iluminavam.
— Sim. Por que a surpresa?
— Foi lá que começamos nosso namoro.
— Sei... — Vivian sorriu.
— Você acha que eu tenho uma chance, Vivi?
— Acho. Mas vá com calma e lembre-se do meu conselho: seja direto. Dê seu recado e caia fora. Não peça nada a Jamille e, sobretudo, não a pressione.
— Obrigado, Vivi — ele agradeceu radiante.
— De nada, querido. Agora me dê um beijo e vá cuidar de sua vida.
Inclinando-se, Alex beijou-a seguidamente, no rosto, antes de sair do quarto.
Vivian voltou a colocar a bandeja no colo e, pensativa, mordiscou distraidamente uma torrada.
A conversa com Alex a havia feito lembrar-se de outra, que tivera com o pai, cerca de uma semana atrás:
— Estou preocupado com sua mãe — ele confidenciara. — Ela não me parece feliz.
Olhando para o suco de lima que Alex havia lhe preparado com tanto carinho, Vivian começava a perceber a gravidade da situação. Um mau pressentimento fez com que ela estremecesse involuntariamente.
Os fatos isolados pareciam estar se juntando, como a neve na encosta de uma montanha. E Vivian sabia, por experiência própria, que um simples grito, reboando nos desfiladeiros, era suficiente para desatar a força descomunal da neve acumulada, transformando-a numa avalanche capaz de arrastar e destruir tudo o que houvesse em seu caminho.
— Não pode ser tão grave assim — ela disse, em voz alta, tentando se convencer.
Mas a sensação de inquietude e mal-estar persistiu por mais algum tempo, até que um banho prolongado colocou-a de novo em sintonia com aquela manhã radiosa, de céu azul e sol brilhante.
Quando Vivian desceu para o andar térreo, não havia mais ninguém na casa a não ser Chantal que, na cozinha, montava uma lasanha para o jantar. Usando um avental sobre o traje esporte fino que usava para trabalhar, Chantal recebeu-a com um sorriso:
— Você acordou tarde. Foi boa a festa, ontem? — perguntou, com uma expressão marota.
— O que você sabe da minha vida, sua bisbilhoteira? — Vivian retrucou, beijando-a no rosto.
— Muito mais do que você imagina.
— Você está blefando.
— Ah, é? Pois saiba que sou amiga de Norma Benson. Este nome lhe diz alguma coisa?
— Chantal, você andou espionando sua própria irmã?
— Não. Apenas, somando dois e dois, cheguei aos inevitáveis quatro.
— Explique-se — Vivian exigiu, com indisfarçável curiosidade.
— Lembra-se da noite em que você chegou meio alta, dizendo ter estado num celeiro, na companhia de um espadachim?
— Claro.
— Pois naquela mesma tarde, mais ou menos dez horas antes de você chegar; em casa, recebi um telefonema de uma conhecida que acabava de voltar da Europa... Essa conhecida se chama Norma. E parecia ansiosa para saber se eu era violinista.
— E daí?
— Claro que expliquei que a violinista da família é você. E ela mostrou um grande interesse em conhecê-la. Informei-a, então, sobre sua apresentação com o Quarteto de Cordas no Watts Hall, naquela noite. — Chantal fez uma pausa de efeito. — Acontece que Norma tem um irmão de vinte e oito anos de idade, empresário e... Adivinhe? — Movendo uma colher de madeira no ar, imitando os movimentos de um espadachim, ela concluiu: — Ele é bicampeão olímpico de esgrima.
Vivian sorriu, divertida:
— Você é terrível, sabia?
Sorrindo de volta, Chantal fez uma cômica reverência de agradecimento, antes de prosseguir:
— Naquela noite, quando você chegou alterada, eu não liguei os fatos... Mas, ao ver vocês dois juntos, meus faróis se acenderam e... Bingo! Estava resolvido o mistério.
— E onde foi que você nos viu?
Com um misto de humor e ironia, Chantal respondeu:
— Minha bela, famosa e ingênua irmã... A cidade inteira viu e continuará vendo vocês dois juntos, por toda a primavera.
— Ah, o jornal — Vivian recordou-se. — Isso passa.
— Só o jornal? — Chantal apontou a tevê, que funcionava em baixo volume, numa prateleira, perto do armário de louça e talheres. — Olhe para trás e veja com seus próprios olhos.
Voltando-se, Vivian observou a tela... E lá estavam Lucas e ela, na imagem escolhida pela mídia como símbolo da primavera em Richmond.
— Oh!
— Impressionante, não acha? — comentou Chantal. — Esta é a décima vez que vejo essa imagem, hoje. Está em todos os canais.
— Mas é evidente que se trata de uma montagem, Chantal. Qualquer um pode ver isso.
— E daí?
— Ninguém vai pensar que os dois personagens da imagem se conhecem... Muito menos que estão tendo uma relação.
— Aí é que você se engana, meu bem. Na mente de todos os que assistem aos noticiários, você e Lucas formam um par. Basta que sejam vistos juntos, uma só vez, para que somem dois e dois como eu fiz.
— E que importância tem isso? Somos livres e desimpedidos.
— Não é esse o problema.
— Chantal... — Vivian fitou-a com uma expressão séria. — O que você está querendo me dizer?
— Que vocês precisam tomar cuidado. Existe a inveja, que a notoriedade traz. As colunas de fofocas estão aí, para envenenar qualquer relacionamento.
— Não entendo aonde você quer chegar — Vivian reclamou mais aborrecida do que preocupada.
— Você e Lucas se conhecem há muito pouco tempo. Ele pertence a uma família importante, rica, tradicional, com influência na política do Estado e, por conseqüência, na do país. Quem sabe o que um repórter bisbilhoteiro pode levantar, numa pesquisa mal-intencionada, sobre a vida particular de você dois.
— Nada tenho a esconder — Vivian declarou. — E acredito que com Lucas aconteça o mesmo.
Fitando-a com um misto de ternura e paciência, como se ela fosse uma criança, Chantal disse:
— Tenho uma novidade para lhe contar, irmãzinha: a maldade humana existe.
— Ora, é óbvio que não ignoro esse fato.
— Teoricamente, você quer dizer. — Antes que Vivian protestasse, Chantal continuou: — Você e papai vivem num mundo particular, no qual os estudos e os ideais são as maiores prioridades. Vocês são os pensadores da família, a alma dos McAllister...
— Não sei se concordo com essa afirmação...
— Não me interrompa. Você sabe muito bem que tenho dificuldades para me expressar, quando se trata de sentimentos. Portanto, deixe-me ir até o fim.
— Estou ouvindo — disse Vivian, sentindo que a inquietação resultante da conversa com Alex, pouco antes, estava retornando. — Fale à vontade, Chantal.
— Enquanto você e papai preservam e trabalham os valores ideais de nossa chamada civilização, mamãe e eu estamos lá fora, no mundo real. E esse mundo, Vivian, é muitas vezes cruel, com competidores desleais, banqueiros gananciosos, funcionários desonestos, impostos extorsivos, injustiça social e...
— Dito assim, até parece que o tal mundo real é um protótipo do inferno — Vivian gracejou.
— Não é — Chantal respondeu convicta. — O mundo lá fora tem suas compensações, que, aliás, não são poucas. Mas o fato é que eu e mamãe somos obrigadas a conviver com a proximidade perigosa do lado escuro da vida.
— E aonde você pretende chegar, depois desse discurso?
— A um ponto muito simples: eu temo por você, Vivian... Está mais do que evidente que sua paixão por Lucas e essa súbita notoriedade podem trazer sérios problemas... A ambos.
— E o que você sugere que eu faça... Que me tranque em casa? Ou que saia por aí, de peruca loira e óculos escuros?
Chantal riu, diante daquela idéia absurda. E o ambiente tornou-se um pouco mais descontraído.
— Isso seria o cúmulo, Vivian... E nada eficiente. O que estou pedindo é que seja cuidadosa. Converse com Lucas sobre o problema. Vocês certamente encontrarão uma maneira de se adaptarem à situação. E, sobretudo, não se exponham em público, juntos, antes de decidirem como vão agir.
Lembrando-se da chave que viera no envelope, junto com o cartão e as rosas, Vivian sorriu, misteriosamente.
— Pode ficar tranqüila, maninha. Não tenho a mínima intenção de ficar desfilando por aí, com Lucas. Afinal, temos coisas melhores a fazer...
— Vou fingir que não entendi, para não ter uma crise de inveja.
As duas riram, divertidas. Depois se abraçaram, calorosamente.
— Obrigada pelo seu carinho e interesse — Vivian agradeceu. — Prometo que vou pensar sobre o que você me disse.
— Converse com Lucas sobre o assunto — Chantal insistiu.
— Eu farei isso. — E Vivian mudou de assunto: — Agora, diga-me, onde está mamãe?
— Na cidade, cuidando dos negócios. Por quê?
— Preciso falar com ela.
— Bem, se não for muito urgente, você poderá fazê-lo hoje à noite, no jantar. Teremos lasanha a quatro queijos e um vinho sul-africano que é uma delícia.
— Está certo. Acho que o assunto pode esperar por mais algumas horas — Vivian disse, mais para si. — Bem, eu já vou... Até a noite, Chantal.
— Até.
Vivian desceu até a garagem e, entrando em seu carro, acionou o motor. Assim que o veículo saiu da garagem, na luminosa manhã de primavera, um homenzinho de óculos, usando roupas escuras, aproximou-se e fez sinal a Vivian, para que parasse. Descendo o vidro, ela o fitou com curiosidade:
— Pois não, senhor?
— Estou falando com Srta. Vivian Alden McAllister?
— Sim. O que o senhor deseja?
O homenzinho respondeu que trabalhava no maior jornal da cidade e, em seguida, acrescentou:
— Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
— Sinto muito, mas agora é impossível — ela respondeu, com firme delicadeza, acionando o controle do vidro.
— Mas não tomarei muito de seu tempo...
Acelerando, Vivian partiu com o coração aos saltos. Pelo retrovisor, viu quando o homem correu até um furgão preto, que logo colocou em movimento, seguindo-a pela rua quase deserta.
— Não acredito que isso esteja acontecendo comigo — ela pensou, em voz alta.
Sem sequer procurar disfarçar sua presença, o repórter a seguia de perto.
Vivian diminuiu a marcha e avançou lentamente em direção a um cruzamento importante, cujo semáforo estava verde. Quando pressentiu a mudança do verde para o amarelo, acelerou, ganhando o outro lado da pista dupla.
Arriscando-se a ser pego no centro do cruzamento, pelo sinal vermelho, o furgão precipitou-se atrás do Honda, conseguindo chegar do outro lado, ileso.
— Mas que sujeito chato — Vivian reclamou baixinho. Então lhe ocorreu uma idéia, para sair daquela situação embaraçosa. Relaxando, ela seguiu sem pressa para um shopping que conhecia desde a adolescência.
Sempre acompanhada de perto pelo repórter, chegou ao shopping e entrou no estacionamento, parando num local bem visível, mas distante da porta principal. Ao descer do Honda, viu quando o furgão preto encostou perto do alambrado, a cerca de quarenta metros de onde ela se encontrava.
Sem olhar para trás, Vivian entrou no shopping e tomou a escada rolante para o primeiro piso.
Ainda não havia chegado lá, quando o homenzinho de óculos pisou o primeiro degrau e veio forçando o acesso para cima, entre protestos dos usuários.
Sorrindo, Vivian chegou ao primeiro piso e, a passos largos, dirigiu-se ao banheiro feminino, detendo-se na porta para ter certeza de que seu perseguidor não a havia perdido de vista. Então, entrou.
Passando em frente aos múltiplos lavabos e espelhos, Vivian parou para arrumar os cabelos e retocar o batom. Em seguida caminhou até o fundo do banheiro, onde uma porta de serviço se abria para uma escada de concreto, que levava ao andar térreo.
Minutos depois, Vivian andava rapidamente entre caminhões que descarregavam mercadorias, nos fundos do shopping. Passando por um funcionário uniformizado e atônito, ela ganhou a rua e fez sinal para um táxi, que parecia ter caído do céu. Entrou no veículo, acomodou-se no banco traseiro e deu o endereço:
— Por favor, leve-me até Capitol Square Garden, quadra norte.
Sorrindo intimamente da peça que havia pregado no repórter, Vivian lembrou-se da conversa com Chantal, menos de uma hora atrás.
Agora compreendia que Chantal estava certa a respeito dos inconvenientes da súbita notoriedade que recaíra sobre ela, ligando-a publicamente a Lucas.
Mas, por outro lado, Chantal se equivocou num ponto, Vivian pensou. Posso viver num mundo voltado aos estudos e à Arte, mas não ignoro a realidade da vida. Não sou assim tão inocente e indefesa quanto minha querida irmã imagina.
Relaxando contra o assento do táxi, Vivian suspirou disposta a esquecer o incidente desagradável e desfrutar aquele dia esplêndido.
O apartamento dúplex que Lucas habitava estava vazio quando Vivian chegou, mas havia música e um leve perfume de flores, no ar.
Reconhecendo a melodia, Vivian sorriu comovida. A música era Embraceable You, de Charlie Porter, a mesma que ela ouvira com Lucas no Kind of, enquanto dançavam estreitamente enlaçados...
Uma coincidência, talvez? Ela se perguntou, vagamente.
O passo lento percorreu a sala, maravilhando-se uma vez mais com a vista esplêndida da janela panorâmica que se abria sobre o Capitol Square Garden, no dia claro e ensolarado. Depois examinou cada um dos cômodos, vagarosamente, notando detalhes que haviam escapado a sua percepção, na véspera.
A música vinha do piso superior, e para lá Vivian se dirigiu, sentindo que o suave perfume das flores aumentava de intensidade, à medida que galgava os degraus.
Uma forte emoção a invadiu, no momento em que ela chegou ao piso superior, inteiramente tomado por vasos floridos, espalhados por toda parte, formando um alegre jardim circunstancial, multicolorido e exótico.
A cama de Lucas estava coberta de pétalas de rosas brancas, amarelas e vermelhas. Preso ao travesseiro havia um bilhete, escrito com a letra firme e clara que Vivian já conhecia:
Este jardim improvisado não estaria completo sem a sua mais preciosa flor... Amo você.
Lucas. PS: Ligue para mim.
Sorrindo, Vivian retirou o celular da bolsa e fez a chamada. Ele não tardou a atender:
— Pronto?
— Lucas, eu estou ouvindo Charlie Porter no jardim que você criou. Não demore, por favor. — E Vivian desligou.
As sucessivas gravações de Embraceable You soavam no ambiente, ora na voz de cantores famosos, ora ao som de instrumentos orquestrais, nas mais diversas versões imagináveis. Ao chegar ao final, a gravação recomeçava automaticamente.
Vivian despiu-se devagar e deitou-se na grande cama, cobrindo-se com as pétalas de rosas.
Quando Lucas chegou, vinte minutos mais tarde, encontrou-a adormecida entre as flores.
Emocionado, contemplou por um longo tempo aquele quadro sensual, de uma beleza perfeita.
Então, livrando-se das roupas, deitou-se ao lado de Vivian... E o tempo, uma vez mais, perdeu todo o significado, enquanto o paraíso se consumava em cada beijo, cada carícia, cada promessa de amor apenas murmurada... Até o clímax.
A tarde veio encontrar Vivian e Lucas na cozinha do apartamento, numa intimidade deliciosa.
Ela, sentada num banquinho alto, usando um roupão atoalhado branco, os cabelos negros ainda úmidos do banho recente... Ele, em frente ao fogão, com os cabelos castanhos igualmente úmidos, e uma toalha em torno dos quadris, preparando uma omelete para ambos.
— Quer dizer que o tal repórter seguiu você pela cidade? — Lucas perguntou, entre divertido e preocupado.
— Foi. E isso aconteceu logo depois da longa advertência de Chantal, sobre os problemas decorrentes da notoriedade. — Após uma pausa, Vivian acrescentou: — Confesso que fiquei assustada.
— Mas saiu-se muito bem. Tanto que conseguiu despistar o homenzinho, no shopping.
— Tive sorte, dessa vez.
— Sua irmã está certa em se preocupar. Esse fato pode se repetir... E gerar problemas sérios.
— Você tem uma idéia de como devemos proceder?
— Bem... Não creio que seja uma boa política negar que nos conhecemos. Isso só iria acirrar a curiosidade dos repórteres, que tentariam provar o contrário.
— Concordo com você.
— Então, só vejo uma solução, clara e definitiva...
— Sim?
— Vamos chamar a imprensa e anunciar, oficialmente, nosso noivado e a data do casamento — ele propôs, sorrindo.
Surpresa, Vivian fitou-o no fundo dos olhos azuis... E então sorriu de volta, enquanto dizia, num tom bem-humorado:
— Não seria má idéia. Mas, falando sério, Lucas, o que vamos fazer?
— Neste exato momento, saborear a omelete que acaba de ficar pronto — ele respondeu em outro tom, nada alegre, embora o sorriso permanecesse estampado em seu rosto.
— Vamos lá — Vivian concordou, sem compreender a sutil mudança no comportamento de Lucas.
Depois da refeição, ligeira, mas deliciosa, Vivian foi até a sala de som, enquanto Lucas resolvia alguns problemas de trabalho, por telefone. Assim que ele terminou, foi juntar-se a ela. No magnífico piano de cauda, os dois tocaram algumas melodias populares, muito simples e alegres.
Num dado momento, o desejo, plenamente satisfeito na grande cama, entre pétalas de rosas, voltou a acender sua chama luminosa e abrasadora. Entre beijos longos e carícias ousadas, Lucas tomou Viviam nos braços e conduziu-a, pela escada, de volta ao ninho florido.
A tarde se desfez em nuvens incendiadas pelo sol poente, que iluminavam o interior do apartamento com matizes que variavam do ouro à púrpura.
Depois do amor, exaustos e semi-adormecidos, os amantes deixaram-se ficar assim, cúmplices, murmurando frases doces e destituídas de sentido... Eram carícias verbais... Eram mais sons, carregados de profundos significados, do que propriamente palavras.
A noite já havia caído, quando Vivian acordou. Lucas ressonava baixinho, a seu lado. Saindo da cama com todo o cuidado, para não acordá-lo, ela foi ao banheiro e retornou pouco depois; já vestida e pronta para partir.
— Isso vai se transformar num hábito? — Lucas protestou sonolento.
— Como? — ela perguntou surpresa, voltando-se na direção da cama. — O que foi que você disse?
Lucas acendeu o abajur, quebrando a doce obscuridade do quarto. Sentado na cama, com os cabelos revoltos e uma expressão de contrariedade no belo rosto, ele afirmou:
— É muito desagradável acordar pensando que irei encontrá-la a meu lado... Para depois descobrir que você se foi.
— Lucas, eu...
— É a segunda vez que você faz isso — ele prosseguiu, interrompendo-a. — E só ficamos duas vezes juntos.
— Eu não sabia que você se sentia assim — ela murmurou, penalizada. — Desculpe.
Fez-se um silêncio denso, antes que ele perguntasse:
— Aonde você vai?
— A uma reunião com a direção da orquestra. Parece que Klaus Schneider já está em condições de reassumir seu posto de primeiro violino.
— Ah... A orquestra. E essa reunião vai durar muito?
— Não creio. Talvez uma hora, ou um pouco mais.
Erguendo-se, Lucas envolveu-se na toalha, que deixara aos pés da cama. Dirigindo-se ao bar, a um canto do quarto, serviu-se de uma dose de uísque.
— Em uma hora e meia, ou duas, posso preparar um jantar delicioso para nós dois... Você volta?
Meneando a cabeça, um tanto constrangida, ela negou:
— Infelizmente, não posso. Hoje é a noite do jantar em família, lá em casa. E tenho um assunto urgente a tratar com minha mãe.
— Certo. — Lucas assentiu, com os olhos fixos no copo onde os cubos de gelo flutuavam no líquido dourado. Por fim, perguntou: — O jantar é só para a família, ou vocês terão algum convidado?
— Apenas os Alden McAllister... Mas garanto-lhe que, se houvesse convidados, você encabeçaria a lista.
Depois de sorver um gole da bebida, Lucas depositou o copo sobre o balcão e, com um suspiro resignado, sorriu levemente: — Eu compreendo Vivian. Afinal, os compromissos existem...
— Eu... Sinto muito, Lucas.
— Ora, está tudo bem, não se preocupe.
Durante aquele breve diálogo, Vivian sentira no ar um clima tenso e difícil. Era como se de repente ela e Lucas fossem dois desconhecidos, falando por símbolos que não faziam o mesmo sentido para ambos. Mas agora, que ele trazia de volta ao rosto aquele belo sorriso, tão amigo e tão amado, ela experimentava um indescritível alívio.
— Vou acompanhá-la até a porta — Lucas ofereceu.
De mãos dadas, ambos desceram a escada e atravessaram a grande sala. Já no hall, beijaram-se apaixonadamente.
Ao despedir-se, Vivian lembrou-se de que seu carro estava no estacionamento do shopping.
Teria de tomar um táxi, para resgatá-lo. O desagradável incidente ocorrido com o repórter voltou-lhe à mente. Então, ela perguntou a Lucas:
— Como ficamos em relação à mídia? Vamos combinar alguma coisa?
— Bem... Já que você não quer considerar minha sugestão de noivado oficial, creio que a melhor atitude que podemos tomar, diante de uma pergunta indiscreta, é uma frase curta e inflexível: Nada a declarar sobre o assunto.
— E você acha que funciona?
— Sem dúvida... Desde que não aceitemos provocações posteriores.
— Não sei se entendi bem o que você quer dizer — ela confessou.
— Um bisbilhoteiro profissional nunca desiste. Além do mais, sabe como usar argumentos provocativos e eficazes. Portanto, depois do nada a declarar... Sorria e não diga mais nada. Não volte a responder perguntas, sob nenhuma hipótese.
— Entendido — Vivian estreitou seu corpo ao dele, beijando-o nos lábios. — Agora, preciso ir.
— Podemos nos ver amanhã? — Lucas perguntou, numa voz estranha, um tanto triste.
— Mesma hora e local — ela respondeu, sorrindo.
Com um aceno, Vivian pegou o elevador e desceu ao térreo.
A temperatura havia caído, com a chegada da noite.
Caminhando rapidamente, Vivian não reparou no homenzinho encostado a uma árvore, do outro lado da rua, usando calças escuras e uma jaqueta de couro. Trazia os óculos sobre a testa e tinha um olho colado ao visor de uma câmera fotográfica, com uma possante teleobjetiva acoplada.
Quando Vivian conseguiu um táxi, o homenzinho correu até um furgão, estacionado a poucos metros de distância. Sentando-se ao volante, acionou o motor e a seguiu...
A reunião com a direção da orquestra foi breve.
Em termos elogiosos, o maestro Rudney comentou o resultado da apresentação. Depois anunciou a volta de Klaus Schneider ao comando dos violinos e agradeceu, em nome da orquestra, a brilhante participação de Vivian ao substituí-lo. Em seguida, o diretor-assistente leu a programação do mês, concluindo, assim, o encontro.
Consultando o relógio, Vivian verificou satisfeita, que não se atrasaria para o jantar em família. No estacionamento, teve a impressão de reconhecer o furgão preto, estacionado não muito longe de seu carro. Mas deu de ombros ao constatar que não havia ninguém ao volante, bem como nenhum repórter abelhudo nas imediações. Entrando no veículo, ela acionou o motor e partiu.
Ao chegar; em casa encontrou a família reunida em torno da mesa. Alex estava em um de seus grandes dias e divertia a todos com suas histórias engraçadas, provocando risos e comentários bem-humorados.
Ao ocupar seu lugar à mesa, Vivian não deixou de notar que em alguns momentos o pai deixava transparecer uma profunda aflição no olhar, que antes era tão sereno. Quanto à mãe, parecia se esforçar bastante para demonstrar o ânimo e a disposição de sempre. Mas estava, evidentemente, abatida.
O jantar transcorreu naquele clima instável, mas pleno de boa vontade. Por fim, chegou o momento da sobremesa. Justamente no momento em que Chantal ia servi-la, a campainha tocou. A própria Chantal foi atender e retomou logo depois.
— Quem é? — Vivian perguntou.
— Edward Garnier. Ele está saindo de viagem e veio se despedir de você. Convido-o a entrar?
Vivian olhou para o pai, que assentiu com um movimento de cabeça. A mãe concordou com a decisão, dizendo:
— Talvez Edward queira nos acompanhar na sobremesa e no café. — Voltando-se para Alex, pediu: — Traga mais uma cadeira e abra espaço na mesa para Edward, filho.
Chantal voltou à copa-cozinha, trazendo o convidado de última hora. Edward cumprimentou a todos com aqueles modos irrepreensíveis que tanto o caracterizavam. Em seguida, beijou Vivian no rosto e sentou-se a seu lado. Parecia muito bem disposto e até mesmo alegre. Aceitou uma porção de mousse de chocolate e, depois, o café. Conversou com o pai de Vivian, a quem chamava respeitosamente de professor McAllister, como o fazia no tempo em que fora seu aluno. Com natural habilidade, envolveu a todos no assunto que o trouxera àquela casa, falando da viagem que empreenderia no dia seguinte, corri o octeto de vozes da Universidade, levando um repertório de músicas renascentistas por várias capitais do país.
Quando sua presença já poderia ser considerada excessiva, numa reunião estritamente familiar, Edward pediu licença e ergueu-se, agradecendo a cordial acolhida. Levantando-se, Vivian o acompanhou até a varanda da frente. Foi ali que Edward tirou do bolso da jaqueta um pequeno livro de poesias do francês Rimbaud e entregou-o a Vivian:
— Este é um presente de despedida.
— Obrigada, Edward. Fiquei feliz por você ter vindo. Seria muito triste se continuasse aborrecido comigo.
Acariciando levemente os cabelos de Vivian, ele sorriu e disse:
— Entendi sua atitude e não vou mais aborrecê-la com minhas esperanças infundadas. Afinal, este é um problema exclusivamente meu como também é meu o sentimento que tenho por você.
— Oh, Edward... — ela murmurou comovida.
— Seria muito pedir um beijo de adeus?
Erguendo-se na ponta dos pés, Vivian ofereceu os lábios a Edward, que a beijou com ternura e delicadeza.
— Cuide-se com muito carinho, princesa — ele recomendou emocionado. Sem esperar pela resposta, desceu a escada em direção ao carro que deixara estacionado, a curta distância.
Apoiada à mureta da varanda, Vivian ficou observando a partida de Edward, com o livro de poesias nas mãos.
Sempre guardaria, no coração, um sentimento de ternura por ele, Vivian decidiu, em pensamento.
Tomada por aquela doce emoção, não teve tempo de reparar no furgão preto, do outro lado da rua... Nem em seu ocupante.
Com um suspiro, entrou em casa e fechou a porta.
Todos já haviam deixado a mesa, quando Vivian regressou. Alex, que ajudava Chantal a recolher os pratos e talheres, foi logo dizendo:
— Hoje a louça é por minha conta, Vivi. Você está dispensada dos desagradáveis trabalhos domésticos.
— Inacreditável, não? — comentou Chantal, ao passar pela irmã. — Ele está assim desde que chegou; em casa: muito prestativo e gentil...
Empostado a voz como os oradores antigos, Alex declamou:
A primavera chegou, com seus eflúvios mágicos,
Transformando o; cinza em verde,
Despertando os corações sensíveis
Da letargia melancólica
De mais um inverno que passou...
— É disso que eu estava falando — disse Chantal, contendo o riso. — Você tem idéia do que está acontecendo com ele?
— Nem imagino — mentiu Vivian, piscando um olho para o irmão.
— Mamãe quer falar com você, Vivi. Ela está na biblioteca — Alex anunciou, a caminho da pia.
— E papai?
— Subiu para o quarto. Está um pouco indisposto — informou Chantal.
Vivian deixou os irmãos às voltas com a louça e dirigiu-se à biblioteca. Como a porta estivesse fechada, bateu delicadamente, antes de entrar.
Ann Alden estava junto à janela, com um cálice de licor nas mãos. Voltou-se, ao sentir a presença de Vivian, e fitou-a sem surpresa. Tinha os olhos vermelhos e bastante congestionados.
Era evidente que havia chorado.
— Sente-se, filha. Precisamos conversar.
A voz da mãe, sempre vibrante e enérgica, soava rouca e entrecortada, para total aflição de Vivian:
— O que está acontecendo, mamãe?
Fitando-a no fundo dos olhos, Ann sorriu com tristeza e disse:
— Eu vou deixar seu pai, antes que cometa uma ação que envergonharia a todos, principalmente a mim mesma.
Vivian sentiu a sala girar, como se o chão lhe fugisse sob os pés. Para não cair, sentou-se bruscamente no sofá, as mãos apertadas entre os joelhos, os lábios entreabertos e uma expressão de incredulidade nos olhos verdes.
— Por quê? — Foi tudo o que conseguiu balbuciar. Num tom carregado de amargura, Ann Alden explicou:
— Seu pai foi meu primeiro namorado, meu único amor. Eu tinha dezesseis anos quando me apaixonei pelo brilhante rapaz de vinte, que trazia fogo nos olhos e uma capacidade de transformar qualquer sonho em realidade. Gerald era tudo o que eu queria.
Ann fez uma pausa. Depois, sorveu um gole e prosseguiu:
— Nós nos casamos assim que ele se formou e, por muitos anos, considerei-me a mulher mais feliz do mundo. Para estar à altura da genialidade de seu pai, fui me transformando aos poucos, até me tornar alguém de quem ele pudesse se orgulhar. Queria ser interessante, bela e atraente, para conquistar a aprovação daqueles olhos reflexivos que eu tanto amava... Mais do que a mim mesma.
Uma expressão dolorosa atravessou o rosto ainda jovem da mulher que sofria. Então, ela continuou:
— O tempo transcorria... E cada vez se tornava mais difícil despertar o entusiasmo de seu pai. Os prêmios internacionais que ganhei o sucesso da grife Ann Alden, tudo parecia lenha seca, numa fogueira voraz.
— Mamãe... —Vivian murmurou. Mas não conseguiu articular sequer mais uma palavra.
Ann prosseguia:
— Sempre que eu conquistava um prêmio, as coisas mudavam entre nós. Por algumas semanas, ou dias, Gerald parecia me enxergar com os olhos de antigamente. A paixão se renovava... E eu tinha de volta o homem maravilhoso que ele sabia ser, o amante delicado e criativo que tanto me fazia feliz. Depois vinha o desinteresse, o tédio, o ar ausente, o mergulho nos estudos intermináveis... Aquela maldita solidão. — Ann interrompeu-se, sacudida por um soluço.
— Mamãe, eu... — Vivian tentou interferir, uma vez... Em vão.
Com um gesto, Ann lhe pediu silêncio:
— Por favor, filha, deixe-me concluir. — Mas só voltou a falar alguns instantes depois. —Muitas vezes, ao escalar os Apalaches, eu sentia que minhas forças se esgotavam. Então, dizia a mim mesma: "Resista Ann Alden. Faltam apenas mais algumas centenas de metros. Depois, você poderá descansar."
Fitando Vivian com uma expressão de desespero, Ann finalizou:
— O amor de seu pai é, para mim, uma conquista impossível, uma escalada interminável, como um pesadelo recorrente, do qual jamais acordarei.
Extremamente pálida Vivian suplicou:
— Mamãe, por favor, não fale assim.
Ignorando-a, Ann mudou subitamente de tom, ao dizer:
— Na semana passada, um homem se aproximou de mim, numa festa. Eu havia bebido um pouco e estava eufórica. Ele me beijou e eu deixei. Tentou me tocar de maneira mais íntima e, para ser sincera, gostei de saber que ele me desejava. Se não fosse a chegada de Chantal, na festa, eu talvez me entregasse àquele desconhecido.
— Oh! — Vivian exclamou baixinho.
— Então, eu me perguntei: É nisso que você vai se transformar, Ann Alden? Em mais uma dessas mulheres desarvoradas, que buscam nas festas o prazer e atenção que não recebem do marido, em casa? Meneando a cabeça com veemência, Ann declarou: — Não, filha. Eu me recuso a viver uma vida falsa e promíscua.
Por isso, estou deixando seu pai e esta casa.
— O que você pretende fazer? — Vivian perguntou, com voz trêmula.
— Já faz anos que venho adiando o projeto de implantação de minha grife, na Austrália. Vou fazer isso agora e quero que você venha comigo.
— Como? — Vivian se espantou.
— É exatamente isso, filha. Preciso de você por algum tempo, a meu lado, até que eu consiga recuperar meu equilíbrio.
— Mas por que eu, e não Chantal?
— Por motivos óbvios. A empresa iria à falência, em pouco tempo, se Chantal não me substituísse na direção.
— Mas e quanto a papai... E Alex?
— Estarão melhores com Chantal do que com você — Ann sentenciou, numa sinceridade quase rude. — Ela é mais prática e saberá administrar a casa pelo tempo que for necessário.
Um silêncio denso e doloroso caiu entre ambas, até que Vivian falou:
— Você sabe o que está me pedindo, mamãe?
— Vou responder sua pergunta com outra: nos vinte e três anos de sua jovem vida, eu lhe faltei alguma vez, ou melhor, deixei de estar á seu lado, quando você precisou?
— Não — Vivian reconheceu.
— Então, por favor, tome as providências necessárias e esteja pronta para partir nesse fim de semana. Estou contando com você, filha... Não me decepcione.
A imagem de Lucas surgiu na mente de Vivian, enquanto uma dor profunda apertava-lhe o coração. Contendo as lágrimas, Vivian compreendeu que aquele não era o momento adequado para explicar, à mãe, o imenso sacrifício que ela estava exigindo.
Portanto, não havia nada mais a fazer, senão acatar o pedido. Erguendo-se, Vivian afirmou:
— Farei o que você está me pedindo, mamãe.
— Obrigada, filha — Ann agradeceu, com evidente alívio. — Eu sabia que você não ia me abandonar, nessa hora tão difícil.
Um sorriso triste estampou-se no rosto de Vivian. Ao sair da biblioteca, ela se sentia infinitamente cansada... Como se levasse o peso do mundo em seus ombros frágeis.
— Vivi... Acorde — Alex sacudia a irmã, com firme delicadeza.
— O que foi? — ela perguntou, sobressaltada.
— Tem uma equipe de reportagem e meia dúzia de jornalistas em frente a nossa casa. Querem falar com você. O que faço?
Espreguiçando-se, Vivian afastou da testa uma mecha de cabelos e então disse sonolenta:
— Eu não sei... O que você acha?
— Acho que você deve ir até lá.
— É verdade... — ela concordou, levantando-se. — Diga a eles que se acomodem na varanda da frente. Descerei em alguns minutos.
— Certo maninha.
Alex saiu do quarto e Vivian foi à toalete. Vinte minutos depois, chegava à varanda, pronta para enfrentar a mídia.
Logo que ela apareceu, os repórteres começaram a bombardeá-la com perguntas, que pareciam vir de todos os lados ao mesmo tempo, enquanto microfones eram estendidos em sua direção.
Vivian sorriu com simpatia e, erguendo a mão, pediu:
— Será que daria para fazer uma pergunta de cada vez? — E acrescentou: — Estou à disposição de vocês para qualquer esclarecimento sobre minha carreira artística, família, projetos futuros e tudo o mais. Reservo-me o direito de não responder a questões que julguem indevidas. Bem, quem vai ser primeiro?
— Como a senhorita se sente, sendo a mais jovem primeira violino da Orquestra Sinfônica da Universidade de Richmond? — indagou um repórter.
— Muito honrada, como não poderia deixar de ser. Mas é bom lembrar que estive apenas substituindo o mestre Klaus Schneider. Á propósito, ele já está de volta à frente do naipe dos violinos, para grande alegria de todos.
— A escolha de sua imagem e do empresário esgrimista Lucas Northon Benson, como símbolos do Festival da Primavera, foi planejada? Vocês foram consultados?
— Eu ignorava o fato. Para mim, foi uma grande surpresa. Quanto ao Sr. Benson, nada posso afirmar.
As perguntas se sucediam com rapidez e Vivian sentia que estava se saindo bem. Não era nada complicado discorrer sobre a música, os autores preferidos, os projetos para o futuro, a família... Pois, num dado momento, Vivian falou sobre a mãe, uma personalidade bastante conhecida devido á grife Ann Alden, sobre o pai, um renomado professor, e os irmãos.
Foi então que um repórter perguntou se ela conhecia pessoalmente Lucas. Vivian respondeu com um simples sim.
— Qual o grau de relacionamento entre vocês? — outro repórter perguntou.
— Eu não vou falar sobre esse assunto.
— Comenta-se que vocês foram vistos juntos, em Chamberlayne Hights, num local muito chique e exclusivo, chamado Kind of. Isso é verdade?
Vivian, que até aquele momento estivera sentada, calmamente, na mureta da varanda, sorriu e disse:
— A entrevista está terminada.
Abrindo caminho entre câmeras e fios, ela ainda ouviu uma provocação ferina, feita por alguém à sua direita:
— O que está escondendo do público, Srta. McAllister? Do que, exatamente, a senhorita você se envergonha?
Estacando, Vivian voltou-se naquela direção e respondeu:
— Não tenho nada do que me envergonhar. Apenas, não quero falar sobre o assunto.
As vozes se atropelaram, em perguntas simultâneas, num alarido perturbador. Mas Vivian conseguiu alcançar a porta e, entrando rapidamente, fechou-a a chave. Alex veio a seu encontro, trazendo um copo de cristal, alto, com suco de tomate.
— Problemas; Vivi?
— Muitos, querido...
— Algum repórter bisbilhoteiro?
— Sim. Mas este é o menor dos problemas — disse Vivian, aceitando o suco. — Obrigada, Alex. — Depois de sorver um gole, perguntou: — Você sabe se mamãe já saiu?
— Bem cedo. Ouvi quando o carro dela deixou a garagem. — Aproximando-se da janela, Alex afastou a cortina e olhou para fora. — Estão recolhendo o equipamento de gravação. Acho que desistiram.
— Ótimo.
Vivian caminhou até o pequeno balcão, onde ficava o telefone fixo, e fez uma ligação. Logo foi atendida e pediu:
— Gostaria de falar com o maestro Rudney Bacarowitz, por favor. Diga-lhe que é Vivian Alden McAllister. — Alguns instantes se passaram. — Maestro? Bom dia. Desculpe-me por ligar para sua casa, mas preciso conversar com o senhor pessoalmente e com urgência... Como? Sim, para mim está ótimo. Chegarei até aí em quarenta minutos. Obrigada e até já, maestro. — E desligou.
— Você vai sair, Vivi? — Alex perguntou.
— Preciso querido. Mas, antes, quero saber sobre seu encontro com Jamille...
— Foi o máximo — ele respondeu, com um largo sorriso. — Ela não se fez de difícil ou ofendida, como eu esperava. Mas acabou comigo, sabe?
— Acabou? — Vivian repetiu, depois de sorver mais um gole de suco de tomate. — Como assim?
— Ah, me falou um monte. Eu não imaginava que ela pudesse ser tão dura.
— E você... O que fez?
— Engoli o orgulho e ouvi tudo o que Jamille tinha a dizer.
— Grande garoto — Vivian gracejou, em tom de aprovação.
— Depois, fomos almoçar juntos e marcamos um encontro para o fim de semana. Parece que vai ficar tudo bem.
— Ótimo. Agora é com você, Alex. Não desperdice a chance.
— Só se eu fosse louco...
Vivian olhou para o irmão com ternura. Sabia quanto ele sofreria com tudo o que estava prestes a acontecer, na família. Infelizmente, ela nada poderia fazer para evitar, ao caçula, aquela dor.
— Venha, cá — Vivian pediu, deixando o copo sobre o balcão. Quando Alex aproximou-se, ela o abraçou fortemente, beijando-o no rosto e nos cabelos.
— Nossa, Vivi. O que foi que eu fiz, para merecer todo esse derramamento?
— Quero que você saiba que eu o amo muito... Agora seja um bom menino e vá ver se os chatos foram realmente embora.
Alex dirigiu-se à janela e, depois de observar o ambiente lá fora, disse:
— Só tem um furgão, mas já está de partida.
— Ótimo. — Vivian sorriu. — Bem, querido, nós nos veremos à noite. — Pegando a bolsa, dirigiu-se à garagem.
Pouco depois, Vivian seguia para a casa do maestro.
O maestro Rudney Bacarowitz estava na estufa, em meio às orquídeas que cultivava como hobby. Tinha uma grande xícara de café nas mãos e sorriu ao ver Vivian chegar.
— Bom dia, maestro.
— Bom dia. Você já conhecia meu orquidário, não?
— Tive o prazer de estar aqui, uma vez. Mas não me lembro de ter visto flores tão lindas — disse Vivian, olhando em torno, encantada.
— É a primavera — o maestro comentou. — Até mesmo aqui, dentro da estufa, as plantas sentem a força da estação das flores. — Após uma pausa, perguntou: — Você aceita uma xícara de café?
— Não, obrigada.
— Então, que tal um suco?
— Agradeço, mas não quero nada, maestro.
— Então, venha... Sente-se e diga-me a que devo o prazer de sua visita.
Vivian acomodou-se numa confortável cadeira e Rudney ocupou outra, em frente a ela.
— Maestro... Por motivos familiares, terei que deixar o país. Vim pedir que o senhor me; apóie junto à direção da orquestra, pois preciso que me concedam um afastamento por tempo indeterminado — Vivian resumiu, num tom simples e direto.
Rudney colocou a xícara de café sobre uma mesa de centro e, tirando os óculos, esfregou os olhos, numa atitude que Vivian conhecia muito bem. Depois sentenciou, lentamente:
— Acho que não preciso lhe dizer quanto seu pedido é inoportuno. Afinal, estamos no início de uma série de muitas apresentações...
— Eu sei maestro.
— Além do mais, existe o agravante da saúde instável de Klaus Schneider... Ele pode ter uma recaída, e você é a única pessoa capaz de substituí-lo, nesta temporada.
— Estou consciente desse fato — ela afirmou, com severidade.
— Como regente da orquestra, tenho responsabilidades que não me permitem aprovar sua decisão. Você compreende isso?
— Perfeitamente.
— Por outro lado, sei que algo de muito grave deve estar se passando em sua vida pessoal, para que você tome tal atitude.
— É muito sério, acredite.
O maestro contemplou um vaso de orquídea florida, que pendia a sua esquerda. Parecia muito calmo, mas Vivian sabia que seu cérebro privilegiado raciocinava em grande velocidade. Por fim, ele voltou a falar:
— Mesmo que eu aprovasse seu afastamento, a direção da orquestra levantaria as mesmas questões sobre as quais estamos discorrendo. A resposta ao seu pedido seria um previsível não.
— Maestro...
— Deixe-me terminar com uma pergunta: você está disposta a desacatar uma decisão da diretoria da orquestra e encerrar, aos vinte e três anos de idade, uma promissora e brilhante carreira como solista?
Os olhos de Vivian encheram-se de lágrimas, mas sua voz soou firme, sem o menor traço de indecisão:
— Estou.
Rudney recolocou os óculos e sorriu, recostando-se na cadeira:
— É contra meus princípios envolver-me na vida particular de quem quer que seja especialmente dos músicos sob meu comando. Mas vou abrir uma exceção... Portanto, conte-me o que está acontecendo e, por favor, não omita nenhum detalhe.
— Obrigada — ela agradeceu, comovida.
Vivian falou por longo tempo, sem pressa, escolhendo bem as palavras. No final da narrativa, disse:
— Meu caso de amor com a música é eterna. Mesmo tocando numa orquestra de terceira classe, ou lecionando para futuros violinistas, não quebrarei essa relação profunda e imutável. O que não posso é conviver com a realidade de ter negado apoio a minha mãe, num momento crucial de sua existência.
Um grande silêncio seguiu-se às palavras de Vivian... Um silêncio tão grave como aquele momento.
— Quando pretende partir? — perguntou Rudney, por fim.
— Neste fim de semana, a qualquer momento.
— Austrália, você disse?
— Sim, maestro.
— Então, vejamos o que pode ser feito! Tenho autonomia para aceitar um pedido de férias de qualquer músico da orquestra, de até quinze dias, sem prévia consulta à direção.
— Fico muito agradecida, maestro. Mas não sei se estarei de volta em tão curto prazo — Vivian confessou, com sinceridade.
— É isso que posso fazer por você: ganhar tempo. Caso a saúde de Klaus Schneider permaneça inalterável, prorrogarei suas férias por mais quinze dias e, assim, sucessivamente... Entendeu?
— E se, nesse prazo, o mestre Klaus tornar a adoecer?
— Você terá que voltar... Imediatamente.
Vivian sentiu o risco de tal compromisso. Mas, de qualquer forma, aquela era uma chance que ela não podia desperdiçar.
— Está certo, maestro. Vamos fazer dessa forma.
— Ótimo. — Rudney fitava-a com uma expressão compreensiva, não desprovida de admiração e respeito. — Meu escritório fica na quarta porta do corredor, à direita. Redija seu pedido de férias e deixe-o assinado, sobre minha mesa.
— Obrigada, maestro.
— E não se esqueça... Assim que estiver instalada na Austrália, ligue para minha secretária, informando seu novo endereço e telefone.
— Eu farei isso — Vivian prometeu, levantando-se.
Pouco depois, ela deixava a casa do maestro e partia em direção ao consulado da Austrália, para validar seu passaporte.
Enquanto aguardava para ser atendida, chamou Lucas pelo celular e desmarcou o encontro daquela tarde. Nada explicou sobre os motivos de sua atitude, pois preferia fazê-lo pessoalmente.
Ficou acertado que se encontrariam no dia seguinte, no Campus Universitário, perto do lago, às duas da tarde. O tom da conversa, a princípio carinhoso, terminou frio e quase impessoal.
Era evidente que Lucas não tinha aceitado de bom grado o adiamento do encontro, Vivian concluiu, com tristeza.
Sentindo-se péssima, teve que reunir forças para resolver as questões burocráticas no consulado e, depois, no Banco, onde fez alguns pagamentos e sacou dinheiro.
Vivian passou o resto da tarde tomando providências para a viagem. Já escurecia, quando voltou para casa.
Todos os carros estavam na garagem, e também a bicicleta de Alex.
Tomando fôlego, Vivian entrou em casa, preparando-se emocionalmente para o que viria.
A família McAllister estava reunida na sala. Embora o clima no ambiente fosse grave, não era absolutamente hostil.
Ann recebeu Vivian com um sorriso encorajador. Parecia muito calma, como sempre.
— Ainda bem que você chegou filha. Eu estava dizendo a todos que você concordou em me acompanhar à Austrália e que ficará á meu lado, nesse período de adaptação.
— É o que pretendo — Vivian confirmou, acomodando-se no sofá, ao lado de Alex.
— E a orquestra, filha? — perguntou Gerald, visivelmente abalado, mas firme.
— Quanto a isso, você pode ficar tranqüilo, papai. Consegui estabelecer um acordo bastante razoável, com o maestro Bacarowitz — Vivian resumiu, sem entrar em detalhes.
— Melhor assim — ele suspirou, aliviado. — Sua mãe acha que devemos passar um tempo sem nos ver. Embora eu discorde de sua decisão, a única alternativa é respeitá-la.
— Agradeço sua compreensão, Gerald — disse Ann. Em seguida, anunciou a todos: — Partiremos depois de amanhã, no vôo das dez da manhã para Los Angeles, onde faremos conexão para Sidney. Acho que nem preciso dizer que estaremos sempre em contato, não é, meus queridos?
— Assim que eu assumir a direção da grife, farei algumas mudanças — disse Chantal, num tom muito calmo, como se nada de mais estivesse acontecendo. Mas seus olhos traíam uma forte inquietação.
Alex, que se mantivera calado até aquele momento, desabafou:
— Para mim, tudo isso é uma grande loucura. Mal posso acreditar no que vocês estão falando...
— Alex... — A voz de Ann denunciava um início de descontrole.
— Filho... — disse Gerald — todos nós estamos sofrendo muito. Por favor, procure compreender a situação.
Levantando-se, com uma expressão terrível no rosto pálido, ele continuou, com indignação e raiva:
— Sempre tive orgulho de minha família. Pensava que éramos diferentes, sabe? Pensava que éramos unidos... Ah, como fui idiota.
Erguendo-se, Vivian aproximou-se da mãe, que agora chorava. Tomou-lhe a mão e a fez levantar-se. Depois, enlaçou-a pelos ombros, enquanto dizia:
— E somos mesmo diferentes... Não é, mamãe?
Ann não conseguiu responder. Mas um brilho de ternura surgiu, em seus olhos, em meio às lágrimas. Então Vivian voltou-se para Gerald:
— Você não concorda papai? — E estendeu a mão, em direção a ele.
Levantando-se, com um sorriso triste, Gerald aceitou a mão e enlaçou a filha pelos ombros.
Vivian, que agora estava entre o pai e a mãe, olhou para ambos com infinita ternura e prosseguiu:
— Somos diferentes porque sabemos respeitar algo muito precioso: nossa individualidade... Não é mesmo, Chantal?
Como resposta, Chantal uniu-se aos três, colocando-se ao lado do pai, que a enlaçou pelos ombros.
— Tão diferentes; Alex... — disse Vivian — que somos capazes de continuar nos amando, mesmo não compreendendo as razões de certas atitudes que nos fazem sofrer.
— Alex... — a voz de Ann era um apelo, assim como sua mão, livre, esperando a do filho.
Parado no outro lado da sala, os braços caídos ao longo do corpo, Alex chorava livremente, dando vazão à dor que o consumia.
— Venha juntar-se a nós, meu filho — pediu Gerald.
A princípio, ele hesitou. Por fim deu um passo, e depois outro, até chegar ao centro do grupo, deixando-se envolver pelos braços que o estreitaram com amor.
— Meu menino... — murmurava Ann, em meio às lágrimas. — Meu filho querido.
Naquela noite, ao se deitar, Vivian sentia-se emocionalmente exausta. Tinha ficado no quarto de Alex até altas horas, tentando dar uma ordem ao caos que se estabelecera em sua mente, com os últimos acontecimentos. Como era de se esperar, Alex estava arrasado. Mas, após uma longa conversa, muito carinho e compreensão, ele havia começado a aceitar as inevitáveis mudanças que estavam ocorrendo a sua volta... E só então Vivian o deixara já semi-adormecido.
Quanto a Ann, havia se recolhido por volta das nove horas, depois de tomar um calmante.
Chantal ficara com o pai, na biblioteca, jogando uma partida de xadrez e conversando.
Naturalmente, os dois somavam forças, para suportar a nova fase da família McAllister, que ali se iniciava.
Na manhã seguinte, Vivian levantou-se mais cedo do que o resto da família e partiu para a cidade. Levava, no banco traseiro do carro, um extenso material de pesquisa sobre Thelonious Monk, genial músico norte-americano. Havia retirado esse material da biblioteca municipal e precisava devolver. Pretendia, também, visitar alguns amigos mais próximos e se despedir. Afinal, não tinha noção do tempo em que ficaria ausente.
Ao meio dia, Vivian almoçou sozinha em um restaurante do centro da cidade. À uma e meia, já estava no Campus universitário.
Rodando lentamente pela Chapei Circle Road, e depois pela Westhampton Way, Vivian usava o tempo disponível para ordenar seus pensamentos e emoções, preparando-se assim para o encontro com Lucas.
Às duas horas, pontualmente, ela estacionou na Lakeview Lane, desceu do carro e pôs-se a andar pela margem do lago. Apesar do dia ensolarado, a temperatura havia caído ligeiramente. Uma brisa mais fria soprou, encrespando as águas do lago, colocando em desalinho os cabelos negros de Vivian. Depois de abotoar o casaco longo que estava usando, ela pôs as mãos nos bolsos e, assim, continuou seu passeio.
Dentro de poucos minutos, avistou o Alfa Romeo de Lucas, estacionando atrás de seu carro. E para lá se dirigiu. Ele veio a seu encontro, descendo pelo gramado a passos largos.
— Olá, Vivian... Como está você?
Uma intensa emoção impediu que ela respondesse. Tirando as mãos dos bolsos, abraçou-o com força, encostando o rosto em seu peito largo e musculoso... Como se assim pudesse se proteger contra todas as aflições que a consumiam.
— Você está tremendo — disse Lucas, preocupado. — Quer ir para um lugar protegido do vento?
— Não — Vivian respondeu baixinho, apertando-se ainda mais contra ele. — Apenas me abrace, por favor.
Lucas estreitou-a contra o corpo e os dois ficaram assim, por um longo momento, até que ela se acalmasse.
— Vivian, olhe para mim — ele pediu, erguendo-lhe o queixo.
— O que aconteceu?
— Meus pais estão se separando, Lucas — ela enfim conseguiu dizer.
Um profundo suspiro, que era também uma demonstração de alívio, brotou do peito de Lucas.
Fitando-a com ternura, ele disse:
— Então é isso... Sinto muito.
— Eu sei que sente.
— Cheguei a pensar que fosse algo entre nós... Com o nosso relacionamento, quero dizer.
— Não, Lucas — ela respondeu. — Mas, de alguma forma, esse fato vai afetar nossa vida.
— Como? — ele perguntou, sorrindo. — Do que você está falando?
Desprendendo-se do abraço, Vivian tomou-lhe as mãos. Então, fitando-o no fundo dos olhos, relatou tudo o que havia ocorrido, sem omitir nenhum detalhe.
No final do relato, Lucas estava pálido. Havia em seu rosto uma expressão indefinível... Algo entre a amargura e a descrença.
— Espere um pouco, Vivian... — ele disse, franzindo o cenho. — Você está tentando-me dizer que vai deixar o país, a orquestra; seus amigos, nosso relacionamento... Tudo?
— Sim, Lucas — ela disse, com firmeza.
— Por quanto tempo?
— Pelo tempo que for necessário para a reestruturação emocional de minha mãe.
— Mas isso pode levar semanas, meses... Anos.
— Não acredito num prazo tão longo. Mamãe pode estar momentaneamente desestruturada, mas continua sendo a Ann Alden combativa e corajosa de sempre.
— Certo — ele assentiu, com impaciência. — Mas digamos que ela não se recupere tão rápido... Que precise de sua presença por um período muito mais longo do que você agora imagina?
A voz de Vivian não se alterou ao responder, com uma simplicidade chocante:
— Ficarei ao lado dela pelo tempo que for necessário.
Exasperado, Lucas se afastou alguns passos. Então, voltando-se, perguntou em tom de revolta:
— E você tomou essa decisão; sem ao menos; consultar-me?
— Sinto muito, Lucas. Mas, para ser sincera, essa não era uma questão sujeita a consulta.
— Entendo — ele assentiu sarcástico. — A mim só cabe aceitar o fato consumado...
— Ou não — Vivian afirmou, num tom neutro. — Você tem uma alternativa e sabe disso.
— Claro... A alternativa de dizer adeus a você e à esperança de ser feliz.
— Trata-se, também, de minha felicidade... Por favor, não se esqueça disso — Vivian pediu.
Lucas respirou fundo e, meneando a cabeça, disse lentamente:
— Você me assusta... É como se eu a estivesse vendo pela primeira vez.
— Por que, Lucas?
— A objetividade com que você está tratando desse caso... As prioridades que estabeleceu, sujeitando nossa relação aos azares dos acontecimentos... Isso é, no mínimo, chocante.
— Estou fazendo, por minha mãe, exatamente o que devo. Você não pode me condenar por isso.
— De fato, não. E devo admitir que sua força de caráter seja admirável — ele reconheceu. — Mas isso abre um precedente assustador, Vivian.
— Como? Esta eu não entendi.
— Quem garante que, no futuro, você não usará um argumento semelhante para deixar seu próprio lar, marido e filhos...?
Vivian sorriu, negando com um gesto de cabeça, antes de dizer:
— Isso não acontecerá. Eu garanto.
— E tenho de acreditar, absolutamente, em você — ele concluiu, com amarga ironia. — Não é assim?
— Existe outro caminho além da total confiança entre dois seres que se amam Lucas?
O momento era grave, quase solene.
O vento que encrespava o lago diminuía de intensidade. Mas as pequenas ondas formadas quebravam-se contra a margem, produzindo um ciciar contínuo e apaziguante.
— Não — ele disse, por fim. — Não há outra via possível.
— Então, diga que me ama e que confia em mim — ela implorou.
Abraçando-a fortemente, Lucas beijou-a com paixão.
— Eu amo você, Vivian. Eu acredito em você, Vivian.
— Lucas, meu amor...
Ambos voltaram a se beijar com intensidade. Então o desejo, imperioso, cresceu nos corações e corpos, como uma fome terrível, que era preciso saciar.
Ofegante, Vivian pediu:
— Leve-me a algum lugar onde possamos ficar a sós.
— Era exatamente isso que eu ia propor — Lucas murmurou, com a voz entrecortada pela emoção.
Pouco depois, os dois carros deixavam o Campus Universitário, rumo ao apartamento onde Lucas morava, no centro da cidade.
Quando Vivian chegou; em casa, às duas e meia da manhã, verificou, surpresa, que nem todos estavam dormindo. Chantal a aguardava na sala, tomando vinho branco, em frente à tevê. Parecia cansada, mas recebeu-a com um sorriso amigo:
— Parece que você e Lucas Benson tiveram uma despedida em regra... Como foi que nosso adorável espadachim reagiu, diante das novidades?
— A princípio, muito mal — Vivian respondeu, sentando-se ao lado da irmã. — Cheguei a pensar que Lucas ia romper nosso relacionamento.
— Deve ter sido um choque para ele.
— E foi. Mas, no fundo, eu acreditava que ele não iria me decepcionar. Sabe de uma coisa, mana? Lucas é mesmo um homem extraordinário — Vivian sentenciou, com um brilho intenso no olhar.
— Ai, que inveja — disse Chantal, num tom bem-humorado. — Então, ficou tudo bem entre vocês?
— Sim — Vivian respondeu, sorrindo. — Logo que mamãe e eu estivermos instaladas na Austrália, ele irá me visitar.
— Fantástico. Fico feliz por você, maninha.
— Obrigada, Chantal.
— Quer um cálice de vinho?
— Não. Mas, diga-me, por que está acordada, há essa hora?
— Perdi o sono. Além disso, pensei que talvez você precisasse de alguém para ajudá-la a fazer as malas...
— Você é um anjo, Chantal. — Vivian tomou-lhe a mão, num gesto de carinho.
— Então, vamos?
— Vamos.
As duas subiram até o quarto de Vivian e, enquanto arrumavam a bagagem, conversaram longamente.
Por volta de quatro horas, deram a tarefa por finalizada e foram dormir.
Às oito da manhã, Alex acordou Vivian com o desjejum e um sonoro beijo.
— Acorde preguiçosa... O avião não vai ficar esperando por vocês.
— Mamãe já se levantou?
— Está na cozinha, com papai.
— Como está o clima entre os dois?
— Normal. Parece que o velho está considerando essa viagem de mamãe como uma espécie de férias conjugais — Alex comentou, com um gesto vago. — Mas nunca se sabe o que realmente acontece por dentro das pessoas.
Observando-o com atenção, Vivian perguntou, num tom carinhoso:
— E você, como está se sentindo?
— Não muito bem, Vivi... Mas sob controle. Pode ficar tranqüila, que de minha parte não vai acontecer nenhuma cena lamentável, na hora da despedida — ele garantiu muito sério.
— Tenho certeza disso; querido.
— Bem... Vou descer com suas malas.
— Obrigada, Alex. Coloque-as no carro de Chantal, por favor. Ela vai nos levar ao aeroporto.
— Certo.
Vivian desceu quinze minutos depois; já pronta para viajar. O pai a aguardava na sala. E ambos se despediram ternamente.
— Cuide de Ann, por mim — ele pediu, com triste serenidade. — E não deixe de dar noticias.
— Farei isso, papai. Não se preocupe.
Pouco depois, Chantal manobrava o carro, para sair da garagem. Vivian estava á seu lado, no banco do passageiro. Ann, no banco de trás. Na calçada, Gerald e Alex acenavam em despedida.
A cena parecia familiar e comum, como se as três estivessem partindo numa viagem de férias.
Pelo espelho retrovisor, Vivian condoeu-se ao ver que a mãe se entregava a um choro silencioso. Mas nada comentou. Preferiu respeitar, em silêncio, aquela digna demonstração de amor.
Os onze quilômetros que separavam Richmond do Aeroporto Internacional foram percorridos em velocidade moderada. O trânsito estava ameno, naquela manhã.
Ás nove e vinte, Vivian e Ann apresentaram-se no balcão da American Airlines, confirmando presença para o vôo das dez horas, rumo a Los Angeles. Lá, fariam a conexão para Sidney.
O tempo se esgotava com rapidez. Vivian tinha a nítida sensação de que as horas estavam passando depressa demais. Inquieta, olhava em tomo, procurando por Lucas entre os passageiros e familiares que se aglomeravam no saguão.
A primeira chamada para o vôo das dez soou, através dos autos falantes.
Abraçando Vivian, Chantal perguntou discretamente:
— Ele ficou de vir?
Vivian acenou em concordância. Um mau pressentimento a impedia de falar.
A segunda chamada ecoou pelo saguão.
— Vamos, filha? — disse Ann, depois de se despedir de Chantal.
— Espere só mais um minuto, mamãe.
A terceira chamada fez gelar o coração de Vivian. Agora sim, ela estava certa de que algo de errado havia acontecido.
Pálida, beijou Chantal e encaminhou-se, com a mãe, para o portão de embarque.
Até o último instante, Vivian olhava para trás, buscando a imagem do homem amado entre tantos rostos desconhecidos... Em vão. Lucas não viera para a despedida.
Sentindo-se, pela primeira vez, abandonada pelas forças que a haviam sustentado nos últimos dias, Vivian vacilou. E teve que se apoiar no braço da mãe, para caminhar pelo corredor, rumo à aeronave.
— Você está se sentindo bem? — Ann perguntou, preocupada.
— Acho que tive uma leve tontura... Mas não é nada sério — ela garantiu.
No interior do avião, ambas se acomodaram numa fileira de cinco poltronas, já ocupadas na extremidade oposta por três adolescentes, que liam revista e conversavam com animação. A mais próxima de Vivian sorriu para ela e a ajudou a colocar o cinto de segurança.
O avião taxiou pela pista e deteve-se na posição de arranque. As turbinas aumentaram a rotação ao máximo. Então os freios foram desativados e a aeronave começou a mover-se, ganhando impulso e velocidade, até alçar vôo, numa decolagem perfeita.
O aviso luminoso piscou, avisando os passageiros que já podiam retirar o cinto de segurança.
Foi naquele momento que a garota ao lado de Vivian, depois de observá-la atentamente, disse:
— Você é a violinista-símbolo do Festival da Primavera, não?
— Sim — Vivian respondeu, com simpatia. — Sou eu mesma.
— Poderia me dar um autógrafo?
— Com prazer. Onde quer que eu assine?
— Aqui mesmo, na revista... Ao lado das fotos. Meu nome é Jane.
— Está certo; Jane.
Retirando a caneta da bolsa, Vivian olhou com carinho para a foto-montagem, na qual ela aparecia ao lado de Lucas. Com os olhos enevoados de lágrimas, começou a escrever:
Para a jovem Jane, que me auxiliou com o cinto de segurança neste vôo, o agradecimento e carinho de Vivian McAllister.
Então seu olhar recaiu sobre uma extensa reportagem, que ocupava a página ao lado, na coluna social. O título, destacado em negrito, era bastante chamativo:
Entre o esporte e a música balança o coração da bela violinista-símbolo do Festival da Primavera.
Abaixo do título, a reportagem:
Numa entrevista recente, a bela Vivian Alden McAllister, quando indagada sobre o grau de relacionamento que mantinha com o empresário esgrimista Lucas Northon Benson, que divide com ela a foto-símbolo do Festival da Primavera, respondeu simplesmente:
— Eu não vou falar sobre esse assunto.
Diante da insistência dos repórteres, ela deu a entrevista por encerrada e se retirou.
Acontece que o fotógrafo de nossa redação flagrou a talentosa violinista entrando, no princípio da tarde de quarta-feira, num prédio exclusivíssimo situado em Capital Square, de onde só saiu depois do anoitecer. Se acharem que estou mentindo, vejam a prova bem aqui, ao lado...
Vivian levou algum tempo para se reconhecer, na foto. Mas era ela mesma, sem dúvida, atravessando a rua a passos largos. O fotógrafo havia conseguido enquadrar, ao fundo, a fachada do prédio. Ela voltou a ler:
E sabem quem mora no sétimo andar do luxuoso edifício? Adivinhem... Isso mesmo, Lucas Benson, cuja empresa tem a consignação daquele imóvel que é um verdadeiro sonho. Ponto para o esporte.
Mas se o leitor pensa que a história termina aí, está muito enganado.
Seguindo com dificuldade nossa bela violinista, o fotógrafo flagrou, naquela mesma noite, o conhecido barítono Edward Garnier entrando na casa dos McAllister, que se reuniam para um jantar em família. Cerca de uma hora mais tarde, houve uma despedida calorosa na varanda da casa. E quem estava se despedindo de quem? A violinista e o barítono, num beijo arrasador. Confiram na foto... Que romântico!
Ponto para a música.
Por isso, nós nos perguntamos: por quem o coração da bela violinista vai se decidir, afinal?
Por enquanto, ele balança indeciso, entre um amor e outro...
Vivian sentiu a cabeça rodar. Lá estava ela, fotografada no momento em que oferecera os lábios a Edward, para um beijo de despedida.
A reportagem prosseguia, naquele tom ferino e tolo. Mas Vivian já não conseguia acompanhar as letras, que pareciam dançar diante de seus olhos.
Entregando a revista à garota, Vivian lembrou-se da troca de confidencias que tivera com Lucas, no apartamento dúplex, na primeira vez em que lá estivera. Ele mencionara que tivera sua primeira grande desilusão amorosa ao encontrar a garota amada, beijando um primo. Vivian lembrava-se muito bem de suas palavras, na ocasião:
— Eu era bastante jovem e sem experiência em questões emocionais. Mas lembro-me de que pensei, claramente, que aquilo era um princípio do que me aguardava no futuro.
Então, ela dissera:
— Foi uma grande desilusão...
— E também um aprendizado — ele respondera. — Duro aprendizado.
Vivian podia imaginar a expressão de desgosto e perplexidade no rosto de Lucas, diante daquelas fotos e da reportagem fútil que ela acabara de ler.
Agora estava explicada a ausência dele no aeroporto, ela concluiu, com amargura.
A difícil conversa do dia anterior, à margem do lago, voltou com nitidez a sua mente perturbada:
— E tenho de acreditar, absolutamente, em você... Não é assim?
— Existe outro caminho além da total confiança entre dois seres que se amam Lucas?
Erguendo-se da poltrona com dificuldade, Vivian dirigiu-se ao banheiro. Precisava lavar o rosto... Talvez assim conseguisse conter a torrente de lágrimas que ameaçava invadir-lhe os olhos.
As duas primeiras semanas na Austrália foram, para Vivian, uma espécie de pesadelo colorido e barulhento.
Ann atirara-se de corpo e alma a seu projeto de trabalho, arrastando Vivian a todos os eventos sociais que pudessem ajudá-la a atingir seus objetivos. Assim, Ann estabelecia os contatos profissionais necessários à instalação da grife Ann Alden naquele país.
Viajando pelas mais importantes cidades, ambas hospedavam-se em hotéis, de onde mantinham contato telefônico freqüente com a família, em Richmond.
Lucas recusava-se a atender às chamadas de Vivian pelo celular. E quando ela tentou contatá-lo, na empresa, foi informada de que ele se encontrava fora da cidade.
Assim, Vivian concluiu que ele havia preferido romper totalmente a relação.
As semanas transcorriam num ritmo acelerado. Calando sua própria infelicidade, Vivian tratava de apoiar a mãe, em todos os seus movimentos. Assim, conseguia distrair-se da própria dor...
Mas era difícil, por demais, evitar a depressão que ameaçava dominá-la. Até mesmo o violino, companheiro inseparável, jazia no estojo, intocado. Apenas o mar trazia-lhe um pouco de alívio, naquele exílio voluntário a que se submetera por fidelidade e amor à família.
Não era da natureza de Vivian revoltar-se contra a vida e o destino, que tão cruelmente a castigavam. Ela entendia perfeitamente os fatos que haviam destruído seus mais caros sonhos de felicidade... E passava horas intermináveis refletindo, perplexa, sobre a fragilidade das relações humanas. Quando ficava sozinha, o que raramente acontecia entregava-se as lágrimas e chorava por muito tempo, até adormecer, exaurida.
Um mês havia decorrido desde a chegada à Austrália. Ann instalara o escritório de sua grife num elegante prédio comercial, no centro de Sidney.
Como local de residência, ambas haviam escolhido a pequena cidade praiana de Ozzy, na região sudeste da grande metrópole. Lá dividiam uma casa confortável, de grandes janelas envidraçadas, cercada por um magnífico jardim. Tinham agora um endereço fixo e uma rotina já estabelecida.
Todas as manhãs, Ann entrava em seu pequeno Opel e dirigia por cerca de uma hora, até o escritório, de onde retornava no final da tarde. Vivian dividia seu tempo entre as manhãs que passava na praia e as aulas de violino que ministrava, à tarde, no conservatório local.
Por três vezes havia conversado, por telefone, com o maestro
Rudney Bacarowitz, que a tranqüilizara sobre sua situação na orquestra. A saúde do mestre Klaus Schneider permanecia estável. E a diretoria não contestara as férias que ela pedira... Férias por sinal renovadas, a cada duas semanas, pelo maestro.
Sem ânimo para novas amizades, e sem poder compartilhar suas mágoas com a mãe, Vivian tinha apenas uma confidente: Chantal, com quem se comunicava três ou mais vezes por semana.
Assim, o tempo passava.
Do outro lado do Oceano Pacífico, no aprazível Estado da Virgínia, Lucas contemplava os picos nevados dos Apalaches, da varanda do chalé da família, em Blue Ridge, onde se refugiara por tempo indeterminado.
A decisão de se afastar de Richmond ocorrera certa tarde, quando ele quase agredira um repórter atrevido, que ousara perturbá-lo, no trabalho, com perguntas indiscretas e maliciosas sobre sua vida particular.
Consciente de estar atravessando um momento de perigosa fragilidade emocional, Lucas resolvera os problemas mais urgentes na empresa e retirara-se para as montanhas. De lá, comandava os negócios pelo telefone e por um computador. Assim, mantinha contato constante com seus principais assessores.
Além de trabalhar, Lucas despendia seu tempo em caminhadas intermináveis pelas encostas dos Apalaches. Sofria muito... E em silêncio.
O único ser humano que Lucas recebia, no chalé, era Norma. Ela estava á par de tudo o que ocorrera. E procurava minimizar as mágoas do irmão com sua presença alegre e silêncios oportunos.
Foi Norma que, num fim de semana, convidou Lucas para jantar no Piemond, um restaurante agradável, situado num vilarejo próximo ao chalé. A primeira resposta de Lucas foi um previsível não. Mas Norma soube convencê-lo, com uma persistência carinhosa, irresistível.
Assim, contrariando os hábitos recém-adquiridos, Lucas acompanhou-a ao Piemond, dirigindo por uma pista estreita e sinuosa, iluminada por uma lua magnífica, que destacava os picos nevados de Blue Ridge.
Durante o trajeto, a conversa transcorreu fácil e agradável, entre os dois irmãos. E prolongou-se no interior do restaurante, onde escolheram uma mesa com vista panorâmica para o vale enluarado.
O vinho excelente e um foundie de ótimos queijos; colocou Lucas num estado receptivo, com o qual Norma contava para o que tinha em mente. Em uma de suas idas à toalete, ela regressou acompanhada de uma bela jovem de cabelos curtos, castanho-avermelhados, e olhos negros, muito vivos e alegres.
— Lucas, eu quero que você conheça uma amiga.
Erguendo-se, ele estendeu a mão, com sua elegância natural.
— Muito prazer — disse. — Meu nome é Lucas Benson.
— Prazer em conhecê-lo, Lucas. Sou Chantal McAllister e gostaria de ter sua atenção por alguns minutos.
— Que brincadeira é essa, Norma? — Ele voltou-se para a irmã, mudando bruscamente de expressão.
— Não se trata de uma brincadeira, querido — ela garantiu, num tom leve e persuasivo. — Chantal e eu temos conversado muito, nos últimos tempos. E chegamos à conclusão de que você deveria ouvi-la.
— É mesmo? — A voz de Lucas denotava ironia e frieza. — Que interessante. — Dirigindo-se a Chantal, perguntou: — A senhorita pode falar comigo em pé, ou terei de convidá-la a sentar-se à nossa mesa?
— Lucas! — Norma exclamou, horrorizada.
— Eu me sentirei mais à vontade, se me sentar — respondeu Chantal, sem perder a compostura. — Portanto, com licença. — E acomodou-se à mesa.
Norma também se sentou, fitando Lucas com franca reprovação. Com um suspiro resignado, ele cedeu, sentando-se também.
— Espero que seja breve, Srta. McAllister — disse, num tom seco. — Minha paciência anda bastante limitada, atualmente.
— Não tomarei o seu tempo em vão, acredite. — Sem esperar que Lucas a servisse de vinho, ela mesmo o fez. Depois de sorver um pequeno gole, disse: — Parece que houve um desentendimento entre você e minha irmã, por culpa de uma reportagem maliciosa, publicada na coluna de fofocas de uma revista qualquer. Isso é certo?
— Não — ele respondeu lacônico. — Sua irmã exigiu de mim um voto de confiança, baseado no sentimento que eu tinha por ela... E depois traiu não a mim, mas a esse voto, de várias maneiras.
— Até parece que não estamos falando da mesma pessoa — Chantal contrapôs muito calma. — Vivian é incapaz de mentir ou de abrigar qualquer sentimento vil em seu coração.
— Também pensei assim, a princípio. Más os fatos vieram provar quanto eu estava enganado.
— Mas, afinal, do que você está falando? — Chantal protestou.
— De muitos fatores — Lucas respondeu, friamente. — Por exemplo, das várias vezes em que sugeri um compromisso mais sério com sua irmã e ela se fez de desentendida...
— Vivian nunca me falou sobre isso.
— Não é de se admirar — ele comentou, com desgosto. — Ela acabou se revelando uma pessoa de muitos segredos.
— E por que Vivian não aceitaria um compromisso com você, se estava apaixonada?
Ele sorriu, com sarcasmo. Depois fez um gesto vago, antes de dizer:
— Talvez a paixão, para sua irmã, tenha um significado diferente do que tem para a maioria das pessoas... Quem é que pode saber o que se passa na cabeça de uma mulher como Vivian?
— Diga-me uma coisa, Sr. Benson... — Agora era a voz de Chantal que soava fria. — Que idéia você faz de minha irmã, afinal?
— Não tenho uma concepção exata — ele declarou, num tom mordaz. — Mas vou responder sua pergunta com outra: como você julgaria uma mulher que passa a tarde fazendo amor com um homem e poucas horas depois é fotografada na varanda de sua casa, beijando outro?
— Não sei — Chantal retrucou, num tom agressivo. — Mas se eu tivesse um mínimo de afeto e respeito por essa pessoa, perguntaria a ela, diretamente.
— Para quê? — Lucas rebateu. — Para ouvir mentiras e desculpas bem elaboradas? Não, obrigado, senhorita... Tenho mais o que fazer do meu tempo.
— Eu também — Chantal ergueu-se, indignada. — E quer saber de uma coisa, Sr. Benson? Neste exato momento, tenho certeza de que Vivian fez uma péssima opção ao escolhê-lo, em vez de continuar com Edward Garnier.
— Aquele pobre barítono... Outro iludido — Lucas comentou. — Deve ter vivido um inferno, por gostar de sua irmã.
— De fato, Edward ainda sofre por Vivian... Mas não pelos motivos que passam por sua cabeça desatinada — Chantal desabafou, num ímpeto, voltando-lhe as costas e se afastando da mesa.
— Espere Chantal, eu vou com você — disse Norma. Virando-se para Lucas, censurou-o duramente: — Você de fato deve estar muito mal, para agir dessa maneira deplorável.
— Norma... — ele quis se justificar. Entretanto, ela já se afastava, para alcançar Chantal.
Sozinho à mesa, Lucas contemplou, com desgosto, o jantar arruinado. E arrependeu-se amargamente por ter saído de casa naquela noite.
Retirando a carteira do bolso, separou algumas notas e colocou-as sob a taça do vinho, que até poucos instantes atrás lhe parecera tão bom.
Já estava se levantando, quando notou um homem vindo em sua direção. Numa voz grave e bem colocada, parou diante de Lucas e disse:
— Meu nome é Edward Garnier e preciso lhe falar. Posso me sentar por alguns instantes?
Vivian havia se afastado da praia, nadando além da arrebentação, em braçadas bem ritmadas.
A água estava fria e estimulante... E ela mergulhou, com os olhos abertos, naquela imensidão verde e líquida.
Voltando à superfície, deixou-se flutuar de costas, respirando de maneira compassada.
Aqueles eram, verdadeiramente, os únicos momentos de perfeita paz que desfrutava, em seus dias tristes e repetitivos.
O mar tinha o poder de acalmar seus pensamentos e, naquele contato benéfico, Vivian se revigorava. Mas o sol já ia alto ao céu. E ela precisava preparar seu almoço, antes das aulas no conservatório.
Com um movimento gracioso, girou sobre si mesma, iniciando a volta à praia, em velocidade moderada.
Uma onda potente carregou-a, nos últimos metros. Aproveitando aquele impulso, Vivian ganhou pé e correu para fora da água. Ajeitando os cabelos negros atrás das orelhas, caminhou em direção ao local onde havia deixado sua esteira e uma bolsa com a toalha, a saída de banho, os óculos escuros, o protetor solar e a chave de casa.
Havia alguém, em pé, ao lado da esteira. E, por um momento, Vivian julgou estar sonhando... Até que ouviu a voz que acompanhava todos os seus sonhos e devaneios.
— Vivian... Estou aqui para lhe pedir perdão e dizer que amo você — Lucas declarou, de um só fôlego.
Sorrindo, ela murmurou:
— Eu não acredito...
Então ele abriu os braços, os olhos azuis brilhando na expectativa do contato que não se fez esperar...
Dando um passo adiante, Vivian aninhou-se naquele peito másculo, chorando baixinho.
— Minha querida — Lucas sussurrou. — Meu doce amor... Perdoe-me... Preciso tanto de você.
Erguendo o rosto banhado em lágrimas, ela ofereceu os lábios entreabertos ao beijo tão sonhado. Lucas bebeu sôfrego, as lágrimas e o sal do mar, com a boca sequiosa e ardente.
Quando por fim os rostos se separaram, Vivian recolheu os objetos de praia. Vestindo a saída de banho, disse a Lucas, com doce simplicidade:
— Moro aqui perto. Quer conhecer minha casa?
— Claro que sim. Deixe-me carregar isso...
Ela entregou a Lucas á esteira enrolada e guardou os outros objetos na bolsa, que colocou no ombro.
De mãos dadas, os dois caminharam pela areia alva e quente da orla.
— Como foi que você me encontrou? — disse Vivian.
— Graças a Chantal e a Norma. Devo a elas o fato de estar aqui, agora, com você.
— Então, suponho que nosso mal-entendido tenha sido desfeito... E que você agora saiba que o beijo que aceitei de Edward não foi uma traição ao nosso amor.
— Sim, eu sei. Edward Garnier, que estava de passagem por Richmond, para visitar a família, concordou em falar comigo, a pedido de nossas irmãs. Devo muito a ele, também.
Abraçados, ambos continuaram caminhando, até que saíram da orla em direção a uma rua de areia, onde havia várias casas, bem separadas umas das outras. Num dado momento, Vivian anunciou:
— Aquela é a casa que mamãe e eu escolhemos para morar, neste país.
— É muito bonita.
— Nunca vivi tão perto do mar. Do meu quarto, posso ouvir todas as mudanças das marés. Venha...
Vivian abriu um gracioso portão de madeira, todo trabalhado, com recortes em formato de estrelas e palmeiras. Ambos caminharam, por uma trilha de pedras rosadas, até um grande chuveiro a céu aberto. Livrando-se do biquíni, Vivian abriu o chuveiro e entrou sob o forte jato de água.
— É preciso tirar o sal e a areia do corpo, antes de entrar em casa — ela explicou.
— Entendo — Lucas assentiu, emocionado diante da nudez de Vivian, que era a própria personificação da beleza. — Pena que eu não possa usar desse mesmo argumento, para entrar aí com você.
— E quem disse que é preciso argumentos, para isso? — ela o provocou, sorrindo.
Depois de tirar os sapatos, meias e a camisa de gola pólo, Lucas se deteve, olhando ao redor, tomado por uma súbita preocupação.
— Vá em frente — Vivian o encorajou. — Mamãe está em Sidney, trabalhando. E o jardineiro, bem como a diarista, saiu ás onze horas.
Sem mais hesitação, Lucas livrou-se das roupas, entrando sob a ducha forte e fria.
— Você parece ter um problema, aí — disse Vivian, com os olhos fixos no ventre de Lucas, rindo como uma menina.
— Pois isso deixará de ser um problema, assim que encontrar o lugar correto para se abrigar — ele respondeu sôfrego.
Os dois se abraçaram sob a cortina de água doce, com uma ansiedade que crescia a cada minuto, até que Vivian, não mais resistindo àquela doce tortura, sussurrou:
— Venha.
As roupas ficaram abandonadas no gramado, enquanto Vivian e Lucas seguiam nus, pela trilha de pedras rosadas, até a casa. Remexendo na bolsa, Vivian pegou a chave e abriu a porta.
Unidos, como se formassem um só corpo, um só coração pulsante, ambos atravessaram a sala e o corredor, até chegarem ao quarto de Vivian. Atiraram-se na cama, ainda molhados e gotejantes, premidos pela força imperiosa de um desejo que não mais podia esperar para ser satisfeito.
Os gemidos e murmúrios, os sons líquidos e contínuos foram atingindo um crescente.
Palavras loucas e desconexas misturavam-se a súplicas e gritos abafados.
As marcas molhadas dos pés, na trilha de pedras rosadas, foram desaparecendo... Assim como as pegadas nas lajotas de tom amarelado, que compunham o piso da casa. O tempo não mais existia, ao menos para Vivian e Lucas, que comemoravam o reencontro de uma única maneira, a mais bela possível; com um ato de amor.
Lá fora, a tarde começava. O sol seguia seu curso inexorável, pelo céu imensamente azul.
No conservatório da pequena cidade de Ozzy, as pessoas começavam a estranhar a falta da professora Vivian, que sempre chegava ao menos quinze minutos antes do horário. Mas, naquele dia, estava atrasada... Certamente por um motivo de força maior... Muito maior.
Sentando à mesa da cozinha, Lucas olhava para Vivian com uma expressão contrafeita.
Rodelas de pão italiano, queijo, uma travessa com restos de salada e uma jarra quase vazia de suco de laranja completavam a mesa do lanche improvisado que haviam feito.
Em pé, ao lado do fogão, Vivian explicava paciente, seu modo de ver a situação de ambos.
Enquanto isso esperava que a água fervesse, para preparar um café.
— Não se trata de uma questão de desamor, Lucas... Mas algo mudou, em meu íntimo, depois dos últimos acontecimentos.
— Se não é falta de amor, então você está querendo me castigar por ter duvidado de seu caráter — ele argumentou ofendido.
— E que estranho castigo é este que tanto faz sofrer quem o aplica?
— Vivian, por favor — ele pediu, entre ansioso e impaciente.
— Não complique ainda mais as coisas. Também sofri muito, mas já entendi quanto fui injusto e arbitrário. Só que tudo isso já passou. Hoje, sinto que confio em você plenamente.
— Mas eu não posso dizer o mesmo a seu respeito — ela sentenciou. — Tive muito tempo para analisar o que aconteceu entre nós, Lucas. E concluí que você sofre de um sério distúrbio emocional... De um complexo de rejeição, provavelmente.
— E como chegou a essa brilhante conclusão? — ele perguntou irônico.
— Pela reação agressiva que você teve, em seu apartamento, quando acordou e não me viu a seu lado na cama. Por trás daquela agressividade, havia pânico e, talvez, um medo imensurável de ser abandonado.
— Vivian...
— Deixe-me concluir o raciocínio — ela pediu. E continuou: — Ao ver aquela foto absurda, na revista, você poderia ter me procurado, para saber do que se tratava. Mas, em vez disso, concluiu de imediato, que eu o havia traído. Conseqüentemente, não foi se despedir de mim no aeroporto e recusou-se a receber meus telefonemas.
— Eu sei o que fiz — ele declarou, num tom grave.
— Com essa atitude, você me negou qualquer possibilidade de explicação ou defesa. Julgou, sem ouvir meus argumentos. E condenou-me, sem direito à apelação.
A água já estava fervendo. Vivian preparou o café, em silêncio. Serviu duas xícaras e sentou-se em frente a Lucas, que a observava com uma expressão indefinível.
— Você não me quer mais... É isso que está tentando me dizer? — ele perguntou, por fim.
— Não, Lucas. Mas confesso que estou perplexa com o outro lado de sua adorável personalidade... O lado escuro, que oculta um ser voluntarioso, prepotente e cruel.
— Os seres humanos não são perfeitos — ele retrucou tenso.
— Não ignoro esse fato. Mas a verdade, Lucas, é que desejo um lar com muitos filhos. Quero ensinar a eles o respeito mútuo, a confiança e a liberdade de ser. E não creio que você esteja preparado para isso.
Lucas sorriu, com amargura. Tomou o café sem pressa e colocou a xícara de volta sobre a mesa. Fitando Vivian com uma triste expressão nos olhos azuis, perguntou:
— Então, é o adeus?
— Ou um até breve, não sei. Pense bem sobre tudo o que ocorreu e tente se conhecer melhor.
— Eu farei isso. — Ele se levantou com os olhos azuis enevoados. — Adeus, Vivian.
— Adeus... Ou, quem sabe, até um dia...
Ele caminhou lentamente, até a porta. Já ia abri-la, mas voltou-se para dizer:
— Sabe de uma coisa, Vivian? Talvez não seja muito difícil encontrar alguém mais equilibrado e justo do que eu, para ser o pai de seus filhos. Você parece saber muito bem os valores corretos para criá-los, e digo isso sem nenhuma ironia. Mas, se um dia encontrar esse homem, certifique-se de que ele tenha algo essencial... Algo que, aliás, falta a você...
— Sim?
— O dom do perdão.
Boquiaberta, Vivian teve a nítida impressão de que as palavras de Lucas ecoavam nas paredes azulejadas da cozinha, mesmo depois que ele se foi.
A primavera cedeu lugar ao verão e, com ele, chegaram ás férias escolares.
Gerald, livre de sua cátedra na Universidade de Richmond, tomou uma atitude que surpreendeu a todos: arrumou as malas e voou ao encontro da esposa.
Se haveria reconciliação, entre o casal, ninguém poderia afirmar com certeza. Mas era evidente o empenho de Gerald para tentar salvar seu casamento.
Com a chegada do pai em Sidney, Vivian sentiu-se livre para retornar a Richmond e reassumir seu posto na orquestra. Assim, desobrigava o maestro Rudney do arriscado compromisso de mantê-la em férias constantes e irregulares.
Vivian encontrou o lar dos McAllister bastante mudado. Chantal coordenava com eficiência o andamento geral da casa. Mas era Alex, bastante amadurecido pelos últimos acontecimentos, quem tomava as decisões mais imediatas. A harmonia fora mantida, apesar do vendaval emocional que passara por ali.
Algum tempo atrás, Vivian soubera, por Chantal, que Lucas havia deixado o país depois de passar o controle da empresa ao pai. Segundo as informações que Chantal recebera de Norma, Lucas circulava pela Europa Oriental e Ásia, numa longa viagem.
Assim, a vida prosseguia, sem grandes acontecimentos, a não ser a atitude sábia do mestre Klaus Schneider, que tomou a si o encargo de preparar Vivian para substituí-lo em todo o repertório da orquestra.
As férias de verão já estavam no fim, quando Gerald regressou a Richmond. Mais magro queimado de sol, e com um sorriso constante nos lábios, o professor parecia ter rejuvenescido. Logo depois de regressar, anunciou à família sua decisão de transferir-se para a Austrália, pois lá recebera uma interessante proposta de trabalho. Naturalmente, este era um claro sinal de que ele havia se reconciliado com Ann.
O verão se foi e o outono chegou, tingindo as folhas das árvores de um tom castanho-avermelhado, uma característica única daquela estação.
Certa tarde; Viviam estava lendo um livro de contos populares europeus, na poltrona predileta do pai, quando Chantal entrou na sala. Com ar de quem trazia uma grande notícia, falou:
— Adivinhe quem está na cidade.
— Lucas — disse Vivian, sem se alterar.
— Como soube? — Chantal perguntou, espantada.
— Eu não sabia, mas deduzi, por sua cara de boba.
— Você é irritante, maninha.
As duas riram, enquanto Vivian fechava o livro, com um leve rubor cobrindo-lhe os lindos traços.
— Quando foi que Lucas chegou Chantal?
— Hoje de manhã. Norma ligou para me contar.
— E ele... Está bem?
— Parece que sim. Mas você poderá verificar pessoalmente... — Com um largo sorriso, Chantal anunciou: — Norma nos convidou para conhecer o chalé da família Benson, em Blue Ridge.
— Quando?
— Hoje à noite. Você irá?
— Depende.
— Do quê?
— De um telefonema de Lucas, dizendo que quer me ver. Não acho certo impor minha presença a ele.
Contendo uma imprecação Chantal, caminhou até o telefone e teclou um número.
Preocupada, Vivian perguntou:
— O que você vai fazer?
— Simplificar um pouco essa estória de vocês dois, que já está me deixando com os nervos abalados. — Pedindo silêncio a Vivian, com um gesto, ela falou ao telefone: — Alô... Norma? Aqui é Chantal. Preciso lhe falar sobre um assunto importante: minha irmã condicionou sua ida a Blue Ridge a um telefonema de Lucas... Ah, ele está aí, com você? Ótimo! Espere um momento, sim? — Voltando-se para Vivian, disse com ironia: — Se não for contra nenhum dos seus princípios, minha adorável irmã, será que você poderia falar com Lucas por telefone?
Com um gesto de assentimento, Vivian pegou o aparelho, as mãos um tanto trêmulas:
— Alô... Lucas? Que bom ouvir sua voz.
Fazendo voar os cabelos curtos, num gesto de impaciência, Chantal deixou a sala.
A lua crescente destacava-se no céu estrelado, clareando Blue Ridge como num cenário de sonho.
Seguindo o carro de Chantal pela trilha sinuosa e ascendente, Vivian perdia-se na contemplação daquela beleza grandiosa. Estava feliz e bastante excitada com a perspectiva de rever Lucas, depois de tanto tempo. Ele fora tão carinhoso ao telefone...
O chalé dos Benson destacou-se na encosta, com suas luzes vazando pelas janelas e varanda.
Vivian estacionou ao lado do carro de Chantal, que já abraçava Norma, que viera a seu encontro. Uma súbita fraqueza ameaçou dominar Vivian no momento em que ela pisou o chão. Um arrepio de puro prazer percorreu-lhe o corpo, ao ouvir a voz tão querida atrás de si.
— Seja bem-vinda, Vivian. Que noite maravilhosa, não?
Ela voltou-se, lentamente. À luz do luar, filtrada pelas árvores, reconheceu Lucas, parado a poucos metros, exibindo um largo sorriso. Trazia os cabelos castanhos mais longos, as pontas tocando a gola do, sobretudo, que ele evidentemente vestira às pressas, para vir recebê-la.
— Lucas — ela murmurou, sem se mover.
— Posso beijar você? — ele disse, aproximando-se ainda mais.
— Deve — ela respondeu, numa frágil tentativa de gracejo. Mas sua voz soava trêmula.
O beijo foi longo e doce, com uma sensualidade subjacente mesclada a uma intensa ternura, tamanha era a força da saudade que dominava os dois.
— Você está magro — Vivian comentou ainda abraçada a ele.
— E você está macia...
Ela sorriu, misteriosamente.
— Vamos entrar — ele convidou. — Norma preparou um ponche excelente para nos aquecer. Aqui, em Blue Ridge, as noites são muito frias, mesmo no início do outono.
De mãos dadas, caminharam para o interior da casa, onde Vivian foi apresentada a Norma.
Diante da lareira acesa, brindaram à volta de Lucas.
A conversa fluiu num tom alegre e descontraído, por um bom tempo. Depois, Chantal e Norma saíram convenientemente de cena, deixando Lucas e Vivian a sós.
— A noite está tão linda — Vivian comentou. — Por que não nos sentamos na varanda, para conversar?
— É uma ótima idéia. Mas deixe-me servi-la de um pouco mais de ponche.
Ambos saíram para a varanda e se acomodaram em confortáveis poltronas de vime, cobertas de macias almofadas. Saborearam o ponche, depois colocaram os copos sobre uma mesa baixa, a um canto. Então, Lucas pediu:
— Conte-me o que aconteceu com você, nos últimos tempos.
— Bem, depois que você foi embora, voltei às minhas atividades cotidianas, dando aulas no conservatório de Ozzy e freqüentando a praia pelas manhãs. Daí chegou o verão e papai resolveu passar as férias com mamãe, numa espécie de segunda lua-de-mel. Por isso pude voltar a Richmond, reassumir meu lugar na orquestra e, enfim, retomar minha vida — Vivian resumiu. — E quanto a você? O que fez, durante esse período?
— Atravessei a Europa de bicicleta, com um grupo de estudantes. Depois segui viagem; sozinho, às vezes de carona, pelos bálticos.
— Relembrando os tempos de adolescência?
— Também... Mas, na verdade, eu estava procurando reencontrar o ser que fui um dia, com ideais e sonhos tão nobres.
— Nostalgia do passado?
— Não. Queria confrontar-me com aquele ser de quem me orgulhava, para tentar descobrir por que ele se transformou no homem voluntarioso, prepotente e cruel que você rejeitou.
— E conseguiu Lucas? — ela perguntou, com doçura.
— Não foi tão fácil assim. — Ele sorriu um tanto melancólico, recordando alguns momentos cruciais da viagem. — Tive que passar a limpo os fatos mais importantes de minha vida. E certa noite, ao descer o rio Yang Tsé, de barco, descobri o que havia acontecido: fiz concessões demais, ao longo dos últimos anos, aceitando papéis que não me cabiam. E sabe por que agi assim? Por julgar-me imune à contaminação que os atos trazem à personalidade de um ser.
— Entendo perfeitamente o que você diz.
— Todas as ações injustas, mesmo as mais simples, trazem em si um grande peso, Vivian... Um peso que começa a fazer parte de nós, como um sedimento. E esse sedimento vai se acumulando no fundo de nossa alma, com a repetição dos fatos indevidos, até sufocar o que temos de mais belo e puro.
— E depois dessa descoberta você chegou a alguma conclusão, Lucas?
— Diversas. — Agora ele sorria, francamente, com a pureza de um menino. — Fiz várias modificações em minha vida. E como não poderia? Afinal, não basta descobrir que algo está errado... Depois disso, é preciso tomar providências, para que nossas conclusões se transformem em atitudes.
— Concordo plenamente — Vivian opinou. — O autoconhecimento é um passo essencial, para que possamos crescer. Mas de nada adianta fazer uma grande descoberta, se ela não se transformar em ação.
— E é justamente por isso que estou voltando a me dedicar ao esporte. Fiz e retomei contatos importantes, nessa viagem: Pretendo ensinar esgrima, não só aqui em Richmond, mas também em diversas academias sérias, espalhadas por todo o mundo.
— Fico feliz por vê-lo assim, tão motivado — disse Vivian, com sinceridade.
— Pretendo, também, continuar meus estudos das línguas neolatinas, que sempre me trouxeram tanto prazer.
— Eu já imaginava que algum dia você retomaria essa paixão — Vivian comentou, encorajando-o. — Só não esperava que fosse tão cedo.
— Cedo? — ele repetiu, com um largo sorriso. — É quase tarde demais, eu diria. Eu estava me transformando num empresário duro e empedernido, regido por leis de mercado quase sempre injustas e cruéis. E, o que é pior; jamais fui afeito a essa profissão. O poder sempre me deixou indiferente ou entediado.
Lucas ficou em silêncio por alguns instantes; os olhos perdidos no vale lá embaixo, prateado pelo luar. Depois prosseguiu, numa voz cálida e grave:
— Quando a conheci, Vivian, eu pensei que todas essas questões, submersas na vida inadequada que eu levava, pudessem ser apagadas pela força do amor. Acreditava que você iria me redimir levando-me de volta ao ser que eu um dia fora.
— Lucas...
— Quando você se recusou a levar a sério minha proposta de um compromisso efetivo, senti meu ego ferido. A insegurança de me saber aquém de mim mesmo, ou melhor, muito longe do que eu desejava ser, veio à tona... Então reagi, tomando uma série de atitudes ofensivas, desconfiando de você e julgando-a capaz de uma atitude vil.
— Já perdoei você por isso, Lucas.
— Eu tinha certeza que seria assim, Vivian. Você é generosa demais para manter um sentimento negativo, por longo tempo, dentro do coração. Além do mais...
— Lucas... — ela o interrompeu.
— Vivian, eu não quero lhe pedir nada, a não ser uma chance de provar que estou trabalhando a sério, sobre mim mesmo. E daí, quem sabe se na próxima primavera nós poderíamos...
— Lucas... — ela o interrompeu novamente, dessa vez com mais firmeza.
— Sim?
— Você consideraria muito humilhante ajoelhar-se na minha frente e dizer que me ama?
— Não... Claro que não.
— Então, faça isso, por favor...
Sem titubear sequer por um segundo, ele ajoelhou-se nas tábuas largas do piso, entre os pés de Vivian. Tomando-lhe as mãos entre as suas, fitou-a nos olhos e disse:
— Eu amo você, Vivian... Agora e para o resto de minha vida.
— Eu também amo você, meu querido.
— Então, quem sabe se na primavera nós poderíamos... — ele voltou a insinuar, cheio de esperanças.
— Poderíamos o que, Lucas?
— Retomar nossa história — ele respondeu de um só fôlego. — Assim, quem sabe você aceitaria se tornar minha esposa...?
— Creio que não será possível...
— Tudo bem — ele apressou-se a dizer. — Não quero forçá-la a nada...
— Não é este o problema, Lucas, meu amor. É que na primavera estarei saindo do resguardo e amamentando... Seria incômodo demais me casar nessa situação, você não acha?
— O... O quê? — ele reagiu confuso.
Entreabrindo o casaco, Vivian dirigiu as mãos de Lucas para o seu ventre, levemente protuberante.
— Você... Nós...? — ele balbuciou.
— Eu não fiz isso sozinha, garanto — ela disse baixinho procurando na expressão de Lucas qualquer vestígio de dúvida.
Mas não havia nada naqueles olhos azuis e límpidos, a não ser surpresa e uma intensa alegria.
Era como se Lucas temesse estar sonhando... Como se temesse não ser verdade o imenso presente que acabava de receber.
— Quantos meses? — ele conseguiu, enfim, perguntar.
— Quatro e meio. Ou será que você não sabe fazer contas? — Vivian o provocou, rindo deliciosamente.
— Então, foi na Austrália?
— Em Ozzy, ao que tudo indica.
— Menino ou menina?
— Não sei. E isso importa?
— Na verdade, não. Mas gostaria que fosse uma menina, terna e amorosa como a mãe.
— Eu não tenho preferência, mas gostaria que os olhos fossem azuis como os seus. — Vivian acariciou-lhe o rosto. — Eu amo seus olhos, sabia?
— Só os olhos?
Ela riu, meneando a cabeça. De súbito, disse:
— Você acha que nossas irmãs ficariam escandalizadas, se fôssemos para o seu quarto?
— Não...
Algo como uma contração involuntária do corpo de Lucas, tão próximo ao seu, fez com que Vivian perguntasse:
— O que foi?
— Eu nunca fiz sexo com uma mulher grávida, antes — ele confessou, com uma simplicidade adorável.
Sorrindo, ela respondeu:
— Então é bom ir se acostumando, porque não pretendo passar a gravidez sem desfrutar as coisas mais lindas que temos em comum: nosso afeto, compreensão, ternura, afinidades, sonhos... E sexo, por que não?
— Por que não? — ele repetiu.
Abraçados, Vivian e Lucas entraram em casa, levando no coração uma certeza e, no corpo, um desejo. No fim das contas, a certeza e o desejo se confundiam num sentimento único, que poderia resumir-se em uma única palavra, ou já em várias: amor; procura; encontro, respeito, força, coragem, magia... Vida.
Anna Summer
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