Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Amor de Verão
...com a lua cheia e branca e fria. Ele viu as sombras se deslocando e tremendo como se fossem criaturas vivas por sobre a neve incrustada. Céu negro, lua branca, sombras negras, neve branca. Até onde conseguia enxergar, não havia mais nada. Apenas um vazio muito grande, uma ausência de cor. O único som era o gemido sibilante do vento em meio às árvores nuas. Mas ele sabia que não estava só, que não havia segurança no negro ou no branco. Um candente fio de medo perpassava seu coração. A respiração, extenuada, quase inexistente, exalava pequenas nuvens brancas. Por sobre o solo congelado emergia uma sombra negra. Não tinha para onde correr.
Hunter deu uma tragada no cigarro e olhou para as palavras à sua frente, envoltas numa neblina de fumaça. Michael Trent estava morto. Hunter o havia criado e moldado apenas para aquela morte fria e lamentável na lua cheia. Teve uma sensação que era muito mais de êxito do que de remorso por destruir o homem que ele conhecia mais intimamente do que a si próprio.
Entretanto, terminaria o capítulo ali, deixando os detalhes do assassinato de Michael para a imaginação dos leitores. A ambientação estava posta, os segredos, sugeridos, o destino era palpável, mas inexplicável. Ele sabia que esse seu costume ao mesmo tempo frustrava e fascinava os admiradores. E como esta era precisamente sua intenção, estava satisfeito. Nem sempre ficava.
Ele inventava situações assustadoras, de tirar o fôlego, indescritíveis. Hunter explorava os mais obscuros recantos da mente humana e, com fria precisão, tornava-os tangíveis. Tornava o impossível plausível e o sinistro, lugar-comum. O lugar-comum, ele freqüentemente transformava em algo aterrorizante. Utilizava as palavras da mesma forma que um artista usava os pincéis, e produzia histórias envoltas em tal cromatismo e simplicidade, que o leitor sentia-se aprisionado desde a primeira página.
Escrevia histórias de terror, gênero no qual obtinha um sucesso fenomenal.
Fazia cinco anos, era considerado o mestre neste seu jogo particular. Produzira seis best-sellers galopantes, quatro dos quais transformara em roteiros de filmes. As críticas eram as melhores possíveis, as vendas não paravam de crescer, cartas de fãs chegavam de todos os cantos do mundo. Hunter não dava a menor importância. Escrevia primeiro para si mesmo, porque contar uma história era o que fazia de melhor. Se conseguia divertir alguém com suas histórias, ficava feliz. Mas, independente das reações de público e crítica, jamais se arrependia de ter escrito algo. Tinha seu trabalho; tinha sua privacidade. Essas eram as duas coisas mais importantes de sua vida.
Não se considerava um recluso; não se considerava anti-social. Simplesmente levava sua vida da maneira que escolhera. Fizera o mesmo seis anos antes... antes da fama, do sucesso e do grande progresso de vida.
Se alguém lhe perguntasse se o fato de ter escrito uma série de best-sellers havia mudado sua vida, ele responderia: e por que deveria ter mudado? Era escritor antes de A dívida com o diabo pular para o primeiro lugar da lista do New York Times. E era escritor agora. Se tivesse sido sua intenção efetuar mudanças na vida, teria se tornado encanador.
Algumas pessoas diziam que seu estilo de vida era calculado — que ele criava a imagem de excêntrico só para fazer efeito. Boa promoção. Algumas pessoas diziam que criava lobos. Outras diziam que ele nem mesmo existia. Era o produto inteligente da imaginação de algum editor. Mas Hunter Brown não tinha a menor consideração com o que diziam. Invariavelmente, ouvia apenas o que lhe convinha, via apenas o que desejava ver e lembrava de tudo.
Depois de apertar uma série de botões no processador de texto, preparou-se para o capítulo seguinte. O capítulo seguinte, a palavra seguinte, o livro seguinte, eram de muito mais importância para ele do que qualquer artigo hipotético que pudesse vir a ler.
Trabalhara por seis horas naquele dia, e imaginava que ainda agüentava mais duas, pelo menos. A história fluía como água congelada: fria e clara.
As mãos que digitavam eram bonitas — bronzeadas, enxutas, volumosas e com dedos longos. Alguém poderia olhar, parar e pensar que elas poderiam compor concertos ou poemas épicos. Elas compunham, na verdade, sonhos obscuros e monstros — não aqueles com garras e dentes à mostra e cheios de cicatrizes, mas monstros bastante reais, que davam arrepios. Ele sempre incluía uma boa dose de realismo e de cotidiano em suas histórias, o que fazia com que o terror adquirisse características reais e plausíveis. Havia uma criatura escondida no baú escuro de sua obra, e esta criatura era o medo particular de cada um. Ele sempre a encontrava. E então, centímetro a centímetro, abria o cadeado do baú.
Quase esquecido, o cigarro queimava no cinzeiro já transbordante perto de seu cotovelo. Fumava demais. Talvez fosse o único sinal exterior da pressão que se auto-impunha, pressão que não toleraria de ninguém mais. Queria terminar o livro até o final do mês, sua meta auto-imposta. Num de seus raros impulsos, concordara em falar em um congresso de escritores em Flagstaff na primeira semana de junho.
Não era comum ele aceitar aparecer em público, e quando aparecia não era nunca um evento grande e divulgado. Este congresso em particular reuniria não mais do que duzentos escritores e candidatos a escritores. Ele apresentaria seu workshop, responderia perguntas e depois voltaria para casa. Não haveria cachê para os palestrantes.
Somente neste ano, Hunter recusara sumariamente várias ofertas de algumas das mais prestigiosas organizações ligadas ao meio editorial. Prestígio não lhe interessava, mas considerava, a seu próprio modo peculiar, a contribuição à Corporação dos Escritores do Arizona Central uma questão de dívida pessoal. Hunter sempre entendeu que nada era de graça.
A tarde chegava ao fim quando o cachorro deitado aos seus pés ergueu a cabeça. O cão era esguio, com uma pelagem acinzentada e brilhante e a aparência retilínea e inteligente de um lobo.
— Já está na hora, Santanas? — Com um carinho que lhe parecia inato, a mão de Hunter acariciou a cabeça do cachorro. Satisfeito, mas já tendo decidido trabalhar até mais tarde, desligou o processador de texto.
Hunter deixou para trás o caos de seu escritório e dirigiu-se para a arrumada sala de estar com suas janelas altas e um loft no teto. Cheirava a baunilha e a margaridas. Grande e macio, o cachorro acompanhava-o.
Após abrir as portas que davam para o pátio de terracota, olhou para as espessas árvores que o circundavam. Tinham sua privacidade ao manter os outros afastados. Hunter nunca as levou muito em consideração, só sabia que precisava delas. Precisava da paz, do mistério e da beleza, da mesma forma que precisava dos grossos paredões vermelhos do canyon que se erguia ao redor de sua casa. No silêncio, conseguia escutar o barulho da água no riacho e aspirar a inebriante frescura do ar. Isso jamais lhe fora indiferente; não era algo que tivesse tido por toda a sua vida.
Então a avistou, caminhando despreocupadamente pela trilha espiralada que dava na casa. O rabo do cão começou a balançar.
Às vezes, quando a via assim, Hunter imaginava que seria impossível algo tão adorável pertencer a ele. Era morena e tinha um aspecto delicado. Movimentava-se com uma autoconfiança que o fazia sorrir mesmo quando sofria. Ela era Sarah. O trabalho e a privacidade eram as duas coisas vitais em sua vida. Sarah era sua vida. Ela justificara as lutas, a frustração, as lágrimas e a dor. Ela justificava tudo.
Olhando na direção dele, ela abriu um sorriso que brilhava em virtude do aparelho dentário.
— Oi, pai!
A semana de lançamento de uma revista como Celebrity é o caos total. Cada chefe de departamento fica à beira de um ataque de nervos. Escrivaninhas ficam lotadas, telefones indisponíveis e almoços são deixados de lado. O ar fica saturado de uma sensação de pânico que cresce a cada hora. O bom humor desaparece e os pedidos beiram o ultraje. Na maioria dos departamentos, as luzes ficam acesas até tarde da noite. O forte aroma de café e a ardência da fumaça de cigarro estão sempre presentes. Caixas de antiácidos são devoradas e garrafinhas de colírio passam de mão em mão. Após cinco anos na equipe, Lee já considerava o pânico mensal parte do trabalho.
Celebrity era uma publicação fina e respeitável cujas vendas geravam milhões de dólares por ano. Além de histórias sobre os ricos e famosos, publicava artigos de eminentes psicólogos e jornalistas, entrevistas com políticos e astros de rock. As fotos eram de excelente qualidade, assim como o texto era cuidadosamente pesquisado e redigido de uma maneira concisa e enxuta. Alguns de seus detratores talvez a considerassem apenas fofoca de qualidade, mas a palavra qualidade nunca era esquecida.
Um anúncio em Celebrity era aposta certa para gerar vendas e interesse, e seu preço era igualmente proporcional. Celebrity era, em um negócio competitivo ao extremo, uma das mais importantes publicações mensais do país. Lee Radcliffe não teria buscado algo menos importante.
— Como ficou o trabalho com as esculturas?
Lee lançou um olhar para Bryan Mitchell, uma das principais fotógrafas da Costa Oeste. Agradeceu o copo de café que Bryan lhe passou. Nos últimos quatro dias, não dormira mais do que 20 horas.
— Bom — disse ela.
— Já vi trabalhos melhores rabiscados em becos. Embora concordasse, Lee apenas deu de ombros.
— Algumas pessoas gostam do que é sem valor e obscuro. Com um sorriso, Bryan balançou a cabeça.
— Quando me disseram para fotografar da melhor forma possível aquele emaranhado de fios pretos, quase pedi para eles apagarem a luz.
— Você fez o negócio parecer quase místico.
— Posso fazer um depósito de entulho parecer místico com uma iluminação adequada. — Deu um sorrisinho para Lee. — Da mesma forma que você pode fazer ele parecer fascinante.
Um sorriso surgiu no rosto de Lee, mas sua cabeça já estava se dirigindo para diversas outras direções.
— Tudo num dia de trabalho, certo?
— Falando de trabalho... — Bryan encostou os quadris bemfeitos acomodados numa calça jeans na organizada mesa de trabalho de Lee e bebeu o café. — Ainda está tentando arrumar alguma coisa com Hunter Brown?
As bem-feitas sobrancelhas de Lee ergueram-se em conjunto. Hunter Brown estava se tornando uma odisséia pessoal e quase uma obsessão. Talvez por ele ser tão completamente inacessível, ela estabelecera a meta de ser a primeira a romper a nuvem de mistério. Levara quase cinco anos até conseguir chegar à função de repórter, e tinha a reputação de ser obstinada, meticulosa e impassível. Lee sabia que merecia os adjetivos. Três meses dando de cara com paredes vazias à procura de Hunter Brown não arrefeceram seu ímpeto. De um jeito ou de outro, conseguiria a matéria.
— Até agora não fui além do nome do agente dele e do telefone do editor. — Talvez se percebesse um quê de frustração na sua voz, mas a expressão era de determinação. — Nunca vi gente mais fechada.
— O último livro dele chegou às livrarias na semana passada. — Distraída, Bryan pegou uma folha do alto de uma das várias pilhas de papéis com que Lee vinha sistematicamente trabalhando. — Você leu?
— Dei uma olhada, mas ainda não tive chance de começar. Bryan jogou para trás a longa trança cor de mel, que caiu sobre seu ombro.
— Não comece a ler numa noite escura. — Deu um gole no café e então soltou uma gargalhada. — Cara, acabei dormindo com todas as luzes de meu apartamento acesas. Não sei como ele consegue fazer uma coisa assim.
Lee levantou o olhar novamente, os olhos calmos e confiantes.
— Isso é algo que vou descobrir.
Bryan assentiu com a cabeça. Conhecia Lee fazia três anos, e não tinha dúvida que ela conseguiria.
— Por quê? — Seus olhos francos e amendoados pousaram sobre os de Lee.
— Porque... — Lee terminou o café e jogou o copinho na lixeira lotada — ninguém mais descobriu.
— A síndrome do Monte Everest — comentou Bryan, e deu um risinho espontâneo.
Um olhar de relance mostraria duas mulheres atraentes numa conversa informal num escritório moderno e bem decorado. Um olhar mais de perto revelaria os contrastes. Bryan, de jeans e com uma camiseta confortável, era totalmente descontraída. Tudo nela era informal e nem um pouco arrumado — dos tênis manchados às tranças soltas. Seu rosto encantador e de belas feições só recebera uma ligeira pincelada de rímel. Provavelmente tivera a intenção de passar batom ou ruge, mas se esquecera.
Lee, por outro lado, usava um elegante terninho azul-claro, e os nervos que a mantinham no ritmo eram evidentes nas mãos que nunca se aquietavam. Seu cabelo tinha um corte perfeito num estilo curto e pendente que precisava de muito cuidado — o que, para ela, era tão importante quanto a boa aparência. Sua pele tinha a delicadeza e a brancura que algumas ruivas adoram e outras odeiam. Sua maquiagem havia sido meticulosamente aplicada naquela manhã, incluindo a sombra azul que combinava com os olhos. Possuía traços delicados e elegantes que compensavam a boca desmedida e obviamente teimosa.
As duas mulheres tinham estilos inteiramente diferentes e gostos inteiramente diferentes, mas, por mais estranho que parecesse, a amizade começou no instante em que se conheceram. Embora Bryan nem sempre gostasse das táticas agressivas de Lee e esta nem sempre aprovasse o jeito despojado demais de Bryan, a proximidade das duas ficou inalterada nesses três anos.
— E então — Bryan encontrou o chocolate que havia colocado no bolso da calça e começou a tirar o invólucro —, qual é o plano?
— Continuar indo atrás de informação — respondeu Lee, quase resmungando. — Tenho uns contatos na Horizon, a editora dele. Talvez algum deles apareça com alguma coisa. — Sem se dar conta, batucou na mesa, — Droga, Bryan, é como se ele não existisse. Não consigo nem saber em que estado ele mora.
— Estou meio inclinada a acreditar em alguns dos boatos — disse Bryan, pensativa. Do lado de fora do escritório de Lee alguém estava tendo um ataque histérico em relação ao fechamento de um artigo. — Eu diria que o cara vive em alguma caverna por aí, cheia de morcegos e uns lobos vira-latas. Ele provavelmente escreve os livros com sangue de ovelha.
— E sacrifica virgens a cada lua nova.
— Isso não me surpreenderia. — Bryan balançava preguiçosamente os pés enquanto comia a barra de chocolate. — Estou lhe falando. O cara é esquisito.
— Grito silencioso já está na lista de best-sellers.
— Eu não disse que ele não era brilhante — opôs-se Bryan. — Disse que era esquisito. Que tipo de mente ele tem? — Ela balançou a cabeça com um sorriso meio acanhado. — Posso lhe dizer que desejei jamais ter ouvido falar de Hunter Brown ontem à noite, quando estava tentando dormir com os olhos abertos.
— É exatamente isso. — Impaciente, Lee se levantou e correu na direção da pequena janela à direita. Ela não estava olhando para fora; a vista de Los Angeles não lhe interessava. Precisava apenas se mexer. — Que tipo de mente ele tem? Que tipo de vida ele leva? É casado? Tem 65 ou 25 anos? Por que escreve romances abordando o sobrenatural? — Ela se virou, a impaciência e a perturbação visíveis sob a superfície da sofisticada aparência. — Por que leu este livro?
— Porque era fascinante — respondeu Bryan, imediatamente —, porque já na página três eu estava tão envolvida na história que ninguém poderia me tirar o livro, nem com um porrete.
— E você é uma mulher inteligente.
— Certíssimo — concordou Bryan e sorriu. — E então?
— Por que pessoas inteligentes compram e lêem algo que vai aterrorizá-las? — perguntou Lee. — Quando pega um Hunter Brown, sabe o que ele vai fazer com você, ainda que os livros dele cheguem insistentemente ao topo das listas de best-sellers para nunca mais sair. Por que um homem obviamente inteligente escreve livros dessa natureza? — Ela começou a fazer uma coisa que Bryan sempre identificou como uma característica dela, mexer em tudo que estava à mão: as folhas de um filodendro, a ponta de um lápis, o brinco esquerdo que havia removido durante uma conversa telefônica.
— Estou ouvindo uma certa desaprovação?
— É. De repente. — Franzindo o cenho, Lee levantou novamente o olhar. — O cara é o maior colorista em atividade no país. Se ele está descrevendo uma sala numa casa antiga, você sente até a poeira. Suas caracterizações são tão reais, você jura conhecer as pessoas nos livros dele. E ele usa esse talento para escrever sobre criaturas da noite. Quero descobrir por quê.
Bryan fez uma bolinha da embalagem de chocolate.
— Conheço uma mulher que tem uma das cabeças mais afiadas e precisas que jamais encontrei em toda a minha vida. Tem um talento para desencavar fatos obscuros, alguns incrivelmente áridos, que depois transforma em histórias fascinantes. É ambiciosa, tem um notável talento para lidar com as palavras, mas trabalha em uma revista e deixa um romance parcialmente acabado jogado em uma gaveta. É encantadora, mas raramente seus encontros não se relacionam com os negócios. E ela tem a mania de entortar clipes enquanto fala.
Lee baixou os olhos na direção do pequeno pedaço de metal desfigurado em suas mãos e depois olhou friamente para Bryan.
— Sabe por quê?
Havia um certo bom humor no olhar de Bryan, mas seu tom era bastante sério.
— Venho tentando entender isso há uns três anos, mas não posso precisar exatamente a resposta.
Com um sorriso, Lee jogou o clipe na lixeira.
— Afinal, você não é repórter.
Como não era muito boa em seguir conselhos, Lee acendeu a luminária de cabeceira, esticou-se e abriu o último romance de Hunter Brown. Decidiu que leria um ou dois capítulos e depois dormiria logo. Dormir logo era quase um luxo pecaminoso depois da semana que tivera com a revista.
Seu quarto tinha um tom marfim predominante mesclado com vários tons de azul — do azul-piscina até o índigo. Ela esquecia do mundo ali, com suas dúzias de travesseiros macios, um enorme tapete turco e uma estante estilo Queen Anne, que acomodava uma urna cheia de penas de pavão e folhas de eucalipto. Sua última aquisição, uma grande figueira, ficava perto da janela e estava florescendo.
Ela considerava o quarto o único espaço verdadeiramente privado de sua vida. Como repórter, Lee precisava aceitar que era uma entidade pública tanto quanto as pessoas que entrevistava. Privacidade não era algo que podia levar em consideração quando estava fuçando a vida de outras pessoas. Mas naquele pequeno canto do mundo, conseguia relaxar por completo, esquecer que havia trabalho a fazer, degraus a subir. Podia fingir que Los Angeles não era aquele burburinho lá fora enquanto contasse com seu oásis de paz. Sem ele, sem as horas que passava dormindo e desacelerando ali, sabia que ficaria sobrecarregada.
Como se conhecia muito bem, Lee percebia que tinha uma tendência a forçar muito a barra, a correr demais. Na quietude de seu quarto, conseguia recarregar as energias a cada noite para poder ficar pronta para a nova jornada de correrias do dia seguinte.
Relaxada, abriu o último esforço literário de Hunter Brown.
Com meia hora de leitura, Lee ficou perturbada, desconfortável e totalmente arrebatada. Teria ficado zangada com o autor por fazê-la perder tempo, se não estivesse tão compenetrada virando página após página. Ele colocara um homem comum numa situação extraordinária, e fizera isso com tamanha habilidade, que Lee já estava se familiarizando com o professor que, de repente, se encontrara numa pequena cidade envolto num obscuro segredo.
A narrativa fluía e os diálogos eram tão naturais que ela podia até mesmo ouvir as vozes. Ele preencheu a cidade com tantos detalhes reconhecíveis que ela podia jurar que já tinha estado lá. Sabia que a história lhe proporcionaria mais do que um momento de desconforto na escuridão da noite, mas tinha de continuar. Esta era a magia de um grande contador de histórias. Ela continuou a ler, xingando-o, entretanto, tão tensa que quando o telefone tocou ao lado, o livro caiu-lhe das mãos. Lee praguejou uma vez mais consigo mesma e atendeu.
Sua irritação por ter sido perturbada não durou muito. Pegou imediatamente um lápis e começou a escrever no bloco de notas ao lado do telefone. Com a língua presa nos dentes, baixou o lápis e sorriu. Ela devia um enorme favor ao seu contato de Nova York, mas retribuiria assim que pudesse, como sempre fazia. Mas agora, pensou Lee, passando a mão por sobre o livro de Hunter, tinha de se preparar para participar de um pequeno congresso de escritores em Flagstaff, Arizona.
Tinha de admitir que o país era impressionante. Como de hábito, Lee passou todo o tempo de vôo de Los Angeles até Phoenix trabalhando, mas assim que entrou no pequeno avião que a levaria até Flagstaff, seu trabalho foi esquecido. Voou através de tênues nuvens por sobre uma vastidão quase impossível de imaginar após os arranha-céus e o trânsito de Los Angeles. Observou os picos, as inclinações e as rochas em formato de castelo do Oak Creek Canyon, sentindo uma retumbante excitação que era rara numa mulher que não se impressionava com muita facilidade. Se tivesse mais tempo...
Lee suspirou ao descer do avião. Jamais haveria tempo suficiente.
O pequeno aeroporto dispunha de um único lobby com uma máquina de venda de refrigerantes e chocolates. Nenhum alto-falante anunciava chegadas ou partidas de voos. Nenhum carregador chegou afobado para livrá-la do peso da bagagem. Não havia uma fila de táxis do lado de fora competindo pelos passageiros que haviam desembarcado. Com sua mochila no ombro, franziu o cenho para aquela inconveniência. Paciência não era uma de suas virtudes.
Cansada, com fome e, internamente, um pouco em frangalhos pelas sacudidas do pequeno avião, foi até um dos balcões.
— Preciso de um carro para me levar até a cidade.
O homem em mangas de camisa e gravata afrouxada parou de apertar botões no computador. Seu primeiro olhar educado ficou mais aguçado quando viu o rosto dela. Ela o lembrava de um camafeu que sua avó usava no pescoço em ocasiões especiais. Endireitou os ombros automaticamente.
— A senhora deseja alugar um carro?
Lee pensou na possibilidade, mas desistiu. Não tinha ido até lá para turismo, o que fazia com que um carro fosse totalmente dispensável.
— Não, gostaria apenas de um transporte para Flagstaff. — Mudou a bolsa de posição e forneceu ao homem o nome do hotel. — Eles têm algum serviço de transporte para os hóspedes?
— Com certeza. Vá até aquele telefone ali na parede. O número está na lista. É só ligar que eles mandam alguém.
— Obrigada.
Ele a observou caminhar até o telefone e pensou que ele é que deveria ter dito obrigado.
Lee sentiu cheiro de cachorro-quente ao cruzar o saguão. Como recusara a estranha refeição oferecida no avião, o cheiro colocou seus sucos gástricos em polvorosa. Com rapidez e eficiência, ligou para o hotel, deu seu nome e prontamente lhe garantiram que um carro chegaria em vinte minutos. Contente, comprou um cachorro-quente e sentou-se numa das cadeiras pretas para esperar.
Conseguiria realizar seu objetivo ali, disse para si mesma, impetuosa, ao avistar as montanhas distantes. O tempo não seria desperdiçado. Após três meses de frustração, finalmente conseguiria ver Hunter Brown pela primeira vez.
Foi necessária uma boa dose de habilidade e determinação para persuadir sua chefe a bancar a viagem, mas valeria a pena. Tinha de valer a pena. Recostou-se e relembrou as perguntas que faria a Hunter Brown assim que o encontrasse.
Tudo o que necessitava, pensou Lee, era de uma hora com ele:
60 minutos. Neste tempo, poderia arrancar informação suficiente para um artigo conciso e absolutamente exclusivo. Fizera exatamente o mesmo com o vencedor do Oscar deste ano, apesar da relutância dele, e também com um candidato à presidência, apesar da hostilidade deste último. Hunter Brown, provavelmente, teria ambas as atitudes, imaginou ela, com um meio sorriso. Apenas adicionaria um pouco de tempero. Se fosse do seu interesse uma vida amena e simples, teria se submetido à pressão e casado com Jonathan. Neste exato momento, estaria planejando sua próxima festa, em vez de estar calculando a melhor maneira de emboscar um escritor premiado.
Lee quase riu alto. Festas, jogos e o Iate Clube. Talvez tudo isso tivesse sido perfeito para sua família, mas ela queria mais. Mais o quê?, perguntava sua mãe, e Lee apenas respondia, simplesmente mais.
Olhou para o relógio, deixou a bagagem bem empilhada na cadeira e rumou para o toalete. A porta estava quase se fechando atrás dela quando o objeto de todo o seu planejamento adentrou o saguão.
Ele não realizava boas ações com muita freqüência e, quando fazia, era somente para pessoas pelas quais tivesse muita afeição.
Como chegara à cidade com tempo de sobra, Hunter foi até o aeroporto com a intenção de pegar sua editora. Quase sem olhar em volta, caminhou na direção do mesmo balcão onde Lee estivera dez minutos antes.
— O voo 471 está no horário?
— Sim, senhor, chegou faz uns dez minutos.
— Por acaso uma mulher desembarcou? — Hunter deu uma olhada novamente no saguão, já quase deserto. — Vinte e poucos anos, bonita...
— Sim, senhor — interrompeu o atendente —, ela acabou de ir ao toalete. Aquela bagagem ali é dela.
— Obrigado.
Satisfeito, Hunter caminhou na direção da bem empilhada bagagem de Lee. Ela não acreditava em viagens leves, reparou ele, examinando a mochila, a pequena mala Pullman e a pasta. Mas que mulher acreditava nisso? Sua filha Sarah não levara duas malas para a curta estada de três dias com a irmã em Phoenix? Era estranho que sua filhinha já fosse quase uma mulher. Talvez não fosse tão estranho assim, refletiu Hunter. Os seres do sexo feminino já nascem quase inteiramente mulheres, ao passo que os seres do sexo masculino levam anos para sair da infância — quando saem. Talvez fosse por causa disso que ele confiava muito mais nos homens.
Lee o viu quando voltou para o saguão. Estava de costas para ela, de tal forma que teve a impressão de estar vendo apenas um homem alto, esguio e de cabelos pretos descuidadamente encaracolados até a gola da camiseta. Bem na hora, pensou ela com satisfação e o abordou.
— Sou Lee Radcliffe.
Quando ele se virou, ela enrijeceu, o sorriso impessoal congelando-lhe o rosto. No instante inicial, não pôde definir por qual motivo. Ele era atraente — talvez atraente demais. O rosto era estreito, mas não tinha um ar acadêmico, tinha as feições duras, mas não rudes. Era, em excesso, uma combinação dos dois, muito mais do que uma característica ou outra. Tinha o nariz reto e aristocrático, ao passo que a boca era esculpida como a de um poeta. Seus cabelos eram escuros, cheios e rebeldes, como se tivesse dirigido em altíssima velocidade por horas a fio contra o vento. Mas não foi nada disso que a fez perder a voz. Foram seus olhos.
Ela jamais vira olhos tão escuros quanto aqueles, tão incisivos, tão... perturbadores. Era como se olhassem através dela. Não, não através, corrigiu de pronto Lee, dentro dela. Em dez segundos, eles olharam dentro dela e viram tudo.
Ele viu um formidável rosto, branco como o leite, com olhos melancólicos escancarados pela surpresa. Viu uma boca suave e feminina, com uma leve cor. Viu nervosismo. Viu um queixo obstinado e cabelos cor de cobre que deveriam parecer seda ao toque dos dedos. O que viu foi uma mulher equilibrada por fora e tensa por dentro, que tinha um aroma das noites de primavera e parecia modelo de capa da Vogue. Se não fosse a tensão interior, talvez a tivesse dispensado, mas o que ficava por baixo da superfície das pessoas sempre o intrigou.
Olhou para a organizada bagagem de modo tão veloz que seus olhos deram a impressão de que jamais abandonariam os dela.
— Pois não?
— Bem, eu... — Forçada a engolir as palavras, ela baixou o tom de voz. O que bastou para enfurecê-la. Não começaria a gaguejar por causa de um motorista de hotel. — Se você veio me apanhar — disse Lee, bruscamente —, vai precisar levar minha bagagem.
Ele ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. O erro dela era simples e óbvio. Uma única frase da parte dele corrigiria tudo. Mas o erro era dela, não dele. Hunter sempre acreditou mais nos impulsos do que nas explicações. Pegou a Pullman e em seguida encaixou a correia da mochila no ombro.
— O carro está lá fora.
Ela se sentiu muito mais segura seguindo atrás dele com a pasta nas mãos. A sensação de estranheza, disse para si mesma, vinha da ansiedade e do longo voo. Homens jamais a surpreendiam; certamente nunca chamavam sua atenção daquela forma e muito menos a faziam gaguejar. O que precisava era de um banho e algo um pouco mais substancial do que um cachorro-quente para comer.
O carro ao qual ele se referira não era exatamente um carro, reparou ela, mas um jipe. Supondo que fazia certo sentido, com estradas íngremes e invernos inclementes, Lee entrou no veículo.
Movimenta-se com desenvoltura e veste-se impecavelmente. Ele também reparou que ela roía as unhas.
— Você é da área? — perguntou Hunter, puxando conversa enquanto acomodava a bagagem.
— Não. Estou aqui para o congresso de escritores.
Hunter entrou, sentou ao lado dela e bateu a porta. Agora ele sabia para onde levá-la.
— Você é escritora?
Ela pensou nos dois capítulos de seu livro inacabado que levara caso necessitasse de um disfarce.
— Sou.
Hunter contornou o estacionamento e pegou o caminho que dava na estrada principal.
— Sobre o que escreve?
Lee recostou-se e decidiu que talvez devesse tentar testar sua história nele antes de cair no meio de duzentos escritores e aspirantes a escritores.
— Já escrevi artigos e alguns contos — disse ela, sem mentir. Depois acrescentou o que raramente contava para alguém. — E comecei um romance.
Ele entrou na rodovia numa velocidade que a surpreendeu mas não a inquietou.
— E vai terminá-lo? — perguntou ele, demonstrando um discernimento que a perturbou.
— Acho que isso vai depender de vários fatores. Ele deu uma nova e cuidadosa olhada nela.
— Tais como?
Ela queria mudar de posição no assento, mas forçou-se a permanecer parada. Este era exatamente o tipo de pergunta a que talvez fosse obrigada a responder ao longo daquele fim de semana.
— Tais como, se o que fiz até agora tem algum valor.
Ele achou tanto a resposta quanto o desconforto dela razoáveis.
— Você vai a muitos desses congressos?
— Não. Esse é o primeiro.
O que talvez explique o nervosismo, imaginou Hunter. Mas não achou que tivesse descoberto toda a resposta.
— Tenho a esperança de aprender alguma coisa — disse Lee, com um pequeno sorriso. — Eu me inscrevi na última hora, mas quando soube que Hunter Brown estaria aqui, não pude resistir.
Ele franziu o cenho tão rapidamente que mal pôde ser notado. Ele havia concordado em dar o workshop apenas porque não haveria divulgação. Nem mesmo os inscritos teriam como saber que ele estaria lá até a manhã seguinte. Então, imaginou ele, como a ruivinha de sapatos italianos e olhos noturnos descobriu? Ultrapassou um caminhão.
— Quem?
— Hunter Brown — repetiu Lee. — O romancista. Um impulso apoderou-se dele.
— Ele é bom?
Surpresa, Lee passou a analisar o perfil do homem. Era infinitamente mais fácil olhar para ele quando aqueles olhos não estavam focalizados nela.
— Nunca leu nenhum livro dele?
— E deveria?
— Acho que isso depende de você gostar ou não de ler com todas as luzes acesas e as portas trancadas. Ele escreve romances de terror.
Se tivesse olhado mais de perto, não lhe teria escapado o discreto sorriso nos olhos dele.
— Assombrações e monstros?
— Não exatamente — disse ela, depois de um momento —, nada assim tão banal. Se existir alguma coisa que o assusta, ele vai expressar isso em palavras e vai fazer você desejar mandá-lo para o inferno.
Hunter riu, bastante satisfeito.
— Quer dizer que você gosta de sentir medo?
— Não — respondeu Lee prontamente.
— E por que lê os livros dele?
— Já perguntei isso a mim mesma quando estou acordada às três da manhã terminando de ler um dos livros dele. — Lee deu de ombros enquanto o jipe diminuía a velocidade para pegar o desvio. — É irresistível. Acho que ele deve ser um homem muito estranho — murmurou, um pouco para si mesma. — Ele não deve ser como, bem... como as outras pessoas.
— E você é?—Após uma rápida e acentuada guinada, ele parou em frente ao hotel, mais interessado nela do que havia planejado inicialmente. — Mas escrever não é apenas palavras e imaginação?
— E suor e sangue — acrescentou ela, movimentando os ombros. — Só não consigo entender como pode ser confortável viver com uma imaginação como a de Brown. Eu gostaria de saber como ele se sente a respeito.
Hunter desceu do jipe e foi pegar a bagagem dela. Estava realmente se divertindo.
— Você vai perguntar para ele?
— Vou — Lee desceu —, vou sim.
Por um momento, permaneceram na calçada, em silêncio. Ele a fitava com o que talvez pudesse ser chamado de um leve interesse, mas ela notava algo mais — algo que ela não deveria sentir por um motorista de hotel que conhecia havia dez minutos. Pela segunda vez quis se movimentar, mas ficou imóvel. Sem perder mais tempo, Hunter foi na direção do hotel com a bagagem na mão.
Não ocorreu a Lee, até que começasse a segui-lo, que acabara de ter uma conversa sem interrupção com um motorista de hotel, conversa esta que não estava relacionada às brincadeiras usuais ou aos recantos turísticos. Ao vê-lo caminhar até o balcão, sentiu uma aura de firme autoconfiança nele, além de traços, traços muito sutis de arrogância. Por que um homem como aquele estava dirigindo para cima e para baixo sem chegar a lugar algum? imaginou ela. Chegou no balcão e concluiu que aquilo não lhe dizia respeito. Tinha outros interesses mais importantes.
— Lenore Radcliffe — disse para o recepcionista.
— Pois não, sra. Radcliffe.
Ele lhe entregou um formulário e debitou o cartão de crédito dela antes de lhe dar uma chave. Antes que ela pudesse pegá-la, Hunter estendeu a própria mão. Só então ela notou o estranho anel em seu dedo mindinho, quatro fios de ouro e prata intercalados um no outro.
— Eu a acompanho — disse ele, e então atravessou o saguão, com ela uma vez mais atrás dele. Entrou em um corredor, virou à esquerda e então parou. Lee esperou enquanto ele destrancava a porta e acenava para ela entrar.
O quarto ficava no nível do jardim e possuía o próprio pátio, reparou ela, contente. Enquanto ela dava uma geral no quarto, Hunter ligou despreocupadamente a TV e começou a sintonizar diversos canais antes de checar o ar-condicionado.
— Pode chamar a recepção caso necessite de algo mais — avisou ele, acomodando a bagagem no closete.
— Tudo bem. — Lee deu uma busca em sua bolsa e pegou uma nota de cinco dólares. — Obrigada — disse ela, estendendo a mão.
Ele olhou novamente para ela, reproduzindo o mesmo choque gélido do encontro no aeroporto. Ela sentiu alguma coisa se agitar bem no fundo de seu ser, mas não tinha certeza se era a tentativa de ajudá-lo ou a luta para se esconder. Os dedos que seguravam a nota estavam quase tremendo. Então ele sorriu, tão rápido e com tanto charme, que ela ficou muda.
— Obrigado, sra. Radcliffe. — Sem piscar um minuto sequer, Hunter enfiou a nota de cinco dólares no bolso e foi embora.
Se os escritores eram normalmente considerados pessoas estranhas, congressos de escritores, Lee estava para descobrir, eram a própria estranheza. Eles, certamente, não poderiam ser considerados tranqüilos ou organizados ou enfadonhos.
A exemplo de quase todos os outros duzentos ou mais participantes, ela estava em uma das dezenas de filas para inscrição às oito da manhã. Pelas gargalhadas, gritos de ”oi” e abraços, era óbvio que muitos dos escritores e aspirantes a escritores se conheciam. Havia uma atmosfera de união de interesses, conhecimentos compartilhados e camaradagem. E para coroar tudo isso havia o entusiasmo.
Mesmo assim, alguns participantes que estavam no barulhento lobby mais pareciam crianças perdidas num naufrágio, grudados a um folheto informativo ou a uma pasta como se fosse um salva-vidas, e olhando em torno com reverência ou simplesmente confusos. Lee estava quase compartilhando a sensação, embora parecesse calma e equilibrada ao receber a apostila e afixar o crachá na lapela verde de seu blazer.
Concentrou-se em sua tarefa. Encontrou uma cadeira num canto e procurou o horário do workshop de Hunter Brown. Com um sorrisinho, pegou uma caneta e sublinhou.
A INVENÇÃO DO TERROR ATRAVÉS DA AMBIENTAÇÃO E DA EMOÇÃO
Palestrante a ser anunciado.
Bingo, pensou Lee, recolocando a tampa na caneta. Precisava garantir um lugar na primeira fila. Uma olhada no relógio indicou que restavam três horas até Brown começar a falar. Como não dava chance ao azar, pegou o bloco e começou a repassar as perguntas que havia listado. Enquanto isso, pessoas desfilavam para cima e para baixo ou apenas matavam tempo, conversando.
— Se eu for rejeitada novamente, vou botar minha cabeça no forno.
— Seu forno é elétrico, Judy.
— O que vale é a idéia.
Lee, divertindo-se a valer, começou a ouvir os comentários dos passantes enquanto adicionava mais algumas perguntas.
— E quando trouxeram meu café da manhã hoje, encontrei um manuscrito de quinhentas páginas embaixo do prato. Perdi completamente o apetite.
— Isso não é nada. Apareceu um no meu escritório semana passada escrito a mão. Cento e cinqüenta mil palavras de um caudaloso original.
Editores, refletiu ela. Ela poderia lhes contar várias histórias sobre alguns dos artigos que eram enviados para Celebrity para eventual publicação.
— Ele disse que seu editor fez picadinho de seu primeiro capítulo, então ele vai primeiro chorar antes de reescrever. É após uma rejeição que passo a pensar seriamente em me tornar um tecelão de cestas.
— Você ficou sabendo que Jeffries está aqui de novo tentando vender aquele manuscrito sobre uma virgem com acrofobia e telecinesia?
Não acredito que ele não vai deixar esse troço ter uma morte tranqüila. Quando vai sair seu próximo assassinato?
— Em agosto. Envenenamento.
— Querida, você não pode falar assim de seu trabalho.
Ao passarem por ela, Lee apreendia a variedade de tons, alguns abafados, outros sofisticados, e outros, mais empolados. Gestos e falas seguiam o mesmo amplo padrão. Boquiaberta, ela observou um homem surgir num longo e teatral manto negro.
Definitivamente aquele era um grupo bizarro, pensou Lee, mas afeiçoou-se a eles. Era verdade que suas habilidades estavam restritas aos artigos e perfis, mas se considerava, de coração, uma contadora de histórias. Sua posição na revista foi obtida com dificuldade, ela construíra seu mundo em torno de si. Apesar de toda a sua ambição, ela tinha um insistente medo da rejeição que mantinha seu próprio manuscrito não finalizado e enterrado numa gaveta por semanas, às vezes meses. Na revista, ela tinha prestígio, segurança e espaço para progredir. O salário semanal pagava seu teto, suas roupas e sua comida.
Se não tivesse sido tão importante provar que podia fazer tudo aquilo para si mesma, talvez pudesse ter arriscado enviar as primeiras cem páginas para uma editora. Só que... Ela balançou a cabeça e observou as pessoas dirigindo-se para o credenciamento, todos os tipos, todos os tamanhos, todas as idades. As roupas variavam de ternos profissionais em bom estado, passando pelas calças jeans, até cafetãs vistosos e macacões. Aparentemente, estilo era uma questão de gosto, e gosto, uma questão individual. Ela imaginou se veria tal variedade em qualquer outro lugar. Distraída, olhou para o manuscrito incompleto que jogara na pasta. Apenas para despistar, lembrou ela. Nada mais.
Não, ela não acreditava ter talento para ser uma grande escritora, mas sabia que tinha habilidade suficiente para fazer grandes reportagens. Jamais se engajaria em algo onde não pudesse ser do primeiro time.
Ainda assim, enquanto se encontrava ali, não seria de todo ruim assistir a um ou outro seminário. Poderia, quem sabe, pegar algumas dicas. Mais importante, disse para si mesma enquanto se levantava, poderia aproveitar esta viagem para escrever outro artigo sobre os prós e os contras de um congresso de escritores. Quem assistia, por quê, o que faziam, o que esperavam. Sim, poderia dar um artigo bem interessante. Seu emprego, afinal, estava em primeiro lugar.
Uma hora mais tarde, um pouquinho mais entusiasmada do que esperava após seu primeiro workshop, dirigiu-se até a cafeteria. Faria uma pequena pausa para assimilar as anotações que fizera e depois voltaria para garantir o melhor lugar para acompanhar a palestra de Hunter Brown.
Hunter tirou os olhos do jornal e a observou entrar na cafeteria. Lee Radcliffe, pensou ele, deduzindo que ela era mais interessante do que as notícias locais que estivera lendo. Gostara da conversa que tivera com ela no dia anterior e, quase sempre, ficava entediado com conversas. Ela tinha uma qualidade intrínseca — uma franqueza inata envernizada com sofisticação — que ele achava suficientemente intrigante para conquistar seu interesse. Um escritor obsessivo que acreditava que os personagens eram eles próprios o enredo de qualquer livro, Hunter sempre procurou o singular e o individual. Seu instinto dizia-lhe que Lee Radcliffe tinha uma incrível individualidade.
Sem que ela pudesse perceber, ele a observava. Pela maneira como passava os olhos pela sala, distraída, era óbvio que estava preocupada. O terninho que estava usando era bastante simples mas demonstrava estilo e gosto na cor e no corte. Era uma mulher que podia vestir-se com simplicidade, decidiu, porque era uma mulher que nascera com estilo. Se não estivesse enganado, ela também nascera rica. Sempre havia uma diferença sutil entre os que estão acostumados com o dinheiro e os que passaram vários anos ganhando dinheiro.
Então, de onde vinha o nervosismo?, especulou. Curioso, decidiu que valeria a pena gastar uma hora de seu tempo para tentar descobrir.
Hunter jogou o jornal para o lado, acendeu um cigarro e continuou a mirá-la, ciente de que não havia maneira mais rápida de chamar a atenção de alguém.
Lee, pensando mais na história que estava para escrever do que no café que motivara sua ida até ali, sentiu um estranho formigamento na espinha. Foi real o suficiente para obrigá-la a se virar e tomar o caminho de volta no exato momento em que percebeu que estava olhando diretamente para o homem que conhecera no aeroporto.
Eram os olhos dele, decidiu ela, a princípio não pensando nele como um homem ou como o motorista do hotel do dia anterior. Eram os olhos dele. Escuros, quase da cor de azeviche, eles se aproximavam de você, e se aproximavam, até você não ter mais saída, e então, todo e qualquer segredo que você jamais teve deixava de ser segredo. Era assustador. Era... irresistível.
Impressionada por tais pensamentos extravagantes percorrerem sua mente prática e organizada, Lee aproximou-se dele. Era apenas um homem, disse para si mesma, um homem que trabalhava para seu sustento como qualquer outro. Certamente, não havia motivo algum para se assustar.
— Sra. Radcliffe. — Com o mesmo olhar desprovido de simpatia, ele apontou para a cadeira à sua frente. — Posso lhe oferecer um café?
Normalmente ela recusaria, de modo educado. Mas naquele momento, por alguma razão intangível, Lee teve a impressão de que havia um ponto que deveria pôr à prova. Pela mesma razão intangível, sentiu que este ponto deveria ser posto à prova tanto para ele quanto para ela própria.
— Obrigada.
Assim que ela se sentou, uma garçonete apareceu para servir café.
— Está gostando do congresso?
— Estou. — Lee colocou um pouco de leite no café e mexeu até que um pequeno redemoinho se formasse no centro. — Mesmo com a desorganização geral, havia uma enorme quantidade de informação no workshop a que assisti hoje de manhã.
Ele deu um sorriso, tão leve, que foi quase imperceptível.
— Você prefere tudo organizado?
— É mais produtivo.
Embora estivesse vestido de modo mais formal do que no dia anterior, as calças de prega e a camisa aberta no pescoço continuavam sendo bem informais. Ela imaginou o motivo de ele não ser obrigado a usar uniforme. Mas, pensou, podiam botá-lo num desses paletós brancos e alinhados com uma gravata bacana e os olhos dele simplesmente desafiariam aquilo tudo.
— Muita coisa pode vir do caos, não acha?
— Talvez,
Ela franziu o cenho, observando o redemoinho no copinho de café. Por que tinha a sensação de estar sendo sugada da mesma forma? E por que, pensou, subitamente impaciente, estava ali sentada tendo uma discussão filosófica com um estranho quando deveria estar esboçando as duas histórias que planejara escrever?
— Encontrou Hunter Brown? — perguntou ele, analisando-a por cima do copo. Estava inquieta consigo mesma, adivinhou ele corretamente, e ansiosa para realizar tudo.
— O quê? — Lee, distraída, olhou para cima e encontrou aqueles estranhos olhos ainda sobre ela.
— Perguntei se já encontrou Hunter Brown. — Um leve sorriso surgiu novamente em seu rosto, dessa vez em seu olhar, que nem por isso perdeu a intensidade.
— Não. — Na defensiva, sem saber o motivo, Lee deu um gole no café já frio. — Por quê?
— Depois do que disse ontem, fiquei curioso em saber qual seria sua reação assim que o encontrasse. — Ele deu uma tragada no cigarro e expeliu a fumaça. — As pessoas normalmente têm uma imagem preconcebida de alguém que raramente se confirma na prática.
— É difícil ter uma imagem preconcebida de uma pessoa que se esconde do mundo.
Ele ergueu as sobrancelhas, mas sua voz permaneceu calma.
— Se esconde?
— É a palavra que me ocorre — retrucou Lee, novamente achando que estava exprimindo seu pensamento em voz alta para ele. — Não existe foto dele na contracapa de nenhum livro, nenhuma biografia. Ele nunca dá entrevistas, nunca nega ou confirma nenhuma informação escrita sobre. Todos os prêmios que ele recebeu foram entregues ao agente dele ou ao editor. — Ela deslizava os dedos para cima e para baixo na colher. — Ouvi falar que ocasionalmente participa de eventos assim, mas somente se o congresso não for grande e não houver nenhuma divulgação da participação dele.
Durante todo o tempo da fala dela, Hunter não tirou os olhos de Lee, observou cada detalhe de sua expressão. Havia traços de frustração, ele tinha certeza, e de avidez. O belo rosto de camafeu estava tranqüilo enquanto os dedos se moviam sem parar. Naquele instante, decidiu que ela estaria em seu próximo livro. Jamais havia encontrado alguém com tanto potencial para encarnar um personagem principal.
Como seu olhar intenso e profundo a fazia querer começar a gaguejar, Lee lançou-lhe um olhar duro e inflexível.
— Por que me olha desta maneira?
Ele continuou a fazê-lo sem demonstrar o menor desconforto.
— Porque você é uma mulher interessante.
Outro homem talvez tivesse dito bonita, outro ainda talvez tivesse dito fascinante. Lee poderia ter encarado ambos com um leve desprezo. Pegou novamente a colher e depois recolocou-a na mesa.
— Porquê?
— Você tem uma cabeça organizada, já nasceu com estilo e é um feixe de nervos. — Ele gostava do modo como o rosto dela se enrugava levemente quando franzia o cenho. Significava teimosia, para ele, e tenacidade. Ele respeitava ambos. — Sempre fui intrigado com bolsos. Quanto mais fundo, melhor. Estou aqui imaginando o que pode haver em seus bolsos, sra. Radcliffe.
Ela sentiu novamente o tremor na espinha, de cima a baixo. Não era confortável ficar perto de um homem que podia proporcionar algo assim. Sentiu uma solidariedade momentânea por todas as pessoas que entrevistara.
— Você tem um jeito estranho de se expressar — murmurou ela.
— Já me disseram.
Instruiu a si própria para levantar e sair. Não fazia sentido ficar sentada ali sendo perturbada por um homem que podia dispensar com uma gorjeta de cinco dólares.
— O que está fazendo em Flagstaff? — perguntou ela.—Você não me parece uma pessoa que ficaria satisfeita levando gente do aeroporto para o hotel dia após dia, carregando bagagem e coisa e tal.
— Impressões desdobram-se em pequenas e fascinantes pinturas, não?
Abriu um amplo sorriso para ela, como o do dia anterior, quando ganhara a gorjeta. Lee não sabia dizer por que sentira como se ele estivesse rindo dela naquela ocasião, assim como também não sabia dizer por que sentia exatamente a mesma coisa naquele instante. A contragosto, seus lábios esboçaram um sorriso como resposta. Ele achou o sorriso uma surpresa prazerosa e bastante tentadora.
— Você é um homem bem estranho.
— Também já me disseram isso. — O sorriso dele voltou a dar lugar ao olhar profundo. — Janta comigo hoje à noite?
A pergunta em si não a surpreendeu mais do que o fato de querer aceitar, o que quase aconteceu.
— Não — disse ela, recuando cautelosamente. — Acho que não.
— Me avise se mudar de idéia.
Mais uma vez ficou surpresa. A maioria dos homens teria insistido um pouco. Era, bem... o comportamento esperado, refletiu Lee, desejando poder compreendê-lo.
— Preciso voltar. — Pegou a pasta. — Você sabe onde fica o Salão Canyon?
Com um risinho contido, ele jogou algumas notas na mesa.
— Sei, vou lhe mostrar.
— Não é necessário — disse Lee, levantando-se.
— Tenho tempo. — Ele caminhou ao lado dela da cafeteria até o saguão amplo e acarpetado. — Está planejando fazer algum passeio turístico enquanto está aqui? -
— Não vou ter tempo. — Ela olhou através de uma enorme janela para a grandeza do Humphrey Peak. — Preciso voltar assim que o congresso terminar.
— Para onde?
— Los Angeles.
— Tem gente demais lá — disse Hunter, automaticamente. — Você não costuma ter a sensação de que todos estão desperdiçando seu oxigênio?
Ela não teria colocado a questão dessa maneira, nem teria jamais pensado a respeito, mas às vezes sentia alguma coisa parecida com claustrofobia. Mas, ainda assim, seu lar estava lá e, mais importante ainda, seu trabalho.
— Não. Da forma como está, tem ar suficiente para todo mundo.
— Você jamais esteve na borda sul do canyon e observou, e respirou.
Novamente, Lee lançou-lhe um olhar. Ele tinha um jeito de dizer as coisas que parecia uma descrição fotográfica. Pela segunda vez, lamentou não poder dispor de um ou dois dias para explorar a vastidão do Arizona.
— Quem sabe numa outra oportunidade.
Ela deu de ombros e acompanhou-o pelo corredor à direita.
— O tempo é volúvel — comentou ele —; quando você precisa dele, não há muito. Mas quando acorda às três da madrugada, há tempo em excesso. Normalmente, é melhor pegar logo do que planejar. Você devia tentar isso — disse ele, olhando novamente para ela. — Talvez ajude seus nervos.
Ela franziu as Sobrancelhas.
— Não há nada de errado com meus nervos.
— Algumas pessoas acumulam situações tensas por semanas, até que precisam achar aquela pequena válvula de escape. — Pela primeira vez, ele a tocou, apenas as pontas dos dedos nas pontas do cabelo dela. Mas ela sentiu, experimentou aquilo de maneira tão intensa e profunda que parecia que a mão dele estava segurando firmemente a dela. — O que faz para deixar a tensão escapar, Lenore?
Ela não enrijeceu, nem mesmo afastou a mão dele como teria feito normalmente. Em vez disso, ficou parada, divagando com uma sensação que não conseguia lembrar ter experimentado antes. Relâmpago e trovão, pensou ela. Havia relâmpagos e trovões naquele homem, bem abaixo daquela aparência estranhamente distante e peculiarmente aberta. Não seria pega no meio da tempestade.
— Eu trabalho — disse ela, sem pestanejar, mas seus dedos estavam segurando firmemente a pasta. — Não preciso de nenhuma outra válvula de escape. — Ela não recuou, mas deixou a arrogância que sempre a protegera dar o tom. — Ninguém me chama de Lenore.
— Não? — Ele quase sorriu. Era este olhar, percebeu ela, a diversão secreta que o espectador podia somente adivinhar, mas não enxergar, o que mais a intrigava. Pensou que ele, provavelmente, tinha conhecimento disso. — Mas lhe cai bem. Feminino, elegante, um pouco distante. E a única palavra ali falada era a sussurrada palavra, ”Lenore” Sim. — Ele deixou seus dedos permanecerem um pouco mais no cabelo dela. — Acho que Poe teria achado você bastante apropriada.
Antes que pudesse prever, antes que pudesse antecipar, seus joelhos começaram a fraquejar. Ela sentira o som de seu próprio nome acariciando sua pele.
— Quem é você? — perguntou Lee, quase sem perceber. Seria possível ser tão profundamente afetada por alguém de quem nem mesmo sabemos o nome? Ela deu um passo à frente, como se o estivesse desafiando. — Quem é você, afinal?
Ele sorriu de novo, com o charme estranhamente meigo que não deveria se encaixar em seu rosto, mas de alguma maneira se encaixou.
— Estranho você não ter perguntado antes. É melhor entrar — disse ele, ao ver que as pessoas começavam a se dirigir para o Salão Canyon —,você vai querer um bom lugar.
— Vou.
Ela lhe deu as costas, um pouco abalada pela ferocidade do desejo que sentia por saber mais sobre ele. Com um último olhar por sobre os ombros, Lee entrou e se sentou na primeira fileira. Estava na hora de voltar a pensar no assunto que a trouxera ali, e o assunto era Hunter Brown. Distrações tais como homens incompreensíveis que dirigiam jipes para sobreviver teriam de ser deixadas de lado.
Lee retirou da pasta um bloco de notas novo e dois lápis, um dos quais colocou atrás da orelha. Em alguns instantes poderia ver e analisar o misterioso Hunter Brown. Poderia ouvir e tomar notas com toda a liberdade. Depois da palestra, poderia lhe fazer perguntas e, conforme fosse, acertaria algum tipo de entrevista cara-a-cara para mais tarde.
Lee pensara com todo o cuidado na questão ética envolvida na situação. Não achava necessário contar para Brown que era repórter. Estava ali como uma escritora aspirante, e trazia consigo o manuscrito incompleto como prova. Todos tinham liberdade para tentar escrever e vender algum artigo sobre o congresso e seus participantes. Só no caso de Brown usar a expressão em caráter não-oficial, iria mantê-la em sigilo. Não sendo assim, tudo o que ele dissesse seria de domínio público.
Esta história poderia ser seu próximo degrau escada acima. Seria, corrigiu Lee. A primeira história documentada e autenticamente pesquisada sobre Hunter Brown poderia impulsioná-la para muito além do alcance de Celebrity. Seria controvertida, pitoresca e, mais importante, exclusiva. Com esta história debaixo do braço, até mesmo sua família, discretamente crítica, ficaria impressionada. Com esta história debaixo do braço, pensou Lee, ela ficaria bem mais perto do topo da escada, para onde ela sempre estava olhando.
Assim que chegasse no topo, todo o trabalho duro, as longas horas, a dedicação obsessiva, teriam valido a pena. Porque, assim que chegasse lá, seria para não mais sair. No topo, pensou Lee, quase enfurecida. No mais alto que pudesse alcançar.
Do outro lado das portas, do outro lado do corredor, estava Hunter com sua editora, tentando prestar atenção aos comentários dela sobre uma entrevista que fizera com um candidato a escritor. Ele pegou a essência da história, ela estava entusiasmada com o potencial do escritor. Era um talento dele conseguir levar uma conversa perfeitamente lúcida quando sua mente se concentrava em algo completamente diferente. Era algo que ele só se animava a fazer quando estava de bom humor. E assim, falava com sua editora e pensava em Lee Radcliffe.
Sim, com toda certeza a utilizaria em seu próximo livro. Era verdade que o enredo ainda não passava de uma vaga idéia em sua cabeça, mas já sabia que ela seria o eixo da história. Precisava ir mais a fundo para ficar totalmente satisfeito, mas não antevia nenhum problema. Se a avaliou corretamente, ela ficaria confusa assim que ele subisse ao palco, em seguida surpresa, e depois furiosa. Se ela queria tanto conversar com ele, como deixara claro, teria de sufocar a raiva.
Uma mulher forte, decidiu Hunter. Uma vontade de ferro e uma pele cremosa. Olhos vulneráveis e um queixo empinado de danem-se-todos. Um personagem não era nada sem contrastes, poderes e fraquezas. E segredos, pensou ele, já dando como certo que descobriria os dela. Ainda tinha um dia e meio para explorar Lenore Radcliffe. Hunter imaginou que era suficiente.
O corredor era só risos e reclamações e entusiasmo à medida que as pessoas flanavam de um lado para o outro ou adentravam a sala adjacente. Ele sabia o que era sentir-se entusiasmado por ser escritor. Se o prazer fosse resultado disso, ele continuaria a escrever. Era compelido a isso. Mas apareceria em seu trabalho. As emoções sempre apareciam. Nunca permitiu que suas sensações e pensamentos invadissem seu trabalho — eles invadiam independentemente de permissão.
Hunter considerava isso uma justa relação custo-benefício. Suas emoções, seus pensamentos, estavam lá para quem quer que estivesse interessado em lê-las. Sua vida pertencia a ele, total e completamente.
A mulher ao lado tinha sua afeição e seu respeito. Já discutira com ela a respeito de motivação e estruturação de sentença. Perdera tanto quanto vencera. Berrara com ela, rira com ela e lhe dera seu apoio emocional no decorrer de seu divórcio recente. Ele sabia sua idade, sua bebida favorita e sua tara por castanha-de-caju. Ela era sua editora havia três anos, o que é o mais próximo de um casamento a que muita gente pode chegar. Mesmo assim, não sabia que ele tinha uma filha de dez anos chamada Sarah, que gostava de fazer biscoito e jogar futebol.
Hunter deu uma última tragada no cigarro ao ver que o presidente do pequeno grupo de escritores se aproximou. O homem era um ótimo e criativo escritor de ficção científica que Hunter lera e gostara. Não sendo assim, ele próprio não estaria ali, a ponto de fazer uma de suas raras aparições na comunidade de escritores.
— Sr. Brown, não preciso lhe dizer novamente como estamos honrados em recebê-lo aqui.
— Não — Hunter lançou-lhe o costumeiro meio-sorriso —, não precisa.
— É provável que haja uma grande comoção quando eu o anunciar. Após sua palestra, farei tudo o que puder para manter a horda barulhenta afastada.
— Não se preocupe com isso. Eu me viro.
O homem assentiu com a cabeça, sem duvidar jamais.
— Vou dar uma pequena recepção na minha suíte esta noite. Gostaria de se juntar a nós?
— Agradeço, mas já tenho um compromisso para o jantar.
Embora não soubesse exatamente o que fazer com aquele sorriso, o presidente da organização era bastante inteligente para contar com a sorte quando se tratava de escapar de um ardil.
— Se já está pronto, vou anunciá-lo.
— Quando quiser.
Hunter seguiu-o até o Salão Canyon, depois se demorou um pouco antes de entrar. O salão já estava alvoroçado com o anticlímax e a curiosidade. O pódio estava colocado sobre um pequeno palco na frente de 200 poltronas, quase todas ocupadas. O burburinho se aquietou quando o presidente chegou ao palco, mas continuou em murmúrios esparsos mesmo após ele começar a falar. Hunter ouviu um dos homens que estavam perto dele sussurrar para um colega que três editoras estavam disputando seu original. Hunter deu uma olhada rápida na platéia, mal ouvindo o início de sua apresentação. Então seu olhar pousou novamente em Lee.
Ela estava olhando o apresentador com um sorriso discreto e educado, mas os olhos a traíam. Estavam nebulosos e ansiosos. Hunter baixou o olhar até chegar no colo dela. Lá, sua mão se abria e se fechava sobre o lápis. Um feixe de nervos e energia coberto por uma tênue camada de autoconfiança, pensou ele.
Pela segunda vez, Lee sentiu os olhos dele nos dela, e pela segunda vez se virou e possibilitou o encontro dos olhares. Uma leve ruga apareceu novamente em sua testa no instante em que imaginava o que ele estaria fazendo no interior da sala de conferência. Impávido, confortavelmente recostado na parede, Hunter olhava para ela.
— Sua carreira decolou firmemente após a publicação de seu primeiro livro, cinco anos atrás. Desde o primeiro, A dívida do diabo, ele vem nos dando o prazer de nos sentirmos apavorados ao extremo a cada vez que pegamos um livro seu. — À simples menção do título, os murmúrios aumentaram e cabeças começaram a se virar. Hunter continuava a encarar Lee, e ela o encarava de volta, franzindo o cenho. — Seu último livro, O grito silencioso, já está há um bom tempo no primeiro lugar da lista dos mais vendidos. Temos a honra e o privilégio de receber, em Flagstaff, Hunter Brown!
Os aplausos efusivos competiam com a crescente azáfama de 200 pessoas no salão fechado. Fortuitamente, Hunter esticou-se na parede e caminhou até o palco. Viu quando o lápis caiu da mão de Lee e rolou pelo chão. Sem perder o ritmo, ele inclinou-se e pegou-o.
— Melhor segurar firme — aconselhou, olhando para os olhos embasbacados dela. Quando lhe devolveu o lápis, pôde observar o assombro se transformar em fúria.
— Você é um...
— Sou, mas é melhor me dizer mais tarde.
Assim que chegou ao palco, Hunter colocou-se atrás do pódio e esperou até que os aplausos arrefecessem. Passou os olhos novamente pela platéia, mas dessa vez com uma intensidade tão tranqüila, que o silêncio foi absoluto. Por dez segundos não se ouviu nem a respiração das pessoas.
— Terror — disse Hunter ao microfone.
Desde a primeira palavra, ele enfeitiçou a platéia, mantendo-os cativados por 40 minutos. Ninguém se moveu, ninguém bocejou, ninguém saiu para fumar. Com os dentes trincados, Lee percebeu que o desprezava.
Encolerizada, lutando contra a vontade de se levantar e sair correndo dali, permaneceu em seu lugar, inflexível, tomando notas meticulosamente. Na margem do bloco desenhou uma caricatura reconhecível de Hunter com uma adaga enterrada no coração, o que lhe deu enorme prazer.
Quando ele aceitou responder perguntas por dez minutos, Lee foi a primeira a levantar a mão. Hunter olhou-a diretamente, sorriu e indicou outra pessoa três fileiras atrás.
Ele respondeu profissionalmente às perguntas de cunho profissional e evitou qualquer referência pessoal. Lee tinha de admirar sua habilidade, principalmente sabendo que ele raramente falava em público. Ele não se mostrava nervoso, não hesitava e não demonstrava nenhuma intenção de chamá-la a fazer uma pergunta, embora o braço dela continuasse levantado e os olhos lançassem pequenas rajadas de fúria sobre ele. Mas ela era uma repórter, lembrou-se Lee. Repórteres não chegam a lugar algum sendo cerimoniosos.
— Sr. Brown — começou Lee e levantou-se.
— Desculpe. — Com seu meio-sorriso, ele ergueu a mão — Acho que já ultrapassamos o tempo. Desejo muita sorte a todos vocês. — Ele deixou o pódio e o salão sob intensos aplausos. Quando Lee conseguiu chegar à porta de saída, já ouvira tanta ovação para Hunter Brown que sua cólera se transformara em ódio.
O nervosismo, pensou ela, enquanto alcançava, finalmente, o corredor. O inominável nervosismo. Ela não se importava de ser superada num jogo de xadrez; conseguia administrar bem ter algum trabalho seu criticado ou alguma sua opinião contestada. Na grande maioria das vezes, Lee se considerava uma pessoa sensata e pacata com nada mais do que uma razoável parcela de presunção pessoal. A única coisa que ela não podia tolerar e jamais toleraria era ser feita de boba.
Vingança foi o que passou a nortear sua mente, uma simples e maldosa vingança. Oh, sim, pensou ela, ao tentar passar pela multidão de fãs de Hunter Brown, ela teria sua vingança, de alguma maneira, de algum modo. E quando tivesse, seria perfeita.
Seguiu na direção dos elevadores, consciente de que estava bastante furiosa para lidar com Hunter naquele momento. Não teria proveito algum. Precisava de uma hora para esfriar e fazer seu plano. O lápis que ainda segurava partiu-se em seus dedos. Mesmo que fosse a última coisa que fizesse na vida, obrigaria Hunter Brown a sentir algum constrangimento.
Assim que apertou o botão para descer, Hunter entrou rapidamente no elevador.
— Sobe? — perguntou com tranqüilidade e apertou ele próprio o número.
Lee sentiu a fúria subir-lhe pela garganta. Com um esforço, cerrou os lábios cheios de veneno e olhou diretamente à frente.
— Você quebrou o lápis — observou Hunter, percebendo que estava se divertindo como há muito não se divertia. Olhou para o bloco e mirou a caricatura cuidadosamente desenhada. Um risinho aprovador apareceu. — Ficou bom — disse. — E aí, gostou da palestra?
Lee lançou-lhe um olhar ofensivo assim que a porta do elevador se abriu.
— Você é uma fonte de informação banal, sr. Brown.
— Você está com um olhar de assassina, Lenore. — Ele entrou no hall junto com ela. — Combina com seu cabelo. Seu desenho deixa bem claro o que gostaria de fazer. Por que não me esfaqueia enquanto tem uma chance?
Ao caminhar, Lee disse para si mesma que não lhe daria a satisfação de falar com ele. Simplesmente não falaria. Ergueu a cabeça.
— Você pôde dar boas gargalhadas à minha custa — rosnou ela e procurou a chave de seu quarto na pasta.
— Uma risadinha ou outra — corrigiu ele, enquanto Lee continuava espumando de raiva e procurando a chave. — Perdeu a chave?
— Não, não perdi a chave. — Frustrada, Lee levantou os olhos até que a fúria se encontrou com a diversão. — Por que não sai daqui e vai enfiar sua fama você sabe onde?
— Sempre achei isso desconfortável. Por que não deixa escapar um pouco essa sua irritação, Lenore? Você se sentiria melhor.
— Não me chame de Lenore! — explodiu ela, perdendo o controle. — Não tinha o direito de me usar como um motivo de piada. Você não tinha o direito de fingir que trabalhava para o hotel.
— Você é que pensou isso — corrigiu ele. — Se bem me lembro, nunca fingi nada. Você me pediu uma carona ontem; eu simplesmente lhe dei.
— Pensava que você fosse o motorista do hotel. Você estava lá parado ao lado da minha bagagem...
— O caso clássico de identidade confundida. — Ele reparou que a pele dela ficava rosada quando se zangava. Um atraente efeito colateral, pensou Hunter. — Eu tinha ido apanhar minha editora, que havia perdido sua conexão para Phoenix, ao que parece. Pensei que a bagagem fosse dela.
— Tudo o que tinha de fazer era dizer isso naquela hora.
— Você não perguntou em momento algum — apontou ele. — E me disse para pegar a bagagem.
— Ah, você é insuportável! — Rangendo os dentes, ela começou a remexer na pasta.
— Mas brilhante. Você mesma disse isso.
— Ser capaz de concatenar palavras é um admirável talento, sr. Brown. — Altivez era uma das mais cultivadas habilidades dela. Lee se utilizava desse recurso ao extremo. — O que não o torna uma pessoa admirável.
— Não, eu não diria que fui, particularmente.
Enquanto esperava ela achar a chave, Hunter recostou-se confortavelmente na parede.
— Você trouxe minha bagagem para o quarto — continuou ela, enfurecida. — Eu lhe dei uma gorjeta de cinco dólares.
— Muito generoso.
Ela bufou, grata por estar com as mãos ocupadas. Não fosse por isso, não sabia como teria evitado estapear aquele rosto calmo e satisfeito.
— Você já fez sua piadinha — disse ela, finalmente encontrando a chave. — Agora gostaria que me fizesse a cortesia de nunca mais me dirigir a palavra.
— Não sei de onde tirou a idéia de que sou cortês.—Antes que pudesse abrir a porta, ele segurou-lhe a mão por cima da chave. Ela sentiu a leve pinçada da força e o amaldiçoou por isso, ainda que continuasse a encarar o olhar calmo e satisfeito dele. — Mas mencionou, entretanto, que gostaria de falar comigo. Podemos conversar durante o jantar, hoje à noite.
Ela olhou para ele. Por que deveria ter pensado que ele jamais a surpreenderia novamente?
— Você realmente é de uma petulância inacreditável.
— Já me disse isso. Às sete horas?
Ela gostaria de dizer-lhe que não jantaria com ele nem que ele rastejasse a seus pés. Gostaria de dizer isso e uma infinidade de outras coisas desagradáveis. A índole contra o profissionalismo. Havia um trabalho que viera realizar, no qual vinha trabalhando sem sucesso havia três meses. O sucesso era mais importante do que o orgulho. Ele estava oferecendo-lhe o modo perfeito de viabilizar o que ela viera fazer e, ainda por cima, de uma maneira mais aprofundada do que jamais poderia esperar. E talvez, apenas talvez, estivesse abrindo, ele próprio, as portas para a vingança dela. Que, assim, teria um gostinho muito melhor.
Com muita dificuldade, Lee engoliu seu orgulho.
— Está ótimo — concordou, mas ele percebeu que não parecia muito satisfeita. — Onde vamos nos encontrar?
Ele jamais confiou em aquiescência imediata. Mas Hunter não confiava em quase nada mesmo. Ela seria um desafio, sentiu.
— Pego você aqui. — Ele passou casualmente os dedos pelo pulso dela antes de soltá-la. — Você bem que poderia trazer seu manuscrito. Estou curioso para ver seu trabalho.
Ela sorriu e pensou no artigo que escreveria.
— E eu quero muito que você veja meu trabalho.
Lee entrou no quarto do hotel e presenteou-se com o pequeno prazer de bater a porta na cara dele.
Seda azul-escura. Lee levou muito tempo e pensou bastante antes de escolher o vestido certo para a noite com Hunter. Era um jantar de negócios.
A seda azul-escura mesclada com finos fios prateados chamou-lhe a atenção por causa de suas linhas claras e elegantes e uma total ausência de ornamentação. Quando fazia compras, Lee costumava gastar o mesmo tempo que dedicava normalmente a suas pesquisas, escolhendo o cachecol certo. Era tudo negócios.
Ali, após um árduo debate, vestiu a seda. Roçava levemente sua pele, dando uma sensação de frescor; descaía sutilmente nas curvas. Seu reflexo a satisfez. A mulher de rosto grave que via à sua frente apresentava precisamente a imagem que desejava projetar — elegante, sofisticada e um pouco distante. Na falta de coisa melhor, a visão aliviou seu ego humilhado.
Fazendo um retrospecto de sua vida, concentrando-se em sua carreira, Lee não conseguia se lembrar de nenhum incidente em que havia sido superada. Seu semblante endureceu enquanto passava a escova no cabelo. Não seria superada agora.
Hunter Brown receberia de volta um pouco de seu veneno, principalmente por causa daquele meio-sorriso sarcástico. Ninguém ria dela e escapava impune, Lee disse para si mesma enquanto jogava de volta a escova na cómoda com força suficiente para balançar tudo em volta. Jogaria o jogo necessário para conseguir o que queria. Quando o artigo sobre Hunter Brown chegasse às bancas, ela teria vencido. Teria a satisfação de saber que ele a ajudara. Em última análise, ponderou Lee, nada substituía a vitória.
Quando ouviu alguém batendo à porta, consultou o relógio. Pronto. Precisava ficar atenta. Seu humor estava ótimo no momento em que foi até a porta após pegar a bolsa.
Estava vestido com uma informalidade básica, mas não desleixada, notou ela, gravando na memória a informação ao observar a camisa aberta no colarinho que ele usava por baixo do paletó escuro. Alguns homens podiam usar uma gravata escura e não parecerem tão elegantes quanto Hunter Brown usando jeans. Talvez isso fosse algo que interessasse seus leitores. No fim da noite, pensou Lee, já saberia tudo o que fosse possível saber sobre ele.
— Boa noite.
Ela foi na direção da entrada, mas ele tomou-lhe a mão, segurando-a com firmeza enquanto a analisava.
— Muito encantadora — declarou Hunter. A mão dela estava muito macia e fresca, embora os olhos ainda estivessem fervendo de irritação. — Você está vestindo seda e usando um perfume bastante sedutor, mas ainda assim consegue manter esta aura impenetrável. É um talento e tanto.
— Não estou interessada em ser analisada.
— Amaldiçoar ou abençoar um escritor — opôs-se ele — depende do ponto de vista. Sendo uma escritora, deveria entender isso. Onde está seu manuscrito?
Ela havia imaginado que ele se esqueceria — havia esperado que esquecesse. Mas, então, voltou à desvantagem da gagueira.
— É que... hum, não está...
— Traga-o — ordenou Hunter. — Quero dar uma olhada.
— Não vejo por quê.
— Todo escritor quer que suas palavras sejam lidas.
Ela não queria. Não estava revisado. Não estava perfeito. Sem dúvida, a última pessoa que gostaria de permitir a leitura de seus pensamentos íntimos era Hunter. Mas ele estava lá parado, observando, com aqueles olhos escuros já enxergando por trás da camada externa. Encurralada, Lee voltou ao quarto e retirou o envelope da pasta. De qualquer modo, se pudesse mantê-lo suficientemente ocupado, pensou, não haveria tempo para ele se lembrar do manuscrito.
— Vai ser difícil para você ler alguma coisa no restaurante — asseverou ela ao bater a porta.
— É por isso que vamos jantar na minha suíte.
Quando ela parou, ele simplesmente pegou-lhe a sua mão e a conduziu até os elevadores, como se não tivesse reparado.
—Talvez eu tenha lhe dado a impressão errada — disse ela, friamente.
— Acho que não. — Ele se virou, ainda segurando-lhe a mão. A palma da mão dele não era tão macia quanto ela esperava ser a de um escritor. A mão era tão grande quanto a de um pianista, mas cheia de calosidades: uma combinação bastante intrigante e desconfortável, percebeu Lee. — Minha imaginação não mergulhou tão profundamente na expectativa de seduzi-la, Lenore. — Embora percebesse que ficara rígida de indignação, acompanhou-a até o elevador. — A questão é a seguinte, não ligo a mínima para restaurantes e ligo menos ainda para multidões e interrupções. — O elevador zumbia levemente ao subir. — Você achou que a palestra valeu a pena?
— Vou conseguir realizar meu objetivo aqui.
Ela passou pela porta.
— E qual é seu objetivo?
— Você veio até aqui para quê? — desafiou ela. — Não é exatamente um hábito seu participar de congressos, e esse aqui certamente é bem pequeno e fora do circuito.
— De vez em quando me agrada o contato com outros escritores. Ele abriu a porta da suíte e acenou para ela entrar.
— Este congresso certamente não está cheio de escritores que tenham atingido seu grau de sucesso.
— Sucesso não tem nada a ver com escrever. Ela se livrou da bolsa e do envelope e o encarou.
— É fácil falar isso quando se faz sucesso.
— É? — Parecendo estar se divertindo, ele deu de ombros e então apontou na direção da janela. — Você precisa absorver o máximo que puder da vista. Não vai ver nada parecido com isso de uma janela em Los Angeles.
— Você não gosta de Los Angeles.
Se fosse cuidadosa e esperta, poderia descobrir onde ele morava e por que morava lá.
Los Angeles tem seus pontos positivos. Gostaria de tomar um pouco de vinho? - -
— Sim, gostaria. — Ela foi até a janela. A vastidão ainda mantinha o poder de impressioná-la e quase... assustá-la. Uma vez que você está fora dos limites da cidade, pode vaguear por quilómetros sem ver outra pessoa, sem ouvir outra voz. O isolamento, pensou, ou talvez apenas o próprio espaço, podiam ser esmagadores. — Você tem estado lá com certa freqüência? — perguntou ela, virando as costas deliberadamente para a janela.
— Hein?
— Em Los Angeles.
— Não.
Ele passou por ela e ofereceu-lhe uma taça de vinho branco.
— Você prefere a Costa Leste ou a Oeste?
Ele sorriu e ergueu a taça.
— Faço questão de preferir onde estou.
Era perito em evadir-se, pensou ela, e virou-se para dar uma volta pela suíte. Parecia ser também bastante perito em deixá-la inquieta. A menos que estivesse equivocada, ele fazia isso de propósito.
— Você viaja com freqüência?
— Somente quando é necessário.
Lee abaixou a taça e decidiu tentar uma abordagem mais direta.
— Por que se mantém tão recluso? A maioria das pessoas na sua posição aproveitaria o máximo da promoção e da publicidade disponíveis.
— Não me considero recluso, nem me considero a maioria das pessoas.
— Você não tem nem uma biografia, nem mesmo uma foto nas capas de seus livros.
— Meu rosto e minha vida não têm nada a ver com as histórias que conto. Está gostando do vinho?
— É muito bom. — Embora ela quase não tivesse tocado nele. — Não acha que faz parte de sua profissão satisfazer a curiosidade de seus leitores com relação a pessoa que cria as histórias que interessa a eles?
— Não. Minha profissão são as palavras... juntar palavras de tal modo que alguém que as leia tenha uma boa diversão, tenha curiosidade e prazer com a narrativa. E narrativas provêm muito mais da imaginação do que de fatos reais. — Ele bebeu um gole do vinho e o aprovou. — O narrador não é nada comparado com a narração em si.
— Modéstia? — perguntou Lee, com um traço de sarcasmo que não pôde impedir.
O sarcasmo pareceu diverti-lo.
— Nem um pouco. É uma questão de prioridades, não de humildade. Se me conhecesse melhor, compreenderia que tenho muito poucas virtudes.
Ele sorriu, mas Lee disse para si mesma que já imaginara aquele rápido brilho predatório em seus olhos. Já imaginara, disse para si mesma novamente, e estremeceu. Perturbada com sua própria reação, pediu mais vinho.
— Você tem alguma virtude?
Ele gostou do fato de ela reagir mesmo quando seus nervos estavam à flor da pele.
— Algumas pessoas dizem que os vícios são mais interessantes e, certamente, mais divertidos do que as virtudes. — Encheu a taça dela até a borda. Você concorda?
— Mais interessantes, talvez mais divertidos. — Ela se recusava a deixar que seus olhos se desviassem dos dele enquanto bebia. — Certamente mais exigentes.
Refletiu sobre o que ela dissera, apreciando a resposta rápida e o padrão de pensamento claro e direto.
— Você tem uma mente interessante, Lenore; você a exercita.
— Uma mulher que não tem acaba apenas observando outras pessoas subirem na vida enquanto ela enche copos dágua e faz café.
Ela quase praguejou de frustração no momento exato em que pronunciou aquelas palavras. Não tinha o hábito de falar tão abertamente. A questão era que estava ali para entrevistá-lo e não o inverso, pensou.
— Uma analogia interessante — murmurou Hunter. Ambição. Sim, sentira isso nela desde o começo. Mas o que poderia ela estar querendo alcançar? O que quer que fosse, refletiu, ela não chegaria ao topo pisando nas pessoas. Ele achou que poderia respeitar aquilo, poderia quase admirar, na verdade. — Diga-me, você relaxa de vez em quando?
— Como disse?
— Suas mãos estão quase sempre tremendo, embora pareça ter um grande autocontrole. — Ele reparou que, assim que Lee ouviu o que ele dissera, seus dedos pararam de brincar com a base da taça. — Desde que chegou aqui, não ficou parada em lugar nenhum por mais de alguns segundos. Deixo você nervosa?
Ela olhou friamente para ele, sentou no sofá de pelúcia e cruzou as pernas.
— Não.
Mas a pulsação dela acelerou um pouco quando ele se sentou ao lado.
— O que a deixa nervosa, então?
— Cachorros pequenos e barulhentos.
Ele riu, contente com o momento e com ela.
— Você é uma mulher muito divertida. — Pegou levemente na mão dela. — Devo lhe dizer que este é o meu mais elevado cumprimento.
— Você dá muita importância à diversão.
— O mundo é um lugar cruel, e freqüentemente entediante, o que é ainda pior. — A mão dela era delicada, e a delicadeza o encantava. Os olhos escondiam segredos, e não havia nada que o intrigasse mais. Se a gente não pode se divertir, só nos resta duas possibilidades. Voltar para as cavernas ou seguir no esquecimento.
— E aí você se diverte com o terror. — Queria se afastar, mas seus dedos apertavam a mão dela de maneira quase imperceptível. E os olhos buscavam seus pensamentos.
— Se está preocupada com o inominável terror que espreita a janela de seu quarto, você se preocuparia com sua próxima consulta ao dentista ou com o fato de que sua máquina de lavar transbordou?
— Fuga?
Tocou o cabelo dela. Parecia um gesto bastante prosaico e natural para ele. Os olhos de Lee escancararam-se como se tivesse sido beliscada.
— Não gosto da palavra fuga.
Ela era uma combinação quase irresistível, pensou Hunter, enquanto passava as pontas dos dedos pelo pescoço dela. Os cabelos cor de fogo, os olhos vulneráveis, o simpático refinamento, os nervos borbulhantes. Daria uma personagem fascinante e, percebeu ele, uma amante fascinante. Já decidira a primeira parte; naquele momento, enquanto brincava com as pontas dos cabelos dela, decidiu a segunda.
Lee percebeu alguma coisa quando os olhos grudaram novamente nos dela. Decisão, determinação, desejo. Sua boca ficou seca. Não era sempre que sentia que podia ser superada por outra pessoa. Era ainda mais raro alguém ou alguma coisa assustá-la para valer. Embora ele não tivesse dito nada, embora não tivesse se aproximado mais, percebeu que estava tentando se livrar do medo — e da certeza de que não importava o jogo para o qual o desafiasse, ela perderia porque ele a olharia fundo nos olhos e conheceria cada movimento antes que Lee pudesse realizá-los.
Ouviram uma batida na porta, mas ele continuou olhando para ela por longos e silenciosos minutos antes de se levantar.
— Tomei a liberdade de pedir o jantar — disse ele com tanta tranqüilidade que Lee chegou a pensar se não havia sido sua imaginação a chama de paixão que vira em seus olhos. Enquanto ele foi até a porta, ela ficou sentada onde estava, lutando para organizar os próprios pensamentos. Estava imaginando coisas, disse para si mesma. Ele não podia olhar dentro dela e ler seus pensamentos. Era apenas um homem. Já que o jogo era dela e somente ela conhecia as regras, não perderia. Refeita do susto, levantou-se e caminhou até a mesa.
O salmão estava macio e rosado. Contente com a escolha, Lee sentou-se à mesa assim que o garçom fechou a porta atrás de si. Até agora, refletiu Lee, tinha respondido mais perguntas do que Hunter. Estava na hora de mudar esta situação.
— O conselho que deu hoje cedo aos escritores iniciantes com relação a reservar todos os dias um tempo para escrever, não importa o quão desanimados estejam... isso vem de alguma experiência pessoal sua?
Hunter provou o salmão.
— Todo escritor tem de encarar o desânimo, de tempos em tempos. Assim como tem de encarar as críticas e a rejeição.
— Você encarou muitas rejeições antes da excelente vendagem de A dívida do diabo?
— Desconfio de tudo que acontece com muita facilidade.
Ele ergueu a garrafa de vinho para reencher a taça dela. O rosto de Lee era perfeito para um jantar à luz de velas, devaneou ele, ao observar a sombra e a luz oscilando por sobre a pele cremosa e macia e as feições delicadas. Estava determinado a descobrir o que existia por baixo daquilo antes que a noite terminasse.
Jamais passou-lhe pela cabeça que a estava usando, embora pretendesse utilizar a mente dela para tudo que pudesse aprender a seu respeito. Era um privilégio de escritor.
— O que o fez se tornar um escritor?
Ele ergueu a sobrancelha sem parar de comer.
— Nasci escritor.
Lee comia lentamente, planejando a próxima rodada de perguntas. Precisava ser mais cuidadosa, evitar colocá-lo na defensiva, não dar margem a qualquer desconfiança. Jamais passou-lhe pela cabeça que o estava usando, embora pretendesse utilizar a mente dele para tudo o que pudesse aprender a seu respeito. Era um privilégio de repórter.
— Nasceu escritor — repetiu, comendo outro pedaço de salmão. — Você acha que é simples assim? Não haveria elementos na sua formação, alguma circunstância, experiências na infância, que o levaram a se tornar escritor?
— Eu não disse que era simples — corrigiu Hunter. — Todos nascemos com um certo conjunto de escolhas a fazer. Tomar essa decisão é uma questão que está longe de ser simples. Todo romance escrito tem a ver com escolhas. Escrever romances foi o que me coube.
Ele a interessava a tal ponto que ela esqueceu a entrevista não oficial e perguntou por conta própria:
— Quer dizer que sempre quis se tornar um escritor?
— Você tem uma cabeça bastante literal — observou Hunter. Recostou-se confortavelmente e girou a taça de vinho, — Não, nem sempre. Eu queria ser jogador de futebol.
— Futebol?
A descrença e o espanto dela o fizeram rir.
— Futebol — repetiu ele. — Eu queria ser jogador profissional, e talvez até tivesse tido sucesso, mas precisava escrever.
Lee ficou em silêncio por um instante, depois decidiu que ele estava contando exatamente a verdade.
— Então se tornou escritor sem de fato querer.
— Fiz uma escolha — corrigiu Hunter, intrigado pela lógica sistemática da mente de Lee. —Acredito que muitas pessoas nascem escritores ou artistas e morrem sem nem mesmo ficarem sabendo disso. Livros deixam de ser escritos, quadros deixam de ser pintados. Os afortunados são aqueles que descobriram sua vocação. Talvez eu tivesse sido um excelente jogador de futebol; talvez tivesse sido um excelente escritor. Se tivesse tentado fazer as duas coisas, não seria nada além de medíocre.
— Há milhões de pessoas que concordariam que você fez a escolha certa. — Deixando de lado a fachada impassível, ela colocou os cotovelos na mesa e inclinou-se à frente. — Por que histórias de terror, Hunter? Alguém com suas habilidades e imaginação poderia escrever o que quisesse. Por que canalizou seu talento para este gênero específico?
Ele acendeu um cigarro, fazendo com que o cheiro de tabaco impregnasse o ar.
— Por que você o lê?
Ela franziu o cenho. Já fazia algum tempo que ele não lhe devolvia alguma pergunta.
— Não leio, em geral. Apenas os seus livros.
— Estou lisonjeado. Por que os meus?
— O seu primeiro me foi recomendado, e aí... — hesitou, não querendo revelar que não conseguira largar o livro desde a primeira página. Em vez disso, passou a ponta do dedo pela borda da taça e pensou numa resposta melhor. — Você tem um jeito de criar climas e delinear personagens que torna a implausibilidade de suas histórias perfeitamente crível.
Ele deu uma baforada.
— Você as considera implausíveis?
Ela deu um risinho rápido, um riso que ele reconheceu como autêntico em função do bom humor que lhe iluminou os olhos. Fazia algo muito especial com a beleza dela. Tornava-a acessível
— Eu dificilmente acreditaria em pessoas sendo possuídas por demónios ou numa casa que seja essencialmente má.
— Não? — Ele sorriu. — Nenhuma superstição, Lenore? Ela olhou-o nos olhos de igual para igual.
— Nenhuma.
— Estranho. A grande maioria de nós tem algumas.
— Você tem?
— É claro, e até mesmo as que não tenho me fascinam. — Ele tomou-lhe a mão, juntando os dedos com firmeza. — Dizem que algumas pessoas podem sentir a aura de outra pessoa, ou a personalidade, se a palavra lhe cai melhor, apenas com um bater de palmas.
A palma da mão dele estava cálida e dura e os olhos fixavam-se nos dela, Lee sentia algo frio em sua mão, o anel de metais intercalados.
— Não acredito nisso. — Mas não estava tão certa, não com ele.
— Você acredita somente no que vê ou sente. Somente no que pode ser apreendido por um dos cinco sentidos que compreende.
— Ele se levantou e foi até ela para que igualmente se levantasse.
— Nada que existe pode ser compreendido. Nada que é compreendido pode ser explicado.
— Tudo tem uma explicação. — Mas ela notou que suas palavras, assim como sua pulsação, estavam um pouco instáveis.
Poderia ter retirado a mão, e talvez ele tivesse deixado, mas sua sentença parecia um desafio frontal.
— Você pode explicar por que seu coração bate mais rápido quando me aproximo? — O rosto dele parecia misterioso, os olhos eram como azeviche à luz da vela. — Você disse que não tinha medo de mim.
— Não tenho.
— Mas seu pulso está acelerado. — A ponta do dedo dele tocou-lhe levemente o pescoço. — Você pode explicar por que, antes mesmo de termos passado um dia inteiro juntos, quero tocar em você assim? — Com delicadeza, extrema delicadeza, passou a mão pelo rosto dela.
— Não. — Apenas um sussurro.
— Você pode explicar esse tipo de atração entre dois estranhos?
— Passou um dedo por sobre os lábios dela, sentiu-os tremerem, imaginou que gosto teriam.
Alguma coisa macia, alguma coisa graciosa, movimentou-se dentro de Lee.
— Atração física nada mais é do que química.
— Ciência? — Ele encostou os lábios na palma da mão dela. Lee sentiu os músculos da coxa desmancharem. — Existe uma equação para isso? — Sem tirar os olhos dela, esfregou os lábios em seu pulso. A pele arrepiou-se e em seguida esquentou. O pulso sacudia e tentava se desvencilhar. Ele riu. — Isso — sussurrou ele, dando-lhe um beijo no canto da boca — tem a ver com lógica?
— Não quero que me toque dessa maneira.
— Você quer que eu a toque — corrigiu Hunter —, mas não tem como explicar isso. — Num gesto previsível, introduziu as mãos nos cabelos dela. — Tente o inexplicável — desafiou, antes de seus lábios se aproximarem dos dela.
Poder. Pulsava dentro dela. O desejo era como uma onda de calor. Podia perceber a necessidade que estava sentindo tomar conta de seu ser ao ver-se imóvel nos braços dele. Poderia tê-lo recusado. Lee tinha experiência na arte da recusa. Subitamente, sumiram o bom senso para escapar e a força para recusar.
Apesar de toda a intensidade, apesar de toda a força de sua personalidade, o beijo era delicado e suave. Embora os dedos dele estivessem firmes em seu cabelo, tão firmes que se tentasse escapar perceberia que estava presa, seus lábios eram tão delicados e cálidos quanto a luz que tremeluzia na mesa ao lado. Não se lembrava quando se aproximara dele, mas seus braços o enlaçavam pelo pescoço, os corpos colados, a seda farfalhando. O sabor tranqüilo e inebriante do vinho era perceptível na língua dele. Lee absorveu-o. Podia sentir o cheiro da vela e de seu próprio perfume. Sua mente organizada e disciplinada primeiro mergulhou na confusão e, em seguida, nas mais diversas sensações de desejo.
Seus lábios estavam frios mas logo se incendiaram. O corpo estava tenso mas começou a relaxar lentamente. Ele gostou de ambas as mudanças. Não era uma mulher que se entregava docilmente. Tinha consciência disso assim como também tinha consciência de que não era uma mulher que se surpreendia com facilidade.
Parecia pequena perto dele, bastante frágil. Ele sempre tratou a fragilidade com muito cuidado. Mesmo com o beijo ficando cada vez mais intenso, mesmo com sua própria necessidade crescendo cada vez mais, a boca de Hunter permanecia delicada, provocadora, predisposta. Acreditava que o ato do amor, desde a primeira carícia até o gozo, era uma arte. Acreditava que esta arte jamais podia ser apressada. Então, vagarosa e pacientemente, mostrou-lhe como deveria ser, enquanto suas mãos tocavam apenas o cabelo dela e a boca permanecia suavemente na dela.
Ele a sorvia inteiramente. Lee podia sentir sua vontade, sua força, seus pensamentos, escoando de si. E, ao serem escoados, um turbilhão de sensações preenchia a perda. Não havia como lidar com aquilo, não havia... explicação. Só podia ser vivenciado.
Um prazer tão fluido não podia ser contido. Um prazer tão forte não podia ser guiado. Era a ausência de controle muito mais do que o turbilhão de sensações que mais a assustava. Se perdesse o controle, perderia seu objetivo. E aí naufragaria. Com um protesto mais murmurado do que dito, ela soltou-se mas percebeu que enquanto ele liberava sua boca, ainda a segurava.
Mais tarde, pensou ele, em algum momento obscuro e solitário, exploraria sua própria reação. Naquele instante, estava muito mais interessado na reação dela, que olhava para ele como se tivesse sido golpeada—o rosto pálido, os olhos nebulosos. Embora estivesse com a boca aberta, não disse nada. Sentiu o leve tremor na mão de Lee que a acometia, uma vez, depois outra.
—Algumas coisas não podem ser explicadas, mesmo quando compreendidas. — Disse a frase suavemente, tão suavemente, que ela poderia pensar que se tratava de uma ameaça.
— Não entendo você. — Ela colocou as mãos no braço dele como se estivesse querendo afastá-lo. — E acho que não quero mais entendê-lo.
Ele não sorriu ao deslizar as mãos para os ombros dela.
— Talvez não. Você teria de fazer uma escolha.
— Não. — Trêmula, afastou-se dele e agarrou a bolsa. — O congresso termina amanhã e volto em seguida para Los Angeles. — De repente, virou-se para encará-lo, zangada. —Você vai voltar para sei ”lá qual buraco onde se esconde”.
Ele inclinou a cabeça.
— Talvez. — Foi melhor ela ter estabelecido uma distância entre os dois. Abruptamente, ele se deu conta de que se a tivesse segurado mais um pouco, não a teria deixado ir embora. — Conversaremos amanhã.
Ela não questionou a própria lógica. Apenas balançou a cabeça.
— Não, não conversaremos mais.
Ele não a corrigiu. Lee caminhou em direção à porta. Ele ficou parado onde estava quando ela bateu a porta atrás de si. Não havia necessidade de contrariá-la; sabia que conversariam amanhã novamente. Hunter ergueu a taça de vinho, pegou o manuscrito que ela havia esquecido e sentou-se numa cadeira.
Raiva. Talvez o que Lee sentisse fosse apenas raiva, sem outros torvelinhos e correntes de emoção. Mas não tinha certeza de quem sentia raiva.
O que aconteceu na noite anterior poderia ter sido evitado — deveria ter sido, corrigiu-se, ao sair do banho. Por ter permitido que Hunter estabelecesse o ritmo e o tom, colocou-se numa posição vulnerável e desperdiçou uma excelente oportunidade. Se havia alguma coisa que Lee aprendera em todos os seus anos como repórter, foi que uma oportunidade desperdiçada era o erro mais avassalador em seu ramo de atividade.
O quanto havia aprendido sobre Hunter Brown que pudesse ser utilizado num artigo conciso e informativo? O suficiente para um parágrafo, pensou, chateada. Um parágrafo bem curto.
Talvez lhe restasse apenas uma oportunidade para compensar o tempo perdido. Tempo perdido porque se apresentara com sentimentos de mulher e não com pensamentos de repórter. Ele a conduzira numa coleira, admitiu, amargurada, ao esfregar a toalha no cabelo molhado enquanto a lâmpada do teto aquecia sua pele. Em vez de recusar, ela foi, obediente, até onde ele quis.
E perdeu a entrevista mais importante de sua carreira. Lee jogou a toalha para o lado e saiu do banheiro enfumaçado.
Disse para si mesma que não sentia nada além de irritação por ele e por ela própria. Pegou um roupão e sentou-se numa pequena escrivaninha. Ainda tinha algum tempo antes do serviço de copa entregar sua primeira xícara de café do dia, mas não havia mais tempo a perder. Primeiro o trabalho... e por último também. Pegou bloco e lápis.
HUNTER BROWN. Escreveu no alto do bloco em letras maiúsculas e sublinhou o nome. O problema, admitiu, foi não ter abordado Hunter — sua tarefa — de maneira lógica e sistemática. Poderia corrigir isso agora com um planejamento básico. Ela, afinal, o viu, falou com ele, fez-lhe algumas perguntas elementares. Até onde sabia, nenhum outro repórter poderia afirmar ter feito algo parecido. Era hora de rapidamente parar de se repreender por não ter amarrado as coisas bem e usar a pequena vantagem que ainda possuía em proveito próprio. Começou a escrever com determinação.
APARÊNCIA. Atípica. Agora sim, tinha uma afirmação positiva, pensou, franzindo o cenho. Com três golpes ágeis ela envolveu as palavras. Moreno, esguio, magro, escreveu. Como um maratonista, ou um esquiador. Os olhos dela estreitaram-se enquanto trazia o rosto dele para o primeiro plano de sua memória. Rosto rude, compensado por uma aparente inteligência. Traços mais destacados: olhos. Muito escuros, bastante diretos, muito... perturbadores.
Era um editorial que estava escrevendo?, perguntou-se. Aqueles olhares longos e profundos iriam perturbar a todos? Abandonou a pergunta e continuou a escrever. Alto, talvez 1,85m, aproximadamente 75 kg. Muita autoconfiança. Mãos de músico, boca de poeta.
Um pouco surpresa com sua própria descrição, Lee prosseguiu com a categoria seguinte.
PERSONALIDADE. Enigmática. Não é suficiente, decidiu, levemente ofendida. Arrogante, egocêntrico, grosseiro. Estava com certeza fazendo um editorial. Baixou a caneta e respirou fundo. Pegou novamente a caneta. Um orador habilidoso e cativante, admitiu, no papel. Atento, inteligente, taciturno e aberto, às vezes. Corpóreo.
A última palavra não estava correta, percebeu Lee, ao lembrar da maciez do longo e absorvente beijo, da delicadeza da boca, da firmeza das mãos. Não, não podia publicar isso, nem precisaria de notas para relembrar todos os detalhes, todas as sensações. Entretanto, faria muito bem em lembrar que era um homem que agia rapidamente quando pretendia, um homem que, aparentemente, conseguia o que queria.
Humor? Sim, por baixo da força, ele tinha humor. Não gostava de recordar como ele rira dela, mas como tinha uma tal carência de material, precisava de cada detalhe, desconfortável ou não.
Lembrava de cada palavra que ele dissera sobre sua filosofia da escrita. Mas como poderia traduzir algo tão impalpável em algumas frases enxutas e pragmáticas? Poderia dizer que ele achava que seu trabalho era uma obrigação. Uma vocação. Mas não era suficiente, pensou, frustrada. Seria necessário, nesse caso, que colocasse as próprias palavras dele e não uma tradução do sentido. A verdade pura e simples era a seguinte: tinha de falar novamente com ele.
Passou a mão no cabelo e deu uma lida em suas bem organizadas notas. Deveria ter segurado as rédeas da conversa desde o início. Se havia algo no qual era especialista era canalizar e dirigir a conversa para onde desejava. Já entrevistara pessoas mais fechadas do que Hunter, mais hostis, mas não conseguia se lembrar de nenhuma entrevista tão frustrante.
Sem perceber, começou a bater com o lápis na mesa. Não fazia parte de seu trabalho a frustração, mas sim a produtividade.
Não fazia parte de seu trabalho, acrescentou ela, permitir-se ficar tão seduzida por uma tarefa.
Poderia ter evitado o beijo. Ainda não estava claro para ela por que não o evitara. Poderia ter controlado sua receptividade a ele. Não estava disposta a especular por que não o fizera. Era fácil demais lembrar aquele momento longo e estranhamente intenso e, ao lembrar, sentir tudo de novo. Se pretendia evitar que isso acontecesse e, ao em vez disso, lembrar todas as razões que a levaram a Flagstaff, tinha de colocar Hunter Brown imediatamente na categoria de tarefa a ser realizada e deixá-lo assim. Naquele momento, seu maior problema era imaginar como conseguiria fazer para vê-lo outra vez.
Profissionalmente, lembrou-se ela. Mas não conseguia ficar parada pensando nisso, ou nele. Devagar, tentava bloquear a sensação incrivelmente delicada da boca de Hunter sobre a sua. E não conseguia.
Uma onda de sensações; jamais experimentara algo parecido. A fraqueza, a força — a compreensão de tudo isso estava além das suas possibilidades. A saudade, a ânsia — como poderia descobrir a maneira de controlar tudo aquilo?
Talvez se o conhecesse melhor... Não. Lee ergueu a escova de cabelo, mas recolocou de volta. Não, compreender Hunter não tinha nada a ver com combater o desejo que sentia por ele. Desejou ser tocada por ele e, embora não tivesse nenhum motivo lógico para isso, desejou muito mais ser tocada por ele do que realizar seu trabalho. Isso jamais aconteceu antes, admitiu, inadvertidamente empurrando os diversos utensílios de toalete que estavam na cômoda. Quando algo acontecia pela primeira vez, era preciso estabelecer, você mesma, sua pauta.
Inquieta, olhou para a frente e viu uma mulher pálida com olhos de sono e cabelo desgrenhado refletido no espelho. Tinha a aparência muito jovem, muito... frágil. Ninguém jamais a via sem o escudo da maquiagem, mas sabia o que estava por trás do melindre e do falso brilho. Medo. Medo do fracasso.
Construíra sua autoconfiança meticulosamente, tijolo a tijolo, até que por fim ela própria passou a acreditar nisso na maior parte do tempo. Mas em momentos como esse, quando se encontrava sozinha, um pouco deprimida, um pouco desencorajada, a mulher interior se insurgia e, junto com ela, todas as pequenas dúvidas e medos por trás daquela muralha laboriosamente bem construída. Desde que nascera, fora preparada para ser pouca coisa além de um ornamento atraente e inteligente. Bem comunicativa, bem produzida e bem disciplinada. Era tudo o que sua família esperava dela. Não, corrigiu Lee. Era o que havia sido esperado dela. Nesse sentido, já havia falhado.
Que truque do destino tornara tão impossível para ela se encaixar no molde para o qual fora preparada? Desde a infância sabia que precisava de mais, embora somente depois da faculdade tenha conseguido acumular coragem suficiente para desviar-se da trilha que a teria levado da debutante respeitável para a dona-de-casa respeitável.
Quando contou aos pais que não se transformaria na sra. Jonathan T. Wiiloby e que estava deixando Palm Springs para morar e trabalhar em Los Angeles, não parava de tremer por dentro. Só mais tarde percebeu que tinha sido a educação que eles haviam lhe dado que a sustentara naquele encontro particularmente difícil. Eles lhe ensinaram a sempre agir de maneira calma e serena, jamais elevar a voz, jamais demonstrar qualquer sinal vulgar de irritação. Quando falou com eles, parecia ter certeza absoluta do que queria, quando, na verdade, estava aterrorizada por deixar aquela confortável redoma de vidro que vinham construindo para ela desde antes do seu nascimento.
Cinco anos mais tarde, o medo diminuiu, mas permaneceu. Parte de sua motivação para alcançar o topo na profissão vinha da necessidade básica de provar sua competência para os pais.
Tolice, disse para si mesma e deu as costas para a vulnerabilidade da mulher no espelho. Não tinha nada a provar para ninguém, a menos que fosse para si própria. Viera até ali para fazer um artigo, e isso era sua primeira, e única prioridade. A história ficaria desfigurada, na opinião dela, se tivesse de seguir as pegadas de Hunter como um cão policial.
Olhou de novo para seu bloco e para as anotações que ocupavam menos de uma página. Teria mais antes do final do dia, prometeu a si mesma. Muito mais. Ele não ficaria em vantagem novamente, nem a desviaria de seu objetivo. Assim que terminasse de se vestir e tomasse o café-da-manhã iria atrás de Hunter. Dessa vez, estaria firme no comando.
Quando ouviu baterem na porta, Lee olhou para o relógio ao lado da mesa e deu um pequeno suspiro de frustração. Estava atrasada em seus horários, algo que jamais permitia que acontecesse. Solicitara deliberadamente café e pãezinhos para as 9:00, para poder ter tempo de estar vestida e pronta quando a comida chegasse. Agora, teria de correr para garantir algum tempo com Hunter antes de checar a hora. Não desperdiçaria uma oportunidade duas vezes.
Impaciente, ela foi até a porta, girou a chave e abriu.
— Seria melhor não comer nada se você pensa que pode sobreviver com alguns pedaços de pão e um pouco de geléia. — Antes que pudesse se recuperar do susto, Hunter passou voando por ela, carregando uma bandeja de café-da-manhã. — E uma mulher inteligente nunca abre a porta sem antes perguntar quem está do outro lado. — Colocou a bandeja sobre a mesa e encarou-a com um de seus intermináveis e invasivos olhares.
Lee parecia mais jovem com o brilho da maquiagem e a escolha cuidadosa de roupas. Os traços de fragilidade que ele já percebera não estavam mais com nenhuma proteção sofisticada, embora seu roupão azul-claro de seda fosse agradável ao olhar. Ele sentiu uma onda de desejo e ao mesmo tempo uma necessidade de protegê-la. Nenhum dos dois podia retardar completamente sua ira. Não estava disposta a revelar-lhe o quanto estava surpresa de vê-lo, ou o quão perturbada se sentia de ele estar ali sozinho com ela quase nua.
— Primeiro, motorista; agora, garçom — disse ela, fria e sem sorrir. — Você tem muitos talentos, Hunter.
— Eu poderia retribuir o cumprimento. — Como tinha consciência de como podia ser volátil seu temperamento, ele serviu uma xícara de café. — Já que um dos primeiros requisitos de um escritor de ficção é ser um bom mentiroso, você já está no caminho certo. — Ele apontou para uma cadeira, colocando Lee na desconfortável posição de visitante. Como se não estivesse minimamente interessada, ela atravessou o quarto e sentou-se à mesa.
— Eu lhe convidaria a se juntar a mim, mas só há uma xícara. — Ela partiu um croissant em dois e deu uma mordida, sem colocar manteiga. — Pode pegar um pãozinho. — Com mão firme, adicionou leite ao café. — Talvez você queira explicar o que quer dizer quando afirma que sou uma boa mentirosa.
— Acho que também é um requisito de repórteres.
Hunter viu primeiro os dedos dela tensos no pão que se despedaçava e depois relaxarem, um a um.
— Não. — Lee deu outra mordida no pão, tentando fingir que seu estômago não desabara a seus pés. — Repórteres lidam com fatos, não ficção. — Ele não disse nada, mas o olhar silencioso demandava muito mais dela do que uma dúzia de palavras. Lee controlava seu tempo, determinada a não se atrapalhar de novo. Deu um gole no café. — Não me lembro de ter mencionado que era repórter.
— Não, você não mencionou. — Ele agarrou seu pulso assim que ela largou a xícara. A pegada forte dos dedos dele indicaram de imediato o quanto ele estava zangado. — Você, de modo bastante deliberado, não mencionou isso.
Com um movimento da cabeça, ela retirou o cabelo da frente dos olhos. Se tivesse perdido, não se humilharia.
— Não me foi requisitado que eu lhe dissesse. — Ignorando o fato de ele estar segurando-lhe firmemente a mão como se fosse uma prisioneira, Lee pegou o croissant com a outra mão e deu uma mordida. — E paguei minha taxa de inscrição.
— E fingiu ser algo que não era. Ela encarou o olhar dele sem recuar.
—Aparentemente, desde o início, ambos fingimos ser algo que não éramos.
Ele inclinou a cabeça ao ouvir a referência que ela estava fazendo ao primeiro encontro.
— Eu não queria nada de você. Por outro lado, você foi muito mais do que inofensiva na sua mentira.
Ela não gostou da forma como aquilo soou, tão fútil, tão sórdido. E tão verdadeiro. Se os dedos dele não estivessem machucando seu pulso, poderia ter-lhe passado pela cabeça se desculpar. Em vez disso, Lee manteve sua posição.
— Tenho todo o direito de estar aqui e todo o direito de tentar vender um artigo sobre qualquer aspecto deste congresso.
— E eu — replicou ele, tão suavemente que as entranhas dela quase congelaram — tenho todo o direito a minha privacidade, a escolher falar com um repórter ou me recusar a falar com outro.
— Se eu tivesse lhe dito que fazia parte da equipe da Celebrity—retrucou ela, fazendo a segunda tentativa de libertar seu braço —, por acaso você teria falado comigo?
Ele continuava segurando o pulso dela; continuava a olhar fixamente para ela. Por vários e longos minutos, não disse uma palavra sequer. — Isso é algo que, agora, nenhum de nós jamais poderá saber.
Soltou o pulso tão abruptamente que o braço dela tombou sobre a mesa, chocando-se com a xícara. Lee percebeu que amassara tanto o pãozinho que o transformara numa insípida bolinha.
Ele a assustava. Não havia sentido em negar este fato para si mesma. A força da raiva dele, tão bem contida, propiciou pequenos arrepios em seu corpo. Não o conhecia nem o entendia, nem possuía alguma maneira de ter certeza de como ele agiria. Havia muita violência nos livros dele; portanto, havia violência em seus pensamentos. Lutando para manter a compostura, ela ergueu novamente a xícara de café, bebeu um pouco e não saboreou absolutamente nada.
— Estou curiosa em saber como descobriu. — Bom, sua voz estava calma, sem pressa. Pegou a xícara com as duas mãos para disfarçar o rápido tremor que fugira ao seu controle.
Lee parecia um gatinho acuado num canto, observou Hunter. Pronta para bufar e arranhar, apesar do coração estar batendo tão forte que quase se podia ouvi-lo. Ele não queria ter nenhuma consideração por ela, queria, isto sim, estrangulá-la. Ele não queria sentir um forte desejo de tocar a pele branca e sedosa de seu rosto. Ser enganado por uma mulher talvez fosse a única coisa que ainda tinha o poder de levá-lo a este grau de raiva.
— Por mais estranho que pareça, Lenore, me interessei por você. Ontem à noite... — Percebeu que ela enrijeceu e sentiu uma certa satisfação. Não, não a deixaria esquecer daquilo muito mais do que ele próprio poderia esquecer. — Ontem à noite — repetiu ele, vagarosamente, esperando até que o olhar dela se fixasse nele —, eu queria fazer amor com você. Queria penetrar abaixo desta cuidadosa camada de refinamento e descobrir você. E quando tivesse terminado, você ficaria com a aparência que está agora. Suave, frágil, com a boca nua e os olhos enevoados.
Os ossos dela já estavam se dissolvendo, a pele queimando, e ainda não passava de palavras. Ele não a tocou, não tentou tocar, mas o som da voz dele percorria sua pele como a mais delicada das carícias.
— Eu não... eu não tinha nenhuma intenção de permitir que fizesse amor comigo.
— Não acredito que o amor seja uma questão de permissão, mas sim de mútua aceitação. — Os olhos dele não paravam de encará-la. Ela podia sentir que sua cabeça começava a mergulhar na paixão, sua respiração começava a ficar entrecortada. — Mútua aceitação — repetiu Hunter. — Quando você foi embora, passei para a segunda melhor maneira de descobrir você.
Lee apertou as mãos no colo, consciente de que precisava controlar o tremor. Como poderia um homem ter tamanho poder? E como poderia combater isso? Por que se sentia como se já fossem amantes? Seria somente a sensação de que estavam para ser, inevitavelmente, pouco importando a escolha dela?
— Não sei o que quer dizer com isso. — Sua voz não estava mais calma.
— Seu manuscrito.
Sem compreender, ela o encarou. Ela se esquecera completamente do manuscrito na noite anterior, com medo dele e de si própria. Raiva e frustração evitaram que se lembrasse do manuscrito naquela manhã. Agora, coroando um desejo enlouquecido, sentia o desamparo de uma novata confrontada pelo mestre.
— Nunca foi minha intenção que você o lesse — começou ela. Sem perceber, estava despedaçando o guardanapo no colo.—Não tenho nenhuma aspiração de me tornar escritora.
— Então, além de mentirosa, você é idiota.
Todo o desamparo que sentia caiu por terra. Ninguém, ninguém de que pudesse se lembrar, jamais falara com ela daquela maneira.
— Não sou nem idiota nem mentirosa, Hunter. Sou, isto sim, uma excelente repórter. Quero escrever um artigo exclusivo, aprofundado e detalhado sobre você para seus leitores.
— Por que você perde seu tempo escrevendo fofocas quando tem um romance para terminar?
Ela ficou rígida. Os olhos, que antes estavam enevoados com a confusão do desejo, ficaram gélidos.
— Não escrevo fofocas.
— Você pode até dar um verniz, pode escrever com estilo e inteligência, mas continua sendo fofoca. — Antes que Lee pudesse retrucar, ele se levantou com tanta rapidez, com tanta fúria, que ela engoliu as palavras. — Você não tem o direito de passar quarenta horas por semana escrevendo qualquer coisa que não seja seu romance. O talento é uma moeda de duas faces, Lenore, e a outra face é a obrigação.
— Não sei do que está falando. — Ela também se levantou, e descobriu que podia berrar de modo tão eficiente quanto ele. — Sei quais são as minhas obrigações, e uma delas é escrever um artigo sobre você para a minha revista.
— E o romance?
Ela levantou as mãos, irritada, e saiu de perto dele.
— O que tem o romance?
— Quando pretende terminá-lo?
Terminá-lo? Jamais deveria ter começado a escrevê-lo. Por acaso já não dissera isso para si mesma uma dúzia de vezes? — Droga, Hunter, é só uma fantasia.
— Ele é bom.
Ela se virou, as sobrancelhas ainda franzidas pela raiva, mas os olhos subitamente precavidos. -
— O quê?
— Se não fosse, sua camuflagem teria funcionado muito bem. — Ele pegou um cigarro enquanto olhava para ela. Como podia ser tão calmo, movimentar-se tão lentamente, quando ela estava quase pulando a cada palavra que ouvia? — Quase liguei ontem à noite para saber se tinha mais alguma parte aqui com você, mas desisti. Em vez disso, liguei para minha editora. — Ainda tranqüilo, ele fumava. — Quando lhe dei os capítulos para ler, ela reconheceu seu nome. Parece que ela é uma grande fã da revista.
— Você deu para ela... — Aturdida, Lee desabou novamente na cadeira.—Você não tinha o direito de mostrar para ninguém.
— Na hora, acreditei que você era exatamente aquilo que tinha me levado a acreditar que era.
Ela levantou-se novamente e agarrou com força as costas da cadeira.
— Sou jornalista, não sou escritora. Gostaria que você pegasse com ela o manuscrito e me devolvesse.
Ele colocou o cigarro no cinzeiro e só então percebeu as anotações bem organizadas. Deu uma olhada rápida nelas e sentiu que se divertia e se perturbava ao mesmo tempo. Quer dizer que ela estava tentando enfiar-lhe alguns rótulos bonitinhos. Teria mais dificuldades do que imaginava.
— E por que eu faria isso?
— Porque pertence a mim. Você não tinha o direito de dá-lo para mais ninguém.
— Do que é que tem medo? — perguntou ele.
Do fracasso. Lee quase não conseguiu evitar que as palavras saíssem de sua boca.
— Não tenho medo de nada. Faço aquilo que sei fazer melhor, e pretendo continuar fazendo. Do que você tem medo? — retrucou ela. — Do que você se esconde?
Lee não gostou do olhar que ele lhe lançou ao virar a cabeça novamente para ela. Não era raiva que ela via ali, nem arrogância, mas algo além de ambas.
— Faço o que sei fazer de melhor, Lenore. — Quando chegou àquele quarto, não havia planejado nada mais além de esfolá-la viva pela mentira e repreendê-la por desperdiçar seu talento. Mas agora, fitando-a, Hunter começou a pensar que havia uma maneira melhor de fazer isso e, ao mesmo tempo, aprender mais coisas sobre ela para proveito próprio. Ainda tinha muita coisa a tratar com Lenore Radcliffe. — O que há de tão importante para você em fazer um artigo sobre mim?
Alertada para a mudança de tom, Lee analisou-o com cuidado. Tentara de tudo, decidiu ela, abruptamente, talvez pudesse acariciar-lhe o ego.
— É muito importante. Faz mais de três meses que venho tentando descobrir alguma coisa a seu respeito. Você é um dos escritores mais populares e mais aclamados pela crítica nessa década. Se você...
Ele a cortou apenas erguendo uma das mãos.
— Se eu decidisse dar a entrevista, teríamos de passar muito tempo juntos, e sob minhas condições.
Lee ouviu o sinal de alerta mas ignorou-o. Já estava quase sentindo o gostinho do sucesso.
— A gente pode discutir de antemão as condições. Dou a minha palavra de honra, Hunter.
— Não duvido disso, uma vez que ela for dada. — Hunter apagou o cigarro e refletiu sobre os ângulos da questão. Talvez estivesse querendo arranjar problema. Mas até que não tinha arranjado nenhum já fazia um bom tempo. Tinha direito. — Quanto mais do manuscrito você já tem pronto?
— Isso não tem nada a ver com o assunto. — Quando ele franziu o cenho e a encarou, Lee cerrou os dentes. Faça a vontade dele, disse para si mesma. Você está quase lá. — Umas duzentas páginas.
— Mande o resto para minha editora. — Olhou com suavidade para ela. — Com certeza você já sabe o nome dela.
— O que isso tem a ver com a entrevista?
— É uma das condições — disse Hunter, simples e direto. — Estou combinando alguma coisa para daqui a duas semanas — continuou ele. — Você pode se encontrar comigo, com outra cópia do manuscrito.
— Me encontrar com você? Onde?
— Vou acampar por duas semanas em Oak Creek Canyon. Talvez seja melhor você comprar uns sapatos mais resistentes.
— Acampar? — Ela visualizou barracas e mosquitos. — Já que você não está saindo de férias imediatamente, por que a gente não pode marcar a entrevista um ou dois dias antes?
— As condições — lembrou ele. — Minhas condições.
— Você está tentando tornar as coisas difíceis.
— Estou. — Ele deu um sorriso, um leve ar de bom humor surgiu em sua boca bem-feita.—Você vai batalhar por sua exclusiva, Lenore.
— Tudo bem. — Ela levantou o queixo. — Onde e quando me encontro com você?
Agora sim, ele deu um sorriso completo. Sabia apreciar determinação quando ela surgia.
— Em Sedona. Vou entrar em contato com você assim que tiver certeza da data, e quando minha editora me confirmar que recebeu o restante do manuscrito.
— Não consigo entender por que está usando isso para me chantagear.
Então ele se aproximou dela e tocou levemente seu cabelo com os dedos. Um gesto casual, amigável e estranhamente íntimo.
— Talvez uma das primeiras coisas que deva saber sobre mim é que sou excêntrico. Se as pessoas aceitam suas próprias excentricidades, podem justificar qualquer coisa que fazem. Qualquer coisa mesmo. — Finalizou a fala encostando a boca na de Lee.
Ouviu-a inspirar, sentiu que ficava rígida. Mas não lutava contra. Talvez estivesse testando a si mesma, embora não pensasse que ela pudesse saber que também o estava testando. Seu desejo era levá-la para aquela cama desarrumada, retirar aquele roupão de seda e encaixar o corpo no dela. Encaixaria muito bem; de uma forma ou de outra, ele já sabia disso. Lee sairia dali com ele, para ele, como se fossem amantes desde sempre. Ele sabia, embora não conseguisse explicar.
Podia sentir que o contato íntimo a estava transformando, os lábios dela estavam mais cálidos e úmidos. Estavam sozinhos, e o desejo era enorme. Embora ele soubesse, sem compreender, que se fizessem amor ali, se saciassem aquele desejo, jamais iria revê-la. Ambos tinham temores a encarar, antes e depois de se tornar amantes.
Hunter proporcionou a si mesmo o prazer de um último e longo beijo, impregnando-se do sabor dela, permitindo-se ficar arrebatado, apenas por um instante, pela sensação de tê-la colada a si. Então lutou para se equilibrar, lutou para lembrar que ambos queriam alguma coisa do outro — segredos e intimidade que ambos colocariam em palavras nos seus próprios modos.
Ele recuou e deixou as mãos permanecerem apenas mais um instante na curva do rosto dela, na maciez de seu cabelo. Lee não disse nada.
— Se conseguir ficar duas semanas no canyon, seu artigo está liberado.
Com essas palavras, ele se virou e saiu do quarto.
— Se eu conseguir agüentar as duas semanas — murmurou Lee, apanhando uma pesada suéter do armário —, vou te contar, Bryan, nunca conheci ninguém que com tão poucas palavras pudesse me irritar tanto.
Dez dias em Los Angeles ainda não haviam arrefecido sua fúria. Bryan passou os dedos pela macia lã da suéter.
— Lee, será que não tem nenhuma roupa mais batida?
— Comprei uns agasalhos — disse ela, quase resmungando. — Não passei muito tempo da minha vida em barracas.
Antes que outro par de calças novinhas fosse colocado na mochila que Lee pegara emprestado com ela, Bryan pegou-lhe na mão.
— É só um conselho.
Lee ergueu a fina testa ruiva.
— Você sabe que detesto conselhos.
Bryan desabou na cama e deu um sorrisinho.
— Eu sei. E é por isso que nunca resisto em dar algum. Lee, falando sério, sei que você tem um par de calças jeans. Já vi você com uma delas. — Ela roçou no cabelo que escapara da trança. — De grife ou não, leve jeans, não essas calças caras demais. Leve mais uns dois pares — continuou enquanto Lee fazia uma careta para as roupas ainda em sua mão. — Ponha de volta essa maravilhosa suéter de lã no armário e pegue umas duas camisas de flanela. Elas vão dar conta das noites, se esfriar um pouco. Agora...
Como Lee estava ouvindo com bastante atenção, ela continuou:
— Leve umas camisetas; blusas são para o escritório, não para fazer trilha. Leve pelo menos um par de shorts e também meias grossas de qualidade. Se você tivesse um pouco mais de tempo, eu ia lhe sugerir amaciar essas suas botas novas de montanhismo porque elas vão fazer você sofrer.
— O vendedor disse...
— Não há nada de errado com elas, Lee. O problema é que elas mal saíram da caixa. Encare a situação. — Ela se esticou na nova coleção de travesseiros de Lee. — Você estava concentrada demais em levar papel e lápis para se preocupar com os equipamentos. Se não quer dar uma de burra, ouça a mamãe aqui.
Com um rápido resmungo, Lee guardou a suéter.
— Eu já dei uma de burra diversas vezes. — E fechou com força uma das gavetas do armário. — Ele não vai ter o gostinho de ter o melhor de mim nessas duas semanas, Bryan. Se preciso dormir numa barraca e escalar montanhas para conseguir essa matéria, vou fazer isso.
— Se você tentasse com muita vontade, poderia até se divertir ao mesmo tempo.
— Não estou atrás de diversão. Estou atrás de uma matéria exclusiva.
— Nós somos amigas.
Embora fosse uma afirmação, não uma pergunta, Lee olhou para ela.
— Sim. — Pela primeira vez desde que começara a arrumar as malas, ela sorriu. — Somos amigas.
— Então me conte o que é que perturba você nesse cara. Não parou de roer as unhas por mais de uma semana. — Embora falasse de maneira leve, a preocupação era visível. — Você queria entrevistar Hunter Brown. Por que tenho a impressão de que está se preparando para ir à guerra?
— Porque é assim que estou me sentindo. — Com qualquer outra pessoa, Lee teria evitado a pergunta ou ficado indiferente. Como se tratava de Bryan, ela sentou na beirada da cama, torcendo nas mãos um agasalho recém-comprado. — Ele me obriga a querer o que não quero querer, me obriga a sentir o que eu não quero sentir. Bryan, eu não tenho espaço em minha vida para complicações.
— Quem tem?
— Sei exatamente para onde estou indo — insistiu Lee, talvez excessivamente veemente. — Sei exatamente como chegar lá. De uma maneira ou de outra, sinto que Hunter é um desvio.
— Às vezes um desvio é melhor do que um caminho planejado, e você acaba chegando no mesmo lugar no final.
— Ele olha para mim como se soubesse o que estou pensando. Mais ainda, como se soubesse o que pensei ontem, ou no ano passado. Não é confortável,
— Você nunca procurou nada confortável — apontou Bryan, encostando a cabeça nos braços cruzados. — Você sempre esteve à procura de desafios. Só que nunca encontrou nenhum em um homem antes.
— Não quero encontrar um desafio num homem. — Lee guardou, com violência, o agasalho na mochila. — Quero desafios no meu trabalho.
— Você não tem obrigação de ir. Ela levantou a cabeça.
— Eu vou.
— Mas então não vá fazendo cara feia. — Bryan cruzou as pernas e se sentou. Estava tão amarrotada quanto Lee estava arrumada, mas parecia estranhamente adequada à luxuosa pilha de travesseiros a sua volta. — Essa é uma tremenda oportunidade para você, tanto no nível profissional quanto pessoal. Oak Creek é um dos mais belos canyons do país. Você vai ter duas semanas para fazer parte daquilo. E um homem que não a aborrece nem a paparica. — Ela deu um sorrisinho ao ver o olhar malicioso de Lee. — Você está cansada de saber que eles fazem uma coisa ou outra e você não suporta isso. Aproveite a mudança de cenário.
— Estou indo a trabalho — lembrou-lhe Lee — não colher flores selvagens.
— Pegue algumas, de qualquer forma; ainda assim, você vai conseguir sua matéria.
— E fazer Hunter Brown se contorcer de ódio.
Bryan deu uma sonora gargalhada e jogou um travesseiro para o ar.
— Se é isso o que você pretende fazer, então vai fazer. Eu até sentiria pena do cara se ele não tivesse me dado alguns pesadelos. — Após uma rápida careta, seu olhar tornou-se afetuoso. — E Lee... — disse ela, colocando a mão sobre a da amiga — se ele a fizer desejar alguma coisa, agarre com vontade. A vida não é recheada de ofertas. Dê um presente para si mesma. Lee ficou em silêncio por um momento e então suspirou.
— Não estou certa se eu estaria me dando um presente ou uma maldição. — Levantou-se e foi até o armário. — Quantos pares de meia?
— Mas ela é jeitosa? — Sarah estava sentada no meio do tapete, uma perna curvada à frente, enquanto a outra tentava com valentia se encaixar atrás do pescoço. — Jeitosa mesmo?
Hunter mexeu na cesta de roupa suja. Sarah havia metodicamente lembrado a ele que era sua vez de fazer a arrumação.
— Eu não diria jeitosa. Uma cesta de frutas cuidadosamente arrumada é jeitosa.
Sarah deu uma risada, rolou para o lado e recurvou-se, agora de costas. Não havia nada que gostasse mais do que conversar com o pai, porque ninguém falava como ele.
— Então que palavra você usaria?
Hunter dobrou uma camiseta com o nome de uma famosa banda de rock escrita em cores vibrantes.
— Ela tem uma beleza rara e clássica, com a qual a grande maioria das mulheres não saberia o que fazer.
— Mas ela sabe?
Ele lembrou.
— Ela sabe.
Sarah deitou-se de costas e aninhou-se no cachorro esticado ao seu lado. Ela gostava do pêlo macio e cálido de Santanas, tanto quanto gostava de fechar os olhos e ouvir a voz do pai.
— Ela tentou fazê-lo de bobo — lembrou-lhe Sarah. — Você não gosta quando as pessoas tentam fazê-lo de bobo.
— Na cabeça dela, estava apenas fazendo seu trabalho.
Com uma das mãos no pescoço do cachorro, Sarah olhou na direção do pai com grandes olhos escuros, tão parecidos com os dele.
— Você nunca fala com repórteres.
— Eles não me interessam. — Hunter deu de cara com um par de calças jeans com um grande buraco na altura do joelho.
— Essas calças não são novas?
— Mais ou menos. Então por que vai levá-la para acampar?
— Mais ou menos novas não deveriam ter furos, e não vou levá-la, ela vai comigo.
Ela meteu a mão no bolso e pegou um tablete de chiclete. Não podia mascar chicletes por causa do aparelho dentário, então apenas acariciou a embalagem sem abri-la. Em seis meses, pensou Sarah, mascaria uma dúzia de uma vez.
— Porque ela é repórter ou porque possui uma beleza rara e clássica?
Hunter baixou os olhos para ver a filha rindo dele. Ela era inteligente em todos os sentidos, decidiu ele, e arremessou-lhe um par de meias enroladas.
— Ambos, mas principalmente porque acho que ela é interessante e talentosa. Quero ver o quanto posso descobrir sobre ela enquanto ela tenta descobrir sobre mim.
— Você vai descobrir mais — declarou Sarah, jogando preguiçosamente as meias no ar. — Você sempre descobre. Acho que é uma boa idéia — acrescentou ela depois de um momento. — Tia Bonnie diz que você não se encontra muito com mulheres, especialmente com mulheres que sejam um desafio para sua mente.
— Tia Bonnie pensa em casais.
— Talvez ela incite uma paixão fervorosa em você. A mão de Hunter parou no caminho para a cesta.
— O quê?
— Li isso num livro. — Com desenvoltura, ela rolou de tal modo que os pés tocaram o chão atrás da cabeça.—Um cara encontra uma mulher, mas eles não sentem nada um pelo outro a princípio, mas existe essa forte atração física e um desejo crescente e...
— Já visualizei a coisa. — Hunter olhou para a garota magra e de cabelos escuros que estava no chão. Ela era sua filha, pensou ele. Tinha dez anos. Como, por tudo que era sagrado, eles se envolveram nesse assunto de paixão? — Você, principalmente você, deveria saber que as coisas na vida real não acontecem freqüentemente da mesma maneira que nos livros.
— A ficção é baseada na realidade. — Sarah deu um risinho, satisfeita de jogar de volta para ele uma de suas próprias citações. — Mas antes que se apaixone por ela, ou tenha muita paixão fervorosa, quero conhecê-la.
— Vou me lembrar disso. — Ainda olhando para ela, Hunter pegou três meias não casadas. — Como é que isso pode acontecer toda semana?
Sarah analisou as meias por um momento, e então sentou-se.
— Acho que existe um universo paralelo na secadora. Do outro lado da porta, nesse exato instante, outra pessoa está segurando três meias não casadas.
— Teoria interessante. Hunter se abaixou e a agarrou. Assim que a gargalhada de Sarah chacoalhou o teto do /o/f, ele a jogou na cesta.
Era parecido com todos os filmes de faroeste a que ela assistira. Com o sol brilhando intensamente nos olhos, Lee quase podia ver os fora-da-lei enfrentando soldados e índios à espreita atrás de pedras e colinas. Se deixasse sua imaginação à solta, poderia quase ouvir o tropel soar no solo endurecido. Como estava sozinha no carro, podia liberar a imaginação.
As vistosas montanhas avermelhadas erguiam-se abaixo de um céu dramaticamente azul. Era uma vastidão quase ultrajante, sem exuberância, sem necessidade de qualquer exuberância, sem paciência para qualquer exuberância. Fazia sua garganta ficar seca e o coração disparar.
Havia verde — o verde prateado dos arbustos de artemísia colados ao solo pedregoso e vermelho, e o matiz mais profundo dos zimbros, que davam lugar a uma súbita e aparentemente planejada escassez. Embora a escassez fosse, ela própria, rica. O espaço, o avassalador espaço, a deixava impressionada e humilde, e estranhamente ávida por mais. Em todos os lugares haviam mais espinhaços, mais cores, mais... Lee balançava a cabeça. Simplesmente mais.
Mesmo ao se aproximar da cidade, as casas e edifícios não eram páreo para a vastidão. Placas de trânsito, sinais, flores nos jardins, eram irrelevantes. O carro dela se juntou a outros, mas cinco vezes aquela quantidade ainda seria insignificante. Era uma vista para ser sorvida, pensou ela, mas o sabor era quente e forte.
Ela gostou de Sedona instantaneamente. Sua bem arrumada atmosfera de Velho Oeste combinava com o fabuloso cenário, ao invés de desfigurá-lo. Não tinha certeza se alguma coisa poderia desfigurá-lo.
A rua principal era cheia de lojas com belos painéis e vidro laminado. Reparou que havia muita madeira, muita pechincha e absolutamente nenhum sentido de urgência. Sedona tinha uma aura muito mais de cidadezinha do que de cidade. Parecia estar confortável consigo mesma e com aquele céu espetacular. Talvez, meditou Lee, a caminho do lugar onde devolveria o carro alugado, somente talvez, ela fosse, afinal, curtir as próximas duas semanas.
Como estava adiantada em relação à hora de seu encontro com Hunter, mesmo após ter preenchido toda a papelada referente ao carro, Lee decidiu que poderia se dar o prazer de bancar a turista. Tinha quase uma hora livre antes que o trabalho recomeçasse.
Os colares prateados e os brincos azul-turquesa na vitrine eram tentadores, mas seguiu em frente. Após esta pequena aventura, teria incontáveis oportunidades para as frivolidades — como recompensa para o sucesso. Agora, estava apenas gastando tempo.
Mas o aroma de bolo de chocolate foi irresistível. Deslizou para dentro da pequena loja que afirmava fazer o melhor do mundo e comprou uma fatia. Para ter mais energia, disse para si mesma enquanto um pedaço derretia em sua boca. Não havia como adivinhar o que comeria no decorrer das próximas duas semanas. Hunter fora bastante específico quando ligou para ela e disse que cuidaria de todos os suprimentos. O bolo de chocolate, pensou, seria provisão de emergência.
Além disso, alguns dos conselhos de Bryan foram de grande ajuda. Não tinha sentido entrar nessa história pensando que ficaria infeliz e desconfortável. Não havia perigo algum em entrar um pouco no espírito da coisa, decidiu Lee, ao visitar uma loja de roupas típicas do Oeste. Se encarasse as próximas duas semanas como férias com trabalho, se sentiria muito melhor.
Apesar de ter brincado com alguns cintos de concha por alguns minutos, Lee não comprou nenhum. Não combinariam com ela, assim como também não combinariam as camisas de franja ou as de lantejoulas. Talvez levasse uma para Bryan antes de voltar para Los Angeles. Qualquer coisa que Bryan vestia caía-lhe bem, pensou Lee, dando um suspiro que não tinha nada de invejoso. Bryan nunca precisava ficar restrita ao básico, ao simples ou ao respeitável.
Seria isso uma questão de adequação, pensou Lee, ou uma questão de imagem? Deu de ombros e passou a ponta do dedo no ombro de um paletó de camurça curto. Imagem ou não, ela ficara muito tempo presa nisso para mudar agora. Não queria mudar, de modo algum, lembrou-se Lee enquanto passava por filas e mais filas de chapéus. Entendia Lee Radcliffe da maneira que ela era.
Dizendo para si mesma que ficaria ali apenas mais um minuto, colocou a mochila no chão. Não era exatamente uma atleta. Experimentou um chapéu de vaqueiro marrom com a borda curvada. Ela não era frívola. Trocou o primeiro chapéu por um menor com um penacho na tira. Era, isto sim, voltada para o trabalho e realista. Colocou um chapéu preto na cabeça e analisou o resultado. Sóbria, pensou, sorrindo um pouco. Prática. Sim, se queria comprar alguma coisa...
— Você está usando ele de modo totalmente errado.
Antes que Lee pudesse reagir, duas mãos fortes já estavam enterrando o chapéu em sua cabeça. Olhando criticamente, Hunter posicionou-o melhor e depois se afastou.
— Sim, é a melhor escolha para você. O contraste com seu cabelo e sua pele, esse tipo de exibicionismo prático.
Pegou-a pelos ombros e a conduziu até o espelho, onde a imagem dos dois olhava para ela.
Ela via a maneira com a qual os dedos dele seguravam seus ombros, decididos e confiantes. Via como ficava diminuta perto dele. Em questão de segundos, Lee já sentia o prazer que queria ignorar e a irritação na qual deveria se concentrar.
— Não tenho a menor intenção de comprar. Constrangida, retirou o chapéu e o devolveu ao cabide.
— Por que não?
— Não preciso dele.
— Uma mulher que compra apenas o que precisa? — Um traço de humor atravessou seu rosto enquanto um outro de raiva atravessava o dela. — Uma colocação sexista, se é que eu já ouvi alguma — prosseguiu Hunter antes que ela pudesse falar. — Mesmo assim, é uma pena que não vai comprar. Ele lhe dá um jovial ar de autoconfiança.
Lee ignorou a colocação, abaixou-se e pegou a mochila.
— Espero não tê-lo feito esperar muito. Cheguei cedo e resolvi passar o tempo.
— Vi você andando até aqui quando cheguei. Mesmo de jeans você anda como se estivesse vestindo um terno. — Enquanto ela tentava descobrir se aquilo era um elogio, ele sorriu. — Que tipo você comprou?
— O quê? — Ela continuava pensando no comentário anterior.
— Bolo, — Ele olhou para a bolsa. — Que tipo de bolo você comprou?
Pega uma vez mais, pensou Lee, resignada.
— Chocolate ao leite e rocky road.
— Boa escolha. — Conduziu-a pelo braço através da loja. — Se está decidida a resistir ao chapéu, podemos ir andando.
Ela reparou no jipe estacionado no meio-fio e olhou reticente. Com certeza era o mesmo veículo que ele utilizara em Flagstaff.
— Você ficou direto no Arizona?
Ele contornou o carro e deixou que ela entrasse sem ajuda.
— Eu tinha alguns negócios para resolver. O sentido de repórter dela se aguçou.
— Pesquisa?
Ele lançou-lhe aquele sorriso fantasmagórico.
— Um escritor está sempre pesquisando. — Ele não lhe diria, ainda, que sua pesquisa sobre Lenore Radcliffe o levara a algumas conclusões intrigantes. — Trouxe uma cópia do resto do manuscrito?
Sem conseguir se controlar, Lee lançou-lhe um olhar de profunda contrariedade.
— Isso era uma das condições.
— Era sim. — Ele deu ré e entrou no tranqüilo fluxo de tráfego. — O que está achando de Sedona?
— Estou vendo que o clima e a atmosfera devem encantar os turistas.
Ela sentia que era necessário sentar-se bastante ereta e olhar sempre para a frente.
— O mesmo pode-se dizer do Havaí ou do sul da França.
Ela não pôde impedir uma leve careta, mas virou a cabeça para admirar a vista.
— Parece que tudo aqui foi sempre dessa forma, com pouquíssimas mudanças. O sentido de espaço é muito forte. Não é nem um pouco suave, mas conquista qualquer um. Acho que me faz pensar nas pessoas que primeiro tiveram a visão desse lugar, de cima de um cavalo ou de uma carroça. Imagino que alguns deles devem ter sido compelidos a construir algo imediatamente, estabelecer logo uma comunidade para que essa vastidão não os esmagasse.
— E outros seriam atraídos para o deserto e para a montanha para não se sentirem sufocados pelos edifícios.
Enquanto ela concordava, ocorreu-lhe que talvez fizesse parte do primeiro grupo e ele do segundo.
A estrada que ele pegou se estreitou e ficou cheia de curvas. Não dirigia devagar, mas sim como um homem que tinha consciência de que podia superar qualquer curva que aparecesse pela frente. Lee segurou-se com firmeza, decidida a não fazer nenhum comentário sobre a velocidade. Era como pegar a descida de uma montanha-russa sem ter antes se preparado na subida. Deslizaram estrada abaixo, uma parede de rocha de um lado, um precipício espiralado do outro.
— Você acampa com freqüência?
Os nós dos dedos estavam brancos no puxador, mas embora ela precisasse gritar para ser ouvida, estava contente por sua voz estar tranqüila.
— Às vezes.
— Estou curiosa... — Parou e limpou a garganta enquanto Hunter entrava num trecho cheio de curvas. — Por que acampar? — Será que as pedras no paredão ao lado deles poderiam se soltar e cair no meio da estrada? Decidiu que seria melhor nem pensar nisso. — Um homem na sua posição poderia ir aonde quisesse e fazer qualquer coisa que escolhesse.
— Essa é a minha escolha — apontou ele.
— Tudo bem. Por quê?
— Tem uma hora que todo o mundo precisa de uma certa simplicidade.
O pé dela pisava firme no chão do carro como se fosse um pedal.
— Isso não é apenas mais uma maneira de você evitar as pessoas?
— É. — A rápida concordância a fez virar a cabeça para encara-lo. Ele achou divertido ter notado que a mão dela quase relaxara e que sua atenção desviara da estrada para ele. — Também é uma maneira de escapar um pouco do meu trabalho. Você nunca deixa de escrever, mas tem vezes em que precisa escapar das armadilhas que envolvem o ato de escrever.
O olhar dela ficou mais intenso. Embora seus dedos estivessem coçando pelo bloco de notas, Lee tinha confiança no poder de sua memória.
—Você não gosta de armadilhas?
— Nem sempre gostamos do que é necessário.
Distraída da velocidade e das curvas, Lee sentou sobre uma das pernas e virou-se para ele. Isso o atraía, pensou Hunter. O modo como ela se livrava inconscientemente de seu escudo quando alguma coisa desafiava sua mente. Isso o atraía tanto quanto sua beleza plácida e clássica.
— O que você considera armadilhas em relação ao seu trabalho?
— Ficar confinado num escritório, o barulho de uma máquina, fazer revisões que, apesar de inevitáveis, interferem no fluxo da história.
Engraçado, isso era exatamente o que ela precisava para manter a disciplina.
— Se pudesse mudar isso, o que faria?
Ele sorriu novamente. Hunter jamais conhecera alguém que pensasse de forma mais básica ou fosse tão direta.
— Eu voltaria alguns séculos atrás, para uma época em que pudesse apenas viajar e contar a história.
Acreditava nele. Embora fosse rico e famoso e tivesse o respeito da crítica, Lee acreditava nele.
— Nada mais é importante para você, não é? A glória, a admiração?
— Admiração de quem?
— De seus leitores e dos críticos.
Ele saiu da estrada perto de uma pequena construção de madeira que servia de posto comercial.
— Não sou indiferente ao meu público leitor, Lenore.
— Mas e aos críticos?
— Admiro sua organização mental — disse ele e desceu do jipe. Era um bom começo, pensou Lee, satisfeita, ao descer do lado do carona. Ele já lhe revelara mais do que qualquer outra pessoa poderia saber, e as duas semanas mal haviam começado. Se ao menos conseguisse fazer com que continuasse falando, revelando generalidades, mais tarde poderia passar para as questões específicas. Mas precisava manter o ritmo. Quando se está lidando com um mestre da evasiva, é necessário não perder o passo. Não podia relaxar.
— Temos de nos registrar?
Atrás dela, Hunter deu um risinho, enquanto Lee lutava para pegar sua mochila.
— Já cuidei de tudo.
— Entendo. — Sua bagagem estava pesada, mas disse para si mesma que não aceitaria nenhuma ajuda. Carregaria tudo sozinha. Instantes depois, ela percebeu que isso não seria um problema. Hunter apenas ficou ao seu lado, observando-a colocar a mochila nas costas. Cavalheirismo que nada, pensou ela, chateada por ele não lhe ter dado uma oportunidade de reivindicar sua independência. Ela viu o brilho nos olhos dele. Ele lia sua mente com muita facilidade.
— Quer que eu leve o bolo de chocolate? Ela segurou firmemente a bolsa.
— Eu me viro.
Com sua mochila nas costas, Hunter adentrou uma trilha, deixando-a sem escolha a não ser segui-lo. Ele andava como se tivesse percorrido trilhas de terra toda a sua vida — como se tivesse aberto algumas. Embora se sentisse deslocada em suas botas de montanhismo, Lee estava decidida a agüentar e a fazer com que tudo parecesse fácil. —Você já acampou aqui antes?
— Hum, hum.
— Porquê?
Ele parou e se virou para encará-la com aqueles olhos escuros e intensos que sempre a deixava sem fôlego.
— Basta olhar em volta.
Ela olhou e viu que os paredões e os picos do canyon elevavam-se a perder de vista. Tinham uma cor e uma textura únicas, realçadas pelos fragmentos de verde das árvores e arbustos ressecados que pareciam nascer da rocha. Assim como sentira do alto, Lee imaginou castelos e fortalezas, mas sem a distância que o avião lhe proporcionara, não podia ter certeza se estava tomando os paredões de assalto ou sendo esmagada por eles.
Sentia calor. O sol estava forte, mesmo com as sombras das árvores que, a esta altura, eram grandes. Embora pudesse ver outras pessoas — crianças, adultos, bebês carregados no estilo indígena — ela não tinha a sensação da multidão.
Era como uma pintura, percebeu de imediato. Era como se estivessem caminhando num quadro. A sensação que tinha era ao mesmo tempo lúgubre e irresistível. Mudou a mochila de posição ao alcançar Hunter.
— Notei algumas casas — começou ela. — Não sabia que pessoas realmente moravam no canyon.
— Parece que sim.
Percebendo que a mente dele estava em algum lugar, Lee calou-se. Fizera bem em insistir no início. Mas agora, seguiria Hunter, já que ele obviamente sabia aonde estava indo.
Ficou surpresa por achar a caminhada prazerosa. Sua vida, fazia anos, era definida por horários rígidos, correria e demandas auto-impostas. Se alguém lhe perguntasse onde escolheria passar suas semanas relaxando, sua mente não teria como dar uma resposta imediata. Mas assim que as idéias começassem a surgir, um esforço desse tipo num canyon do Arizona não estaria entre as dez escolhidas. Jamais teria considerado atraentes a pureza do ar e aquele arco celeste completamente desobstruído.
Ouviu um leve som musical que levou vários minutos para identificar. O riacho, percebeu Lee. Podia sentir o cheiro da água. A nova sensação deu-lhe uma rápida excitação. Seu guia e seu projeto continuavam se movimentando em passos firmes à frente dela. Lee controlou a vontade de compartilhar sua descoberta com ele. Apenas a acharia tola.
Será que ela percebia o quão totalmente fora de sua realidade estava?, imaginava Hunter. Ele não levou mais do que alguns segundos para olhar e ver que ojeans e as botas que ela estava usando tinham acabado de ser comprados. Até mesmo a camiseta que caía suavemente no corpo era obviamente proveniente de uma butique e não de uma loja de departamentos. Parecia uma modelo posando de montanhista. Seu perfume era caro, exclusivo, Maravilhoso. Que tipo de mulher carregava uma mochila gasta e usava brincos de safira nas orelhas?
Quando o aroma dela soprou novamente sobre ele, vindo com a brisa, Hunter lembrou-se de que dispunha de duas semanas para descobrir. Quaisquer que fossem as anotações que ela faria a seu respeito, ele faria a mesma coisa com ela. Talvez ambos conseguissem o que buscavam antes que o tempo se esgotasse. Talvez ambos se arrependessem disso.
Ele a desejava. Fazia muito tempo desde a última vez em que desejara alguma coisa, alguém, que já não tivesse. Ao longo dos últimos dias, pensou freqüentemente na reação dela àquele longo e duradouro beijo. Pensou em sua própria reação. Aprenderiam um sobre o outro ao longo das próximas duas semanas, embora cada um deles tivesse um objetivo. Mas nada era de graça. Ambos pagariam por isso.
A quietude o tranqüilizava. Os majestosos paredões do canyon o tranqüilizavam. Lee via a ferocidade deles; ele via a tranqüilidade. Talvez ambos vissem o que necessitavam ver.
— Para uma mulher, e ainda por cima repórter, você tem uma impressionante capacidade de ficar em silêncio.
O peso da mochila começava a ficar preponderante em relação à novidade da paisagem. Nem uma vez sequer perguntou se ela queria parar ou descansar. Nem uma vez sequer ele se preocupou em olhar para trás para ver se ela ainda o acompanhava. Ela imaginava por que ele não sentia o buraco que os olhos dela estavam perfurando nas costas dele.
—Você possui uma impressionante capacidade de insultar e elogiar ao mesmo tempo.
Hunter virou-se para olhar para ela pela primeira vez desde que haviam começado a caminhada. Havia uma tênue linha de suor na testa dela e sua respiração estava acelerada. Não diminuiu em nada a beleza inata e elegante que possuía.
— Sinto muito — desculpou-se ele, pouco convincente. — Estou andando rápido demais? Você não parece fora de forma.
Apesar da dor que percorria sua coluna, Lee empertigou-se.
— Não estou fora de forma. — Os pés dela torturavam-na.
— O lugar não está longe. — Ele pegou o cantil na cintura e desatarraxou a tampa. — Está um clima perfeito para fazer trilha — disse ele, suavemente. — Mais ou menos vinte graus e ainda temos uma brisa.
Lee conseguiu reprimir uma carranca ao olhar para o cantil.
— Você por acaso não tem um copo?
Hunter levou alguns segundos para perceber que ela estava falando sério. Com prudência, decidiu engolir a gargalhada.
— Está guardado junto com a porcelana — disse ele, sóbrio.
— Eu espero.
Ela enfiou as mãos nas correias da frente da mochila para aliviar um pouco o peso.
— Como quiser.
Enquanto Lee observava, Hunter bebia profundamente. Se estava sentindo a indignação dela, não deu o menor sinal. Tapou o cantil e retornou à caminhada.
A boca de Lee ficou mais seca ainda ao pensar na água. Ele fizera de propósito, pensou, cerrando os dentes. Será que ele achava que ela não percebera aquele rápido risinho no rosto dele? Era mais uma coisa que descontaria dele quando o momento certo chegasse. Ah, mal podia esperar para escrever o artigo no qual descreveria Hunter Brown como o arrogante e gélido semideus que ele era.
Não ficaria surpresa se ele a estivesse obrigando a andar em círculos apenas para fazê-la sofrer. Bryan estava certíssima quanto às botas. Lee perdera a conta do número de acampamentos pelos quais passaram, alguns ocupados, alguns vazios. Se este era o modo de puni-la por não ter revelado desde o início que trabalhava na Celebrity, com certeza estava fazendo um trabalho bemfeito.
Chateada, exausta, com as pernas parecendo mais borracha do que músculo, Lee adiantou-se e segurou em seu braço.
— Por que, tendo em vista que você, obviamente não gosta de mulheres nem de repórteres, teve a idéia de passar duas semanas comigo?
— Não gosto de mulheres? — As sobrancelhas dele se levantaram. — As coisas de que gosto e as coisas de que não gosto não são tão generalizadas assim, Lenore. — Quando passou os dedos pela nuca de Lee, sentiu que a pele estava morna e levemente úmida. — Eu lhe dei a impressão de que não gostava de você?
Ela precisou combater a vontade de se esticar como uma gata ao toque dele.
— Não me importo com o que você sente por mim. Isso aqui é trabalho.
— Para você. — Os dedos dele apertavam com delicadeza, trazendo-a um pouco mais para perto. — Eu estou de férias. Sabe que sua boca continua tão atraente quanto na primeira vez em que a vi?
— Não quero ser atraente para você. — Sua voz, contudo, era sussurrante. — Quero que você me enxergue apenas como uma repórter.
O sorriso aflorou no canto da boca dele e em torno dos olhos.
- Tudo bem — concordou ele. — Num minuto.
Então encostou a boca na de Lee, tão delicada e devastadoramente quanto na primeira vez. Ela ficou parada, surpresa por sentir o mesmo turbilhão de emoções que sentira antes. Quando a tocava, quase não tocando, era como se fosse a primeira vez em que era beijada. Uma nova descoberta, um novo começo — como isso era possível?
O peso em suas costas desapareceu. A dor nos músculos virou uma dor mais profunda e mais intensa que a penetrava até os ossos. Seus lábios se abriam, embora soubesse o que estava convidando. Então a língua dele encontrou a dela e mergulhou na umidade, sorvendo seu gosto.
Lee sentiu o desejo gritar em seu corpo, mas ele tinha paciência. Tanta paciência, que ela não podia dizer o quanto a paciência custava a ele. Hunter não esperara dor. Nenhuma mulher jamais misturou dor e desejo com ele. Não esperara o desejo tomar conta dele como se fosse um incêndio, rápido e fora de controle. Visualizara com perfeita clareza como seria estar com ela ali, no chão, sob o sol resplandecente e o canyon em volta deles, como se fosse os muros de um castelo, e o céu, como a cúpula de uma catedral.
Mas havia muito medo nela. Ele podia sentir. Talvez houvesse muito medo nele. Quando se juntassem, poderia ter o poder de derrubar as realidades de ambos.
— Seus lábios derretem nos meus, Lenore — sussurrou ele. — É impossível resistir.
Ela recuou, excitada, alarmada e bastante consciente do quão indefesa estivera.
— Não quero me repetir, Hunter — conseguiu dizer —, e não quero divertir você com clichês, mas isso aqui é trabalho. Estou aqui como repórter para realizar uma tarefa. Se a gente quer passar as próximas duas semanas com tranqüilidade, é recomendável lembrar disso.
— Não estou bem certo com relação à paz — opôs-se ele —,, mas vamos tentar suas regras primeiro.
Desconfiada, mas não encontrando nenhum espaço para discutir, Lee continuou a segui-lo. Saíram da luz do sol em direção à sombra fresca das árvores. O riacho estava longe mas audível. De algum lugar à esquerda vinha um som de música de um rádio portátil. Mais perto ouvia-se o ruído de pequenos animais. Lee deu uma olhada nervosa ao redor para convencer-se de que não passavam de esquilos e coelhos.
Com as árvores fechadas sobre eles, a sensação era de que poderiam estar em qualquer lugar. O sol filtrava suavemente o chão desnivelado e irregular. Havia uma clareira, pequena e protegida, com um círculo de pedras cercando uma há muito inutilizada fogueira de acampamento. Lee deu uma olhada em volta, combatendo a inquietude. De alguma maneira, não imaginara que o lugar seria tão remoto, tão tranqüilo, tão... solitário.
— Tem chuveiro e banheiro ali à esquerda — disse Hunter, retirando a mochila. — Primitivo mas adequado. Aquela lata de metal é para o lixo. Mantenha a tampa sempre bem fechada para não atrair animais. Como é o seu sentido de direção?
Dando graças a Deus, ela deixou cair sua própria mochila.
— É bom. — Neste exato momento, se pudesse apenas tirar as botas e descansar os pés...
— Bom. Então pode apanhar um pouco de lenha enquanto armo a barraca.
Irritada com a ordem, ela abriu a boca, mas logo fechou com firmeza. Ele não teria motivo algum para reclamar dela. Mas assim que começou a se preparar para realizar a tarefa, o resto da frase adquiriu sentido em sua cabeça.
— O que quer dizer com a barraca? Ele já estava soltando as tiras da mochila.
— Prefiro dormir dentro de alguma coisa, caso chova.
—A barraca — repetiu Lee, aproximando-se dele. — No singular? Ele nem se deu ao trabalho de olhar para ela.
— Uma barraca, dois sacos de dormir.
Ela não explodiria; não faria escândalo. Após respirar fundo, disse com objetividade:
— Não considero esta disposição adequada.
Ele ficou calado por alguns instantes, não por estar escolhendo as palavras, mas porque desempacotar tudo ocupava-o mais do que a conversa.
— Se deseja dormir ao relento, por mim tudo bem. — Hunter pegou uma coisa fina e dobrada que mais parecia um lençol do que uma barraca. — Mas quando resolvermos que vamos ser amantes, a disposição não vai fazer a menor diferença.
— A gente não veio aqui com a intenção de se tornar amantes — retrucou Lee, furiosa.
—A repórter e sua tarefa — replicou Hunter, suavemente.
— Dois termos assexuados. Eles não deveriam ter nenhum problema em compartilhar uma barraca.
Apanhada em sua própria lógica, Lee virou-se e se afastou dele. Não lhe daria o prazer de vê-la se comportando como uma mulher.
Hunter ergueu a cabeça e olhou-a disparar na direção das árvores. Ela tomaria a iniciativa, prometeu-se, subitamente aborrecido. Por tudo o que era sagrado, não tocaria nela até que o procurasse.
Enquanto armava a barraca, tentava se convencer de que tudo seria tão fácil quanto havia imaginado.
Dois termos assexuados, repetiu Lee silenciosamente enquanto pegava alguns galhos. Patife, pensou, com uma satisfação feroz, também era um termo assexuado. Encaixava perfeitamente em Hunter Brown. Não havia motivo para ele tratá-la como uma idiota só porque ela se fizera de idiota antes.
Não cederia um milímetro. Dormiria na droga do saco de dormir dentro da droga da barraca nas próximas treze noites sem falar mais nada sobre o assunto.
Treze, pensou, olhando maliciosamente por trás do ombro. Provavelmente, ele também planejara isso. Se estava pensando que ela faria um escândalo ou sairia da barraca para dormir ao relento só para contrariá-lo, ficaria desapontado. Seria escrupulosamente profissional, imensamente cooperativa e absolutamente assexuada. Antes de tudo terminar, ele pensaria que vinha compartilhando a barraca com um robô.
Mas ela saberia mais. Lee deu um longo suspiro de frustração enquanto ia atrás de mais lenha. Saberia que havia um homem dormindo ao seu lado. Um homem poderosamente sensual, incrivelmente atraente, que podia fazer o sangue dela ferver com um único olhar.
Não seria fácil esquecer que era uma mulher durante as próximas duas semanas, passando todas as noites com um homem que a deixava tensa de antemão.
Sua tarefa não era fazer-me esquecer, mas garantir que ele esquecesse. Um desafio. Esta era a melhor maneira de encarar a situação. Era um desafio que prometeu a si mesma vencer.
Com os braços cheios de galhos e pedaços de madeira, Lee empinou o nariz. Sentia-se quente, suja e cansada. Não era um jeito auspicioso de começar uma guerra. Ignorando a dor, endireitou os ombros. Talvez tivesse de sacrificar um ou dois assaltos, mas venceria a batalha. Com uma sinistra luz nos olhos, tomou a direção do acampamento.
Agradeceu por ele estar de costas quando entrou na clareira. A barraca era menor, muito, mas muito menor mesmo do que imaginara. Era feita com um material leve e resistente que parecia quase transparente. Era arqueada e arredondada no alto, ao invés de pontuda, e bem baixa. Tão baixa, reparou Lee, que precisaria engatinhar para entrar. Uma vez lá dentro, seriam obrigados a dormir quase colados um ao outro. Então decidiu que dormiria como uma pedra. Sem se mover.
O tamanho da barraca a preocupava tanto que nem notou o que Hunter estava fazendo até chegar quase ao seu lado. Uma raiva renovada a dominou assim que depositou a carga de lenha no chão.
— O que diabo você pensa que está fazendo?
Sem se perturbar com a fúria da voz dela, Hunter levantou os olhos. Em uma das mãos ele segurava uma grande bolsa de plástico transparente cheia de maquiagem e na outra uma pecinha frágil e rendada da cor de pêssego.
— Você sabia que a gente acamparia — disse ele, suavemente —, não iríamos para uma suíte do Beverly Wilshire.
A cor rosada, que ela considerava a maldição das pessoas de pele clara, inundou seu rosto.
— Você não tem nenhum direito de sair por aí mexendo nas minhas coisas.
Ela arrancou o baby-doll da mão dele e depois o enrolou na mão.
— Estava desempacotando. — Lentamente, ele virou a bolsa de maquiagem para analisá-la dos dois lados. — Pensei que você soubesse que era para trazer somente coisas necessárias. Mas devo admitir que possui um jeito bastante sutil e experiente com esse tipo de coisa. — Ele apontou para a bolsa. — Sombra para os olhos e brilho labial são excesso de bagagem num acampamento. — A voz dele estava tão amigável que chegava a dar raiva, o humor em seu rosto era apenas suave. — Já vi você sem nada disso e não tive motivo para reclamar. Você certamente não precisa se incomodar com isso por minha causa.
— Seu idiota convencido. — Lee arrancou a bolsa da mão dele. — Não me importo se pareço uma bruxa por sua causa. — Ela pegou a mochila e recolocou seus pertences dentro. — É a minha bagagem, portanto vou carregá-la.
— Com certeza você vai.
— Seu intrometido filho da... — Ela interrompeu por um triz. — Não me diga como devo levar minha vida.
— Ora, ora, xingamento não é uma boa maneira de promover o bem. — Hunter se levantou e esticou a mão amigavelmente.
— Trégua?
Lee olhou para ele, cautelosa.
— Em que termos? Ele deu um risinho.
— É disso que gosto em você, Lenore, você não se entrega facilmente. Uma trégua com o mínimo de interferência possível de ambos os lados. Um amigável acerto de negócios. — Ele a viu relaxar levemente e não conseguiu resistir à tentação de irritá-la uma vez mais. — Você não vai reclamar do meu café e não vou reclamar quando você usar aquela coisa rendada na cama.
Ela olhou-o com frieza ao apertar-lhe a mão.
— Vou dormir com minhas roupas.
— Muito justo. — Ele deu um rápido apertão na mão dela. — Eu não. Vamos ver com relação ao café.
Como sempre fazia, ele a deixou dividida entre a frustração e a diversão.
Quando se empenhava, Lee estava para descobrir, Hunter podia tornar as coisas bem mais fáceis. Sem estardalhaço, ele acendeu a fogueira e colocou o café para esquentar. O aroma em si já era suficiente para diminuir sua irritação. O jeito econômico com o qual ele lidava com os problemas fazia com que pensasse nele com mais carinho.
Não havia sentido ficarem se engalfinhando pelas próximas duas semanas, decidiu, ao encontrar uma pedra confortável para se sentar. Relaxar talvez estivesse fora de questão, meditou ela, observando-o retirar da mochila utensílios de cozinha leves e compactos, mas animosidade não ajudaria em nada, não com um homem como Hunter. Ele estava fazendo uma espécie de jogo com ela. Contanto que soubesse disso e evitasse as armadilhas, conseguiria seu objetivo. Até agora ela lhe permitira estabelecer as regras e mudá-las a seu bel-prazer. Isto precisaria ser mudado. Lee segurou um dos joelhos com as mãos.
— Você acampa para fugir das pressões?
Hunter não olhou para ela. Em vez disso, verificou a lanterna. Quer dizer que recomeçariam a brincar com as palavras.
— Que pressões?
Lee talvez tivesse suspirado se não estivesse tão determinada a ser agradavelmente profissional.
— Deve haver pressões de todos os lados no tipo de trabalho que você faz. Pedidos da sua editora, discórdias com o editor, alguma história que simplesmente não está indo no caminho que você esperava, prazos.
— Não acredito em prazos.
Havia algo ali, pensou Lee, e pegou seu bloco de notas.
— Mas todos os escritores não têm de enfrentar prazos de tempos em tempos? E isso não pode ser uma enorme pressão quando a história não está fluindo ou você está bloqueado?
— Bloqueio de escritor? — Hunter serviu café num copo de metal. — Tal coisa não existe.
Ela olhou para ele por apenas um segundo, as sobrancelhas erguidas.
— Ah, Hunter, qual é? Alguns escritores de muito sucesso já sofreram disso, até procuraram ajuda. Deve ter havido um período da sua carreira em que você se encontrou face a face com uma parede.
— Empurra-se a parede para o lado.
Ela franziu o cenho e aceitou o copo que ele estava oferecendo.
— Como?
— Lidando com o problema. — Ele pegou uma jarra com leite em pó, mas ela recusou. — Se você não acredita na coisa, se recusa aceitar que ela existe, então ela não existe, não para você.
— Mas você escreve sobre coisas que não poderiam existir.
— Por que não?
Ela olhou para ele. Um homem moreno e atraente sentado no chão, tomando café num copo de metal. Ele parecia estar tão à vontade consigo mesmo, tão relaxado, que, por um instante, ela achou difícil ligá-lo ao homem que produzia o mais completo terror com suas palavras.
— Porque não existem monstros debaixo da cama ou demônios no armário.
— Existem demônios em todos os armários — discordou ele, suavemente —, alguns mais bem escondidos do que outros.
— Você está dizendo que acredita nas coisas que escreve.
— Todo escritor acredita naquilo que escreve. Do contrário, seria um despropósito.
— Você acha que algum... — Ela não queria usar novamente a palavra demónio. Sua mão se movia sem parar na frustração de buscar a frase correta — alguma força maligna — escolheu Lee — pode realmente manipular as pessoas?
— Seria mais correto dizer que não acredito em nada. Possibilidades. — Os olhos dele estavam ficando mais escuros ou era a imaginação dela? — Não há limites para possibilidades, Lenore.
Os olhos dele não davam nenhuma pista. Se ele estava brincando com ela, implicando com ela, Lee não tinha como saber. Incomodada, mudou de assunto.
— Quando senta para escrever uma história, você tenta fazer o melhor, passa horas, dias, burilando o texto, da mesma forma que um marceneiro faz um móvel.
Ele gostou da analogia. Hunter deu um gole no café forte, saboreando-o, saboreando a mistura dos aromas de madeira queimada, de verão e do leve perfume de Lee.
— Contar uma história é uma arte, escrever é um ofício artesanal.
Lee sentiu uma pontinha de excitação. Era exatamente isso que ela estava procurando, essas pequenas e breves citações que davam uma visão da personalidade dele.
— Você então se considera um artista, ou um artesão?
Ele bebia sem pressa, reparando que Lee mal tocara em seu café. Ela estava novamente animada, segurando a caneta, os olhos fixos nele. Ele descobriu que a desejava mais quando ela estava assim. Ele queria ver aquele olhar ansioso para ele, o homem, não para ele, o escritor. Ele queria sentir a antecipação propiciatória, amante para amante, os braços abertos, a maciez da boca.
Se ele estivesse escrevendo o roteiro, continuaria impedindo estas duas pessoas de saciar seus desejos ainda por algum tempo. Era necessário esmiuçá-los um pouco mais, porém o desejo dizia para ele o que queria. Com cuidado, ele colocou outra peça de madeira na fogueira.
— Artista nato — disse ele — e artesão por opção.
— Sei que é uma pergunta batida — introduziu ela, com um vigoroso profissionalismo que o fez sorrir —, mas onde você arruma suas idéias?
— Na vida.
Ela olhou novamente enquanto ele acendia um cigarro.
— Hunter, você não vai me convencer que a trama de A dívida do diabo vem do dia-a-dia.
— Se você pegar o dia-a-dia, torcê-lo um pouco e adicionar um ou outro talvez, alguma coisa surge.
— Quer dizer que você pega coisas banais, as retorce e inventa coisas extraordinárias. — Compreendendo tudo aquilo um pouco melhor, ela assentiu com a cabeça, satisfeita. — Quanto de você mesmo aparece nos seus personagens?
— Tanto quanto eles necessitem.
Mais uma vez, tudo era dito de modo tão simples, tão fácil, que ela soube que ele queria dizer exatamente aquilo.
— Costuma usar alguém que conhece como idéia para algum personagem?
— Às vezes. — Ele sorriu para ela, um sorriso que ela nem levou a sério nem entendeu. — Quando encontro alguém suficientemente intrigante. Você às vezes não fica cansada de escrever sobre outras pessoas tendo um universo de personagens na sua própria cabeça?
— É meu trabalho.
— Isso não é resposta.
— Não estou aqui para responder perguntas.
— Por que você está aqui?
Ele estava mais próximo. Lee não percebera que ele se aproximara. Estava sentado abaixo dela, obviamente relaxado, levemente curioso, no comando.
— Para fazer uma entrevista com um escritor de sucesso e muito premiado.
— Um escritor premiado não a deixaria nervosa. O lápis estava ficando úmido em sua mão. Ela estava a ponto de xingar, tamanha era sua frustração.
— Você não me deixa nervosa.
— Você mente rápido demais e de modo muito forçado. —As mãos dele estavam pousadas no joelho enquanto a observava. O estranho anel dele tinha um brilho embotado, ouro e prata. — Se eu a tocasse, apenas tocasse, agora mesmo, você tremeria toda.
— Você é muito convencido — disse ela e se levantou.
— Eu penso em você — disse ele, tão calmamente que o bloco escorregou-lhe da mão sem que percebesse. — Você me faz sentir desejo, eu te deixo nervosa. — Ele novamente a penetrava com o olhar; ela quase podia sentir. — Poderia ser uma combinação interessante ao longo dessas duas semanas.
Ele não a intimidaria. Ele não a faria tremer.
— Quanto mais cedo você lembrar que estarei trabalhando nas próximas duas semanas, mais simples as coisas ficarão.
A tentativa de parecer arrogante quase deu certo. Lee imaginou se ele tinha ouvido o leve embargo em sua voz.
— Já que está resignada em trabalhar — disse ele — pode me ajudar fazendo o jantar. A partir desta a noite vamos nos revezar no preparo das refeições.
Ela não lhe daria a satisfação de dizer que não sabia nada sobre preparar refeições numa fogueira. Ele já sabia. Nem tampouco lhe daria a satisfação de se sentir confusa pelas temperamentais mudanças de humor dele. Em vez disso, Lee passou a mão no cabelo.
— Vou me lavar primeiro.
Hunter observou-a encaminhar-se na direção errada, mas nada disse. Ela encontraria o banheiro mais cedo ou mais tarde, pensou. Tudo seria muito mais interessante se nenhum dos dois desse um milímetro de chance ao outro.
Hunter não tinha certeza, mas achou que Lee praguejara de algum lugar atrás dele. Sorrindo um pouco, recostou-se na pedra e terminou de fumar seu cigarro.
Grogue, rígida e sentindo o cheiro de café no ar, Lee acordou. Sabia exatamente onde estava — tão distante de Hunter quanto podia, em seu lado da barraca, afundada no saco de dormir que Hunter lhe arranjara. E só. Levou apenas alguns segundos para sentir que Hunter não estava mais dividindo a barraca com ela. Assim como havia levado horas na noite passada para convencerse de que não importava que ele estivesse somente alguns centímetros distante.
O jantar fora surpreendentemente tranqüilo. tranqüilo, concluiu Lee enquanto mirava o teto da barraca, porque o humor de Hunter mudara de novo assim que voltou para ajudá-lo a preparar o jantar. Amigável? Não, decidiu ela, cuidadosamente esticando os músculos paralisados. Amigável era uma palavra liberal demais se aplicada a Hunter. Moderadamente amigável era mais adequado. Cooperar ele não cooperara mesmo. Passara a noite lendo com a lamparina enquanto ela pegara um bloco novo e começara o que seria um diário sobre suas duas semanas em Oak Creek Canyon.
Achou importante anotar suas sensações. Lee já fizera a mesma coisa com seu manuscrito. Podia dizer o que queria, sentir o que queria sem nunca correr o risco de ser lida por alguém. Talvez não tenha dado certo dessa maneira com seu livro já que Hunter lera ainda mais algumas partes de seu bem-cuidado original datilografado em espaço dois à luz do lampião, mas o diário não seria lido por mais ninguém além dela própria.
De qualquer maneira, pensou, para ela era até vantajoso ele estar ocupado com o manuscrito. Não precisou conversar com ele à medida que a noite foi avançando e a escuridão foi ficando mais intensa. Enquanto estivesse envolvido na leitura, ela poderia ficar na barraca encolhida num canto. Quando ele se juntou a ela, muito mais tarde, não foi necessário trocar palavra alguma na intimidade da barraca. Ela agiu de forma a que ele pensasse que ela já adormecera — embora o sono não tivesse vindo facilmente.
Na quietude, ela ouviu a respiração dele ao seu lado. tranqüila, estável. Esse era o tipo de homem que ele era. Lee ficou imóvel, dizendo para si mesma que a proximidade não significava nada. Mas nessa manhã ela viu que suas unhas, que haviam recomeçado a crescer, estavam roídas.
A primeira noite estava fadada a ser a mais difícil, disse para si mesma e se sentou, passando a mão pelo cabelo. Ela sobrevivera. Seu problema agora seria como passar por ele e seguir até o banheiro, onde poderia mudar a roupa com a qual dormira e ajeitar o cabelo e o rosto. Com cuidado, foi rastejando até a saída da barraca.
Ele sabia que ela estava acordada. Hunter percebera isso quase na hora exata em que Lee abrira os olhos. Acordara cedo para preparar o café, sabendo que se tivesse tido problema para dormir ao lado, jamais teria conseguido acordar com ela.
Ele vira pouco mais do que o volume de cabelo ruivo acima do saco de dormir na tênue luz do amanhecer. Como sua intenção era tocá-lo, trazê-lo para perto de si, acordá-la, ele se manteve razoavelmente afastado. Hoje caminharia quilômetros e quilômetros e pescaria por horas a fio. Lee podia ficar em seu papel de repórter. Ao responder suas perguntas, ele aprenderia tanto sobre ela quanto Lee acreditava que estava aprendendo sobre ele.
Este era seu plano, Hunter lembrou a si mesmo e se serviu de mais café. Seria melhor não se esquecer disso.
— O café está quente — comentou Hunter, sem se virar.
Embora ela tivesse tomado bastante cuidado para não fazer barulho, ele a ouvira abrindo o zíper da barraca.
Lee reprimiu um palavrão e ergueu a mochila. O homem possuía ouvidos de lobo.
— Primeiro quero tomar um banho — resmungou ela.
— Eu lhe avisei que não precisava se embelezar para me agradar. — Ele começou a colocar algumas fatias de bacon numa frigideira. — Prefiro assim como você está.
Enfurecida, Lee levantou-se.
— Não vou me embelezar para você. Dormir a noite toda de roupa faz com que eu me sinta suja.
— Provavelmente você dormiria melhor sem ela — concordou Hunter, gentilmente. — O café-da-manhã estará pronto em quinze minutos, então é melhor se apressar se quiser comer.
Lee pegou sua bolsa e sua dignidade e saiu em disparada pelo meio das árvores.
Ele não a teria pego com tanta facilidade se ela não estivesse tão tensa, suja e quase faminta, pensou Lee a caminho do banheiro.
Só Deus sabe como ele poderia estar tão alegre depois de passar toda a noite dormindo no chão. Talvez Bryan tivesse mesmo razão. O homem era esquisito. Lee pegou o xampu e a bolsa de plástico contendo seu sabonete francês e entrou no compartimento do chuveiro.
O local que ele escolhera podia até ser magnífico, o ar podia ser fresco e puro, mas um saco de dormir não era um colchão de penas. Lee despiu-se e colocou suas roupas em cima da porta. Ouviu barulho de água caindo no compartimento ao lado e suspirou. Pelas próximas duas semanas teria de dividir o banheiro. Talvez até se acostumasse.
A água vinha num jato estável, morno. Cerrou os dentes e foi para baixo da água. Hoje ela começaria a escavar mais alguns fatos pessoais de Hunter Brown.
Ele era casado? Ela franziu o cenho por um instante e em seguida relaxou. A pergunta era para o artigo, não para ela. O estado civil dele não lhe significava nada.
Provavelmente não. Ela ensaboava vigorosamente o cabelo, Que mulher o suportaria? Além disso, uma mulher deveria acompanhá-lo quando ele acampasse, mesmo que odiasse isso, não? Será que aquele tipo de homem se casaria com alguém que não gostasse exatamente das mesmas coisas que ele?
O que será que ele faz para relaxar? Além de brincar de Daniel Boone na floresta, acrescentou, dando um risinho. Onde ele morava? Onde cresceu? Que tipo de infância teve?
A água caía sobre ela, removendo a espuma. Sua curiosidade era puramente profissional. Lee pensou que deveria lembrar-se disso com um pouco mais de freqüência. Precisava do homem todo para escrever uma matéria incisiva. Precisava do homem todo...
Alarmada com seus próprios pensamentos, escancarou os olhos, e praguejou quando o xampu caiu sobre eles. Dane-se o homem todo!, pensou, com raiva. Pegaria as partes dele que pudesse para escrever um artigo que a vingaria definitivamente de todos os problemas que ele lhe causara.
Limpa, cheirosa e tremendo, fechou o chuveiro. Só naquele instante se deu conta de que esquecera de levar uma toalha. Chuveiros de acampamentos não dispunham de toalhas, Droga, como poderia lembrar de tudo?
Pingando e com a pele toda arrepiada, permaneceu no meio do compartimento, praguejando silenciosa e intensamente. Pelo tempo que agüentou, Lee deixou que o ar a secasse enquanto sacudia o cabelo para retirar o excesso de água. Vingança, pensou,
Batendo os dentes e foi pondo incorretamente a culpa em Hunter. Cedo ou tarde, ela teria mais alguns fatos para sua vingança.
Foi até a porta do compartimento e pegou um agasalho. Resignada, começou a secar o rosto molhado com a parte mais macia da roupa. Assim que terminasse de esfregar os ombros, iria atrás da roupa de baixo. Embora com as roupas coladas ao corpo, sentiu-se mais aquecida. Diante da fileira de pias e espelhos, ligou o secador de cabelo e começou a trabalhar nele. Apesar dele, pensou Lee, não por causa dele, passou mais tempo do que o usual se maquiando. Satisfeita, guardou o secador portátil e saiu do banheiro com um leve aroma de jasmim.
Seu aroma foi a primeira coisa que ele reparou quando ela voltou à clareira. Os músculos do estômago de Hunter já estavam dando nós. Como se estivesse indiferente, terminou outro café, mas não o saboreou.
Mais calma e muito mais tranqüila agora, Lee guardou sua mochila antes de seguir para a fogueira. A frigideira, com o que havia sobrado dos ovos e bacon, estava sobre um pequeno suporte de pedras.
Não precisou experimentá-los para saber que estavam frios.
Encarou-os
— Sente-se melhor? — perguntou Hunter, simpático.
—Estou bem.
Ela nada comentaria sobre a comida estar fria e, disse para si mesma enquanto colocava a refeição num prato, comeria tudo.
Não lhe daria mais nenhum motivo para debochar dela. Enquanto comia um pedaço de bacon, Lee olhou para ele. Obviamente, Hunter tomara um banho mais cedo. Seu cabelo brilhava ao sol e ele cheirava a sabonete, sem a interferência de alguma colónia ou loção após barba. Um homem não usava loção após barba se não ligava para uma lâmina, concluiu Lee, analisando a barba crescida de Hunter. Deveria fazer com que tivesse uma aparência descuidada, mas de alguma forma ele conseguia ter um visual estranhamente vistoso. Ela se concentrou nos ovos frios.
— Dormiu bem?
— Dormi bem — mentiu e deu graças a Deus pelo café quente ajudá-la a engolir o desjejum. — E você?
— Muito bem — mentiu ele e acendeu um cigarro. Ela o estava irritando com algo que não costumava irritá-lo.
— Está acordado há muito tempo?
Desde a madrugada, pensou Hunter.
— Tempo suficiente. — Ele olhou para as novíssimas botas de montanhismo dela e imaginou quanto tempo levaria até que os dedos dela protestassem. — Estou pensando em dar uma caminhada hoje.
Ela quis rugir, mas abriu um largo sorriso.
— Ótimo, eu gostaria de ver um pouco do canyon enquanto estou aqui
De preferência no jipe, pensou ela, engolindo o último pedaço de bacon. Se havia um clichê que pudesse comprovar naquele exato momento era o de que ficar ao ar livre aumentava o apetite.
Lee levou, quem sabe, metade do tempo que Hunter levaria para lavar os pratos no contêiner de plástico, mas ela já estava a par das regras obrigatórias. Um cozinha e o outro limpa.
Quando terminou, já estava impaciente, com os binóculos e o cantil presos por uma tira em seu peito e uma mochila leve numa das mãos. Mochila esta que ele lhe arremessara e que ela resistira em não jogar de volta.
— Quero minha máquina fotográfica. — Sem lhe dar qualquer chance de reclamar, ela enfiou a mão em suas coisas e deslizou o pequeno retângulo no bolso traseiro dos jeans. — O que tem aqui dentro? — perguntou, ajustando as tiras da mochila nos ombros.
— Almoço.
Lee aumentou o passo para acompanhar Hunter na saída da clareira. Se ele empacotara o almoço, ela teria de se resignar com um dia longo demais pela frente.
— Como é que você sabe para onde está indo e como voltar? Pela primeira vez desde que ela retornara ao acampamento recendendo a flores e fragilidade, Hunter deu um sorriso.
— Pontos de referência, o sol.
— Você se refere ao musgo que cresce nas árvores? — Ela deu uma olhada em volta, em busca de algum ponto de referência para si mesma. — Jamais confiei nesse tipo de coisa.
Ela não conseguiria diferenciar nem leste e oeste, pensou Hunter, salvo se fosse Los Angeles e Nova York.
— Tenho uma bússola, se isto a faz se sentir melhor.
Fazia — um pouco. Quando você não tem a menor idéia de como alguma coisa funciona, precisa ter confiança. Lee estava longe de estar confortável tendo de confiar em Hunter.
Mas à medida que caminhavam, ela esqueceu de se preocupar com a possibilidade de se perder. O sol parecia um raio de luz branca e, embora ainda fosse mais ou menos nove da manhã, o ar estava quente. Ela gostava da forma como a luz batia nos paredões vermelhos do canyon e enfatizava as cores. A trilha subia e se estreitava, cheia de pedrinhas soltas. Ela ouvia pessoas rindo, e o som estava tão claro que parecia que elas estavam ali ao lado dela.
O verde foi ficando esparso à medida que subiam. O que via naquele momento eram arbustos insignificantes, secos e esmaecidos, que forçavam a passagem através das finas fileiras de sujeira na rocha. Curiosa, quebrou umas folhas. O cheiro era forte, desagradável e fresco. Então descobriu que precisava disparar para alcançar Hunter. Fora idéia dele fazer a trilha, mas Hunter não parecia estar gostando. E, mais ainda, parecia um homem com algum compromisso urgente e problemático.
Talvez fosse um bom momento, imaginou Lee, para começar uma conversa que levasse ao tipo de informação que estava buscando. À medida que a trilha ficava mais íngreme, decidiu que era melhor começar a conversa enquanto ainda lhe restava algum fôlego. O agasalho fora igualmente um equívoco. Suas costas estavam úmidas novamente, desta vez por causa do suor.
— Você sempre preferiu atividades ao ar livre?
— Trilhas.
Sem se amedrontar, ela franziu o cenho atrás dele e disse:
— Você deve ter sido escoteiro, não?
— Não.
— Seu interesse por acampar e fazer trilha é bem recente, então?
— Não.
Ela precisou cerrar os dentes para reprimir um resmungo.
— Você saía por aí com seu pai armando barracas na floresta quando era criança?
Ela teria se interessado pelo traço de humor no rosto dele se tivesse conseguido ver.
— Não.
— Quer dizer que você vivia numa cidade.
Ela era perspicaz, refletiu Hunter, E persistente. Ele deu de ombros.
— Sim. Finalmente, pensou Lee.
— Em qual cidade?
— Los Angeles
Ela tropeçou numa pedra e quase caiu de costas no chão. Hunter não diminuiu o ritmo.
— Los Angeles? — repetiu ela. — Você mora em Los Angeles e ainda consegue se esconder de tal forma que ninguém saiba que está lá?
— Cresci em Los Angeles—disse ele, suavemente.—Em um pedaço da cidade que você dificilmente teria algum motivo para conhecer.
Em termos sociais, Lenore Radcliffe, nascida em Palm Springs, você nem mesmo teria como saber que esses bairros existem.
A frase atrasou um pouco o ritmo dela. Novamente viu-se obrigada a dar um pique para alcançá-lo, mas desta vez agarrou seu braço e o fez parar.
— Como sabe que sou de Palm Springs?
Ele olhava para ela com o bom humor tolerante que ela achava ao mesmo tempo irritante e irresistível.
— Fiz minhas pesquisas. Você se graduou na UCLA com louvor após três anos num elegante internato suíço. Seu noivado com Jonathan Willoby, grande promessa da cirurgia plástica, foi rompido quando aceitou um emprego no escritório de Los Angeles da revista Celebrity.
— Nunca fui noiva de Jonathan — começou ela, furiosa, mas mordeu a língua em cima da hora. — Não é da sua conta investigar a minha vida, Hunter. Sou eu que estou escrevendo o artigo, não você.
— Tenho o hábito de descobrir tudo sobre as pessoas com as quais me relaciono profissionalmente. Temos um compromisso profissional, Lenore, não temos?
Ele era hábil com as palavras, pensou ela, com dureza. Mas ela também.
— Sim, e ele diz que sou eu que entrevisto você e não o contrário.
— Sob minhas condições — lembrou-lhe Hunter. — Não falo com ninguém a menos que conheça a pessoa com quem estou falando. — Ele se aproximou e tocou no cabelo dela, como já fizera antes. — Acho que sei quem você é.
— Não sabe — corrigiu ela, lutando contra a necessidade de se afastar de um toque que nem era exatamente um toque —, nem tem motivo para conhecer. Porém quanto mais honesto e sincero você for comigo, mais honesto vai ficar o artigo que irei escrever
Ele destampou o cantil. Quando ela recusou a oferta com um balançar de cabeça, Hunter bebeu.
— Estou sendo honesto. Se eu facilitasse as coisas para você, ( não teria um retrato verdadeiro de quem sou. — Os olhos dele ficaram de repente nebulosos, intensos e penetrantes. Sem avisar, ele se aproximou. A força em seus olhos a fez acreditar que ele poderia facilmente varrê-la para fora da trilha. Contudo, sua mão desceu pelo rosto dela, leve como a chuva. — Você não compreende quem sou — disse ele, tranqüilo. — Talvez, por motivos pessoais, eu gostaria que me compreendesse.
Lee teria ficado menos assustada se ele tivesse berrado com ela, brigado com ela, segurado ela. O som de seu próprio coração vibrava em sua cabeça. Instintivamente, deu um passo atrás, pensando única e exclusivamente em escapar. Seu pé achou o vazio.
Num instante, viu-se presa a ele, pressionada contra seu corpo, de tal maneira que o calor dele penetrou nela. O medo triplicou, fazendo com que se encurvasse para trás e levasse as duas mãos até o tórax de Hunter.
— Idiota — disse, com uma voz tão forte que fez a cabeça dela estalar. — Olhe para trás antes de me pedir para soltá-la.
Automaticamente, Lee virou a cabeça e olhou por trás do ombro. Seu estômago subiu até a garganta e depois desabou. As mãos que estavam se preparando para empurrá-lo para longe agarraram os ombros dele até que os dedos lhe penetrassem na carne. A vista atrás dela era magnífica, arrebatadora e interminável.
— Nós... nós subimos muito mais do que eu havia imaginado — conseguiu dizer. E se ela não se sentasse muito, mas muito rapidamente, cairia em desgraça.
— O truque é olhar para onde você está indo. — Hunter não a retirou da beirada, porém tomou o queixo dela em sua mão até que seus olhos se encontrassem. — Sempre olhe exatamente para onde está indo, e aí vai saber como cair.
Ele a beijou, tão inesperadamente quanto antes, mas não tão delicadamente. Longe disso. Dessa vez ela sentiu a força total do poder que estivera sempre oculto a cada vez que a boca de Hunter tocara a dela. Se tivesse se inclinado para trás e caído naquele precipício, não ficaria mais indefesa do que estava naquele instante, colada a ele, amparada por ele, envolvida por ele. O limite estava próximo, dentro dela e atrás dela. Lee não podia dizer qual dos dois seria mais fatal. Mas sabia que, desamparada como estava, ambos a destruiriam.
Não era a intenção dele beijá-la naquele momento, mas a dificuldade da escalada não esmorecera o desejo que acordara com ele. Tomaria o máximo que pudesse daquele sabor, daquela maciez, e faria com que aquilo durasse até que ela, de livre e espontânea vontade, viesse até ele. Queria a docilidade que tentara maquiar, a fragilidade que ela tentara negar. E queria a força que a mantinha querendo mais. Sim, ele pensava que a conhecia e que estava muito perto de compreendê-la. Sabia que ela o queria.
Lentamente, muito lentamente, já que a permanência do beijo, da boca colada a outra boca, não só o tranqüilizava como também o excitava, Hunter a conquistava. Os olhos dela estavam tão nebulosos quanto seus pensamentos. Sua pulsação estava tão rápida quanto a dele. Ele a mudou de posição, colocando-a perto do penhasco e longe do precipício.
— Nunca recue um passo sem antes olhar por trás dos ombros — disse ele, calmamente. — E não dê um passo à frente antes de testar o solo abaixo de você.
Ele se virou e continuou a subir a trilha, deixando Lee a especular se ele estava falando de montanhismo ou de algo inteiramente diferente.
Lee escreveu em seu diário: No oitavo dia dessa estranha e intermitente entrevista, sei mais sobre Hunter porém compreendo menos. Às vezes ele é simpático, às vezes distante. Hunter tem um traço de isolamento, tão amarrado em sua vida particular que ainda não encontrei um caminho para penetrar nela. Quando pergunto pelas suas preferências literárias, ele fala sem parar — aparentemente não possui nenhuma preferência real, exceto pela palavra escrita em si. Quando pergunto por sua família, ele apenas sorri e muda de assunto ou me dá um daqueles olhares intensos e não diz nada. Em ambos os casos, mantém um manto de mistério sobre sua privacidade.
Ele talvez seja o homem mais eficiente que já conheci em minha vida. Não há desperdício de tempo, não há movimentos extras e, o que me deixa furiosa, não há erros, quando se trata de acender uma fogueira ou fazer a comida quando surge a necessidade. Mas mesmo assim ele fica contente de não fazer absolutamente nada por horas a fio.
Ele é meticuloso — o acampamento parece que foi montado há não mais do que meia hora e na verdade estamos aqui há uma semana —, embora não tenha se barbeado durante toda esse tempo. A barba era para estar horrível, mas não sei como ela parece tão natural que me pergunto se ele não esteve sempre barbado.
Sempre consegui encaixar as pessoas que entrevistei em alguma categoria, até as pessoas com quem convivo. Não consegui com Hunter. Durante todo esse tempo, não consegui achar nenhum rótulo fácil para ele.
Ontem à noite tivemos uma discussão acalorada sobre Plath e, hoje de manhã, eu o encontrei folheando uma revista en quadrinhos durante o café. Quando o questionei sobre isso, respondeu que respeitava todas as formas de literatura. Acreditei. Um dos problemas que estou tendo nesse trabalho é que acabo acreditando em tudo o que ele diz, não importa o quão contraditória a afirmação pode ser em relação a alguma outra que ele tenha feito. É uma total falta de consistência tornar uma pessoa consistente?
Ele é o homem mais complexo, frustrante e fascinante que já conheci. Ainda estou para descobrir uma forma de controlar atração que exerce Sobre mim, ou mesmo de encontrar um rótulo adequado para o que sinto. Seria atração física? Hunter é bastante atraente, fisicamente falando. Seria atração intelectual? Sua mente dá umas guinadas e voltas tão estranhas que preciso me esforçar ao máximo para não me perder.
Creio que poderia lidar tranqüilamente com esses dois aspectos. Ao longo dos anos, tive de lidar profissionalmente com homens atraentes, inteligentes e carismáticos. É certamente um desafio, mas nesse caso aqui, eu tenho a sensação desconfortável de me encontrar no meio de uma partida de xadrez já tendo perdido minha rainha.
Meu maior medo nesse momento é descobrir que estou emocionalmente envolvida.
Ele nunca mais me tocou desde o primeiro dia em que escalamos o canyon. Ainda consigo lembrar exatamente como me senti, exatamente como era o aroma do ar naquele momento. É tolo, excessivamente romântico e absolutamente verdadeiro.
Todas as noites dormimos juntos na mesma barraca. Dá até para sentir o hálito dele. Todas as manhãs acordo sozinha. Eu deveria agradecer por ele não tornar esse trabalho muito mais difícil do que já é, e ainda assim fico desejando ser agarrada por ele.
Por mais de uma semana só tenho pensado praticamente nele. Quanto mais aprendo, mais quero saber — para mim mesmo. Muito mais para mim mesmo.
Por duas vezes acordei no meio da noite, com dores, e quase o chamei. Agora fico aqui pensando o que teria acontecido se eu tivesse chamado. Se acreditasse nos encantos e nas forças ocultas que Hunter descreve em seus livros, poderia achar que alguma delas está agindo sobre mim. Ninguém jamais me fez querer tanto, sentir tanto. Todas as noites, imagino.
Às vezes, Lee escrevia sobre a paisagem e suas impressões sobre ela. Às vezes, escrevia uma descrição detalhada do dia. Mas na maioria das vezes, quase sempre, escrevia sobre Hunter. O que colocava em seu diário não tinha nada a ver com suas esmiuçadas e organizadas anotações para o artigo. Ela não permitiria isso. O que não entendia, e que não escreveria a respeito em nenhum dos lugares, era o fato de estar perdendo o sono. E que estava se divertindo.
Embora ele fosse astutamente evasivo sobre detalhes pessoais, ela estava juntando informações. Mesmo agora, passado não mais do que a metade dos dias estipulados, Lee já tinha o suficiente para um artigo sólido e que faria sucesso — muito mais, ela sabia, do que esperara conseguir. Mas ela queria muito mais, para seus leitores e, era inegável, para ela própria.
— Não consigo imaginar como algum peixe com auto-estima pode ser enganado por algo assim.
Lee brincava com a pequena mosca de borracha que Hunter prendera no anzol dela.
— Miopia — contradisse Hunter, curvando-se para escolher sua própria isca. — Os peixes são famosos por enxergar mal.
— Não acredito em você. — Ela se afastou, desajeitada. — Mas, dessa vez pesco um.
— Primeiro você precisa colocar a isca na água. — Ele olhou para a linha emaranhada na beira do riacho antes de lançar a dele.
Ele nem mesmo oferecia ajuda. Após uma semana na companhia dele, Lee aprendera a não mais esperar. Também aprendera que se quisesse competir com ele neste quesito, ou numa discussão sobre literatura inglesa do século XVIII, teria de entrar no espírito da coisa.
Não era simples e não era rápido, mas Lee, ajoelhada, endireitou o emaranhado até voltar à etapa inicial. Olhou para Hunter, que parecia muito absorvido na superfície do riacho para notar o progresso dela. Agora Lee já sabia. Ele via tudo o que se passava ao redor, olhando ou não.
Alguns metros distante, Lee tentou novamente. Dessa vez sua isca aterrissou fazendo um leve barulhinho.
Hunter viu o raro e rápido risinho surgir, mas não disse nada. Ela era, ele aprendera, uma mulher que normalmente se levava muito a sério. Ainda que ele enxergasse a doçura e a simpatia que Lee tentava tanto esconder.
Ela tinha um riso discreto e nebuloso que não usava com muita freqüência. O que fazia com que Hunter não parasse de pensar numa maneira de obrigá-la a usá-lo.
A última semana não fora fácil para ela. Hunter não quis que fosse. Aprende-se mais sobre as pessoas observando-as em condições difíceis do que coquetéis e festas. Ele estava adicionando camadas à primeira impressão que tivera dela no aeroporto de Flagstaff. Mas ainda havia muitas camadas.
Ao contrário da maioria das pessoas que conhecia, ela podia se sentir confortável com longos momentos de silêncio. Isso o agradava. Quanto mais descuidado ele ficava em sua aparência e seus trajes, mais meticulosa ela ficava nos dela. Ele se divertia de vê-la sair todas as manhãs e depois voltar com a maquiagem retocada e os cabelos cuidadosamente penteados. Hunter sempre garantia que eles estivessem um pouco desarrumados ao final de cada dia.
Trilhas, pescarias. Hunter queria ter certeza que as calças jeans dela ficassem completamente destruídas. À noite ele a via freqüentemente esfregando os pés cansados. Quando estivesse de volta a Los Angeles, sentada em seu aconchegante escritório, não esqueceria das duas semanas que passara em Oak Creek Canyon.
Naquele momento, Lee estava sentada na beira do riacho segurando com as mãos uma vara de pescar, um olhar de presunçosa concentração no rosto. Ele gostava dela por isso — pela necessidade inata que tinha para competir e pela vulnerabilidade que tinha abaixo da superfície, Ela ficaria ali segurando a vara até que ele desse por encerrado o empreendimento. Quando estivessem de volta ao acampamento, ele sabia que Lee passaria creme nas mãos e que elas ficariam com um suave aroma de jasmim e irresistivelmente macias.
Como era o turno dela cozinhar, teria de fazê-lo. Embora estivesse ainda um pouco desajeitada com os utensílios e conseguisse praticamente tudo o que tentava fazer. Ele também gostava dela por isso — pelo fato de nunca desistir de nada.
A curiosidade permanecia imutável. Ela o questionava, e ele evitava ou dava uma resposta qualquer. Então Lee ficava em silêncio para que ele pudesse ler, enquanto ela escrevia. Confortável. Sob a tranqüila luz da fogueira, Hunter achava que ela era uma mulher inusitadamente confortável. Sabendo ou não disso, ela estava relaxada, escrevendo em seu diário, o que o intrigava, ou revisando suas anotações diárias para o artigo, o que não o intrigava.
Ele esperara descobrir alguma coisa sobre ela durante as duas semanas juntos, sabendo que teria de dar algumas informações sobre si próprio em troca. O que considerava uma barganha mais do que justa. Mas não esperara sentir prazer com a companhia dela.
O sol estava forte, o ar quase parado, com um perceptível aroma matinal. Mas o céu não estava claro. Hunter imaginou se ela reparara nas nuvens a leste e se notara que uma tempestade estava a caminho assim que a noite caísse. Relâmpagos podiam ser vistos no meio das nuvens. Ele sentou no chão de pernas cruzadas. Seria mais interessante se Lee descobrisse por si mesma.
A manhã passou em silêncio, a não ser pelas vozes ocasionais em volta deles ou o farfalhar das folhas. Hunter pescou duas trutas no riacho, mas devolveu a segunda por causa do tamanho. Ele não disse nada. Lee não disse nada, mas quase não conseguiu impedir seus dentes de trincarem. A cada caminhada ele voltava para o acampamento com peixe e ela com dor no pescoço.
— Começo a imaginar — disse ela — se você não colocou alguma coisa nessa isca que está afastando os peixes.
Ele estava fumando preguiçosamente, mas agitou-se e esmagou o cigarro.
— Quer trocar de vara?
Ela o olhou de esguelha, aproveitando o leve bom humor naquele belo rosto. Quando os músculos dela começavam a tremer, ela os enrijecia. Será que algum dia ficaria completamente acostumada com a maneira pela qual seu corpo reagia quando trocavam olhares?
— Não — disse ela, calmamente.—Vou ficar com essa mesma. Você é bom demais nesse negócio para alguém que não pescava na infância.
— Sempre aprendi rápido.
— O que seu pai fazia em Los Angeles? — perguntou Lee, sabendo que ou ele responderia da maneira mais improvisada possível ou se esquivaria por completo.
— Vendia sapatos.
Ela ficou um tempo em silêncio, já que estava esperando a segunda possibilidade.
— Vendia sapatos?
— É isso aí. No setor de calçados de uma loja de departamentos no centro da cidade razoavelmente famosa. Minha mãe vendia artigos de papelaria no terceiro andar. — Ele não precisou olhar para ela para saber que estava com a testa franzida. — Surpresa?
— Estou — admitiu ela. — Um pouco. Acho que imaginava que você tinha sido, até certo ponto, influenciado por seus pais e que eles tivessem tido alguma profissão diferente ou mesmo interesses fora dos padrões.
Hunter cortou novamente o assunto com um ágil movimento no pulso: ”
— Antes de meu pai vender sapatos, ele vendia ingressos no teatro do bairro; antes disso, vendia linóleo, acho. — Os ombros se mexeram levemente antes de ele se virar para ela. — Era um homem que era obrigado a trabalhar por questões financeiras quando, na verdade, nasceu para sonhar. Se tivesse nascido rico, talvez tivesse se tornado pintor ou poeta. Mas acabou tendo de trabalhar como vendedor e era sempre demitido porque não conseguia se encaixar nessa profissão.
Embora ele falasse de modo informal, Lee precisava lutar para se distanciar emocionalmente.
— Você fala como se ele já tivesse morrido.
— Sempre acreditei que minha mãe morreu por excesso de trabalho, e meu pai por falta de interesse em viver sem ela.
Uma sensação de compaixão subiu-lhe pela garganta. Ela não conseguia engolir.
— Quando você os perdeu?
— Eu tinha dezoito anos. Eles morreram num intervalo de meses.
— Velho demais para ser sustentado pelo estado e novo demais para ficar sozinho — murmurou ela.
Emocionado, Hunter analisou-a.
— Não sinta pena de mim, Lenore. Eu me saí muito bem.
— Mas você ainda não era adulto. — Não, pensou ela, talvez já fosse. — Ainda tinha de encarar a universidade.
— Tive alguma ajuda, e também trabalhei um tempo como garçom.
Lee lembrou da carteira cheia de cartões de crédito que possuía na faculdade. Qualquer coisa que quisesse, conseguia num piscar de olhos.
— Não pode ter sido fácil.
— Não tinha de ser. — Ele acendeu um cigarro e observou as nuvens se aproximando lentamente. — Quando terminei a faculdade, já sabia que eu era um escritor.
— O que aconteceu entre a sua formatura na faculdade e a publicação de seu primeiro livro?
Ele sorriu através da fumaça que os separava.
— Eu vivia, escrevia, saía para pescar quando dava.
Ela não se convenceria tão facilmente. Quase sem acreditar que estava fazendo aquilo, Lee sentou-se no chão ao lado dele.
— Você deve ter trabalhado.
— Escrever, apesar de muitas pessoas discordarem, é trabalho. — Ele tinha o talento para transformar o mais agudo sarcasmo parecer uma leve galhofa.
Numa outra época, talvez ela tivesse sorrido.
— Você sabe que não é disso que estou falando. Você precisava ter uma fonte de renda, e seu primeiro livro não foi publicado até mais ou menos seis anos atrás.
— Eu não estava passando fome num quartinho, Lenore.—Ele passou um dedo na mão com a qual ela segurava a vara de pescar e sentiu uma onda de prazer na súbita aceleração da pulsação.
— Quando A dívida do diabo saiu, você devia estar começando em Celebrity. Alguém talvez dissesse que nossas estrelas subiram na mesma época.
— Acho que sim.
Ela desviou o olhar para olhar a superfície do riacho. (
— Você está feliz lá? Inconscientemente, ela empinou o nariz.
— Trabalhei duro cinco anos até chegar a repórter.
— Isso não é resposta.
— Assim como a maioria das suas também não é — resmungou ela.
— Verdade. O que você está procurando lá?
— Sucesso — disse ela, imediatamente. — Segurança.
— A primeira nem sempre é igual à segunda.
A voz dela era tão desafiadora quanto seu olhar para ele.
— Você possui ambos.
— Escritores jamais estão seguros — discordou Hunter. — Só um tolo espera ficar seguro. Eu li todo o manuscrito que você trouxe.
Lee ficou em silêncio. Ela sabia que ele iria tocar no assunto antes das duas semanas acabarem, mas tinha a esperança de adiar um pouco mais ainda. A suave brisa balançava as pontas do seu cabelo enquanto ela observava o movimento da água no riacho. Algumas pedrinhas pareciam pedras preciosas. Não passavam de ilusões.
— Você sabe que precisa terminá-lo — disse ele, calmamente. — Não posso acreditar que esteja contente em deixar seus personagens no limbo depois de tê-los idealizado com tanto cuidado. Você já tem dois terços da história concluída, Lenore.
— Não tenho tempo.
— O que não é bom.
Frustrada, ela se virou novamente para ele.
— É fácil para você dizer isso do auge de sua fama. Eu tenho um trabalho que me exige dedicação exclusiva. Meu tempo e meu talento estão totalmente canalizados para eu galgar degraus importantes na revista.
— Seu romance necessita de seu tempo e de seu talento.
Ela não gostou do jeito com o qual ele disse aquilo — como se ela não tivesse nenhuma escolha.
— Hunter, não estou aqui para falar sobre o meu trabalho, mas sobre você e o seu trabalho. Estou lisonjeada por você achar que meu romance possui algum mérito, mas tenho um trabalho a fazer.
— Lisonjeada? — contradisse ele. O olhar profundo e escuro fixou-se novamente sobre ela e a mão dele segurou a sua, firme. — Não, você não está. Você queria que eu jamais tivesse lido seu romance e não quer falar sobre ele. Mesmo que estivesse convencido de seu valor, mesmo assim teria medo de colocá-lo em risco.
A verdade irritou seus nervos e seu humor.
— Minha profissão é minha prioridade. Se isso o agrada ou não, não me importa. Não é da sua conta.
— Não, talvez não — disse ele, lentamente, observando-a. — Tem um peixe no seu anzol.
— Não quero que você... — Com os olhos se estreitando, ela parou. — O quê?
— Tem um peixe no seu anzol — repetiu ele. — É melhor puxar.
— Eu fisguei? — Surpresa, Lee sentiu a vara se sacudir em suas mãos. — Eu peguei um! Oh, meu Deus. — Ela segurou a vara com ambas as mãos e olhou a linha bambolear. — Peguei mesmo um peixe! O que eu faço agora?
— Puxe-o — sugeriu Hunter uma vez mais, recostando-se na grama.
— Não vai me ajudar? — Suas mãos estavam bastante desajeitadas enquanto tentava puxar a linha. Na esperança de que uma alavanca lhe desse alguma vantagem, ficou de pé. — Hunter, não sei o que estou fazendo. Talvez eu perca o peixe.
— O peixe é seu — apontou ele. Com um sorrisinho, ele olhava para ela. Nem entrevistando o presidente ficaria mais exuberante, imaginou Hunter, embora tivesse certeza de que ela não concordaria. Mas a verdade era que Lee não podia se ver naquele momento, o cabelo despenteado, as bochechas brilhando, os olhos bem abertos e a língua firme entre os dentes. A luz do final da manhã deixava sua pele linda, e a rápida risada que deu ao tirar o peixe da água percorreu a nuca de Hunter como uma carícia.
Uma sensação de desejo moveu-se preguiçosamente nele ao olhar para aquelas longas pernas realçadas pelo minúsculo short e depois para as curvas sutis acentuadas pelo movimento dos músculos debaixo da camisa enquanto ela continuava a lutar com o peixe, e finalmente para o rosto dela ainda radiante com a surpresa.
— Hunter! — Ela ria enquanto segurava o peixe ainda vivo e balançando na grama. — Eu consegui!
Era quase tão grande quanto o maior que ele pescara durante aqueles dias. Ele franziu aboca ao medi-lo. Era tentador cumprimentá-la, mas decidiu que ela já estava suficientemente presunçosa.
— Tem de tirá-lo do anzol — lembrou ele, apoiado nos cotovelos.
— Tirar do anzol? — Lee lançou um olhar espantado na direção dele. — Não quero tocar nele.
— Vai ter de tocar nele para tirar do anzol. Lee franziu as sobrancelhas.
— Vou jogá-lo de volta.
Hunter deu de ombros e cerrou os olhos, aproveitando a brisa. Nem morta ela jogaria.
— O peixe é seu, não meu.
Dividida entre a repulsa de tocar no peixe que ainda se sacudia e o orgulho de tê-lo pescado, Lee olhou para Hunter. Ele não ajudaria; isso era dolorosamente óbvio. Se ela jogasse o peixe de volta à água, ele ficaria olhando para ela com aquele ar pretensioso até o fim do dia. Intolerável. E, raciocinou ela com lógica, afinal não teria de tocar nele para jogá-lo de volta ao riacho? Cerrando os dentes, esticou a mão para pegar a pesca do dia.
Era molhado, frio e deslizava. Ela retirou a mão. Então, com o canto do olho, viu Hunter rindo para ela de modo sarcástico. Lee segurou a respiração, agarrou firme a truta com uma das mãos eretirou o anzol com a outra. Se ele não estivesse olhando para ela,desafiando-a, jamais teria conseguido. Com o olhar mais arrogante possível, jogou a truta no pequeno refrigerador que Hunter levava consigo nas pescarias.
— Muito bom. — Ele fechou o refrigerador antes de desenrolar sua linha. — Parece suficiente para o jantar. Você pegou um bem grande, Lenore.
— Obrigada. — As palavras eram uma mistura de polidez gélida com orgulho pessoal.
— Vai ser quase suficiente para nós dois, mesmo depois de você limpá-lo.
— É tão grande quanto... — Ele já se encaminhava para o acampamento, o que fez com que ela precisasse correr para agarrá-lo ao ouvir aquela afirmação. — Limpar, eu?
— As regras dizem que quem pesca, limpa.
Ela fincou pé, mas ele não estava prestando a atenção.
— Eu não vou limpar peixe nenhum.
— Não vai comer nenhum peixe. — As palavras dele eram tão bruscas e indiferentes quanto um dar de ombros.
Abandonando seu orgulho, Lee segurou-lhe no braço.
— Hunter, você vai ter de mudar essa regra. — Ela suspirou, mas convenceu a si própria que não se engasgaria com as palavras. Pelo menos não muito. — Por favor.
Ele parou e pensou.
— Se eu tiver de limpar o peixe, você vai ter de limpar sua barra de alguma maneira, sem trocadilho — disse ele, dando uma risadinha —, fazendo um favor para mim.
— Posso cozinhar duas noites seguidas.
— Eu disse um favor.
Ela virou a cabeça com rapidez, mas, ao olhar para o rosto dele, sorriu.
— Tudo bem, qual é o acordo?
— Por que não deixamos em aberto? — sugeriu ele, — Não me ocorre nada no momento.
Desta vez foi ela quem sugeriu:
— Vai ser negociável?
— Com certeza.
— Aceito. — Lee levantou as mãos e fez uma careta. — Agora vou lavar as mãos.
Ela não havia percebido que pudesse sentir tanto prazer pescando ou mesmo preparando o peixe numa fogueira de acampamento. Havia outras coisas que Lee não havia percebido. Não olhava para o relógio de ouro em seu pulso havia dias. Se não estivesse escrevendo um diário, provavelmente não saberia em que dia estavam. Era verdade que seus músculos ainda reclamavam após uma noite na barraca, e as dependências sanitárias eram, na melhor das hipóteses, inconvenientes, e na pior, horrendas, mas com tudo isso, ela estava relaxando.
Pela primeira vez na vida seus dias não eram ordenados, por ela ou por qualquer outra pessoa. Levantava da cama quando acordava espontaneamente, dormia quando estava cansada e comia quando sentia fome. No momento, a palavra prazo não existia, Isto era algo que ela não se permitia desde o dia em que saíra da casa dos pais em Palm Springs.
Não importava que Hunter pudesse elevar seus batimentos cardíacos com um daqueles olhares inesperados, ou o quanto ela o desejava intimamente, ela achava confortável estar com ele. Como isto era tão improvável, ela não se preocupou em encontrar os motivos. No final daquela tarde, pouco antes do anoitecer, estava jantando contente perto do fogo.
— Nunca imaginei que alguma coisa pudesse ter um cheiro tão bom.
Hunter serviu um copo de café antes de olhar para ela.
— A gente preparou um peixe dois dias atrás.
— Seu peixe — disse Lee, virando a truta cuidadosamente. — Esse aqui é meu.
Ele deu um risinho, imaginando se ela se lembrava de como ficara horrorizada quando ele sugerira que pescasse.
— Sorte de principiante.
Lee abriu a boca, pronta para dar uma resposta a altura, mas então viu a maneira como ele sorria para ela. Não somente a resposta desapareceu como também desapareceu sua muralha defensiva. Ela respirou bem fundo e olhou de volta para a frigideira. O homem simplesmente ficava mais perigoso quanto mais se tornava familiar.
— Se pescar depende de sorte, você teve até mais do que mereceu.
— Tudo depende de sorte.
Ele pegou dois pratos. Lee deslizou a truta crepitante para um deles e sentou-se para saboreá-la.
— Se acredita nisso, o que acha do destino? Você já disse mais de uma vez que a gente pode combater nosso destino, mas não podemos vencer.
Ele franziu a testa. Aquela mente perspicaz e dotada de uma consistência lógica nunca parava de impressioná-lo.
— Um trabalha com a outra. — Ele provou um pouco da truta e reparou que ela fora suficientemente cuidadosa para não deixar esturricar o peixe. — É seu destino estar aqui comigo. Você teve sorte em fisgar um peixe para o jantar.
— A mim soa como se você distorcesse as coisas para seu próprio ponto de vista.
— Sim. Todo o mundo faz isso, não?
— Acho que sim. — Lee comia e analisava a vista. Será que já sentira algo mais maravilhoso do que aquilo? Será que ainda viria a sentir? — Mas nem todo mundo faz isso tão bem quanto você. — Relutando, aceitou um pouco de fruta seca que ele lhe oferecia. Ele parecia dispor de um estoque infinito, mas Lee ainda precisava se acostumar com seu sabor e textura.
— Se você pudesse mudar uma coisa em sua vida, qual seria? Talvez por que ele fizera a pergunta sem preâmbulos, talvez por estar inesperadamente relaxada, Lee respondeu sem pensar:
— Eu ia querer mais.
Ele não perguntou, ao contrário dos pais dela, o que ela queria mais. Hunter apenas assentiu com a cabeça.
— Poderíamos dizer que é seu destino querer isso, e sua sorte conseguir ou não.
Mastigando um pedaço de damasco, ela o analisou. A luz baixa e o fogo tremeluzente jogavam o rosto dele na sombra. Caía-lhe bem. A barba curta e grossa circundava a boca de poeta, tornando-a bem mais sedutora. Ele era um homem que jamais alguma mulher conseguiria ignorar, jamais conseguiria esquecer. Lee imaginava se ele tinha consciência disso. Então quase riu. É claro que ele tinha. Ele tinha consciência de tudo.
— E você? — Ela se aproximou um pouco, como sempre fazia quando a pergunta era importante. — O que você mudaria?
Ele sorriu da maneira que a incendiava.
— Eu pegaria mais — disse ele, calmamente.
Ela sentiu um calafrio subindo-lhe pela coluna, e teve quase certeza de que Hunter reparara. Lee descobriu que se esforçava para se lembrar de seu trabalho.
— Você sabe, você me contou muita coisa ao longo dessa semana. Por um lado, mais até do que eu esperava, porém muito menos por outro. — Novamente equilibrada, comeu outro pedaço de truta. — Talvez eu pudesse compreender você bem melhor se me desse um resumo de um típico dia seu.
Ele comia, saboreando o aroma suave da noite. As nuvens estavam se aproximando e a brisa ficava cada vez mais presente. imaginou se ela reparara.
— Não existe esse negócio de um dia típico.
— Você está se esquivando novamente.
— É mesmo.
— É meu trabalho insistir com você.
Ele olhou para ela por sobre o copo de café.
— Gosto de olhar você fazer seu trabalho.
Ela riu. Parecia que ele sempre podia frustrá-la e diverti-la ao mesmo tempo.
— Hunter, por que será que tenho a impressão de que você está se empenhando ao máximo em tornar as coisas difíceis para mim?
— Você é bastante atenta. — Ele colocou o copo de lado e começou a brincar com as pontas do cabelo dela, de um modo que nunca a deixava indiferente. — Tenho na cabeça a imagem de uma mulher com um tipo romântico de beleza e uma mente ordenada e lógica.
— Hunter...
— Espere, estou dando forma a ela. Ela é ambiciosa, temperamental, altamente sensual sem, no entanto, perceber inteiramente isso. — Ele podia ver que os olhos dela ficavam cada vez mais nublados, como o céu acima deles. — Ela está no meio de uma coisa que não consegue nem explicar nem entender. Tudo acontece ao redor dela e ela acha cada vez mais difícil se distanciar dos acontecimentos. E tem um homem, um homem que ela deseja, mas em quem não confia nem um pouco. Ele não lhe oferece as explicações lógicas que ela quer, mas as explicações ilógicas que oferece parecem assustadoramente próximas da verdade. Para confiar nele, será preciso que ela dê as costas para a maioria das coisas que acredita ser verdadeiras. Se não o fizer, ficará só.
Ele estava falando com ela, sobre ela e para ela. Lee sabia que sua boca estava seca e as palmas das mãos úmidas, mas não sabia se era por causa das palavras dele ou por causa do leve toque dos dedos dele em seu cabelo.
— Você está tentando me assustar tecendo uma trama em torno de mim.
— Estou tecendo uma trama em torno de você — concordou Hunter. Se a estou assustando ou não, depende do êxito de minha trama. Sombras e tempestades são minha área de trabalho.
— Como a confirmar suas palavras, relâmpagos riscaram o céu.
— Mas todos os escritores precisam de um contraste. Pele macia e branca... — Ele passou a mão no rosto dela. — Cabelo macio com toques de ouro e fogo. Contrastando com isso, tenho escuridão, vento, vozes que falam das sombras. Lógica contra o impossível. O indizível contra a beleza elegante e refinada.
Ela engoliu para aliviar a secura na garganta e tentou falar normalmente:
— Imagino que deveria me sentir lisonjeada, mas não tenho certeza se quero me ver num personagem de uma história de terror.
— Isso nos faz voltar novamente ao destino, não? — Um raio explodiu na noite enquanto seus olhos se encontravam uma vez mais.
— Preciso de você, Lenore — murmurou ele — para a história que preciso contar... e mais.
Os nervos dela estavam à flor da pele, mais frenéticos ainda por causa das horas relaxadas.
— Vai chover.
Mas a voz de Lee não estava calma nem equilibrada. Seus sentidos já estavam em frangalhos. Quando tentou se levantar, descobriu que a mão estava presa na dele e que ele estava se levantando com ela. O vento soprava, levantando as folhas, despertando desejo,A luz esmoreceu até se tornar uma sombra. Trovões ribombavam.
O que ela via nos olhos dele a fizeram primeiro estremecer e depois esquentar seu sangue numa velocidade tão rápida que não pôde suportar a mudança. Ele segurava sua mão com delicadeza. Poderia se soltar, se quisesse. Era o olhar dele que sugava sua vontade. Ali ficaram, as mãos se tocando, olhos nos olhos, enquanto a tempestade ao redor deles, rugia enlouquecida.
Talvez a vida fosse feita das escolhas das quais Hunter falara! uma vez. Talvez a sorte regesse o equilíbrio. Mas no momento, por pouco mais do que um segundo, Lee acreditou que o destino governava tudo. Ela fora feita para ficar com ele, para se dar a ele, sem mais chances de escolha do que um dos personagens que a imaginação de Hunter inventava.
Então o céu abriu. A chuva desabou. Aturdida por ficar su- bitamente encharcada, Lee se afastou, rompendo o contato. Mas ainda por vários segundos ficou parada enquanto a água caía em sua cabeça e os raios iluminavam o céu em assustadoras rajadas.
— Droga! — Mas ele sabia que ela estava falando dele e não da tempestade. — E agora, o que faço?
Hunter sorriu, quase não resistindo à ânsia de agarrar-lhe a cabeça e beijá-la até que suas pernas ficassem bambas.
— Direto para a terra seca. — Ele continuava a sorrir apesar da chuva, do vento, dos raios.
Molhada, impaciente e zangada, Lee engatinhou para dentro da barraca. Ele está se divertindo com tudo isso, pensou, arrancando os cadarços encharcados de suas botas. Não há nada que mais agrade a ele do que me ver na pior. Provavelmente levaria uma semana para as botas secarem, pensou ela, carrancuda, ao conseguir arrancar a primeira.
Quando Hunter deslizou para dentro da barraca, ela nada disse. Concentrar-se na raiva parecia ser a melhor solução. O barulho da chuva na barraca parecia fazer o espaço interno encolher. Ela jamais ficou tão próxima dele, ou de si mesma. Água escorria desconfortavelmente por seu pescoço enquanto se inclinava para retirar as meias.
— Não acho que vá durar muito. Hunter tirou a camisa encharcada.
— Eu não teria esperanças de ela terminar muito antes do amanhecer.
— Maravilhoso.
Ela tremia e imaginava como, em nome de Deus, conseguiria tirar a roupa molhada e trocar por outra seca. Hunter acendeu a lanterna que carregava consigo.
— Relaxe e ouça. É diferente da chuva na cidade. Não há zunido de pneus no asfalto molhado, não há buzinas, não há pés
Ele pegou uma toalha e começou a secar-lhe o cabelo.
— Eu posso fazer isso.
Ela se esticou, mas ele continuou a massagem.
— Gosto de fazer isso. Fogo molhado — murmurou ele. — É isso que me lembra o seu cabelo agora.
Ele estava tão perto que ela podia sentir o cheiro da chuva nele. O calor do corpo era tentador e a atraiu subitamente. Teria a chuva ficado mais forte de repente, ou seus sentidos estariam mais sensíveis? Por um momento, pensou poder ouvir cada pingo caindo na barraca. A luz era tênue, um cinza esfumaçado com toques de sobrenatural. Lee teve a sensação de ter sempre estado em fuga daquele lugar isolado. Ou talvez fugisse ao encontro dele.
— Você precisa fazer a barba — murmurou ela, e percebeu que sua mão já se aproximava para tocar a barba crescida no rosto dele — Isso o esconde demais. Você já é muito difícil de se mostrar.
— Sou? — Ele passava a toalha pelo cabelo dela, às vezes aliviando, às vezes excitando.
— Você sabe que é. — Ela agora não queria se desviar daquele olhar que instilava tanto calor em sua pele gélida e úmida. Relâmpagos iluminavam intensamente o céu e a barraca antes de mergulharem de volta na escuridão. Mas, ainda assim, em meio à escuridão, ela conseguia enxergar tudo o que precisava enxergar, talvez mais do que desejasse. — O meu trabalho é descobrir mais,descobrir tudo.
— E é meu direito falar somente o que eu quiser.
—A gente simplesmente não vê as coisas da mesma maneira.
— Não.
Ela pegou a toalha e, quase sonhando, começou a enxugar o cabelo.
— Não faz sentido ficarmos juntos desse jeito.
Ele jamais sentira as garras do desejo. Se não tocasse nela já, seria despedaçado.
— Por quê?
— Somos diferentes demais. Você procura o inexplicável, eu procuro o lógico. — Mas a boca de Hunter estava tão próxima à dela, e os olhos dele eram tão poderosos. — Hunter... — Ela sabia o que estava para acontecer, reconheceu a impossibilidade e a dor que se seguiria a tudo aquilo. — Não quero que isso aconteça.
Ele não a tocou, mas estava certo de que logo enlouqueceria por não fazê-lo.
— Você não tem escolha.
— Não. — As palavras saíram tranqüilas, quase como um sussurro. — Acho que não tenho. — Ela deixou a toalha cair. Viu o tremeluzir da luz e esperou seu coração bater três vezes até trovejar a resposta: — Talvez nenhum de nós tenha escolha.
A respiração dela já estava instável quando sua mão se aproximou dos ombros nus dele. Havia força ali. Ela queria sentir, mas sempre tivera medo. Os olhos dele nunca deixaram os seus enquanto ela o tocava. Embora a força do desejo lhe apertasse o estômago, ele deixou que ela impusesse o ritmo naquela primeira vez, na primeira e mais importante vez.
Os dedos de Lee eram longos, e ele sentia a maciez e a calma em sua pele. Eram menos cautelosos do que hesitantes. Percorriam seus”braços, moviam-se lentamente por seu tórax e costas até que o desejo estivesse tão teso quanto um arco pronto para ser disparado. O som da chuva batucava na cabeça dele. O rosto de Lee estava branco e elegante na tênue luminosidade. A barraca se tornou, de repente, grande demais. Ele a queria num espaço que fosse tão pequeno que só possibilitasse os dois se moverem juntos.
Ela quase não acreditava que pudesse estar tocando-o daquela maneira, livremente, abertamente, a tal ponto que a pele dele tremia sob os dedos. O tempo todo Hunter olhava-a com uma paixão tão intensa que talvez a aterrorizasse se ela não estivesse tão enlouquecida com seu próprio desejo. Com cuidado, temerosa de dar um passo errado e quebrar o encanto de ambos, aproximou sua boca. A aspereza da barba era um impressionante contraste com a maciez de seus lábios. Ele lhe retribuía tanta paixão, tanto calor. E sem pressioná-la em nada. Ela jamais conhecera alguém que pudesse dar sem tomar. Essa generosidade era para ela o extremo da sedução. Naquele momento, qualquer reserva que estivera cultivando foi levada com as águas. Os braços dela no pescoço dele, os rostos colados.
— Faça amor comigo, Hunter.
Ele afastou-se dela, apenas o suficiente para poderem se ver novamente. O cabelo dela estava úmido. Os olhos estavam tão nebulosos quanto o céu uma hora antes.
— Vamos nos amar juntos.
Os lábios dela se abriram. Seu coração se abriu. Ele invadiu sua boca.
— Vamos nos amar juntos.
Então as mãos dele agarraram-lhe a cabeça, e o beijo foi tão delicado que anestesiou todas as células do seu corpo. Ela sentiu quando ele arrancou sua camisa molhada, e tremeu apenas uma vez antes dele aquecê-la. Ela podia sentir o corpo dele forte contra o seu, tão sólido. E ainda assim suas mãos a acariciavam da mesma maneira que um joalheiro acaricia uma jóia rara. Hunter suspirou quando ela o tocou. Então ela tocou novamente, na intenção de dar prazer assim como tinha recebido.
Ela imaginou que o pânico voltaria, ou pelo menos a ânsia de sair correndo. Mas eles tinham se dado todo o tempo do mundo. A chuva podia cair, o trovão podia ribombar. Não os atingia. Ela saboreou fome em seus lábios, mas ele se controlou. Comeria em colheradas, lentamente. Uma sensação de prazer borbulhava em seu corpo e saía pelos lábios.
A boca em seu seio fez o desejo saltar para outra dimensão. Mas Hunter continuava sem pressa, mesmo com Lee se inclinando em direção a ele. A língua não parava, os dentes quase a devoravam, até que ele sentiu o desejo enlouquecido vibrar por todo o corpo dela. Só pensava nele agora, Hunter sabia disso, mesmo lutando para manter as rédeas de sua própria paixão. Ela teria muito mais. Teria tudo. E ele também. Por Deus, com certeza teria.
Quando começou a lutar com a pressão dos jeans dele, Hunter permitiu que ela fizesse seu próprio caminho. Ele queria um contato total com ela, carne com carne, corpo com corpo, sem barreiras. Em sua cabeça, ele já a despira, como agora, dezenas de vezes. O cabelo dela estava fresco e molhado, a pele macia e cheirosa. Flores de primavera e chuva de verão. Os aromas penetravam nele enquanto a agilidade das mãos dela se intensificava.
A respiração de Lee estava desigual ao arrancar a calça jeans molhada dele. Ela reconheceu força, poder e controle. Era a última etapa a superar para conseguir o que desejava.
Onde podia alcançar, ela tocava, saboreava, se encharcando de prazer a cada momento em que ouvia a respiração dele tremer. O short dela foi vagarosamente retirado de seu corpo por mãos habilidosas até que não lhe restou mais do que o triângulo de renda abaixo da cintura. Com a boca, ele se aventurou mais abaixo no corpo dela, lentamente, até que as cerdas da barba despertassem cada poro. Sua língua deslizou para baixo da renda, fazendo-a gemer. Então, tão abruptamente quanto a tempestade tinha chegado, Lee se perdia num emaranhado de sensações tão obscuras, tão profundas, que fugia a sua compreensão. -
Ele sentiu sua explosão, e o poder impregnou-se nele. Ele a ouviu chamar seu nome, e a ânsia de ouvir novamente quase o esmagou. Hunter se agarrou a ela e conteve o último e desesperado desejo até que ela abriu os olhos. Estaria olhando para ele quando gozassem juntos. Ele prometera isso a si mesmo.
Atordoada, tremendo, exaltada, Lee olhou para ele. Hunter parecia invencível.
— O que você quer de mim?
A boca dele foi ao encontro da dela e, pela primeira vez o beijo foi forte, urgente, quase brutal, com a força da paixão finalmente liberada.
— Tudo. — Ele mergulhou nela, catapultando ambos para bem perto do limite total. — Tudo.
A madrugada estava tão transparente quanto um copo de cristal. Lee acordou lentamente, nua, aquecida e, pela primeira vez em mais de uma semana, confortável. E, pela primeira vez em mais de uma semana, ela acordou sem ter certeza absoluta de onde se encontrava.
Sua cabeça estava aninhada na curva do ombro de Hunter, o corpo virado na direção do dele por vontade própria e pelo peso do braço que a segurava com firmeza. Havia uma sensação de entorpecimento que era uma mistura de segurança e excitação. Sua memória não conseguia registrar uma experiência tão intensa quanto aquela.
Antes de ficar inteiramente desperta, sentiu a fragrância da chuva que permanecera em sua pele e lembrou. Ao lembrar, respirou, sorveu profundamente aquele aroma.
Era como um sonho, como alguma coisa imersa numa fantasia subconsciente, ou como uma cena vinda diretamente da imaginação. Ela jamais havia se oferecido tão livremente, tão completamente para alguém antes. Jamais. Lee sabia que nunca antes alguém a excitara tanto.
Ainda podia sentir o toque dos lábios dele nos seus, e todas as dúvidas, todos os medos, desaparecendo no delicado contato.
Deveria sentir-se tão contente agora que a chuva parara e a madrugada surgia? Fantasias eram para as horas particulares da noite, não para a luz do dia. Afinal, não havia sido um sonho. Não havia por que fingir que havia sido. Talvez devesse estar apavorada por ter lhe dado exatamente o que ele pedira: tudo.
Não poderia. Não, era mais do que isso, percebia ela. Não ficaria apavorada. Nada, ninguém, estragaria o que havia acontecido, nem mesmo ela própria.
Mesmo assim, talvez fosse melhor ele não perceber ainda como havia vencido completamente. Lee deixou os olhos fechados e abraçou a sensação de proximidade ao seu redor. Pelos próximos dias, não haveria escrivaninha, máquina de escrever e nem telefone tocando com mais cobranças. Não haveria nenhuma rotina de trabalho auto-imposta. Pelos próximos dias, estaria sozinha com seu amante. Talvez houvesse chegado a hora de colher aquelas flores selvagens.
Ela inclinou a cabeça na intenção de olhar para ele, mas sem acordá-lo. Ao longo da semana haviam passado muito tempo numa grande intimidade, mas ela nunca o vira dormindo. Ele sempre acordava mais cedo e preparava ao café. Ela queria o luxo de poder absorvê-lo num momento em que ele não pudesse perceber.
Lee sabia que a maioria das pessoas parecia vulnerável, talvez mais inocente, dormindo. Hunter parecia igualmente perigoso e excitante como sempre. Aqueles olhos escuros e penetrantes estavam escondidos, era verdade, mas saber que as pálpebras podiam se abrir a qualquer momento e os olhos podiam apunhalar com aquele estranho poder não acrescentava nenhuma inocência ao rosto dele, somente mais um pouco de mistério.
Lee descobriu que não queria essa inocência nele. Estava contente com o fato de ele ser mais perigoso do que qualquer outro homem que conhecera antes. De maneira estranha, estava contente por ele ser difícil. Não se apaixonara pelo comum, pelo rotineiro, mas pelo singular.
Apaixonara-se. Ela repetiu a frase na cabeça, deixando-a de lado e depois a trazendo de volta com o cuidado que lhe era característico. A frase desencadeava uma torrente de inquietação, indicava em si algum tipo de sofrimento. Hunter não havia ele próprio lhe avisado para testar o solo antes de dar um passo à frente? Apesar do aviso, ela não testou. Mesmo à beira do abismo, não testou o lugar onde pisaria. Sua queda fora leve. Dessa vez. Lee sabia que era bem possível tropeçar e ser destruída.
Não pensaria nisso. Ela se permitiu o prazer de se aconchegar. Encontraria aquelas flores selvagens e aproveitaria cada pétala delas. O sonho terminaria logo, logo, e retornaria para a realidade de sua vida. Era, com certeza, o que ela desejava. Ficou imóvel por um momento, apenas ouvindo o silêncio.
A coisa sensata a fazer, pensou preguiçosamente, seria estender as roupas molhadas para secar ao sol. Suas botas certamente estavam encharcadas, mas, por enquanto, podia contar com o par de tênis. Bocejou, pensando que queria também algum tempo para escrever em seu diário. A respiração de Hunter estava lenta e estável. Ela deu um sorriso. Podia fazer tudo aquilo e depois voltar e acordá-lo. Acordá-lo, do jeito que quisesse, era um privilégio de amante.
Amante. Analisando o rosto dele uma vez mais, ela imaginou por que não se sentiu particularmente surpreendida com a palavra. Seria possível que tivesse reconhecido tudo desde o início? Tola, disse para si mesma e balançou a cabeça.
Lentamente, foi se afastando dele e começou a rastejar até a frente da barraca para sair. Quando estava alcançando o zíper, foi segura pelo tornozelo. Hunter estava com a outra mão embaixo da cabeça, observando-a.
— Se você sair dessa maneira, vai ser difícil manter todo mundo afastado desse acampamento por muito tempo.
Como estava nua, o olhar arrogante que ela lhe lançou perdeu a intensidade.
— Eu estava apenas dando uma olhada lá fora. Pensei que você estivesse dormindo.
Ele sorriu e pensou que ela era a única mulher que podia manter-se com alguma dignidade estando de quatro numa barraca, nua em pêlo. Distraidamente, deu uma pancadinha no tornozelo dela.
— Acordou cedo.
— Pensei em colocar essas roupas para secar.
— Muito prático. — Percebendo que ela estava se sentindo um pouco desconfortável, Hunter se sentou, agarrou seu braço e a fez tombar para trás, esparramada sobre ele. Satisfeito, ele a segurou contra si e suspirou. — Faremos isso mais tarde.
Sem saber se ria ou se reclamava, Lee tirou o cabelo da frente dos olhos ao se apoiar sobre um cotovelo.
— Não estou cansada.
— Você não precisa estar cansada para se deitar. — E então rolou para cima dela. — Isso se chama relaxar.
Com o corpo dele se ajustando sobre as curvas do seu, Lee sentiu o calor invadi-la. Todos os seus nervos entraram em ação.
— Não creio que isso tenha muito a ver com relaxar.
— Não? — Ele queria vê-la daquela maneira, na tênue luz da madrugada, o cabelo despenteado em suas mãos, a pele pujante recém-desperta, os membros pesados por causa de uma noite de amor e alerta para muito mais. Ele passou a mão pelo corpo dela com um ímpeto de posse que não era nem um pouco confortável e, além disso, bastante inesperado. — Então nós vamos relaxar mais tarde também. — Viu os lábios de Lee formarem um delicado sorriso antes de ser abalroados pelos dele.
Hunter não tinha dúvida de que a queria agora, da mesma maneira em que a quis durante todos aqueles dias e noites que passaram ali. Ele raramente tinha alguma dúvida quanto a sentimentos, porque confiava neles. Ela o abraçou e beijou. Estar se entregando assim tão completamente inundou-o de calor e desejo. Hunter ergueu a cabeça e olhou para ela.
Pele branca sobre um rosto de duquesa, olhos azuis como o céu crepuscular e cabelos ruivos com tons dourados. Hunter deu-se o prazer de olhar para ela, de cima a baixo, lentamente.
Ela era pequena, lisa e macia. Ele passou a ponta de um dedo pela curva de um ombro e estudou o contraste de sua pele contra a dela. Frágil, delicada — mas ele lembrou quanta força ela tinha dentro de si.
— Você sempre me olha como se soubesse tudo o que há para saber sobre mim.
A intensidade nos olhos dele permaneceu quando pegou-lhe a mão.
— Não é suficiente. Não é nem um pouco suficiente. — Com o mais leve dos toques, beijou o seu ombro, a testa e depois os lábios.
— Hunter... — Ela queria dizer-lhe que ninguém jamais a fizera sentir o que estava sentindo naquele momento. Queria dizerlhe que ninguém jamais a fizera querer tanto acreditar em magia e em contos de fada e na simplicidade do amor. Mas quando ia começar a falar, a coragem desapareceu. Tinha medo de arriscar, medo de fracassar. Em vez disso, acariciou-lhe o rosto e disse: — Me beije outra vez.
Ele compreendeu que havia algo mais, algo que precisava saber. Mas também entendia que quando algo frágil era manuseado de forma rude, quebrava. Fez como ela pedira e sentiu o sabor quente e misterioso de sua boca.
Macia... suave... sedosa. Era como ele conseguia deixá-la com apenas um beijo. O chão era duro e rígido sob o magro colchão da barraca, mas era como se fosse uma luxuosa pilha de penas. Era tão fácil esquecer onde estava, com ele junto dela daquele jeito,esquecer que um mundo existia fora daquele pequeno espaço que dois corpos requisitavam. Ele podia fazê-la flutuar, e ela jamais imaginou o quanto queria que isso acontecesse. Podia fazê-la sentir dor, e ela jamais imaginou que pudesse sentir prazer com isso,Ele falava palavras que não precisava entender. Ela desejava e era desejada, queria e era querida. Ela amava...
Com um desarticulado murmúrio de aceitação por qualquer coisa que ele pudesse lhe oferecer, Lee puxou-o para mais próximo de si. Mais próximo. O momento era tudo o que importava,
Profundo, inebriante, suave, o beijo continuava infinitamente.
Até mesmo uma imaginação tão fluida quanto a dele não haviafantasiado nada tão doce, nada tão delicado. Era como se estivesse se derretendo nele, dando tudo antes que Hunter pudesse pedir. Uma vez, apenas uma vez, apenas rapidamente, passou-lhe pela cabeça que era tão vulnerável quanto ela. A inquietação veio, estalando em seu cérebro. Então passou as mãos pelo corpo dele, acariciando, e ele aceitou a fraqueza.
Apenas uma única pessoa tivera o poder de conquistar seu coração daquela maneira. Agora eram duas. O momento para lidar com esse assunto era o dia seguinte. Agora o momento era só para eles.
Sem pressa, percorria toda a extensão do seu rosto com beijos. Talvez fosse uma espécie de homenagem à beleza. Talvez fosse mais, muito mais. Ele não questionou seus motivos ao passar pelo declive da bochecha. Havia uma pressa que jamais experimentara antes, mas sem a urgência que esperara. Ela estava ali à disposição pelo tempo que fosse necessário. Ele entendia isso, sem necessidade de palavras.
— Você está cheirando a primavera e chuva — murmurou no ouvido dela. — Por que isso está me deixando louco?
As palavras vibraram nela, tão excitantes quanto a mais íntima carícia. Os olhos dela, densos, enevoados, encontraram os dele.
— Me mostre como. Me mostre de novo.
Ele a amava com tanta generosidade! Cada toque era um prazer em separado, cada beijo um sabor de luxúria. Paciência — havia mais paciência nele do que nela. Seu corpo se debatia entre a mais pura satisfação e o desejo, até que a razão se tornou inalcançável.
— Aqui, — Ele deu uma leve mordida no seio, ouvindo e se excitando com sua respiração entrecortada. — Você é pequena e macia. Aqui. — Ele levou a mão até a cintura e a coxa. — Você é rígida e magra. Não consigo parar de tocar, parar de saborear. — Ele levou o bico do seio até a boca, trazendo-a mais ainda para si, centralizando os corpos.
— Hunter. — Seu nome quase não foi ouvido, mas o som foi suficiente para levá-lo à loucura. — Eu preciso de você.
Deus, como ele queria ouvir isso! Lutando para compreender o que aquelas quatro palavras simples haviam desencadeado, ele enterrou a boca na pele dela. Mas não conseguia pensar, apenas sentir. Apenas desejar.
— Eu sou seu.
Somente com os lábios e as mãos, ele a conduziu ao primeiro êxtase.
Os movimentos dela embaixo dele tornavam-se enlouquecidos, os murmúrios ficavam frenéticos, mas ela não percebia. Tudo o que Lee sabia era que estavam colados um ao outro, corpo com corpo. Essa era a tempestade que ele lhe proporcionara na noite anterior, a liberação do poder, as urgências inesgotáveis. O carinho se tornou paixão com tanta rapidez que ela nada podia fazer exceto se deixar levar por ele, cega a seu próprio poder e às suas próprias demandas. Estava girando velozmente naquele mundo que ambos haviam criado para saber o quanto sua boca procurava a dele e como suas próprias mãos tinham certeza do que queriam. Lee conseguia dele tudo o que Hunter conseguia Não parava de levá-lo ao êxtase e ele não parava de querer Cada vez mais.
Gula. Ele jamais sentira tanta gula. Com o sangue pulsando em sua cabeça, berrando em suas veias, ele encaixou a boca na dela. Con as mãos segurando-lhe a cintura, rolou até ficar deitado sobre Lee. Ainda estavam com as bocas coladas quando se uniram, e o suspiro de prazer que ouviu-a soltar vibrou em todo o seu corpo. A força parecia aumentar cada vez mais, o que beirava o impossível. Ela imaginou que podia sentir cada músculo de seu corpo se mexendo sem parar. Força chamava força. Lee se lembrou do relâmpago, do trovão, e os reviveu novamente. Quando a tempestade começou, estava colada a ele, como se o calor tivesse fundido.
Minutos, horas, dias. Lee não tinha noção do tempo. Lenta mente, seu corpo se acalmou. Aos poucos, a pulsação voltou ao normal. Com o corpo colado ao dele, podia sentir cada detalhe da sua respiração, e teve a mais tola das satisfações quando percebeu que ambos respiravam no mesmo ritmo.
— Que pena termos desperdiçado uma semana.
Com grande esforço, Hunter abriu bem os olhos e depois os manteve fechados ao acariciar-lhe o cabelo. Ela riu, porque ele não podia ver.
— Desperdiçamos?
— Se estivéssemos assim desde o início, eu teria dormido bem melhor.
— É mesmo? — Passando a mão no cabelo, Lee ergueu a cabeça. — Você teve dificuldade para dormir?
Os olhos dele se abriram, preguiçosos.
— Raramente acho necessário acordar de madrugada, a não ser para escrever.
A onda de prazer fez sua voz ficar presunçosa. Ela pousou um dedo no ombro dele.
— É mesmo?
— Você insistia em usar aquele perfume para me deixar maluco.
— Deixar você maluco? — Ela cruzou os braços e franziu a testa. — É uma aroma bem sutil.
— Sutil. — Ele passou levemente a mão pelo traseiro dela. — Como um martelo no plexo solar.
Ela quase deu uma gargalhada.
— Foi você quem insistiu em dividir a barraca.
— Insisti? — Fitou-a com um leve traço de bom humor. — Eu lhe disse para você que não tinha nada contra você dormir do lado de fora.
— Sabendo que eu não dormiria.
— Verdade, mas não esperava que resistisse a mim por tanto tempo.
Ela levantou a cabeça de súbito.
— Resistir a você? — repetiu ela. — Quer dizer que planejou tudo isso como uma cena de um livro?
Ele deu um risinho e apoiou a cabeça sobre os braços. Deus, ele não conseguia se lembrar de alguma vez ter se sentido tão livre, tão... completo.
— Deu certo.
— Típico — disse ela, desejando ter sido insultada e tentando, da melhor forma possível, agir como se estivesse. — Estou surpresa de haver espaço aqui para nós dois e ainda para seu ego inflado.
— E para a sua teimosia.
Ela sentou ao ouvir a palavra, as sobrancelhas desaparecendo embaixo das mechas despenteadas.
— Suponho que tenha imaginado que eu simplesmente... — ela representou com as mãos um círculo — cairia a seus pés.
Hunter pensou por um momento sobre aquilo, enquanto se dava o prazer de memorizar cada curva do corpo de Lee.
— Pode ter sido legal, mas eu havia imaginado alguns desvios no roteiro.
—Ah, é? — Ela imaginava se ele percebia que estava cada vez se enterrando mais num buraco sem fim. — Aposto que a gente pode inventar um monte de outros. — Ela pegou uma camiseta nova em sua bolsa. — Começando agora.
Quando começou a enfiar a camiseta pela cabeça, Hunter a agarrou e puxou. Lee tombou novamente sobre ele e sentiu que) ele lhe prendera a boca. Quando a liberou, ela estreitou os olhos.
— Você se acha bastante esperto, não?
— Acho sim. — Ele pegou-lhe o queixo na mão e a beijou novamente. — Vamos tomar café.
Ela engoliu uma gargalhada, mas os olhos a denunciaram.
— Patife.
— Tudo bem, mas continuo com fome.
Ele enfiou a camiseta nela antes de começar a se vestir. Lee se deitou e começou a vestir uma calça jeans.
— Não acha que, agora que tudo se resolveu, poderíamos terminar a semana num belo resorte.
Hunter pegou um par de meias novas. —Resorte! Não me diga que está tendo problemas em acampar, Lenore.
— Eu não diria problemas. — Ela meteu a mão numa das botas e sentiu o interior molhado. Resignada, pegou o tênis. — Mas tem a história de uma fantasia envolvendo uma banheira e uma cama macia. — Ela passou a mão nas costas. — Uma fantasia maravilhosa.
— Acampar requer uma certa quantidade de força e resistência — disse ele. — Acho que você atingiu seu limite e quer parar...
— Não falei nada sobre parar — retrucou ela, sabendo que perderia, não importava o caminho que seguisse. — Nós vamos terminar a droga das duas semanas — resmungou ela, e saiu da barraca.
Lee não podia negar que a qualidade do ar era esplêndida e a limpidez do céu era a mais perfeita que já vira em toda a sua vida. Nem que, se ele tivesse perguntado, teria ela dito para Hunter que queria voltar para Los Angeles. Era uma questão de conforto para criaturas básicas, pensou ela. Como submergir numa banheira com água quente e aromática e se esticar num colchão coberto com lençóis de linho. Certamente, não era nada mais do que a maioria das pessoas desejava no seu dia-a-dia. Mas, refletiu Lee, Hunter Brown não fazia parte da maioria das pessoas.
— Fabuloso, não? — Ele enlaçou-lhe a cintura, trazendo-a para si. Queria que ela visse o que ele estava vendo, que sentisse o que estava sentindo. Talvez quisesse demais isso.
— É um visual lindo. Quase não parece real.
Ela então suspirou, sem saber exatamente por que dissera aquilo. Por acaso Los Angeles pareceria mais real para ela quando esta última semana terminasse? Pelo menos ela compreendia os arranha-céus e as multidões nas ruas. Aqui — aqui ela parecia tão pequena, e aquele último degrau da escada que desejava galgar parecia tão insignificante.
Abruptamente, ela se virou e grudou nele.
— Odeio admitir, mas estou contente por você ter me trazido. — Ela descobriu que queria continuar grudando-se nele, queria continuar segurando-o firme, até que não houvesse mais o momento de soltá-lo. Deixou de lado todos os pensamentos do futuro e disse para si mesma que deveria se lembrar das flores selvagens. — Estou faminta — disse, conseguindo dar um sorriso ao se separar dele. — É sua vez de cozinhar.
— Uma pequena bênção.
Lee deu-lhe um leve empurrão antes de limparem os pratos que haviam deixado na chuva.
Na sua maneira rápida e eficiente, Hunter acendeu a fogueira e colocou os pedaços de bacon para fritar. Lee sentou-se e ficou absorvendo os aromas enquanto o observava quebrar os ovos na frigideira.
— Já comemos muitos ovos — comentou ela. — Como você consegue mantê-los frescos aqui?
Por estar observando as mãos dele, ela não percebeu o sorriso.
— Apenas mais um dos muitos mistérios da vida. Me passe um prato.
— Tudo bem, mas... Nossa... olha só! — O movimento que chamou a atenção dela foi proporcionado por dois coelhos suficientemente curiosos para ultrapassar o limite do acampamento e vir observá-los. O mistério dos ovos foi esquecido na pura e simples fascinação por algo que ela apenas começava a apreciar, — Todas as vezes que vejo um, me dá uma vontade de tocar.
— Se você conseguisse chegar perto o suficiente para tocar neles, veria que eles têm dentes bastante afiados.
Ela deu de ombros, encostou o queixo nos joelhos e continuou olhando para os visitantes.
— Os coelhinhos nos quais penso não mordem. Hunter foi ele próprio pegar um prato.
— Coelhinhos, pequenos esquilos felpudos e guaxinins fofinhos são bonitos de se ver, mas impossíveis de se conviver. Eu me lembro de ter tido uma longa e pesada discussão com Sarah sobre isso alguns anos atrás.
— Sarah?
Lee pegou o prato que ele lhe oferecia, mas sua atenção estava toda concentrada nele.
Até aquele momento Hunter não tinha percebido como havia se esquecido completamente de quem ela era e por que estava ali.
Ter mencionado Sarah de forma tão natural o fez lembrar de que deveria manter os sentimentos pessoais separados das questões profissionais.
— Alguém muito especial — disse ele, colocando os ovos restantes em seu prato. — Lembrou dos comentários de sua filha sobre paixões e ficar apaixonado. O sorriso não pôde ser contido. — Imagino que ela ia gostar de conhecer você.
Lee sentiu um calafrio, mas tentou ignorar. Não haviam dito nada sobre compromisso, nem sobre exclusividade. Eram adultos. Ela era responsável por suas próprias emoções e possíveis conseqüências.
— Você acha?
Colocou na boca o primeiro pedaço de ovo, mas não sentiu gosto nenhum. Seus olhos estavam fixos no anel que ele usava. Não era uma aliança, mas... Ela tinha de perguntar, precisava saber antes que as coisas avançassem demais.
— Esse anel que você usa — começou ela, satisfeita por sua voz estar estável — é bem diferente. Nunca vi nenhum parecido.
— E nem poderia. — Ele comia com um ímpeto de uma pessoa completamente contente. — Foi minha irmã que fez.
— Irmã? — Se o nome dela fosse Sarah...
— Bonnie cria os filhos e faz jóias — prosseguiu Hunter —, mas não sei em qual ordem.
— Bonnie. — Ela assentiu com a cabeça e fez um esforço para continuar comendo. — Ela é sua única irmã?
— Só havia nós dois. Por alguma estranha razão, nos dávamos muito bem. — Ele lembrou daqueles primeiros anos quando lutava para aprender a ser pai e mãe de Sarah. Sorriu. — E ainda nos damos.
— O que ela acha de seu trabalho?
— Bonnie acredita piamente que todo o mundo devia fazer o que lhe dá prazer. Contanto que estejam casados e com meia dúzia de filhos. — Ele deu um risinho, identificando a pergunta não feita nos olhos de Lee.—Nesse ponto, eu a desapontei. — Parou por um instante, deixando o sorriso de lado. —Acha que eu poderia fazer amor com você tendo uma mulher à espera em casa?
Ela desviou o olhar para o prato. Por que ele sempre conseguia ler seus pensamentos e ela nunca conseguia ler os dele?
—Ainda não sei muita coisa de você.
Ele não sabia se tomara conscientemente a decisão naquele instante ou se sempre estivera preparado para isso.
— Pergunte.
Lee olhou para ele. Não importava mais se precisava saber pelo trabalho ou por si mesma. Simplesmente precisava saber.
— Você nunca se casou?
— Não.
— Isso é resultado de sua necessidade de privacidade?
— Não, é resultado de não ter achado ninguém que pudesse lidar com a maneira com a qual vivo e com meus compromissos.
Lee refletiu sobre aquilo, e achou que era um jeito bem estranho de falar.
— O fato de ser um escritor?
— É, isso também.
Ela começou a se aprofundar, mas decidiu mudar de direção. Perguntas pessoais poderiam gerar perguntas pessoais da parte dele.
— Você disse que nem sempre quis ser escritor, mas que, no entanto, nasceu para ser um. O que o fez descobrir isso?
—Acho que não foi uma questão de descoberta, mas de aceitação. — Compreendendo que ela queria algo específico, pegou um cigarro e ficou analisando a ponta. Ele tinha tão pouca certeza de por que estava respondendo quanto Lee de por que estava perguntando. — Deve ter sido no meu primeiro ano de faculdade. Sempre escrevi histórias, desde que me entendo por gente, mas estava firme na carreira de atleta. Aí escrevi uma coisa que deve ter engatilhado tudo. Não era nada fantástico — acrescentou, pensativo. — Uma trama bem básica com uma ambientação simples, mas os personagens me atraíram muito. Eu os conhecia tão bem quanto qualquer pessoa viva. Não havia mais nada que pudesse fazer na vida.
— Deve ter sido difícil. Publicar não é uma coisa nada fácil. Mesmo quando se inicia, não é algo particularmente lucrativo, a não ser que escreva best-sellers. Com seus pais mortos, você precisava se sustentar.
— Eu tinha experiência como garçom. — Ele sorriu, com mais facilidade agora. — E detestava aquilo. Às vezes é preciso arriscar tudo, Lenore. Foi o que fiz.
— Como se sustentou do momento em que se formou até o sucesso de A dívida do diabo?
— Eu escrevia.
Lee balançou a cabeça, esquecendo do prato quase cheio em seu colo.
— Os artigos e os contos não podem ter dado muita coisa. E aquele foi seu primeiro livro.
— Não, escrevi dezenas antes daquele. — Ele deixou escapar uma corrente de fumaça e alcançou o café. — Quer um pouco?
Ela se inclinou um pouco à frente, franzindo as sobrancelhas.
— Espere aí, Hunter, venho pesquisando sobre você há meses. Posso não ter conseguido muita coisa, mas conheço cada livro, cada artigo e cada conto que você escreveu, incluindo a maioria dos trabalhos que fez na universidade. Não há nenhuma chance de eu ter deixado escapar dezenas de livros.
—Você conhece tudo o que Hunter Brown escreveu — corrigiu ele e serviu-se de café.
— Foi exatamente o que eu disse.
— Você não pesquisou Laura Miles.
— Quem?
Ele saboreava o café e a conversa mais do que previra.
— Uma enorme quantidade de escritores usa pseudônimo. Laura Miles era o meu.
— Um nome de mulher? — Por um lado confusa e por outro atazanada por seu instinto de repórter, ela franziu o cenho. - Você escreveu uma dezena de livros antes de A dívida do diabo, usando nome de mulher?
— Exato. Um dos problemas de escrever é que o nome pode projetar uma certa percepção em torno do autor. — Ele ofereceu a ela a última fatia de bacon. — Hunter Brown não servia para o tipo de coisa que eu fazia na época.
Lee deu um suspiro de frustração.
— Que tipo de coisa você fazia?
— Escrevia romances água-com-açúcar. Ele arremessou o cigarro no fogo.
— Escrevia... você?
Ele analisou o rosto incrédulo de Lee antes de recostar-se novamente. Estava acostumado com a crítica desse tipo de ficção e quase sempre, se divertia com ela.
— Você tem alguma objeção ao gênero como um todo, ou ao fato de eu escrever esse tipo de coisa?
— Eu não... — Confusa, ela desistiu de tentar pôr ordem em seus pensamentos. — O problema é que simplesmente não consigo imaginá-lo escrevendo histórias de amor do tipo viveram-felizes-para-sempre. Hunter, acabei de ler O grito silencioso. Deixei a porta do quarto trancada por uma semana. — Ela passou a mão pelo cabelo enquanto ele a observava com tranqüilidade. — Histórias de amor?
— A maioria dos romances tem algum tipo de relação com isso. Os de tipo água-com-açúcar apenas têm o amor como foco principal em vez de usá-lo como um artifício ou como um enredo secundário.
— Mas você não sentia que estava desperdiçando seu talento? — Lee conhecia a habilidade dele em prender o leitor desde a primeira página, desde a primeira sentença. — Eu entendo a questão de ter de colocar a comida na mesa, mas...
— Não — cortou. — Nunca escrevi por causa do dinheiro, Lenore, assim como o romance que você está escrevendo também não visa lucros financeiros. Quanto a desperdiçar meu talento, você não deveria olhar com desprezo para algo que não compreende.
— Sinto muito, não estou querendo parecer superior. Só estou... — Ela deu de ombros, completamente desamparada. — Só estou surpresa. Não, estou perplexa. Vejo esses livrinhos de bolso por toda a parte, mas...
— Jamais passou por sua cabeça ler algum deles — finalizou ele. — Você deveria. Eles são bons para você.
— Acho que sim, por pura diversão.
Ele gostou da maneira com a qual ela dissera aquilo, como se fosse algo para ser curtido em segredo, como um pirulito.
— Se um romance não diverte, não é um romance, só nos faz perder tempo. Imagino que você tenha lido Jane Eyre, Rebecca, E o vento levou, Ivanhoé.
— Sim, claro.
— Romances água-com-açúcar. Vários dos mesmos ingredientes estão presentes naqueles livrinhos coloridos.
Ele estava falando com muita seriedade. Naquele momento, Lee estaria disposta a deixar de lado metade dos livros de sua biblioteca particular para ter a oportunidade de ler uma história de Laura Miles.
— Hunter, quero colocar isso no artigo.
— Vá em frente.
Sua boca já estava aberta para a discussão esperada.
— Posso mesmo? Você não se importa?
— Por que deveria? Não tenho nenhuma vergonha do trabalho que fiz como Laura Miles. Na verdade... — Ele deu um sorriso, relembrando. — Gosto muito da maioria deles.
— Então por que... — Ela balançou a cabeça enquanto, inadvertidamente, comia um pedaço do bacon. — Droga, Hunter,por que nunca disse isso antes? Laura Miles é um segredo tão profundo e obscuro quanto tudo o mais em sua vida.
— Nunca encontrei antes alguma repórter para quem pudesse contar. — Ele se levantou, esticou-se e admirou a amplitude azul do céu. Assim como jamais encontrara antes alguma mulher com quem pudesse se casar. Hunter estava começando a imaginar se uma não tinha tudo a ver com a outra. — Não complique coisas simples, Lenore — disse ele, pensando alto. — Elas mesmas já se complicam naturalmente.
Ela colocou o prato de lado e se posicionou à frente dele.
— Então só mais uma pergunta.
Ele olhou para ela. Naquela manhã ela não se importara de permanecer com o cabelo desalinhado e sem maquiagem, ao contrário de todos os outros dias da viagem. Por um momento, imaginou se a repórter não estava ansiosa demais com o artigo ou se a mulher se achava envolvida demais com o homem. Gostaria de saber.
— Tudo bem — concordou ele —, mais uma pergunta.
— Por que eu?
Como poderia responder o que nem ele sabia? Como poderia responder à pergunta que ele próprio hesitava em fazer a si próprio? Pegou a cabeça dela e a beijou. Um beijo demorado, duradouro e novo, muito novo.
— Vejo algo em você — murmurou Hunter, segurando seu rosto de modo a analisá-la. — Quero algo de você. Mas ainda não sei o que vejo nem o que quero, e talvez jamais venha a saber. Essa resposta é suficiente?
Lee colocou suas mãos nos pulsos de Hunter e sentiu a vida pulsar através deles. Era quase possível acreditar que sua vida também estivesse pulsando neles.
— Tem de ser.
De pé em cima do penhasco, Lee admirava o canyon, os picos e os cumes, as ricas colinas vermelhas e os paredões escarpados. Parecia um filme. Pessoas, criaturas, histórias. Ela gostava de tudo aquilo mais ainda porque não havia percebido que poderia encontrá-los ali.
Jamais imaginara que a natureza pudesse ser tão exigente ou tão sedutora. Desconhecendo isso, como poderia ter imaginado que se sentiria em casa tão distante do mundo que conhecia e da vida que idealizara para si?
Talvez fosse o mistério, o pavor — os séculos de trabalho que a natureza levara para criar a beleza das rochas, os séculos que ainda tinha para trabalhar. A natureza moldara a paisagem, esculpira e criara sem dar nenhuma chance. Talvez tivesse sido a quietude que aprendera a ouvir, a quietude que ela aprendera a ouvir mais do que ela jamais ouvira som algum antes. Ou talvez tivesse sido o homem que descobrira no canyon, que estava lenta e inevitavelmente dominando cada aspecto de sua vida de uma maneira que não diferia muito da maneira como o vento, a água e o sol dominavam a forma de tudo ao seu redor. Ele também não daria nenhuma chance.
Eram amantes há apenas alguns dias, mas mesmo assim ele parecia saber onde ficavam as suas forças, as suas fraquezas. Ela aprendera sobre ele, passo a passo, sempre maravilhada por perceber que cada nova descoberta surgia tão naturalmente, como se ela sempre tivesse sabido de tudo. Talvez a intensidade viesse da brevidade. Lee quase podia aceitar a teoria, exceto pelo caráter atemporal que o convívio deles tivera.
Em dois dias ela deixaria o canyon, e o homem, e voltaria a será Lee Radcliffe que moldara para si mesma ao longo dos anos. Voltaria ao ritmo de trabalho, escreveria o artigo e alcançaria outro degrau em sua carreira.
Que escolha haveria?, perguntou Lee a si mesma, ali em pé com o sol da tarde descendo sobre ela. Em Los Angeles sua vida tinha uma direção, um objetivo. Lá, tinha apenas uma meta: o sucesso. Aquela meta não parecia tão importante aqui e agora, onde somente ser, somente respirar já era suficiente. Mas este mundo não era o mundo onde ela viveria dia após dia. Mesmo se Hunter tivesse pedido, mesmo que ela quisesse, não conseguiria viver indefinidamente nesta existência sem horários e sem planejamento. Objetivo, imaginou ela. Qual seria seu objetivo aqui? Não poderia ficar sonhando para sempre à luz da fogueira.
Apenas dois dias. Fechou os olhos e disse a si mesma que tudo o que fizera e tudo o que vira ficariam para sempre gravados em sua memória. Por que o tempo restante tinha de ser tão curto? E o tempo à frente tão gigantesco?
— Tome aqui. — Hunter chegou e ficou ao lado dela, segurando um binóculo. — É sempre bom ver o mais longe possível.
Ela pegou o binóculo e riu, pelo jeito de ele dizer as coisas. A lente aproximou o canyon, que ficou abruptamente íntimo. Ela podia ver a água no riacho fazendo um barulho impossível de se ouvir daquela distância. Por que jamais notara como cada folha de árvore era tão singular? Podia ver outras pessoas que acampavam flanando perto de suas barracas ou se misturando com os turistas nas trilhas. Lee baixou o binóculo. Era muito invasivo.
— Você vai voltar ano que vem?
Ela queria poder levar consigo uma imagem dele ali, mirando a vastidão sem fim, rememorando.
— Se eu puder.
— Nada vai estar diferente — murmurou ela. Se ela voltasse, cinco, dez anos depois, o riacho ainda estaria serpenteando no mesmo lugar, as colinas continuariam de pé. Mas ela não podia voltar. Com esforço, espantou a melancolia e sorriu para ele. — Já deve estar quase na hora do almoço.
— Não dá para comer aqui. É quente demais. — Hunter enxugou o suor da testa. — Vamos descer e encontrar alguma sombra.
— Certo. — Ela podia ver a poeira que subia de suas botas à medida que caminhava. — Algum lugar perto do riacho. Olhou para a direita. — Vamos por aqui, Hunter. Ainda não caminhamos por ali.
Ele hesitou por um instante.
— Ótimo. — Segurou a mão dela e seguiram pela trilha escolhida.
Caminhar para baixo era sempre mais fácil do que para cima. Este era mais um fato inestimável que Lee gravara na memória ao longo das últimas duas semanas. E Hunter, apesar de estar segurando sua mão, não guiava nem tampouco ia na frente. Simplesmente seguia em frente. Como seguiria em frente daqui a 48 horas, pensou ela, e aumentou a passada para manter-se no mesmo ritmo dele.
— Vai começar seu novo livro assim que voltar para casa? Perguntas, pensou ele. Jamais conheceu uma pessoa com um estoque tão infinito de perguntas.
— Vou.
— Você às vezes fica com medo de sua criatividade acabar?
— Sempre.
Interessada na resposta, Lee parou por um momento.
— É mesmo? — Ela o imaginava como alguém que jamais sentisse medo de nada. — Eu pensava que quanto mais sucesso você adquiria, mais confiante ficava.
— O sucesso é uma divindade que nunca fica satisfeita.—Ela franziu o cenho, ligeiramente desconfortável com a descrição. — Sempre que encaro aquela primeira página em branco, imagino se vai ser possível começar, desenvolver e terminar.
— E como você faz?
Ele recomeçou a caminhar, o que a obrigou a acelerar o passo sob pena de ficar para trás.
— Conto a história. É tão simples e ao mesmo tempo tão dolorosamente complexo.
Assim era ele, pensou ela, simples e complexo. Lee refletia sobre suas palavras enquanto sentia a temperatura gradualmente mudar à medida que desciam.
Aquela parte do canyon parecia mais movimentada. Pensou até ter ouvido o motor de um carro, um som que não ouvia há dias. As árvores eram maiores, as sombras mais generosas. Que estranho, pensou ela, aqueles imensos e implacáveis paredões de rocha atrás dela, e uma pequena e aconchegante floresta à sua frente, Uma outra visão surreal? Então, olhando para baixo, enxergou algumas pequenas flores brancas. Pegou três e deixou o resto para alguma outra pessoa. Não viera atrás delas, lembrou-se ao coloca-las no cabelo, mas estava contente por tê-las encontrado.
— Como é que pode? — Ele se virou para vê-la encaixar a última flor no cabelo. O desejo por ela, por ela toda, cresceu tão rapidamente dentro dele que quase o deixou sem ar. Lenore. Ele não tinha nenhuma dificuldade em entender por que o personagem do poema de Poe chorara a perda dela até enlouquecer. — Você ficou mais linda ainda. Impossível. — Hunter tocou a ponta do dedo no rosto dela. Será que também ele ficaria louco chorando a perda dela?
O rosto dela, erguido na direção do sol, não necessitava de nada mais além da luminosidade de sua pele para torná-lo esplendoroso. Mas por quanto tempo, imaginou ele, por quanto tempo ainda ficaria ela contente de evitar o embelezamento artificial? Quanto tempo até que ela implorasse pela vida que idealizara para si mesma?
Lee não sorria porque os olhos dele não lhe permitiam. Ele a penetrava novamente com o olhar, à procura de algo... de algo. Ela não tinha certeza, mesmo se soubesse o que era, se poderia dar a resposta que ele queria. Em vez disso, fez o que Hunter fizera uma vez. Colocou as mãos nos ombros dele e o beijou. Com os olhos bem fechados, jogou a cabeça no peito dele.
Como poderia ela partir? Como não? Parecia não haver nenhuma direção na qual pudesse ir sem perder alguma coisa essencial.
— Não acredito em mágica — murmurou ela —, mas se acreditasse, diria que esse é um lugar mágico. Agora, de dia, é tranqüilo. Sonolento, até. Mas, à noite, o ar fica cheio de espíritos.
Ele a apertou mais ainda contra si, colocando o pescoço em cima da sua cabeça. Será que ela repara o quanto é romântica?, imaginou ele. Ou o quanto luta para não ser? Uma semana atrás, talvez ela pudesse ter tido esse pensamento, mas jamais o expressaria. Daqui a uma semana... Hunter reprimiu um suspiro. Daqui a uma semana, ela não daria mais a mínima para a mágica.
— Quero fazer amor com você bem aqui — disse ele, tranqüilamente —, com a luz do sol filtrada pelas folhas em direção a sua pele. À noite, imediatamente antes do orvalho aparecer. De madrugada, quando a luz surge entre rosada e cinza.
Emocionada, arrebatada pelo amor, ela sorriu para ele.
— E à meia-noite, quando a lua estiver bem alta e tudo passa a ser possível.
— Tudo é sempre possível. — Ele beijou primeiro uma bochecha, depois a outra. — Basta acreditar nisso.
Ela riu, um pouco trémula.
— Você quase me faz acreditar nisso. Você me deixa com as pernas bambas.
Ele abriu um sorriso e a ergueu com firmeza.
— Assim é melhor?
Voltaria ela a sentir-se tão livre novamente? Lee enlaçou-lhe o pescoço e o beijou com toda a paixão que jorrava de dentro dela.
— É. E se você não me colocar no chão é capaz de eu querer que me carregue de volta para o acampamento.
O meio-sorriso apareceu-lhe no rosto.
— Afinal, decidiu que não está com fome?
— Como duvido muito que você tenha alguma coisa além de frutas secas e sementes de girassol naquela bolsa, não tenho nenhuma ilusão quanto ao almoço.
— Ainda tem alguns pedaços do bolo de chocolate aqui.
— Vamos comer.
Hunter a pôs no chão sem a menor cerimónia.
— Isso demonstra que o desejo básico das mulheres está centrado na comida.
— Só quero chocolate — discordou Lee. — Pode ficar com a minha parte de semente de girassol.
— Elas lhe fazem bem.
Ele enfiou a mão na bolsa e pegou alguns saquinhos de plástico.
— Eu agüento as passas — disse Lee, pouco entusiasmada —, mas dispenso as sementes.
Hunter deu de ombros e comeu duas de uma vez.
— Você vai ficar com fome antes do jantar.
— Fiquei com fome antes do jantar por duas semanas — rebateu ela e começou a procurar o pedaço de bolo na bolsa. — Não importa o quanto as sementes e nozes e os pequenos pedaços de damasco seco são bons para você, eles não substituem carne vermelha — achou um pequeno pedaço de bolo —, nem chocolate. Hunter a observou fechar os olhos de puro prazer enquanto se deliciava com o doce.
— Hedonista.
— Totalmente. — Ela abriu os olhos, sorrindo. — Gosto de blusas de seda, champanhe francês e lagosta com molho de manteiga. — Ela suspirou ao se recostar novamente, imaginando se Hunter estaria emocionalmente ligado ao último pedaço de bolo. — Eu aprecio tudo isso, especialmente após uma semana de trabalho, para justificar o gasto.
Ele compreendia aquilo, talvez até bem demais. Ela não era uma mulher que gostava de ser sustentada e nem ele era homem de acreditar que as pessoas devessem ter vantagens na vida. Mas que futuro poderia haver num relacionamento em que duas pessoas não têm condições de se aclimatar uma com o estilo de vida da outra? Ele jamais impusera seu estilo de vida a outra pessoa, nem permitiria que alguém o desviasse de seu próprio. E ainda assim, agora que ele sentia o tempo se esgotando, os dias se acabando, ele imaginava se seria tão simples retornar, sozinho, como sempre havia imaginado que aconteceria.
— Você gosta de viver na cidade? — perguntou ele.
— É claro. — Não era possível dizer para ele que ela odiava a idéia de retornar, sozinha, para o que ela sempre imaginara ser a situação perfeita. — Meu apartamento fica a vinte minutos da revista.
— Conveniente.
E prático, refletiu ele. Parecia que ela sempre tendia a escolher o prático, mesmo que tivesse fantasias. Ele abriu o cantil e bebeu. Quando passou para Lee, ela aceitou. Aprendera a fazer diversos ajustes.
— Suponho que você trabalhe em casa.
— Sim.
Ela tocou inadvertidamente numa das flores em seu cabelo.
— Isso requer disciplina. Creio que a maioria das pessoas necessita da estrutura de um escritório distante de casa para ter êxito em alguma coisa.
— Você não precisaria.
Ela olhou para ele, desejando que pudessem conversar sobre coisas mais pessoais sem desencadear aquela tranqüila sensação de pânico. Melhor conversar sobre o trabalho ou sobre a meteorologia, ou sobre nada.
— Não?
— Você se controlaria muito mais do que qualquer supervisora ou relógio de ponto. — Ele mordiscou uma maçã. — Se focasse nisso, você terminaria aquele manuscrito em um mês.
Ela moveu os ombros freneticamente.
— Se trabalhasse oito horas por dia, sem mais nenhuma outra obrigação.
— O romance é sua única obrigação.
Ela conteve um suspiro. Não queria discutir e nem debater, não quando tinham tão pouco tempo pela frente para ficar juntos. Mas se não conversassem sobre o trabalho dela, talvez não pudesse impedir a si mesma de falar de seus sentimentos. Era um círculo sem fim.
— Hunter, você pode, como escritor, achar isso de um livro. Acho até que você é obrigado a pensar assim. Eu tenho uma profissão, uma carreira que demanda toneladas de horas e grande parte da minha atenção. Não posso simplesmente colocar isso entre parênteses enquanto especulo sobre minhas chances de ter um manuscrito publicado.
— Você tem medo de se arriscar.
Foi um golpe direto em sua área mais sensível, Ambos sabiam que a raiva dela era uma defesa.
— E se tiver? Trabalhei duro para chegar onde estou na revista. Tudo que fiz lá, e toda vantagem que recebi, ganhei por meus próprios méritos. Já me arrisquei bastante.
— Não se casando com Jonathan Willoby?
Fúria irrompeu rapidamente em seus olhos, o que o fez se interessar. Então aquilo ainda era uma questão dolorosa, percebeu Hunter. Bem dolorosa.
—Você se diverte com isso? — perguntou Lee. — O fato de eu não ter cumprido um acordo não-verbalizado excita o seu senso de humor?
— Não exatamente. Mas me intriga o fato de ter renunciado a algo não verbalizado.
Pela maneira meticulosa com a qual ela tampava o cantil, ele mediu o quanto estava zangada. A voz estava fria e distante, como não a ouvia há dias.
— Minha família mantém relacionamento pessoal e profissional com os Willobys há muitos anos. O casamento era esperado de mim, e eu sabia disso desde que tinha dezesseis anos.
Hunter recostou-se numa árvore até encontrar uma posição confortável.
—E, nessa idade, não considerava esse tipo de expectativa antiquada?
— Como você poderia entender isso? — Espumando de raiva, ela se levantou. Os nervos que estiveram inoperantes por dias começaram a borbulhar novamente. Hunter quase os podia sentir renascendo nela. — Você disse que seu pai era um sonhador que ganhava a vida como vendedor. Meu pai era um realista que ganhava a vida participando de sociedades e delegando poderes. Ele tinha uma sociedade com os Willobys. Ele me delegou a missão de completar a fusão social e profissional fazendo com que eu me casasse com Jonathan. — Mesmo agora, o respeitável e frio planejamento lhe dava uma pontada de desgosto.— Jonathan era atraente, inteligente, e já tinha uma carreira de sucesso. Meu pai jamais imaginou a possibilidade de eu não aceitar o casamento.
— Mas você sim — apontou Hunter. — Por que continua insistindo em pagar por algo que era seu direito?
Lee foi na direção dele. Não lhe era mais possível responder com frieza, rebater com distanciamento.
— Você sabe o quanto me custa não fazer o que era esperado de mim? Tudo que eu fiz, durante toda a minha vida, foi feito essencialmente para a aprovação deles.
— E então resolveu fazer algo para si mesma. — Lentamente ele se levantou e a encarou. — Sua carreira é para você mesma, Lenore, ou continua tentando conseguir a aprovação deles?
Ele não tinha direito nem de perguntar aquilo nem de obrigá-la a procurar uma resposta. Abatida, virou-lhe as costas.
—- Não quero discutir isso com você. Não é da sua conta.
— Não é? — Subitamente tão zangado quanto ela, Hunter voltou-se novamente para ela. — Não é? — repetiu.
Suas mãos seguraram os braços dele — em protesto ou em busca de apoio, ela não tinha certeza. Agora, pensou, agora talvez tivesse atingido o limite onde deveria parar, independente da instabilidade do terreno.
— Minha vida e a maneira pela qual vivo só dizem respeito a mim, Hunter.
— Não é mais assim.
— Você está sendo ridículo. - Ela jogou a cabeça para trás, de modo a fitá-lo nos olhos. — Essa discussão não tem qualquer propósito.
Alguma coisa estava crescendo tão rapidamente dentro de Hunter que ele nem teve a chance de combater ou racionalizar.
— Você está errada.
Ela começou a tremer sem saber por quê. Junto com a raiva,surgiu o pânico que reconhecia tão bem.
— Não sei o que você quer.
—Você. — Antes que pudesse identificar sua própria reação, já estava colada a ele. — Você toda.
A boca de Hunter atacou a dela sem a delicada paciência que lhe era usual. Lee sentiu uma pontada de medo, que foi quase imediatamente sufocada por um desejo galopante.
Ele a fizera sentir-se apaixonada antes, mas não tão rapidamente. O desejo já invadira seu corpo antes, mas não de maneira tão dolorosa. Tudo era como sempre foi quando ele a tocava e, ainda assim, tudo era tão diferente.
Seria raiva dele o que estava sentindo? Frustração? Paixão? Só sabia que o controle que ele dominava com tanta maestria, não existia mais. Algo atingira seu limite dentro dele, alguma coisa mais primitiva do que o que ele deixara transparecer antes. Dessa vez, ambos sabiam que a coisa poderia se soltar. O sangue dela borbulhava com a excitação descontrolada da antecipação.
Em segundos já estavam deitados no chão, imersos no aroma das folhas aquecidas pelo sol e da água refrescante. Sentiu a barba arranhar-lhe o rosto antes que ele enterrasse a língua em sua garganta. O que quer que o estava levando àquilo só lhe permitia juntar-se a ele até o fim que os esperava.
Hunter não questionava seu próprio desespero. Não podia. Se ela relutava em compartilhar certos detalhes pessoais com ele, seu corpo, no entanto, compartilhava inteiramente. Ele queria mais, tudo, embora dissesse a si mesmo que não era razoável. Mesmo naquele instante, sentindo o corpo dela se derretendo por ele, sabia que não ficaria satisfeito. Quando ela compartilharia os sentimentos com ele de modo tão livre quanto seu corpo? Pela primeira vez em sua vida, ele queria demais.
Pelejava no limite da razão, resistindo às sucessivas ondas de desejo que o acometiam. Esta não era a hora, nem o lugar e nem a maneira. Em sua mente, ele sabia disso, mas a emoção lutava para traí-lo. Ainda segurando-a contra si, enterrou a cabeça em seu cabelo e esperou o desvario passar.
Aturdida tanto com o rompante de paixão de Hunter com sua reação não questionadora, Lee ficou parada. Instintivamente, passou a mão nas costas dele para tranqüilizá-lo. Ela oconhecia suficientemente bem para entender que seu temperamento era raramente imprudente. Agora sabia o motivo.
Hunter ergueu a cabeça para olhá-la e percebeu num acesso de desgosto que os olhos dela estavam novamente desconfiados. Asflores haviam caído do cabelo. Ele pegou uma delas e colocou namão dela.
— Você é frágil demais para ser tratada assim de modo tão desajeitado.
Os olhos dele eram tão intensos, tão nebulosos, que lhe era impossível voltar a relaxar. Seus dedos subiam e desciam nas costas dele. Em alguma parte de seu cérebro encontrava-se um alerta que lhe dizia que ele desejava mais do que ela havia previsto, mais do que sabia como dar. Vá com calma, Lee ordenou a si mesma e,deliberadamente parou o movimento dos dedos. Ela sorriu, embora seus olhos permanecessem cautelosos.
— Eu deveria ter esperado até que a gente estivesse de volta à barraca para deixá-lo zangado.
Hunter compreendeu o que ela estava tentando fazer e ergueu uma sobrancelha. Nas vozes dos dois podia-se identificar uma tensão que ambos fingiam não perceber.
— Podemos voltar agora. Posso sacudir você um pouco mais. Com o pânico desaparecendo, ela lhe lançou um olhar suave.
— Sou mais forte do que aparento.
— É mesmo? — Ele também sorriu para ela. Tinha as longas horas da noite para pensar sobre o acontecido e sobre o que faria a respeito. — Mostre-me.
Mais confiante do que deveria, Lee o empurrou com a intenção de afastá-lo. Ele não se moveu. A aparência de quem estava se divertindo que via no rosto dele a fez intensificar os esforços. Sem fôlego, sem êxito, deitou-se e franziu o cenho para ele.
— Você é mais pesado do que parece — reclamou ela. — Deve ter sido por causa de todas aquelas sementes de girassol.
— Seus músculos estão cheios de chocolate — rebateu ele.
— Só comi um pedacinho.
— Hoje. Pelas minhas contas, você comeu tudo.
— Pouco importa. — Ela franziu a testa com elegância. O nervosismo no estômago ainda permanecia. — Se você quer falar de hábitos pouco saudáveis, você é que fuma demais.
Ele deu de ombros, aceitando a verdade.
— Todo mundo tem o direito de ter um vício.
O sorrisinho dela tornou-se maldoso, depois picante.
— Esse é seu único?
Se o plano dela era tornar sua boca irresistível, conseguiu. Hunter se abaixou para abocanhar aquela doçura.
— Nunca fui de achar que prazeres são vícios.
Ela suspirou e passou os braços em volta do pescoço dele. Não tinham tempo suficiente para desperdiçar discutindo ou até mesmo pensando.
— Por que não voltamos para a barraca e você me mostra o que quer dizer com isso?
Ele riu e passou a beijá-la nos ombros. O riso dela se misturou com o dele até que ela enregelou subitamente ao olhar para o que estava parado à frente deles.
O medo a dominou. Não conseguiria nem gritar. Suas unhas curtas penetraram nas costas de Hunter.
— O que... — Ele ergueu a cabeça. O rosto dela estava pálido e imóvel. Embora o corpo estivesse rígido embaixo dele, pôde perceber que as mãos que penetravam em suas costas estavam vivas de pavor. Com os músculos tensos, ele se virou para olhar na direção do que ela estava vendo. — Droga. — A palavra mal saíra de sua boca quando 40 kg de músculo e pêlo partiu para cima dele, Dessa vez o grito de Lee não foi reprimido.
Adrenalina nascida do pânico deu a ela a força para fazer com que os três rolassem para a beira da ribanceira. Enquanto atacava cegamente, Lee ouviu Hunter dar uma ordem incisiva seguida de um lamento.
— Lenore. — Os ombros foram seguros antes que ela pudesse ficar de pé. A única coisa que passava pela cabeça dela naquele instante era achar uma arma para se defenderem. — Está tudo bem. — Sem lhe dar escolha, Hunter a puxou para si. — Está tudo bem, eu prometo. Ele não vai lhe fazer mal.
— Meu Deus, Hunter! É um lobo!
Todos os pesadelos que ela lera ou ouvira a respeito de dentes e garras surgiram de imediato em sua cabeça. Abraçada a ele para protegê-lo e também proteger a si mesma, Lee virou a cabeça, Olhos prateados num manto prateado olhavam para ela.
— Não.—Ele sentiu a sensação do medo recente pululando dentro dela e continuou a tranqüilizá-la. — Ele é apenas meio-lobo.
— Temos de fazer alguma coisa. — Deveriam sair correndo! Deveriam ficar sentados e totalmente imóveis? — Ele atacou...
— Saudou — corrigiu Hunter. — Confie em mim, Lenore. Ele não é feroz. — Perturbado e resignado, Hunter levantou a mão.
— Ei, Santanas, vem cá.
Um pouco constrangido por ter perdido o controle, o cão veio ao encontro dele com a cabeça baixa. Boquiaberta, Lee observou Hunter acariciar o espesso pêlo prateado.
— Normalmente ele se comporta bem melhor — disse Hunter, suavemente. — Mas não me vê há quase duas semanas.
— Não vê você? — Ela colou mais ainda em Hunter. — Mas..,
— A lógica começou a se impor sobre o pânico assim que ela viu o cachorro lamber a mão de Hunter. — Você o chamou pelo nome — disse ela, trêmula. — Do que você o chamou?
Antes que Hunter pudesse responder, ouviu-se um farfalhar nas árvores atrás deles. Lee já estava arrumando fôlego para gritar novamente quando outra voz, alta e jovem, gritou de lá.
— Santanas! Volta aqui agora. Vou me meter numa encrenca.
— Com certeza — resmungou Hunter entre dentes. Lee voltou-se para fitar Hunter e perguntar:
— O que diabo está acontecendo aqui?
— Uma reunião — disse ele, simplesmente.
Confusa e com o coração ainda disparado, Lee observou a garota sair das árvores. O rabo do cachorro começou a bater no chão.
— Santanas! — Ela parou, as tranças escuras balançando para cima e para baixo. Ela sorria e mostrava as tranças de maneira desinibida. — Opa! — A rápida exclamação foi interrompida no momento em que Lee recebia um olhar longo e intenso, mas assustadoramente familiar. A garota meteu as mãos nos bolsos da bermuda. Lee arrastou o tênis gasto pelo chão. — Bem, oi.
— Os olhos dela passaram para Hunter alguns segundos antes de focalizar novamente Lee. — Imagino que vocês devem estar pensando o que estou fazendo aqui.
— Vamos tratar disso mais tarde — disse Hunter, num tom que as duas mulheres reconheceram como uma irritação masculina básica.
— Hunter... — Lee aproximou-se ainda mais. Traços de raiva e ansiedade tentavam compreender a confusão. Ela não conseguia desviar o olhar daqueles olhos escuros da garota que a encarava.
— O que está acontecendo aqui?
—Aparentemente, uma lição de boas maneiras — respondeu ele, de pronto. — Lenore, a criatura que neste momento está cheirando sua mão é Santanas, meu cachorro. — Com um gesto dele, o grande e magro animal se sentou e levantou uma pata de modo amigável. Aturdida, Lee pegou a pata enquanto se virava para olhar o dono do cachorro. Ela viu o olhar de Hunter chegar até ela num misto de ironia e orgulho. — A garota que a está encarando de modo tão grosseiro é Sarah, minha filha.
Filha... Sarah... Lee virou a cabeça para mirar os incisivos e escuros olhos que eram uma cópia dos de Hunter. Sim, eram uma cópia. Foi como um golpe de ar. Ele tinha uma filha pequena? Esta garota linda e delgada, com uma boca encantadora e tranças presas por tiras de borracha de cores diferentes era a filha de Hunter? Eram tantas emoções contraditórias pulsando em seu interior que ela decidiu não dizer nada. Nada.
— Sarah. — A voz de Hunter penetrou o silêncio. — Essa é a srta. Radcliffe.
— Claro, eu sei, a repórter. Oi.
Ainda sentada no chão com o cachorro agora cheirando seu ombro, Lee sentiu-se uma completa idiota.
— Olá.
Ela esperava que a palavra não fosse tão ridiculamente formal como lhe parecia.
— Papai disse que eu não devia chamá-la de jeitosa porque jeitosa era mais para uma bandeja de frutas. — Sarah não inclinou a cabeça, como outras pessoas teriam feito, para analisá-la de um novo ângulo, mas Lee tinha a impressão de estar sendo medida e dissecada como um corpo sem vida. — Gosto do seu cabelo — declarou Sarah. — É a cor verdadeira?
— Definitivamente uma lição de boas maneiras — implicou Hunter, divertindo-se muito mais do que irritando-se. — Sinto muito, mas Sarah não passa de uma pirralha.
— Ele sempre diz isso. — Sarah movimentou os ombros finos e expressivos. — Mas não fala a sério.
— Até o presente momento. — Ele acariciava o pêlo do cachorro imaginando como lidar com a situação. Lee continuava em silêncio, e os olhos de Sarah eram uma curiosidade só. — Leve o Santanas de volta para casa. Imagino que Bonnie esteja lá.
— Está. A gente voltou ontem porque lembrei que tinha uma partida de futebol e ela teve uma inspiração e não pôde aproveitála em Phoenix com todas as crianças correndo de um lado para outro como um bando de macacos.
— Entendo. — E embora entendesse, perfeitamente, Lee havia sido deixada patinhando no escuro.—Vá indo, então. A gente vai logo atrás.
— Tudo bem. Vem, Santanas! — E então lançou um rápido sorriso na direção de Lee. — Ele parece bem feroz, mas não morde não.
A garota disparou no rumo de casa e Lee ficou imaginando se ela falara do cachorro ou do pai. Quando voltou a ficar sozinha com Hunter, Lee permaneceu estática e silenciosa.
— Peço desculpas pela falta de educação de minha família, se é o que você deseja.
Família. A palavra a arrebatou. Uma dose de realidade que a retirou bruscamente do sonho. Lee se levantou e limpou meticulosamente a calça jeans.
— Não há necessidade. — A voz dela estava calma, quase fria. Seus músculos estavam rígidos.—Já que o jogo acabou, eu gostaria que você me levasse até Sedona para que eu arranje um transporte até Los Angeles
— Jogo? — Com destreza, ele se levantou rapidamente, pegou na mão dela e interrompeu o nervosismo que a acometia. Era um gesto que já se tornara tão habitual que nenhum dos dois reparou. — Não há nenhum jogo, Lenore.
— Oh, você jogou muito bem. — A dor que ela não permitiria em sua voz estava bastante evidente nos olhos. Sua mão permaneceu fria e rígida na dele. — Tão bem, na verdade, que até esqueci completamente que estávamos jogando.
A paciência o abandonou abruptamente, e sem aviso. Raiva ele podia administrar, com mais raiva ou com humor. Mas mágoa o deixava sem defesa, e sem ataque.
— Não seja idiota. Se houve algum jogo, ele acabou algumas noites atrás, na barraca.
— Acabou. — Lágrimas surgiram em seus olhos, surpreendendo-a. Com fúria e com asco de si mesma, se livrou delas, mas não antes de Hunter perceber. — Não, jamais acabou. Você é um excelente estrategista, Hunter. Você parecia estar sendo tão sincero comigo que nem me passou pela cabeça que você pudesse estar escondendo alguma coisa. —Ela tirou sua mão da dele, ansiando pelo luxo de dissolver naquelas lágrimas quentes e purificadoras. — Como é que você pôde? — perguntou ela. — Como é que pôde me tocar daquela maneira e mentir?
— Nunca menti para você.
A voz dele estava tão calma quanto a dela, os olhos igualmente apaixonados.
—Você tem uma filha. — Alguma coisa estalou dentro dela, a ponto de precisar apertar as mãos bem juntas para evitar destroçá-las. —Você tem uma filha quase adolescente e jamais mencionou isso. Você me disse que nunca havia se casado.
— Nunca me casei — disse ele, direto, e ficou à espera das inevitáveis perguntas.
Elas surgiram na cabeça, mas Lee achou que não podia fazê-las. Ela não queria saber. Se ela estava a ponto de tirá-lo completamente e imediatamente de sua vida, não podia fazer as perguntas.
— Você disse o nome dela uma vez e, quando perguntei, evitou responder.
— Quem perguntou, você ou a repórter?
Ela empalideceu, e o passo que deu para se afastar dele disse mais do que uma dezena de palavras.
— Se essa foi uma pergunta injusta — disse ele, sentindo que estava sendo cuidadoso —, me desculpe.
Lee reprimiu uma resposta amarga. Ele acabara de dizer tudo.
— Quero voltar para Sedona. Vai me levar ou eu mesma preciso arrumar um carro?
— Pare com isso. — Ele apertou-lhe os ombros antes que ela pudesse se afastar ainda mais.—Você fez parte da minha vida por alguns dias; Sarah faz parte de minha vida há dez anos. Eu não me arrisco com ela. — Ela via a fúria, que ele tentava combater, aparecer e desaparecer nos olhos dele. — Ela é assunto privado, entende? E continua privado. Não quero que a infância dela seja perturbada por fotógrafos perseguindo-a em partidas de futebol ou se pendurando em árvores em piqueniques da escola. Sara não é um item para as páginas fúteis de nenhuma revista.
— É isso o que você pensa de mim? — sussurrou ela.—Nós não fomos além disso? — Ela engoliu uma mistura de dor e deslealdade. — Sua filha não será mencionada em nenhum artigo que eu venha a escrever. Dou minha palavra de honra. Agora deixe-me ir.
Ela não estava falando apenas das mãos que a seguravam ali, e ambos sabiam disso. Ele sentiu uma onda de pânico que jamais teria previsto e experimentou uma sensação de culpa que o deixou desconcertado. Frustrado, ele olhou para ela. Jamais havia percebido que poderia vir a ser uma complicação.
— Não posso. — Foi dito com tanta simplicidade que o corpo dela gelou. — Preciso que você compreenda, e preciso de tempo para isso.
— Você teve quase duas semanas para me fazer compreender, Hunter.
— Droga! Você chegou aqui como repórter. — Ele fez uma pausa, como se estivesse esperando que confirmasse ou negasse, mas Lee não disse nada. — O que aconteceu entre nós não foi planejado nem previsto por nenhum de nós. Quero que você me acompanhe até minha casa.
De alguma forma, ela conseguiu fitá-lo nos olhos.
— Continuo sendo uma repórter.
— Ainda temos dois dias, segundo nosso acordo. — A voz dele estava mais suave, as mãos mais delicadas. — Lenore, passe esses dois dias comigo, em minha casa, com minha filha.
— Você não tem problema em pedir coisa alguma, tem?
— Não. — Ela ainda se mantinha afastada dele. Não importava o quanto ele queria, Hunter sabia que ainda não era o momento certo de trazê-la mais para perto. — É importante para mim que você entenda. Me dê dois dias.
Ela queria dizer não. Queria acreditar que podia negar-lhe até mesmo aquilo e se virar e ir embora sem arrependimento. Mas ela se arrependeria, pensou, se voltasse para Los Angeles sem levar o que ainda lhe restava.
— Não prometo entender, mas vou ficar mais dois dias. Embora ela estivesse relutante, ele pegou em suas mãos e beijou.
— Obrigado. É importante para mim.
— Não me agradeça — murmurou ela. A raiva arrefecera tão naturalmente que ela nem se lembrava mais.—As coisas mudaram.
— As coisas mudaram há alguns dias. — Ainda segurando-lhe a mão, Hunter a conduziu na mesma direção que Sarah. — Depois volto para pegar as coisas.
Agora que o primeiro choque passara, o segundo acabava de surgir.
— Mas então você mora aqui no canyon.
— É isso aí.
— Quer dizer que você tem uma casa com água quente e uma cama normal, mas preferiu passar duas semanas numa barraca?
— Isso me relaxa.
— Mas isso é demais — resmungou ela.—Você me deixou tomando banho com água quase fria e me fez acordar com o corpo doendo sabendo que eu daria uma semana do meu salário por uma banheira com água quente.
— Eleva a moral — disse ele, mais confortável com a irritação dela.
— Uma ova. Você fez isso de propósito. — Ela parou e se virou para ele, com o sol salpicando as árvores ao redor. — Fez tudo isso de propósito só para ver até quando eu ia agüentar.
— Você esteve admirável. — Ele deu um sorriso sarcástico.— Confesso que para mim você não agüentava nem uma semana, quanto mais duas.
— Seu filho da...
— Não fique irritada — disse ele —, você pode tomar quantos banhos quiser nos próximos dois dias. — Ele a abraçou amigavelmente antes que ela pudesse evitar. E ele teria tempo, pensou, para explicar tudo sobre Sarah. Tempo, esperava ele, para fazê-la entender. — Vou até cuidar pessoalmente para que tenha aquela carne de boi que você tanto queria.
A fúria ressurgiu. O controle ruiu.
— Nem pense em ficar me protegendo.
— Pode deixar. Você não é uma mulher que possa ser protegida por homem nenhum. — Embora ela não acreditasse na resposta dele, a voz era branda e sincera e ele não estava rindo. — Estou gostando de você, e acho também que estou gostando da confusão que virou o plano que bolei. Pode acreditar em mim, não era minha intenção que você descobrisse que eu morava perto do acampamento da maneira como você descobriu.
— E como queria que eu descobrisse?
— Quando eu lhe oferecesse um tranqüilo jantar à luz de velas na nossa última noite. Tinha esperança que você entenderia o... bem, o humor da situação.
— Você teria se desapontado — disse ela, com firmeza, e depois avistou a casa escondida nas árvores.
Era menor do que ela imaginara, mas as enormes áreas envidraçadas no meio das árvores faziam com que ela parecesse ocupar um maior espaço do terreno. Lembrava-lhe casas de boneca e contos de fada, embora ela não soubesse dizer por quê. Casas de boneca eram arrumadas e formais e revestidas de laços e ornamentos. A casa de Hunter era formada de ângulos estranhos e cumes surpreendentes. Uma varanda percorria a frente, onde o telhado arqueava-se no alto. Plantas podiam ser vistas ao longo da balaustrada — gerânios vermelhos em vasos verdes. O telhado descaía uma vez mais para depois se estabilizar por sobre um paralelogramo com janelas do chão até o teto. No pátio que se projetava dele, uma cadeira branca de vime estava virada para baixo perto de uma bola de futebol usada.
As árvores se fechavam em torno da casa. Fechavam, pensou Lee. Protegiam, abrigavam, escondiam. Era como uma casa de uma peça de teatro, ou... Lee parou, estreitou os olhos e a analisou novamente.
— Essa é a casa de Jonas Thorpe em O grito silencioso. Hunter sorriu, bastante satisfeito por ela ter identificado tão rapidamente.
— Mais ou menos. Eu queria colocá-lo em isolamento, a quilômetros de distância do que poderia ser normalmente considerado civilizado, mas que era, na realidade, o único lugar seguro que restava.
— É assim que você a vê?—imaginou ela em voz alta.—Como o único lugar seguro que resta?
— Quase sempre. — Então um grito, que Lee, após um rápido momento de susto, identificou como uma gargalhada, rompeu o silêncio. Foi seguido por um acesso de latidos excitados e uma voz rouca de mulher. — Mas há outras ocasiões — murmurou Hunter e levou Lee até a porta.
Assim que ele a abriu, Sarah apareceu aos pulos. Incerta quanto aos seus próprios sentimentos, Lee observou a garota dar um forte abraço no pai. Ela viu Hunter passar a mão pelo cabelo curto no alto da cabeça de Sarah.
—Ah, papai, é tão engraçado! Tia Bonnie estava fazendo uma pulseira de massa gelatinosa e Santanas veio e comeu, ou mastigou, sei lá, até que achou que o gosto era horrível.
— Tenho certeza de que Bonnie pensa que se trata de uma revolta.
Os olhos dela, tão parecidos com os do pai, se iluminaram num prazer maldoso que deixaria uma experiente professora de quinta série nervosa.
— Ela disse que esse tipo de coisa ela esperava dos críticos de arte e não de um cachorro meio-lobo. Disse que ia fazer chá para Lenore, mas só que não tem muito biscoito porque a gente comeu quase tudo ontem. E ela disse...
— Não importa, a gente vai descobrir.
Ele deu um passo para trás a fim de que Lee pudesse entrar na casa antes dele. Ela hesitou por um instante, imaginando no que exatamente estaria ela entrando, e os olhos dele se iluminaram naquele mesmo prazer maldoso que o da filha. Os dois formavam um par e tanto, decidiu Lee, e entrou.
Ela não esperara nada tão, bem... normal na casa de Hunter Brown. O salão estava arejado e recebia o leve sol vespertino. Alegre. Sim, deu-se conta Lee, essa era exatamente a palavra que lhe vinha à cabeça. Nenhum canto sombrio ou portas trancadas. Havia flores selvagens num vaso esmaltado e almofadas macias no sofá.
— Você esperava encontrar vassouras de bruxas e um caixão acetinado? — perguntou ele no ouvido dela.
Perturbada, ela se afastou dele.
— É claro que não. Acho que eu não imaginava que você pudesse ter um espaço tão... civilizado.
Ele arqueou a sobrancelha quando ouviu a palavra.
— Eu sou civilizado.
Lee olhou para ele, para o rosto que era metade grosseiro, metade aristocrático. Por um lado, talvez, refletiu ela. Mas somente por um.
—Acho que tia Bonnie já deu um jeito na bagunça da cozinha. — Sarah mantinha um braço em volta do pai enquanto fazia um outro exame detalhado em Lee. — Ela quer conhecê-la porque papai quase nunca se encontra com mulher nenhuma e nunca fala com repórteres. O que quer dizer que deve ser especial por ele ter consentido em falar com você.
Enquanto ela falava, não desgrudava os olhos de Lee. Tinha apenas dez anos, mas já pressentira que havia algo entre o pai e aquela mulher de olhos azuis e um cabelo lindo. O que ainda não sabia era como estava se sentindo com relação a isso. A exemplo de seu pai, Sarah decidiu esperar para ver.
Igualmente incerta com relação aos próprios sentimentos, Lee foi com eles até a cozinha. Ela teve a impressão de ver paredes ensolaradas, remates brancos e confusão.
— Hunter, se você vai manter um lobo dentro de casa, poderia pelo menos ensiná-lo a apreciar arte. Oi, eu sou Bonnie.
Lee viu uma mulher alta e magra com cabelos bem escuros mesclados com fios louros caindo nos ombros. Ela usava uma camiseta lilás com detalhes rosa sobre uma bermuda jeans tão surrada quanto a da sobrinha. As unhas de seus pés descalços estavam pintadas de rosa. Ao analisar seu fino rosto de modelo, Lee não pôde ter certeza se ela era alguns anos mais velha do que Hunter ou se era alguns anos mais jovem. Estendeu automaticamente a mão para apertar a de Bonnie.
— Como vai?
— Estaria melhor se Santanas não tivesse tentado transformar em lanche minha última criação. — Ela ergueu um semicírculo marrom-dourado com as terminações esfarrapadas. — Sorte dele a idéia ter sido horrível. Mas sente-se. — Apontou para a mesa cheia de tigelas e caixas de chá e passou a mão para retirar o pó.
— Estou fazendo chá.
— Você não ligou a chaleira — apontou Sarah e acendeu ela mesma.
— Hunter, essa menina está sempre atrás de detalhes. Estou ficando preocupada com ela.
Hunter deu de ombros, aceitando a colocação, e pegou o que parecia uma rosquinha e poderia ser, com muita imaginação, um brinco.
— Você está achando ouro e prata tradicional demais para seu trabalho hoje em dia?
— Pensei na possibilidade de inaugurar uma nova tendência.
— Quando Bonnie sorriu, ficou esplêndida num piscar de olhos.
— De qualquer maneira, foi um fracasso de pouca importância. Provavelmente vai lhe custar menos de três dólares pela farinha. Sente-se — repetiu ela, começando a transportar a bagunça da mesa para o balcão atrás dela. — E aí, como é que foi o acampamento?
— Esclarecedor. Você não diria assim, Lenore?
— Educativo — corrigiu ela, mas pensou que a última meia hora tinha sido a mais educativa de todas.
— Então, você trabalha na Celebrity. — As longas tranças douradas de Bonnie balançavam quando ela andava, quase do mesmo jeito que as de Sarah. — Sou leitora fiel.
— Isso é porque ela escreveu alguns textos de divulgação constrangedoramente promissores.
— Textos de divulgação? — Lee olhava Bonnie passar as mãos cheias de farinha na bermuda.
Hunter sorriu enquanto observava sua irmã pegar uma lata de chá e colocar algumas outras na bancada da cozinha, fazendo um estardalhaço.
— Ela é conhecida no meio como B.B. Smithers.
O nome dizia alguma coisa. B.B. Smithers era considerada há anos a rainha das jóias de vanguarda. A elite, os ricaços e os antenados corriam atrás dela em busca de projetos exclusivos. Eles pagavam, e pagavam bem, pelo seu talento, por sua criatividade, e pelos pequenos B gravados nos produtos. Lee olhou para a mulher magra e um pouco deselegante como que maravilhada.
— Eu admiro o seu trabalho.
— Mas não usaria — replicou Bonnie com um sorriso, enquanto jogava caixas e latas para o lado. — Não, para você só serve o clássico. Que rosto fabuloso. Você quer limão no seu chá? A gente tem limão, Hunter?
— Provavelmente, não.
No mesmo ritmo, Bonnie colocou a chaleira na mesa para esperar a infusão do chá.
— Lenore, diga-me: como conseguiu convencer o eremita a sair de sua caverna?
— Deixando-o com raiva, acho.
— Talvez funcione. — Ela sentou-se ao lado de Lee, enquanto Sarah se colocou ao lado do pai. Os olhos dela eram mais suaves do que os do irmão, menos intensos, mas, pensou Lee, não menos perspicazes. — As duas semanas brincando de exploradora no canyon a inspiraram a escrever um artigo sobre ele?
— Sim. — Lee sorriu, porque havia humor nos olhos de Bonie. — E ainda adquiri uma crescente afeição por camas de molas e colchões.
O sorriso rápido e belo ressurgiu.
— Meu marido vai acampar com as crianças uma vez por ano, É quando vou dar um giro na Europa a trabalho. Quando voltamos para casa, nós dois sentimos que realizamos diversos pequenos milagres.
— Acampar não é tão ruim assim — comentou Sarah, em defesa do pai.
— Você acha? — Ele deu um tapinha no traseiro dela e trouxe-a para mais perto de si. — Então por que você sempre tem desejo consumista de visitar Bonnie em Phoenix sempre que começo a arrumar o equipamento?
Ela deu um risinho e o abraçou.
— Deve ser coincidência — disse num tom seco bem parecido com o dele. — Ele a obrigou a pescar — quis saber Sarah — ficar lá sentada por horas e horas?
Lee percebeu que Hunter franziu a testa antes que ela pudesse responder:
— Na verdade, ele... ah, sugeriu que pescássemos dias e dia seguidos.
— Argh! — foi o único comentário de Sarah.
— Mas peguei um peixe maior do que o dele.
Nem um pouco impressionada, Sarah balançou a cabeça.
— É um tédio só. — Ela lançou para seu pai um olhar escusatório. — Mas acho que alguém tem de fazer isso. — Ela encostou sua cabeça na do pai e sorriu para Lee. — Na maioria das vezes, ele não é chato, só gosta de uns troços esquisitos. Tipo pescar e beber cerveja.
— Sarah não considera a coleção de cabeças encolhidas de Hunter nem um pouco estranhas. — Bonnie pegou a chaleira. — Você quer um pouco? — perguntou ela ao irmão.
— Não. Sarah e eu vamos lá desarmar o acampamento.
— Leve seu lobo junto — disse Bonnie enquanto servia chá para Lee. — Ele ainda está na minha lista negra. A propósito, ontem você recebeu algumas ligações de Nova York.
— Vão continuar. — Ao se levantar, ele acariciou o cabelo de Lee, um gesto que não passou despercebido a nenhuma das outras mulheres na cozinha. — Vou voltar logo.
Lee se dispôs a ajudar, mas estava tão confortável naquela cozinha ensolarada e desarrumada, e o chá tinha um aroma dos céus.
— Tudo bem.
Ela viu a mão que Sarah colocou no braço do pai, mão de quem se sente proprietária, e pensou que seria melhor ficar onde estava.
Juntos, pai e filha caminharam na direção da porta de trás, Hunter assobiou para o cachorro e depois partiram.
Bonnie mexia seu chá.
— Sarah ama o pai.
— Sim. — Lee pensou nos dois, lado a lado.
— E você também.
Lee estava erguendo sua xícara, que acabou só fazendo um ruído no pires.
— Como?
— Você está apaixonada por Hunter — disse Bonnie suavemente. — Acho isso maravilhoso.
Ela poderia ter negado — com veemência, com frieza, dando gargalhadas, mas ouvir aquilo sendo dito em voz alta a fez entrar numa espécie de transe.
— Eu não... quero dizer, não é que... — Lee parou, percebendo que estava passando o cabo da colher em suas mãos. — Não sei exatamente o que estou sentindo.
— Um sintoma definitivo. Estar apaixonada a preocupa?
202
— Eu não disse que estava. — Mais uma vez Lee parou, Alguém conseguiria dar evasivas na frente daqueles suaves olhos de coelho? — É. Me preocupa bastante.
— Supernatural. Eu costumava começar e terminar relacionamentos como as pessoas trocam de roupa. Até que encontrei Fred — Bonnie deu uma risada antes de bebericar seu chá. — Fiquei com o estômago doendo por semanas.
Lee pressionou seu próprio estômago com a mão antes de levantar. O chá não adiantaria nada. Ela precisava se mexer.
— Não tenho nenhuma ilusão com relação a Hunter e eu - disse ela, com mais firmeza do que esperara. — Temos prioridades diferentes, gostos diferentes. — Ela olhou através da janela da cozinha e viu os enormes paredões vermelhos bem além do agrupamento de árvores.—Vidas diferentes. Tenho de voltar para Los Angeles
Bonnie continuava a beber seu chá calmamente.
— É claro. — Se Lee identificou a ironia, não retrucou. — Há pessoas que não tiram da cabeça a idéia de que, para ter um relacionamento, as duas partes envolvidas devem ter os mesmos interesses. Se um adora poesia francesa do século XVI e o outro detesta, não há esperança. — Ela reparou que Lee franzira o cenho, mas prosseguiu, com leveza: Fred é um contador que acha excitante estudar as taxas de juros. — Ela passou distraidamente a mão numa mancha de farinha sobre a mesa. — Estatisticamente, creio que já devíamos estar divorciados há anos.
Lee se virou, sem conseguir ficar zangada, sem conseguir sorrir.
— Você é bem parecida com Hunter, não é?
— Acho que sim. Adreanne Radcliffe é sua mãe? Embora não estivesse mais com vontade, Lee voltou ao chá.
— É.
— Eu a conheci numa festa em Palm Springs, dois, não, deve ter sido uns três anos atrás. É. Três anos — disse Bonnie, decidida — porque eu ainda estava amamentando Cárter, meu menor, e ele atualmente está aterrorizando todo o mundo na creche. Semana passada ele tentou cozinhar um peixinho de aquário num forno de brinquedo. Você não é nem um pouco parecida com sua mãe, é?
Lee levou alguns instantes para alcançar a pergunta. Recolocou o chá na mesa sem ter tomado.
— Não sou?
— Você acha que é? — Bonnie jogou seu cabelo despenteado e listrado para trás. — Não quis ofender, mas ela não teria o que dizer a alguém que não fosse de sangue nobre, se é que você me entende. Eu a consideraria uma mulher bastante fechada. Ela é certamente bela; com certeza você parece ter herdado a aparência dela. Mas parece que só isso.
Lee olhou para o chá. Como poderia explicar que, por causa da extrema semelhança física entre ela e a mãe, ela sempre imaginara que existiriam outras semelhanças. Por acaso ela não havia passado toda a infância e adolescência tentando identificá-las, e toda a sua vida adulta tentando reprimi-las? Uma mulher fechada. Aquela foi uma frase assustadora, e muito próxima do que ela própria poderia ter se tornado.
— Minha mãe segue padrões — respondeu ela, finalmente. — Ela não parece sentir nenhum problema em viver segundo esses padrões.
— Oh, bem... todos deveriam fazer o que podem fazer de melhor. — Bonnie colocou os cotovelos sobre a mesa e enlaçou os dedos de modo que os três anéis em sua mão direita brilhavam e piscavam. — De acordo com Hunter, o que você faz melhor é escrever. Ele me falou de seu romance.
A irritação veio com tanta rapidez que Lee não teve chance de mascará-la.
— Ele é o tipo de homem que não consegue admitir que cometeu um erro. Eu sou repórter, não escritora.
— Entendo.—Ainda sorrindo com doçura, Bonnie colocou o queixo sobre os dedos enlaçados. — E então, o que é que você vai reportar sobre Hunter?
Haveria um desafio por baixo daquele sorriso? Algum tipo de escárnio? O que quer que fosse, ela não poderia deixar de responder. Sim, pensou novamente, Bonnie Smithers era bastante parecida com o irmão.
— Que ele é um homem que considera o ato de escrever não só um dever sagrado, mas também uma profissão que domina com destreza. Que ele tem um senso de humor que às vezes é tão sutil que você leva horas até compreender. Que ele acredita em escolhas e sorte com a mesma teimosia que acredita no destino, — Ela fez uma pausa e ergueu a xícara de chá. — Ele preza a palavra escrita, não importa se é uma história em quadrinhos ou umlivro de Chaucer, e ele trabalha com muito afinco para fazer o que considera sua profissão: contar histórias.
— Gosto de você. Com cautela, Lee sorriu.
— Obrigada.
— Amo meu irmão — continuou Bonnie. — Mais do que isso,eu o admiro, por motivos pessoais e profissionais. Você o compreende. Nem todas as pessoas o compreenderiam.
— Eu o compreendo? — Lee balançou a cabeça. — O que acho é que quanto mais descubro sobre ele, menos o compreendo. Ele me mostrou mais beleza no meio de um monte de pedra do que jamais encontrei em toda a minha vida, e ainda assim, ele escreve histórias de terror e medo.
— E você acha isso contraditório? — Bonnie deu de ombros ao se recostar na cadeira. — O problema é que Hunter enxerga com muita clareza os dois lados da vida. Ele escreve sobre o lado negro da vida porque é mais intrigante.
—E ainda assim ele vive... — Lee fez um gesto que identificava a cozinha.
— Numa casinha aconchegante cercada de árvores. A risada veio com naturalidade.
— Eu não chamaria isso aqui exatamente de aconchegante, mas por certo não é o que se esperaria do mais importante autor de livros de terror do país.
— O mais importante autor de livros de terror do país tem uma filha para criar.
— Sim. — O sorriso de Lee se desvaneceu. — Sim, Sarah. Ela é uma gracinha.
— Ela vai aparecer em seu artigo?
— Não. — Uma vez mais, ela levantou os olhos para Bonnie. — Hunter deixou bem claro que não concordava com isso.
— Ela é o ponto central da vida dele. Se ele às vezes parece superprotetor, pode acreditar em mim, é um ato completamente altruísta. — Ao ver que Lee assentira com a cabeça, Bonnie sentiu uma onda de simpatia. — Ele não lhe contou sobre ela?
— Não, nada.
Algumas vezes o amor e a admiração que Bonnie sentia por Hunter ficavam encobertos pela frustração. Esta mulher estava apaixonada por ele, estava a um passo de ficar irrevogavelmente comprometida com ele. Qualquer idiota poderia ver isso, refletiu Bonnie. Qualquer idiota exceto Hunter.
— Como eu disse, às vezes ele exagera na superproteção. Ele tem lá seus motivos, Lenore.
— E vai me contar quais são eles?
Ela ficou tentada. Já era tempo de Hunter abrir esta parte de sua vida, e ela estava certa que esta era a mulher para quem ele deveria se abrir.
— É um assunto que pertence a Hunter — disse Bonnie, finalmente. — Você deveria ouvir dele. — Ela deu uma olhada em volta ao ouvir o jipe chegando. — Eles voltaram.
— Acho que fiquei contente de você ter trazido ela — comentou Sarah assim que atingiram o último quilómetro a caminho de casa.
— Você acha?
Hunter virou a cabeça e viu sua filha olhando através do retrovisor, pensativa.
— Ela é bonita, como uma princesa. — Pela primeira vez em meses, Sarah incomodou-se com o aparelho dentário em sua língua. — Você gosta muito dela. Dá para ver.
— Sim, gosto muito dela. — Ele conhecia cada nuança da voz da filha, cada expressão, cada gesto. — O que não significa que goste menos de você.
Sarah lançou-lhe um longo olhar. Ela não precisava de nenhuma outra palavra da parte dele para reafirmar seu amor.
—Acho que você tem de gostar de mim — decidiu ela, provocando-o um pouco — porque a gente está colado um no outro. Mas não acho que ela esteja.
— Por que Lenore não iria gostar de você? — contradisse Hunter, apto a seguir a argumentação sinuosa da filha sem nenhum problema.
— Ela não sorri muito.
Não o suficiente, concordou ele em silêncio, mas está melhorando a cada dia.
— Quando relaxa, ela sorri. Sarah deu de ombros, incrédula.
— Bem, ela olhou para mim bem engraçada.
— Sua gramática está se deteriorando.
— Olhou sim.
Hunter franziu o cenho ao dobrar na estrada de terra que dava em sua casa.
— Ela apenas ficou surpresa. Eu não havia falado de você para ela.
Sarah olhou para ele por um instante, depois colocou os tênis desgastados no painel.
— Pouco simpático da sua parte.
— Talvez não.
— Melhor pedir desculpas.
Ele olhou para sua filha com doçura.
— Jura?
Ela passou a mão na cabeça de Santanas quando ele se aproximou dela e apoiou-se em seu ombro.
— Juro. Você sempre me obriga a pedir desculpas quando sou grosseira.
— Não achei que você fosse um assunto de interesse para ela. No início, emendou Hunter silenciosamente. As coisas mudaram. Tudo mudou.
— Você sempre me obriga a pedir desculpas, mesmo quando invento desculpas. — apontou Sarah, impiedosa. Quando alcançaram a casa, ela deu um risinho irritado. — E mesmo sabendo que odeio pedir desculpas.
— Pirralha — resmungou ele, freando.
Sarah deu uma gargalhada e se jogou em cima dele.
— Estou contente de você ter voltado.
Ele a apertou contra si por um momento absorvendo seu aroma — suor de juventude, grama e xampu silvestre. Parecia impossível que dez anos haviam passado desde que ele a segurara pela primeira vez. Naquela ocasião, ela recendia a talco e fragilidade e linho fresco. Parecia impossível que ela estivesse quase crescida quando o tempo havia sido tão curto.
— Eu te amo, Sarah.
Satisfeita, ela aninhou-se nele por um momento, e depois, erguendo a cabeça, deu um risinho e disse:
— O suficiente para fazer pizza para o jantar? Ele beliscou seu queixo sutilmente erguido.
— O suficiente para isso.
Quando Lee imaginava jantares em família, imaginava refeições tranqüilas numa lustrosa mesa de mogno adornada com um pesado serviço de prata da Geórgia, refeições nas quais as conversas eram contidas e educadas.
Não aquele jantar.
A já confusa cozinha tornou-se caótica com Sarah para cima e para baixo, meio dançando, meio bamboleando, detalhando para seu pai tudo o que acontecera nas duas últimas semanas. Indiferente ao barulho, Bonnie usava o telefone da cozinha para ligar para casa e verificar se estava tudo bem com seu marido e filhos. Santanas, já perdoado, esparramava-se no chão, tirando uma soneca. Hunter estava na bancada, preparando o que Sarah afirmava ser a melhor pizza da estratosfera. De uma forma ou de outra, ele estava conseguindo, ao mesmo tempo, manter-se atualizado através da conversa desconexa de sua filha, responder as perguntas que Bonnie lhe lançava e cozinhar.
Sentindo-se como óleo jogado negligentemente sobre o mar agitado, Lee começou a limpar a mesa. Se não fizesse alguma coisa, decidiu, acabaria parada no meio da cozinha com a cabeça balançando para um lado e para o outro como alguém que assistia a uma partida de ténis.
— Eu deveria fazer isso.
Desajeitada, Lee recolocou a chaleira que acabara de pegar e olhou para Sarah.
— Oh. — Estúpida, censurou-se. Não tem o que conversar com uma criança?
— Mas acho que você pode ajudar — disse Sarah, após um instante. — Mas se eu não fizer minhas tarefas, não vou ganhar minha mesada. — O olhar dela deslizou na direção do pai e depois retornou. — Tem um disco que quero comprar, entende? DoTotal Wrecks.
— Entendo.
Lee vasculhou sua mente em busca de algum ínfimo conhecimento sobre aquela banda mas não encontrou nada.
— Na verdade, eles não são tão ruins como o nome pode sugerir — comentou Bonnie, de passagem. — De qualquer maneira, Sarah, seu pai não vai reduzir sua mesada só porque arranjou uma assistente. Isso é considerado uma boa visão empresarial.
Hunter virou a cabeça e conseguiu pegar o risinho da filha antes que ela bailasse para fora da cozinha.
— Suponho que Lee deva igualmente ganhar sua ceia — disse ele, sem pressa —, mesmo não sendo carne vermelha.
O sorriso tornou difícil para ela erguer novamente a chaleira de modo casual.
— Você vai gostar mais da pizza — afirmou Sarah, com confiança. — Ele coloca tudo nela. Todas as vezes em que convido minhas amigas para jantar, elas sempre querem a pizza do papai. — Enquanto continuava a limpar a mesa, Lee tentava imaginar Hunter preparando refeições para um monte de garotas jovens e barulhentas com toda a competência do mundo. Simplesmente não conseguia. —Acho que ele foi cozinheiro em outra encarnação.
Meu Deus, pensou Lee, será que a criança já tinha uma opinião sobre reencarnação?
— Da mesma maneira que você foi um gladiador — disse Hunter, secamente.
Sarah riu de novo.
— Tia Bonnie foi uma escrava vendida num leilão na Arábia por milhares e milhares de dracmas.
— Bonnie possui um ego muito fluido.
Sarah colocou as xícaras na pia, não sem fazer barulho.
— Eu acho que Lenore deve ter sido uma princesa. Segurando um pano úmido, Lee ergueu o olhar, sem ter certeza se ria ou não.
— Uma princesa medieval — continuou Sarah —, como nas histórias do rei Artur.
Hunter pareceu estar avaliando a idéia por um instante, enquanto analisava a filha e a mulher em discussão.
— É uma possibilidade. Uma dessas delicadas coroas cheias de jóias e uns véus diáfanos ficariam muito bem nela.
— E dragões. — Obviamente adorando o jogo, Sarah encostou-se na bancada para melhor imaginar Lee com um longo vestido em tom pastel. — Um cavaleiro teria de matar, pelo menos, um dragão macho já totalmente crescido antes de poder pedir a mão da princesa.
— Verdade — murmurou Hunter, imaginando que dragões poderiam aparecer de várias formas.„- -
— Dragões não são fáceis de matar. — Embora falasse calmamente, Lee imaginava por que seu estômago estava tremendo. Não era nem um pouco difícil imaginar a si mesma num grande salão iluminado por tochas, com todas aquelas jóias cintilando em seu cabelo e no corpete do vestido de seda pura.
— É a melhor maneira de provar o valor — disse-lhe Sarah, mordiscando um pedacinho de pimenta-verde que surrupiara do pai. — Uma princesa não pode sair assim casando com qualquer um, você sabe. O rei daria a mão dela para um valoroso cavaleiro ou a faria se casar com algum príncipe das vizinhanças para que ele pudesse adquirir mais terra com paz e prosperidade.
Sem conseguir acreditar, Lee visualizou seu pai com o cajado na mão decretando que ela deveria se casar com Jonathan Willoby.
—Aposto que você nunca precisou usar aparelho nos dentes, Transportada de um século a outro num piscar de olhos, apenas olhou. Sarah estava franzindo o cenho para ela com concentração absorta e meditativa que só poderia ter herdado de Hunter. Tudo aquilo era tão bobo, pensou Lee. Cavaleiros, princesas, dragões. Pela primeira vez, conseguiu sorrir com naturalidade para a garota magra e morena que fazia parte do homem que amava.
— Dois anos.
— Você usou? — O rosto solene de Sarah foi instantaneamente acometido de interesse. Ela deu um passo à frente, certamente para poder olhar melhor os dentes de Lee. — Ficou muito bom — decidiu ela. — Você ficava com muita raiva dele?
— O tempo todo.
Sarah deu uma risadinha, fazendo com que o prateado em seus dentes brilhasse.
— Não me importo muito, só não dá para mascar chiclete. — Ela lançou um olhar amuado na direção de Hunter. — Nem unzinho.
— Nem eu podia. Nunca, pensou ela, mas não acrescentou. Mascar chiclete não era permitido na casa dos Radcliffe.
Sarah a estudou de novo, e então assentiu com a cabeça.
— Acho que você também pode me ajudar a colocar a mesa. Aceitação, descobriria Lee, era simples assim.
O sol entrava na cozinha enquanto comiam. Forte e dourado, mas sem aqueles raios atordoantes e desconfortáveis que ela presenciara nos penhascos do canyon. Ela estava achando tudo tranqüilo, apesar de toda a conversa, das gargalhadas e das discussões em torno dela.
Suas fantasias haviam incluído comer um belo pedaço de carne malpassada acompanhada de uma salada crocante à luz de velas, num restaurante tranqüilo onde um hesitante garçom jamais permitiria que sua taça de vinho ficasse vazia. Ela se encontrava agora numa cozinha ensolarada e barulhenta, comendo pizza com muito queijo, coberta de pimenta-verde e cogumelo e acrescida de pepperoni e salsicha. E, enquanto comia, descobriu que concordava com Sarah. Era a melhor da estratosfera.
— Se ao menos Fred pudesse aprender a fazer uma dessas. — Bonnie cortava seu segundo pedaço com a mesma dedicação com a qual cortara o primeiro. — Num dia inspirado ele faz uma ótima salada de ovos, mas não é a mesma coisa.
— Com uma família do tamanho da sua — comentou Hunter —, você teria de instalar uma linha de montagem. Cinco crianças esfomeadas poderiam manter uma pizzaria.
— E podem — concordou Bonnie. — Em pouco menos de sete meses, serão seis.
Ela deu um risinho ao ver que Hunter parara de cortar sua pizza.
— Outro?
— Outro. — Bonnie piscou para sua sobrinha no outro lado da mesa. — Eu sempre disse que teria meia dúzia de filhos — disse calmamente para Lee. — As pessoas deveriam fazer o que elas fazem de melhor.
Hunter inclinou-se para pegar na mão dela. Lee pôde ver os dedos interligados.
— Alguns diriam que isso é um excesso de êxito.
— Ou rivalidade de irmão — rebateu ela. — Vou ter filhos quanto você tem best-sellers. — Com uma gargalhada, apertou a mão do irmão. — A gente leva, mais ou menos, o mesmo tempo para produzir cada um.
— Quando você trouxer o bebê para nos visitar, ela ten que ficar no meu quarto — disse Sarah, e encheu a boca com outro pedaço da pizza.
— Ela?
Hunter passou a mão no cabelo da filha antes de voltar a comer.
— Vai ser uma menina. — Com a confiança típica da juventude, Sarah assentiu com a cabeça. — Tia Bonnie já tem três meninos, aí mais uma menina equilibra tudo.
— Vou ver o que posso fazer — disse Bonnie. — De qualquer maneira, volto para casa amanhã de manhã. Cassandra, minha mais velha — acrescentou para Lee —, decidiu que quer fazer uma tatuagem. — Ela fechou os olhos e se recostou.—Ah, é bom quando alguém precisa de você.
— Uma tatuagem? — Sarah fez uma careta. — Isso é péssimo. Cassie está maluca.
— Fred e eu somos obrigados a concordar.
Hunter, demonstrando interesse, ergueu o vinho.
— Em que parte do corpo vai ser a tatuagem?
— No ombro esquerdo. Ela garante que vai ser de muito bom gosto.
— Tonta — decretou Sarah, dando de ombros. — Cassie tem treze anos — acrescentou, arregalando os olhos. — Cara, a garota é um problema.
Lee reprimiu uma risada não só pela expressão facial, mas também pela verbal.
— Como você vai lidar com isso? Bonnie apenas sorriu.
— Bem, acho que vou levá-la para fazer a tatuagem.
— Mas você não vai levá-la...
Lee interrompeu sua fala ao ver o cabelo pintado e os brincos enormes de Bonnie. Talvez ela levasse. Bonnie, rindo, deu uma batidinha na mão de Lee.
— Não, eu não levaria. Mas continuo achando que vai ser melhor se Cassie tomar sua própria decisão, o que ela fará, assim que der de cara com todas aquelas pequenas e asquerosas agulhas.
— Complacente — disse Sarah, dando um risinho.
— Inteligente — corrigiu Bonnie.
— Mesma coisa. — Com a boca quase cheia, ela se virou para Lee. — Tem sempre uma crise na casa de tia Bonnie — disse ela, cheia de confiança.—Você tem irmãos?
— Não. — Seria tristeza o que ela estava vendo no rosto da criança? Ela freqüentemente tivera o mesmo desejo. — Sou filha única.
—Acho que é melhor ter irmãos, mesmo que a casa fique cheia demais. — Ela deu um sorriso franco para o pai. — Posso comer outro pedaço?
O restante da noite passou, não com tranqüilidade mas, apesar de todo o barulho, sem maiores atropelos. Sarah carregou seu pai para jogarem um pouco de futebol, idéia que Bonnie declinou, dando um risinho. Seu estado, afirmou, era delicado demais. Lee, em meio aos protestos da menina, foi obrigada a acompanhá-los. Ela aprendeu, apesar de sua falta de perícia, a chutar a bola com o canto do pé e a cabecear. Gostou, o que a surpreendeu, e não se sentiu como uma idiota, o que a surpreendeu mais ainda.
Anoiteceu rapidamente, e as luzes se encheram de insetos. Embora estivesse com os olhos cansados, Sarah reclamou que não queria ir dormir até que Hunter concordou em levá-la nas costas. Lee não precisou que ninguém lhe avisasse que aquilo era um ritual que se repetia todas as noites; bastava vê-los juntos.
Ele dissera que Sarah era sua vida e, apesar de só tê-los visto juntos por não mais do que algumas horas, Lee acreditava.
Jamais teria imaginado que o homem cujos livros ela lera foi um pai devoto, contente de passar seu tempo com uma menína de dez anos de idade. Jamais o teria imaginado ali, numa casa distante do burburinho da cidade. Mesmo o homem que ela passara a conhecer ao longo das duas últimas semanas não se encaixava bem no papel de pai, disciplinador e mentor de uma criança de dez anos. E no entanto ele era.
Se ela fizesse a superposição da imagem do pai de Sarah sobre a de seu amante e de autor de O grito silencioso, todas pareciam se combinar numa única imagem. O problema era lidar com ela.
Lee recolocou a cadeira do pátio na posição correta e se sentou. Conseguia escutar a gargalhada sonolenta de Sarah através da janela aberta acima dela. A voz de Hunter, baixa e indistinta, seguia atrás. Era uma maneira estranha de passar suas últimas horas com Hunter, aqui na casa dele, a apenas alguns quilômetros de distância do acampamento onde se tornaram amantes. E também, claro, percebia ela ao olhar para as estrelas, amigos. Ela queria muito ser amiga dele.
Agora, ao escrever o artigo, teria como fazê-lo com conhecimento dos dois lados dele. Era o que ela viera procurar. Lee fechou os olhos por causa da súbita claridade das estrelas. Voltaria com muito mais e, por este motivo, com muito menos.
— Cansada?
Ela abriu os olhos e encontrou Hunter. Era assim que ela sempre iria se lembrar dele, envolto em sombras, surgindo no meio da escuridão.
— Não. Sarah dormiu?
Ele assentiu com a cabeça e se colocou atrás dela, pousando as mãos em seus ombros. Era aqui que ela queria ele. Aqui, com a noite chegando.
— E Bonnie também.
— É a hora de você trabalhar — adivinhou ela. — Quando a casa está quieta e as janelas escuras.
— É, na maioria das vezes. Terminei meu último livro numa noite assim. — Na época não estava se sentindo solitário, mas agora... — Vamos dar uma caminhada. É lua cheia. Está com medo? Eu lhe dou um talismã. — Ele retirou o anel de seu dedo mindinho e colocou no dedo dela.
— Não sou supersticiosa — disse ela, soberba, mas ajustou bem o anel em seu dedo.
— É claro que você é. — Ele ficou ao lado dela enquanto caminhavam. — Gosto dos sons da noite.
Lee os ouvia — uma leve brisa pelas árvores, o murmúrio da água, o ruído monótono dos insetos.
— Você mora aqui há bastante tempo?
Com o passar do dia, foi ficando cada vez menos aceitável imaginá-lo vivendo em qualquer outro lugar.
— Moro. Mudei-me para cá no ano em que Sarah nasceu.
— É um lugar lindo.
Ele a pegou nos braços. O luar derramava-se sobre ela, prateado, como uma jóia em seu cabelo, fazendo com que a pele parecesse um pedaço de mármore, escurecendo seus olhos.
— É perfeito para você — murmurou ele e passou a mão no cabelo dela, observando-o depois voltar para o lugar. — A princesa e o dragão.
O coração dela já estava disparado. Como o de uma adolescente, pensou Lee. Ele a fazia sentir-se como uma garota em seu primeiro encontro com o namorado.
— Hoje em dia as mulheres têm de matar seus próprios dragões.
— Hoje em dia — a boca dele aproximou-se da dela — há menos romantismo. Se estivéssemos na Idade das Trevas, e eu a encontrasse numa floresta banhada pelo luar, você seria minha por direito. Eu a cortejaria porque você não teria outra alternativa. — A voz dele ficou tão obscura quanto as sombras nas árvores circundantes. — Deixe-me amá-la agora, Lenore, como se fosse a primeira vez.
Ou a última, pensou ela vagamente, enquanto os lábios dele a obrigavam a se render, a se entregar, a desejar. Com os braços dele em volta de si, ela podia liberar sua consciência. Imaginar e sentir. Fazer amor não era nada além disso. Sua cabeça pendeu para ele submissa, seus braços o apertavam com força, desafiando-o a tomar tudo o que queria, a lhe dar tudo o que desejava.
Então ele passou as mãos pelo rosto dela, delicadamente, delicadamente como sempre fora, memorizando as curvas e ângulos dos ossos, a maciez da pele. Os lábios dele a degustavam sorvendo cada sabor particular. O prazer, que podia aparecer rapidamente, percorreu seu corpo todo. Sem forças, ela desabou com ele.
Ele queria amá-la assim, ao ar livre, com a lua banhando as árvores com uma luz prateada e criando sombras purpúreas. Queria sentir os músculos dela repuxarem e amolecerem na mão. O que ela dava para ele naquele instante era algo oriundo de seus próprios sonhos, e mais real, muito mais real do que qualquer coisa que ele jamais experimentara. Vagarosamente, a despiu, enquanto dedos e lábios a veneravam e a satisfaziam. Esta seria a noite na qual ele se daria inteiro para ela e na qual desejaria tudo dela.
O luar e as sombras dançavam sobre o corpo de Lee, fazendo o coração dele disparar. Ele ouvia o som do riacho borbulhando por perto misturar-se com os tranqüilos suspiros de Lee. A floresta cheirava à noite, assim como ela, como ele pôde sentir assim que Lee enterrou a cabeça dele em seu pescoço.
Ela o sentia se excitando cada vez mais, aquele desejo crescente e avassalador que a envolvia. De livre e espontânea vontade, mergulhou no turbilhão que ele criara. Ali o ar estava suave ao toque e povoado de cores. Ali ela ficaria, para sempre possuída.
A pele morna dele estava colada à sua. Ela saboreou, a cabeça enlouquecida de desejo, de poder e de uma velocidade vertiginosa recém-descoberta. Ávida por mais, apoderou-se dele, vivamente ciente de cada tremor másculo abaixo de si, cada respiração entrecortada, cada murmúrio de seu nome.
Luar e sombra. Lee sentia ambos tão reais em torno de si. A faixa prateada do poder. A escura sombra do prazer. Com eles, ela o levava ao precipício.
Quando ele praguejou, sem fôlego, ela riu. Os desejos dos dois estavam misturados, unidos. Ela podia sentir. Então comemorou.
O ar parecia estar parado, sem brisa. Os sons que antes pareciam um alarido ao redor deles agora estavam calmos. Os dedos no cabelo dela apertavam com força, desesperados. No silêncio, os olhos se encontravam, instante após instante.
Ela franziu os lábios ao abrir-se para ele.
Ela poderia ter dormido ali sem nenhum esforço, sobre o chão nu, sob o céu, e com o corpo dele contra si. Talvez tivesse dormido ali para sempre, como uma princesa sob algum encanto, se ele não a tivesse pego nos braços.
— Você adormece como uma criança — murmurou ele. — Deveria estar na cama. Na minha cama.
Lee suspirou, contente de estar onde estava.
— Muito longe.
Ele riu baixinho e a beijou entre o pescoço e o ombro.
— Quer que eu a carregue?
— Hum... — Ela aninhou-se nele. — Tá.
— Não que eu tenha alguma objeção, mas você talvez pudesse sentir-se um pouco desconfortável se Bonnie aparecesse aqui embaixo e me visse carregando você nua.
Ela abriu os olhos até que as pupilas parecessem duas ranhuras azuis abaixo dos cílios. A realidade estava de volta.
— Acho que a gente tem de se vestir.
— Talvez seja aconselhável. — Ele a olhou de cima a baixo, — Quer que eu a ajude?
Ela sorriu.
— Acho que deve fazer o mesmo efeito você me vestir e me despir.
— Teoria interessante.
Hunter alcançou a pequena peça rendada cor de marfim.
— Mas não devemos testar isso agora. — Lee puxou a calcinha da mão dele e enfiou-se dentro dela. — Há quanto tempo estamos aqui fora?
— Séculos.
Ela o olhou antes de vestir a camisa. Não estava completamente certa de ele estar exagerando.
— O mínimo que mereço após essas duas últimas semanas é um colchão verdadeiro.
Ele pegou na mão dela e a beijou.
— Você é bem-vinda a compartilhar o meu.
Lee apertou rapidamente seus dedos nos dele e depois soltou.
— Não acho prudente.
— Está preocupada com Sarah.
Não era uma pergunta. Lee parou e pensou, garantindo que todas as nuvens românticas estivessem fora de sua cabeça antes de falar:
— Não entendo muito de criança, mas imagino que ela não esteja preparada para ter alguém dividindo a cama de seu pai.
Por um instante, houve silêncio, como o olho de um furacão.
— Eu jamais trouxe uma mulher para nossa casa.
A afirmação a levou a olhar para ele rapidamente e depois, também rapidamente, desviar o olhar.
— Mais um motivo.
— Outro motivo para muitas coisas.
Ele se vestiu sem falar nada enquanto Lee mirava as árvores. Tão belo, pensou ela. E cada vez mais distante.
— Você queria me perguntar sobre Sarah, mas não o fez.
Ela umedeceu os lábios.
— Não é da minha conta.
Ele pegou o queixo dela, abruptamente.
— Não é?
— Hunter...
— Dessa vez vai ter a resposta sem ter perguntado. — Ele largou o queixo, mas não deixou de olhar para ela. Ela não precisava de mais nada para lhe dizer que a calma acabara. — Conheci uma mulher, uns doze anos atrás. Eu escrevia como Laura Miles nessa época, o que me dava alguns luxos. Jantar fora de vez em quando, teatro vez por outra. Ainda estava morando em Los Angeles, sozinho, curtindo meu trabalho e o que ele me proporcionava. Ela era uma estudante no último ano da faculdade. Cérebro e ambição possuía em abundância, dinheiro não tinha nenhum. Tinha uma bolsa de estudos e estava determinada a se tornar a melhor advogada da Costa Oeste.
— Hunter, o que aconteceu entre você e outra mulher doze anos atrás não é da minha conta.
— Não somente outra mulher. A mãe de Sarah. - - Lee começou a puxar um tufo de grama ao lado.
— Tudo bem, se é importante para você me contar isso, vou ouvir.
— Eu gostava dela — continuou ele. — Ela era inteligente, amável e cheia de sonhos. Nenhum dos dois jamais considerou a possibilidade da coisa entre nós se tornar séria. Ela ainda tinha que terminar os estudos, o obstáculo a ser ultrapassado. Eu tinha histórias para escrever. Mas então, mesmo com todo o nosso planejamento, o destino arranjou uma forma de assumir o controle.
Ele pegou um cigarro e lembrou-se, rememorou cada detalhe,Seu pequeno e apertado apartamento com o encanamento vazando, a máquina de escrever maltratada e cheia de ruídos, as gargalhadas do casa no apartamento ao lado que era freqüentemente audível através das finas paredes.
— Ela apareceu uma tarde. Eu sabia que alguma coisa estava errada porque ela tinha aula à tarde. Era dedicada demais para matar aulas. Estava fazendo calor. Era um desses dias abafados, quando fica difícil até respirar. As janelas estavam abertas, e eu havia deixado ligado um pequeno ventilador portátil que espalhava o ar em volta mas não refrescava muita coisa. Ela viera dizer que estava grávida.
Concentrando-se bem, podia até lembrar da aparência dela, Mas nunca pretendeu fazer isso. Contudo, pretendendo ou não, sempre conseguiria lembrar do tom da voz dela ao lhe dizer. Desespero misturado com fúria e acusações.
— Eu disse que gostava dela, e era verdade. Não a amava. Mas, mesmo assim, os valores que a gente aprende com nossos pais são difíceis de abandonar. Eu disse que me casava com ela. — Ele sorriu, sem humor, percebeu Lee, mas também sem amargura. Era o riso de um homem que aceitara a armadilha que a vida armara para ele. — Ela recusou, quase tão zangada com a solução que eu oferecera quanto estava com a gravidez. Ela não tinha nenhuma intenção de arrumar um marido e um filho com uma carreira para desenvolver. Talvez seja difícil entender, mas ela não estava sendo fria, apenas prática, quando me pediu para pagar o aborto.
Lee sentiu todos os músculos se contraindo.
— Mas Sarah...
— A história não acaba aqui. — Hunter deu uma baforada e observou a fumaça desaparecer na escuridão. — Tivemos uma briga inesquecível, com ameaças, acusações e um jogando a culpa no outro. Na época, eu não conseguia enxergar o lado dela,
apenas o fato de que trazia dentro de si uma parte de mim que queria jogar no lixo. Então nos separamos, os dois furiosos, os dois suficientemente desesperados para saber que precisávamos de tempo para pensar. Lee não sabia o que dizer, ou como dizer.
— Você era jovem — começou ela.
— Eu tinha vinte e dois anos — corrigiu Hunter. — Já deixara de ser um garoto havia muito tempo. Eu era... nós éramos responsáveis por nossas próprias ações. Não dormi por dois dias. Pensei em dezenas de respostas e rejeitei todas, uma atrás da outra. Somente uma coisa não me saía da cabeça naqueles dias quentes e aterrorizantes. Eu queria a criança. Não é algo que eu possa explicar, porque gostava de minha vida, a falta de responsabilidades, a real possibilidade de alcançar o sucesso. Só sabia que precisava ter a criança. Liguei para ela e lhe pedi para voltar. Estávamos ambos mais calmos nessa segunda vez, e ambos mais assustados do que jamais havíamos estado na vida. O casamento estava fora de questão, então nem tocamos no assunto. Ela não queria a criança, então tratamos disso. Eu queria. O que era algo um pouco mais complicado de resolver. Ela queria se liberar da responsabilidade que havíamos construído juntos, e precisava de dinheiro. Ao fim, resolvemos tudo.
Com a boca seca, Lee voltou-se para ele:
— Você deu dinheiro para ela. - Ele viu, como esperara ver, o horror estampado nos olhos de Lee. Quando continuou, sua voz estava calma, mas não sem um enorme esforço de sua parte.
— Dei dinheiro para todas as suas despesas médicas e pessoais até o parto, e dei também dez mil dólares para minha filha.
Embasbacada, deprimida, Lee olhou para o chão.
— Como ela pôde...
—Ambos queríamos algo. E conseguimos dar um para o outro da única maneira possível. Jamais tive nenhuma mágoa daquela jovem estudante de direito pelo que ela fez. Foi a escolha dela e podia ter feito outra escolha sem ter me consultado.
— Sim. — Ela tentou entender, mas tudo o que Lee podia enxergar na sua frente era aquela menininha magra e morena.— escolheu, mas perdeu.
Fazia todo o sentido ouvi-la dizer aquilo.
— Sarah é minha, só minha, desde o momento em que nasceu. A mulher que a gerou me deu um presente inestimável. Eu apenas lhe dei dinheiro.
— Sarah sabe de tudo?
— Apenas que sua mãe precisou fazer algumas escolhas.
— Entendo. — Ela respirou fundo. — O motivo de você ser tão cuidadoso com relação a expô-la publicamente é não criar especulações a respeito.
— Um dos motivos. O outro é que quero que ela tenha a vida sem complicações que todas as crianças têm o direito de ter.
— Você não precisava. — Ela estendeu uma das mãos para ele. — mas estou feliz por ter me contado toda a história. Não deve ter sido fácil criar um bebê sozinho.
Naquele instante, não havia nada além de compreensão nos olhos dela. De imediato, todos os músculos retesados de Hunter relaxaram, como se tivessem sido massageados por ela. Ele sabia, agora com certeza absoluta, que ela era o que sempre esperara que fosse.
— Não, nem um pouco fácil, mas sempre prazeroso. — Ele a segurou com mais firmeza. — Compartilhe isso comigo, Lenore.
Ela gelou.
— Não entendo o que quer dizer com isso.
— Quero você aqui, comigo, com Sarah. Quero você aqui com as outras crianças que teremos juntos. — Ele baixou os olhos para o anel que colocara no dedo dela. Quando olhou de volta para Lee, foi como se ela se sentisse penetrada. — Case comigo.
Casar? Ela só conseguiu olhar para ele, confusa, enquanto o pânico crescia e crescia, calmamente.
—Você não... você não sabe o que está pedindo.
— Sei — corrigiu ele, segurando-lhe a mão com mais firmeza ao sentir que ela tentava se afastar. — Só pedi uma única mulher em casamento, mas por obrigação. Estou lhe pedindo agora porque você é a primeira e única mulher que jamais amei em toda a minha vida. Quero compartilhar a sua vida. Quero que você compartilhe a minha.
O pânico se transformou imediatamente em medo. Ele estava pedindo para que mudasse todos os objetivos que estabelecera para si. Para arriscar tudo.
— Nossas vidas são bastante diferentes — conseguiu replicar. — Preciso de voltar. Tenho meu emprego.
— Um emprego para o qual não nasceu. Você sabe disso. — Uma urgência surgiu em sua voz quando pegou nos ombros dela. —Você sabe que nasceu para escrever sobre as imagens que possui na cabeça, não sobre a vida social de outras pessoas ou as tendências do futuro.
— É o que eu sei fazer! — Tremendo, ela afastou-se dele. — É o que eu venho fazendo há anos.
— Para provar alguma coisa para alguém. Droga, Lenore, faça alguma coisa para si. Para você. - -
— É para mim que faço o que faço — disse ela, desesperada. Você o ama, gritava uma voz dentro dela. Por que está empurrando para longe o que você deseja, o que você quer? Lee balançou a cabeça, como se estivesse tentando bloquear a voz. O amor não era suficiente, os desejos não eram suficientes. Ela sabia disso. Precisava se lembrar disso. — Você está me pedindo para desistir de tudo, de cada centímetro que galguei em cinco anos da minha vida. Tenho uma vida em Los Angeles, eu sei quem sou, aonde estou indo. Não posso viver aqui e arriscar...
— Descobrir quem você realmente é? — finalizou ele. Não se permitiria ficar desesperado. Quase não conseguia controlara raiva. — Se fosse somente eu, iria para onde você quisesse, viveria onde fosse melhor para você, mesmo sabendo que seria um erro, Mas tem a Sarah. Não posso tirá-la da única casa que ela conheceu na vida.
— Novamente você está pedindo tudo. — A voz dela era mais tênue do que um sussurro, mas ele jamais ouviu algo com tanta clareza. — Você está me pedindo para arriscar tudo, e não posso, Não vou.
Ele se levantou, fazendo com que as sombras mudassem de posição.
— Estou lhe pedindo que arrisque tudo — concordou ele. Você me ama? — E, ao fazer esta pergunta, arriscava tudo.
Açambarcada pela emoção, impulsionada pelo medo, ela o fitou.
— Amo. Droga, Hunter, me deixe em paz.
Ela disparou de volta para a casa, deixando um rastro de escuridão entre eles.
Já que não vai parar para o almoço, pelo menos pegue isso aqui. — Bryan estendeu um exemplar do seu interminável estoque de barras de chocolate.
— Eu como assim que terminar o artigo. — Lee não tirou os olhos da máquina de escrever, continuando a bater nas teclas com leveza e ritmo.
— Lee, você já voltou há dois dias, e o máximo que vi você comer foi um pedaço de biscoito.
E os olhos de fotógrafa puderam enxergar, por baixo da sutil camada de cosméticos, as pálidas olheiras de Lee. Deve ter sido uma entrevista e tanto, pensou ela, ouvindo o interminável ruído da máquina de escrever.
Não estou com fome.
— Não, ela não estava com mais fome do que estava cansada. Estivera trabalhando sem parar no artigo sobre Hunter durante grande parte das últimas 48 horas. Ficaria perfeito, prometeu a si mesma. Ficaria tão reluzente quanto um copo de cristal. E, oh Deus, quando finalmente tivesse terminado, teria se livrado completamente dele.
Agarrara-se tanto a esta idéia, que de vez em quando saía de seu controle.
Se tivesse ficado... se voltasse...
O juramento veio rápido, quase como um sussurro, enquanto seus dedos vacilavam. Meticulosamente, Lee fez a correção no papel. Não podia voltar. Não deixara isso claro para Hunter? Não podia simplesmente jogar tudo para o alto e ir. Mas quanto mais tempo ficava longe, maior ficava o buraco em sua vida. Na vida, lembrava-se Lee, implacavelmente, que ela com tanto zelo planejara para si.
Então trabalharia naquela espécie de fúria nervosa até que o artigo estivesse terminado. Até que, disse para si mesma, estivesse todo terminado. Então seria o momento de dar o próximo passo. Quando tentava pensar no próximo passo, sua mente ficava surpreendente e desesperadamente vazia. Lee colocou as mãos no colo e mirou o papel à sua frente.
Sem dizer uma palavra, Bryan bateu a porta com o quadril, abafando o ruído externo. Jogou-se na cadeira à frente de Lee, cruzou os braços e esperou um pouco.
— Tudo bem, então por que não me conta a história que não vai sair no artigo?
Lee queria dar de ombros e dizer que não tinha tempo para conversar. Havia um prazo a cumprir, afinal. O artigo estava submetido a um prazo. Assim como sua vida. Ela respirou fundo e girou na cadeira. Não queria ver as palavrinhas bem arrumadas e inteligentes que datilografara. Não agora.
— Bryan, digamos que você tenha tirado uma foto que tomou uma parte enorme de seu tempo e precisou de toda a sua habilidade para ficar boa, aí, assim que você a revelou, a foto saiu de uma forma totalmente diferente daquilo que havia imaginado. O que você faria, então?
— Faria um exame detalhado de como ela tinha ficado — replicou imediatamente. — Porque o resultado final, quase com certeza, indicaria o modo como eu deveria ter planejado a foto inicialmente.
— Mas você não se sentiria tentada a voltar ao plano inicial? Afinal, você trabalhou muito, muito mesmo para que a coisa ficasse de uma certa forma, já que você estava buscando determinados resultados.
— Talvez sim, talvez não. Dependeria muito do que vi quando olhei para a foto. — Bryan recostou-se na cadeira e cruzou as longas pernas vestidas numa calça jeans. — O que você vê na sua foto, Lee?
— Hunter. — Seu olhar preocupado mudou de direção e fixou-se em Bryan. — Você me conhece.
— Tanto quanto você permite que alguém a conheça.
Com uma risada curta, Lee começou a amassar um clipe de papel.
— Sou mesmo tão difícil assim?
— É sim. — Bryan sorriu um pouco para suavizar a resposta rápida. — E igualmente interessante. Parece que Hunter Brown pensa o mesmo.
— Ele perguntou se eu queria me casar com ele.
As palavras saíram abruptamente, deixando as duas mudas por um instante.
— Casar? — Bryan inclinou-se à frente.—Tipo até que a morte nos separe?
— Sim.
— Oh... — O som saiu como um suspiro enquanto Bryan se recostava novamente. — Trabalho rápido. — Então ela viu a expressão triste de Lee. O fato de Bryan não dar gritos de alegria ao ouvir a palavra casamento não era motivo para ser petulante. — Bem, e como está se sentindo? Em relação a Hunter, quero dizer.
O clipe ficou torto nos dedos de Lee.
— Estou apaixonada por ele.
— É mesmo? — E sorriu, porque lhe pareceu simpática a maneira simples com a qual ela dissera aquilo. — Tudo isso aconteceu no canyon?
— Exato. — Os dedos de Lee não paravam. — Talvez tenha começado antes, quando estávamos em Flagstaff. Nem sei mais,
— Por que não está feliz? — Bryan estreitou os olhos do mesmo jeito que fazia para testar a luz e o ângulo. — Quando o homem que ama, ama mesmo, quer construir uma vida ao seu lado, você deveria ficar exultante.
— Como duas pessoas podem construir uma vida juntas se já construíram duas vidas separadas e completamente diferentes? perguntou Lee. — Não se trata simplesmente de arranjar um pouco mais de espaço no closete ou de mudar os móveis de lugar.—O clipe partiu-se ao meio em seus dedos quando se levantou. — Bryan, ele mora no Arizona, no canyon. Eu moro em Los Angeles.
Bryan ergueu os dois pés enfiados em botas, colocou-os sobre a mesa envernizada de Lee e cruzou os tornozelos.
— Você não vai querer me dizer que tudo não passa de um problema geográfico.
— Isso apenas demonstra como é impossível a situação! — Lee, zangada, levantou-se e deu um giro pela sala. — A gente não poderia ser mais diferente. Somos quase opostos. Eu faço as coisas passo a passo. Hunter vai saltando e pulando. Droga, você devia ver a casa dele. É como se fosse um negócio saído diretamente de um conto de fadas sofisticado. A irmã dele é B.B. Smithers... —Antes que Bryan pudesse registrar inteiramente o nome, Lee já deixava escapar: — Ele tem uma filha.
— Uma filha? — Totalmente atenta à conversa, Bryan recolocou os pés no chão. — Hunter Brown tem uma filha?
Lee colocou a mão nos olhos e esperou se acalmar. Era verdade que este detalhe não teria aparecido se ela não estivesse tão agitada e, além do mais, só falaria dessas agitações pessoais com Bryan, mas agora tinha de lidar com a situação.
— É, uma filha de dez anos, É importante que isso não seja divulgado.
— Tudo bem.
Lee não precisava de promessas de Bryan. Na tentativa de se acalmar, ela respirou fundo.
— Ela é inteligente, linda, e é certamente o centro da vida dele. Percebi alguma coisa nele quando estava com ela, uma coisa de uma beleza incrível. Me deu um susto danado.
— Porquê?
— Bryan, ele tem tanto talento, tanto brilho, tanta emoção. Ele reuniu tudo para se tornar o sucesso que é, em todos os níveis.
— Isso a perturba?
— Não sei do que sou capaz. Só sei que tenho medo de nunca conseguir equilibrar tudo isso, fazer tudo funcionar.
Bryan disse uma coisa curta, rápida e grossa:
— Você não vai casar com ele porque imagina que não vai conseguir se virar? Você devia se conhecer melhor.
— Pensei que conhecesse. — Ela balançou a cabeça e sentou de novo. — Em primeiro lugar, é tudo meio ridículo — disse, de modo mais brusco. — Nossas vidas são muito distantes uma da outra.
Bryan olhou através da janela para o edifício alto e vistoso que fazia parte da vista que Lee tinha da cidade.
— Então ele pode se mudar para Los Angeles e encurtar a distância.
— Não pode não. — Lee engoliu em seco e olhou para as páginas em cima da escrivaninha. O artigo estava terminado, ela sabia, como sabia que, se não o mandasse agora, ficaria tentando melhorá-lo até morrer. — O lugar dele é lá. Ele quer criar a filha lá. Eu entendo isso.
— Então você se muda para o canyon. A paisagem é linda.
Por que sempre parecia tão simples, tão plausível quando pronunciado em voz alta? A pequena pontada de medo voltou, e ela firmou a voz:
— Meu trabalho está aqui.
—Acho que é uma questão de prioridades, não é? — Bryan sabia que não estava sendo simpática, assim como sabia que não era de simpatia que Lee precisava. Como se importava muito com ela, falou sem a menor compaixão:
— Você pode ficar com seu emprego e seu apartamento em Los Angeles e ser infeliz. Ou pode se arriscar um pouco.
Riscos. Lee passou um dedo pela superfície lisa da mesa. Mas era preciso testar o solo antes de dar o passo seguinte. Até mesmo Hunter dizia isso. Mas... Ela olhou para o clipe destruído no centro do mata-borrão sem manchas. Quanto tempo você levou testando o solo antes de dar o salto?
Quase duas semanas depois, Lee estava sentada em seu apartamento no meio do dia. Era tão raro estar por lá durante o dia que, de certa forma, esperava encontrar tudo diferente. Tudo estava exatamente como sempre fora. Idêntico, ela forçou-se a admitir. Ainda que nada estivesse.
Sair. Ela tentava digerir a palavra ao lidar com o pânico que combatera nos últimos dias. Havia em cima da mesa, à sua frente, uma frondosa violeta africana florescendo. Estava bem cuidada, assim como cada área de sua vida sempre fora bem cuidada. Ela sempre a regava quando o solo estava seco e sempre a alimentava quando necessário. Enquanto olhava para a planta, Lee sabia que jamais seria capaz de arrancá-la impiedosamente pelas raízes. Mas não havia sido exatamente isso o que ela fizera consigo mesma?
Sair, pensou uma vez mais, e a palavra reverberava em seu cérebro. Ela já apresentara seu pedido de demissão, cumprira as duas semanas de aviso prévio e simplesmente virara as costas para sua próspera e segura carreira — arrancara suas raízes.
Para quê?, perguntava a si mesma, com a chegada de um novo acesso de pânico. Para seguir um sonho louco que invadiu sua mente anos atrás. Para escrever um livro que provavelmente jamais seria publicado. Para assumir um risco ridículo e mergulhar de cabeça no desconhecido.
Porque Hunter dissera que ela era uma boa escritora. Porque ele alimentara aquele sonho, assim como ela alimentara a violeta. Mais do que isso, pensou Lee, ele tornou impossível para ela parar de pensar nos vários ”e se” da sua vida. E ele era um deles. O mais importante deles.
Agora que o passo fora dado e ela estava ali, sozinha naquela inacreditavelmente tranqüila manhã de um dia de semana em seu apartamento, Lee queria sair correndo. Lá fora havia pessoas, barulho, distrações. Ali, ela deveria encarar aqueles ”e se”. Hunter seria o primeiro.
Ele não tentara convencê-la do contrário quando foi embora na manhã seguinte ao pedido de casamento. Ele não dissera nada quando ela se despediu de Sarah. Nada. Talvez ambos soubessem que ele dissera tudo o que havia para ser dito na noite anterior. Ele olhou uma vez para ela, e Lee quase acenou. Então Lee entrou no carro com Bonnie, que a levou até o aeroporto, aproximando-a mais ainda de Los Angeles.
Ele não telefonara desde que voltara. Esperara por isso?, imaginou Lee. Talvez sim, mas tinha esperança de que ele não ligasse. Ela não sabia quanto tempo levaria até que pudesse ouvir a voz dele sem se despedaçar.
Baixou os olhos e mirou o anel de ouro e prata em sua mão. Por que ficara com ele? Não lhe pertencia. Deveria ter deixado com ele. Era fácil dizer para si mesma que se esquecera por completo de retirá-lo na confusão, mas não era verdade. Teria percebido que o anel continuava com ela no momento em que começasse a arrumar sua bagagem, no momento em que saísse da casa de Hunter, no momento em que entrasse no carro. Simplesmente não fora capaz de retirá-lo.
Precisava de tempo, e era tempo, percebia Lee, o que tinha agora. Precisava provar algo uma vez mais, mas não para seus pais, não para Hunter. Agora só existia ela. Se conseguisse terminar o livro. Se conseguisse dar realmente o melhor de si e terminá-lo.
Lee se levantou, caminhou até a escrivaninha, sentou-se à frente da máquina de escrever e encarou o medo da página em branco.
Lee sabia o que era trabalhar sob pressão na Celebrity. Os minutos passando e os prazos de entrega se aproximando cada vez mais. Era a pressão de transformar o que não era tão fascinante assim em algo fascinante, num espaço reduzido. E ter de trabalhar assim semana após semana. E mesmo assim, depois de quase um mês longe de tudo isso, com apenas ela mesma e a história para se responsabilizar, Lee compreendeu o verdadeiro significado de pressão. E de prazer.
Ela não acreditava — não acreditava realmente — que seria possível para ela ficar sentada durante horas a fio e terminar um livro que começara a escrever por puro capricho muito tempo atrás. E era verdade que nos primeiros dias não sentisse nada além de frustração e fracasso. Uma onda de terror apoderou-se de sua cabeça. Por que deixaria um emprego onde era respeitada e reconhecida para mergulhar no escuro daquele jeito?
Várias vezes sentiu a tentação de deixar tudo de lado e voltar, mesmo que isso significasse um total recomeço em Celebrity. Mas nesses momentos sempre conseguia ver o rosto de Hunter—levemente sarcástico, desafiador e, de uma forma ou de outra, estimulante.
”É necessário uma certa quantidade de força e resistência. Se você atingiu seu limite e quer parar...”
A resposta era não, com tanta rigidez e determinação quanto tivera naquela pequena barraca. Talvez fracassasse. Ela fechava os olhos enquanto lutava para lidar com o pensamento. Talvez fracassasse tremendamente, mas não desistiria. O que quer que acontecesse, sua escolha estava feita, e viveria com ela.
Quanto mais trabalhava, mais aquelas páginas escritas se transformavam num símbolo. Se podia fazer aquilo, e fazer bem, podia fazer qualquer coisa. A definição sobre o resto de sua vida dependia daquilo.
No final da segunda semana, Lee já estava tão absorvida que mal reparava na jornada de trabalho de 12 a 14 horas por dia que estava impondo a si mesma. Ela ligava sua secretária eletrônica e esquecia de retornar as ligações com a mesma freqüência que esquecia de comer.
Era como Hunter dissera uma vez. Os personagens a absorviam, conduziam, frustravam e alegravam. Com o passar do tempo, Lee começou a descobrir que queria terminar a história não apenas por ela, mas também por eles. Desejava, como jamais desejara antes, que aquelas palavras fossem lidas. Aquela excitação e o horror mantinham seu curso.
Ela sentiu uma emoção singular assim que escreveu a última palavra, uma euforia misturada com uma estranha depressão. Terminara. Colocara seu coração naquela história. Lee desejava comemorar. Desejava chorar. Tinha acabado. Enquanto pressionava seus dedos nos olhos cansados, ela percebeu, sobressaltada, que nem mesmo sabia que dia era aquele.
Ele jamais escrevera um livro com tanta pressa, com uma rapidez quase frenética. Hunter quase não conseguia transpor para o papel seus pensamentos em alta velocidade. Sabia por quê, mas seguia no ritmo porque não tinha outra alternativa. A personagem principal desta história era Lenore, embora o nome houvesse sido mudado para Jennifer. Ela era Lenore, física e emocionalmente, do cabelo ruivo elegantemente penteado até as unhas que roía com sofreguidão. Era o único modo que ele tinha para mantê-la.
Deixá-la ir embora custara-lhe muito mais do que ela jamais poderia imaginar. Quando a viu entrar no carro, disse para si mesmo que ela não ficaria longe. Não poderia ficar. Se ele estivesse errado com relação ao que ela sentia por ele, então sempre estivera errado com relação a tudo em sua vida.
Duas mulheres haviam colidido com sua vida de modo importante. A primeira, a mãe de Sarah, ele não amara, ainda que ela tenha mudado tudo. Depois disso, ela desaparecera, sem conseguir achar uma maneira de conciliar suas ambições com uma vida que incluía uma criança e responsabilidade.
Lee, ele amara, e mudara tudo uma vez mais. Ela, igualmente, fora embora. Ficaria longe pelos mesmos motivos? Estaria ele fadado a se envolver com mulheres que não queriam se envolver? Não poderia acreditar nisso.
Então deixou que ela se fosse, dor e fúria sob a tranqüilidade, Ela voltaria.
Mas um mês se passou, e ela não voltara. Ele imaginava quanto tempo um homem podia sobreviver esfomeado.
Ligue para ela. Vá atrás dela. Você foi um tolo deixando-a partir. Arraste-a de volta se necessário for. Você precisa dela. Você precisa.,.
Seus pensamentos surgiam sempre com hora marcada. Todo dia ao entardecer. Todo dia ao entardecer, Hunter lutava com a ânsia de seguir seus pensamentos. Ele precisava; Deus, ele precisava. Mas se ela não viesse até ele de livre e espontânea vontade, jamais teria o que precisava, apenas a superfície. Olhou para seu dedo nu. Ela não deixara tudo para trás. O que ela levara consigo era mais, muito mais do que um pedaço de metal.
Dera-lhe um talismã, e ela ficara com ele. Enquanto estivesse com ele, o laço estava mantido. Hunter era um homem que acreditava no destino, em presságios e em mágica.
— O jantar está pronto.
Sarah estava parada diante da porta, o cabelo para trás num rabo-de-cavalo, o rosto estreito pintado de farinha.
Ele não queria comer. Queria continuar escrevendo. Enquanto a história estivesse acontecendo dentro dele, tinha uma parte de Lenore consigo. Assim como, quando terminasse, a necessidade de tê-la por inteiro o despedaçaria. Mas Sarah lhe sorria.
— Quase pronto — emendou ela. Ela entrou na sala descalça. — Eu fiz um bolo de carne, mas está parecendo mesmo é uma panqueca. E tem biscoitos também. — Ela deu um risinho e sacudiu os ombros. — Estão bem duros, mas a gente pode colocar um pouco de geléia, sei lá. — Percebendo o estado de espírito do pai, ela o abraçou por trás, encostando o rosto no dele. — Eu prefiro quando você cozinha.
— Quem foi que fez aquela careta quando viu os brócolis ontem à noite?
— Eles parecem pequenas árvores que ficaram doentes. — Ela enrugou o nariz, mas quando se afastou dele, seu rosto estava sério. — Você realmente sente muita falta dela, hein?
Ele poderia ter se esquivado com qualquer outra pessoa. Mas aquela era Sarah. Tinha dez anos. E o conhecia totalmente.
— É. Eu sinto muita falta dela.
Sarah, pensativa, brincava com o cabelo que lhe caía pela testa.
—Acho que talvez você quisesse se casar com ela.
— Ela recusou.
Sarah baixou as sobrancelhas, não exatamente irritada por alguém ter a coragem de dizer não para seu pai, mas concentrada. O pai de Donna quase não tinha cabelo, pensou ela, tocando novamente o cabelo de Hunter, e a barriga do pai de Kelly caía por cima do cinto. A mãe de Shelley nunca contava piadas. Ela não conhecia ninguém mais legal de se ver e mais legal de se ficar do que seu pai. Todo o mundo ia querer se casar com ele. Quando era pequena, ela mesma queria se casar com ele. Mas, é claro, agora sabia que aquilo não passava de bobagem.
Suas sobrancelhas ainda estavam franzidas quando ela levantou o olhar na direção dele.
— Acho que ela não gostou de mim.
Ele ouviu tudo com uma tal clareza que parecia que Sarah havia pronunciado os pensamentos dela em voz alta. Ele estava bastante comovido e nem um pouco impressionado.
— Não pôde suportar você.
Os olhos dela ficaram escancarados.
— Porque sou uma pestinha.
— Certo. Eu mesmo mal posso suportá-la.
— Bem — irritou-se Sarah por um instante —, ela não parece estúpida, mas acho que é, se não quis se casar com você. — Ela se aninhou nele e, percebendo que era para confortá-lo, Hunter a abraçou com carinho. — Eu gostei dela — murmurou Sarah. — Era simpática, meio na dela, mas bem simpática quando ria. E acho que você a ama.
— Sim, eu a amo. — Ele não lhe ofereceu nenhuma explicação do tipo ”é diferente da maneira como eu te amo, você sempre vai ser minha menininha”. Hunter simplesmente a abraçava, e era suficiente.
— Ela também me ama, mas precisa construir sua própria vida. Sarah não entendeu aquilo e, particularmente, achou meio tolo, mas decidiu não dizer.
— Acho que, no fim das contas, eu não me importaria se ela decidisse se casar com você. Talvez fosse legal ter alguém que parecesse uma mãe.
Ele ergueu uma sobrancelha. Ela nunca perguntara por suamãe. Talvez soubesse, com sua intuição infantil, imaginava Hunter, que não havia nada a perguntar.
— E eu não pareço?
— Você é muito bom — disse ela, graciosamente —, mas não conhece um monte de coisa de mulher. — Sarah cheirou o ar e deu um risinho.
— O bolo de carne já está no ponto.
— Passou do ponto, pelo cheiro.
— Tão exigente! — Ela saltou do colo dele antes que ele pudesse desforrar-se. — Estou ouvindo um carro chegando. Você podia chamar eles para jantar, assim a gente se livra de todos aqueles biscoitos.
Não queria companhia, pensou Hunter, ao ver sua filha sair da sala em disparada. Jantar com Sarah era mais do que suficiente, depois voltaria ao trabalho. Após desligar a máquina de escrever, levantou-se para ir até a porta. Provavelmente eram algumas amigas dela que haviam convencido os pais a dar uma parada lá voltando da cidade. Ele as dispensaria da forma mais educada possível, e depois veria o que poderia fazer com o bolo de carne de Sarah.
Quando abriu a porta, ela estava lá, o cabelo refletindo a luz da noite de verão. Ficou, literalmente, sem ar.
— Oi, Hunter. — Como a voz podia soar tão calma?, pensou Lee, com o coração martelando dentro dela. — Eu devia ter telefonado, mas seu número não está na lista. — Como ele não disse nada, Lee sentiu o coração subir-lhe à boca. De alguma forma, ela conseguiu falar: — Posso entrar?
Silenciosamente, ele recuou. Talvez estivesse sonhando, como o personagem de O corvo. Só estava faltando o busto de Palas Atena e uma lareira se apagando.
Ela gastara quase toda a coragem voltando lá. Se ele não falasse alguma coisa logo, acabariam um olhando para a cara do outro. Como uma palestrante nervosa tendo de falar sobre um tema que não pesquisara, Lee limpou a garganta.
— Hunter...
— Ei, acho que é melhor a gente dar os biscoitos para o Santanas mesmo, porque... — Sarah interrompeu sua desabalada chegada na sala. — Bem... Nossa...
— Oi, Sarah.
Lee conseguiu sorrir, finalmente. A criança estava tão surpresa que era até engraçado. Não tinha a frieza e o distanciamento do pai.
— Oi. — Sarah olhava para um adulto e depois para o outro, sem saber onde fixar o olhar. Imaginava que eles fariam uma confusão danada. Tia Bonnie dizia que casais apaixonados normalmente faziam uma confusão danada, pelo menos durante algum tempo. — O jantar está pronto. Eu fiz um bolo de carne, e acho que não está tão ruim assim.
Lee entendeu o convite e agarrou-se a ele. Pelo menos lhe daria um pouco mais de tempo até que Hunter a expulsasse novamente.
— O cheiro está maravilhoso.
— OK, então entre. — Sarah esticou a mão num gesto quase autoritário e esperou até que Lee a apertasse. — Não está com um visual muito bom — continuou ela, acompanhando Lee até a cozinha —, mas fiz tudo de acordo com a receita.
Lee olhou para o bolo de carne, que mais parecia uma panqueca, de tão amassado, e sorriu.
— Eu não poderia fazer melhor.
— Jura? — Sarah digeriu a palavra de Lee assentindo com a cabeça. — Bem, papai e eu estabelecemos turnos. — E se eles se casassem, imaginava Sarah, ela só precisaria cozinhar a cada três dias.
— É melhor você colocar outra cadeira — disse para o pai. — Os biscoitos não ficaram legais, mas a gente tem um pouco de batata.
Os três se sentaram como se fosse a coisa mais natural a fazer, Sarah serviu e deu início a uma tagarelice tão grande que aliviou a necessidade dos adultos falarem um com o outro. Ambos a respondiam, sorriam, comiam, enquanto seus pensamentos estavam envoltos num turbilhão.
Ele não me quer mais.
Por que ela veio?
Ele nem falou comigo.
O que ela quer. Ela está linda, linda demais.
O que eu faço. Ele está maravilhoso, maravilhoso mesmo.
Sarah ergueu a caçarola que continha o que restava do bolo de carne.
— Vou dar para Santanas. — Como todas as crianças, ela detestava sobras, salvo se fosse macarrão. — Papai tem de lavar os pratos — explicou ela para Lee. — Você pode ajudá-lo, se quiser.
— Depois de colocar o jantar de Santanas na tigela do cachorro, saiu bailando para fora da sala.
— Vejo vocês mais tarde.
Então ficaram a sós, e Lee percebeu que estava apertando tanto as mãos que elas já estavam dormentes. Deliberadamente, liberou os dedos. Ele viu o anel, ainda no dedo dela, e sentiu um aperto no peito seguido de uma sensação de alívio.
— Você está zangado — disse ela, com aquela mesma voz calma e equilibrada. — Sinto muito, eu não devia ter vindo assim.
Hunter se levantou e começou a empilhar os pratos.
— Não, não estou zangado. — Raiva talvez fosse o único sentimento que ele não sentira na última hora. — Por que veio?
— Eu... — Lee baixou os olhos para as mãos, desconsolada. Ela podia ajudá-lo com os pratos, ficar ocupada, permanecer natural. Ela achava que suas pernas não a manteriam de pé por muito tempo. — Terminei o livro — soltou ela, subitamente.
Ele parou e se virou. Pela primeira vez desde que abrira a porta, ela viu aquele quase sorriso em seu rosto.
— Congratulações.
— Quero que você o leia. Sei que eu poderia ter mandado pelo correio... mandei uma cópia para sua editora... mas... — levantou os olhos para ele — não queria enviar pelo correio. Queria trazer pessoalmente. Eu precisava.
Hunter colocou os pratos na pia e voltou para a mesa, mas não se sentou. Tinha de ficar de pé. Se este era o motivo da vida dela, o único motivo, não tinha certeza se teria como encarar.
— Você sabe que eu quero lê-lo. Espero que você autografe o primeiro exemplar para mim.
Ela conseguiu dar um sorriso.
— Não estou tão otimista assim, mas você estava certo. Eu precisava terminá-lo. Queria agradecer-lhe por ter me mostrado isso. — Seus lábios continuavam franzidos, mas ela não estava mais sorrindo. — Deixei meu emprego.
Ele não havia se movido, mas pareceu.
— Por quê?
— Precisava tentar terminar o livro. Para mim. — Se ao menos ele a tocasse, apenas a mão, ela não se sentiria tão enregelada.
— Eu sabia que, se fosse capaz de fazer aquilo, poderia fazer qualquer coisa. Precisava provar a mim mesma antes que eu... — Lee baixou a voz, impossibilitada de dizer tudo aquilo.—Andei lendo seus trabalhos, seus primeiros trabalhos como Laura Miles.
Se ao menos pudesse tocá-la... Mas, uma vez que a tocasse. Jamais a deixaria ir embora novamente.
— Você gostou?
— Gostei. — Havia uma prolongada surpresa na voz dela que foi suficiente para fazê-lo sorrir. — Eu jamais acreditaria que pudesse haver uma similitude de estilos entre um romance água-com-açúcar e uma história de terror, mas há. Atmosfera, tensão, emoção. — Ela respirou fundo e olhou para ele. Aquele era, talvez, o passo mais difícil que tomara até agora. — Você entende os sentimentos das mulheres. Transparece em seu trabalho.
— A palavra escritor não deveria ter gênero.
— Mesmo assim, acho que é um dom raro um homem ser capaz de entender e apreciar os tipos de sentimentos e de inseguranças que existem em todas as mulheres. — Os olhos dela novamente encontraram os dele, mas dessa vez não desviou o olhar.
— Espero que possa fazer o mesmo comigo.
Ele a penetrava novamente com o olhar. Ela podia sentir.
— É mais difícil quando suas próprias emoções estão envolvidas, Ela apertou os dedos com força.
— Elas estão?
Ele não a tocou, ainda não, mas Lee pensou que estava quase sentindo a mão dele em seu rosto.
— Você precisa ouvir de mim que te amo?
— Preciso, eu...
— Você terminou seu livro, saiu de seu emprego. Arriscou muito, Lenore. — Ele esperou. — Mas ainda precisa arriscar muito mais.
Ela sentiu uma súbita falta de ar. Não, ele jamais tornaria as coisas fáceis para ela. Sempre haveria exigências, expectativas. Ele jamais a mimaria.
— Você me deixou aterrorizada quando me pediu em casamento. Pensei muito no assunto, da mesma maneira como uma criancinha pensa no armário escuro. Não sei o que vou encontrar lá dentro, pode ser um sonho ou um pesadelo. Você sabe do que estou falando.
— Sei. — Embora não tivesse sido uma pergunta. — Eu sei bem. Ela respirou um pouco mais facilmente.
— Usei como desculpa o que eu tinha em Los Angeles, porque era lógico, mas aquele não era o motivo real. Eu estava apenas com medo de entrar naquele armário.
— E continua com medo?
— Um pouco. — Foi mais difícil do que ela imaginara conseguir relaxar os dedos. Ela imaginava se ele sabia que aquele era o passo final. Ela estendeu a mão. — Mas quero tentar. Quero entrar lá com você.
Os dedos dele enlaçaram-se nos dela, e ela começou a sentir os nervos derretendo. É claro que ele sabia.
— Não será nem sonho nem pesadelo, Lenore. Cada minuto será real.
Então ela riu, porque as mãos dele estavam nas dela.
— Agora você está realmente tentando me assustar. — Ela se aproximou e o beijou suavemente até que o desejo virou um singelo bramido. Era fácil, era como deslizar numa correnteza límpida e quente.—Você não vai me fazer fugir de medo — sussurrou ela.
O abraço dele era bem forte, mas ela quase não reparou.
— Não, não vou fazê-lo fugir de medo. — Ele aspirou o aroma do cabelo dela, espojou-se naquela textura. Ela viera para ele. Completamente. — E também não vou deixá-la partir. Esperei muito que voltasse.
— Você sabia que eu voltaria — murmurou ela.
— Eu precisava. Do contrário, teria enlouquecido.
Ela fechou os olhos, contente, mas com uma excitação angustiada por baixo.
— Hunter, e se Sarah... quero dizer, e se ela não conseguir se ajustar...
— Já está preocupada. — Ele a abraçou — Sarah me jogou uma indireta esta noite mesmo. Você sabe sobre muitas coisas de mulher?
— Coisas de mulher?
Ele a abraçou mais ainda, e a olhou de cima a baixo.
— Cada centímetro de mulher. Você vai entender, Lenore, por mim e por Sarah.
— Tudo bem. — Ela respirou fundo porque, como de costume, acreditava nele. — Eu gostaria de estar junto quando você contar a ela.
— Lenore — ele pegou seu rosto e beijou as faces com delicadeza e uma pontinha de humor —, ela já sabe.
Ela franziu o cenho.
— Só podia ser sua filha.
— Exatamente. — Ele a agarrou e a sacudiu por um momento, numa pura e irreprimível alegria. — A moça vai achar interessante morar numa casa cheia de monstros reais e imaginários.
—A moça pode lidar com isso — rebateu ela —, e tudo o mais que você possa sonhar.
— É mesmo? — Ele lançou-lhe um olhar maldoso de prazer, desejo e conhecimento, enquanto a soltava. — Então vamos lavar logo esses pratos e vou ver o que posso fazer.
Nora Roberts
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