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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR E DINHEIRO / Erskirre Caldwell
AMOR E DINHEIRO / Erskirre Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Conta Rick Sutters, escritor profissional, que se apaixonou por Tess no Orange Blossom Bar, em Sarasota, onde ela lhe servia as bebidas. O seu editor e o seu agente tentam tudo para fazê-lo regressar ao trabalho, mas em vão. Tess chega a fugir dele e passa o tempo a mudar-se: Nova Orleães, Texas, Colorado.

Os amigos armam-lhe mesmo ciladas sentimentais com o intuito de afastá-lo do rasto de Tess e livrá-lo daquela obsessão.

Escreve Rick: «Nunca existiu amor suficiente para uma ligação. O problema reside em que, quando se recebe um pouco, algo corre sempre mal e perde-se o que se conquistou. É então que mais se sente a falta - é então que mais se deseja...»

Narrada com grande ternura, e muito diferente das obras do autor que abordam problemas dos brancos e dos negros do Sul, esta invulgar história de amor não deixa de possuir o toque de humor irónico em que Erskine Caldwell é, indubitavelmente, mestre.

 

 

 

 

Ao cabo de dois dias e duas noites agitados em Sarasota, enviei um telegrama a Harvey Farthing, pedindo-lhe que tentasse organizar a vida, de forma a sair de Nova Iorque no fim-de-semana e passar uns dias na Florida. Voltara a iniciar uma daquelas fases de paragem - uma interrupção que agora se verificava quase todos os anos - e Harvey era a única pessoa com a qual se apetecia estar e falar e sentia-me à vontade para o chamar mais uma vez.

Harvey Farthing orgulhava-se extraordinariamente de ser um homem que planeava os seus assuntos, tanto profissionais como pessoais, ao pormenor de dia e hora e com semanas de avanço. Nos negócios, rodeava-se somente de pessoas que respeitavam e eram capazes de manter uma exactidão impecável. A sua vida pessoal era gerida por uma repartição de tempo, tal como quinze minutos para se vestir de manhã e vinte minutos para um cocktail de inauguração e raramente se dava ao luxo de se desviar ou rever a sua forma rígida de actuação.

Estávamos, contudo, no início de Abril e, depois de um convívio de quinze anos com Harvey, sabia que lhe agradaria ter um motivo para viajar até à Florida nesta época do ano. Noutras ocasiões e, regra geral no fim da Primavera, já tivéramos encontros semelhantes com tão breve aviso, em Key West e Marathon e em Fort Meyers e sentia-me confiante de que ele esquematizaria os seus projectos de fim-de-semana para se encontrar comigo, desta vez em Sarasota.

Quando nessa noite regressei tarde ao hotel, não me esperava resposta de Harvey e, antes de adormecer, interroguei-me sobre se teria recebido o meu telegrama ou por qualquer motivo estaria a ignorá-lo. Nunca costumava deixar de reagir pronta e resolutamente.

O telefone tocou às sete em ponto da manhã seguinte. Não deixara mensagem para me acordarem, mas reconheci, imediatamente, a voz um tanto aguda e entusiasmada de Harvey Farthing. Sabia-me bem despertar ao som da sua voz familiar. Perguntei-lhe antes do mais se estava em Nova Iorque ou em Sarasota. Fiquei, naturalmente, satisfeito quando me respondeu que estava ali no mesmo hotel.

- Encontramo-nos na cafetaria dentro de vinte minutos, Rick - declarou com a habitual precisão.

Conhecendo tão bem Harvey, estava certo de que ele tinha um bloco e caneta e procedia a um minucioso registo da nossa conversa para que, se ocorresse qualquer mal-entendido quanto ao local e hora do nosso encontro, ser capaz de citar as palavras exactas, que cada um de nós utilizara.

- Suponho - prosseguiu - que o restaurante de um hotel americano de cinco estrelas estará aberto, o mais tardar, às sete e meia da manhã. Este país ver-se-á à beira da decadência, se os dorminhocos deixarem de justificar que os restaurantes de hotéis abrem a horas decentes. Importantes civilizações do passado ruíram por motivos muito menos significativos.

- Um minuto, Harvey - protestei. - Estás a ir rápido de mais. Para quê apressarmo-nos tanto a esta hora da manhã? Não faz sentido esta corrida contra o tempo. Telefona para a tabacaria e pede um jornal ou outra coisa qualquer.

- Já o fiz, Rick. Acabei de passar em revista as notícias do dia. Um violento tufão assolou uma cidade de Oklaoma ao cair da tarde de ontem e matou doze pessoas, cinco delas crianças. Não se passou nada de importante em Washington.

As acções da Bolsa de Washington Street subiram oportunamente. Um grupo empreendedor de contribuintes locais apelou ao governador do estado para que proceda a uma análise exaustiva das taxas utilitárias. Já estás levantado e vestido, Rick?

- Não - respondi num tom, que sabia desagradável. - Ainda é cedo. Volta a consultar o relógio.

- Sei muito bem as horas - redarguiu, impaciente. - Há minutos, antes de te telefonar, acertei o meu relógio com um sinal horário e possuo uma diferença de cinco segundos em relação a esta zona particular, segundo os cálculos do observatório solar, meridiano de Greenwich. Sabes que horas são ao certo?

- Nem me interessa - retorqui. - É cedo, sejam quais forem.

Fez-se um silêncio de momentos do outro lado da linha e imaginei que Harvey estava a escrever algo no bloco de apontamentos. Talvez fosse um registo da nossa conversa, ou um rascunho de algo que tencionasse fazer quando regressasse a Nova Iorque.

- Desde a meia-noite que estou aqui, Rick - dizia agora -, o que considero suficiente para pôr as coisas a rodar. Descansei enquanto o avião aterrava, dei um longo passeio pelo parque, junto à baía, a cheirar a jacarandá, antes de subir ao meu quarto e dormi seis horas de um sono profundo nesta atmosfera repousante, resguardada pelas persianas. É sono que chegue para um homem em Abril e em qualquer latitude. Se se dormir dez horas de um sono profundo em Dezembro, fica-se com uma boa média para todo o ano. Os homens sensatos estão conscientes desta provisão da natureza. Pensa no urso hibernante. Pensa na dorminhoca preguiça. Até daqui a um quarto de hora, lá em baixo, Rick.

- Como está a Charlotte? - apressei-me a perguntar, antes que ele desligasse o telefone.

- Está de boa saúde e de óptima disposição. A Charlotte é relativamente feliz, tão feliz e alegre quanto o é, nestes dias, uma mulher americana com a sua idade e temperamento. Atingiu uma noção de independência e responsabilidade feminina. Possui, assim, a dose certa de equilíbrio e um mínimo de frustração. Sendo essencialmente inteligente, precaveu-se com uma vida sexual equilibrada. Charlotte ocupa-se com o número suficiente de actividades fora de casa, que lhe preencham o desejo de competição. Uma dessas actividades proporciona-lhe uma remuneração em part-time e permite-lhe satisfazer o instinto de compra. Sinto-me muito contente com a vida física, mental e emocional de Charlotte. Deu-lhe a felicidade que todas as mulheres merecem.

- Ao ouvir-te falar, Harvey, qualquer pessoa fica com a impressão de que és casado com a única mulher nos Estados Unidos que se aproxima da perfeição.

- O que é provavelmente verdade - replicou, sem hesitar. - Um homem é um idiota chapado se casar com uma mulher incapaz de atingir a plenitude do seu sexo. A natureza dotou o homem com a capacidade de ler todos os indícios e portentos, que constituem guias infalíveis quanto à escolha inteligente de uma companheira.

- Presumo que tens uma pena imensa do resto de nós, ao de cima da terra.

- Sou tolerante, Rick. Reconheço o facto de que não existe, provavelmente, o número bastante de mulheres superiores por aí.

Interroguei-me sobre quanto tempo seria capaz de entreter Harvey ao telefone, antes de ser obrigado a levantar-me e a vestir-me. A pausa na conversa estava a prolongar-se e sabia que tinha de actuar rapidamente.

- Quanto tempo podes ficar em Sarasota? - apressei-me a inquirir.

- Vejamos. Hoje é sexta-feira. Tenho sexta, sábado e domingo. Tomarei providências, de forma a apanhar um avião que me leve de volta a Nova Iorque, o mais tardar à meia-noite de sábado. O que nos significa amanhã, à noite. Quando recebi o teu telegrama, consegui adiar algumas das minhas entrevistas para domingo de manhã, a partir das nove. O que me permitirá cumprir os compromissos de segunda, de acordo com o programado. Há quanto tempo estás aqui, Rick?

- Há uns dias - respondi.

- O que tens feito?

- Fui passear um dia pelo Golfo e, noutro, apanhei sol na Siesta Key. É tudo.

- Apanhaste um agulhão?

- Não. Duas garoupas.

- Pouca sorte - observou, compassivo. - Espero que para a próxima apanhes um agulhão. Tens amigos nestas bandas?

- Não conheço ninguém na cidade, excepto o Ronnie do Orange Blossom Bar. Vou apresentar-to.

- Quanto tempo vais ficar?

-Veremos. Falemos primeiro desse assunto. Foi por isso que quis que viesses até aqui, Harvey.

- Isso é que é falar, Rick! - exclamou, agora mais entusiasmado. - É o que gosto de ouvir, Deus nos abençoe! Fiquei muito contente ao receber o teu telegrama, pois desde a véspera de Ano Novo que o esperava e já lá vai um tempão. Passaram três meses desde então e entrámos no quarto. Estava, naturalmente, preocupado e começava a pensar que teria de te procurar, algures, nos Estados Unidos - embora não soubesse muito bem onde - e zangar-me contigo.

Fez uma pausa e tive a certeza de que estava a anotar qualquer coisa no bloco.

- Estou contentíssimo por teres algo em vista, Rick - continuou - e quero saber tudo. Talvez decidas instalar-te em Sarasota, por uns tempos, agora que a época turística baixou, o circo deixou o aquartelamento de Inverno e todos os suados jogadores de basebol vão a caminho dos terrenos da casa. Arranja um sítio confortável na praia, um grupinho de empregados domésticos eficientes e deita-te ao trabalho. Estamos numa época fantástica do ano para começar a trabalhar, Rick. É a estação vernal para gente como nós, Deus nos abençoe. Às vezes digo para mim próprio que uma condescendente natureza providenciou esta época do ano, apenas para pessoas da nossa estirpe. Que os nossos corações se sintam gratos até ao final dos nossos dias na terra! Até daqui a dez minutos, lá em baixo, Rick!

Eram quase oito horas, quando desci até ao restaurante do hotel. Harvey trazia a pasta com ele - nunca o vira sem aquela volumosa e gasta pasta de cabedal preto - e estava a ler um enorme maço de documentos e a beber café puro, quando o avistei junto a uma das janelas banhadas pelo sol. Afastou de imediato os papéis, levantou-se e apertou-me demoradamente a mão.

Passara mais de um ano desde que tinha visto Harvey, mas não aparentava haver envelhecido um dia e talvez parecesse rejuvenescido. O rosto magro e comprido emanava o mesmo brilho intenso de sempre e a luminosidade penetrante dos olhos azuis mantinha-se fascinante. Somente detectei uma mudança: o cabelo castanho-claro apresentava-se mais farto e encrespado do que no ano anterior. Embora eu e Harvey tivéssemos mais ou menos a mesma idade - estávamos próximo dos quarenta - ele parecia, agora mais do que nunca, ter alguns anos a menos do que eu.

A atitude amistosa, agradável e afável do Harvey mostrava como se sentia contente por lhe ter pedido que viesse passar o fim-de-semana a Sarasota. Vestia como sempre vestira, quer em Nova Iorque, Florida, Califórnia ou a escalar as vertentes cobertas de orvalho e zimbro da sua herdade de Vermont. Tinha provavelmente, pelo menos, seis ou sete mudas de roupa - tinha um contrato permanente com um alfaiate de Filadélfia quanto a fornecer-lhe dois fatos por ano -, mas nenhum dos seus fatos, tanto quanto me era possível diferenciar, se distinguia dos outros. Preferia um tom que nunca era mais claro do que o cinzento carvão e um corte severo, que o tornava semelhante à caricatura de um modelo de roupa masculina do século passado. Os colarinhos das camisas brancas eram tão apertados, que sempre pareciam sufocá-lo. Usava sapatos impecavelmente engraxados e pretos com atacadores cor de sangue de boi. Os atacadores coloridos constituíam a sua única excentricidade no vestir.

- Come uma papaia, Rick - convidou Harvey, quando nos sentámos à mesa. - É um acepipe delicioso. A empregada com as meias de costura preta recomendou-ma. Comi algumas, gostei e agora sou eu a recomendar-tas. Não há nada como começar o dia com os frutos exóticos dos trópicos - pelo menos, quando se está próximo dos trópicos. Não te esqueças também de pedir pão de trigo e pastéis de bacalhau e não papaia, quando estiveres em certas regiões setentrionais do mundo, incluindo a Península do Lavrador, ou ficarás com o dia estragado.

- Lembrar-me-ei da próxima vez que for visitar-te à tua herdade de Vermont - repliquei. - Lembrar-me-ei de ser muito desagradável, se não me servires pão de trigo e pastéis de bacalhau todas as manhãs, ao pequeno-almoço.

- Rick - exclamou, com veemência e inclinando-se sobre a mesa na minha direcção. - Rick, meu amigo, não quero sequer que penses em visitar-me, quer eu esteja em Vermont, Nova Iorque ou em qualquer outro lugar, nos tempos mais próximos. Falo a sério, Rick. Passemos ao trabalho neste novo livro que vais escrever. Isso vai manter-te amarrado, concentrado e totalmente absorto, durante cerca de um ano. Depois disso, é óbvio que Charlotte e eu teremos o maior prazer em ver-te em Nova Iorque, Vermont ou em qualquer sítio do mundo, em que estejamos.

Seguiu-se um prolongado silêncio. Harvey observava-me atentamente, como que para se dar conta do efeito que as suas palavras directas haviam produzido em mim. Mantivera-me calado.

- Sabes que fico sempre satisfeito em ver-te, quando estás entre dois romances como é o caso - continuou - porque me compete levar-te a iniciar um novo livro - quero dizer, evidentemente, levar-te a escreveres um novo, só depois de teres repousado, como deve ser, de todo o stress e ansiedade de trabalhares no anterior. Sempre tive como política proporcionar a um escritor, o cuidado, exercício e atenção que um altamente cotado, valioso e puro sangue de corrida recebe. Agora, que que me contes tudo, Rick. Para quando podemos programar a publicação? Na Primavera do próximo ano ou no Outono do próximo ano? O teu último romance veio a lume no final da última época. Não seria uma boa política editorial, protelar o espaço para além de um ano e meio, dois no máximo. A razão para o espaço de tempo reside em que não queremos que o teu público te esqueça, nem queremos que esqueças o teu público. Agora, diz-me algo sobre o novo livro, Rick. Arranjaste um bom título? Vai ser um romance histórico, segundo o teu habitual estilo e modelo? Qual o cenário desta vez? Em que época? Tem algumas personagens históricas conhecidas? Como se chama a heroína?

- Mais devagar, Harvey - protestei, abanando a cabeça. - Cada coisa por sua vez.

A empregada aproximou-se da mesa e encomendei papaia, ovos mexidos e café. Quando ela se afastou, Harvey seguiu-a com os olhos, supostamente para se certificar se as costuras das meias de vidro continuavam direitas.

- De acordo, Rick - concordou, recostando-se na cadeira, com um sorriso afável. - Tenho, por vezes, o defeito de me ultrapassar a mim próprio. Ainda bem que falaste, como o fizeste. A propósito e para tua informação, as costuras das meias da empregada ainda estão direitas. Achas que é possível que tenha pintado costuras nas pernas? O teu último livro ainda está a vender-se bem por todo o país. As vendas serão indubitavelmente boas, senão superiores, às do teu último romance nestes últimos anos. Esperamos esgotar a edição e reeditar - talvez dentro de seis meses seja o prazo ideal para fazer o acordo de reedição - e como muito bem sabes, o teu agente acabou de negociar a venda para direitos cinematográficos, a um preço surpreendentemente elevado. Portanto, tens todos os motivos e mais um para te sentires satisfeito com o mundo.

Harvey fitou-me intensamente, como se me convidasse a fazer qualquer comentário.

- Tenho um bom agente e tenho um bom editor - redargui. - Não me queixo, Harvey. Tenho sorte em ter Jack Bushmillion como agente e em te ter como meu editor. É uma combinação ideal.

- E nós temos sorte em ter-te, Rick - replicou num tom sincero e voltando a inclinar-se na minha direcção. - Tens sido a espinha dorsal na nossa lista de publicação já não sei há quanto tempo - quinze anos, pelo menos - e esta espinha dorsal torna-se maior e mais sólida, de cada vez que publicamos um dos teus romances. Trata bem da tua saúde e sê igualmente esperto quanto à tua vida pessoal. Não estaria mais interessado na condição de um cavalo de corrida do que na tua. Controla as emoções e não te exponhas a uma mulher. É este o segredo do sucesso para um escritor do teu calibre, Rick. A negligência e uma bela e atraente mulher têm arruinado muito bons escritores no intervalo entre dois livros. Sempre me intrigou por que é que montes de mulheres possuem um sexto sentido em relação a este tipo de coisas - ou seja, onde vão buscar a capacidade de se consciencializarem deste facto, invisível à vista desarmada, de que um autor está entre dois livros e... bum! Com uma massagem facial e um levantar de saias, desencadeia-se a inevitável caça. Como é que uma mulher sabe que um autor acabou de escrever um romance e anda à procura de uma ideia para o seguinte? Trata-se, contudo, de um acaso insuperável e por esse motivo convém precaver-se e prever.

Parou e fixou-me bem no fundo dos olhos por muito tempo e sem esboço de sorriso.

- Agradeço-te o sábio conselho, Harvey - comentei despreocupado e com uma ligeira risada, ante a sua seriedade. - Vou tomá-lo a peito, pois sei que gastaste muito do teu tempo e energia a testar os prós e os contras da tua filosofia.

Harvey serviu-se de mais café e bebeu-o em pequenos goles, enquanto me observava com os penetrantes olhos azuis. Acabei de comer a papaia e dediquei as atenções aos ovos mexidos.

- Não estou a esconder-te o facto de que ganhamos muito dinheiro contigo, Rick - continuou. - Sinto-me orgulhoso como aconteceria a qualquer outro editor no meu lugar, e cumpre-me impedir que percas o rumo. Recorda-te de que estou sempre à tua disposição e de bom grado, quando precisares de conselhos relativos à tua vida pessoal. Estou convencido de que quanto mais famoso um escritor se torna, mais precisa do conselho e compreensão de um amigo sobre mulheres e todas as questões privadas.

Fitou-me, como se esperasse qualquer palavra de aprovação, antes de prosseguir.

- Aprecio o teu interesse pelo meu bem-estar, Harvey - retorqui.

- Óptimo! - exclamou com um aceno de cabeça. - Agora, antes de me ir embora de Sarasota, gostava de saber qual o adiantamento que desejas desta vez, se gostarias de o receber todo, se preferes um pagamento mensal ou prestações trimestrais. Fala à vontade, Rick, pois queremos que te sintas feliz quanto ao lado financeiro. Estamos preparados, como habitualmente, para te pagar um avanço razoável pelos direitos - e decerto mais do que qualquer outro editor em actividade presentemente. Apenas quero que me digas o que queres e como, e Jack Bushmillion e eu encarregamo-nos dos pormenores. Depois de todos estes anos de amizade e negócio, não tenciono permitir que os romances de Roderick Sutter sejam publicados por mais alguém. Agora, diz-me, de que é que trata o novo, Rick?

- Tem cerca de trezentas e cinquenta páginas - informei no tom mais sério que consegui.

Harvey fixou-me, com uma expressão fria, por momentos. Era óbvio que se sentia aborrecido.

- Trata-se de uma quantidade boa, sólida e comercial para um romance histórico do género dos que escreves, Rick. - Continuou a observar-me com uma expressão grave e firme. - E qual é o tema?

- Foi esse o motivo por que quis falar-te, Harvey - apressei-me a elucidar. - Desta vez ainda não decidi qual o género de história que vou escrever e não quero que me torças o braço e me obrigues a tomar uma decisão a esse respeito nesta fase. Quero ter a liberdade de escolher o assunto, quando chegar a altura própria. Deixa-me apresentar-te o tema, quando estiver preparado, Harvey.

- Jamais me passaria pela cabeça tentar influenciar um autor com as tuas capacidades e status, Rick, no que se refere à escrita para o público leitor. Escreves - publico - o público lê. É essa a minha filosofia, de «um, dois, três».

- Seja como for, tenciono escrever um romance muito diferente desta vez. Foi uma decisão que tomei.

- Escreves sempre um romance diferente, Rick - comentou sinceramente. - Esse o motivo porque tens sido o nosso escritor número um da lista todos os anos e esse o motivo por que continuarás a sê-lo na nossa lista durante os próximos dez, quinze ou mais anos. Apresentas sempre um tema arrebatador, que prende, invariavelmente, a imaginação do público leitor - deixemos de lado os revisores literários e críticos - e é assim que queremos que seja. Não penses por um momento que seja que ousaria dizer-te o que escreveres e como. Além de que nunca tentaria levar-te a escolheres um cenário ou época em que acharia que irias sentir-te desconfortável e infeliz, mesmo que me fosse possível antecipar lucros extraordinários.

- Ainda bem que vês as coisas na minha perspectiva, Harvey - redargui. - Era o que esperava de ti.

- Podes sempre contar com a minha cooperação incondicional, Rick - garantiu.

Virou-se e olhou pensativamente através da janela na direcção do sol da manhã, que se reflectia sobre o Golfo azul. Dúzias de barquinhos de pesca, ancorados ao largo como bóias brancas, flutuavam preguiçosamente sob a brisa de Sudoeste. Harvey voltou-se para mim e um sorriso recortou-se no rosto magro e comprido.

- E que tal o cenário do Golfo do México desta vez? - sugeriu, ao mesmo tempo que o sorriso se alargava. - Já pensaste nisso, Rick? Dantes, os piratas costumavam navegar no Golfo e ninguém sabe quanto pilharam a gente trabalhadora e decente. Ninguém sabe quantos destes galeões de piratas se afundaram, durante tempestades, ao longo destes baixios e recifes. Algum deste ouro, milhões e milhões dele, ainda se encontra no interior dos cascos apodrecidos destes galeões afundados, neste preciso momento. Pensa nisso. Pensa no que aconteceu, quando um galeão pirata se afundou ali durante um ciclone tropical, há cem anos! É o tipo de recordação que nos faz o sangue correr com mais força nas veias!

Observava-se como se esperasse que todo o seu entusiasmo me contagiasse nesse instante.

- É o teu tipo de história, Rick - prosseguiu num tom de voz mais agudo. - O bando de rudes salteadores em que estes piratas se transformaram - num momento navegando um galeão que transportava milhões e milhões de ouro ou prata à sua disposição, para, no momento seguinte, terem consciência de que o seu navio se afundara nas profundezas das águas do Golfo! Talvez os barcos fossem fragatas ou navios corsários e não galeões, mas é algo que podes verificar mais tarde.

Tratava-se, contudo de barcos manobrados por piratas e quando um deles se afundava numa tempestade tropical, bastava para que qualquer homem se tornasse violento e vingativo. E quando os mais fortes e os mais corajosos conseguiam chegar a terra a nado, imagina o furor que se desencadeava ante aquele bando de saqueadores buscando vingança!

Esbocei um aceno de concordância, mas abstive-me de comentários.

- Pensa na excitação que se espalhava, como uma vaga, ao longo das praias e enseadas quando estes brutos chegavam à margem destas águas cor de esmeralda, vestidos com os trajos coloridos, que usavam nessa época aventureira, há cem anos atrás. Que quadro vivo me ocorre à mente, o de há cem anos! Que cenário inesquecível para os leitores de romances históricos! Não me restam dúvidas de que o mais forte e o mais corajoso deles era um pirata com um bom fundo - um indivíduo chamado Erasthotenes Cutlass - e Erasthotenes fez o seu melhor por refrear este bando de rudes saqueadores. E o mais nobre acto da vida de Erasthotenes Cutlass ocorreu quando salvou uma bela jovem morena e a transportou nos braços até à segurança da terra. Praticaria um tal acto, porque a sua personalidade era mesmo assim. Recorda-te, contudo, Rick, de que não estás a escrever este romance para eu ler. Estás a escrevê-lo para aquela simpática e idosa senhora de Newburyport e para a sua irmã mais velha em San Mateo.

Fez uma pausa momentânea, respirou fundo e estendeu ao mesmo tempo a mão por cima da mesa, agarrando-me no braço. Sacudiu-me, entusiasmado.

- Deus misericordioso! Que cenário para um romance histórico de provocar calafrios! E quanta humanidade para povoar este cenário! Pensa bem nesta hipótese, Rick. Em que outro lugar de todo o mundo poderia ter acontecido senão nas margens selváticas deste paraíso tropical banhado pelo sol? Pensa na vilania e rapina, que aterrorizaram estas pobres vítimas esquecidas por Deus! Imagina o calafrio que invadiu o peito de todas as mulheres bonitas, quando estes malditos saqueadores chegaram à praia!

Harvey soltou-me o braço e recostou-se na cadeira. Movia devagar a cabeça para cima e para baixo num gesto de satisfação, ao mesmo tempo que um sorriso de contentamento se lhe espalhava no rosto magro e comprido.

- Que começo magnífico, Rick! E trata-se de um tema fantástico, digno do teu talento. Nem consigo expressar-te quanto me sinto satisfeito. Vai ser o teu melhor favorito! Boa sorte, Rick, e Deus te abençoe!

 

POUCO depois da meia-noite e de ter ficado sentado, durante uma hora ou mais, na muralha da praia, afastei-me do parque junto à baía e pus-me a vaguear pela cidade, num passeio inquieto.

As árvores de jacarandá do parque apresentavam-se em botão e os caminhos e áleas encontravam-se pejados de pétalas azuis. Um aroma doce e intenso pairava na atmosfera húmida. Por entre os barcos à vela e barcos a motor ancorados na bacia, algumas festas tardias continuavam em iates pouco iluminados e barcos de cruzeiro e a música de dança familiar pairava, romanticamente, sobre as águas na noite perfumada e estrelada. De vez em quando, chegado de qualquer ponto da noite, um riso jovem misturava-se ao marulhar das ondas e à música sensual.

Quando cheguei à estrada, que separava o parque da cidade, avistei a luz amarelada sobre a ombreira do Orange Blossom Bar e avancei nessa direcção. Não havia qualquer outro lugar, onde me apetecesse ir a esta hora da noite. À excepção dos hotéis, bares e dois ou três cafés, que se conservavam abertos durante toda a noite, tudo o mais estava encerrado, nesta parte da cidade.

Era a época do ano na Costa do Golfo, onde se deseja, por vezes, que as noites nunca acabem e quando se estava só e triste como no meu caso, esperava-se que esta noite especial nunca fosse substituída pela dura claridade da manhã. Sempre existiram estas noites estreladas em todos os lugares do mundo e sempre existirão e, no entanto, quando se está só numa delas, sente-se que em nenhum outro tempo ou lugar seria possível encontrar tanto conforto e prazer na solidão à nossa volta.

A última coisa que me apeteceria nesse momento seria subir ao meu quarto no hotel e dar voltas na cama, sem sono e agitado, até de manhã. Continuava a pensar na conversa e argumentos trocados com Harvey Farthing e continuava tão inseguro, como até aí, relativamente ao tema que tencionava usar para um novo livro. De cada vez que me preparava para escrever outro romance, verificava-se sempre um idêntico e longo período de incerteza, insatisfação e tensão nervosa que tinha de aguentar, até a trama da história assumir forma e se tornar dominante e fixa no meu espírito. Enquanto vivia estas tormentosas semanas de indecisão estive, frequentemente, à beira de jurar não voltar a escrever um romance em toda a minha vida. No entanto, de cada vez que a história começava e se encaminhava para o final, sabia com base na extraordinária sensação de contentamento, que acabaria sempre por escrever mais um romance.

Existe uma infindável variedade de gente e coisas, tanto reais como imaginárias, que podem servir de tema a um romancista, mas talvez porque haja um leque tão vasto de escolha se torne, por vezes, difícil eliminar todas as histórias, à excepção de uma. Acho que, no final, muitos escritores optam pelo tema que mais profundamente os toca no íntimo; outros escolhem, sem dúvida, o mais passível da melhor recompensa. Harvey estava certo de que me deixara com a determinação inspirada de escrever o romance, que me propusera com tanto entusiasmo. Fora o que me dissera no aeroporto, quando subira para o avião com destino a Nova Iorque. No entanto, eu ainda me mantinha pouco convicto de que a história, que me tinha sugerido, fosse a que eu desejava escrever a seguir. Sabia que se a actual fase de agitação se assemelhasse, de qualquer forma, às anteriores, passaria um mês ou mais, antes de tomar a decisão final.

Quando entrei no Orange Blossom Bar, Ronnie estava ocupado a preparar bebidas para um turbulento bando de sete ou oito pessoas, um grupo desportivo de rapazes e raparigas, obviamente com tenção de passarem uma noite divertida na cidade e, a fim de fugir à alegria privilegiada dos estrangeiros, sentei-me a uma das mesinhas lacadas de preto, no canto menos iluminado da sala.

A empregada, Tess, que se conservava em pé ao fundo do bar, conversando com Ronnie, aproximou-se da mesa e perguntou-me o que desejava tomar. Num tom brusco e algo desagradável respondi-lhe que esperaria um pouco antes de mandar vir uma bebida. Fitou-me, durante uns momentos, com um olhar penetrante e, em seguida, sem pronunciar uma palavra, virou-me as costas, como mais tarde me recordei nitidamente, e regressou ao seu habitual lugar no bar, com um atraente menear de ancas. Deixei-me ficar sentado nos quinze minutos seguintes, fitando com ar taciturno, os ramos de laranjeira, que tombavam do mural que decorava a parede. Sentia-me triste e deprimido e extraordinariamente infeliz.

Algum tempo depois, o alegre grupo de rapazes e raparigas, levaram todo o barulho com eles, saíram para a rua e encaminharam-se para outro bar. Ronnie limpou prontamente a desordem ocasionada e aproximou-se de onde eu me encontrava encolhido no canto. Ronnie era um homem de baixa estatura e tez escura, no início dos quarenta, com a testa bastante curta e cujos ombros largos e bícepes musculosos davam a impressão de que, em qualquer altura da vida, fora um lutador ou boxeur profissional. Mantinha, por regra, um porte severo, mas quando sorria, era simpático.

Fiz um breve aceno de cabeça a Ronnie, quando ele se sentou. Começou por me observar interrogativamente mas sem pronunciar palavra.

- O que se passa consigo, Rick? - inquiriu depois, com os modos bruscos, que o caracterizavam. - Até parece que lhe aconteceu qualquer desgraça - acrescentou, estendendo a mão por cima da mesa e batendo-me no peito com o punho, num gesto amigável. Acendi um cigarro, antes de lhe responder.

- Sinto-me exactamente como pareço, se é que estou mesmo com mau aspecto - retorqui, com um aceno de cabeça.

Ronnie estudou-me o rosto com um olhar rápido.

- Onde está o amigo que esteve aqui consigo há bocado? Foi-se embora?

- Apanhou o último avião de regresso a Nova Iorque - expliquei. - Harvey é um homem ocupado, Ronnie. Diz que não se pode dar ao luxo de desperdiçar tempo na Florida. Chama-lhe uma perda de energia e recursos humanos.

- Há montes de gente, que não conseguem descontrair-se quando estão de passagem na Florida. Leva tempo a aprender. O meu problema reside em que aprendi bem de mais a descontrair-me. Agora seria esse o meu estado permanente, se não tivesse de sobreviver.

Esbocei um gesto de concordância.

- Esse seu amigo também é escritor?

- Não. É editor e livreiro. Um outro ramo da espécie. Se Harvey pertencesse a uma raça de cães, seria com toda a probabilidade um boxer rezingão, teimoso e babado. Se os escritores pertencessem à família dos cães, seriam cachorrinhos de estimação ou velhos cães de caça.

- Uma coisa! Trabalha para ele, ou ele trabalha para si, ou o quê? - interessou-se. - Muitas vezes me tenho interrogado como é que se trabalha na sua profissão.

- O quê... é a resposta exacta - repliquei com uma leve risada.

- Foi o que pensei - observou. - Passa-se o mesmo com toda a gente, onde quer que seja. Todos levamos uma vida assim.

- É diferente ser escritor, Ronnie - contrapus. - Sentia-me contente por poder falar com alguém e depois de umas meras palavras com ele, já começava a ficar melhor. Ronnie era sempre um bom ouvinte. - Vou contar-lhe como é, Ronnie. Um escritor nunca tem a certeza de para quem trabalha. Fica-se sempre entregue a si próprio e que Deus nos ajude do princípio ao fim. Escreve-se um conto ou um romance e pode acontecer nunca se ver ninguém a lê-lo. Montes de pessoas dirão que ouviram falar dele, que tencionam lê-lo ou algo do género. Mas não é muitas vezes que se vê alguém ler uma coisa que escrevemos. É o que por vezes nos leva a perguntar se outra pessoa, à excepção do tipógrafo, chega a ler o que se escreve. Consigo as coisas não se passam assim, Ronnie. Não tem que se preocupar com esses assuntos. Serve uma bebida ou mistura um cocktail e pode ficar a ver alguém bebê-lo.

- Já observei vezes demais, Rick - replicou com uma enfática sacudidela de cabeça. - E sabe que mais?

Tenho andado a pensar em ir até às enseadas e levar o tipo de vida que desejo. Sabe... pescar quando se quer pescar, dormir quando se quer dormir e comer quando se quer comer. É a única maneira de se ser feliz neste mundo. Se fosse esperto, abandonaria o emprego neste mesmo instante. Amanhã a esta hora, já estaria nas enseadas.

- Não demoraria a estar de volta daqui a um mês ou mais cedo ainda, Ronnie - argui com uma risada. - Sentir-se-ia sozinho naquelas enseadas, sem nada à excepção de pulgas do mar e gaivotas como companhia.

- Também ficarei sozinho aqui, esta noite.

Virou-se e fitou demoradamente Tess, que se encontrava no canto oposto da sala. A empregada de cocktalls, que se mantinha tão direita ao balcão era bastante alta, magra, de olhos negros e mexia-se com um equilíbrio gracioso. Assemelhava-se a uma dançarina talentosa, cujos mínimos movimentos se processam ao ritmo de uma música suave e compassada. Enquanto a observava, recordei-me nitidamente de quão fascinante fora aquele menear de ancas, ao virar-se para se afastar da minha mesa. Apercebia-me agora que o mais casual abanar de cabeça ou erguer do braço era rítmico e harmonioso. Ao fitá-la, tive a sensação de escutar uma música suave. Ronnie aproximou mais a cadeira da mesa e voltou a espetar-me um dedo no peito.

- Se existe uma rapariga nesta terra capaz de fazer com que um homem se sinta só quando ela não está por perto, Rick, é a Tess - declarou sem erguer a voz. - Vou sentir-lhe a falta. É diferente das outras, Rick. Sem dúvida. Pode ver por si próprio.

Virou-se na cadeira e fitou-a, de novo, prolongadamente, antes de voltar a falar.

- Nestes últimos dez ou doze anos, Rick, tenho assistido à chegada e partida de empregadas de cocktails e outras mulheres também - boas e más, espertas e estúpidas, altas e baixas, ricas e pobres e sei o que estou a dizer. Se nos pomos a falar de mulheres, temos de ter um exemplo para mostrar como pode ser uma mulher, quando ela é tudo o que se deseja encontrar numa mulher... bom, a Tess é assim. Aquela jovem é capaz de nos pôr em parafuso, com uma mera palavra. E pode fazê-lo comigo, sempre que quiser. Nunca vi outra como ela, nem espero voltar a ver. Ver outra assim na minha vida, seria pedir demasiado.

- Ela vai deixar este emprego? - inquiri.

- Pior do que isso, Rick - retorquiu com voz triste.

Falava como se o mundo fosse acabar. - Vai sair do estado da Florida.

- Fala como se gostasse a sério da rapariga, Ronnie.

- Gostar? - redarguiu, sacudindo a cabeça. Ninguém pode gostar meramente da Tess. Isso é apenas o começo. É tudo ou nada.

- Você e ela... sabe a que me refiro, Ronnie?

Virou a cabeça e fitou-me com uma expressão fechada e indefinida. Tornava-se difícil ler-lhe os pensamentos por detrás da testa franzida.

- Não estava a ser inconveniente, Ronnie - apressei-me a vincar. - Não era essa a minha intenção.

Afastou as minhas desculpas com um gesto rápido do braço.

- Ela não está interessada - disse, em seguida, ao mesmo tempo que abanava a cabeça de um lado para o outro. - É essa a parte triste do assunto. É de partir o coração, Rick. Mas, tanto quanto sei, não está interessada em ninguém. Pode não acreditar, mas todas as noites vai sozinha para casa. Não é de espantar?

O que levará uma rapariga a desejar fazer uma coisa dessas? Sabe bem que é difícil encontrar uma mulher que não se consiga abordar de uma ou outra maneira, se nos esforçarmos bastante. Mas com ela não - com a Tess não é assim. Sei, porque tenho tentado todas as noites, de há um mês para cá. Não consigo entender.

Descaiu os ombros com um ar sombrio, levantou-se e percorreu o caminho de volta, lentamente, até ao bar. Passados uns momentos, Tess aproximou-se uma vez mais da minha mesa.

- Já está pronto para um uísque com soda? perguntou, sorrindo-me.

Fitei-a, sem pronunciar palavra, durante uns momentos.

- Como sabia o que eu desejava? - surpreendi-me.

- Foi o que encomendou da última vez.

- E recordava-se?

- Tento sempre recordar-me.

- De tudo?

- Sim.

Virei os olhos para o bar. Ronnie observava-nos atentamente, como se suspeitasse de que estávamos a conspirar contra ele. Mantinha o sobrolho mais franzido do que nunca.

- Recorda-se do meu nome? - inquiri.

- O Ronnie disse-me - respondeu, com um aceno de cabeça afirmativo.

- E não o esqueceu?

- Claro que não.

- O que mais lhe disse o Ronnie a meu respeito?

- Disse-me que escrevia livros.

- Costuma ler?

- Algumas vezes.

- Já leu um dos meus livros?

- Não.

- Responde sempre com honestidade, certo?

- Sempre.

- Sabe que é bonita?

Um esboço de sorriso iluminou-lhe o rosto, mas não respondeu.

Tinha-a visto praticamente todas as vezes que entrara ali, mas ela estava ocupada a servir outros clientes, o bar estivera sempre a abarrotar e era esta a primeira vez que tinha oportunidade de lhe dirigir mais do que algumas palavras.

- Quer que lhe traga um uísque com soda? - perguntou.

Respondi-lhe afirmativamente e Tess afastou-se da mesa e atravessou a sala para fazer o pedido a Ronnie. Enquanto Tess aguardava ao balcão, observei-a, interrogando-me sobre o que me levara a não lhe prestar atenção. Expressava-se num tom de voz de ressonância agradável que conferia uma inflexão, plena de significado, à mais simples palavra pronunciada. Tratava-se de uma jovem de extrema beleza - não me restou qualquer dúvida a partir desse momento - e tinha a certeza de que um dos motivos que a tornava tão atraente se devia a que o porte direito parecia ceder graciosamente ao mínimo movimento. Além de que as feições delicadas eram vincadamente femininas. Tinha um cabelo farto e negro, bastante curto e emoldurando-lhe o rosto, e as ancas flexíveis, envoltas numa saia justa, eram redondas, torneadas e firmes. Tess aparentava cerca de vinte e quatro ou vinte e cinco anos e tinha a certeza de que não seria um ou dois anos mais velha do que essa idade.

Observei-a, fascinado e boquiaberto, até que ela regressou à mesa com a bebida que eu pedira. Há muito que não me era dado ver alguém tão belo e atraente.

Depois de Tess ter pousado o copo em cima da mesa, perguntei-lhe se tencionava, de facto, ir-se embora, como Ronnie me informara.

Esboçou um aceno afirmativo que começou pela cabeça e pareceu prolongar-se por todo o corpo num latejar.

- Tem um emprego melhor noutro lado? - quis saber.

- Não, acho que não - respondeu num tom casual, o que não impediu que a voz continuasse a soar agradavelmente.

- De qualquer maneira, fala como se soubesse o que está a fazer.

- Claro que sei o que estou a fazer. Só que ainda não sei nada sobre o meu próximo emprego.

- E porquê?

- Porque vou deixar a cidade e não sei nada sobre o meu próximo emprego até o encontrar.

- Parece confiante em que vai encontrá-lo, algures.

- É o que sempre acontece.

- Para onde vai?

- Para Nova Orleães.

- Porquê?

- Porque quero.

- A sua casa é em Nova Orleães?

- Não. Também não sou de Sarasota, nem de qualquer outro lugar.

- Isso não pode ser verdade - retorqui duvidoso, abanando a cabeça. - Toda a gente nasceu em qualquer lugar do mundo. Até os esquilos e coelhos têm lar.

- E você? - perguntou com um sorriso provocador.

-Também - repliquei, embora hesitando um pouco.

- Onde fica?

Mal me fez a pergunta, divisei um sorriso malicioso cheio de implicações.

- Neste momento é Sarasota - respondi, um minuto depois. - Não sei qual o seguinte. Viajo muito por todo o país. É essa a minha vida.

- Então, compreende - arguiu na sua voz cantada, voltando a sorrir. - Tive a sensação de que compreenderia.

- Mas não tem de viajar pelo país, pois não? - repliquei.

- Não? - redarguiu, virando as costas.

Tess regressou à sua posição habitual no extremo do balcão. Acabei apressadamente a bebida que me trouxera e, em seguida, quando ela voltou a olhar na minha direcção, esbocei um aceno de cabeça e indiquei o copo vazio. Momentos depois, trouxe-me o segundo uísque com soda. Verifiquei que Ronnie nos observava atentamente, enquanto Tess se inclinava sobre a mesa e pousava o copo na pequena rodela de papel na minha frente. Cada vez franzia mais o cenho, à medida que o tempo passava e eu sabia que se sentia infeliz ao ver-me falar com Tess. No entanto, ainda que ele viesse a mostrar-se ressentido e antipático, estava resolvido dessa vez a tentar descobrir uma maneira de a encontrar a sós. E mesmo que Ronnie me tivesse ameaçado, continuaria a procurar um meio de ver Tess, independentemente do que pudesse acontecer. O seu fascínio envolvia-me num crescendo em cada minuto mais.

- Quando acaba o trabalho esta noite? - inquiri de rompante, no momento em que ela se preparava para se afastar. - Gostaria de acompanhá-la a casa, quero dizer levá-la até onde vive.

Sorriu, ante as minhas palavras.

- Vivo apenas a dois quarteirões daqui. Não é uma viagem para si, pois não? Tenho a certeza de que se sentiria mais feliz em acompanhar outra pessoa, alguém com uma casa e que viva à distância suficiente para tornar a viagem interessante e que valha a pena.

Não lhe dei imediatamente resposta. Fitei-a bem no fundo dos olhos brilhantes e pretos e o pulso começou a latejar-me. Se não tivesse consciência de que Ronnie nos observava tão intensamente, teria estendido a mão e tentado agarrar a dela. Sabia que estava enfeitiçado e a única sensação que me invadia e se sobrepunha a todas as outras era uma ânsia desesperada de prendê-la nos braços. Ignoro durante quanto tempo continuámos a olhar-nos depois, mas decorridos uns instantes o movimento do braço dela trouxe-me de volta à realidade. Temendo que se fosse embora, antes que conseguisse persuadi-la, inclinei-me por cima da mesa.

- Vai deixar-me, não vai, Tess? - insisti.

- Não seria melhor uma outra pessoa? - replicou, com um sorriso trocista. - Tenho a certeza de que há muitas raparigas, que ficariam encantadas por fazer o que deseja.

- Não - garanti-lhe. - Ninguém seria melhor.

Enrugou levemente a testa.

- A que horas está pronta para sair? - perguntei.

- Costumo sair sozinha.

- Eu sei... mas desta vez... Tess!

- Costuma ficar levantado até tão tarde à espera de alguém? - redarguiu, deitando-me um olhar perscrutador.

- É raro... mas você também sai do comum - respondi, sacudindo a cabeça.

Tess sorriu, indecisa. Continuei sentado, à medida que o tempo passava e o meu nervosismo aumentava.

- Costumo sair às duas - declarou, por fim, em voz baixa. - Se ainda estiver nessa disposição.

- Estarei aqui - disse, colocando apressadamente o dinheiro em cima da mesa e levantando-me. - Voltarei às duas horas.

Duas raparigas na casa dos vinte anos entraram e sentaram-se numa das mesas próximas. Olharam à volta da sala numa atitude de expectativa, como se esperassem ver alguém que lhes dirigisse a palavra e, em seguida, lhes pagasse as bebidas. Tinha a certeza de que as vira, algures, em Sarasota e provavelmente num restaurante, onde serviam como empregadas.

- Ainda pode mudar de opinião - declarou Tess, aproximando-se mais e falando quase num sussurro. - Pode levar duas raparigas em vez de uma e também não teria de esperar até às duas horas.

Sacudi energicamente a cabeça. Tess afastou-se com um breve olhar de despedida e foi tomar nota dos pedidos.

Só havia uma saída e que era através da porta, ao fundo do bar. Ao afastar-me da mesa, segui na direcção de Ronnie e cada passo me aproximava mais do sítio, onde ele se mantinha como uma estátua de pedra. Quando cheguei ao balcão, verifiquei que a expressão sombria e franzida de Ronnie se conservava inalterável.

- Vemo-nos mais tarde, Ronnie - escutei a minha própria voz. - Vou sair para apanhar ar fresco.

- O que disse? - dirigiu-se-me num tom sonoro.

- Vemo-nos mais tarde - respondi nervosamente.

- Vai voltar esta noite? - inquiriu, desconfiado.

Esbocei um aceno afirmativo, incapaz de lhe dar uma outra resposta.

A expressão sombria e fechada do rosto dava a sensação de que ficara gelado. No silêncio que se seguiu, ergui a mão num brusco e desajeitado gesto de amizade. Fria e impessoalmente, com um brilho intenso no olhar, Ronnie correspondeu com uma sacudidela quase imperceptível de cabeça.

Tropeçando um pouco, tal a minha pressa, abri a porta rapidamente e saí para a rua.

 

QUANDO cheguei a pé ao parque de estacionamento do hotel, a fim de ir buscar o automóvel que tinha alugado ao chegar pela primeira vez a Sarasota, eram quase duas horas. Senti-me contente por ter deixado o carro no parque de estacionamento, em vez de o mandar para a garagem da agência de aluguer, pois a garagem poderia estar fechada a esta hora da noite e teria sido difícil arranjar outro automóvel, antes do amanhecer.

Escassos momentos depois de ter descido a rua e parado em frente do Orange Blossom Bar, Tess abriu a porta e avançou na minha direcção. Reconheci-a de imediato, apesar de haver trocado a roupa. Em vez da saia preta e blusa branca, tinha um vestido leve de Verão feito de um tecido com grandes bolas vermelhas. Trazia um saco grande de cabedal vermelho e um casaquinho de lã. Olhou por cima do ombro, como se achasse que estavam a segui-la.

Tess sorriu, mas não pronunciou palavra, quando entrou no carro. No momento em que arrancámos, Ronnie apareceu no passeio e eu olhei para trás e avistei-o, observando-nos com uma expressão sombria, enquanto nos afastávamos.

- O Ronnie não ficou nada contente - comentei.

Disse-me que há um mês que andava a pedir-te para sair e que te recusavas. Depois do que me contou há pouco, sei que não lhe agrada ver-te comigo, agora. Espero que não tente causar problemas.

- Não pode evitar-se - replicou, como se se referisse a qualquer facto imutável da natureza. - Sinto pena do Ronnie, mas não posso ajudá-lo. As coisas são como são. Não me encontro com pessoas, que trabalham no mesmo sítio do que eu.

- Nem mesmo com o patrão?

- Nem mesmo com o patrão.

- Tens, ao que parece, algumas regras e normas muito rígidas.

- Claro que sim - declarou, num tom firme.

- Estás a quebrar algumas das tuas regras e normas, saindo comigo agora?

- Não, não estou. Não disse que nunca saí com ninguém.

- Tive, nesse caso, sorte quando apareci e fiz o pedido naquele momento.

- Talvez - concordou.

Não fazia ideia de onde Tess vivia, pois apenas me dissera que vivia a dois quarteirões, mas também não tinha tenção de descobrir tão depressa e ela não se referiu ao assunto. Dirigimo-nos ao centro da cidade com Tess sentada, bastante longe de mim, no seu lado do banco e seguimos, devagar, para Sul, ao longo da sinuosa marginal.

As casas de cada lado da estrada tinham as luzes apagadas e só avistámos dois ou três automóveis no caminho. De vez em quando, passávamos junto a candeeiros de rua, que brilhavam num tom fosco através da densa folhagem e das mangues. O calor envolvente da noite, a solidão das ruas e a antecipação da amizade deve ter provocado em Tess igual sensação à minha, a de que fôramos atraídos por uma repentina e afortunada viragem dos nossos destinos. Não me era, contudo, possível saber quais eram os seus sentimentos, pois denotava uma firme reserva e não estava, obviamente, inclinada a dar a conhecer o que lhe ia no íntimo. Esperara que me revelasse algo a seu respeito, antes que a noite chegasse ao fim.

Quando íamos a chegar ao desvio para Siesta Key, que era uma longa e estreita ilha arenosa a oitocentos metros da margem, perguntei a Tess se lhe apetecia ir até à praia. Desde que lhe falara no bar que esperava ser capaz de persuadi-la a deixar que a levasse até lá.

- Uns momentos - acedeu prontamente. - Gostaria de ir lá mais uma vez, antes de me ir embora. Já ali nadei várias vezes.

Queria saber qual o dia em que planeava abandonar Sarasota e a que horas, mas nessa altura hesitei em falar-lhe sobre o seu afastamento. A Lua erguia-se, redonda e prateada, no Golfo do México e a noite apresentava-se luminosa e clara. Lá muito ao longe, a Oeste do Golfo, tufos de nuvenzinhas de um branco neve moviam-se inquietas, no céu.

Depois de atravessar a estreita ilha, parei o automóvel ao fundo do caminho e apaguei os faróis. Não havia mais carros parados à vista e senti-me contente, ao ver que estaríamos sós na praia. Ofereci um cigarro a Tess e, depois de acender o dela e o meu, mantivemo-nos sentados e em silêncio durante muito tempo, olhando em frente e observando as vagas espumantes, que embatiam e se desfaziam na larga faixa arenosa. De vez em quando, ouvíamos o suave quebrar das ondas mais altas sob o luar. Uma ligeira brisa agitava as folhas das palmeiras e sussurrava, ao de leve, nos pinheiros.

Aproximei-me mais de Tess e agarrei-lhe com força na mão.

- Sei de uma coisa, que algumas pessoas gostariam de fazer numa altura como esta - observei, passados uns momentos.

- O quê? - perguntou, interessada.

- Descalçar-se e entrar na água.

- Não está fria, pois não?

- Está provavelmente à temperatura certa.

- Gostarias de o fazer? - inquiriu prontamente.

- E tu?

- Vamos! - decidiu, com uma espontaneidade infantil.

Descalçou rapidamente os sapatos e meias e colocou-os no assento, ao seu lado. Em seguida, sem esperar por mim, saiu do carro e começou a avançar na direcção da água. Descalcei-me também e consegui apanhá-la, antes que chegasse à praia. Com a mão dela na minha, entrámos na água fria e conservámo-nos metidos nela até aos tornozelos, enquanto as ondas se quebravam e nos salpicavam as pernas. Sob o luar e com a brisa a afastar-lhe o cabelo do rosto, parecia uma criança atraída pelo mar. Senti que a mão lhe estremecia.

- O que se passa, Tess? - inquiri, apertando-lhe a mão com mais força.

- Nada - respondeu.

Avançámos um pouco mais pelas vagas brancas de espuma.

- Sinto-me contente por me teres deixado ir buscar-te hoje ao Orange Blossom Bar para te levar a casa - disse.

- Mas não me levaste... onde vivo.

- Não era minha intenção... tão depressa.

Detectei-lhe um sorriso feliz.

- Conta-me o que te leva a quereres deixar Sarasota - pedi-lhe então. - Deves ter um bom motivo para o fazer.

- Nada de especial - replicou, como se se tratasse de um assunto demasiado banal para ser discutido. - É assim que vivo, só isso.

- Tencionas voltar?

- A Sarasota? Não sei. Talvez um dia. De qualquer maneira, não dentro em breve.

- Gostava que não te fosses embora agora, Tess - disse, esperando ser capaz de convencê-la a mudar de ideias quanto a ir-se embora. - Não partas, por favor, quando acabei de te conhecer assim. Ignoras até que ponto iria sentir a tua falta. Quero conhecer-te muito melhor. Não podes ficar um pouco mais? Só mais uma semana?

Sorriu-me com uma expressão de uma beleza tantalizadora sob o luar, mas não respondeu. Queria suplicar-lhe que ficasse, dizer-lhe como era bonita e como me agradava estar ao seu lado, mas antes que pudesse pronunciar palavra, Tess largou-me a mão e avançou mais pela água.

Começou por levantar o vestido leve acima dos joelhos e foi caminhando pelas águas do Golfo, até ter de agarrar a saia acima da cintura. Deixei-me ficar onde estava, incapaz de enrolar as pernas das calças acima dos joelhos e observei-a ansiosamente. Tess parecia pequena e indefesa à distância e receei que avançasse demasiado no Golfo. Havia um ponto, algures, onde a terra em declive findava abruptamente em águas muito fundas. Chamei-a por várias vezes, mas não me ouvia acima do ruído das vagas.

Deu, subitamente, meia volta e aproximou-se a chapinhar na minha direcção, como se um tubarão a tivesse assustado. Corri ao seu encontro e apertei-a com força nos braços. Tess ria e tentava recuperar o fôlego. Durante os momentos em que a agarrei de encontro ao meu corpo, senti-lhe o bater do coração. Sem a largar, encaminhei-a até à areia seca. Sentámo-nos na praia e ela pôs-se imediatamente a amontoar a areia sobre os pés, tomada de uma alegria infantil.

- Houve algo que te assustou na água, Tess? - perguntei. - Foi um tubarão?

- Não sei. Mas de repente senti-me tão só... e insegura. Seria incapaz de aguentar estar só, mais um segundo que fosse. Apeteceu-me gritar... por alguém. Assemelhou-se a um pesadelo a meio da noite, quando se pensa que se é a única pessoa ao de cimo da terra. É uma sensação horrível. É terrível. Assusto-me sempre.

- Acontece-te com frequência? - inquiri. - Sentes-te muitas vezes só?

- Não sei - respondeu, abanando a cabeça. - Não gosto de falar nisso.

Agarrava na areia às mãos cheias para a deixar cair sobre os pés e as pernas.

- De qualquer maneira, começava a ficar preocupado por estares naquele sítio - confessei. - Achei que tinhas ido longe de mais. Tentei chamar-te, mas não podias ouvir-me. Por favor, não voltes a fazê-lo, quando não houver ninguém ao teu lado.

Ergueu o rosto fitando-me uns momentos, sem pronunciar palavra. Mas nesse momento revelou uma expressão grata.

- Vais partir, amanhã? - insisti.

Acenou com a cabeça, continuando a brincar com a areia.

- Já é amanhã - disse, em seguida. - O que significa que partirei hoje, não é?

Mantive-me durante muito tempo a observá-la brincar na areia.

- Vais para Nova Orleães? - perguntei-lhe depois.

- Vou.

- Onde estarás em Nova Orleães?

- Ainda não sei.

- Porque é assim que vives.

- Claro - anuiu, com um leve sorriso.

- Mas deves saber onde irás viver - retorqui com um ar sério. - Podias dizer-me, se quisesses, não é verdade?

Negou-se a responder.

- Gostaria que me dissesses, Tess - pedi num tom implorativo. - Não achas natural da minha parte querer saber? Como poderia descobrir-te em Nova Orleães?

- Por que gostarias de o fazer?

- Para voltar a ver-te... muitas vezes - redargui, inclinando-me para ela.

- Verás, um dia.

- O que queres dizer com isso?

- Algum dia, voltaremos provavelmente a estar no mesmo lugar ao mesmo tempo. Tal como estamos agora. Não acreditas que essas coisas acontecem?

- Não.

- Bom, mas acontecem.

- É uma aposta unilateral, se viéssemos a fazê-la.

- Mas encontrámo-nos em Sarasota, ao mesmo tempo. O que prova que acontece.

- Estás a dar-me um exemplo de algo que só acontece uma vez na vida.

Observei-a, enquanto agarrava na areia às mãos cheias, amontoando-a sobre os pés e as pernas. Seguiu-se um prolongado silêncio entre nós. Apercebi-me de que esperava que lhe dissesse alguma coisa, quando a vi levantar a cabeça e olhar-me timidamente.

- Que género de emprego terás em Nova Orleães? - quis saber.

- Sou empregada de cocktails.

- Isso significa que terei de percorrer todos os bares de Nova Orleães à tua procura? Não existem provavelmente menos de mil bares nessa cidade, contando com os bons, os maus e os médios. Supõe que passava três ou quatro semanas à tua procura... provavelmente já terias deixado a cidade muito antes disso.

- Provavelmente - concordou, sorrindo.

- Então diz-me onde posso encontrar-te. Em que tipo de bares trabalhas?

- Trabalho sempre num tipo especial.

- De que tipo?

- Os que contratam empregados de cocktails - informou com orgulho - e não nos que têm criadas, raparigas de segunda e tudo o resto.

- Existe alguma diferença?

Deitou-me um olhar aborrecido.

- Claro que há - respondeu, como se a tivesse ofendido. - E não preciso de te explicar a diferença. Sabes qual é a diferença. Nunca me confundiste com uma delas.

- O que não me facilita a tarefa de te descobrir em Nova Orleães ou em qualquer outro lugar.

- Tem de ser fácil?

- Não. Não me importaria, desde que te descobrisse.

Enfiou bem fundo as mãos na areia solta e seca e empilhou-a num monte sobre os pés. Em seguida, alisou e bateu na areia com uma alegria de criança. Era fascinante observar os movimentos rítmicos das suas mãos e braços. Parecia que cada movimento do corpo se processava ao som de um ritmo distante e envolvente.

- O Ronnie também vai sentir a tua falta - comentei. - Fala como se não quisesse que abandonasses Sarasota. Já somos dois que vamos ter saudades. Não me surpreenderia que o mesmo se passe em relação a muitos outros.

- Pobre Ronnie! - exclamou, enquanto as mãos se moviam suavemente sobre o monte de areia. Seguiu-se uma longa pausa, antes que retomasse a palavra. - Bom. O Ronnie acabará por se recompor - prosseguiu, agora. - Ele é mesmo assim. Não demorará muito tempo a interessar-se por outra pessoa.

- Ele, talvez, mas eu não - protestei.

- Por que não?

- Porque gosto de ti, eis porquê, e não quero que estejas a tentar passar-me a outra pessoa. Trata-se de uma coisa que não me agrada nada.

- Talvez fosse o que de mais sensato poderia fazer por ti. - Expressava-se, agora, com voz grave. - Seria mesmo muito razoável da minha parte. Estou a falar a sério.

- Por que dizes isso, Tess?

- Não posso explicar, mas é assim mesmo. Talvez um dia compreendas.

- Suponho que seja porque é assim que vives - redargui, infeliz.

Tess não respondeu e interroguei-me sobre se a magoara. Evitava olhar-me e ficámos calados durante muito tempo. Deixei-me ficar sentado a observar-lhe os movimentos, enquanto alisava e moldava o grande monte de areia.

- Ouve-me, Tess - disse, incapaz de esperar mais tempo por lhe fazer a pergunta que desejara fazer-lhe, desde a meia-noite. - És casada, divorciada, solteira, comprometida, ou o quê? Preciso de saber.

- Essa é uma pergunta muito pessoal para se fazer a uma rapariga - comentou, franzindo a testa.

- Foi essa a minha intenção.

- Supõe que te fazia uma pergunta assim tão pessoal?

- Seria delicado e responderia.

Calou-se e soube que se preparava para me perguntar o mesmo. Observei-a, esperando até que estivesse pronta para falar.

- És alguma das coisas que me perguntaste... quer dizer, qual delas és? - inquiriu, timidamente. - Disseste que serias delicado e responderias. - Virou a cabeça para evitar olhar-me de frente. - Gostaria realmente de saber.

- Fui casado uma vez e divorciei-me. Agora, sou solteiro.

Susteve a respiração por instantes.

- Porquê? - perguntou num tom ansioso, virando a cabeça e fitando-me directamente.

- Talvez porque os escritores têm melhor imagem e se comportam melhor à distância, do que quando estão por perto.

- Fala a sério, peço-te - quase ordenou.

- Estou a tentar falar.

- É então tudo o que tens a dizer?

- A jovem com quem casei, decidiu que preferia divorciar-se a continuar casada comigo. Não posso expor os factos mais simplesmente do que isto.

- E é tudo?

- Tudo o que posso pensar que te interesse.

- Mas não me disseste se estás ou não comprometido. Agora, quero dizer.

- Não estou.

Enfiou as mãos mais fundo na areia.

- Bom, seja como for, não é importante - comentou, como se não lhe interessasse nada a meu respeito.

- Então, não devias ter-te dado ao trabalho de perguntar, se não te interessa - repliquei.

Sentia-me provocado e um tanto irritado e nenhum de nós voltou a falar durante algum tempo. Verifiquei que me deitava olhares furtivos pelo canto do olho. Continuando a sentir-me provocado, agarrei num punhado de areia e atirei-o para cima do monte, que ela tinha alisado e moldado com tanto cuidado. Tess virou-se na minha direcção, com um ar surpreso.

- Por que fizeste isso? - perguntou.

Não lhe respondi e limitei-me a observar: - Estás a tentar pôr-me do outro lado da sebe?

- Claro - redarguiu, com calor. - Não é onde pertences?

Momentos depois fez-me um sorriso e toda a raiva desapareceu.

- Não, Tess. Estou do teu lado. A não ser que prefiras vir para o meu.

Tess riu e pôs-se de pé, espalhando a areia, que demorara tanto tempo a alisar e a moldar. Começou a andar pela praia, sem esperar por mim. Após ter percorrido doze metros ou mais, levantei-me e fui buscar-lhe o casaco ao carro. Voltei apressadamente atrás e acertei o passo com o dela. Sem pronunciar palavra, coloquei-lhe o casaco sobre os ombros. Não levantou objecções, quando lhe agarrei na mão e a apertei com força, à medida que íamos avançando à beira de água. Mais à frente, chegámos a uma cova, onde a maré varrera a areia e deixara uma profunda entrada. Ali, altos pinheiros cresciam quase na orla da água e, sob as árvores, o solo era firme e seco. Sentámo-nos debaixo de uma das árvores dobradas pelo vento e de ramos curvos. Momentos depois, Tess recostou-se para trás no chão, cruzando os braços sob a cabeça. Manteve-se nessa posição, fitando-me languidamente, enquanto o luar lhe iluminava o rosto através dos ramos dos pinheiros. Pareceu-me mais apetecível do que nunca e desejava mais do que nunca abraçá-la e beijá-la. Observou-me interrogativamente, com os lábios entreabertos.

- Diz-me em que estás a pensar, Tess - pedi, inclinando-me sobre ela.

O tempo escoava, enquanto ela se mantinha num silêncio indeciso. Era como se estivesse a debater-se consigo, quanto a permitir deixar-me conhecer algo dos seus pensamentos íntimos. Tinha agora os olhos bem abertos e fitava-me, sem desviar o rosto. Uma ave tropical desconhecida voou sobre a cova.

- Ignorava que as coisas se passariam desta maneira, quando viemos até à praia esta noite, Rick - declarou com voz terna, decorrido um momento. Era a primeira vez que a ouvia pronunciar o meu nome. - Não era essa a minha intenção. Acho que somente aconteceu. Tento impedir-me de fazer este tipo de coisas, mas estou só. Estou tão só, Rick. Sabes que é verdade. E quando se está só como eu e não é possível quebrar a solidão, estar com alguém é a única coisa no mundo que nos ajuda. Foi o que me assustou quando estava na água - senti-me repentinamente só - só em todo este vasto mundo. E é esse o motivo por que trabalho sempre de noite, em vez de o fazer de dia. Impede-me de ter esta horrível sensação de estar só, quando há escuridão por todo o lado. É a sensação mais terrível que alguém pode ter, Rick. Conheço-a tão bem. E conheço-a há muito tempo.

- Por que é que estás só, Tess? - perguntei.- Não tem de ser assim. Não permitiria que o estivesses.

- Não digas isso, Rick. Não deves dizê-lo.

- Já disse. Agora explica-me, por favor, porque estás só, Tess. Tem de haver um motivo.

- Não posso dizer-te - replicou bruscamente. - Não existe, aliás, qualquer motivo.

- Se conseguir provar-te que há um bom motivo, dizes-me?

- De nada servirá provares alguma coisa - redarguiu, abanando a cabeça. - Em nada ajudará.

Sorriu-me com uma expressão sonolenta e peguei-lhe na mão. Aproximei-me mais dela, no momento em que fechou os olhos e os lábios entreabriram, de forma convidativa. Não fez qualquer movimento para me deter, quando a envolvi nos braços e, um momento depois, os seus lábios premiam-se avidamente de encontro aos meus. Senti que me colocava os braços à volta do pescoço e mantivemo-nos, assim, nos braços um do outro, até o calor do seu beijo me percorrer o corpo. Passado muito tempo adormeceu, silenciosa e confortada, e também adormeci algum tempo depois.

Quando acordei era de manhã e o céu já se apresentava tingido com os primeiros raios de sol. Beijei as faces, a testa e o pescoço de Tess e, em seguida, beijei-lhe os lábios quentes. Ela abriu lentamente os olhos.

- Sabes onde estamos? - perguntei-lhe.

- Sei, Rick - respondeu, com um aceno de cabeça.

Voltámos a ouvir o grasnar da ave desconhecida.

- Passámos a noite aqui - declarou num sussurro entusiasmado e fitando o céu da manhã. - E foi um sono tão maravilhoso, Rick. Foi um presente teu. - Virou os olhos na minha direcção - Durante toda a noite não me senti só um único segundo. Recordar-me-ei dela, enquanto viver.

Sentei-me ao seu lado, escutando o ligeiro quebrar das ondas e observando os pelicanos, que mergulhavam o bico na areia à procura de peixe, ao alvorecer. Passados uns momentos, Tess colocou a mão sobre a minha e apertou-a ternamente.

- Sentes-te contente por termos ficado aqui toda a noite? - perguntei.

- Sim, Rick. Sinto-me contente.

Nesta altura, cerca de doze pelicanos estavam a pescar nas poças.

- Queres ir embora, agora? - disse a Tess.

- Preciso - respondeu. - Ainda não fiz as malas e tenho de estar pronta para ir embora ao meio-dia.

- Como vais para Nova Orleães?

- De avião.

- E não mudaste de opinião... vais mesmo embora?

- Sim, vou - concordou com um aceno de cabeça.

- Prometes dizer-me onde estarás em Nova Orleães, Tess?

- Não sei - replicou, fechando os olhos por momentos. Quando os abriu, sacudiu a cabeça em negativa. - Não, não posso dizer-te.

Endireitou-se bruscamente e afastou o cabelo preto do rosto com as duas mãos. Ali, ao romper da manhã, observando-lhe a atraente movimentação do corpo e encontrando-me tão próximo dela, sentia as mãos a tremer. Sabia que a recordação de a ver assim, nunca mais me abandonaria.

- Promete-me, por favor, que me darás a conhecer o teu paradeiro, Tess - supliquei.

- Espera um pouco, Rick - disse.

- Quanto tempo?

Conservou-se em silêncio por instantes.

- Talvez um mês, ou algumas semanas.

- Não consigo esperar tanto tempo, Tess. Preciso de ver-te muito antes.

Virou-se ligeiramente e fixou a água, imersa em profundos pensamentos. Mantinha-me numa ansiosa expectativa.

- Quero que me prometas uma coisa, Rick - declarou, nervosa. - Prometerás?

- Primeiro tens de me dizer o quê.

- De acordo. Vou dizer-te. Quero que me esqueças. Não quero que tentes encontrar-me de novo. Quando me for embora, tem de ser o fim. Falo a sério - o fim. É o que tens de prometer.

Abanava a cabeça, obstinadamente, no momento em que ela me deu um beijo rápido e se levantou. Começámos a caminhar em silêncio ao longo da praia, enquanto o nascer do Sol laranja cedia, aos poucos, lugar ao cinzento do dia. Nuvens baixas tropicais, ameaçadoramente escuras, moviam-se, a toda a pressa sobre as nossas cabeças, e as primeiras gotas de chuva já caíam.

 

Pusemo-nos a correr na direcção do carro, parado no extremo oposto da praia.

 

NA segunda-feira, à tarde, um dia depois de Tess ter partido para Nova Orleães, fui visitar Rob Mizemore. Se ela não se tivesse ido embora, ficaria, obviamente, em Sarasota.

Nas presentes circunstâncias, sentindo-me só sem a sua presença e mais do que nunca isento de certezas quanto ao futuro, pareceu-me a altura ideal para visitar Rob. Durante os últimos doze ou catorze anos, as minhas viagens para o ver, haviam-se limitado a peregrinações anuais e passar uma tarde ou uma noite na sua companhia sempre se revelara uma experiência inesquecível. Se não tivesse sido o seu encorajamento no início, era bem possível que me houvesse faltado a vontade e determinação para suportar os primeiros anos de aprendizagem, que haviam sido necessários antes de me tornar um escritor. Agora, ele era o Dr. Robert Rabb Mizemore, chefe do seu departamento na Universidade e autor de várias obras de crítica literária, mas quando conheci o Rob, era um professor estagiário com cabelo louro cortado à escovinha e dava aulas pela primeira vez. Decorridos quinze anos, tinha o cabelo mais escasso, mas um pouco mais comprido e escuro e adquirira uma posição académica bastante significativa no seu campo. Ao longo destes anos obtivera, também, uma reputação notável como um recenseador e crítico literário extremamente perspicaz. Rob andava pelo início dos quarenta anos e era um indivíduo robusto e elegante, de aspecto culto e solteiro.

A viagem de avião de Sarasota demorara apenas umas horas e, pouco antes do crepúsculo, Rob e eu estávamos sentados na sua biblioteca a abarrotar de livros, bebendo uísque com soda e, avaliando-nos mutuamente, em silêncio, decorrido um ano. Dissera-me ao telefone, no começo do dia, que não tinha compromissos para a noite e que sentiria, como sempre, muito prazer em que fosse visitá-lo.

A biblioteca do apartamento de um piso de Rob na tranquila cidade universitária dava para um largo e verde relvado, para lá do qual se avistava um lagozinho oval, orlado de carvalhos, dispostos com metódicos intervalos. À distância, podiam observar-se algumas das espiras dos edifícios universitários e acima de tudo destacava-se a torre gótica com campanários. Era o tipo de cenário que se adaptava à casa de um professor universitário e a um crítico erudito, sobretudo ao crepúsculo num ameno dia primaveril, que fora pensadamente escolhido e era acarinhado como um lugar de meditação, estudo e lazer. Rob recebera propostas para o lugar de professor em faculdades e universidades mais conotadas, e com uma remuneração mais elevada, mas, segundo dizia, nenhuma delas poderia oferecer-lhe a beleza pastoral e tranquilidade de que usufruía, através do relvado, na direcção do lago espelhado e carvalhos imponentes.

Nunca pressionara Rob a explicar-me por que se mantivera solteiro ao longo de todos estes anos e ele não se referia ao assunto. Tenho a certeza de que se lhe tivesse perguntado por que nunca se casara, me responderia:

«Nunca houve uma rapariga que se me declarasse.» Mas dadas as circunstâncias, acho que a verdade residia em que temia perder aquela agradável privacidade da sua vida e ver-se obrigado e compelido pelo dever a abdicar dos seus hábitos solitários e a conviver socialmente com outros professores e as mulheres, em jantares e partidas de brídege praticamente todas as noites. Este não se tratava do tipo de vida susceptível de agradar a um homem como Rob Mizemore e era, por consequência, provável que o casamento apenas acabasse por ser bem sucedido superficialmente. No entanto, Rob não vivia num total isolamento; uma ou duas vezes por semana, fazia uma visita a qualquer bela mulher, geralmente uma professora do liceu ou uma estudante universitária ou uma profissional - invariavelmente inteligente e bonita - e ia jantar e dançar com ela a um dos clubes ou hotéis.

Há algum tempo que nos conservávamos sentados na crescente escuridão da biblioteca, quando Rob, com a sua calma habitual, me perguntou o que me levara a visitá-lo nesta altura particular. Vestia da forma usualmente descuidada que o caracterizava: um par de calças de flanela cinzentas por vincar, um casaco de tweed de boa qualidade, mocassins pretos, uma camisa branca de goma e uma gravata com riscas vivas em tons de vermelho e amarelo.

- Suponho que estás aqui com o objectivo de sempre, Rick - comentou, com um leve sorriso. Tinha uns dentes regulares e brancos, que contrastavam com o rosto avermelhado. - E suponho também que estás com uma série de novos problemas profissionais e pessoais. Nunca te vi noutras alturas. É-me impossível pensar que tenhas vindo visitar-me numa época em que te sentisses totalmente satisfeito com a tua vida e trabalho.

Acho mesmo que arranjarias sarilhos e complicações se não os tivesses, para te convenceres de que valia a pena viver. Estou próximo da verdade, Rick?

- Pertíssimo, Rob - anuí, com um aceno de cabeça.

Desde as primeiras visitas regulares a Rob Mizemore que aprendera a esperar que se mostrasse generoso e compreensivo e, em seguida e sem transição, denotasse um comportamento duro e implacável para comigo. Respeitava-o, contudo, não só pela sua paciência e amizade, mas também pela sua capacidade de entender tão maravilhosamente as desilusões e dificuldades, que me levavam a procurar os seus conselhos e encorajamento.

Rob tinha uma forma de me espicaçar - por vezes suavemente mas com muito mais frequência sem peias - de uma forma que me levava a deixá-lo, com uma determinação obstinada de tentar atingir o objectivo e realização que exigia a todos os escritores. Defendia padrões elevados e quase inatingíveis, mas todos os escritores que conheciam Rob pessoalmente, ou eram tema de uma das suas recensões ou ensaios, encaravam a sua crítica e sugestões como um desafio pessoal, no sentido de, na próxima vez, escreverem um conto ou um romance melhor. Afirmava sempre que apesar das suas recensões serem lidas por milhares de leitores da revista, o único objectivo da sua crítica residia em comunicar directamente com uma só pessoa e essa pessoa era o autor do livro criticado.

- Por vezes chego a interrogar-me por quanto tempo irão continuar estas tuas visitas, Rick - redarguiu, como se falasse apenas para si próprio. - É de esperar que, mais tarde ou mais cedo, venham a acabar. Trata-se de algo inevitável. Devido à minha sinceridade e franqueza, acabarás por te sentir provocado e irritado em qualquer altura e será esta a última vez que me visitas. A nossa amizade redundará num turbilhão de violentas imprecações e censuras. Sim, é inevitável.

Parou e moveu a cabeça de um lado para o outro num gesto de profundo desgosto.

- Lamentarei quando isso acontecer - prosseguiu depois - e tu também, mas nenhum de nós poderá mudar o destino. Afastar-nos-emos num desagradável clima de animosidade e provavelmente não voltaremos a trocar palavra nem a ver-nos. É triste estar a antecipar uma coisa deste género.

Rob franziu o cenho naquela luminosidade decrescente, como se já sentisse a dor da amizade ofendida.

- Claro que tudo poderia terminar de outro modo acrescentou, sem deixar de franzir a testa -, mas não me parece que nenhum de nós se encontre na disposição de passar lustro ao ego do outro para preservar uma amizade unicamente em prol da amizade. O que quer que pudéssemos fazer nesse sentido, originaria uma amizade fictícia, em vez de a manter numa base de sinceridade. Prefiro a nossa relação, tal como o é, Rick. Continuará a ser uma relação tempestuosa e sujeita a mal sem reparo, mas será, por outro lado, gratificante enquanto durar.

Levantei-me sem fazer comentários e voltei a encher os copos. Rob observou-me, pensativamente, quando me sentei de novo. Em seguida, inclinou-se para diante, na cadeira.

- Aumentaste uns quilos nos últimos tempos, sobretudo na cintura, certo? - redarguiu.

- Dois ou três - concordei. - Vão desaparecer nos próximos meses.

- O que significa que estás a planear voltar ao trabalho dentro em pouco? - observou.

Assenti com um aceno de cabeça.

- Qual é o teu problema, desta vez? - interessou-se. - Conta-me, Rick.

- O costume - respondi. - Com variantes.

Esboçou um aceno de entendimento. - Estás preocupado com o próximo romance e para diminuíres a dor de ainda não teres começado, procuras mulheres, qualquer mulher que te apareça.

- Desta vez, enganas-te, Rob - argui imediatamente. - Trata-se de uma mulher especial e diferente.

- Só a nível de identificação - replicou asperamente.

- Chama-lhe o que quiseres - retorqui.

Sorriu amistosamente.

- Quem é ela, Rick?

- Chama-se Tess.

- Loura ou morena?

- Morena.

- Bonita, por dentro e por fora?

- Muito.

- O que aconteceu?

- O que queres dizer?

- Quero dizer o que aconteceu no percurso do amor?

- Foi-se embora.

- Porquê?

Mantive-me silencioso, interrogando-me sobre o que a levara a ir-se embora.

- Por que é que ela se foi embora, Rick?

- Ignoro - respondi. - Talvez apenas porque o desejasse.

- E, antes de partir, não satisfez os teus prementes desejos?

- Ignoro o que queres dizer.

- Sabes muito bem. Não se despiu, nem foi para a Cama contigo.

- Não, mas...

- Não quero ouvir desculpas. Quero ouvir factos.

- O que mais queres saber?

- Vais segui-la?

- Não posso escrever um romance e seguir uma rapariga pelo país ao mesmo tempo.

Decorreram uns momentos, antes que Rob se pronunciasse. Mantinha-se sentado, fitando-me, com uma expressão pensativa, naquele lusco-fusco.

- Isso significa que vais segui-la pelo país - até tu ou ela desistirem - comentou. - E não escreverás uma linha, enquanto durar. - Agitou o gelo no copo com um movimento circular. - Interrogo-me sobre quanto tempo tudo isso irá durar. Um mês? Uma semana? Ou quê?

Continuei em silêncio, interrogando-me sobre se o que Rob tinha previsto se revelaria a verdade.

- O dever e o desejo - desejo e dever - prosseguiu Rob, abanando a cabeça, devagar, enquanto me fitava. - O que se enquadra na mesma categoria do que amor e dinheiro, mas é mais aliterado, num sentido literário. Todos os homens mergulham de cabeça nos mesmos velhos e básicos problemas da existência humana. É tão inevitável como a parede de pedra de encontro à qual a mulher acaba por bater com a cabeça mais cedo ou mais tarde.

- Que parede de pedra? - inquiri.

- Amor e dinheiro, obviamente - esclareceu. - No homem, trata-se de dever e desejo. Um homem - o elemento masculino - tem de se debater para abandonar o dever e abandonar-se ao desejo. Quando uma mulher - o elemento feminino - não pode ter amor, esforça-se por se convencer de que o dinheiro o substituirá.

Rob caiu num silêncio, que se manteve por muito tempo. Quando voltou a falar, fê-lo num tom forte e penetrante.

- Decide-te, homem! O que desejas mais do que tudo neste momento - um novo romance ou uma nova rapariga? Conheço-te bem de mais depois de todos estes anos. Conheço a tua capacidade. Não podes ter as duas coisas em simultâneo. Faz a tua escolha, homem!

Não lhe respondi, o que ele também não esperava de mim. Rob sabia que sempre que ia visitá-lo quando estava a atravessar outra das minhas fases problemáticas, se fosse capaz de fazer uma escolha, a teria feito antes de ir vê-lo. As circunstâncias variavam segundo a ocasião, mas a causa era sempre a mesma. - Não tens resposta - observou com uma gravidade crítica. - Bom, deixa-me que te diga. Todos os homens, com algumas tristes excepções, procuram a mulher mas só os jovens conhecem o êxtase. Com ou sem êxtase, trata-se de uma ânsia que não pode negar-se. Depois dos vinte e nove apanhamos o que nos é possível - e para nós não muito excitante - depois dos vinte e nove. Procuro as mulheres, porque há alturas em que preciso tanto da mulher como de sal e música. Desejo-a mental, moral, espiritual e fisicamente. Ela preenche uma necessidade - e um vazio. Dedico-lhe um grande respeito e admiração - e também ao seu instinto maternal - porque tem talento e capacidade para satisfazer qualquer exigência que lhe façamos. E o mais surpreendente é que ela desempenha todas estas funções para além do seu papel normal de mãe. Deviam pôr-lhe uma estátua de adoração em todas as encruzilhadas, todas as aldeolas, todos os jardins públicos. Na criação humana nada pode ocupar o seu lugar - nada a substitui - na vida de um homem normal. Só que não actuo como tu, Rick. Não a utilizo para, em seguida, a pôr de lado, como tu fazes. Apenas a desejas em certas alturas e lugares precisos - segundo obviamente te convém; como uma toalha de papel numa casa de banho pública ou um guardanapo num restaurante - e depois cortas os laços. Expulsa-la pura e simplesmente. Torna-la na folha de papel amarrotada, que atiras para o cesto dos papéis depois de teres revisto e reescrito o teu romance pela última vez e mandado o manuscrito pronto para o teu editor. Em seguida, concentras-te numa outra resma de papel e desejas uma nova mulher. Serves-te das mulheres, Rick, como te serves do papel. Garatujas nela. Amachuca-la na palma da mão. Acabas por a deitar fora. Podes sempre comprar mais papel, quando te dispões a escrever um novo livro; podes sempre arranjar uma nova mulher, depois da primeira ter satisfeito os teus fins.

Virou-se um pouco na cadeira e olhou através da janela para o largo relvado verde ao cair da noite. Nos edifícios universitários ao longe, estrelas de luz tremulavam através da folhagem. Os altos carvalhos apenas se divisavam agora em silhueta e o lago não passava de uma mancha escura. Rob manteve-se alguns minutos em silêncio. Esperei, sabendo que retomaria a palavra, quando desviasse os olhos da janela. O carrilhão da torre bateu horas.

- Li um livro interessante há dias, Rick - replicou, enquanto o som melodioso do carrilhão ecoava suavemente na noite. Mexeu-se na cadeira, até voltarmos a ficar frente a frente na sala imersa em penumbra.- Foi escrito por um jovem autor. Foi o primeiro livro que publicou. Pu-lo de lado na qualidade de marcadamente autobiográfico. A personagem principal, um jovem da mesma idade que o autor, tinha por hábito fugir, sempre que se via em dificuldades. Faltava-lhe determinação e capacidade para enfrentar os factos da realidade qual o sabor do batido de leite a encomendâr no drugstore, como ganhar dinheiro suficiente para comprar roupa, etc. Interroguei-me sobre o que acontecerá a este jovem escritor no futuro, quando for incapaz de começar ou acabar uma história a seu contento. Irá fugir? Imagino que sim. Tal significa que será eventualmente obrigado a desistir da escrita como carreira, por motivos financeiros ou outros, e a procurar outro género de trabalho - qualquer ocupação que lhe exija menos no aspecto de reivindicações emocionais. É um caso triste, pois o seu romance põe a nu talentos inconfundíveis no autor, mas é de esperar nestes dias e época. O mundo não dá oportunidades a um autor que não sabe ou não escreve.

- Já passei por muitas dessas fases do «não sabe» «nem escreve», Rob - redargui. - E de uma maneira ou doutra consegui sair-me delas. Sempre consegui, graças a Deus, começar a história e mais cedo ou mais tarde acabá-la.

- Eu sei, Rick - concordou, abanando a cabeça. - E sempre o farás. É uma característica tua. Mas entristece-me por ser verdade.

- Mas porquê entristecer-te, Rob? Sinto-me orgulhoso pela minha parte.

- Tu tens um impulso premente de seres um contador de histórias no mundo da escrita e é esse o motivo por que escreverás romance atrás de romance, quer sejam bons ou não. O problema pôe-se então nestes termos: é preferível escrever um romance fraco ou pura e simplesmente não escrever?

Aguardei que Rob respondesse à sua pergunta. Talvez o fizesse em silêncio, embora não pronunciasse uma só palavra em voz alta. Nessa altura a noite caíra por completo e Rob acendeu um dos candeeiros de abajur. Fitámo-nos, estranhamente, ante a súbita luminosidade que invadiu a sala.

- Consigo ver-te muito melhor agora, Rick - comentou, recostando-se no sofá de cabedal e analisando-me, com uma expressão crítica, sob a claridade do aposento. - Exteriormente, não mudaste muito. Manténs o mesmo ar presunçoso e convencido, talvez mais vincado do que quando estiveste aqui da última vez. A tua vida pessoal, julgo, continua tão enredada como a trama dos teus romances. És uma pessoa instável, instável para agarrares um casamento e incapaz de seres um cidadão respeitável. Não consigo, realmente, pensar em algo de bom para dizer a teu respeito, à excepção de que te vestes de uma forma apresentável e provavelmente pagas os impostos. Mas, apesar de tudo e na minha opinião, és egoísta, desprezível e irritante. Estás, obviamente, convencido na tua mente limitada de que o acto de escreveres, te concede privilégios especiais, que não deveriam ser concedidos a pessoas vulgares e do quotidiano.

Os olhos brilhantes e cinzentos de Rob trespassavam-me e não se notava um arremesso de sorriso no rosto empedrenido. Tinha na frente o crítico perspicaz e analítico, impessoal e dialéctico. Numa altura como esta, mostrava-se incapaz de ceder a quaisquer sentimentos humanos.

- Suponho que reprimirás tudo o que acabaste de dizer da próxima vez que critiques um livro meu - observei, ao mesmo tempo que me sentia corar de raiva. - Mas o mais provável é que o expresses, de facto, no papel em termos indubitáveis.

- Não - arguiu, sacudindo a cabeça devagar. - As pessoas, que lêem críticas dos teus livros e os compram, preocupam-se tão pouco com o teu carácter ou a falta dele, como tu próprio. Procuram apenas a emoção. E tudo o que querem saber é: será que o novo romance histórico de Roderick Sutter tem a mesma carga de acção, suspense e amor apaixonado? Ofereço aos leitores das minhas críticas exactamente o que eles querem, tal como o fazes nos teus livros. O que me coloca exactamente ao teu nível.

Não me surpreendia ouvir Rob Mizemore a menosprezar-se daquela maneira. Aprendera ao longo dos anos que se tratava de um dos métodos que utilizava para dar maior profundidade à sua crítica a meu respeito.

- Interessante, Rob - exclamei, com uma risada. - Não me passava pela cabeça que viesses a admitir que existia qualquer afinidade entre nós.

- Claro que existe afinidade entre nós. Estamos unidos por laços muito estreitos. Somos canalhas em primeiro grau.

- Tens uma fraca opinião a nosso respeito.

- Tenho muita consideração por mim e nenhuma por ti. Trata-se do privilégio de um canalha. Só porque és um escritor e publicaste alguns livros de má qualidade, tens a presunção de achar que mereces consideração e atenção especiais. O que significa que não só és presunçoso, como gabarola e, por vezes, detestável. És, na verdade, uma criatura inferior, que se apodera de um espaço útil na verde terra de Deus. Achas-te uma espécie de Todo Poderoso, só porque escreveste umas novelas medíocres. Por cada um da tua laia, existem centenas e milhares de homens e mulheres que executam uma obra de qualidade muito superior nas suas humildes tarefas nesta vida. O que nos conduz, de novo, à pergunta que te fiz há pouco. A resposta é: se não conseguires escrever romances superiores aos que escreveste no passado, deves calar-te e parar neste mesmo instante.

Rob levantou-se e dirigiu-se ao extremo oposto da biblioteca. Manteve-se ali, fitando-me com uma expressão do maior desprezo.

- Li todos os teus livros, aquelas confecções ocamente inventadas e a que deste um toque empobrecido de país lendário. Não há o mínimo vestígio de filosofia da existência humana em todas elas.

Não me detive a pensar se a crítica declarada de Rob se destinava a incentivar-me a um maior esforço. Fiquei totalmente fora de mim.

- E por que motivo é que um romance deve ser um armazém de sabedoria filosófica! - exclamei, levantando a voz e sentindo-me invadir por uma onda de raiva. Deixara de me interessar se Rob tentara, propositadamente, irritar-me como sempre o fizera no passado e sempre com sucesso. - Porquê considerar um romance sem nenhum valor, apenas por lhe faltar o condimento da teoria filosófica de qualquer idiota? Quem, além de ti, desejaria chafurdar numa série de aforismos idiotas num romance? Por que não há-de um romance contar uma história, em vez de ser uma compilação de velhos ditados e profecias? Sempre que compras um par de sapatos, não estás à espera que tenham despertadores incorporados!

Por momentos, pareceu-me divisar-lhe um arremesso de sorriso, que desapareceu com a mesma velocidade que surgira.

- Como é que um homem sensato pode dialogar com um idiota? - replicou asperamente, pondo-se a andar de um lado para o outro na minha frente. - Pensas somente em termos de bens de consumo - sapatos, despertadores e a tua treta de ficção histórica.

- Se tens tão pouco respeito pelos meus livros, por que é que os lês e os criticas? - gritei-lhe. Pus-me de pé. - E se a opinião que fazes de mim é tão baixa, o que te leva a perder tempo comigo?

Rob fitou-me com os olhos cinzentos e brilhantes, sem pestanejar. Limitou-se a manter aquela attitude despreocupada e impassível, enquanto me observava. Pareceu-me, contudo, detectar um brilho de satisfação por detrás do rosto empedrenido.

- Estou farto de vir até aqui para te ouvir deitares-me abaixo e chamares-me um escritor de terceira categoria!

- Talvez prefiras que te chame um escritor de segunda categoria, Rick - redarguiu num tom calmo e deliberado.

Fitámo-nos, por momentos, sem desviar o olhar.

- Desta vez cometi um erro em vir até aqui - disse, ao mesmo tempo que dava meia volta e me dirigia à porta. Rob conservou-se imóvel, sem fazer qualquer gesto para me impedir de sair. - Não duvides que vou pensar duas vezes antes de voltar a cometer o mesmo erro. Adeus!

- Adeus, Rick - despediu-se com aqueles seus modos amistosos. Virei-me e observei-o de novo. Um largo sorriso iluminava-lhe o rosto. - Boa sorte, rapaz! - desejou num tom de caloroso afecto e compreensão.

 

A noite já ia avançada quando regressei a Sarasota, depois da minha visita a Rob Mizemore e, na manhã seguinte, atravessava o hall do hotel para dar um passeio no parque da baía, quando um dos grooms se aproximou, informando-me que tinha uma pessoa à minha espera. Uma visita a Rob deixava-me sempre perturbado e nervoso durante vários dias, o que constituía, indubitavelmente, o seu objectivo planeado e um passeio ao acaso permitia-me reflectir com mais clareza no futuro. Indiferente a quem pudesse estar à minha espera, senti um imediato ressentimento por alguém que se intrometesse na minha privacidade.

Antes de conseguir interrogar o groom sobre o visitante, um homem de elevada estatura, rosto comprido, e cabelo farto, aparentando uns quarenta e cinco anos, atravessou o hall num passo elástico e estendeu-me a mão. Um sorriso efusivo desenhava-se nas faces do indivíduo queimadas do sol. Estava vestido com um casaco de linho cor de malva, calças desportivas verdes e sandálias de cabedal vermelhas. Reparei que o cabelo farto apresentava laivos ruivos.

- É então você o famoso escritor! - exclamou com uma saudação afável, que fez ressoar a sua voz forte e estridente de um canto ao outro do hall de entrada. Nessa altura apertava-me vigorosamente a mão, sacudindo-a com energia. - Céus! Há muito que me interrogava como seria o seu aspecto. Agora, verifico que é exactamente igual à ideia que se faz de um autor famoso. Não precisa de andar com rótulo para que as pessoas o conheçam. Sinto-me extremamente orgulhoso com este privilégio. Este é para mim um dia inesquecível que recordarei, enquanto viver. Falo sinceramente.- Continuando a sacudir-me a mão para cima e para baixo sem a largar, tirou um cartão do bolso com a mão esquerda e estendeu-mo. - Permita que me apresente. Chamo-me Morpho Daugh. Estou certo de que ouviu falar de mim, se se encontra na cidade há mais de vinte e quatro horas. É um facto que, todas as pessoas que passaram esse espaço de tempo em Sarasota, ouviram falar de Morpho Daugh. Sou uma tabuleta local - por vezes um farol implacável.

Soltou uma gargalhada que se reflectiu no rosto comprido e soltou a mão daquele vigoroso aperto, com uma última sacudidela do braço.

- Todos temos umas pequenas anedotas, certo? É meu costume deixar uma última impressão, contando qualquer anedota das boas. - Inclinou para diante o corpo alto, ao mesmo tempo que me enfiava o cotovelo ossudo no peito. - Qual é a sua, pá? Hem?

Acabei por lhe sorrir. Seria difícil antipatizar com estes modos amistosos e agradáveis. Pareceu-me o tipo de pessoa que gostava de toda a gente e partia em simultâneo do princípio de que não havia ninguém que não gostasse dele. Voltou a dar-me uma cotovelada, como que a indicar-me que era a minha vez de fazer qualquer comentário.

- Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Daugh - disse.

- Trate-me por Morpho - retorquiu, apontando um longo dedo ossudo para o cartão de visita, que me entregara. - É um nome invulgar, não acha? Orgulho-me dele por dois motivos. Primeiro, porque a minha mãe me tinha em apreço ao dar-me um nome único, e, segundo, porque é feito à medida do meu negócio, pois causa sempre uma profunda e durável impressão nas pessoas quando o ouvem pela primeira vez ou vêem escrito. Tenho orgulho em dizer que pertenço ao ramo da imobiliária. É assim que vejo as coisas: primeiro o serviço público e depois as propriedades. Na sua qualidade de escritor famoso, o que acha deste lema? Bastante bom, hem? Fui eu que o inventei. Reflecte-se no negócio. Basta observar o meu ar próspero.

Agarrou-me pelo braço e conduziu-me até à rua, com um largo sorriso aberto no rosto sério. Quando chegámos ao passeio, abriu a porta de um lustroso descapotável amarelo e pediu-me que entrasse no carro. Deu, em seguida, a volta ao automóvel com o seu passo saltitante e meteu-se lá dentro. De qualquer maneira, eu não tinha feito quaisquer planos para essa manhã - pois o passeio pelo parque resumia-se a uma forma de ocupar o tempo, enquanto pensava no futuro

- e a companhia de uma pessoa com a simpatia de Morpho Daugh afigurava-se tão interessante como qualquer outra coisa.

Abandonara-me qualquer sensação de ressentimento contra ele. Ignorava o motivo por que Morpho Daugh se apresentara no hotel, embora tivesse a certeza de que se relacionava com o negócio de compra e venda de propriedades.

- Quero levá-lo a dar uma volta de lazer pela nossa bonita cidade, Rick - declarou orgulhosamente.

- Considero-a a cidade mais bonita do mundo, sem excepções, e falo sinceramente. Viajei por todo o país em várias ocasiões e garanto-lhe, sinceramente, que não encontrará outra cidade, onde os valores imobiliários sejam mais estáveis e vantajosos durante todo o ano e ao longo dos anos. Ainda estou para conhecer um homem ou melhor que tenham ficado prejudicados com um investimento habilmente conduzido no ramo de propriedades em Sarasota, isto é, se confiarem num sério, construtivo e sincero corretor e seguirem os seus sábios conselhos. É mesmo assim! Sarasota está no mapa e surgiu para ficar!

Ligou o motor do automóvel e começámos a descer lentamente a rua. Estava uma luminosa manhã de Verão e uma suave brisa do Golfo transportava o ar salgado. Senti-me satisfeito por ter entrado no carro com Morpho Daugh, em vez de insistir em dar um passeio no parque. - Agora, permita-me que lhe explique o motivo existente por detrás de tudo isto - redarguiu num tom de negócios e expressando-se com uma franqueza forçada.- Recebi um telefonema de um tal Mr. Farthing em Nova Iorque e pediu-me, na minha qualidade de principal agente imobiliário de Sarasota, que fizesse tudo ao meu alcance para lhe descobrir um apartamento adequado e zelar para que ficasse confortavelmente instalado e o mais rápido possível. A julgar pela urgência da sua conversa, concluí que você teria a maior vantagem em escolher uma casa confortável, tão rapidamente quanto possível. Sou capaz de trabalhar depressa em quaisquer circunstâncias, portanto não tem de se preocupar com o factor tempo. Quando escolher a casa que pretende, conseguirei ter o contrato de aluguer assinado, selado e entregue no espaço de uma hora. É o que quero dizer ao afirmar que sou capaz de trabalhar depressa em quaisquer circunstâncias. Mr. Farthing explicou, em pormenor, alguns dos seus desejos e reivindicações e pode acrescentar o que quer que ele se tenha esquecido. Dispõe mais ou menos da próxima meia hora para pensar no assunto. Vamos lá então! Ao trabalho!

O resplandecente descapotável amarelo disparou num súbito arranque de velocidade e virámos uma esquina, sem esperar pela mudança das luzes dos semáforos.

- Quando é que Harvey Farthing lhe telefonou? - inquiri, após termos percorrido cerca de um quarteirão.

Morpho abrandou a velocidade do carro.

- Mr. Farthing telefonou-me na noite passada - respondeu. - Preparava-me para me deitar, quando ele fez a chamada. Por minha vontade, teria entrado em contacto consigo na noite passada, mas era bastante tarde e resolvi aguardar até de manhã.

- O que disse ele precisamente?

- Explicou-me que é o seu editor e que tinha vindo visitá-lo há pouco. Verdade? Transmitiu-me a necessidade de lhe arranjar um apartamento vantajoso e com a devida pressa, com base no facto de estar muito ansioso por começar um novo romance, sem perder nem mais um dia. Impressionou-me como uma pessoa capaz de tomar tão a peito os seus interesses e bem estar. Certo?

- Acho que sim, se lhe deu essa impressão - observei. Sabia que Harvey iria até onde fosse preciso para me pôr a trabalhar num novo livro e não me surpreendia que tivesse telefonado a um agente imobiliário num esforço para me impedir de esperar mais tempo.

- Muito bem, nesse caso. Mr. Farthing repetiu-me uma dúzia de vezes que lhe era imprescindível arranjar uma casa adequada na praia, durante um ano, onde pudesse usufruir de paz e tranquilidade. Garantiu-me que não daria festas barulhentas em que se quebra o mobiliário, pois é um escritor que leva as coisas bem a peito e se comportaria sempre de uma forma disciplinada e respeitável. Fiquei contente ao ouvi-lo, pois gosto sempre de prometer ao senhorio que o arrendatário não dará festas selvagens todos os sábados, à noite. Pertenço, obviamente, ao tipo de indivíduos que acha que todos têm o direito a uma escapadela de vez em quando, mas a solução reside em ir a casa de outra pessoa para dar livre curso a esse desejo de farrar e partir o mobiliário. De qualquer maneira, Mr. Farthing convenceu-me de que o factor tempo é essencial e porque sou, naturalmente, o melhor agente imobiliário em Sarasota, pediu-me a minha ajuda inteligente e eficaz. Gostaria de acrescentar que, aqui em Sarasota, nos sentimos honrados por ter um autor tão conhecido e famoso a viver entre nós e a partilhar a nossa alegria e felicidade. Somos uma gente hospitaleira. Amamos o próximo. De bom grado o tornaremos um de nós, caso se submeta à lei implícita da nossa comunidade e não nos estrague a vegetação. Apenas terá de se recordar de usar as casas de banho para o objectivo a que se destinam. Que tal? Acha que consegue obter o diploma, Rick?

- Posso esforçar-me - respondi.

- É esse o ponto! Agora e antes que me esqueça, deixe-me acrescentar que li muitos dos seus famosos livros e adorei cada palavra. Gosto do seu estilo de elaborar a trama. Mas nunca me passou pela cabeça vir a ter a grande honra de o servir pessoalmente. Trata-se de um verdadeiro privilégio, garanto-lhe sinceramente.

Seguíamos, agora, a uma velocidade mais moderada rumo a Sul, na direcção da estrada para Siesta Key. Reparei que Morpho consultava o relógio de vez em quando. Eram cerca de dez e meia.

- Parto, assim, do princípio que Mr. Farthing expressou correctamente as suas necessidades e desejos - comentou.

- Pelo menos, em parte - redargui. - Quero encontrar uma casa algures e instalar-me nela durante cerca de um ano, mas ainda não me decidi se quero ficar em Sarasota ou ir para qualquer outro lugar. Há vários dias que ando a pensar no assunto e continuo tão indeciso como no início. Neste preciso momento, ainda não sei o que quero fazer.

Reparei que Morpho abanava a cabeça para si próprio.

- O que quer que faça, Rick, não encare Sarasota como um lugar de segunda. Detestaria vê-lo tomar essa atitude, pois sei que o lamentaria a vida inteira. Falo sinceramente. E faço-o, agora, como amigo pessoal e não como um agente do ramo imobiliário. Não vá para um lugar inferior, faça o que fizer.

Fitou-me, sacudindo a cabeça com uma expressão séria. Correspondi-lhe com um aceno de concordância.

- Agora, quanto a descobrir-lhe uma casa adequada aqui em Sarasota, resolveremos esse pormenor num abrir e fechar de olhos. Onde é que poderia sentir-se mais feliz em Sarasota? Tomemos este facto em consideração. Escolher uma casa para se viver é quase tão importante como fazer igual opção quanto a ficar com uma mulher. Sabe exactamente como é frustrante ficar ligado à mulher errada. Bom, algumas pessoas preferem a Longboat Key, mas pessoalmente gosto mais de Siesta Key. Jamais me atreveria a referir desdenhosamente, note bem, o tipo de pessoas que vivem em Longboat Key. Têm os seus motivos para actuar como o fazem, independentemente do conceito elevado ou baixo que se nutra por elas. Seguem a sua opção e nós a nossa. É a perspectiva democrática de encarar a questão. A localização pertence-lhe, contudo, inteiramente e peço-lhe o favor de se expressar à vontade. Sarasota foi concebida à medida de um famoso escritor como você, independentemente do sítio onde escolha viver. Oferece a ambiência perfeita para se escrever: gente, água, terra, céu, vegetação, clima. O ambiente não podia ser modificado para melhor quer pela mão do homem ou a natureza. Possuo, na realidade, meia dúzia de excelentes opções em Siesta Key e estou confiante de que uma delas será exactamente o que tem em mente. Todas estas casas são modernas, bem mobiladas, com persianas, casas viradas para as águas e concebidas para tirar o máximo partido do benefício das brisas do Golfo e do divino sol. Os preços variam obviamente. Sempre à altura da bolsa, por assim dizer. No entanto e como sabe quanto mais estiver disposto a pagar, melhor será a casa à sua disposição. É uma verdade que se aplica em todos os campos, certo, Rick? Automóveis, apostas de cavalos, prostitutas e até mesmo sapatos. Bom, decerto que lhe agradaremos, Rick. Não tem que recear. Morpho Daugh está de olho aberto. E vou pôr de lado tudo o mais para me concentrar em descobrir-lhe o aluguer ideal. Considero uma grande honra servi-lo. E quero que saiba que falo sinceramente.

Atravessámos a estrada até à enseada e, com uma súbita viragem do carro, parámos diante de um bar. Morpho saiu e deu a volta, em passo saltitante, até ao meu lado do descapotável.

- Uma coisa! - disse, entusiasmado. - Acaba de me ocorrer que devíamos parar aqui para tomar fôlego. - Esboçou um movimento de cabeça, como se estivesse a observar o bar ao fundo do caminho, pela primeira vez na vida. - Entremos neste refúgio convidativo e esquematizemos a base dos nossos planos. Sempre acreditei em que deve ter-se em mente um plano à prova de bala, antes de iniciar um empreendimento importante. - Um sorriso ansioso desenhou-se-lhe no rosto, quando abriu a porta do carro. - Estamos mais próximo das onze do que do meio-dia, mas não sou de opinião de que deva perder-se tempo a esperar uma hora para entrar. Vamos aproveitar o tempo o melhor que pudermos.

Entrámos na construção de troncos de palmeira e sentámo-nos no bar. Morpho era afinal, sem dúvida, um cliente habitual. Cumprimentou o barman num tom familiar e interessou-se pela saúde da sua mulher e filhos. Em seguida, mandou vir rum com sumo de limão, para ambos. Dispus-me a mudar o pedido, ao lembrar-me do rum, na manhã de Key West, mas Morpho mostrou-se tão entusiasmado nas instruções dadas ao empregado, que hesitei em interferir.

Mal o rum e o limão foram servidos, Morpho, sem pronunciar uma palavra e sem um único olhar na minha direcção, esvaziou o copo de uma golada. Esboçou depois um movimento de cabeça para indicar ao barman que voltasse a encher-lhe o copo, enquanto eu me limitava a beber um sorvo do sumo de limão. Em seguida, Morpho conservou-se em silêncio, até ter despejado mais dois copos de rum, um atrás do outro. Continuava a ignorar o copinho de sumo de limão, que tinha na frente.

Quando lhe puseram o quarto copo de rum na frente, Morpho deu-me uma cotovelada.

- É o que sempre faço para ter a mão firme - explicou com um largo sorriso, ao mesmo tempo que abanava a cabeça para cima e para baixo. - Não sou o tipo de pessoa que consulta o relógio. Detestaria ser conhecido como alguém que não tira os olhos do relógio. Sempre que acho que a minha mão necessita ficar firme às oito da manhã, actuo em consequência. Agora, são perto das onze da manhã e a minha mão deseja tanto ficar firme, como poderia acontecer às cinco da tarde. Faz algum sentido para si, Rick?

- Ser-me-ia difícil refutá-lo, Morpho - redargui.

Pôs a cabeça um pouco de lado.

- Imaginei-o como o tipo de pessoa que veria as coisas à minha maneira - replicou. - Sabe que raramente estou na companhia de um famoso escritor como é o caso, e trata-se de uma experiência que me excita bastante. É esse o motivo por que a minha mão necessita de ficar firme a esta hora da manhã. Porquê? Porque você é o primeiro escritor da nossa época que conheci pessoalmente, eis porquê. Digo-lhe que me sinto muito orgulhoso com esta honra. O que é, na verdade, ser um escritor famoso, Rick? Aposto que se tem uma vida maravilhosa - ser célebre em todo o mundo, ter o nome nos jornais, ganhar montes de dinheiro, partir e chegar quando e onde se deseja, ter toda a bebida à disposição e arranjar raparigas atraentes a qualquer hora, se assim se desejar.

Morpho recostou-se um pouco para trás e fitou-me demoradamente com um olhar penetrante.

- É um grande escritor e eu um grande agente do ramo imobiliário. O que significa que temos muito em comum. Tanto eu como você somos importantes. Apertemos a mão!

Morpho apertou-me a mão com força e logo a seguir fez um aceno de cabeça ao barman para que servisse mais um rum. Nessa altura, eu já perdera a conta da quantidade de runs que fora encomendada.

- Quando dou início a um negócio como aquele em que agora entrámos, tomo por regra estabelecer uma verdadeira amizade e conviver com o objecto em perspectiva. Isto significa que eu e a minha perspectiva podemos respirar livre e facilmente. Sempre que o agente e o cliente estabelecem relações de amizade, tudo se assemelha a fazer negócio entre conhecidos de há muito. Nestas condições, nenhum de nós desconfia ou põe em causa a honestidade e integridade do outro. Trata-se dos alicerces de um negócio de propriedades construtivo e criativo. Não recearei que fique a dever o dinheiro do aluguer e, por seu lado, confiará em que aplicará o seu dinheiro de forma a proporcionar-lhe alegria e felicidade. Percebe? Ambos aproveitamos!

- Tenho a certeza de que será assim - concordei

- se encontrar o tipo de casa que pretendo. Só que ainda não decidi quanto à minha permanência em Sarasota. Posso resolver ir para outro lugar, para uma outra cidade. Quero que compreenda isso, Morpho.

- Não me preocupa um minuto que seja quanto à sua ida para um lugar inferior - retorquiu, expressando-se com voz de trovão e aplicando um murro no balcão. - Agora, está entre amigos e não quererá ir-se embora. Estou confiante disso. E encontraremos o lugar ideal para um autor famoso. Posso garantir-lho, Rick. Porquê? Porque conheço o meu ramo de dentro para fora, é esse o motivo. E considero-me, igualmente, um juiz extremamente perspicaz da natureza humana. Consigo saber quando um cliente se interessa por uma determinada propriedade e pagará qualquer preço para a obter. Consigo saber quando um cliente em perspectiva não tocará numa propriedade por preço nenhum - nem mesmo de graça. Mais do que isso, aposto a minha reputação em como, lá bem no fundo, deseja alugar uma casa em Sarasota. É o que leio nos seus olhos.

Bebi um golo de rum e de sumo de limão. Morpho fez um aceno de cabeça ao barman e encomendou mais uma rodada.

- Ouça me bem, Rick - convidou, baixando a voz num tom de confidência e inclinando-se mais na minha direcção. O corpo oscilava-lhe um pouco e tinha dificuldade em conservar-se direito no banco. - Deixe-me dizer-lhe uma coisa. O ramo de compra e venda de propriedades é uma dádiva abençoada por Deus e orgulho-me de dar o meu contributo para a sua glória. Consegue fazer uma afirmação idêntica relativamente a qualquer outro negócio ao de cimo de terra? Não! Claro que não! Deus quer que toda a gente tenha um sítio onde pendurar o chapéu e deitar a cabeça e orgulho-me do meu papel de intermediário entre Deus e a humanidade. O ramo imobiliário é uma profissão nobre. Algumas pessoas afirmam que somente me interessa o valioso dólar. É mentira! Apenas quero dez por cento do dólar e são mais as ocasiões em que concordo nos cinco por cento. Jesus Cristo foi o primeiro entusiasta do ramo imobiliário. Estava sempre a dizer às pessoas que fossem arar a terra, constituíssem família e formassem um lar feliz. Bom. Faz sentido que se arranje uma propriedade, se se precisa de um lugar para todas estas coisas, certo, Rick?

Apercebi-me pelo relógio pendurado atrás do bar que já passava do meio-dia. Ao ver-me consultar as horas, Morpho encomendou mais uma rodada de rum.

- Gostaria de ver algumas das casas de que me falou - sugeri.

Morpho olhou para o relógio com um pestanejar.

- Bom. Conseguimos - declarou, satisfeito.

- Conseguimos o quê? - inquiri.

- Conseguimos alcançar o meio-dia. Agora que finalmente o apanhámos, depois de o perseguirmos durante tanto tempo, beberemos o próximo em honra do bom e velho meio-dia!

Bebi um pouco do rum e sumo de limão e depois de Morpho pagar a conta, o que insistiu em fazer, saímos para o quente e luminoso sol do meio-dia e entrámos no descapotável amarelo. Morpho teve alguma dificuldade em ligar o motor e ofereci-me para conduzir. Obstinado e determinado, recusou com um gesto enfático da mão. Depois de vários arranques falsos, saímos às curvas do parque de estacionamento e tomámos o caminho da praia.

Percorridos alguns blocos, Morpho rodou o volante e seguiu junto a um relvado, após o que parámos diante de uma pequena vivenda próximo de um pequeno pinhal. Manteve-se sentado no carro, fitando a casa com uma expressão ausente e como se nunca a tivesse visto antes.

- Não! - exclamou num tom sonoro e batendo no volante com os dois punhos. - Não, sir! Não permitirei que o faça. Sou um homem consciente. Nunca serei um cúmplice neste negócio. Não permitirei que alugue esta enxovia. Vamos embora daqui.

Demos meia volta e seguimos por uma rua larga e ladeada de palmeiras em que havia muitas casas, com vista para a praia. Como que fazendo uma escolha ao acaso, Morpho tomou, subitamente, por um acesso de uma das casas. Mas ao fazer a manobra, avançou directo a uma caixa do correio, com tal impacto que a caixa e o poste caíram por terra, no solo arenoso. Parou o automóvel e em seguida fez uma precipitada marcha atrás.

- Erro meu - explicou, ao mesmo tempo que os olhos lhe brilhavam de satisfação. - Foi o lugar errado. Esta gente não quis negociar a casa comigo, quando tentei convencê-los.

Minutos depois, estacionámos diante de uma grande e imponente casa de dois andares, uma habitação caiada de branco e rodeada por um relvado cuidado. O dono ladeara a frente do pátio com conchas cor-de-rosa, cuidadosamente escolhidas. Sem me dirigir uma palavra, Morpho saiu do carro e dirigiu-se à porta da frente. Pouco depois de tocar à campainha, a porta abriu-se e Morpho começou, quase de imediato, a recuar pelos degraus. Um homem robusto e de feições rosadas, vestido com uma camisa colorida, seguiu Morpho até à rua.

- Se trespassar a minha propriedade uma vez mais que seja, vou pô-lo na prisão e processá-lo e fazer tudo o mais que a lei permite - seu bêbedo aldrabão! - gritou o homem a Morpho. - É a última vez que traz clientes até minha casa. Já lhe disse que não está à venda, que não a alugo e que não serve para mais nada senão para o afastar daqui! Agora, conserve-se bem longe, seu bêbedo, ou juro-lhe que ponho a polícia atrás de si!

Morpho ligou precipitadamente a ignição do carro e dirigiu-o ao longo da fila de conchas cor-de-rosa. O som das conchas esmagadas ouvia-se acima do ruído do motor e dos gritos do homem que se mantinha no pátio. Ao fundo da orla de conchas, Morpho conduziu o carro na direcção da estrada. Seguimos a toda a velocidade. Não se pronunciou nem mais uma palavra, até termos guinado para o parque de estacionamento, em frente do bar. Morpho saiu e fez-me sinal para que o imitasse. Segui-o e entrei no edifício de troncos de palmeira.

- Qual foi o problema, há minutos, Morpho? - perguntei-lhe.

- Um exemplo de pura e personificada ignorância - respondeu, sacudindo a cabeça com um ar triste. Não se via um rasto de sorriso ou esgar no seu rosto solene. - Aquele idiota não sabe que sou Morpho Daug. Sempre que lhe levo um cliente em perspectiva e tento vender ou alugar-lhe a casa, actua como se nunca tivesse ouvido falar de mim até essa altura. Imagine alguém que viva em Sarasota e desconhecendo quem eu sou! - Morpho mandou vir rum e limão para ambos. - O seu problema reside em que é incapaz de compreender o ramo imobiliário. Imagine qualquer pessoa normal que recuse uma oferta pela sua propriedade! O negócio ainda estaria mergulhado nos tempos medievais, se não fossem os agentes como eu que dedicam as suas vidas a conseguir ofertas. - Voltou a sacudir a cabeça por várias vezes. - Não há muitos como ele em Sarasota, agrada-me informar. Estamos bem livres de gente desta laia. E falo sinceramente!

 

A meio da semana, passei mais dois dias infelizes em Sarasota. Nessa altura, tinha a sensação de que haviam decorrido várias semanas, desde que Tess se fora embora.

Passava a maior parte do tempo a vaguear, sem rumo, pelas ruas, à sombra dos cítricos, interrogando-me sobre se voltaria a ser capaz de me dedicar ao trabalho. Numa vez, fui pescar para o Golfo e regressei algumas horas depois; noutra manhã fui nadar em Siesta Key e não tardei a sentir-me demasiado inquieto, mesmo para me deitar ao sol na praia. Depois de passar uma boa parte de um dia com Morpho Daugh, continuava a não pretender tomar a iniciativa de alugar uma casa. Morpho deixou-me várias mensagens no hotel, mas não fiz qualquer tentativa no sentido de o ver ou de lhe falar por telefone.

Por várias vezes, durante estes dois dias, subi ao meu quarto no hotel e tentei pensar na história que viera escrever a Sarasota. Nenhum dos temas em que dantes ponderara, me pareciam agora de interesse e dei por mim a desperdiçar o dia, fantasiando sobre Tess. E de cada vez, passada uma ou duas horas, ali, nem uma só palavra ficou escrita no papel e afastei-me sempre da máquina de escrever, totalmente desencorajado e desanimado. Os pensamentos que me ocorriam acabavam sempre, de uma maneira ou de outra, por se perder em recordações de Tess.

Numa noite quente próximo do final da semana, tomei subitamente a decisão que sabia que acabaria por tomar, antes de conseguir deitar-me de novo ao trabalho. Regressei ao hotel e comecei a embalar as minhas roupas, manuscritos e outros pertences, após o que devolvi o carro, que tinha alugado. Mais tarde, nessa noite, dirigi-me ao Orange Blossom Bar e informei Ronnie de que me preparava para sair da cidade.

- Tenho de o fazer, Ronnie - declarei. - Não posso permanecer aqui por mais tempo. Não aguentaria nem mais um dia. Tenho de me ir embora.

- Para onde vai, Rick? - inquiriu, sem demonstrar qualquer surpresa. - Nova Orleães?

Anunciei-lhe que partiria para lá no avião do dia seguinte.

- Ouça-me bem, Rick - disse num tom íntimo, inclinando-se sobre o balcão. Mostrava-se amistoso e sem vestígio de hostilidade ou ressentimento. Nesta altura, o esgar sombrio desaparecera-lhe por completo do rosto. - Não quero que se vá embora com a sensação de deixar ressentimentos atrás de si. Gosto sempre de esclarecer as coisas. Sei, obviamente, que na outra noite levou a Tess até à praia. Claro que sabia o que estava a passar-se e não me agradou nada, mas já lá vai. Era o que eu queria fazer e você fez. Mas não pense que vou ficar sentido, porque não é o que acontecerá. Não sou esse tipo de pessoa. Se ela não quis nada comigo, não há motivo para que nos desentendamos por isso. Já perdi outras mulheres antes e não será a última vez. Acontece a todos - e a si, também.

Podemos continuar amigos - você e eu. E é isso o que desejo.

Ronnie afastou-se e começou a arrumar uns copos. Quando voltou a olhar-me, tinha uma expressão grave.

- Talvez Tess não me achasse uma boa companhia - acrescentou, como se falasse consigo próprio. -Ou muito simplesmente não gostasse de mim. Compreendo perfeitamente. Todas as empregadas de cocktails são assim - nada têm de comum com as criadas e raparigas de bar. Elas têm a mesma opinião das empregadas que um barman tem dos ajudantes de mesa ou os barbeiros de um engraxador. Todos somos pessoas, mas gostamos de nos associar aos da nossa categoria social. Nunca se vê um governador a acompanhar um elemento do partido, pelo menos em público. Seja como for, se Tess o preferiu, isso significa que você ganhou e eu perdi. Nada mais. Sou bom perdedor. É essa a minha maneira de ser e quero que o saiba.

Com um gesto profissional, Ronnie pousou um uísque com soda diante de mim no balcão, indicando, ao mesmo tempo, com um sorriso amável, que estava a convidar-me para uma bebida.

Ergui imediatamente o copo, num brinde.

- Esperemos que ambos tenhamos melhor sorte no futuro, Ronnie - desejei.

Piscou-me o olho, ao mesmo tempo que abanava a cabeça num brusco movimento. - E tão depressa não vai acontecer-me - retorquiu.

Dois homens entraram no bar e pediram uísque. Trocavam palavras em voz baixa e não nos prestaram atenção. Saíram pouco depois de terem sido servidos.

- Sabe onde posso encontrar a Tess em Nova Orleães, Ronnie? - perguntei, quando ele acabou de levar os copos e regressou até ao lugar onde me mantinha sentado, ao balcão.

Fitou-me, pensativa e demoradamente, antes de me responder.

- A Tess não lhe disse?

- Não.

- Por que não?

- Não sei.

- Perguntou-lhe, certo?

- Peirguntei-lhe até ao último minuto, mas não me disse.

- Fez o mesmo comigo - redarguiu, afastando-se com um aceno compreensivo e dirigindo-se ao outro extremo do balcão.

Conservou-se à distância uns minutos. Quando voltou, denotava uma atitude ainda mais compreensiva. Inclinou-se sobre o balcão, na minha frente.

- Acho que sei onde pode encontrá-la. Rick declarou, com um aceno de cabeça na minha direcção.

- Sim. Acho que sei.

- Está a falar a sério, Ronnie?

- Claro que sim. Já lhe disse que não sinto qualquer ressentimento. Sabe isso.

- Onde posso encontrá-la? - inquiri, esperançado.

Vários clientes entraram e sentaram-se no outro extremo do balcão. Ronnie voltou, depois de os ter servido.

- Tess disse-me uma vez que lhe agradava particularmente trabalhar num sítio chamado The Merry Go-Round. Fica no Quarter, mas não naquele sítio reservado aos clubes do Sul - Bourbon Street. Dista uns quarteirões desse sítio, mais para baixo, próximo do French Market. Se for até lá e fizer as perguntas certas às pessoas certas, descobrirá alguma coisa. Sei que é o que faria se a procurasse em Nova Orleães - e também a descobriria, se ela estivesse lá.

- É o que farei, Ronnie - garanti, agradecido. - E obrigado pela informação que me deu.

- Tudo bem, Rick - redarguiu. - Gosto de prestar favores a algumas pessoas. Qualquer pessoa no Quarter, lhe indicará onde fica o The Merry Go-Round. Têm um bar circular e todo o local gira como se fosse um carrossel, (1) à excepção de que anda muito devagar, para ninguém ficar tonto. Se não mantivessem tal coisa a uma velocidade moderada, sabe perfeitamente como sairiam muitas pessoas dos bancos desse bar. De qualquer maneira, procure-o e quando lá chegar, faça perguntas. Alguém lhe dará a informação que pretende. Tenho a certeza.

 

Nota 1: The Merry Go-Round, o nome do bar, pode traduzir-se por «O Carrossel». (N. da T.)

 

Ronnie desenhou um mapa do French Quarter num guardanapo de papel e entregou-mo. Assinalara a localização do The Merry Go-Round com riscos fortes do lápis. Dobrei o guardanapo e meti-o no bolso.

- Sabe muito sobre a Tess, Ronnie? - perguntei. - De onde ela veio, ou qualquer coisa assim? O que é que ela lhe contou sobre si própria?

Sacudiu a cabeça devagar.

- Tess pouco me contou da sua vida. Sempre que tentei descobrir algo a seu respeito, ficava gelada. A única certeza que tenho foi a de que servira como empregada de bar perita em cocktails em Atlantic City durante dois meses e, em seguida, três, em Miami Beach, antes de vir para Sarasota. Tem provavelmente família pelo mundo, mas nunca se lhe arrancará uma palavra a esse respeito. Recusa-se a falar do assunto, por qualquer motivo. Imagino-a como uma pessoa que passa o tempo a mudar-se para combater a solidão. Já ouviu, certamente, falar de pessoas assim. Talvez siga um circuito regular e viaje o ano inteiro, ao sabor das estações, de um extremo ao outro do país, como algumas pessoas seguem as corridas de cavalos e coisas do género. As pessoas adquirem hábitos curiosos. Farão tudo para não se sentirem sós.

Manteve-se silencioso durante uns minutos.

- Há, contudo, uma coisa a respeito de Tess de que tenho a certeza - prosseguiu, em seguida. - Não mo confessou quando lhe fiz a pergunta directamente, mas aposto que foi casada. Não foi sempre solteira. É algo que se vê.

- O que o leva a pensar que ela foi casada, Ronnie?

- Vê-se, Rick. Sabe que sim. Só que nunca conheci uma rapariga que conseguisse fazer disso um segredo. Depois de ter sido casada, uma rapariga não consegue escondê-lo para o resto da vida. Detectam-se sempre vestígios, mesmo que seja divorciada ou separada. Algo que diz ou faz, acaba sempre por denunciá-la. Nada existe à superfície, mas acaba por revelar-se mais cedo ou mais tarde. As raparigas como ela andam sempre tristes, e são duras e afectuosas ao mesmo tempo. Trata-se de uma espécie de marca ou rótulo, que todas adquirem. E se me perguntar, acho que, no íntimo, se sentem orgulhosas, mesmo que nunca o confessem. Procure indícios da próxima vez que lhe for dada a oportunidade e veja se não é verdade.

Continuei sentado no bar, durante uma meia hora mais. Ronnie pouco conversou durante todo esse tempo e fiquei a beber uísque com soda e a pensar em tudo o que ele me dissera a respeito de Tess. Recordei-me, então, de que na praia perguntara a Tess se era casada ou o fora e ela se esquivara, habilmente, ao meu interrogatório.

À meia-noite regressei ao hotel e adormeci imediatamente. O avião partia ao meio-dia, mas já estava pronto para a viagem às nove da manhã. Sentei-me no salão durante quase três horas, de olhos postos no grande relógio de parede e contando os minutos. Tinha a certeza de que encontraria Tess mal chegasse a Nova Orleães ou, pelo menos, descobriria onde ela estava e o meu espírito abarrotava de todos os pensamentos que acumulara a seu respeito naquela última semana. Chegou, finalmente, a hora da partida e no momento em que subia para um táxi a fim de tomar o avião, avistei Morpho Daugh, que dobrava a esquina com o seu passo apressado e entrava precipitadamente no hotel. O esgar decidido no rosto afilado significava, indubitavelmente, que tinha recebido mais um telefonema de Harvey Farthing.

O avião aterrou no aeroporto de Nova Orleães ao fim da tarde. Tinha caído uma forte chuvada pouco antes da aterragem e o vapor fumegante ainda se erguia do pavimento durante todo o caminho até à cidade. Passava das dezoito horas, quando cheguei ao hotel e me registei no quarto que havia reservado.

Sem perder tempo a desfazer as malas, deixei de imediato o hotel e atravessei, rapidamente, o Canal Street na direcção do French Quarter. A atmosfera estava quente e húmida, como é habitual em Nova Orleães, de Abril a Setembro, e senti-me contente por ter vestido um fato leve. Mesmo assim, ainda não deixara de suar, desde que o avião pousara no aeroporto. O The Merry Go-Round era tão fácil de localizar como Ronnie tinha garantido e nem tive necessidade de consultar o mapa, que Ronnie me desenhara. Conhecia aquele bairro bastante bem, pois já lá estivera muitas vezes e pouco depois das dezanove tinha descoberto o bar e encontrava-me sentado a uma das mesinhas da sala, alegremente decorada. Todo o centro do salão movia-se lentamente no sentido dos ponteiros do relógio, enquanto as mesas e cadeiras à volta se conservavam fixas. Depois de uns minutos, todos os presentes haviam desfilado na minha frente.

Durante todo o dia acalentara a esperança de deparar com Tess no momento em que entrasse no The Merry Go-Round, mas já me encontrava no bar há uns cinco ou dez minutos e ainda não a tinha visto. Comecei a interrogar-me, sombriamente, se voltaria a vê-la. Quanto mais o tempo se escoava, mais desanimado e infeliz me sentia. Já fora mesmo ao ponto de achar que Ronnie me havia enganado de propósito.

Havia duas empregadas de cocktails a trabalhar no bar. Uma delas era loura, tinha o cabelo curto e um corpo pouco atraente; a outra era morena e magra, bastante bonita mas sem um traço de parecença com Tess. Observei ambas, enquanto se dirigiam às várias mesas e voltavam ao balcão, interrogando-me sobre qual delas saberia com mais probabilidade algo sobre Tess.

Nesse momento, a loura veio atender o meu pedido. Mantinha-se junto da mesa, silenciosa e impaciente, esperando que lhe dissesse o que queria beber.

- Uísque com soda - indiquei, desanimado.

Esboçou um aceno de cabeça indiferente e afastou-se. Não me dirigira a palavra.

Observei-a de pé, numa posição de ombros curvos, ao fundo do bar e pensei como seria diferente se Tess estivesse no seu lugar. Além de parecer alguns anos mais velha do que Tess, vestia-se de uma forma descuidada e negligente e parecia alheada de tudo e de todos à sua volta. Tinha feições vulgares, mas poderia melhorar o aspecto se cuidasse melhor do cabelo e endireitasse o colarinho enrugado da blusa. Continuei a observar a jovem com uma expressão crítica, pensando em todas as diferenças que tornavam Tess muito superior.

Quando a rapariga saiu de junto do bar para me trazer a bebida à mesa, evitei olhá-la e pus-me à procura dos cigarros. Só a fitei de frente, quando ficou de pé junto da mesa.

- Conhece a Tess? - perguntei, então.

A jovem pareceu momentaneamente sobressaltada.

- Tess? - repetiu, como se fosse a primeira vez que ouvia o nome. Olhava-me com uma expressão penetrante. - Tess quê? Ignoro a quem se refere. Será melhor perguntar a outra pessoa.

Só agora a ouvia falar e não me admirei que tivesse uma voz dura e áspera. Talvez a rapariga soubesse que era feia e optasse, consequentemente, por se mostrar brusca e implicativa.

Fitou-me com um desdém obviamente intencional.

- Ignoro a quem se refere - repetiu.

- Tess Dameron. É empregada de cocktails. Penso que trabalhou aqui. Conhece-a, certo?

- O que o leva a supor que ela trabalhou aqui? - retorquiu a rapariga naquele tom áspero, enquanto me inspeccionava com desconfiança. - Deve estar no sítio errado e não o sabe. Tente um dos outros bares aqui na rua.

- Sei onde estou.

- Bom e daí?

- Já lhe disse que estou à procura de Tess Dameron.

- E respondi-lhe o que havia de fazer.

- E alguém me informou que ela trabalhava aqui.

- Quem o informou?

- Um amigo.

A rapariga manteve-se silenciosa uns momentos.

- Veio até aqui da Florida? - inquiriu depois.

Esbocei um aceno de concordância, interrogando-me sobre o que a levaria a fazer aquela pergunta.

- Há quanto tempo está na cidade?

- Cheguei esta tarde.

- De que lugar veio da Florida?

- Sarasota.

- Sei quem é - comentou com um aceno de cabeça. - Chama-se Rick qualquer coisa.

- Exacto - concordei. - Rick Sutter. Mas como sabe tanto a meu respeito? Foi a Tess que lho disse?

A rapariga manteve-se silenciosa.

- Por que não me diz se conhece Tess? - insisti.

- Não posso dizer-lhe nada sobre ela - respondeu bruscamente.

- Por que não?

- Não interessa o porquê. É assunto meu.

- Mas sabe algo sobre ela, não? Por que não quer dizer-me?

Afastou-se, ignorando insolentemente as minhas perguntas. Deixei-me ficar sentado, contemplando a figura robusta da rapariga e o cabelo louro e oleoso, interrogando-me sobre o que ela saberia a respeito de Tess. Estava convencido de que sabia algo e decidido, nessa altura, a descobrir fosse por que meio fosse. Tanto quanto sabia, ela era a única pessoa em Nova Orleães que poderia indicar-me onde encontrar Tess. Mal acabei a bebida, fiz-lhe sinal para que me trouxesse outra. Não se apressou e trouxe a segunda bebida, decorridos uns minutos.

Coloquei dinheiro em cima da mesa e esperei que fizesse o troco, antes de lhe dirigir a palavra.

- Gostaria de falar um pouco mais consigo - declarei no tom mais simpático que consegui. - Que tal? É possível?

- Não posso dizer-lhe nada sobre ela – vincou pela segunda vez. Expressava-se com a mesma voz dura e com modos desdenhosos e antipáticos. - Agora, deixe de me maçar.

Sabia que se a irritasse, podia não descobrir nada sobre Tess e nessa altura já tinha a certeza de que ela conhecia o paradeiro de Tess. Esforçando-me até ao limite para lhe arrancar um gesto amável, ergui o rosto na sua direcção e sorri-lhe. O comportamento reservado não desapareceu logo, mas pareceu mais receptiva.

- Fale-me um pouco de si - incitei. - Pode, pelo menos, dizer-me o seu nome. Sabe o meu.

Esboçou pela primeira vez um sorriso simpático. A mudança, que se operara nela em breves instantes, era tão diferente da atitude anterior, que me deu a sensação de que esperara ansiosamente que alguém lhe falasse com amabilidade.

- Vai dizer-me o seu nome, não vai? - insisti.

- Chamo-me Suelaine - respondeu, aproximando-se mais.

A forma como se expressava, sobretudo a inflexão da voz, era a de uma criança em busca de amor e companhia. Teria sido, afinal, difícil antipatizar realmente com ela. Invadiu-me a sensação de que há muito tempo que esperava e desejava que alguém lhe denotasse amizade. O lábio inferior tremeu-lhe um pouco.

- É um nome bonito - repliquei. - Um nome muito bonito. E invulgar, também.

- Acha mesmo que é um nome bonito? - retorquiu.

- Acho.

Pareceu satisfeita e feliz por me ouvir responder assim.

- Sempre o achei bonito, também - replicou. - É quase a única coisa quetenho, capaz de agradar a alguém. Sei que não sou bonita.

Tinha os olhos húmidos e pestanejava.

- Podemos encontrar-nos mais tarde? - sugeri. - Gostaria. Que tal?

- Sim - anuiu imediatamente com uma expressão ansiosa e sem qualquer vestígio da hostilidade anterior. - Saio à meia-noite.

- Nesse caso, encontro-me aqui consigo à meia-noite.

- De acordo - disse.

Afastou-se, sorrindo-me por cima do ombro.

Saí para a noite húmida e vagueei pelas ruas sujas e escuras do bairro, durante umas horas. Para além da habitual vaga de turistas e excursionistas de fim-de-semana do Texas e Mississipi, realizava-se um seminário na cidade e Bourbon Street apresentava-se cheia de gente embriagada, barulhenta e ávida de se divertir, que se acotovelavam e abriam caminho de uma ponta à outra do Quarter. Ao avançar pela Bourbon Street, frequentemente empurrado do passeio pela vaga ruidosa, recordei-me da observação de Ronnie de que este era o submundo dos cavalheiros do Sul. Estivera na maioria dos night-clubs e bares com música bem como casas de absinto em visitas anteriores e somente desejava gastar o tempo, até à meia-noite. Praticamente em todas as vezes que parava numa esquina, durante uns minutos, aproximava-se alguém que me perguntava se estava interessado em encontrar-me com uma rapariga fugida ou uma noiva desiludida ou uma mulher que dormia com um jacaré. Em vez disso, percorri os bares de Bourbon Street onde bebi «sazaracs» e mais tarde comi uma tigela de sopa de quiabo e galinha e bebi café numa cafetaria.

Às onze e meia comecei a percorrer as ruas fedorentas na direcção do The Merry Go-Round.

Quando cheguei ao bar, estava ainda mais cheio do que no começo da noite. As pessoas amontoavam-se às duas e três no bar giratório e todas as mesas estavam ocupadas. Nem tivera tempo de mandar vir uma bebida, quando avistei Suelaine, que avançava ao meu encontro pelo meio da multidão.

- Fiz o meu turno - declarou com um sorriso simpático. - Tenho a noite livre.

Notei imediatamente que mudara de roupa e gastara algum tempo a escovar e a pentear o cabelo louro. Era óbvio que se esmerara bastante a tentar parecer atraente. Ao contemplá-la agora, lamentei haver sido tão crítico a seu respeito no início da noite. As feições vulgares continuavam presentes, mas esforçara-se por lhes dar um toque agradável.

- Vamos beber qualquer coisa a outro lado - sugeri. - Isto está demasiado cheio.

Avançou e pousou a mão no meu braço com um gesto íntimo.

- Podemos ir tomar uma bebida a minha casa - propôs, lançando-me um olhar ousado. Aproximou-se mais e senti-lhe as ancas de encontro ao corpo. - Acho que seria mais simpático, não? Estaríamos sós.

Hesitei, interrogando-me sobre o que poderia acontecer.

Suelaine aproximou-se ainda mais, premindo o corpo de encontro ao meu.

- Sei que não se arrependerá - sussurrou. Garanto-lhe.

- Vamos - anuí, de imediato.

 

Ao chegarmos à rua, metemo-nos num táxi e Suelaine indicou o endereço ao motorista. Seguimos na direcção de Lake Pontchartrain. Embora já passasse da meia-noite e todas as janelas do táxi estivessem abertas, o ar continuava tão abafado e húmido, como quando eu chegara nessa tarde a Nova Orleães.

Após deambularmos pelas ruas quentes durante uns quinze quarteirões, chegámos a uma avenida escura ladeada de árvores e parámos diante de uma grande casa de madeira de dois andares. Havia um candeeiro de poste num dos cantos da rua, mas nenhuma das casas se apresentava iluminada.

Era óbvio, pelo que divisava na obscuridade, que numa época anterior, a casa onde havíamos parado tinha sido uma imponente residência numa vizinhança de solares. Na frente da casa ressaltavam uma larga varanda e pesadas colunas de madeira e toda a construção estava gasta pelo tempo e deteriorada por falta de pintura e reparações. A meia dúzia de caixas do correio na varanda indicavam que a habitação fora convertida em apartamentos alugados com kitchenette. A relva e erva daninha cresciam em abundância no pátio.

Quando estava a pagar a corrida, o motorista perguntou-me se queria que esperasse e me levasse mais tarde de volta à cidade.

- É uma longa caminhada a pé, amigo - acrescentou. - E não lhe custará muito se eu esperar.

- Ninguém lhe está a pedir que fique à espera! - interferiu Suelaine num tom estridente, antes que eu pudesse pronunciar-me. - Desapareça daqui! Ponha-se a andar! Quando quiser um táxi, descobrirei um!

- Muito bem, minha senhora - desculpou-se o motorista, num tom de mofa. Inclinou-se um pouco para fora da janela do táxi e depois de lhe avaliar a figura, sorriu com ar de conhecedor. - Como podia saber a sua intenção? Estava somente a tentar ser útil, minha senhora!

- O tanas é que estava! - retorquiu. - Estava apenas a tentar arranjar uma corrida até outro sítio!

- Tem de se fazer pela vida, como toda a gente!

- Trate do seu negócio, que eu trato do meu - redarguiu-lhe irritada. - Não preciso de ajuda sua!

- Tudo bem, minha senhora! - concordou com uma risada. - Escolho as minhas corridas e você as suas!

Arrancou a toda a velocidade, antes que Suelaine pudesse acrescentar uma palavra.

Seguimos ao longo de uma parede de tijolo arruinada, subimos uns degraus, atravessámos a varanda em mau estado e entrámos na casa. No escuro do hall, Suelaine rodou a chave da fechadura de uma porta e acendeu uma luz. Entrámos numa divisão pequena, a cheirar a bafio, que tinha somente um sofá vermelho coçado, uma mesa com a pintura rachada e pernas desengonçadas e uma enferrujada ventoinha eléctrica. O sujo papel de parede com motivos de caramanchões de roseiras amarelas e vermelhas desbotadas, apresentava-se solto num dos cantos e bocados de gesso, descuidadamente aplicados, tapavam as rachas do tecto.

O chão de madeira sem carpete era de madeira gasta e lascada. A um canto da divisão amontoava-se uma pilha de jornais e revistas velhos.

- Ficará mais fresco daqui a pouco - garantiu Suelaine, ligando a ventoinha e abrindo a janela. A sua forma de pronunciar as palavras e arrastar as sílabas indicou-me mais do que nunca que tinha sido criada numa das regiões próximas. Conseguia entender tudo o que me dizia, se escutasse com atenção. - Tenho de fechar as janelas, sempre que saio. Assim, a chuva não entra. As pessoas nem fazem ideia do que chove por aqui. Tudo fica mole e bolorento. Há vezes em que me apetece ir para qualquer lado, onde não chova durante quase todo o dia, como aqui. Devem existir lugares desses.

Suelaine conservou-se alguns momentos diante da ventoinha, enquanto a leve corrente de ar lhe despenteava o cabelo louro. Pareceu-me ainda mais baixa e as pernas ligeiramente tortas bem como as barrigas das pernas musculosas ressaltavam no conjunto. Os seios pesados pendiam, descaídos, sob o vestido fino.

- Agora, vou buscar o uísque - declarou, saindo da sala e abrindo a porta de uma kitchenette semelhante a um armário.

Quando regressou uns minutos depois, trazia uma garrafa cheia de bourbon, um jarro com gelo e dois copos desirmanados. Deitou gelo nos dois copos e serviu o uísque. Depois de acabar, estendeu-me um dos copos e sentou-se ao meu lado no sofá vermelho de costas direitas.

- Está satisfeito por me ter acompanhado? - quis saber, tirando os sapatos.

- Claro que sim - garanti-lhe.

A rapariga esboçou um sorriso contente e começou a beber o bourbon em longos e demorados sorvos.

- O que quer saber sobre a Tess? - inquiriu, em seguida, com um esgar mordaz. - Foi o único motivo por que me acompanhou até a casa, certo? Sei que é assim. Apenas está interessado em descobrir algo sobre ela.

- Onde é que ela está? - perguntei de imediato.

Lenta e deliberadamente, e sorrindo para si própria, Suelaine acabou de beber o uísque, que tinha no copo. Tirei os cigarros do bolso e ofereci-lhe um. Esperou até que riscasse um fósforo e acendesse o meu e o dela, antes de responder.

- Onde é que ela está? - retorquiu depois Suelaine com o mesmo ar trocista. - Não está na cidade. Foi-se embora.

- Como é que sabe? - inquiri, interrogando-me sobre se estaria a falar verdade.

- Porque me contou, é só isso. A Tess trabalhou durante três noites no The Merry Go-Round. Depois foi-se embora. Afirmou recear que alguém da Florida estivesse a segui-la. Contou-me tudo e foi por isso que me recordei do nome. Era você mesmo. Rick qualquer coisa. Por que não a deixa em paz?

- Não posso deixá-la em paz, porque gosto muito dela - respondi. - Gosto mesmo muito. Não quero deixá-la em paz.

- Há muitas outras raparigas - observou, com um encolher de ombros. - Ela não é a única. E há muitas que gostariam de ter um homem a segui-las. Para quê perder tempo com alguém que nos foge?

Mantive-me em silêncio. E nessa pausa, bebi um pouco de bourbon do copo que agarrava na mão.

- Bom, na verdade expulsou a pobre rapariga da cidade - retorquiu Suelaine num tom acusador. - Ela podia ter ganho bom dinheiro no The Merry Go-Round. Estamos numa boa altura do ano para gorgetas. O que é importante, porque as empregadas de cocktails quase não têm salário. Praticamente todo o dinheiro que ganhamos vem-nos das gorgetas.

- Sabe para onde foi a Tess? - perguntei.

Esboçou um aceno afirmativo e contente.

- Para onde?

Riu para si própria de satisfação, antes de me responder.

- Tess obrigou-me a prometer que guardaria segredo.

- Mas sabe onde ela está?

Suelaine soltou mais uma risada.

- Claro que sei onde ela está. Mas, não digo.

Voltou a rir, como se lhe desse prazer saber que estava a fazer-me sofrer, sendo capaz de guardar para ela a única coisa que eu estava a tentar descobrir.

Bebemos o bourbon que tínhamos nos copos e enchi-os novamente com gelo e uísque. Sentado ao lado da rapariga, observei-lhe o rosto, até que me fitou e sorriu um pouco. Estava ansioso por convencê-la a dizer-me para onde fora a Tess, partindo do princípio que saíra realmente de Nova Orleães, mas temia que Suelaine jamais me revelasse a informação, se a irritasse.

Enquanto me mantinha sentado na sala a fumar o cigarro e tentando mostrar-me paciente, Suelaine recostou-se de encontro ao meu corpo.

- Continua a pensar nela? - inquiriu.

Respondi com um aceno de concordância.

- Ela é bonita - comentou Suelaine num tom malicioso. - Muito mais bonita do que eu. Tem um rosto tão bonito e as pernas também. Quem me dera ser assim! Mas não sou, nem posso evitá-lo.

Esperei uns momentos antes de continuar a falar.

- Podia falar-me de Tess se quisesse, certo? - pronunciei-me, em seguida, tentando parecer casual e sem pressa. - Verdade, Suelaine?

- Talvez - redarguiu, aproximando-se mais.

- Então talvez o faça.

- Explique-me por que é que a Tess foge de si - replicou Suelaine, erguendo o rosto na minha direcção.

- Ignorava que o fazia. Julguei que fazia todas estas viagens de lugar em lugar, porque o desejava. Disse-me que era assim que vivia.

- Eu sei. Disse-me o mesmo. Mas não me parece que ela ande realmente a fugir de si. Trata-se apenas de uma desculpa. É outra coisa o que a leva a andar de um lado para o outro, como o faz. Quando uma mulher é assim tão inquieta, há um bom motivo. Penso que se meteu em qualquer sarilho. Não me falou nisso, mas tenho a certeza que é algo relacionado com um homem. Que mais poderia ser? Uma noite, no The Merry-Go-Round, apanhei-a a chorar e outra vez garantiu-me que seria capaz de passar sem homens para o resto da vida. A história não muda, quando uma mulher é tão agitada, triste e só como ela. Há um homem no caso, tenho a certeza. Ou foi casada com ele ou não o foi. Ou o amava ou não o amava. Tem de ser qualquer coisa do género. O que mais pode fazer viver uma mulher?

- Fala como se soubesse muito desse assunto.

- Sou perita. Também tive problemas e ainda os tenho. Claro que sou perita.

Suelaine deitou mais uísque nos copos. Observei o movimento das pás da ventoinha eléctrica e interroguei-me sobre quanto tempo teria de permanecer no calor desta sala bafienta, antes que me contasse como poderia encontrar Tess. Suelaine recostou-se para trás e envolveu-me num abraço. Sentia o calor pegajoso dos nossos corpos a impregnar-me a roupa.

- Acho-o um tipo bem parecido - declarou Suelaine com voz rouca, apertando-me mais nos braços transpirados. - Não um homem bonito, mas com bom aspecto. Um homem não tem de ser bonito, se for bom e souber como lidar com uma rapariga. Não percebo por que é que a Tess quer manter-se afastada de si. Eu não o faria. Seria até capaz de o perseguir, em vez de fugir como ela. Gosto de um homem que é bem macho e age da mesma forma. Seria capaz de perder a cabeça dia e noite com o homem certo. - Falava agora mais devagar e eu tinha mais dificuldade em compreender as palavras. De súbito, deu-me um abanão. - Por que não gosta de mim um bocadinho que seja?

- Mas gosto de si - repliquei. Não era bonita nem atraente, mas simpática e agradável. - Gosto de si, Suelaine.

- É tudo o que consegue dizer?

- Bom, é simpática e...

Pegou-me na mão e forçou-me a rodear-lhe a cintura com o braço.

- Posso ser ainda mais simpática - sugeriu. - Isto é só o começo de como posso ser simpática quando quero. Talvez o seja, a ponto de querer ficar e deixar de se importar com o tempo que demore a contar-lhe o que deseja saber sobre a outra rapariga. Quando me sinto assim, não paro. Por que não descobre coisas a meu respeito?

- Espero que me fale da Tess.

- É só isso o que lhe interessa? - retorquiu irritada, após o que começou a abanar-me bruscamente. O cabelo louro e oleoso caía-lhe sobre a testa. - O que se passa consigo, afinal? Só consegue pensar nisso?

- Não, não exactamente - apressei-me a responder.

- Então, pense um pouco em mim!

- Estou a pensar em si, Suelaine, mas sabe porque vim aqui.

- Ora. Cale a boca!

Aguardei com o corpo retesado, sem saber o que dizer ou fazer a seguir, pois receava que se sentisse ainda mais furiosa. Sentia a minha mão quente e húmida na sua carne flácida. O zumbido da ruidosa ventoinha pareceu, repentinamente, tornar-se mais forte e intenso. Assemelhava-se a uma máquina que tivesse sido inventada para produzir uma velocidade maior, a cada movimento das pás. Enquanto esperava, ansioso e trémulo, sentia o suor a escorrer-me pelo pescoço e pelo peito. O calor na sala era sufocante.

Suelaine levantou-se subitamente, agarrando-me e puxando-me até ficar de pé, ao lado dela. Respirava ofegante ao ritmo dos seios, que subiam e desciam, e o cabelo curto e louro estava pegajoso e húmido. Sem pronunciar palavra, mas puxando-me possessivamente, levou-me para o aposento ao lado. O quartinho, com a sua escassa mobília, estava ainda muito mais quente e asfixiante do que a sala quando ali chegáramos.

Soltando-me, Suelaine abriu a janela e ligou uma pequena ventoinha eléctrica. Em seguida, sentou-se na cama desfeita.

- O que está a tentar descobrir é para onde foi a Tess quando partiu de Nova Orleães - declarou com voz estridente, puxando-me para o lado dela. - É isso?

- Quero saber - repliquei.

- Talvez pudesse dizer-lhe... daqui a algum tempo. Foi o que disse... daqui a algum tempo. Sei exactamente para onde ela foi e posso dizer-lhe se me apetecer. O que sabe sobre isso? O que vai fazer? Se me tratar como deve ser, ficará a saber. É um negócio justo. Não encontrará melhor pechincha em Nova Orleães. Sempre que recebo algo num negócio, faço a troca.

Deitei uísque nos copos, com mãos trémulas. Suelaine agarrou no dela e engoliu-o de um trago, enquanto me observava atentamente. Em seguida, atraiu-me a si com um movimento de desejo.

- Deixe de se preocupar tanto - censurou. - Não tem motivo para se preocupar, a partir de agora. - Desta vez envolveu-me nos dois braços e apertou-me com força de encontro ao corpo suado. - Vou dizer-lhe o que quer saber... daqui a pouco. Seria incapaz de mentir... juro. A promessa que lhe fiz nada significa para mim. Nunca a vi na vida antes dela ir trabalhar para o The Merry-Go-Round, na segunda-feira passada. Também não voltarei a vê-la. Por que não dizer-lhe para onde ela foi, se me apetecer? O problema é meu. Faço o que quero, quando quero uma coisa. É a única forma de sobreviver na vida que levo. Ainda não tenciono dar-lhe a informação, mas vou dar-lha daqui a pouco, se me tratar à altura. Nada tenho que ver com os seus problemas. São dela e não meus. Já tenho com que me preocupar e agora apenas me interessa a Suelaine.

Continuei sentado debaixo daquele calor numa atitude de expectativa e interrogando-me sobre quanto tempo iria durar a noite. Sentia mais do que nunca o peso da minha roupa transpirada.

- Sabe uma coisa? - inquiriu num tom meloso e deliberado. A voz arrastada cada vez se tornava menos perceptível e havia vezes em que não compreendia uma palavra do que me dizia. - A Tess e eu somos diferentes. Não nos parecemos mesmo nada. O único ponto em comum é que somos ambas mulheres sós. Sós como o inferno! Sós como um raio! Mas a Tess nada faz para se safar, enquanto eu aproveito todas as oportunidades, que me surgem. Estou a pensar aproveitar este momento. Esse o motivo por que quis que me acompanhasse a casa esta noite - para aproveitar uma oportunidade. E agora não vou permitir que se vá embora. Posso mantê-lo aqui o tempo que me apetecer, porque sei que irá ficar, até descobrir o que quer saber. Tive realmente sorte em que aparecesse com esse desejo de saber algo. Agora, tenho alguém com quem fazer uma troca. Sou mesmo idiota, quando estou nessa disposição.

Suelaine ressaltou os seios húmidos e pesados de encontro ao meu corpo. A ventoinha enferrujada zumbia ruidosamente, mas o calor do quarto parecia tornar-se mais sufocante em cada minuto que passava.

- Claro que vai ficar... como se chama? Já me lembro. Rick Sutter. Da Florida. É você. Eu sou a Suelaine. Não tenho apelido. Não o tenho, porque não quero. Não em Nova Orleães que é próximo de mais da minha casa. É algo de que uma rapariga como eu não precisa em Nova Orleães. Poupa-me uma quantidade de sarilhos. Safo-me muito melhor sem apelido - em Nova Orleães. Ninguém pode arranjar-nos problemas, se não temos um apelido. Antes de vir para Nova Orleães costumava ter apelido. Talvez um dia volte a ter um apelido. Talvez alguém queira casar-se comigo e, então, terei um. - Soltou uma risada embriagada. - E o que levaria alguém a querer casar com uma prostituta? Não sei, mas há sempre alguém disposto. Aparece sempre alguém que o quer. Sabe em que se transformam as prostitutas, quando ficam velhas e desmazeladas? Alguém se ocupa delas, certo? Digo-lho, porque sei. Todas elas acabam por casar, seja lá como for. O que está certo, porque onde é que se ouviu falar de uma prostituta solteirona? Não existem coisas dessas. Claro que casam e depois recebem um apelido. Mrs. Jones - Mrs. Brown - Mrs. Smith - Mrs. Hotrocks - Mrs. Biggerbottom. (1) - Soltou nova

 

Nota 1: Os dois últimos apelidos podem traduzir-se por: Mrs. Brasa e Mrs. Cuzão. (N. da T.)

 

risada. - É isso o que quero... um apelido. Também vou arranjar um para mim. Tenho que fazê-lo depressa, pois estou a caminho de envelhecer.

Apontou para o jarro de barro pousado na mesa-de-cabeceira. Estendi-lho e ela voltou a colocá-lo no sítio, depois de beber dele.

- Quero falar de coisas de que sei - retorquiu num tom arrastado e lânguido. - Quero falar de Tess e de mim, do que ambas procuramos neste mundo. Agora estou embriagada e vou embriagar-me mais. E quanto mais embriagada estiver, mais quererei falar sobre isso. Sobre o quê? Sobre o que desejamos - a Tess e eu. As duas procuramos a mesma coisa - amor e mais amor. Quando se consegue isso, deixamos de nos consumir por dentro. É o que nos dói - consumirmo-nos por dentro. Nunca há amor bastante, pelo menos que chegue para andarmos por aí. O problema é que, quando se consegue alguma, há sempre qualquer coisa que corre mal e perde-se o que se conseguiu. É quando se lhe sente mais a falta, é quando mais se deseja tê-lo, quando não se tem mais depois de se ter tido uma vez. Oh, céus! É um inferno viver sem ele! Ouviu o que lhe disse? - inquiriu Suelaine, sacudindo-me bruscamente. - Está a prestar-me atenção?

- Estou a escutar tudo - garanti-lhe.

- É mentira! - exclamou. - Não está a escutar-me! Nem por um momento deixou de pensar na outra rapariga - naquela cabra!

Mantive-me sem pronunciar palavra e seguiu-se um longo período de silêncio no quarto. A ventoinha continuava o seu trabalho monótono.

- Ainda bem que tenho com quem conversar esta noite - declarou depois num tom calmo. - Tenho mesmo! Toda a gente precisa de ter com quem conversar. Toda a gente precisa de ter a quem contar os seus problemas. Preciso sempre de alguém com quem conversar, porque tenho mais problemas sobre que falar, do que qualquer outra pessoa. Pode ter a certeza, raios! Tenho mais problemas do que ninguém neste mundo!

Levantou a mão, apontando na direcção da garrafa de uísque, indicando-me que queria outra bebida. Servi-lhe uma pequena quantidade de uísque que restava e estendi-lho. Sorveu toda a bebida de um gole. Depois de acabar, pôs-se a chorar.

- Nem sempre fui uma puta bêbada, acredite! - soluçou pateticamente. - Mas olhe para a minha figura, agora! Em tempos, fui uma bela rapariga - acho que era assim que lhe chamavam. Acabamos, porém, neste estado. É o que acontece quando estamos sós. Desejo tanto o amor, que faria tudo no mundo para ter um pouco - não me importa quanto, desde que fosse algum - faria tudo para o conseguir. Oh, meu Deus! Quando perdemos o nosso homem, fica-se com o coração despedaçado para o resto da vida! Consumimo-nos por dentro, até nada mais restar! - A voz saía-lhe entrecortada. - Diabos levem os homens! Diabos os levem para as profundas do Inferno! Diabos o levem também... seja lá como se chame!

Afastou-se de mim e fitou-me com uma expressão estranha.

- Sabe do que estou a falar? - redarguiu.

- Acho que sim - concordei com um aceno de cabeça.

- Uma ova é que sabe! - exclamou com uma risada de mofa. - Os homens não sabem. Não se importam. Estão-se nas tintas.

Consultei o relógio e verifiquei que já passava das duas da manhã. Quando se apercebeu do meu gesto, atirou-se ao relógio e tentou arrancar-mo do pulso. Ignorava quanto tempo teria de esperar, até que Suelaine se dispusesse a contar-me o que sabia de Tess, embora desconfiasse de que tal não aconteceria antes do alvorecer. Sabia, porém, que não me iria embora, sem descobrir onde ela estava.

Suelaine inclinou-se, subitamente, para diante e agarrou na garrafa de uísque pelo gargalo. Antes que pudessse evitá-lo, uma parte do bourbon derramou-se em cima dela e na cama. Deitei o que restava do uísque no copo dela e estendi-lho.

- Já fui casada - confessou, tentando articular, distintamente, as palavras. - Fui casada e tive o homem mais amoroso do mundo. No entanto, divorciei-me e o meu marido foi-se embora com o meu miúdo. Sabe que idade tem o meu filho, agora? Sabe?

- Não, não sei - respondi.

- Tem exactamente seis anos, três meses e onze dias. Sei exactamente, porque lhe tenho contado a idade, marcando os dias e as semanas, desde que o perdi. Chama-se Jimmy e tem um bonito cabelo castanho ondulado e os olhos também castanhos como o pai. Dei-lhe igualmente o nome do pai. O pai amava-me e eu amava-o. O meu marido não me tratava mal - era o melhor marido que alguém poderia desejar.

Portei-me, contudo, como uma imbecil. Divorciei-me dele por achar que queria ser independente - ou qualquer idiotice do género. E agora sou uma independente de um raio... e olhe para mim! Sabe quem sou, agora? Sou a Mrs. Independente! Mrs. Puta Independente, é o que sou! O meu marido tentou falar comigo, mas não lhe dei ouvidos. Começamos por nos achar espertas e acabamos por chegar à conclusão de que não passamos de idiotas chapadas: E como o sei, agora!

As lágrimas corriam-lhe pelas faces, e não fazia qualquer tentativa para as limpar.

- Durante uns tempos ainda tive o miúdo comigo, mas o meu marido acabou por mo tirar. Declarou que eu não estava em condições de o criar. Nessa altura, eu sabia que ele tinha razão. Podia dizê-lo. Depois de me divorciar, não estava em condições de nada, excepto do que sou agora. Comecei, então, a embebedar-me todas as noites para não pensar tanto nos meus problemas e sofrimento. Durante uns tempos serviu-me de consolo, mas agora sinto-me um trapo. Sabe bem o que isso significa. É um outro nome para uma rapariga de bar e tudo o resto. Eu sou tudo isso e o mais que consiga vir-lhe à cabeça. Não conseguirei manter-me neste emprego durante muito mais tempo. Vão acabar por me despedir. Sabem o que sou. O boato espalha-se depressa nesta vida. E sou-o! Toda a gente está a par. Agora, mesmo que tivesse oportunidade, seria incapaz de criar o meu filho ao meu lado! - Levou as mãos ao rosto. - Oh, céus! É um inferno sentir-me tão só, tão na lama... ser eu!

 

A tarde já ia avançada, quando arranjei lugar num avião, mas saí de Nova Orleães, a tempo de chegar a Houston, antes de anoitecer. Mal aterrei no aeroporto de Houston, dirigi-me a uma cabina e telefonei a Connie e Ken Westwalker. Foi Connie a atender e reconheci-lhe imediatamente a voz.

- Preciso de um quarto de hotel, um duche e um cartão de membro do Bluebonnet Club, Connie - disse-lhe. - Como estás?

- Só pode ser coisa do Rick Sutter - ouvi Connie observar, excitadamente, do outro lado da linha. - E se és na verdade tu, Rick, e não vieres direito a nossa casa, vais precisar de mais do que isso. Uma ligadura à volta da cabeça e um par de muletas, por exemplo. Ken acabou de chegar do escritório e estamos a preparar-nos para tomar uma bebida antes do jantar. Vou pôr o meu bonito vestido novo para te receber. Quando chegaste a Houston, Rick? E onde estás, neste momento?

- Estou no aeroporto. Acabei de chegar de Nova Orleães.

- Porquê?

- Não interessa o porquê - redargui à vontade.

- Neste momento, o importante é um quarto de hotel, um duche e um cartão de membro.

- Mas não te deixo ir para um hotel - vincou Connie num tom, que não deixava dúvidas. - Está decidido. Vou buscar-te já. Não saias daí.

- Não faças isso, Connie - repliquei. - Já que não posso ir para um hotel, apanho um táxi e chegarei aí muito mais depressa. Sei onde tu e o Ken vivem e estarei em vossa casa num abrir e fechar de olhos.

- Bom. Acho melhor que o faças! - exclamou com uma simpática firmeza. Não mudara nada. Parecia tão autoritária e dominadora como sempre o fora. - E se tu fores primeiro a um hotel e não vieres directo para aqui, não voltaremos a falar-te, Rick. Falo a sério. Agora, promete-me que vens directo a nossa casa.

- Está prometido, Connie - garanti-lhe.

- Terei o duche a correr à tua espera. Quente ou frio?

- Morno.

- Uísque com soda, como é costume?

- Como de costume.

- Gostas de mim, Rick?

- Gosto de ti, Connie.

- Até já, Rick.

- Até já, Connie.

Fui buscar a bagagem e meti-me num táxi. Já por várias vezes estivera em casa de Connie e Ken em viagens anteriores, mas há mais de um ano que não os via. Ken Westwalker era engenheiro geólogo numa companhia petrolífera com delegação em Houston e conhecera-o desde que Connie e ele tinham casado. Quando a encontrei, ela fazia parte da equipa editorial de uma revista nova-iorquina e, menos de um ano depois de a ter conhecido, casou com Ken e mudou-se para o Texas.

Agora, estavam casados há alguns anos e tinham dois filhos pequenos.

Connie e Ken estavam à minha espera, quando saí do táxi. Lançando-me os braços à volta do pescoço e abraçando-me, Connie deu-me um beijo afectuoso. Tinha uns grandes olhos castanhos, cabelo preto cuidadosamente penteado e uma figura esbelta. Pouco depois de ter conhecido Connie em Nova Iorque, pedira-lhe que casasse comigo. Tinha recusado com um firme abanar de cabeça. - Quando me casar, Rick - dissera - só me contentarei com um homem de família. Jamais me sentiria feliz casada com uma instituição pública - uma instituição pública não nos aquece os pés nas frias noites de Inverno. E um escritor é uma instituição pública, quando presta. Lamento, Rick, mas não sou a mulher indicada para ti. - Menos de seis meses depois, conhecera Ken Westwalker e casara-se com ele.

Ken veio ao meu encontro e deu-me um aperto de mão caloroso. Era um homem alto e robusto com cabelo claro cortado à escovinha.

- Ainda bem que cumpriste a palavra e não foste para um hotel, Rick - disse. - Só existe um lugar para ti em Houston e é aqui em nossa casa!

Ele e Connie ajudaram-me a levar as malas e a minha máquina de escrever para um quarto de hóspedes da grande casa de campo de um andar. O duche estava a correr, como Connie me prometera. Antes de chegar a Houston, tinha decidido ficar num hotel, sem atender a insistências de Connie e Ken, mas agora sentia-me contente por me encontrar na companhia deles.

- Damos-te exactamente vinte minutos para tomares um duche e vestires-te - indicou Ken num tom decidido, ao mesmo tempo que ele e Connie, saíam para o corredor. - E se não estiveres pronto, venho aqui e arrasto-te para fora - com ou sem cuecas.

- Cá me arranjarei, Ken - repliquei, ao mesmo tempo que começava a tirar a roupa amarrotada da viagem.

Meti-me apressadamente no duche e não me demorei. Mudara de roupa, tinha saído do quarto e encontrava-me de pé junto ao bar do pórtico do pátio, precisamente vinte minutos depois. Ken tinha um uísque com soda à minha espera.

- O que se passa, Rick? - inquiriu num tom sério.

- Que ideia é essa de quereres ser membro honorário do Bluebonnet Club? Da última vez que estiveste em Houston, mal conseguimos arrancar-te de casa para um convívio social normalíssimo. Agora, comportas-te como um homem, que se dedicou, de corpo e alma, a qualquer missão esotérica na vida. Estás a atravessar uma nova fase da tua vida? O que se passa?

- Consegues arranjar-me um cartão, certo, Ken? - perguntei, ansiosamente. - Agora mesmo?

- Claro que te arranjo um cartão honorário - replicou com uma expressão perplexa. - Mas porquê? O que há por detrás de toda esta misteriosa pressa? Conta-me a história. Julgámos que estavas para aí metido num buraco, a trabalhar no duro em algum livro. Explica-te, homem.

Sentei-me entre os dois e falei-lhes do encontro com Tess Dameron em Sarasota, da nossa noite juntos na Siesta Key, como descobrira, por intermédio da empregada de bar de Nova Orleães, que ela viajara até Houston para trabalhar no Bluebonnet Club e do desejo que sentia por ela desde o começo. Referi-lhes, finalmente, que quisera dar início a um novo livro, mas não conseguira instalar-me em Sarasota depois de Tess se ter ido embora.

Muito antes de ter acabado de lhes falar de Tess, apercebi-me de que Connie e Ken se fitavam e trocavam olhares desaprovadores, franzindo o sobrolho. Tomei consciência de que se mostravam totalmente contra, devido ao silêncio que se seguiu. Denotavam todos os indícios de se sentirem infelizes quanto ao que acontecera, sem dúvida com base na nossa amizade.

- Apenas gostaria de saber - observei, sentindo-me ofendido com a atitude deles - desde quando se tornou anti-social, por parte de um homem, escolher a mulher que lhe convém? Não vos entendo. Escolheste a tua mulher, certo, Ken? Porque será assim tão desequilibrada a minha atitude de desejar fazer o mesmo?

Connie virou-se para mim e pousou a mão em cima da minha. Acariciou-me ao de leve com as pontas dos dedos.

- Por que não te contentas em escrever histórias de amor, em vez de tentares ser o personagem de uma delas, Rick? - perguntou num tom implorativo. - És melhor escritor do que actor. Por que não te agarras ao que sabes fazer melhor na vida?

Tentei explicar-lhes que os meus sentimentos por Tess eram reais e sinceros.

- Mas não conheces absolutamente nada sobre esta rapariga - insistiu Connie. - Tu próprio confessaste que nada sabes do seu passado ou origem, se é que preferes esta designação. Tudo não passou, no fundo, de um encontro casual. O facto de te interessares a sério por uma rapariga, sobre a qual sabes tão pouco, é perigoso, muito perigoso. Preocupa-me pensar em todos os sarilhos em que podes meter-te por causa disto. Acho que sei do que precisas - é o que todos os homens precisam de vez em quando. Há algumas raparigas maravilhosas no Texas, Rick. São o tipo de raparigas que se te adequam neste assunto. Deixa que te apresente a algumas que conheço. Se deixares tudo a meu cargo, saberei o que fazer. E não te arrependerás, garanto-te.

- Espera até conheceres a Tess e nessa altura entenderás - retorqui, confiante. - Tess é maravilhosa. Tess é diferente.

- São todas diferentes, Rick - comentou, sarcástica. - Esse o motivo por que os sapatos e outras coisas aparecem em tamanhos diferentes. Terás de pensar em algo melhor para me dizer a respeito dela, se pretendes que passe para o teu lado.

- Talvez tenha qualquer coisa melhor - disse Ken, levantando-se e dirigindo-se ao bar para nos voltar a encher os copos.

Connie sentou-se no sofá sem uma palavra e com uma expressão fechada. Verifiquei que me observava atentamente.

- Deixa-o viver esta aventura romântica, Connie - sugeriu Ken com uma expressão jovial, quando regressou e voltou a sentar-se. - Estas coisas são normais. Tem de se passar por elas, tal como pela papeira, o sarampo e tudo isso. Sou a favor de que se tenham, enquanto se é novo e se está no auge - ou se for tarde de mais, deixar que desapareçam com a Primavera. Fica o resto do ano para o trabalho.

Connie ignorou as observações bem humoradas. Virou-se na minha direcção, de cenho franzido.

- Nada me agrada nesta ideia - replicou com um firme aceno de cabeça. - Sou-lhe contrária de uma ponta à outra. Não quero que te envolvas numa ligação ou qualquer outra coisa com esta rapariga. Quem é ela, afinal? Não sabes! Já o confessaste! Pode revelar-se a pior coisa que alguma vez te aconteceu na vida, Rick. Pode arruinar-te tudo, inclusive a carreira. Se estás interessado numa ligação, escolhe uma rapariga digna de ti. Descubro-te alguém do teu nível. E bonita, também.

Nunca deixaria que tivesses um caso - e muito menos te casasses - com um engate de qualquer bar.

- Por acaso a Tess é empregada de cocktails - recordei-lhe um tanto irritado.

- Oh, mas que diferença! - exclamou, sem parecer minimamente impressionada. - Empregadas de bar, raparigas de bar, mulheres de rua e o resto.

- Ela não é dessas - apressei-me a protestar. - Posso garantir-to.

- Podes garantir-me, mas não levar-me a acreditar.

- Não discutamos um assunto sobre o qual nada sabemos, Connie - interferiu Ken, num tom apaziguador. - Acho que devemos conhecer esta criatura controversa, antes de formarmos uma opinião a seu respeito. Iremos jantar ao Bluebonnet. Vê-la-emos em actividade no bar e depois, se Rick continuar a insistir, arranjo-lhe um cartão de membro, para que possa frequentar o lugar tantas vezes quantas lhes apetecer, a partir de agora.

- Tenho uma ideia melhor - contrapôs Connie.

- Qual? - interessou-se Ken.

- Explicarei mais tarde. Vamos tomar mais uma bebida e em seguida iremos ao clube. Depois do jantar, quero falar muito a sério com o Rick. Ele não passa de um macho solitário, livre e sem compromissos e alguém tem de o aconselhar, fraternamente, no que se refere a mulheres. Está a precisar muito de conselho.

Fomos até ao Bluebonnet por volta das oito da noite e dirigimo-nos logo ao bar. Tratava-se de um clube privado com o privilégio de um bar aberto para os membros e seus convidados. As salas do clube apresentavam-se luxuosamente mobiladas e decoradas com gosto. As espessas alcatifas eram de um azul centaureo e as ladeiras e sofás estofados de cabedal branco. Suelaine convencera-se de que estava a falar verdade, quando me dissera que a Tess trabalhava ali e ficara com a certeza de que a encontraria. O bar estava cheio quando entrámos e avistei duas raparigas a servir bebidas às mesas. Nenhuma delas era Tess e comecei a recear haver sido induzido em erro.

Uns minutos depois de estarmos sentados a uma das mesas, Tess apareceu. Dirigiu-se-nos imediatamente e era óbvio que não fazia a mínima ideia de que eu estaria ali. Observei-lhe cada passo e aguardei ansiosamente a expressão de surpresa que sabia que demonstraria. Chegou até à mesa, antes de poder reconhecer-me.

Levantei-me de um salto e agarrei-lhe na mão. Fitou-me, admirada.

- Tu! - exclamou, sem fôlego.

- Tess...

- Como é que...? Nunca me passou pela cabeça que descobrisses...

- Disseste que voltaríamos a estar no mesmo lugar, ao mesmo tempo.

- Sim... mas como é que isso aconteceu?

- Tinha de acontecer, Tess.

- Fizeste com que acontecesse - retorquiu num tom de censura e acusação. - Disse que não tentasses descobrir-me.

- E respondi-te que tinha de tentar descobrir-te.

Parecia ainda mais desejável e apetecível do que me lembrava. Usava um vestido branco de saia larga com uma touca azul e semelhante às fardas das restantes empregadas do clube. O porte erecto era gracioso mas enérgico.

- Peço-te que não te zangues, Tess - pedi. - Tinha de te encontrar. Sabe-lo bem.

- Alguém te contou onde eu estava. Quem foi?

Mantive-me silencioso, na expectativa de não ser obrigado a responder-lhe.

- Diz-me quem foi - insistiu.

- Uma das raparigas do The Merry-Go-Round.

- Qual delas?

- Suelaine.

- Oh!

Puxei-a pelo braço, aproximando-a mais da mesa. - Quero que conheças os meus amigos, Tess. São amigos do fundo do coração.

Com um movimento gracioso, esboçou um delicado aceno de cabeça na direcção de Connie e Ken, enquanto procedia às apresentações. Em seguida, deu um passo para trás.

- Agora, preciso ir embora - declarou. - Trabalho aqui, como sabes.

- Quero ver-te mais tarde, Tess. Deixas que te veja mais tarde, certo?

Passaram uns segundos, antes que me respondesse.

- Esta noite não, por favor - pediu. - Teria de ser tarde de mais. Fica para outra vez.

- Mas fiz a viagem da Florida só para te ver.

- Não posso estar contigo esta noite - declarou num tom firme.

A primeira ideia que me ocorreu foi a de que tentaria fugir-me de novo e sairia da cidade, antes de poder vê-la de novo. Desta vez, talvez não conseguisse descobrir para onde fora. Estendi a mão e prendi-lhe o braço.

- Prometes que não te vais embora... que não sais da cidade? - perguntei. - Prometes que posso ver-te amanhã, à noite?

- Sim, Rick - redarguiu com um leve sorriso.

- Então, estarei aqui amanhã à noite - disse. - É também uma promessa.

- De acordo - anuiu, voltando a sorrir.

Tess perguntou depois o que queríamos tomar. Após havermos feito os pedidos, mantivemo-nos os três sentados sem falar, até ela trazer as bebidas do bar e as pousar na mesa.

- Amanhã à noite, Tess - recordei-lhe.

Sorriu-me e esboçou um aceno de cabeça, antes de se afastar.

Connie, Ken e eu acabámos as bebidas, trocámos poucas palavras e seguimos para a sala de jantar. Mesmo quando já estávamos sentados, Connie conservou-se calada a maior parte do tempo. Foi Ken a encarregar-se da maioria do diálogo.

- Percebi o teu ponto de vista, Rick - comentou Ken inclinando-se sobre a mesa e fazendo um aceno apreciativo. - Esta rapariga não perdeu nenhuma das hormonas femininas. Acho mesmo que recebeu uma percentagem extra. Nunca vi uma coisa assim. Bom, tem mais do que... acho que devia ser generosa e partilhar algumas das suas hormonas femininas com as outras raparigas.

- Concordo que tem um rosto e um corpo atraentes - replicou Connie com uma expressão reservada. - Só que, obviamente, os rostos e corpos atraentes não são tudo. Muitas raparigas têm-nos em profusão e ficam por aí.

- Se queres saber a minha opinião - pronunciou-se Ken, agradado - não precisa de mais nada, enquanto mantiver todas aquelas hormonas femininas. Quando andava na faculdade, não avancei muito em zoologia, mas estudei o suficiente para reconhecer hormonas femininas, sempre que as vejo em acção.

Saímos do clube, mal acabámos de jantar e entrámos no automóvel. Afastámo-nos, em seguida, da cidade na direcção do Golfo do México, sob um luar resplandecente.

A brisa, que soprava do Golfo para o interior, era fria e agradável. Assemelhava-se a estar num outro mundo, depois do calor húmido de Nova Orleães.

- Rick - pronunciou Connie, com ansiedade, após o longo intervalo de silêncio. - Quero dizer-te uma coisa, Rick. E falo muito a sério. Estás meramente a atravessar um capricho de adolescente. É isso exactamente e os sintomas não deixam dúvidas. Quero que te dediques ao trabalho. É a forma mais segura de atirares estas coisas para trás das costas. Há mais de um ano que não editas um novo romance e se te mantiveres assim, passará mais um ano e depois outro, sem que escrevas um novo livro. Não podes permitir que uma coisa deste género interfira com a tua carreira. Há alturas em que temos de chamar as coisas pelo seu próprio nome. Estamos numa delas.

- Tenho tentado assentar, Connie - argui. - Foi esse o motivo da minha viagem a Sarasota. Tinha planeado alugar lá uma casa, onde me instalar por um ano. E quero deitar-me ao trabalho, mal me seja possível. Só que não posso fazê-lo, com este receio de que a Tess me fuja. Decerto compreendes como este tipo de circunstância afecta um homem. Acaba por tomar prioridade sobre tudo o mais na vida.

Rodámos em silêncio durante alguns quilómetros ao longo da costa lisa e relvada. Estávamos algures entre Houston e o Golfo.

- Sei que atitude vou tomar - declarou Connie num tom firme. - Alguém tem de se encarregar de ti e vou fazê-lo. Há demasiado tempo que somos amigos para que deixe de interferir e fazer tudo ao meu alcance quando mais precisas de ajuda. Sentiria vergonha de mim própria, se não te desse a mão numa altura destas.

- O que tencionas fazer? - inquiri.

- Amanhã vou levar-te a Galveston Island, meter-te dentro de uma casa e, se necessário, trancar as portas e janelas, de forma a não te deixar sair. Conheço uma casa na praia, que, de momento, está desocupada. Pertence a uns amigos nossos, que terão o maior prazer em alugar-ta durante o tempo que desejares. Vão fazer uma demorada viagem ao estrangeiro, mas deixaram a governanta e apenas terás que te sentar à máquina e escrever. Fica a pouco mais de sessenta e cinco quilómetros de Houston e Ken e eu apareceremos de vez em quando, para nos certificarmos de que passas bem. Está decidido.

- Não posso concordar, Connie - protestei.

- Por que não?

- Porque quero ficar em Houston, enquanto a Tess lá estiver.

- Estou a planear isto para teu bem.

- Eu sei o que é bom para mim.

- Bom, ela não é.

- Cabe-me a opção.

- É exactamente esse o problema - contestou num tom obstinado. - Não sabes o que é bom para ti. Agora, vais dar-me ouvidos, Rick Sutter. Vou levar-te até Galveston, amanhã de manhã. Está decidido. Conhecerás algumas pessoas interessantes e, além disso, jamais me perdoaria se não te descobrisse um sítio adequado para te instalares a trabalhar.

Ken virou o carro na direcção oposta e regressámos, sob o luar, até Houston.

- Não podes decidir a vida das pessoas dessa maneira, Connie - interferiu Ken, como que incapaz de se conter por mais tempo. - Excepto no nosso caso em que somos casados. Deixa que Rick aja, segundo lhe apetece. Não nos pediu conselho. Pediu que lhe déssemos a mão. E é a vida dele e não a nossa. Se está doido por esta rapariga, deixa-o em paz. Para cometer as loucuras que quiser por ela. Não tentes bloquear o amor. Caso contrário, pode fazer muito pior. Não há muitas raparigas abençoadas com uma superabundância de hormonas femininas. Tomando este ponto em consideração, sem esquecer o amor, deixa o homem em paz.

- Não se trata de amor - replicou Connie, inabalável. - Se fosse esse o caso, tudo seria diferente. É uma paixão.

- Então, deixa-o estar apaixonado por todas aquelas maravilhosas hormonas femininas.

- Não - insistiu Connie. - Rick precisa de uma rapariga que aprecie o seu talento de escritor e não de alguém que tenha como profissão saber os nomes de todas as bebidas de um bar. Conheço o género de rapariga de que o Rick precisa e vou por-me em campo. Há centenas de raparigas do género a que me refiro. O Texas está a abarrotar delas.

- Falemos desse assunto amanhã, Connie - retorqui. - Esta noite é-me impossível discutir contigo, sob a magia desta grande Lua amarelada do Texas.

- Não haverá nada de que falar amanhã - declarou.

- Já está tudo decidido.

Quando nos aproximámos da cidade, as luzes de Houston brilhavam mais na noite.

- Bom, o assunto fica arrumado por umas horas - comentou Ken. - De qualquer maneira, avançámos um pouco.

- Avançámos muito - disse Connie. - Está resolvido que amanhã de manhã, levarei o Rick para a Galveston Island.

 

Quando Connie e eu saímos de Houston de automóvel na manhã seguinte, estava bom tempo e corria uma leve e soalheira brisa, mas após rodarmos, durante meia hora, para Sul, deparou-se-nos um sombrio nevoeiro, que se erguia, qual presságio, sobre o Golfo do México; e, antes de chegarmos a Galveston, a névoa acinzentada começou a invadir o interior.

Ao atravessarmos o Canal para a Galveston Island, o sol tinha desaparecido por completo e o nevoeiro envolvia-nos por todos os lados. Seguimos pelas ruas de Galveston, cobertas de humidade, até chegarmos a uma série de casas de praia de construção recente, situadas na ponta da ilha, e aí Connie tomou pelo acesso de uma grande casa branca, que se apresentava rodeada de altas palmeiras. Bateu à porta da frente.

- Peço-te que faças uma tentativa sincera, Rick

- pediu-me com um olhar suplicante, no momento em que saímos do carro. Um sentimento de tristeza invadiu-me, repentinamente, ao aperceber-me de quanto desejara casar-me com ela, há muitos anos atrás. Não mudara nada. Continuava feminina, apetecível e compreensiva. - Evita uma posição hostil logo à partida. Gostarás deste sítio, se estiveres predisposto. Tenho a certeza. Fá-lo, por favor, Rick.

- Tudo vai correr bem, Connie - tranquilizei-a. - Parece-me exactamente o que preciso. Gostaria de assentar por uns tempos e penso que este lugar corresponde às minhas aspirações. O nevoeiro também me convém. Talvez o que se passa de errado seja o facto de, nos últimos tempos, ter havido demasiado sol na minha vida. Esta é uma das fases em que o tempo enevoado me agrada.

- O nevoeiro não vai durar muito - declarou com uma expressão confiante. - Trata-se do que chamamos uma visita de um dia. Amanhã de manhã fará sol, tenho a certeza, e apetecer-te-á ir nadar no Golfo. Até pode ser que queiras ter companhia, se fores nadar, certo, Rick?

Connie não esperou que lhe desse resposta e, enquanto se afastou à procura da governanta, tirei as malas e a máquina de escrever do carro. Connie voltou uns minutos depois com uma mulher alta, grisalha e um ar maternal, na casa dos cinquenta. Mrs. Orrhad indicou-me o caminho para um quarto com vista para o Golfo e, em seguida, levei os meus manuscritos e a máquina de escrever para a biblioteca. Passara a manhã indeciso quanto a se desejava vir para Galveston Island, mas agora que estava aqui sentia-me satisfeito por me ter deixado convencer por Connie. A casa era tranquila e confortável e sabia que podia trabalhar aqui como o teria feito em qualquer outro sítio da minha escolha. Quando Connie se dispôs a partir, aproximou-se de mim e pousou as mãos nos meus ombros.

- Vais tentar honestamente, não vais, Rick? - inquiriu com um sorriso esperançado. Via-se que a sua amizade era profunda e intensa. - Sei que não te sentirás infeliz, aqui, se te dispuseres.

- Claro que vou tentar honestamente, Connie prometi. - Não te desiludirei.

- Ainda bem! - exclamou, parecendo aliviada. - Tenho a sensação de que procedi como devia.

- Não te darias a tanto trabalho por qualquer pessoa, pois não, Connie? - quis saber, sorrindo.

- Só por ti ou pelo Ken - respondeu. - Vocês os dois foram os homens mais importantes na minha vida.

- Deixemos que seja sempre assim, Connie.

- É minha intenção - redarguiu, após o que fez uma pequena pausa e esboçou um sorriso atraente. - Sei que vais a Houston para ver essa rapariga. Tudo bem, Rick. Entendo esse tipo de coisas. É de esperar. Talvez tivesse sido um pouco precipitado da minha parte tê-la desaprovado, como o fiz, na noite anterior. Lamento. No fundo, são as qualidades de uma pessoa que contam e não o que se faz na vida. Quero que te sintas feliz e ajudarei no que puder. - Surgiu-lhe um brilho malicioso no olhar. - Não fiques surpreendido, se tiveres uma visita dentro em pouco, Rick - acrescentou.

- A simpatia é um dos hábitos desta região.

Deu-me um abraço afectuoso e saiu na direcção do carro. Momentos depois, arrancou.

Mrs. Orrhad serviu-me o almoço pouco depois de Connie se ter ido embora e, mais tarde, telefonei a uma agência de aluguer de automóveis e tomei as disposições necessárias para que me trouxessem um carro a casa. Passei a tarde na biblioteca a folhear alguns dos manuscritos que trouxera comigo, mas, durante todo esse tempo, consultei frequentemente o relógio que estava em cima da mesa, contando as horas que me faltavam para ver Tess. Às cinco em ponto mudei de roupa e preparei-me para sair. Disse a Mrs. Orrhad que ia a Houston e voltaria tarde. Mrs. Orrahd comentou com ar maternal que esperava que eu guiasse, com cuidado, numa noite de tanto nevoeiro.

O cerrado nevoeiro tinha descido mais com a chegada da noite e os automóveis e camiões, que avançavam nas duas direcções, seguiam prudentemente à beira da estrada. Não conhecia o caminho e o nevoeiro obrigou-me a parar, por várias vezes, no caminho para Houston, a fim de pedir indicações. Passava das oito, quando cheguei finalmente ao Bluebonnet Club.

Não havia muitas pessoas numa noite como aquela e avistei somente uma das empregadas de cocktails no salão. Sentei-me a uma mesa e aguardei, pacientemente, ver aparecer Tess a qualquer momento. Uma das coisas que desejava perguntar-lhe era a que horas saía do trabalho e, em seguida, planeava convidá-la para uma ceia tardia. Estava certo de que me acompanharia e interrogava-me sobre se deveria esperá-la aqui ou ir dar uma volta de carro e regressar mais tarde.

Decorridos uns minutos, a empregada, que avistara em primeiro lugar, aproximou-se da mesa e perguntou-me se estava ali para ver Tess. Respondi-lhe afirmativamente.

- Estou a falar com Mr. Sutter? - acrescentou.

Anuí.

- Deixaram-lhe esta carta.

A rapariga estendeu-me a carta e afastou-se. Rasguei imediatamente o sobrescrito. Continha um bilhete manuscrito.

O meu primeiro gesto foi olhar para a assinatura do bilhete, a fim de confirmar se Tess o escrevera. Tinha-o escrito.

Querido Rick, dizia a carta, espero que acredites que todas estas palavras são a verdade e quero que tentes compreender. Esperava ver-te esta noite, porque te prometi. No entanto, algo de imprevisto aconteceu e não sabia onde encontrar-te, antes de ter de sair da cidade. É esse o motivo, por que estou a escrever-te este bilhete. Vou deixá-lo com uma das raparigas do clube e pedir-lhe que se certifique de que te chega à mão. Recebi um telegrama esta manhã a comunicar-me que um familiar está muito doente e tenho, como é óbvio, de partir imediatamente. Talvez um dia possa explicar-te melhor tudo isto, mas, até então, peço-te que me acredites e tentes compreender. Não saí de Houston para evitar a tua presença, como provavelmente pensas. Tencionava cumprir a minha promessa de te ver esta noite, pois sei que fizeste todo este caminho da Florida. Dentro de uma semana enviar-te-ei um telegrama, ao cuidado do Bluebonnet Clube, indicando-te onde podes encontrar-me, se ainda o desejares. Podes ter a certeza de que o farei. E se continuares a querer ver-me, podes vir ter comigo e prometo-te um encontro. Entretanto, acredita, por favor, que não teria faltado esta noite, caso esta emergência não o tivesse impedido. Sinceramente, Tess.

Mantive-me sentado a ler a carta uma e outra vez. Comecei por ficar desiludido e irritado, sentindo-me seguro de que Tess estava a enganar-me deliberadamente; mas no momento seguinte já estava a convencer-me de que se afastara por motivo de doença de um familiar e que não saía, de propósito, da cidade para me evitar. Por fim, sentia-me na maior confusão e não sabia o que pensar.

Quando a empregada regressou à mesa, sacudi a cabeça, em vez de pedir uma bebida. Perguntei-lhe se sabia para onde tinha ido a Tess, mas respondeu-me que não.

Passados uns momentos levantei-me, dirigi-me ao bar e encomendei, sombriamente, um uísque duplo com soda. Havia vários homens sentados ao balcão, mas nada tinha que conversar com nenhum deles. Uma ou duas vezes, o barman fez um comentário sobre o tempo enevoado mas estava demasiado embrenhado no meu desgosto para escutar o que ele me dizia.

Passara quase uma hora desde a minha chegada ao clube e a única coisa que me apetecia era ir ter com Connie e Ken. Em circunstâncias normais, telefonaria primeiro, mas estava tão ansioso por estar com eles, que não perdi tempo a fazê-lo. Saí do clube e atravessei a cidade até a casa deles, o mais rápido que me foi possível através do denso nevoeiro.

Connie e Ken tinham-se ido deitar. Estavam, contudo, ainda a ler e não a dormir, quando cheguei; levantaram-se alegremente para me receber e vestiram os roupões. Sentámo-nos os três na sala gelada a bebermos uísque com soda, enquanto lhes contava o que acontecera. Sentados ao lado um do outro no sofá cor de coral, Connie e Ken leram a carta de Tess sem fazerem comentários. Quando acabaram, Connie, tal como eu esperava, suspirou compreensiva. Ken acendeu mais um cigarro.

- Não sei se hei-de ou não acreditar nela - comentei, quando me devolveram a carta. - Agora, não sei o que pensar. Estou completamente às aranhas. É a primeira vez que uma coisa assim me acontece e ainda estou chocado de mais para saber o que pensar.

- Pobre Rick - exclamou Connie, estendendo o braço e apertando-me a mão. - Tanto trabalho!

- Se te tivesses casado comigo e não com ele - retorqui, apontando para Ken e franzindo o sobrolho - nada disto aconteceria. A culpa é toda tua, Connie.

- Fazes realmente com que me sinta culpada - redarguiu, dando-me uma palmadinha na mão.

- Desculpem a intromissão - retorquiu Ken, franzindo igualmente o sobrolho. - Mas acho que me manterei por perto.

Connie beijou-o na face.

- Sinto-me inclinado a acreditar nessa jovem - declarou Ken gravemente. - Concedo-lhe o benefício da dúvida. O tom da carta parece-me sério. As emergências acontecem. As pessoas podem adoecer.

- Parece-me, muito mais, pura desculpa, do que mera coincidência. Quantas vezes é preciso que coisas destas aconteçam para que tu ou outra pessoa desconfiem, Ken? Como podes afirmar quando uma pessoa tem atitudes destas com motivos honestos?

- Mesmo assim, sinto-me tentado a acreditar nela - insistiu Ken, com firmeza. - Ou seja, se quisesse acreditar nela. A carta parece-me escrita por uma pessoa que sente exactamente o que está escrito. As pessoas adoecem e mandam chamar os parentes. É uma ocorrência vulgar. Quem achas que pode ser? A mãe ou o pai? o irmão ou a irmã? Quem?

- Qualquer deles, acho. Nunca me contou nada a respeito da família. Mas, tanto quanto sei, não é casada e, portanto, talvez não seja o marido, graças a Deus.

- Aposto que recebes um telegrama dela daqui a alguns dias, como promete na carta. Telefonarei ao gerente do clube logo de manhã e peço-lhe que to comunique para Galveston, mal chegue.

- Prepara-te para uma armadilha, Rick - retorquiu Connie. - Talvez te mande um telegrama a dizer onde se encontrará contigo. Mas talvez o motivo por que o faça não seja aquele em que estás a pensar.

- O que queres dizer, Connie? - inquiri, interrogando-me sobre o que a levava a desconfiar.

- É uma mera possibilidade - respondeu. - Mas é tanto mais uma razão para que conserves os olhos abertos, quando te encontrares com ela algures. É uma mulher.

Connie levantou-se e veio sentar-se no braço do meu sofá. Apertou-me a mão num gesto de simpatia.

- Ignoro o que está a passar-se comigo, Rick - acrescentou devagar, sacudindo a cabeça. - Mas começo a esperar que tenhas notícias dela e que não te lance uma armadilha. A esta hora na noite passada, pensava exactamente o contrário a seu respeito. Talvez isso se deva a que nos nossos dias o romance demora a envolver a atmosfera.

- Obrigado, Connie - agradeci. - É muito importante ter-te do meu lado.

- Acredito que estás verdadeiramente apaixonado por essa rapariga, Rick - observou, baixando os olhos na minha direcção e sorrindo. - A sério. Apercebo-me de todos os sinais.

Levantei-me do sofá e pus-me a passear, nervosamente, pela sala.

- Se assim é, nada disto me ajuda - redargui. - Acho que vou regressar a Galveston. Lá, posso sentir-me triste de uma forma mais à vontade do que aqui.

- Não o faças, por favor, Rick - pediu. - Fica connosco esta noite. É demasiado perigoso voltares com este nevoeiro. Não conheces bem o caminho e podes ter um acidente. Regressarás a Galveston, de manhã cedo. Fica, por favor.

- Posso perfeitamente começar a sentir-me triste em Galveston - repliquei com uma angústia crescente.

- Mas se não tiver notícias dentro de uma semana, voltarei aqui à procura de mais compreensão.

- Não te sentirás triste no regresso a Galveston - riu Ken, apertando-me o braço, com amizade. - Terás todas aquelas maravilhosas hormonas femininas a ocupar-te o pensamento em cada quilómetro da estrada.

Acompanharam-me até à porta e esperaram até que ligasse o motor. Quando arranquei, vi-os acenarem-me até que o nevoeiro os fez desaparecer.

Foi uma viagem longa e terrível, de regresso a Galveston. O nevoeiro apresentava-se, por vezes, tão cerrado, que tinha de abrandar para evitar sair da estrada. Durante o demorado percurso cruzei-me apenas com uns cinco ou seis automóveis e camiões e todos avançavam, prudentemente, através da noite enevoada. Já passava das três da manhã quando cheguei à ilha e descobri a casa da praia. Sentia-me cansado e esgotado depois daquele esforço e capaz de adormecer imediatamente.

Quando acordei bastante tarde na manhã seguinte, o nevoeiro estava a levantar e o sol forçava caminho. Depois de me ter vestido e dirigido à sala de jantar para o pequeno-almoço, não havia rasto do nevoeiro e o sol brilhava resplandecente na praia de areia branca em frente da casa. O Golfo azul, semelhante a um enorme espelho, apresentava-se calmo e tranquilo sob os raios luminosos.

Depois do pequeno-almoço, percorri a praia de um lado ao outro, após o que regressei à biblioteca e me sentei à espera do telegrama de Tess.

Tentei concentrar-me nos manuscritos incompletos que trouxera comigo para Galveston, mas não conseguia interessar-me pelas pequenas histórias que estavam parcialmente escritas e aguardando o final. Mais tarde, sentei-me à máquina de escrever e tentei pensar no romance, que pretendia escrever. Decorrida uma hora ainda não havia uma palavra escrita e arranquei a folha de papel da máquina, lançando-a para o cesto dos papéis. Nessa altura, sentia-me tão infeliz que não me importava se voltaria ou não a escrever uma palavra em vida.

E no momento em que andava a passear de um lado para o outro na biblioteca, interrogando-me como conseguiria aguentar uma semana até ouvir notícias de Tess, ou aguentar um dia mais que fosse, senti uma vontade incontrolável de falar a Jack Bushmillion. Resolvi enviar-lhe, imediatamente, um telegrama e pedir-lhe que viesse ter a Galveston, mal lhe fosse possível. Há alguns meses que não via o meu agente e não lhe escrevera, desde que deixara Sarasota. Sempre me pedira que o mantivesse informado de onde estava e como poderia contactar-me por carta, telefone e telegrama e esperava ser capaz de o convencer a vir a Galveston. Sabia, contudo, que Jack não viria a Galveston, pois somente alguma circunstância invulgar poderia levá-lo a abandonar Nova Iorque. De qualquer maneira, redigi o telegrama mas foi por outra razão que não o enviei. Havia uma possibilidade, recordei-me, de receber notícias de Tess antes de Jack chegar aqui e sabia que partiria de imediato, quer ele tivesse chegado ou não.

Dirigi-me, em vez disso, ao telefone e marquei o número de Jack de Nova Iorque. Ausentara-se do escritório, mas menos de meia hora depois regressara e estávamos a falar.

- Há uma semana que ando a tentar apanhar-te em Sarasota - disse, num tom aborrecido. - Apenas consegui descobrir que tinhas deixado a cidade e ninguém sabia para onde foras. Por que desapareceste assim? Nem sequer deixaste um endereço no hotel. Achas correcto? Falei com o Harvey Farthing e ele disse-me que juraria que estavas, algures, perto de Sarasota, a trjabalhar num novo livro. Disse-me que telefonasse a um indivíduo chamado Morpho Daugh. Entrei em contacto com alguém, que me disse chamar-se Morpho Daugh, mas não entendi nada do que me contou. Pareceu-me um louco. A única conclusão foi a de que também ele andava à tua procura. Por que te metes com doidos daqueles? Como é que chegaste a essa parte do mundo onde estás agora e porquê?

- Acho preferível ouvires primeiro os meus problemas, Jack - redargui. - É a melhor forma de te explicar por que estou no Texas e porque não estou na Florida a trabalhar num livro, como Harvey Farthing julga ser o caso. Por isso te telefonei, Jack. Quero contar-te o que aconteceu. É importante.

- Importante para quem? Para mim ou para ti?

- Para mim.

Seguiu-se uma pausa e imaginei que Jack estava a acender um cigarro.

- De acordo - disse, em seguida. - Do que se trata? Mulheres ou dinheiro?

- Ela chama-se Tess.

- Estás a perseguir ou a fugir?

- Ando a tentar encontrá-la.

- Cada vez me soa a mais complicado - comentou, impaciente. - Mas continua e diz-me tudo. Tira esse peso de cima. Sabia que algo se passava de errado. Não costumas desaparecer assim, sem me manteres ao corrente. Há sempre documentos e contratos para assinares. Tenho um montão neste instante em cima da secretária.

Contei-lhe tudo sobre Tess Dameron. Deixou-me falar sem me interromper e quando acabei, continuou silencioso.

- É esta a minha triste história, Jack - redargui. - Não podia ser mais triste, verdade?

- Não é uma história triste, Rick - contrapôs. - Todas as histórias com um final feliz começam dessa forma. Faz parte da tradição. Não existe ficção presente nem futura sem contrastes opostos. É básico. Muito bem. Contaste-me o princípio da história, mas não o final.

- Conheces algum final feliz, que se enquadre?

- Evidente. Casa com a rapariga, como é óbvio. E quanto mais depressa, melhor. É para isso que serve o amor, nos livros e fora deles. Mete-te no espírito da trama, Rick. Apenas te sentes derrotado, porque não acabaste a história. Vai em frente e casa com a rapariga. É a maneira mais esperta do mundo de te libertares da pressão. Então, terás a história completa, com final feliz e tudo o resto. Que mais desejas?

- Não posso casar com ela, até a descobrir. E primeiro terei de lhe pedir. É o processo usual.

- Deixa-te de conservadorismos - replicou asperamente. - Terás muito tempo depois para te adaptares às convenções sociais presentes. Quando tiveres notícias, salta para dentro de um avião. Põe-lhe as cartas em cima da mesa. Depois de te casares e de libertares da pressão, instala-te, por amor de Deus, em qualquer lado, durante o tempo bastante para escreveres este próximo livro. Já estás com seis meses de atraso. Estou a ser directo, Rick. A ideia é levar-te a trabalhares novamente e vou obrigar-te a casares, se isso servir para te deitares ao trabalho. Não tenho escrúpulos. Toda a estrutura editorial do mundo moderno cairia por terra e iria à falência se não existissem agentes como eu para chicotearem os autores e porem-nos a trabalhar. Percebes o meu ponto de vista, certo? Harvey e eu estudámos os pormenores do contrato e passámo-los ao papel. Agora, só é preciso a tua assinatura. Terás dinheiro, assim que deixares de brincar ao Cupido e te instalares num sítio o tempo suficiente para assinares o contrato.

- Mas supõe que ela não casa comigo, Jack - retorqui. - Nesse caso, não ficarei melhor do que agora. O que significa que voltarei à estaca zero.

- Ouve-me bem. Sabes como hás-de proceder. Faz como se se tratasse de um livro - só que na vida real é necessário mais força e vigor, mais ânimo e um empurrão. Não te falta garra nem determinação. Muito bem. Aproxima-te dela. É o primeiro passo. Tens um pé na entrada da porta. Pedes-lhe que seja tua mulher, que se case contigo para o bem e para o mal. Quando te puseres a falar assim, ela desperta, abre os ouvidos e leva-te imediatamente a sério. Responde que vai pensar, o que não nos interessa. O tempo é um desperdício. O livro não está a ser escrito e as despesas amontoam-se. Portanto, exerces mais pressão. Ela está agora na câmara de gás. E tudo pende a nosso favor. Tem um palpite no íntimo de que será preferível casar contigo, enquanto estiveres nessa disposição. Vês como está a ir bem, agora? De acordo. Tiras-lhe o tapete debaixo dos pés. Fazes com que perca o equilíbrio e se sinta tonta. Deixa de saber onde está e não se importa. Só consegue pensar que tem a oportunidade de ser uma mulher casada. O que significa que estás com os dois pés para lá da porta. É difícil para uma rapariga frágil como ela fechar a porta, quando transpuseste a ombreira com os dois pés. Diz para si própria que talvez não consiga encontrar outro homem tão bom como tu, por mais tempo e onde quer que procure. Vês como está preocupada? A tua garra e determinação começam a produzir efeito. Fraqueja rapidamente. Correm algumas lágrimas pelo rosto. O que significa que tens outro pé lá dentro...

-Um minuto, Jack - interrompi. - Já tenho três pés para lá da porta. Onde fui buscar o terceiro?

- Esquece o terceiro pé - redarguiu. - Agora não precisas dele. A garra e a determinação estão a dar um enorme dividendo. Agora, ela pede-te que cases com ela. Viste como conseguiste virar o jogo? Actuas como se estivesses a meditar por segundos. Em seguida, respondes que casas com ela, se é assim tão importante e dás-lhe a entender que também para ti significa muito. Estás a perceber como estão ambos ao mesmo nível? E casam, pronto. Final feliz. A história acabou. Percebes como uma coisa pode ser tão simples?

- Não sei bem, Jack - respondi, hesitante. - Talvez não resulte exactamente como previste.

- Ouve-me bem - ordenou, impaciente. - Queres que me meta no assunto e faça o negócio?

- Não - protestei. - Sou eu que tenho de tratar disso.

- Então deita-te ao trabalho - replicou com uma risada - ou serei obrigado a pegar nas rédeas. Leva um ano a escrever um livro e dez minutos a casar. Agora, apressa-te e começa a contar os dez minutos para poderes avançar com o novo livro. Ficarei à espera do teu telegrama a dar-me as boas notícias.

 

A manhã na ilha iniciara-se com uma atmosfera quente e um céu azul sem nuvens. Ao largo, e praticamente até ao horizonte a Sul, barcos de pesca, de casco branco, estavam ancorados na água calma sob o olhar vigilante das gaivotas, que voavam em círculo.

Ao meio dia, um silêncio ameaçador tinha-se contudo apoderado da ilha, um silêncio que constituía, por vezes, um aviso das violentas tempestades tropicais, que invadiam a terra, vindas do Golfo do México nesta altura do ano, com ventos ciclónicos, trovoadas, raios e chuvas torrenciais. Era a estação do ano em que os ciclones podiam atingir a costa com uma fúria tão devastadora, que, frequentemente, arrancava os telhados das casas, expunha as raízes das árvores e virava os barcos de pesca.

A meio da tarde saí de casa e percorri o acesso para ir nadar na praia. Era o dia de folga de Mrs. Orrhad e, embora me tivesse garantido que, de bom grado, ficaria para me servir o jantar nessa noite, pois sabia que esperava partir daí a uns dias, eu insistira para que fosse a Houston visitar a irmã, como tinha planeado. Mrs. Orrhad saiu de casa pouco depois do pequeno-almoço, dizendo que a irmã a traria de Houston, de carro, ao romper da manhã seguinte. Providenciara cuidadosamente um vasto fornecimento de comida, incluindo carne assada fria, na eventualidade de não me apetecer jantar fora.

Quando cheguei à praia, mantive-me algum tempo à beira de água e observei as barcaças, cargueiros e petroleiros nas lentas e vagarosas e aparentemente imóveis viagens junto à ilha. Por toda a praia havia grupinhos de pessoas que se banhavam ao sol e chapinhavam no quebrar das ondas.

Uma brisa fresca soprava, ocasionalmente, ao largo e pintava de salpicos brancos a crista das ondas azuis. Ao longe e muito acima do horizonte, a Sul, nuvens escuras formavam rolos no céu e, um a um, os barquinhos de pesca, seguidos por dúzias de gaivotas saíram do largo e tomaram apressadamente pelo estreito ancoradouro, a fim de ficarem amarrados em segurança, de noite, na baía, entre a ilha e a terra.

Depois de nadar uma meia hora, estendi-me na areia da praia, a fim de ler umas revistas que trouxera comigo. Há pouco, viam-se muitos nadadores ao longo da praia, mas, devido à ameaçadora tempestade sobre o Golfo, só algumas pessoas tinham ficado. O tempo continuava quente e soalheiro e as nuvens tempestuosas ainda estavam longe da ilha e, na tranquilidade da tarde avançada, senti-me com sono e descontraído e adormeci depois de ler somente algumas páginas de uma das revistas.

Acordei pouco antes do pôr-do-Sol. Ignorava quanto tempo estivera adormecido, mas a primeira coisa de que tomei consciência foi o ruído longínquo da tempestade, chegado algures do Golfo. Apercebi-me, contudo, rapidamente de que não fora o som da tempestade que me acordou. Alguém me agarrara no braço e sacudia-me insistentemente. Abri os olhos.

Uma mulher atraente e que nunca tinha visto até essa altura, inclinava-se sobre mim. Era alta, enérgica e usava um vestido justo sem mangas e leve. Exibia como única jóia uma larga pulseira de prata e tinha uma expressão alegre e viva. Fitei-a, pestanejando sem acreditar nos meus olhos. Dado não se tratar de Connie nem de Tess, não fazia ideia de quem era, nem do porquê da sua presença ali.

- Chama-se Rick Sutter? - inquiriu ofegante e revelando um franzir de sobrolho inquieto, que se estendia ao longo da testa. - Sim?

Ajoelhou-se na areia ao meu lado e voltou a sacudir-me.

- Diga-me se é Rick Sutter!

- Porquê? - repliquei, continuando a interrogar-me sobre quem ela era e porque estava ali.

- Porque ando à procura de Rick Sutter, só isso! - Expressava-se numa voz impaciente e reprovadora. - Está a ouvir-me?

Esbocei um aceno de cabeça, continuando a interrogar-me a seu respeito, enquanto a brisa leve comprimia o vestido leve de encontro ao corpo, delineando-lhe a figura. Há muito tempo que não me era dado ver alguém com uma tal beleza de feições e corpo. Instantes depois, percebi por que me atraía tanto. Recordava-me Tess.

- Você... você é Rick Sutter?

A testa desenrugou-se, sem deixar marca.

- Sim - respondi.

- Óptimo! - exclamou.

A rapariga sorriu pela primeira vez. Tinha uma boca bastante grande, de dentes regularmente espaçados.

- Dirigi-me à casa e fartei-me de tocar, bati em todas as campainhas, que encontrei, mas ninguém me respondeu. - Suspirou fundo de alívio. Expressava-se, agora, com uma intimidade que parecia tornar-nos conhecidos de há muito tempo. - Ainda bem que o encontrei aqui na praia - declarou, sorrindo-me. - Ignoro o que teria feito se não fosse você o homem que eu estava a sacudir. Tem sempre tanta dificuldade em acordar? Há quanto tempo está a dormir? Vem aqui todos os dias?

Seguiu-se mais um prolongado troar da tempestade distante. As nuvens escuras e ameaçadoras movimentavam-se lentamente para o interior e as vagas tornavam-se cada vez mais altas. No entanto, o Sol continuava a brilhar, a ocidente. Éramos as duas únicas pessoas na praia.

- Chamo-me Nancy... Nancy Haven - acrescentou a rapariga, como se tivesse acabado de recordar que não se apresentara. Apercebi-me, imediatamente, de que usava um perfume sensual, como há muito não me invadia as narinas. Era um odor atraente e sedutor. A Connie Westwalker falou-lhe de mim, certo?

- Connie? - perguntei, interrogando-me sobre o que a jovem pretendia dizer. - Não sei bem. - O cheiro voluptuoso do perfume distraía-me e perturbava-me. Talvez Connie o tenha feito - acrescentei, ao recordar-me de que Connie me informara de que tomaria disposições para que conhecesse várias das suas amigas.

- A Connie deve ter-me falado! - exclamei, decidido.

Nancy aproximou-se mais, ao mesmo tempo que erguia habilmente a saia leve e a espalhava à sua volta num amplo leque semelhante às pás de uma ventoinha. A rápida visão das suas pernas e coxas sob a saia levantada acontecera, aparentemente, sem intenção, mas somente porque se tratava de uma pessoa despreocupada. Adoptara movimentos precisos e elegantes e ela própria mostrava-se desconcertantemente reservada e arrojada. Aspirando o sensual perfume, interroguei-me sobre se seria possível prever o seu comportamento extremamente mutável.

- Bom. Seja como for, a Connie convidou-me a que aparecesse para o visitar - declarou com um entusiasmo de criança. - Não acha maravilhoso? Vincou que não queria que se sentisse só por estas bandas. Connie contou-me igualmente tudo a seu respeito. Connie pôs-me a par de tudo.

- Quando é que a Connie a convidou a que me visitasse?

- Ontem.

- Ainda bem que tomou essa iniciativa, - declarei, num tom aprovador.

- Sente-se mesmo contente? - inquiriu, baixando os olhos num dos seus momentos de reserva, para no instante seguinte me agraciar com um olhar arrojado. Está mesmo contente, ou apenas a mostrar-se delicado?

Antes que pudesse responder-lhe, desabotoou o vestido e tirou-o. Tudo aconteceu tão rapidamente, que fiquei sem fôlego. Só depois tomei consciência de que trazia vestido um reduzido fato de banho de duas peças. Dobrou cuidadosamente o vestido que tirara e pousou-o em cima da areia.

- Bem-vindo ao Texas! - exclamou, fitando-me com uma expressão de desafio.

Soergui-me e observei o corpo voluptuoso. Nancy devia andar pelos vinte anos e conservava a pele lisa e os contornos bem delineados da juventude. Reparei, pela primeira vez, que o cabelo tinha um tom acobreado.

- Espero que aprove - retorquiu, sorrindo.

- Aprovar o quê? - perguntei, sem rodeios.

- Quero dizer, espero que lhe agrade que tenha vindo ter consigo assim, sem qualquer apresentação formal. Desagrada-me a formalidade, pois gosto de seguir apenas os meus impulsos. - Fitou-me à semelhança de uma criança, ávida de um aplauso pelo que havia feito. - Espero que não levante objecções, mas peço-lhe que seja franco. Não suporto a falta de sinceridade nas pessoas.

- Claro que fez bem - garanti-lhe, sem hesitar, esperando que me acreditasse. Durante esse tempo, continuei a observá-la. Tinha os dedos compridos e adelgaçados, um pequeno sinal no ombro esquerdo, as pernas esguias e ágeis. Os contornos graciosos e suaves das ancas respondiam, com um ligeiro menear, a cada movimento do corpo. - Sinto-me contente por ter aparecido assim - acrescentei sinceramente. - É muito melhor. Sinto-me como se já a conhecesse há muito tempo. - Então começamos bem - observou com um sorriso satisfeito. - Um bom começo ajuda muito, certo? - Tirou um cigarro da bolsa verde. - De início, fiquei um tanto preocupada - prosseguiu. - Nunca se sabe como os desconhecidos reagem. Há homens que se chocam facilmente e outros que o simulam. Ainda bem que não se enquadra nesse género.

Risquei um fósforo para lhe acender o cigarro, mas não se inclinou e vi-me obrigado a deitar fora o fósforo, quando começou a queimar-me os dedos.

- Agrada-lhe o meu biquini, com todos estes buracos? - O reduzido conjunto mal lhe tapava os seios e as ancas. - Acho-o muito atraente, e você?

- Gosto muito - apressei-me a responder.

Nancy colocou o cigarro entre os lábios e inclinou-se para que lho acendesse. Agarrei os fósforos e risquei um deles com mão trémula. Estendendo-se na areia ao meu lado, conservou-se nessa posição, fumando o cigarro languidamente e observando-me com uma expressão indagadora e especulativa.

- Sempre desejei conhecer um escritor honesto, do género que escreve livros e não fala somente em escrevê-los e aqui estou ao seu lado. - Falava de uma maneira voluptuosa e provocante. - Sinto-me muito contente por Connie Westwalker me ter pedido que viesse fazer-lhe uma visita. Na noite passada sentia-me tão excitada, que tive dificuldade em adormecer. Acho que foi por isso que me senti tão preocupada quando não o encontrei em casa. Receava ter perdido a oportunidade de o conhecer. Invadiu-me a certeza de que saíra com qualquer outra rapariga ou uma coisa do género. Não conhece outras raparigas por aqui, certo?

Nancy baixou os olhos com uma expressão reservada.

- Seria emocionante tornar-me íntima consigo. Não tenho pensado noutra coisa desde que Connie me falou a seu respeito. É capaz de fazer amor de uma forma tão maravilhosa como escreve sobre o assunto? Conheço a sua forma de escrita, pois Connie deu-me um dos seus livros para que o lesse. Consegue mesmo fazer amor assim? Não me refiro a um livro, mas à vida real. É mesmo? Seria uma verdadeira desilusão, se não conseguisse. Ouvi dizer que os escritores são uns fracos sem espírito viril e alguns deles nem sequer conseguem fazer amor, por mais que tentem. Por que será? É mesmo verdade? Espero que não - quero dizer, espero que não seja um fraco. Não é, pois não? Nem sabe quanto me sentiria desapontada, se não fizesse amor comigo. Consegue fazer amor, verdade? Diga-me que sim, peço-lhe!

- Não sei bem ao que se refere - retorqui com uma gargalhada. - Acho que nunca me debrucei a sério sobre esse assunto.

- Está nervoso, Rick - comentou, com um sorriso provocante. - Até corou. Ignorava que seria uma pessoa assim.

Peguei num cigarro com movimentos nervosos e desajeitados e acendi-o com mãos trémulas. Enquanto Nancy me observava, tentei pensar em qualquer coisa, antes que insistisse em que lhe desse uma resposta. Verifiquei que me observava pelo canto do olho, com uma expressão pensativa.

- Ainda não me contou nada a seu respeito, Nancy - apressei-me a comentar.

- O que gostaria de saber? - Disse a primeira coisa que me ocorreu. - Que idade tem?

- Vinte e dois.

- Onde vive?

- Houston.

- Nasceu no Texas?

- Sem dúvida.

- Que mais há para saber a seu respeito?

- O que gostaria que lhe respondesse?

- Qualquer coisa... tudo.

- Sou solteira - replicou. - Apaixonei-me uma vez e fiquei noiva aos dezoito. Mas a situação desagradava-me e quebrei o compromisso. Acordei bem cedo para a vida. Deixei de ser virgem já nem sei quando. Quero, porém, voltar a apaixonar-me. É tão emocionante, certo? Há tantas coisas maravilhosas que podem fazer-se, quando se está apaixonado. E tudo nos parece muito melhor, verdade? Já alguma vez se apaixonou? Quero dizer, muitas vezes?

Esbocei um aceno de cabeça, mas não pronunciei palavra.

- De qualquer maneira, dedico-me a várias coisas - elucidou. - Tais como passar modelos, receber lições de canto, jogar golfe, escrever anúncios para uma agência publicitária e pescar no Golfo.

- É tudo?

- De momento, sim. Mas vou casar-me daqui a quatro anos.

- Porquê quatro anos? Ainda falta tanto tempo.

- Porque vou casar-me aos vinte e seis. Decidi e não me afasto um milímetro dessa resolução.

- Conhece a pessoa com quem vai casar-se?

- Não. É demasiado cedo para isso.

- Porquê?

- Porque toda a excitação desapareceria, quando chegasse a altura de me casar. Seria terrível, não acha? É muito mais excitante pensar no assunto, sem se saber quem será. Assemelha-se a esperar por uma surpresa que se tem a certeza de que se obterá. Só quero conhecê-la exactamente seis meses antes de me casar. Teremos assim o tempo suficiente para nos conhecermos a fundo e acabarmos igualmente com o suspense. Não lhe parece maravilhoso? E significa que me restam três anos e meio, antes de me decidir quem será o eleito.

- E o que fará entretanto?

- O que faço agora e muitas outras coisas também. Quero fazer tudo o que há para fazer, pelo menos uma vez. Depois e se gostar, repetirei uma série de vezes. Foi este o processo que usei, até descobrir a pesca. Da primeira vez gostei e agora vou pescar para o Golfo quase todas as semanas.

Nancy atirou o cigarro para longe. O Sol baixara e a escuridão rodeava-nos. A areia estava fria e húmida.

- Acho que devemos ir embora - sugeri. - Está a ficar desagradável para nos mantermos aqui mais tempo.

- Trata-se de um convite para o acompanhar? - inquiriu com um olhar modesto. - Ou vou-me simplesmente embora?

- O convite de Connie não incluía o pormenor?

- Não me entregou propriamente uma lista de deveres.

- O que lhe disse?

- Que queria ter a certeza de que o impediria de se sentir só.

- E o que faria nesse sentido?

- Acompanhá-lo-ia.

Ajudei Nancy a pôr-se de pé e ela pegou no vestido dobrado e na bolsa de cabedal verde. Percorremos a praia deserta, passando pelo carro de Nancy onde ela o deixara estacionado no acesso e dirigimo-nos à casa.

Depois de entrarmos na biblioteca e de acender as luzes, deixei-a e fui buscar copos e gelo para as bebidas. Continuava descalça e o cabelo acobreado ainda se apresentava despenteado pelo vento e por escovar.

- Agrada-me muito, Rick - declarou num tom sério e expressivo. - Mesmo muito. Estava à espera de que assim fosse.

Aproximou-se mais e rodeou-me o pescoço com os braços. O perfume colava-se sensualmente ao seu cabelo e pele. Premindo os lábios de encontro aos meus, beijou-me durante uns momentos.

- Agrado-te, Rick? - inquiriu em seguida.

Respondi-lhe afirmativamente.

- Desejava tanto que assim fosse - comentou. Movia o corpo de forma que lhe sentisse a pressão dos seios e coxas de encontro ao meu.

- Quero que me prometas uma coisa, Rick.

- O quê?

- Promete-me que não pensarás na outra rapariga. Por favor, não o faças por um instante que seja. Sabes a quem me refiro. Àquela de que Connie me falou. Esqueci-me do nome dela. Por favor, não penses nela durante esta noite. Não suportaria que estivesses a pensar nela, enquanto fizesses amor comigo. Tens de acreditar no que te digo. Juro que não aguentaria, Rick! Juro que me seria impossível! Algo de terrível aconteceria! Sei do que estou a falar! - Nancy tremia da cabeça aos pés. - Enlouquecer-me-ia! Juro que sim!

- Não te preocupes, Nancy! - exclamei, tentando acalmá-la.

Enlacei-a e apertei-a com força de encontro a mim. Sentia-lhe o corpo quente e flexível e a boca, quando se colou à minha, era húmida e sensual como o seu perfume. O tremor que lhe agitava o corpo cedeu gradualmente a uma compostura calma.

Passados uns momentos e sem pronunciar palavra, Nancy afastou-se de mim e foi sentar-se no sofá. A tempestade, que avançara para o interior desde o meio da tarde, abateu-se subitamente com uma violenta fúria, sobre a ilha. Desde que entrara em casa, que esquecera por completo o tempo ameaçador. O vento e a chuva embatiam contra o telhado e as janelas, e a noite encheu-se rapidamente de raios e trovões. Observei Nancy que não me pareceu preocupada nem assustada.

- Gostaria de tomar um uísque com gelo, Rick - declarou num tom calmo.

No meio da violência da tempestade preparei as bebidas e levei-as até ao sofá. Nancy bebeu, em silêncio, o uísque que lhe oferecera. Estendeu-me o copo vazio.

- Agora, estou pronta para um que me descontraia - disse. - O primeiro por amizade, o segundo para uma relação e tudo o mais para o que se seguir.

Levantei-me, preparei um uísque duplo com gelo e levei-o a Nancy. Bebeu o uísque devagar, enquanto escutava o vento e a chuva lá fora. Os raios, trovões e o vento avançavam rapidamente pela ilha, embora a chuva continuasse a embater com força no telhado e janelas. Era provável que, na sequência da tempestade, a chuva não parasse até de manhã.

Nancy acabou de tomar a bebida.

- Agora, apetecia-me um duche - declarou num tom casual, levantando-se do sofá. Dirigiu-se à porta e parou. - Não te apetece também um duche, Rick?

- Serve-te do duche do quarto de hóspedes - sugeri. - Utilizarei o do meu quarto.

Saindo da biblioteca, deixei-a à porta do quarto de hóspedes e percorri o corredor na direcção do meu quarto. Despi os calções de banho e entrei na casa de banho. Subitamente e decorridos uns minutos, a cortina afastou-se e Nancy entrou para o duche comigo. Embora não tivesse esperado que me aparecesse assim, não fiquei surpreendido ao vê-la ali. Nancy virou a cabeça num gesto tímido, ao ver-me observá-la.

- Não sabia como ligar o duche no outro quarto - retorquiu, sem me olhar de frente. - Foi por isso que vim ter contigo. Pensei que também estarias a tomar banho.

Sob a água corrente, o corpo alto e esguio parecia ainda mais firme e jovem do que na praia, envolto no reduzido biquini. As formas graciosas das ancas eram decididamente femininas e a curva delicada das costas graciosa e atraente. Nancy estava muito bronzeada com excepção de uma fina tira de pele branca nos seios e uma outra mais larga em redor das ancas.

Nessa altura, estávamos a olhar-nos bem de frente. E, ao fazê-lo, apercebi-me de uma expressão de medo que lhe apoderava lentamente do rosto.

- O que se passa contigo? - inquiriu num tom duro. - Por que me olhas assim?

- Não sei - respondi. - Ignoro o motivo.

Tomei consciência de uma dolorosa picada de remorso. A percepção de que Nancy era quem era e não Tess e que não se tratava de Tess constituía o meu problema. A única sensação que me invadia era a de que o desejo por Nancy fora despedaçado como que por uma faca. À medida que o tempo passava, invadia-me o torpor.

- Sei o que aconteceu - acusou Nancy num tom de voz elevado. - Fizeste o que prometeste não fazer. Estás a pensar na outra rapariga. Não é comigo que queres fazer amor, mas com ela. Connie avisou-e de que não farias amor comigo, acontecesse o que acontecesse e recusei-me a acreditar nela. Pensei que conseguiria atrair-te. Agora, sei a verdade a teu respeito. És um frouxo.

Nancy deitou-me um olhar frio e penetrante através da água do duche.

- Se estivesse no teu lugar, meu filho - expressou-se num tom desprezivo - trocava as calças por um vestido. Se vais passar a ir-te abaixo, estarás mais à vontade, vestido assim. Entro no duche contigo e o que aconteceu? Nada! Nada de nada! Julguei que tivesses um resto de virilidade. Se não fosses um frouxo, levavas-me daqui e tratavas-me de forma a que não esquecesse mais. E, se fosses um homem a sério, saberias como agir, se me opusesse. Mas o que acontece? Nada! Sou uma miúda e ainda bem! e Tu o que és, raios? Um escritor, um autor ou o que quer que seja! Um motorista de camiões saberia como lidar comigo - e vou para a rua descobrir um! Deus é testemunha que sei tudo o que há a saber sobre escritores e autores! Nunca mais na minha vida! Aprendi a lição!

Saiu do duche e atravessou o corredor a correr, na direcção do quarto de hóspedes. Quando me sequei e vesti, Nancy já enfiara a roupa e estava na porta da frente. Cheguei no preciso momento em que se metera à chuva, até ao carro estacionado no acesso. Chamei-a por várias vezes, mas não obtive resposta. Nem sequer olhou para trás uma só vez.

Momentos depois, o automóvel seguia a toda a vdocidade e perdeu-se na noite chuvosa.

 

Ao romper da manhã do sexto dia em Galveston, numa quarta-feira primaveril e soalheira, e numa altura em que uma permanente ansiedade me dava noites de insónia e dias arrastados, chegou o prometido telegrama de Tess. Há dois dias que a maior parte das minhas roupas e manuscritos esperavam e não perdera tempo. Quando telefonei a fazer uma reserva, tivera a sorte de arranjar lugar no avião e, menos de quatro horas depois, ia sentado no meu lugar a caminho de me avistar com ela.

Dado ter partido de Houston a toda a pressa, mal me restara tempo de telefonar a Connie Westwalker, do aeroporto, a contar-lhe excitadamente que recebera notícias de Tess, tal como Ken confiara, e que ia encontrar-me com ela nessa mesma noite em Colorado Springs.

Mal lhe acabei de falar do telegrama, Connie tinha-me perguntado, medindo cuidadosamente as palavras, se me encontrara com Nancy Haven, em Galveston. Respondi-lhe afirmativamente. - E o que aconteceu, Rick? - quis saber. - Acho que a partir de agora, a Nancy se interessará provavelmente por todos os homens, menos escritores - retorqui. - Depois de ouvir o meu comentário, Connie não disse nem mais uma palavra sobre Nancy e pareceu verdadeiramente satisfeita por aquela longa espera de notícias de Tess ter tido um final feliz.

Contudo e à guisa de um aviso característico de Connie, aconselhou-me que tivesse a certeza de que ambos estávamos verdadeiramente apaixonados, antes de pedir Tess em casamento e lembrou-me que o amor podia ter resultados tão desastrosos, quanto promessas aliciantes. Antes de desligar garanti a Connie que tomaria estas palavras a peito. - Se saíres magoado desta ou qualquer outra vez, podes sempre contar comigo para reparar os danos, Rick - acrescentou.

Foi só quando me encontrava há algum tempo no avião e relera talvez pela sétima ou oitava vez o telegrama, que me apercebi de que o mesmo fora encimado de Kansas City. Até me ser viável interrogá-la sobre o assunto, somente podia supor que Tess saíra de Houston para visitar um familiar doente em Kansas City e que saía de Kansas City com o plano de trabalhar, em seguida, em Colorado Springs.

O súbito alívio da tensão e ansiedade da última semana produziu um tal efeito que adormeci mal subi a bordo do avião e a hospedeira teve de me abanar, várias vezes, para me acordar, antes que o avião aterrasse em Colorado Springs.

Dado ter acabado de deixar o clima quente e tropical da Costa do Golfo, o ar gelado do começo de Maio em Colorado provocou-me um arrepio ao sair do avião. Soprava uma brisa deliciosa com cheiro a montanha e estar aqui assemelhava-se a acordar, subitamente, num lugar desconhecido do mundo. Os sopés das encostas pejadas de bosques apresentavam-se verdejantes, devido à folhagem fresca da Primavera e, pairando por detrás delas, a ocidente, as imponentes Montanhas Rochosas resplandeciam com a neve de Inverno.

A tarde já ia adiantada e Tess indicara-me no telegrama que se encontraria comigo às sete horas. Dirigi-me ao hotel, tomei um duche rápido e preparei-me para ir até ao Frontier Bar, o local marcado. Da ampla janela do meu quarto avistava a densa camada de neve em Pike’s Peak e mantive-me preso a um espectáculo que há muito tempo não me era dado ver, enquanto o Sol se punha, por detrás das majestosas montanhas, num tom vermelho púrpura. Tive a sensação de que haviam passado semanas e não horas, desde que abandonara a costa do Golfo.

Depois de tantas experiências frustrantes nas duas últimas semanas, tornava-se difícil acreditar que pudesse ser verdade, mas Tess Dameron estava mesmo sentada a uma das mesas do salão. Acompanhava-a uma rapariga que me era totalmente desconhecida.

Tess, que estava obviamente à minha espera, acenou-me mal me viu entrar na sala. Parecia, por qualquer motivo, menos alegre e jovial do que eu pensara, mas para mim continuava, sem dúvida, encantadora e desejável como sempre e interroguei-me sobre se estaria tão contente por me ver, quanto eu a ela.

Sentei-me ao seu lado e agarrei-lhe firmemente na mão. Apetecia-me beijá-la, mas dadas as circunstâncias e num lugar público, achei melhor não tentar beijá-la nessa altura. Tinha a certeza de que surgiria uma oportunidade melhor durante a noite. Naqueles momentos iniciais apresentou-me a jovem que se sentava do outro lado da mesa; sentia-me tão excitado que, mais tarde, nem me recordei de ter ouvido o nome da jovem desconhecida.

- Recebeste o meu telegrama, certo? - inquiriu Tess, com um leve franzir de sobrolho. O tom em que se expressava indicou-me que não se sentia tão satisfeita em ver-me como eu desejaria. - Estavas mesmo à espera dele?

Respondi-lhe que há uma semana inteira que o esperava.

- E vieste, então, portanto, até Colorado Springs para me ver, não é verdade? - Tive a certeza de detectar na sua atitude a dúvida de que eu me tivesse disposto a percorrer uma tal distância e com tão curto aviso, somente para a ver. Expressava-se com uma voz vibrante e os movimentos denotavam a graciosidade habitual. Usava um vestido preto e um chapeuzinho com uma aba de um vermelho vivo. - Não estava certa de que achasses que valia a pena fazer uma viagem tão grande - percorreres toda esta distância até ao Colorado. Pensei que talvez recebesse um telegrama a dizeres que não poderias vir.

Nessa altura e talvez devido à inflexão da voz, aliada a uma vincada indiferença e frieza de atitude, fiquei com a indubitável impressão de que não estava satisfeita com a minha presença. Tentei afastar a desagradável sensação do pensamento.

- A distância não interessa - redargui, apertando-lhe a mão. - Excepto que demorei de mais a chegar aqui. Passou muito tempo desde aquela noite na Siesta Key. Há tantas coisas de que quero falar-te, Tess. Coisas importantes. Um monte delas neste momento. E de todas elas existe uma mais importante do que todas as outras. Penso que sabes qual é.

Durante o silêncio que se seguiu, observou-me como se fosse capaz de ler o que me ia na mente. Desta vez invadiu-me a sensação ainda mais forte de que qualquer razão a tornava infeliz. Tentei de novo ignorá-la.

- Sabes do que quero falar-te, não sabes, Tess?

- Não digas coisas dessas, Rick - pediu com uma ligeira sacudidela da cabeça, como se estivesse disposta a desencorajar-me. - Prefiro-te quando não te mostras tão sério. Por favor!

Fitei a rapariga, que se mantinha sentada do outro lado da mesa. Ainda não pronunciara uma palavra, mas escutava interessadamente. Apercebi-me então de que ouvira tudo o que fora dito. Baixei, então, a voz.

- Mas para mim, trata-se de um assunto sério - insisti. - Conheces os meus sentimentos a teu respeito, não? Sabes que não te esqueci. Senti diariamente a tua falta desde aquela noite na praia, em Sarasota. Não tiveste saudades minhas, poucas que fossem?

Tess retirou a mão da minha.

- O que se passa, Tess? - perguntei, ansioso.

- Prefiro falar de outras coisas - retorquiu com inconfundível frieza.

- Mas, Tess...

Os lábios premiram-se num ricto tenso, ao mesmo tempo que abanava a cabeça com um ar decidido. Comportava-se como alguém que estava a sentir-se profundamente ofendido.

A empregada aproximou-se da mesa e anotou os pedidos das bebidas. Apercebi-me de que Tess e a amiga observavam a empregada com olhares desdenhosos, até ela se afastar na direcção do bar.

- Laverne e eu começamos a trabalhar aqui, amanhã à noite - anunciou Tess casualmente. - Laverne já trabalhou neste lugar, mas eu não. É a primeira vez que me encontro em Colorado Springs. Há um ano, trabalhei uns tempos em Denver. Ignoro porque nunca vim até aqui antes.

- Ainda estamos na época baixa em Colorado Springs - comentou a rapariga sentada do outro lado da mesa e falando pela primeira vez. Verifiquei que me olhava bem de frente, quando se expressou. – Ainda estamos a um mês do início da época de Verão, quando todos os homens com dinheiro do Texas e Oklahoma descem à cidade. É então que as gorgetas valem a pena. E quando começar, não pára mais durante todo o Verão. É fácil levar para casa de cem a cento e cinquenta dólares por semana, nessa altura, o que compensa o tempo perdido.

- Assemelha-se a Miami, em Fevereiro - observou Tess.

- Sim, é mesmo isso - concordou a rapariga com um aceno de cabeça para Tess. - As gorgetas de cinco e dez dólares de Texas e Oklahoma acumulam-se rapidamente. Mas agora as únicas pessoas na cidade são os jovens-universitários e não há muitos deles com mais de vinte e um anos - o que significa que tem de se passar o tempo a verificar os bilhetes de identidade. De qualquer maneira, já é uma sorte quando nos deixam uma moeda. Por regra, não dão nada. Era assim há um ano, quando aqui estive. - A rapariga esboçou-me um sorriso. Tinha os olhos brilhantes e atraentes. - Esses jovens universitários! Bem podiam deixá-los fechados mais tempo no jardim de infância. Não fazem outra coisa senão olhar, olhar, olhar. Os homens de meia idade querem marcar encontro e os velhos dar uma palmada e um beliscão. Aguento tudo, excepto os olhares. Mas o que pode fazer-se? Fico com a sensação de que as cuecas me caem no chão! Algumas vezes, tenho vontade de despi-las e atirá-las para o chão.

A empregada trouxe as bebidas e colocou-as na nossa frente, com modos desajeitados. Tess e Laverne observaram-na com uma hostilidade ainda mais crítica do que o haviam feito inicialmente. Não se pronunciou nem mais uma palavra até a rapariga se ter afastado.

- Essa pessoa está deslocada neste ambiente - afirmou Tess, inclinando-se sobre a mesa e falando num tom íntimo a Laverne. - Parece alguém a tentar fazer-se passar por empregada de cocktails. Ao contratarem gente desta, estão a insultar a nossa profissão. Devíamos ter um sindicato, que afastasse pessoas como ela dos bares de cocktails. Aposto que nas últimas três semanas ainda não lavou a cabeça! Repara como tem o cabelo oleoso. E as ancas tão pesadas! Mexe-se como se tivesse vindo para aqui de um snack-bar de terceira, ou sabe-se lá de onde. Ainda bem que se vai embora e já não trabalhará aqui, quando começarmos amanhã. Não me agradaria trabalhar no mesmo sítio que uma mulher assim. Não é uma empregada que serve cocktails. Qualquer pessoa pode ver a laia a que pertence. E é aí que pertence!

- E suponho que até nisso não presta - redarguiu Laverne, trespassando-me com o olhar.

Laverne e Tess trocaram, em seguida, impressões em voz baixa e não percebi mais nada da conversa. Laverne, que aparentava a mesma idade de Tess, era uma rapariga magra, alegre e atraente, com longos cabelos de um castanho dourado e uns lábios cheios e vermelhos. Tinha uma pele suave e branca e algumas sardas, que mal se notavam mas a favoreciam. Tomei consciência pela primeira vez de que Laverne era bonita e atraente e quanto mais a observava, mais atraente me parecia. Reparei, então, que tinha uma maneira muito pessoal de me fitar intencionalmente até os nossos olhos se encontrarem, após o que baixava rapidamente os dela num gesto sedutor.

Quando Laverne e Tess acabaram de falar, ninguém disse uma palavra na mesa durante uns minutos. Em seguida, Tess virou-se na minha direcção, como se se tivesse recordado, subitamente, da minha presença.

- Podemos jantar juntos os três hoje, Rick - sugeriu num tom bastante áspero. - Laverne e eu não teremos uma outra oportunidade durante uns tempos. Provavelmente não teremos as mesmas noites de folga, enquanto trabalharmos aqui. Compreendes, não? Talvez seja esta a única vez, em que possamos estar juntos os três. - Fez uma pausa e apercebi-me do olhar que trocou com Laverne. - Não achas que seria simpático, Rick? Os três?

- Claro. Jantemos os três - anuí, sem entusiasmo. Não esperara que Laverne nos acompanhasse e ansiara por estar a sós com Tess, mas sentia-me tão contente por estar com ela que teria aceitado qualquer condição, que me houvesse proposto. - Ainda bem que podem ir as duas - acrescentei.

- Obrigada por me convidar, Rick - agradeceu Laverne, sorrindo. Inclinou-se sobre a mesa e deitou-me um olhar especulativo. Notei, pela primeira vez, que usava um vestido de lã justo e um chapeuzinho com enfeites brancos. - Gostaria de ir, se não acha inconveniente. A Tess falou-me tanto de si, que não o considero estranho. Mas não me passaria pela cabeça acompanhá-los, se não tivesse a certeza de que tanto você como a Tess desejavam, realmente, a minha presença.

- Sinto-me contente por que possa acompanhar-nos - repliquei.

Laverne e Tess trocaram breves olhares, mas nenhuma delas fez qualquer comentário.

Permanecemos sentados a acabar as bebidas e, depois, saímos do bar e apanhámos um táxi. Durante os dez ou quinze minutos seguintes rodámos para ocidente, na direcção de Manitou Springs. Sentei-me entre as duas e agarrei na mão de Tess durante todo o caminho. De vez em quando sentia o corpo de Laverne aconchegando-se ao meu.

- Quando posso voltar a ver-te, Tess? - perguntei, antes de chegarmos ao restaurante, baixando a voz e inclinando-me para ela. - Quero ver-te o mais cedo possível... a sós,

- Folgo aos domingos.

- Mas ainda faltam três dias. Quero ver-te antes disso. Esse o motivo por que estou aqui.

- Terei o dia e a noite livres, Rick - replicou inamovível. - Podemos ir dar um passeio pelo campo, subir à montanha, ir onde quer que seja. Será melhor esperar até domingo. É o que prefiro.

- Só nós os dois? - inquiri, apertando-lhe a mão. - Mais ninguém?

- Claro - anuiu. - Mais ninguém.

- Venho buscar-te ao meio-dia em ponto, no domingo.

- Estarei pronta - garantiu.

Lembrei-me, subitamente, do que acontecera em Houston e em Nova Orleães.

- Não tencionas deixar a cidade antes disso, pois não, Tess? - inquiri, ansioso.

- Claro que não - respondeu.

Entrámos no restaurante e encomendei as bebidas e o jantar. Sentei-me entre Tess e Laverne, sem falar muito e interrogando-me sobre a ligação que as unia. Pareciam amigas íntimas e referiam-se a lugares, onde se tinham encontrado antes, na Florida, Califórnia e outros. A julgar pelas palavras que trocavam, ambas mudavam frequentemente de pouso segundo as épocas do ano, mas geralmente sem trabalharem nem viajarem juntas. Além de que se escreviam regularmente e combinavam encontrar-se, como acontecera neste caso em Colorado Springs.

Depois do jantar, metemo-nos noutro táxi e regressámos à cidade. Tess anunciou que queria conversar um pouco mais com Laverne, pois não se viam há quase seis meses e pediu-me que as deixasse à porta do seu apartamento. Desejava beijar Tess antes de me ir embora, mas quando tentei fazê-lo, afastou-se rapidamente de mim e manteve-me firmemente à distância com as duas mãos. Ignorei o que pensar da sua atitude para comigo, mas sabia apenas que me sentia profundamente infeliz. Regressei ao hotel e dediquei-me, sem o mínimo entusiasmo, à tarefa de desfazer as malas. Continuava a reflectir no final triste, do que se iniciara como um dia de agradáveis expectativas.

Eram cerca das dez e meia quando me meti na cama para ler um bocado antes de adormecer.

Pouco depois de ter começado a ler, talvez somente uns quinze minutos, senti que batiam levemente à porta. Levantei-me, julgando tratar-se de um groom do hotel, que me trazia uma mensagem ou telegrama. Mas verifiquei que tinha Laverne diante de mim. Sorriu-me e sem pronunciar palavra, passou ao meu lado e entrou no quarto. Mantive-me na ombreira perscrutando o corredor dos dois lados, com a esperança de avistar Tess, mas nem sombra dela. Fechei a porta do quarto. Laverne sentara-se no braço do amplo sofá, colocado próximo de uma das janelas. Tinha o mesmo vestido, mas tirara o pequeno chapéu de enfeites brancos.

Fitámo-nos, enquanto os momentos iam passando. Um sorriso atraente desenhou-se-lhe, em seguida, no rosto.

- Aposto em como não esperava voltar a ver-me esta noite, pois não, Rick? - inquiriu com um pestanejar coquete dos grandes olhos castanhos. - Ou esperava?

- Não, não esperava - redargui, surpreso.

- Fiz-lhe então uma agradável surpresa?

- Não sei.

- Mas não se sente irritado com a minha presença aqui, pois não?

Sacudi a cabeça, mas não pronunciei palavra.

- Não quero que se sinta irritado, Rick - declarou. - Quero que se sinta contente.

Laverne despiu o casaco, dirigiu-se à cama e sentou-se. Enquanto a observava interrogativamente, agitou os pés e os sapatos caíram no chão. Em seguida, desapertou as ligas das meias de vidro, desenrolou-as e pô-las em cima da cadeira.

A Tess sabe que está aqui? - inquiri, nervoso.

- Claro - respondeu, sorrindo. - Sabe, sim. Caso contrário, não estaria aqui, certo?

- Ignoro o que fazer - pensei em voz alta ao mesmo tempo que a minha cabeça parecia um turbilhão. - Ignoro o que achar de tudo isto - acrescentei, desesperado. - Não compreendo nada.

Verifiquei que o meu mal estar lhe provocava um sorriso.

- O que deseja e por que está aqui? - perguntei.

Laverne fez-me um aceno para que me aproximasse. Como que impelido pela sua vontade, atravessei o quarto e sentei-me ao seu lado. Pousou a mão quente sobre a minha. Sentado na cama, avistava à distância os elevados cumes das montanhas, que reluziam brilhantes e frios sob o luar, ao mesmo tempo que sentia o toque quente dos seus dedos na minha mão e no braço. Mantive-me assim durante muito tempo, acometido por sensações alternadas de calor e frio.

- Vim ter consigo, Rick - ouvi-a dizer. - É por isso que estou aqui. Compreende, agora? Deseja-me, certo? Não está contente? Não está um pouco contente que seja, em ter-me aqui?

Ignorava o que lhe responder. Virei-me e olhei-a interrogativamente.

- Julguei que lhe agradasse que viesse vê-lo esta noite; Julguei que ficasse contente.

Vi que me fitou com insistência no salão das bebidas e também no restaurante. Sente-se sozinho, certo? Posso garantir. Mas deixará de se sentir só, quando eu estiver consigo. Sabe que é assim, não?

- Vim para ver a Tess. É por isso que aqui estou. Sabe disso, não?

- Sei - concordou com um aceno afirmativo. Mas não está com ela, pois não? E nem deixou sequer que a beijasse, nem mais nada.

Fitei os sapatos de Laverne, abandonados por terra. Eram elegantes e frágeis. Apanhei-os e coloquei-os na cadeira ao lado das meias.

- Foi a Tess que a mandou aqui? - Desconhecia o que me levava a fazer-lhe a pergunta, mas estava, por qualquer razão, convencido de que a Tess a enviara. - Acertei?

- Mas não fique zangado, Rick - concordou, abanando a cabeça. - Peço-lhe que não o faça. Agradou-me logo a partir do momento em que o conheci. Atraiu-me muito. Poucos homens me provocam essa sensação. Sou muito especial. Irá descobrir.

Retirou a mão da minha e rodeou-me o pescoço com os braços.

- Tem a certeza de que a Tess sabe onde está, Laverne? - inquiri, ansioso. - Sabe que veio aqui?

- Sabe, Rick. Pediu-me que viesse.

- Porquê? - inquiri, sobressaltado. - Por que fez uma coisa dessas?

- Não sei. Terá de lhe perguntar. Ignoro qual o seu motivo. Disse-me que queria que lhe fizesse um favor e não lhe perguntasse nada. Foi isso somente e, portanto, aqui estou.

Deixara de haver dúvidas no meu espírito; a Tess estava a tentar evitar-me. Tinha conseguido evitar-me em Nova Orleães e em Houston, de propósito ou acidentalmente e, agora, conseguira evitar-me em Colorado Springs. Possibilitara-me, por qualquer motivo, que viesse encontrar-me com ela em Colorado Springs e, contudo, enviara deliberadamente Laverne para me visitar no meu quarto do hotel. Mais do que isso, era até viável, como parte do seu esquema, que fosse essa a razão por que tomara disposições no sentido de Laverne se encontrar com ela em Colorado Springs.

- Ouça bem, Laverne - expressei-me bruscamente. - Deve saber por que é que Tess a mandou aqui esta noite, ou porque a mandou propositadamente. Há uma razão para tal. Caso contrário, não estaria aqui. Por que o fez?

- Acredite, Rick, que não sei - redarguiu, sinceramente. - Não sei o que a leva a recusar estar a sós consigo. É estranho que não o queira, mas é assim mesmo. As pessoas metem-se por vezes em laços terríveis e nada fazem para os desatar. Tess sabe que eu nada significo para si, excepto talvez neste momento em que estamos juntos desta maneira. Talvez seja a sua forma de lhe dar a entender o que sente por si, ou o que não sente, o que é mais provável. Tenho pensado no assunto, desde que me pediu que viesse vê-lo. Apenas me ocorre que acha que acabaremos por gostar tanto um do outro, que passará a desejar-me em vez dela, depois desta noite. As pessoas fazem todo o tipo de coisas estranhas, quando querem muito uma coisa ou não a querem.

- Nesse caso, por que me mandou um telegrama a dizer-me que se encontraria comigo em Colorado Springs?

- Talvez pelo mesmo motivo que me mandou um telegrama a pedir-me que viesse ter com ela aqui. Acho que espera que eu tome o seu lugar e deixe de andar a seguí-la por todo o país.

Sentia-me chocado.

- Não entendo - exclamei.

- Nem eu, Rick - declarou laverne, num tom de consolo. - Tess sente-se muito infeliz com qualquer coisa que lhe aconteceu na vida, mas não me fala do assunto, embora sejamos amigas íntimas há vários anos. Julgo, porém, que se trata de algo que aconteceu em Kansas City, há uns dois anos. Nunca ultrapassou isso.

-O que aconteceu em Kansas City?

- Não lhe contou?

- Não.

- Então, terá de perguntar-lhe, Rick. Obrigou-me a prometer que não lhe falaria nisso.

-Por que é que ela foi a Kansas City na semana passada? Sabe porquê?

- A Tess não lhe disse? Tinha a filhinha doente.

- Nem sequer sabia que tinha uma filha. É casada?

- Agora, já não. É divorciada. A Tess não lhe falou nada dela?

Em vez de responder a Laverne, levantei-me, fui até à janela e contemplei as montanhas cobertas de neve, à distância. Mantive-me assim, durante muito tempo, pensando em Tess e interrogando-me por que é que me ocultava tanta coisa a seu respeito e se mostrava tão obstinada em evitar-me. Uma vez dissera que se sentia feliz comigo e tal acontecera na noite em Siesta Key, mas desde essa altura esforçara-se por me manter afastado dela. E, agora, planeara, obviamente, fazer com que Laverne me desviasse as atenções. Senti os braços de Laverne a envolverem-me. Plenamente consciente do que estava a fazer, mas desesperadamente envolto pelo perfume do seu corpo e o fascínio da boca, abracei-a e beijei-a com sofreguidão. Nesse momento, e fechando os olhos, ela transformou-se em Tess Dameron e senti-me invadir pelo desejo de a possuir, numa onda que me percorreu todo o corpo. Durante muito tempo depois, permaneceu a dor daquele beijo.

 

A manhã seguinte já ia avançada quando despertei e tomei o pequeno-almoço ao meio-dia. Mal regressei ao quarto, telefonei a Jack Bushmillion para Nova Iorque. Lá, a tarde ia a meio e ele estava no escritório.

A julgar pelo tom da sua voz, tive a certeza de que Jack estivera sentado à secretária, na última hora, a aguardar o meu telefonema e, com os modos agressivamente directos que o caracterizavam, pôs-se de imediato a fazer-me perguntas. Sempre que falava ao telefone em qualquer altura e sobre que tema fosse, raramente perdia tempo com cumprimentos ou despedidas. Desta vez nem sequer me disse: «Como estás?»

- Desde o almoço que estou à espera da tua chamada, Rick - disse. - Demoraste tempo.

- Como sabias que ia telefonar-te hoje?

- No ramo das agências, quem não se antecipa, poliniza. Onde estás, Rick?

- Colorado Springs - respondi.

- Onde é isso?

- Onde sempre foi. No Colorado.

- Onde é o Colorado?

- Está no mapa, no livro de geografia do liceu.

- Devem tê-lo posto num dos dias em que fui jogar hóquei.

- Acho que nem ao liceu chegaste.

- Bom, bom. Por que estás onde quer que estás?

- Sabes da Tess. Falei-te dela quando te telefonei de Galveston.

- Queres dizer que ainda se trata da mesma rapariga?

- O que te parece?

- E seguiste-a até aí?

- O mais rapidamente que consegui chegar.

- Já ouvi falar em perseguir uma mulher durante um quarteirão e mesmo através da cidade, se fosse algo que valesse a pena, mas é novidade para mim uma perseguição pelo país nos dias que correm. É alguma nova tendência antropológica? Talvez eu esteja a ficar desactualizado. O que ainda estará para acontecer à raça humana?

- Se conhecesses a Tess como eu, aposto que deixarias tudo para andar atrás dela por todo o mundo.

- Se começasse a fazer coisas dessas, pararia no caminho para fazer um exame à cabeça.

- Não me envergonho de confessar que estou doido por ela.

- Se a situação se mantiver por muito mais tempo, posso envergonhar-me de dizer que sou teu agente. Desconheces que há montes de coisas importantes a passar-se no mundo? Pensa na política. Pensa na economia. Pensa na ciência. Pensa na guerra. Observa bem o que acontece à tua volta, Rick, e depois tenta recompor-te.

- Trata-se de um assunto pessoal, Jack. Chega uma altura, em que o bem estar de um indivíduo pode ser mais importante do que tudo o resto no mundo.

É uma verdade que remonta ao começo da raça humana, ou, de qualquer maneira, ao começo da civilização.

Seguiu-se uma pequena pausa. Imaginei-o a acender um cigarro.

- Já entraste em negociação, Rick? - inquiriu num tom amistoso.

- Não, mas está na forja.

- Tens a certeza de que não queres que me encarregue disso em teu lugar? Passo o tempo a fazer coisas semelhantes pelos meus clientes. É parte do serviço que cobro por uns míseros dez por cento.

- Obrigado. Cá me hei-de arranjar.

- Onde vais passar a lua-de-mel?

- Avisar-te-ei.

- Quando vais iniciar a lua-de-mel?

- Um dia destes.

- Ouve bem, Rick - replicou, como se tivesse estado à espera da oportunidade para me fornecer instruções exactas. - Presta atenção. Quero que te lembres de guardares os comprovativos de despesas por causa dos impostos. É importante. Guarda todas as facturas a que deitares a mão. Vou dizer-te porquê. Faremos com que esta lua-de-mel fique paga e bem paga. Será uma despesa a deduzir, com base na recolha de material para qualquer livro. Estás a compreender? De acordo. É o que quero que faças. Que partas em lua-de-mel para um sítio bem longe. Tenho tudo planeado em mente. Partirás como o fazes, quando andas a recolher material para qualquer livro específico. Sei onde colocar um artigo para uma revista. Toma montes de notas e apontamentos na tua agenda sobre as tuas actividades e experiências. Refiro-me, obviamente, ao aspecto humano. Esquece que se trata da tua lua-de-mel pessoal.

Transformemo-la numa memorávtel e invejável lua-de-mel para cinco milhões de leitores dos dois sexos: E quando escreveres o artigo, estende-o até quatro ou cinco mil palavras e joga com a linguagem de pombinhos. É o que essa gente à frente das revistas compra nestes dias. Não te esqueças da faceta de intimidade - o que essa gente quer é um relato de dia e noite do romantismo de uma lua-de-mel, com insinuações e implicações excitantes a nível da solitária, a fim de levá-la a roer as unhas e a pensar no que poderia fazer para melhorar a situação, se alguma vez conseguisse pisar a ombreira da suite nupcial. Pergunto a mim próprio quem lê esta treta, afinal!

- Não me esquecerei das tuas palavras, Jack.

Seguiu-se um curto silêncio ao telefone e acendi um cigarro.

- Mais uma coisa - apressou-se Jack a acrescentar. - Quase me esquecia e é muito importante. Enquanto estiveres em lua-de-mel, encarrega-te de mandares servir o pequeno-almoço no quarto do hotel todas as manhãs e toma notas sobre isso. Sabes a que me refiro - o lânguido sol da manhã a entrar pela janela, a encantadora desarrumação das roupas femininas espalhadas pelo chão, o aroma da primeira chávena de café, que se entorna nos lençóis, e por aí fora. Vou dizer-te por que é importante. O editor de uma certa revista que estou a lembrar-me tem um certo fraco que vamos aproveitar. Gosta de ler a respeito de belas e jovens mulheres, que tomam o pequeno-almoço na cama com a roupa espalhada. Não me perguntes porquê. Mas não é um achado? É um hábito danado, além de que se torna quase impossível arrancar um costume a uma mulher, depois de o ter apanhado. Mesmo assim, quero que o faças e depois podes deitar-te ao trabalho de lho tirares, quando a lua-de-mel chegar ao fim. Podes dizer-lhe que se trata apenas de algo para um livro e que depois de o escreveres, deixará de comer na cama. Diz-lhe que é uma coisa decadente, ou algo no género.

- Também não me esquecerei.

Seguiram-se mais uns momentos de pausa. Jack estava provavelmente a acender outro cigarro.

- Por que me telefonaste, Rick? - perguntou.

- Preciso de dinheiro, Jack. Estou teso.

- Não me surpreende. Como esperas sobreviver se não trabalhas como eu e todas as pessoas? Nunca me encontrarás sentado por aí, sem fazer nada. Quem quer que seja pode confirmar-te que trabalho todos os dias do ano e todos os anos.

- Vou começar a trabalhar neste livro dentro de muito pouco tempo, Jack. Podes contar com isso. Pergunta a Harvey Farthing, se não me acreditas. Harvey sabe que começarei a qualquer momento. Trata-se apenas de resolver primeiro esta questão pessoal.

- E daí?

- Preciso de umas centenas. Algumas. Sabes como é. Quando a Tess e eu iniciarmos esta viagem de lua-de-mel, vai custar muito dinheiro. Além de que devo estar em atraso com a minha pensão de alimentos.

- Devia haver uma lei que proibisse que um escritor se casasse, uma ou mais vezes. Bom, talvez apenas uma vez para ver se se aguenta, mas depois de falhar essa primeira tentativa, ficaria proibido desde então. Uma lei assim, e com garantias de ser cumprida, faria com que se escrevessem mais livros e um agente teria uma vida mais agradável.

- Vais mandar-me algum dinheiro?

- Ainda não decidi.

- Estou mesmo a precisar, Jack.

- Terias dinheiro bastante sem precisares de te ajoelhar, se começasses a trabalhar nesse livro, em vez de andares pelo país como um cachorrinho atrás da cauda. Não tens mesmo juízo?

- O teu coração nunca foi tocado pela varinha mágica do romance, Jack?

Imaginei que Jack respirara fundo e demoradamente, pois ouvi um som semelhante ao de um gemido de agonia.

- Sou um homem prático, Rick - declarou. - Lido com factos, números e coisas do género. Dediquei toda a minha vida a esta política e trabalho a seu favor em cada uma das horas, que estou acordado. Sou um homem da classe média rude e duro. Sou um lenço difícil de assoar. E não faço o papel de concubina de escritores. Encontrarás montes de agentes desse tipo na Quinta Avenida. Se te apetece parasitares é melhor apressares-te e pores-te na bicha, pois há por essas bandas tantos a divertirem-se com uma nova geração de nomes de marca, que estão a tornar-se bem poderosos. Esses querem ver a quantia do cheque que passas, antes de te darem a chave do seu apartamento. Aqui em Madison Avenue é tudo bem diferente. Tudo à maneira de homens. Ou se tem dois punhos e cabeça ou fica-se degolado no ramo da agência. Se não vivesse assim vinte e quatro horas por dia, há degoladores na profissão que tirariam, de boa vontade, um dia de folga para me enterrarem amanhã. Sei, porque enterrámos o velho Manny Manley anteontem e gastei quatro horas do meu tempo a ir do escritório ao cemitério e voltar. Já assinei contrato com três dos melhores escritores do Manny e o pobre e velho Manny só morreu na segunda. O que sabes disso?

- És um agente com coração de pedra - comentei. - Espero que um dia amoleças o suficiente para descobrires a sensação de ser humano. Seria uma experiência aliciante para ti. Terias a surpresa da tua vida, Jack.

- Escuta bem, Rick - retorquiu. - Se alguma vez conheceres ou ouvires falar de um agente de coração brando, é que pertencia apenas ao ramo da música e dança e não andava a arranjar galos na cabeça em Madison Avenue. Nesta rua, a única forma segura de sobreviver é ser o mais capacitado dos sobreviventes. Sabes o que aconteceu aqui em Madison Avenue, há bem pouco tempo? Vou contar-te. Um dos agentes receou estar a tornar-se brando e tinha consciência de que isso lhe arruinaria o negócio, o que achas que fez? Pôs a avó em frente, do negócio e, em seguida, empurrou-a de encontro à parede um mês depois. Porquê? Porque achou que se era capaz de ter essa atitude para com a própria avó, conseguiria aguentar-se. Agora, confiança não lhe falta e tem mais sucesso do que nunca. A vida é coisa séria nos nossos dias, para o caso de não saberes. As secretárias montam ratoeiras, imaginando que mais vale ter pouco do que nada. É assim a vida em Madison Avenue.

- As coisas também não me correm sobre rodas. Por isso te telefonei, Jack. Preciso de dinheiro.

Jack não me deu resposta. Esperei que dissesse alguma coisa, mas apenas ouvia o ruído da linha.

- Por que não te metes num avião e dás um salto até aqui para conversarmos, Jack? - pedi-lhe. - Preciso de te ter por perto, durante uns tempos. Não é meu costume pedir-te muitos favores, mas agora estou a pedir-te que mo faças. És capaz? Convido-te para meu padrinho no casamento - uns quinze minutos.

- Apenas serviria para perturbar a rapariga, Rick. Ficaria neurótica. Teria de consultar um psiquiatra, o que custaria muito dinheiro. Ou, se não fosse parar ao psiquiatra, passaria o resto da vida agarrada à cabeça, tentando perceber por que se casara contigo e não comigo. Desagradar-lhe-ia dar cabo da pobre rapariga dessa maneira.

- Leva-me a sério, Jack - supliquei-lhe. - Quero abrir-te o coração. Ajudar-me-ia muito. E se tiveres algum dinheiro para mim, trá-lo contigo. Sabes que consegues sempre arranjar umas centenas. Virás a Colorado Springs, Jack? Estás disposto a fazê-lo desta vez? Nem imaginas como seria bom para mim nesta altura, Jack. Por favor!

- Quem? Eu? Eu ir a Colorado Springs? Conheces-me o suficiente para saberes que não o faria, Rick. É contra os meus princípios. Só saio de Nova Iorque quando me meto num avião para Beverly Hills e tem de tratar-se de um negócio chorudo, que envolva muito dinheiro. Não teria chegado a meio da minha carreira como agente, se andasse por aí aos saltos como um gafanhoto apanhado por um apara-relva. Pensa nos telefonemas que deixaria de receber, se me ausentasse para o campo! É a psicologia, Rick! Um bom agente só mostra a cara em público, depois do anoitecer. Faz negócios pelo telefone. Esse o motivo da minha reputação de uma ponta à outra de Madison Street e mereço todas as palavras a meu respeito. Se as pessoas conseguissem apanhar-me para almoçar, beber uns cocktails na sua companhia e falar-me, na mesa, frente a frente, teriam oportunidade de me atirar ao tapete de vez em quando. Assim, elimino-as pelo telefone.

- Sei que és um bom agente, Jack. Toda a gente o sabe. Sou um homem de sorte por me representares. Não estaria nem perto do lugar que hoje ocupo, se não fosses tu e o Harvey Farthing e quero que saibas que aprecio tudo o que fizeste por mim. No entanto, há alturas em que me apetece conversar contigo e não há quem te substitua. Conheces o suficiente sobre os escritores para saberes porquê.

-Porquê?

-Porque os escritores são homens solitários - sabes bem como às vezes me sinto só - e precisam de um agente compreensivo para os tirar da fossa. Ajuda sempre falar com o agente, porque eles sabem exactamente como e quando nos chamar à razão. São peritos no assunto. Esse o motivo por que gostaria imenso que viesses, sem demora, a Colorado Springs. Compreendes perfeitamente que não posso sair daqui agora e ir a Nova Iorque. Mas tu podias viajar até cá e essa quebra de rotina só te faria bem. Por que não abres uma excepção desta vez, Jack? Apenas eu saberei que estás a mostrar o rosto em público e não o direi a ninguém. Peço-te que o faças por mim, Jack. Se alguma vez sentiste que me deves um favor, está na altura de pagares a dívida. Sabes como é poder falar com um amigo de quem se gosta e em quem se confia. Vens, Jack? Ficar-te-ia agradecido para o resto da vida.

- Lamento, Rick - arguiu num tom firme, ignorando o meu apelo e sem arredar pé da posição tomada. - É impossível.

- Porquê?

- Por uma questão de ética.

Ninguém pronunciou palavra durante uns momentos. Apenas se ouvia o zumbido monótono da linha telefónica. Acendi um cigarro.

- Então, manda-me algum dinheiro rapidamente - disse-lhe em seguida. - Tenho uma conta de hotel para pagar.

- Quem paga esta chamada? - inquiriu.

Mantive-me em silêncio, pensando apenas em como me sentia desapontado por Jack Bushmillion ter recusado, tão firmemente, vir até Colorado Springs conversar comigo.

- Ouve bem, Rick - retomou a palavra. - Perguntei-te quem vai pagar esta chamada. Ouviste-me?

- Ouvi - repliquei num tom mais elevado do que o habitual. - Pago-a eu, se me mandares algum dinheiro.

Jack soltou uma pequena risada. Tive a sensação de que se apercebia quando eu estava desapontado e o lamentava verdadeiramente, mas mesmo assim não acrescentou nem mais uma palavra quanto a vir visitar-me.

- Fala-me dessa rapariga de que andas atrás, Rick.

- Tess?

- Sim.

- O que queres saber dela?

- Tem umas mamas bonitas?

- O que estás para aí a dizer?

- Tem uns dedos dos pés perfeitos? È a primeira coisa para que se olha. É um bom hábito a adoptar - olhar para os dedos dos pés da dama, logo no começo. Algumas pessoas casam-se e mais tarde sentem-se desapontadas, porque não o fizeram no início. Os dedos dos pés de uma dama são sempre a base da história. Nunca falha.

- Olhas para os dedos dos pés?

- Sempre.

- Bom, nunca reparei nos dela - repliquei. - Parti do princípio de que me agradariam.

- Estarás em terreno movediço, até os observares bem de perto. Se estivesse no teu lugar, telefonava-lhe imediatamente e perguntava-lhe se podia aparecer e observar-lhe os dedos dos pés. Poupava-te um tempo precioso, a longo prazo. Sei do que estou a falar. Assemelha-se a fazer um seguro, só que é de graça. Onde consegues arranjar tanto por tão pouco? Se os dedos dos pés dela não te agradarem, podes desistir de tudo, antes de deixares que as coisas avancem demasiado e começares a trabalhar mais cedo no livro. Por outro lado, se os dedos dos pés te agradarem...

- O que mais queres saber? - interrompi-o.

- Já te encontraste com ela? Refiro-me a um encontro daqueles de bota abaixo, se é que me entendes.

- Não, exactamente. Mas falei com ela e vamos encontrar-nos no domingo.

- Se ainda não te encontraste a sério com ela, como podes estar seguro do que fazes?

- Sei muito bem o que faço. Tenho instinto.

- Também um cego, mas não vê o que faz. Tudo o que consegue é tactear no escuro. É a forma mais segura que conheço de comprar gato por lebre.

- Não sou cego.

- É uma miúda bonita?

- Não é uma miúda.

- Já sei. É uma bela rapariga. Mas que atractivos tem?

- A sua personalidade.

- Uma palavra comprida, de pouco significado. Por que não respondes à minha pergunta?

- Desta vez estou a jogar forte, Jack. Quero que entendas isso. É a sério. Desta vez quando casar, vou zelar para que cole.

- Claro, como um selo. Mas tens de sair e comprar um novo, sempre que quiseres mandar outra carta.

- Mas ela tem tudo, Jack.

- Todas as raparigas têm tudo. O problema não está no que têm, mas no que fazem com o que têm.

- Seja como for, é com ela que quero casar. Tomei essa decisão. Não estaria onde estou, se andasse por aí só à procura de passar uns bons momentos. E sei o que estou a fazer.

- Já lhe pediste que casasse contigo?

- Não. Ainda não.

- Porque não?

- Ainda não tive oportunidade. Mas tenciono pedir-lhe muito em breve.

- Quando vais dar-lhe a notícia?

- No domingo. É quando tenho o encontro marcado.

- Aceita o meu conselho, Rick, e não deixes que ela perceba ou possa não querer ir para a frente. Uma escorregadela dessas arruinaria tudo. Detestaria que uma coisa dessas acontecesse a uma pessoa como tu. Portanto, faças o que fizeres, não deixes que perceba.

- Que perceba o quê? De que estás para aí a falar?

- Que és um vagabundo que não trabalha há seis meses.

- Há seis meses que ando a recolher material. Sabes que é assim.

- Então manda chamar os varredores de rua e vê o que eles recolheram e podem mostrar-te.

- És um homem implacável, Jack - comentei, infeliz. - Não conheço ninguém tão desumano como tu.

- De acordo. De acordo. Sou um homem duro e sem sentimentos e é gelo o que me corre nas veias. Mas não te esqueças que todos os rapazes e raparigas de Madison Avenue tremem de emoção, sempre que estendo a mão para o telefone.

- E quanto ao dinheiro, Jack? - recordei-lhe.

- Vou mandar-te dinheiro. Envio um cheque pelo correio dentro de meia hora e recebê-lo-ás amanhã a esta hora. Mas se não te apressares, se não saíres da fossa e não começares esse livro, bem podes deixar de me telefonar, porque não aceitarei as tuas chamadas. Esquecerei que te conheço. Não quero saber mais de ti, até começares a trabalhar. Ponto final.

- Peço-te que mudes de opinião, Jack, e venhas até aqui discutir este assunto - pedi. - Preciso do dinheiro, mas também preciso de falar contigo. Vem no sábado ou no domingo e assim não perderás nem uma hora de negócio. De qualquer maneira, ninguém te telefona ao domingo. Vês como é simples? Não voltarei a pedir-te outro favor assim, Jack, se acederes desta vez. Podes descontar todas as despesas do meu próximo cheque de direitos de venda. Por favor, Jack! Preciso de ti! Estou a falar a sério!

- Dá-me notícias, quando começares a trabalhar nesse livro, Rick - retorquiu, num tom casual. - E não te esqueças do que disse quanto a escreveres esse artigo de revista sobre uma lua-de-mel picante. Vou telefonar à revista que tenho em mente e falar do assunto. É bem provável que programem a saída para o número de Setembro. O que significa que terás de entregar o manuscrito dentro de um mês, a contar deste dia. Escreve algo entre as quatro e cinco mil palavras, como te disse. E não te esqueças também de que vais servir o pequeno-almoço à senhora, na cama. Outra coisa importante é não te esqueceres, enquanto estiveres a escrever a história, de que pretendes pôr nas nuvens todas as solitárias. Descreve como acordas de pijama de seda, olhas pela janela e mandas vir torradas para o pequeno-almoço, enquanto beijas a noiva «à francesa». E não te esqueças ainda de guardar toda essa merda das facturas de despesa, por causa dos impostos. Até à vista, Rick.

- Até à vista, Jack.

 

Como se estivesse atento ao vagaroso mas insistente apelo da luz pálida do alvorecer, despertei, aos poucos, de um sono profundo. Mantive-me deitado no silêncio da noite, tentando recordar-me de algo do que pensava que se tratara, sem dúvida, de um sonho. Costumava dormir profundamente e nunca acordava assim a meio da noite. Estremeci um pouco com frio.

Os minutos passavam e continuavam; sem me lembrar de um sonho nem sequer de pedaços dele e fiquei surpreendido ao aperceber-me de que estava a acontecer algo, que podia ser real ou imaginário. No começo, apenas tivera consciência da fugaz sensação do seu beijo ávido e do movimento sensual do corpo; seguidamente a esta identificação concreta, cheirei o perfume familiar da sua pele. De súbito e assemelhando-se a uma revelação, todas as dúvidas desapareceram da minha mente. Ela era real e não imaginária. Apertei o corpo de Laverne nos braços e premi o seu corpo quente de encontro ao meu.

Nenhum de nós ainda pronunciara qualquer palavra. A terna carícia das suas mãos quentes no ar gelado da noite, o contacto dos seios e coxas macias e a certeza inabalável de que estava, de facto, ao meu lado, proporcionou-me a satisfação, há tanto procurada. Repeti, várias vezes, para mim próprio que nenhum sonho poderia ter sido tão agradável e compensador. Há muito tempo que não acordava durante a noite sem o aguilhoar da solidão e a memória do doloroso sofrimento do passado levou-me a apertá-la mais e mais, como um bem muito querido que receasse perder.

Decorrido algum tempo pus-me a interrogar sobre como Laverne conseguiria entrar no meu quarto, enquanto estava adormecido. Não havia varanda nem pórticos do lado de fora das janelas, não havia portas de comunicação e tinha a certeza de que fechara à chave a porta para o corredor, quando me deitara à meia-noite. No entanto, embora somente a tivesse visto pela primeira vez há alguns dias, já sabia que se tratava do género de rapariga que usualmente conseguia, de uma ou outra forma, descobrir como conseguir o que queria e desejava.

Movendo o corpo e acentuando mais o abraço, em que me envolvia, Laverne afastou os lábios dos meus.

- Ficaste surpreendido quando acordaste e me viste aqui, Rick? - sussurrou, falando pela primeira vez. Senti-lhe a respiração quente na face. - Foi realmente uma surpresa, Rick? Ficaste contente ao ver-me aqui?

Erguendo-a um pouco e o rosto e comprimindo as mãos de encontro às faces macias, fitei-a intensamente na obscuridade do quarto. Observando-a à luz pálida e continuando a prender-lhe o rosto nas mãos, achei-a tão encantadora e desejável, quanto poderia ter sonhado que o seria. Era frágil e atraente, quente e sensual, semelhante a um animalzinho afectuoso. Sentia-me contente, sem me interessar a forma como chegara ali. Sacudi-a com carinho.

- Foi uma surpresa, Laverne - disse-lhe. - Não duvides.

- E também estás contente - sussurrou, ao mesmo tempo que um estremecimento de prazer lhe invadia o Corpo. - Sei que estás contente. Posso afirmar.

Metendo-lhe os dedos pelos cabelos fartos, apertei-lhe a cabeça num gesto firme.

- Por que vieste, Laverne?

- Porque me apeteceu.

- Há quanto tempo estás aqui?

- Apenas uns minutos - respondeu. - Vim directamente para aqui, mal o salão de cocktails fechou às duas horas. - Sorriu com uma expressão feliz. - Quando cheguei aqui, tentei não te acordar - ignorava se me desejavas ou não -, mas depois fui incapaz de esperar mais, Tive mesmo de te beijar. Parecia-me que tinha esperado muito para estar contigo assim.

Agarrei-lhe no cabelo e sacudi-a ao de leve.

- A porta estava fechada à chave - observei. Esboçou um aceno de concordância, sem pronunciar palavra.

- Como é que entraste?

Laverne deitou-me um sorriso malicioso.

- Como, Laverne?

- Destranquei-a.

- Como?

- É segredo.

Voltei a abaná-la, sem brusquidão.

- Como é que destrancaste a porta, Laverne?

- Não sabes mesmo, pois não, Rick?

- Não, não sei.

- Se me beijares, conto-te.

Continuando a agarrar-lhe os cabelos com mãos firmes, atraía a mim e beijei-lhe os lábios. Quando por fim a soltei, instalou-se confortavelmente, de joelhos.

- Continuas a querer saber? - espicaçou-me.

- Prometeste contar-me.

Inclinou-se para diante com um movimento rápido e beijou-me na testa.

- Na outra noite em que estive aqui, levei-te uma das chaves. Havia duas em cima da mesa. Não me pareceu que fosses dar pela falta e não deste mesmo, pois não?

O sorriso que lhe iluminava o rosto mostrava quanto se sentia contente por aquele feito.

- Na outra noite tiraste a chave, porque estavas a planear voltar aqui? - inquiri.

Manteve-se, tanto quanto me pareceu propositadamente, sem me dar resposta.

- Sabias que ias voltar aqui, Laverne? - insistiu, abanando-a ao de leve.

Mudou subitamente de atitude e fitava-me com uma expressão séria e sem sorrir.

- Deixa-me dizer-te uma coisa, Rick. Nada poderia ter-me afastado de ti, esta noite. - Abanou a cabeça, devagar. - Nem portas, fechaduras, paredes, nada.

- Mas por que não me disseste, então, que planeavas voltar?

Ficou silenciosa por momentos. A expressão decidida e solene não mudara.

- Porque, porque tive medo que pudesses fazer qualquer coisa para me impedires de voltar a estar contigo. Tive medo de que me tirasses a chave e não me deixasses entrar.

Fitámo-nos durante um longo momento.

- Onde está a Tess? - inquiri.

- Foi para casa às duas. Disse-lhe que tinha um encontro com um amigo. Sabe que fico a noite fora, mas não sabe que estou aqui contigo.

- Tens a certeza de que desta vez a Tess não sabe que estás aqui, Laverne?

- Tenho. E peço-te que não lhe contes, Rick. Não deves fazê-lo.

- Por que não?

- Porque eu e a Tess somos amigas de há muito tempo. Mas numa altura destas é cada uma por si. A amizade entre mulheres deixa de ser importante, quando há um homem pelo meio. Trata-se de uma regra dura e firme. Para mim, pelo menos. Estou por conta própria a partir de agora e tenciono continuar. Tenho de olhar pela minha vida pessoal. Por favor, não fales disto à Tess.

- Não sei se acreditar ou não em ti, Laverne - repliquei. - Como posso saber se estás a contar a verdade? Tanto quanto sei, pode tratar-se de mais uma combinação entre ti e a Tess. Fizeste-o uma vez e podes perfeitamente repetir. No que hei-de acreditar?

- Tens de acreditar em mim, Rick - declarou num tom grave, ao mesmo tempo que se aproximava e me agarrava na mão. - Desta vez, a Tess nada sabe. Por favor, não lhe contes.

- Mas devia contar. Quero ser honesto com ela. Deves compreender, Laverne.

- Não, Rick! - suplicou, nervosa. - Não o faças, por favor.

- Por que não?

- Porque desta vez, vim até aqui por um motivo diferente. Não foi como da primeira vez. Tens de acreditar em mim. Foi por isso que disse que estou por minha conta. É verdade cada uma das minhas palavras. Por favor, Rick! Não deves contar-lhe!

- Qual o motivo?

Deixando de estar ajoelhada, envolveu-me o pescoço com os braços e beijou-me, excitadamente, várias vezes. O seu comportamento assemelhava-se ao de uma jovenzinha confusa.

- Rick... será que não vês... não entendes? - declarou num tom sério. - Rick...

Aguardei, interrogando-me sobre o que pretendia dizer. A respiração saía-lhe ofegante e nervosa.

- Estou apaixonada por ti, Rick - confessou. - Verdadeira e profundamente apaixonada por ti. Não percebes? Não consigo evitá-lo... nem quero evitá-lo. E sinto-me contente, também. Tão contente, que quase me é impossível aguentar o que sinto. Se não estivesse apaixonada por ti, não estaria aqui neste momento. Nunca estive apaixonada dantes... como agora. É a sensação mais excitante, que vivi. És o primeiro homem que, alguma vez, amei assim. Ignorava que era possível amar alguém como te amo. Tudo começou na noite em que estive aqui. Quando vim, não estava apaixonada, mas ao sair sim. Algo maravilhoso aconteceu nesse espaço de tempo. Foi o que me levou a tirar a chave quando saí - sabia que tinha de voltar. Ignoro o que teria feito, se não tivesse a chave, mas faria qualquer coisa. Descobriria uma forma de entrar aqui esta noite. É-me tudo tão desconhecido e estranho - tão excitante e maravilhoso. Nunca sonhei que o amor pudesse assemelhar-se a uma coisa destas. Julguei que já me apaixonara antes, mas agora sei que não - até agora. Sempre pensei que o amor era algo que tinha de se fazer, aguentar ou tolerar. Julguei que era uma monotonia e um dever doméstico. Só que não é nada disso, mas a felicidade total. Sinto-o a cada segundo, como se tivesse o corpo dormente. Agora, sei que é algo que quero mais, do que qualquer outra coisa neste mundo. É o paraíso, Rick... uma delícia e o paraíso. Oh, Rick!

Calou-se. Agora, respirava mais calmamente e denotava uma expressão tranquila e serena, depois de me ter contado o motivo da sua presença. Sorria-me com ternura.

- Compreendes, agora, Rick? - prosseguiu. - Quero estar sempre ao teu lado, sentir a tua presença e fazer coisas por ti. Podias passar o dia a deixar cair alfinetes, que eu andaria a apanhá-los atrás de ti, um a um, se o desejasses. É isso o que sinto. E faz-me tão feliz que seja assim - nunca conheci uma emoção tão maravilhosa. Sinto-me como se desse algo a cada segundo que passa - e é tão bom ser-se capaz de dar algo a outra pessoa. É assim o amor, não é, Rick? O verdadeiro, profundo e insolúvel amor? Dar algo a cada momento a quem se ama? Não se pode amar, sem se dar qualquer coisa, certo? Não me refiro a dinheiro nem presentes, refiro-me a pensamentos, compreensão e sentimentos. Até agora nunca soube que fosse possível esta sensação. E, agora sei. E não desistiria dela por nada deste mundo. Não quero deixar de te amar e não o farei. Quero que dure eternamente. Amar-te-ei sempre, Rick, aconteça o que acontecer. Se te fores embora e não me disseres para onde, acabarei por te descobrir. Descobrir-te-ei de novo. Descobrir-te-ei sempre, Rick, porque te amarei sempre.

Acariciava-me os cabelos num afago repetido.

- Desconheces tudo a meu respeito - confiou num tom íntimo e jovial. - Nunca me casei. Frequentei a universidade durante quatro anos. Há dois anos que sou uma empregada de cocktails nos bares e percorri o país de um extremo ao outro. Vou visitar os meus pais uma vez por ano e nada mais. Eles não aprovam a minha profissão - acham que todas as empregadas de cocktails em bares são imorais - mas qualquer dos outros empregos, que pudesse ter aceitado, não me agradavam. Agora, quero abandonar este emprego, quero ter casa própria, ter belos filhos e a ti. Tive muitas aventuras, mas os encontros com homens desconhecidos não me agradam, não existe a sensação de companhia com desconhecidos.

Tive ligações com alguns homens e na altura satisfaziam-me, mas não achava muito excitante. Eram sempre encontros rápidos, o que não é compensador. Sempre achei que devia haver algo melhor na vida e agora tenho a certeza. É uma coisa maravilhosa. A partir de agora, só quererei fazer amor com o homem que amo - ponto final nas aventuras. E sabes quem ele é. Chama-se Rick Sutter.

Mantivemo-nos, em seguida, num longo e gratificante silêncio. O luar iluminava o quarto e era a primeira vez que observava Laverne com olhos de ver. Enquanto a fitava, ouvi um comboio algures na noite e o som metálico das rodas nos carris ecoava pelos montes e vales, como que a recordar-me outras gentes e lugares. Consultei o relógio pousado na mesa-de-cabeceira. Passava das três da manhã.

- Por favor, não te zangues comigo, Rick - suplicou Laverne num sussurro, enquanto as mãos me acariciavam. - Tinha de dizer-te o que sinto bem fundo no coração, tinha de partilhar contigo. Deixa-me ficar... não me mandes embora.

Seguiu-se mais um intervalo, marcado pelo silêncio. Ignorava o que dizer. Ela era bonita, terna e apetecível e desejava estar com ela, só que não me sentia apaixonado e não tinha processo de saber se alguma vez me apaixonaria. Laverne observava-me ansiosamente.

- Se tentares mandar-me embora, Rick, atiro-me da janela! - exclamou, nervosa. - É o que farei, Rick! Falo a sério!

- Não digas essas coisas, Laverne! - redargui, abanando-a com força.

- Então, promete, por favor, que não tentarás mandar-me embora. - Suplicava, como uma criança que persistira em conseguir algo que desejava muito. - Por favor, Rick! Não o farás?

- Mas a Tess? - perguntei. - É importante. Sabes o que sinto por ela!

- Ela não está apaixonada por ti. Mas eu estou. É essa a diferença. Se estivesse apaixonada por ti, estaria contigo, agora. E sabes bem, quem está aqui. Não percebes a diferença, Rick?

Ao ver que nenhum comentário me saía dos lábios, Laverne abraçou-me apaixonadamente.

- Quero ficar contigo, Rick - sussurrou. - Casarei contigo - serei a tua mulher - serei a tua miúda - farei o que quiseres, se me deixares ficar ao teu lado. E depois leva-me, quando partires. Não partas sem mim, Rick! Nunca o faças! Quero ir para onde fores - sempre. Por favor, não te vás embora. Não me deixes. Seria incapaz de aguentar! Matava-me! Sei que o faria!

- Deixa de dizer essas coisas, Laverne! - repliquei, sacudindo-a. - Tens de parar!

- De acordo, Rick - concordou. - Eu deixo. Não quero morrer. Quero viver e tornar-te feliz, tenho a certeza. Uma rapariga sabe como tornar um homem feliz, quando o ama de verdade - e é esse o meu caso. Acho-te maravilhoso. És maravilhoso em todos os aspectos. Fui à biblioteca e li sobre a tua vida num livro. Conheço tudo a teu respeito. Li onde nasceste, que idade tens, quem são os teus pais e que liceu frequentaste. Costumavas distribuir jornais às cinco da manhã quando tinhas entre doze e quinze anos e trabalhaste numa mina de ouro, no Canadá, durante dois Verões, quando andavas na faculdade. Depois, viveste no México dois anos e do teu primeiro livro venderam-se apenas quatrocentos e cinquenta exemplares. Foste casado, divorciaste-te e escreveste uma série de romances. Sentirei orgulho de ti e de vir a ser tua mulher. Sentirei mesmo orgulho de ser a tua amante, Rick, se o quiseres. Preferia, contudo, casar-me contigo e ter três bonitos filhos. Passarei cada minuto a tornar-te feliz. Preciso de ti, Rick. É a primeira vez na minha vida que preciso de alguém e preciso tanto de ti, que não quero viver sem ti. Compreendes, não compreendes, Rick? Sabes que me sinto verdadeiramente apaixonada, não? Por favor, responde-me que sim!

- Não sei o que dizer, Laverne! - redargui. Fazes com que me sinta um patife. Talvez me sinta assim, porque o sou. Muitas pessoas afirmaram que sou pior do que isso. Mas o que posso afirmar com verdade e franqueza? Às vezes chego a pensar que os escritores como eu deviam ser metidos em jaulas, para não se misturarem com criaturas decentes. Tenho de escrever, é tudo o que consigo fazer. Sigo uma vocação, que é a escrita. Esta suga-me tudo. E é esse o motivo por que sou egoísta, cruel e um patife - sei que é assim e não posso evitá-lo. Mas quando estou num intervalo entre dois livros - como agora, sou um idiota - e um patife, também. Sou o maior idiota, pela primeira rapariga que me agrada. Apaixono-me por ela ou é ela que se apaixona por mim. Depois - talvez passada uma semana, um mês ou mais tempo - sinto o impulso de voltar a escrever e fujo dela o mais rapidamente possível. É o que me torna um patife, ou pior.

- Acho que entendo, Rick - retorquiu, compreensiva. - Quando queres escrever, tens de escrever. Quando queres uma rapariga, tens de ter uma que o saiba ser e o pareça. Posso ser tudo para ti - a tua rapariga e a tua mulher. E a tua miúda, também. E quando quiseres escrever, quererei que escrevas e não pares. Depois, ficarei à tua espera, quando voltares. Compreendo, Rick.

Acariciei-lhe os cabelos, durante o longo silêncio que se seguiu. Parecia-me como se tivéssemos sido conhecidos e íntimos desde há muito e nos tivéssemos compreendido toda a vida.

- Gosto de ti, Laverne - declarei, e ela aconchegou-se satisfeita nos meus braços. - Gosto muito de ti. És inteligente, boa e afectuosa. És compreensiva e uma rapariga muito bonita também. Agradas-me em todos os aspectos, que consigo pensar. Gostaria de estar contigo - em público ou privado. És uma pessoa excepcional. Conheces, todavia, o motivo que me trouxe a Colorado Springs. Vim aqui pedir a Tess que se casasse comigo. Não posso deixar que te iludas a esse respeito.

Um leve estremecimento percorreu-lhe o corpo e senti que os dedos me agarravam, como os de um náufrago à vida. Ignorei quanto tempo passou, mas os minutos escoaram-se. Ali deitados, ouvíamos o eco triste e distante do apito de um comboio.

- A Tess não se casará contigo - declarou Laverne, em seguida, num tom de voz firme e decidido. Parecia estar a argumentar com conhecimento de facto. - Talvez penses que o fará, mas sei que não.

- Como sabes? - perguntei. - O que te leva a pensar que ela não se casará comigo?

Laverne não me respondeu e sacudi-a um pouco.

- Sei... é tudo - redarguiu.

- Ela disse-te que não se casaria comigo?

- Não.

- Então por que o afirmas?

- Não precisa dizer-me.

- Esperas que seja assim ou sabes realmente?

Voltou a deixar-me na expectativa.

- Serias capaz de tentar impedi-la de se casar comigo, Laverne?

Esboçou um aceno de cabeça decidido.

- Faria tudo para impedir que tu e Tess se casassem ou... o mais que fosse - declarou num tom de desafio. - Falo a sério, Rick... tudo. Quero-te para mim. Não quero que mais ninguém te tenha. Se qualquer outra rapariga tentasse apanhar-te, faria tudo para impedir que te casasses com ela. Falava a sério quando afirmei que nada me deteria. Sei o que quero e é a ti que quero.

- Se não fosses tão apetecível, Laverne, obrigava-te a saíres imediatamente - exclamei, abanando-a novamente com ternura.

Fitou-me bem no fundo dos olhos com um sorriso atraente, espelhado na face.

- Serias incapaz de mandar-me embora neste momento - retorquiu, sacudindo a cabeça. - Serias incapaz de me mandar embora, mesmo que o desejasses. E se o tentasses, lutava, arranhava-te e sei lá que mais. Também não tenciono atirar-me pela janela. Estou aqui e vou ficar. Vou ficar aqui até de manhã. O que sabes disso?

- Já é manhã, Laverne.

- Não é manhã, porque ainda está escuro. Só será manhã, quando o Sol nascer.

- Por que queres ficar?

Inclinou-se e beijou-me demoradamente.

- Porque quero fazer amor contigo, e vou fazê-lo. Vou provar-te como posso tornar-te feliz. Descobrirás. Depois disso não me esquecerás e desejar-me-ás. Esse o motivo por que não vais mandar-me embora.

- Pareces mesmo decidida.

- Há muito tempo.

Laverne afastou-se para um dos lados da cama e sentou-se, observando-me como se esperasse cheia de certezas, o que sabia ir acontecer. O luar reflectia-se-lhe na face e corpo, como se conferisse um calor esplendoroso a uma estátua de contornos graciosos e elegantes. Ao observá-la à distância de um braço e invadido pelo perfume excitante da sua pele, interroguei-me sobre se, caso a tivesse visto em Sarasota, me apaixonaria por ela em vez de Tess. Não possuía, obviamente, meio de o saber mas, agora, sozinho com ela no quarto banhado de luar, apercebi-me de que a desejava, independentemente do amor que julgava votar a Tess. Pela primeira vez ao longo daquele último mês interroguei-me sobre se amava Tess como julgava amá-la, ou se ela representava meramente o inatingível, que sentia necessidade de me esforçar para obter.

Quando estendi os braços para a receber, Laverne correspondeu com um grito abafado de adolescente satisfeita.

 

RESTAVAM-ME dois dias e duas noites de espera até domingo. Entretanto ia, todas as noites, até ao elaboradamente decorado Frontier Bar, em cujas paredes havia um arranjo de fotografias desbotadas, armas de fogo enferrujadas, programas de ópera, bocados de minério e muitos outros fragmentos de minas de ouro abandonadas. Sentava-me, sozinho, a uma mesa durante uma hora ou mais. O bar nunca estava cheio nessas alturas e, num contraste com o cenário ornamentado, o ambiente era calmo e sóbrio.

Tess e Laverne eram as únicas empregadas a servir cocktails e dirigiam-se-me sempre de forma amistosa, mas com uma marcada reserva profissional, conferida a todos os clientes. Nem uma vez ao longo dessas horas, qualquer delas me fez um comentário, declarado ou implícito, sobre o facto de Laverne ter ido ao meu quarto. Julguei detectar em Laverne, não uma mas muitas vezes, um olhar interrogativo, que parecia indicar que não se oporia a voltar a ver-me em qualquer altura, mas nenhuma palavra se trocou entre nós, susceptível de levar a mais uma noite juntos. Mas tive sempre consciência absoluta de que se não fosse por Tess, não me conservaria, por muito tempo, indiferente ao subtil convite de Laverne.

Houve vezes em que me interroguei sobre se aconteceria algo, nos próximos dias, que contribuísse para que voltássemos a estar juntos. E sabia que se o destino actuasse uma vez que fosse, desistiria de Tess para me ligar a Laverne.

Sempre que saía do bar, recordava a Tess que viajara até Colorado Springs para a ver e que aguardava pacientemente a chegada de domingo. Sorria-me sempre de forma compreensiva, mas não me mostrava quais os sentimentos que a dominavam.

Durante estes dois dias e duas noites, gastei parte do meu tempo a passear pelas ruas, debaixo das acácias; mas passei a maioria sentado no meu quarto de hotel, a tentar convencer-me a tomar qualquer atitude em relação ao romance, que tencionava escrever. De dia para dia, sentia-me cada vez mais inquieto por causa do tempo desperdiçado e censurava-me por não haver realizado nada. Era a primeira vez desde sempre, que me sentia incapaz de começar a escrever fosse o que fosse.

A espera chegou, finalmente, ao termo.

O dia apresentou-se convenientemente claro sob um céu sem nuvens e a atmosfera estava seca e fria. Exibindo um bonito vestido leve e um casaco escuro, Tess estava pronta, como me prometera, ao meio-dia de domingo. Saímos da cidade e seguimos para Ute Pass, atravessando o Woodland Park, na direcção das montanhas. Apercebi-me, logo de início, que tinha uma expressão solene e pouco conversadora, como se estivesse perturbada ante conflitos e desejos e a sua atitude reservada não se modificou com o passar das horas. Comecei por pensar que o seu estado de espírito se relacionava com o facto de eu ter estado com Laverne mas apercebi-me, mais tarde, de que aquele silêncio se encontrava imbuído de um significado mais profundo.

Estávamos, contudo, sós no cumprimento da palavra dada.

Àquela altitude nas Montanhas Rochosas e no começo de Maio, a atmosfera continuava invernosa e a neve por derreter continuava a avistar-se nas bermas do caminho, depois de um Inverno de chuvas e vento. Os prados alpinos varridos pelo vento apresentavam uma paisagem áspera e castanha, cobertos da relva do passado ano, e as camadas de neve ainda não haviam desaparecido do cimo das sebes. Por cima de nós, elevavam-se as cadeias de montanhas, cujas cristas de neve luziam resplandecentes. Certificara-me de que o automóvel alugado estava equipado com aquecimento e sentíamo-nos quentes e confortáveis no pequeno veículo. Depois de seguirmos ao acaso durante umas duas horas, parámos para almoçar numa estalagem com um tecto de traves de madeira e onde uma larga lareira crepitava. Envoltos nas sombras do crepúsculo demos meia volta e tomámos a direcção de Colorado Springs. Repeti para mim próprio, vezes sem conta, que chegara a altura, depois de uma tarde de companheirismo agradável, de dizer a Tess que a amava e pedir-lhe que casasse comigo. Esperara muito tempo por este momento.

Tess ainda não mencionara Laverne nem eu tão pouco, mas estava certo de que ela faria qualquer reparo, antes do findar do dia, sobre o facto de Laverne ter ido ao meu quarto. Sabia, indubitavelmente, que Laverne estivera lá da primeira vez e era bem provável que também tivesse conhecimento da segunda visita. Encontrávamo-nos a cerca de uma hora de distância da cidade e seguíamos devagar pelo vale alpino, quando ela me perguntou se Laverne me agradava. Respondi-lhe que achava Laverne uma pessoa amorosa. Fitando-a, observei que o sorriso de Tess se transformava num esgar nervoso.

- Talvez gostes mais de Laverne do que de mim - comentou, ao mesmo tempo que me deitava um olhar de relance. - É bem possível, não, Rick?

Conservei-me em silêncio, sabendo que ainda restava algo por dizer.

- Laverne confessou-me que gostava de ti - retorquiu Tess, decorridos uns momentos. - Acho-a uma rapariga encantadora, não concordas, Rick? Capaz de tornar qualquer homem feliz. Faz parte da sua natureza querer que seja assim. Não é essa a tua opinião?

Parei imediatamente o carro à beira da estrada. Era o que tencionara fazer, quando chegasse a altura de lhe pedir que casasse comigo.

- Ouve-me bem, Tess - exclamei, muito preocupado. - Acho que me deves uma explicação sobre o que se passa. Por que te referes assim a Laverne? Qualquer pessoa veria que tens um plano em mente. De que se trata?

- O que estás para aí a dizer? - replicou com uma expressão inocente. - Não sei a que te referes.

- Sabes perfeitamente ao que me refiro, Tess. Tu sabes e eu sei que mandaste a Laverne visitar-me na outra noite. Por que estás a tentar atirar-me para os braços da Laverne? Qual o motivo de tudo isto?

- Não te agradaria seres atirado para os braços de uma rapariga tão bonita, especialmente uma que goste de ti? - inquiriu, sem desviar os olhos, ao mesmo tempo que os cantos dos lábios lhe tremiam num esgar nervoso. - Agora que já estão mais familiarizados, não te parece uma boa ideia? Tu próprio afirmaste que ela é uma rapariga muito atraente. - Fez uma pausa significativa de alguns momentos. - Sei que tu e ela passaram uma noite agradável. Pelo menos, ela assim achou.

Os cantos da boca voltaram a estremecer.

- Não respondeste à minha pergunta, Tess. Por que estás a tentar atirar-me para os braços da Laverne?

- É o que te parece?

- Como pareceria a qualquer outra pessoa, a ti inclusive.

- Suponho que achas que me conheces melhor do que eu própria. - Soltou uma risada nervosa. - Todos os escritores são tão presunçosos como tu?

- Responderei às tuas perguntas, depois de teres respondido à que te fiz.

- Se te sentes irritado comigo, Rick, acho que não poderemos conversar inteligentemente sobre o que quer que seja - concluiu, virando-se com firmeza na minha direcção. - Seria uma perda de tempo, se estiveres furioso. Não te parece que devíamos ir andando?

- Acho que tentaste irritar-me. Estás a fazê-lo propositadamente.

- Bom. Ou estás irritado ou não estás.

- A resposta é afirmativa.

- Nesse caso, peço-te que me leves, imediatamente, de volta à cidade.

- Ainda não me sinto disposto a isso.

- Detesto que me obriguem a fazer algo contrariada. Além de que me desagrada a tua atitude e a forma como falas comigo. Peço-te que me leves de volta à cidade.

Ignorei as suas palavras e ofereci-lhe um cigarro. Aceitou-o, sem pronunciar palavra. Sentámo-nos em silêncio, fumando, com nervosismo, durante uns minutos. Continuava a querer pedir-lhe que casasse comigo, mas interrogava-me sobre se conseguiria fazê-lo naquela altura.

- Achas que não tenho motivo para me sentir irritado, depois da forma como me trataste, Tess?

- inquiri com vincada agressividade. - Penso que qualquer pessoa na minha situação teria esse direito. Sabes que tentaste e foste bem sucedida.

Virou-se imediatamente e fitou-me.

- Se não te agrada a forma como te trato, para utilizar as tuas palavras, por que te dás ao trabalho de te preocupares comigo? Seria mais lógico tentares evitar-me.

- Dou-me ao trabalho, para utilizar as tuas palavras, de estar contigo, porque acho que estou apaixonado por ti. É tão simples quanto isso.

- Mesmo se te irrito?

Sentia-me invadido pela raiva numa vaga crescente e tentei dominar-me para não pronunciar palavras, de que sabia vir a arrepender-me mais tarde. Recordei-me de que viera até ali para lhe pedir que casasse comigo e continuava a ser esse o meu desejo. Durante praticamente um mês, vivera com essa esperança e a expectativa inerente, mas interrogava-me, pela primeira vez, sobre se poderíamos ser completamente felizes ao lado um do outro.

- Irrito-te, não é verdade, Rick - perguntou com um sorriso, como se tivesse acabado de fazer uma descoberta interessante.

Todo o seu comportamento e não só as palavras pronunciadas assemelhavam-se a um aguilhão e a uma declaração de guerra.

- Talvez devesse manter-me afastado de ti - repliquei, decorridos uns instantes e olhando em frente. - Talvez devesse ir-me embora e não voltar a ver-te.

- Por que não o fazes - se é esse o teu desejo? - replicou de imediato.

Arrependi-me imediatamente de ter pronunciado a frase. Não percorrera toda aquela distância até Colorado Springs para discutir com Tess, nem tão pouco esperara quatro longos dias e noites para discutir com ela no domingo. Continuava a sentir-me provocado, mas tentei pensar em qualquer coisa para dizer, capaz de eliminar a minha irritação e a sua atitude agressiva.

Seguiu-se um prolongado silêncio entre nós, muito mais prolongado do que o dos anteriores intervalos. Tudo à nossa volta se tornava mais escuro, na sombra projectada pelas elevadas montanhas.

- Acho melhor falar-te sinceramente, Rick - declarou por fim, virando um pouco o rosto de lado para não me fitar directamente. Verifiquei que estava pálida e nervosa. - Sei que gostas de mim e quero que saibas que o sei. Soube-o desde aquela noite, que passámos juntos na praia da Florida. Foi uma noite paradisíaca, Rick. Foi tão bela, que jamais a esquecerei, enquanto viver. Não quero esquecê-la. - Fez uma pausa e deteve-se a observar as luzes trémulas que iam surgindo, uma a uma, nas casas alinhadas na montanha, do outro lado do prado. No frio silêncio das altas montanhas tinha-se a sensação de que ninguém alguma vez se sentiria só no mundo. Em todas as casas da montanha, cada um dos homens e mulheres que as habitavam tinham-se unido, porque estavam conscientes do seu amor e partilhavam-no. - Sim, Rick. Sei que gostas muito de mim. Talvez seja mais do que isso. Talvez seja amor. Deve ser, caso contrário acho que não terias gasto tanto tempo a tentar estar ao meu lado, desde que abandonei a Florida. Fui, porém, obrigada a fugir de ti. Tenho tentado manter-me longe do teu alcance. Esse o motivo por que seria preferível que te contasse agora antes que passe mais tempo - e mais doloroso também. Desejaria que tudo se passasse de uma outra forma. Mas é impossível. - A voz tornara-se-lhe quase um sussurro. - É impossível, porque nunca seria capaz de te amar, Rick. Era isto o que tinha a dizer-te.

- Uma afirmação estranha essa, Tess.

- Sei que é estranha - concordou. - Parece-me estranha, também. Só que tenho de a fazer, porque é essa a verdade.

- Mas não entendo, Tess.

- Não se trata apenas de ti, Rick - prosseguiu apressadamente. - Não consigo amar ninguém - nenhum homem. Aconteceu-me algo. Algo de semelhante a uma pessoa que fica sem um braço ou uma perna num acidente. Deixa de os ter. E não pode substituí-lo depois de tal acontecer, como não pode substituir um braço ou uma perna. Quando se perde, é definitivo. Aconteceu-me há mais de um ano - quase há dois anos, agora. Em Kansas City.

- O que aconteceu aí, Tess?

- Não devia contar-te tudo isto. Trata-se de algo muito pessoal. Mas é a única forma de te explicar por que é que nunca poderei amar-te.

Virou de novo o rosto na minha direcção, fitou-me uns instantes e desviou o olhar para a montanha, do outro lado do vale.

- É-me impossível pensar em algo pior, do que a consciência de ser incapaz de amar alguém. É terrível, Rick. Uma coisa que não se esquece, dia e noite. Acho que é o que me torna tão instável e infeliz, tão só e vagabunda. Tento afastar esse pensamento, ganhando o máximo de dinheiro possível. Para uma mulher - pelo menos no que me diz respeito - é o bem que o dinheiro pode trazer-nos - ajuda-nos a esquecer algo - algo muito mais importante. Amor ou dinheiro - amor ou dinheiro! Uma mulher consegue sempre maneira de conseguir dinheiro, mas nem sempre pode conseguir amor. É essa a razão por que trabalho sempre, onde me dão maiores gorgetas. Porque quanto mais dinheiro tiver, mais fácil me será esquecer o que me falta. Gasto a maior parte com a minha filhinha - a minha querida Lilly - dando-lhe tudo o que posso - mandando-a para um colégio particular - oferecendo-lhe roupas bonitas. Ajuda-me a esquecer o coração despedaçado. Trata-se de algo que impede de recordar um pouco e durante algum tempo - todos os minutos da vida - de como se foi feliz, quando se esteve apaixonada. Ajuda a impedir-nos de perceber - em cada minuto - que não voltaremos a ser felizes porque jamais voltaremos a ser completos. Como pode uma pessoa sentir-se completa sem amor? Talvez um homem consiga mas uma mulher, não - sei que não o conseguirei.

Aguardei, enquanto reflectia em tudo o que ela me dissera.

- Amei somente uma vez na vida - prosseguiu Tess, num tom de voz tenso. - O homem com quem casei há seis anos, o pai da Lilly. Nessa altura, eu tinha dezanove e ele era três anos mais velho. Estávamos profundamente apaixonados um pelo outro. A mãe não queria, porém, que ele se casasse comigo, afirmava que eu não prestava para o filho. De qualquer maneira, casámos. Dois anos depois nasceu a nossa filha - Lilly - e um ano mais tarde a mãe obrigou-o a divorciar-se de mim. Nunca soube se ele queria ou não divorciar-se - não me parece que assim fosse -, mas fê-lo, porque a mãe o obrigou. Apenas sei que não queria deixar o meu marido, porque o amava de todo o coração. Éramos tão felizes juntos. Agora, passaram quase três anos. E o tempo arrancou-me toda a vida do peito. Seria incapaz de amar outra pessoa - ele é o único homem. Amá-lo-ia até morrer, se pudesse tê-lo de volta.

Em silêncio e com as mãos a tremerem-me ligeiramente, ofereci um cigarro a Tess e risquei um fósforo.

- Ouve-se falar bastante de mulheres infelizes - replicou Tess tranquilamente - e, ao que parece, ninguém sabe porquê. Ignoro por que é que as outras o são, mas agora já sabes porque é que uma delas é terrivelmente infeliz.

Manteve-se sentada de punhos cerrados, assemelhando-se a uma criança, que se sentia só e abandonada.

- Os meus pais vivem em Kansas City e tomam-me conta da minha filha, quando ela não está no colégio - continuou - e foi esse o motivo por que viajei, a toda a pressa, a Kansas City, quando eles me enviaram um telegrama a dizer que a Lilly estava doente. Mas agora está bem e daqui a uns anos vou tê-la sempre comigo. Ficarei em qualquer lugar, onde ela possa ir à escola e vê-la-ei, então, todos os dias.

Virou-se repentinamente na minha direcção e tocou-me, por momentos, no braço com os dedos.

- Jamais poderia ser feliz contigo, Rick, não por seres tu, mas porque não poderia ser feliz com ninguém, excepto com ele. Mesmo que casasse contigo, não o faria apaixonada. Isso magoar-te-ia. Sei-o muito bem. Quando duas pessoas se casam, esperam amor, têm direito a ele. Serias infeliz sem ele e eu também por ser a causa da tua infelicidade. É esse o motivo por que quero que te afastes e me esqueças. Tentei fugir-te. E, agora, em Colorado Springs, tentei mesmo que te interessasses pela Laverne - para te impedir de te apaixonares por mim e de me pedires em casamento. Sim, pedi a Laverne que me fizesse um favor, indo ao teu quarto e tentando que a desejasses mais do que a mim. Pedi-lhe que fizesse qualquer coisa - tudo - não me interessava o quê, para que deixasses de me querer. Isso ainda não aconteceu - ignoro o que se passou quando a Laverne te visitou, mas não bastou, obviamente, para te modificar. Esta tarde ias pedir-me para que casasse contigo. Foi por esse motivo que me trouxeste até às montanhas. É esse o motivo por que tentei que te irritasses comigo, para te impedir de desejares casar comigo. Achei que seria melhor.

Fitou-me com um olhar perscrutador, esperando que lhe respondesse.

- Por favor, Rick! Quero que te vás embora e me esqueças. Não conseguirás escrever nem fazer o que quer que seja, enquanto as coisas estiverem neste ponto. Precisas de paz, felicidade e amor e sou incapaz de te dar essas coisas. Se ficasses aqui, apenas serviria para que te sentisses mais infeliz. Peço-te que te vás embora. Encontrarás a felicidade algum dia, algures. Toda a gente encontra, excepto as pessoas como eu. Seria diferente, se conseguisse apaixonar-me por ti. mas tal é impossível. Um dia, assim espero e desejo, talvez o meu marido me queira tanto, que volte para mim, independentemente do que a mãe diga ou faça. Rezo todas as noites para que isso aconteça. E é por essa razão que quero estar livre para ir ter com ele, se alguma vez me for dada a oportunidade. Mesmo que seja casado com outra, desejaria voltar para ele, se estivesse disposto a divorciar-se e a casar novamente comigo. Foi a este ponto que o amei - e continuo a amá-lo. Conseguiria apaixonar-me por ele vezes sem conto, sei que podia, porque o desejo. É esse o motivo por que seria incapaz de amar mais alguém neste mundo.

- Não quero desistir de ti, Tess - protestei. - Esperarei. Esperarei anos a fio por ti. Talvez um dia os teus sentimentos mudem. Talvez mudes e possas, então, amar-me. Esperarei por ti, Tess.

- Não, Rick - retorquiu, num tom decidido, sacudindo a cabeça em negativa. - É impossível. Tal coisa jamais seria possível. Nunca seria assim. Tem de ser o fim.

- O fim... - comecei, sem saber como terminar a frase.

- Sim, Rick. Tem de ser o fim. Sei porque resolvi que será assim.

Passou-se muito tempo, antes que conseguisse pronunciar uma palavra. Há quase um mês que vivera com a esperança de que seria capaz de conquistar o seu amor e convencê-la a casar-se comigo. E, agora, nuns minutos, toda a esperança me abandonara. Tinha a sensação de que haviam arrancado uma parte de mim. Apercebi-me nesses momentos de que nada podia dizer ou fazer capaz de levá-la a mudar de opinião.

- Não é o fim - contrapus, com um sorriso nervoso - é um final infeliz para mim. Quase tão infeliz como o que sucede nos livros, ou fora deles. Nada se passa como Jack Bushmillion planeou.

- Quem? - inquiriu. - Do que estás a falar?

- Do meu agente, Jack Bushmillion. Garantiu-me que tudo isto teria um final feliz, tal como num romance. Foi mesmo ao ponto de planear uma lua-de-mel para nós, do tipo da que se lê numa revista.

- Lamento, Rick - redarguiu com ternura, pousando a mão quente na minha -, mas é inevitável. Julgo que agora compreendes. Tens de perdoar-me.

- Ignoro se conseguirei esquecer-te, Tess. Nem mesmo o quero.

- Há outras mulheres, Rick.

- Não quero outras mulheres. Quero-te a ti.

- Nesse caso, peço-te que te afastes - suplicou premente. - Não fiques nem mais um dia. Falo a sério, Rick. Tens de ir embora e nunca mais me veres. Será o melhor - eu sei!

- Tudo isso são balelas - comentei, infeliz. - Apenas balelas.

- É minha intenção - replicou. - É a melhor maneira de se falar de certas coisas, Rick. - Fitou-me, afectuosamente, com olhos ternos e húmidos de lágrimas. - Surgirá a raiva e o ressentimento, se não te fores embora. Se ficasses ou me seguisses até outro lugar, sentir-te-ias infeliz e eu também. Sempre que nos encontrássemos, serias infeliz ao ver que não estava apaixonada. Não fiques, peço-te.

- Há algo em tudo isto que nunca esquecerei - disse em voz alta para mim próprio. - Quando se está a escrever um romance, costuma encontrar-se uma forma de levar os personagens da história a fazer o que se quer que façam ou o que se acha que devem fazer. Mas na vida real...

Mantive-me silencioso durante mais alguns momentos. Tentava imaginar o que significava para mim não poder estar com Tess depois disto e ter de desistir de tentar conquistar o seu amor. Todas as coisas que tencionara dizer-lhe, quando lhe pedisse que casasse comigo, vogavam agora inutilmente no meu cérebro. Levaria tempo a esquecê-las, se alguma vez o conseguisse. Interroguei-me sobre o que pensaria Connie Westwalker, se estivesse agora aqui. Sabia, porém, o que Connie decerto opinaria. Aconselhar-me-ia a desistir de qualquer ideia de casamento, quando duas pessoas não estavam verdadeiramente apaixonadas. E sabia que Connie tinha razão.

Sabia que Tess também tinha razão. Se não estava apaixonada por mim e sentia que nunca viria a estar, ser-me-ia impossível ficar aqui ou em qualquer outro lugar, onde ela estivesse; não poderia continuar a esperar, dia após dia, que ela mudasse de opinião e se casasse comigo.

- Não sei o que fazer, Tess - retorqui no tom de desespero que se alia ao desvanecer da esperança. - Tenho de assentar algures. Há um mês que me tenho sentido incapaz de trabalhar. Mas se não desejas a minha presença em Colorado Springs, terei de partir.

- Parte, Rick - aconselhou com ternura, pegando-me na mão. - É o melhor. Sei que é o melhor para ambos. Porque se não o fizeres, terei de ser eu a partir, como o fiz de outros lugares até agora. E se fosse eu a afastar-me, em vez de ti, teria receio que me seguisses para onde quer que fosse. E a situação repetir-se-ia vezes a fio. Peço-te, para bem de ambos, que não tentes voltar a encontrar-me depois disto. Desejaria que fosse diferente, mas não é. Tenho de viver comigo e não posso fazê-lo de outra maneira. Recordar-me-ei sempre de ti, Rick. E pensarei que se pudesse amar alguém, me teria apaixonado por ti.

Levou as mãos ao rosto e as lágrimas subiram-lhe aos olhos.

- Tenta entender, por favor, Rick - soluçou com voz entrecortada. - É tão difícil explicar algumas coisas, é tão difícil explicar os nossos sentimentos a outra pessoa. É por isso que tenho tanta dificuldade em te revelar os motivos que me impossibilitam de te amar. Só me resta esperar que compreendas e não me odeies pelo que estou a fazer. Esta é a sensação mais horrível do mundo - ser mulher e querer amar e ser amada e não ser capaz de amar nem ter amor. Ninguém pode amar sem dar amor e eu não consigo! É terrível, porque se sabe que se vai ser infeliz para o resto da vida e nada pode fazer-se para o impedir! Preferia morrer!

 

ABANDONEI a cidade no dia seguinte, tal como prometera a Tess que o faria. Antes de deixar Colorado Springs, não fizera, propositadamente, qualquer tentativa para rever Tess ou Laverne, nem tão pouco lhes dei qualquer pista do lugar, para onde planeava ir. Tinha de me convencer que seria pouco provável voltar a rever Tess, mas não me parecia impossível que Laverne e eu nos encontrássemos, novamente, algures. Por um lado, Laverne afirmara que seria capaz de me descobrir para onde quer que eu fosse. Além de que já conhecera raparigas do tipo de Laverne e, geralmente, por qualquer capricho do destino, talvez uma forte e mútua vontade de uma amizade duradoura nos unia, de vez em quando, ao longo dos anos. Quando voltasse a encontrar-me com Laverne, onde quer que fosse, sabia que me sentiria contente por ela me ter descoberto.

Enquanto esperava pelo avião no aeroporto, enviara um longo telegrama a Jack Bushmillion, explicando-lhe os acontecimentos desde a nossa conversa ao telefone e acrescentando que o meu fracasso em obter um final feliz não se devia, necessariamente, a maus conselhos da sua parte, mas, com muito mais probabilidade, ao meu comportamento atamancado. Garantia-lhe ainda que tencionava instalar-me e trabalhar a sério no novo livro, em Santa Bárbara. Era a minha forma de lhe dar a entender, pelo menos de momento, que não lhe enviaria o tal artigo para a revista sobre uma lua-de-mel excitante. Pedi a Jack que comunicasse a Harvey Farthing que, tal como Harvey me avisara em Sarasota, uma jovem executara o trabalho perfeito de serrar o ramo da árvore para onde eu trepara e que jurara manter-me afastado das árvores em Santa Bárbara, até acabar o romance.

Não era a primeira vez que viajava até Santa Bárbara para planificar e escrever um romance e ansiava, fervorosamente, pelo ambiente calmo e a vida tranquila que sempre encontrara ali, no passado. Os poucos amigos íntimos que tinha em Santa Bárbara e que respeitavam escrupulosamente os meus hábitos de trabalho, raras vezes me visitavam, excepto para uma festa ou jantar de fim-de-semana e costumava, com frequência, evitar ver quem quer que fosse, às vezes durante uma ou duas semanas.

Alugava sempre um bungalow do hotel em Montecito Heights com vista para o Pacífico e tomava disposições para que me entregassem o correio apenas uma vez por semana, no sábado, além de que desligava o telefone. Ao pôr-do-Sol, depois do nevoeiro do dia ter desaparecido, aproximando-me da larga janela com vista para o oceano, contemplava as águas azuis do canal, as velas vermelhas dos escalares e as ilhas cor de púrpura, que se recortavam, ao nível das montanhas, no horizonte distante. Por qualquer motivo, sempre encontrei satisfação e ânimo em Santa Bárbara e sempre que ali voltava para trabalhar num livro, assemelhava-se a um sentimental regresso a casa.

Ao deixar Colorado Springs nessa manhã soalheira de Maio, sentia-me triste porque era a primeira vez num mês que me afastava deliberadamente de Tess Dameron, em vez de partir, a toda a pressa, à sua procura. Ela convencera-me, porém, de que deveria partir e apercebi-me de que ficar ali ou tentar segui-la, nos tornaria, indubitavelmente, amargos e ressentidos e não haveria retorno quanto a essa posição, E agora que tomara a decisão, tornava-se reconfortante saber que ia, finalmente, começar a trabalhar no romance que, no estado de embrião, me fizera sentir cada vez mais vexado e infeliz.

Passei o primeiro dia em Santa Bárbara sem sair uma vez que fosse do bungalow de três divisões antes do crepúsculo. Procedera a uma selecção, leitura e reflexão de todos os apontamentos e esboços gerais que fizera, ocasionalmente, durante os últimos meses, e guardei apenas os que de alguma maneira me interessavam, atirando os restantes para o cesto de papéis. Sabia que na manhã seguinte teria uma noção muito mais exacta da história, que, há alguns meses, assumia contornos no meu pensamento.

Enquanto passeava pelo pátio com aroma a flores, mesmo antes do pôr-do-Sol, avistei Charlotte e Harvey Farthing, que me observavam da ombreira do bungalow ao lado do meu.

Não me surpreendeu nada vê-los, conhecendo Harvey como era o caso na realidade, parecia tão natural a sua presença ali como a dos elevados eucaliptos, que cresciam por detrás do muro do pátio - e fiquei, sem dúvida, extremamente satisfeito. Percebi, de imediato, o que acontecera. Jack Bushmillion falara a Harvey do telegrama que lhe tinha enviado do Colorado Springs e Harvey resolvera logo, e de acordo com a sua personalidade impulsiva, fazer uma das suas rápidas viagens à West Coast. Além de que Charlotte dissera, com toda a probabilidade, que se tratava de uma oportunidade única para ela passar um fim-de-semana na Califórnia. Harvey quisera, naturalmente, que ela o acompanhasse.

De início não se verificou um acerto de mão, nem se pronunciou uma palavra; fitámo-nos apenas numa sincera contemplação da nossa amizade.

Mas pouco depois, Charlotte e Harvey, à semelhança de duas crianças traquinas, esboçaram-me um arremesso de sorriso do outro lado da sebe e correspondi com um sorriso de um canto ao outro da boca. Era de esperar que Harvey soubesse exactamente o que fazer para lhe ser possível estar ali neste momento especial. Tomara disposições com o seu temperamento dinâmico para alugar o bungalow contíguo e, em seguida, na sua qualidade de editor compreensivo e perspicaz, aguardara pacientemente que eu acabasse o trabalho desse dia, antes de me dar a conhecer que ele e Charlotte estavam ali.

Nesse momento, Charlotte acenou-me calorosamente. Apresentava-se, como era seu hábito, vestida com gosto e requinte, dando a sensação de que a sua roupa colorida de meia estação fora desenhada com o mero propósito de a enfeitar num jardim de rosas vermelhas e amarelas, num alto de um monte, ao pôr-do-Sol. Fizera recentemente trinta anos, que mais pareciam vinte e era uma mulher de estatura média com cabelo preto agitado pelo vento e um sorriso caloroso e atraente. Os contornos dos seios e das ancas eram bem modelados e extremamente femininos. Reparei que tinha a pele com um ligeiro bronzeado depois de um dia de exposição ao sol.

- Não consegui resistir a vir até aqui – disse Charlotte, mal me cumprimentou com um beijo na face. - Não são muitas as vezes que tenho oportunidade de atravessar o país inteiro para ver um homem. Guando o Harvey me anunciou, informando que vinha ver-te, quis fazer-lhe companhia. Não te importas, pois não, Rick? Há tanto tempo que não te via e o Harvey disse-me que te aconselhara a ficares longe de Nova Iorque, durante um ano ou até teres acabado um livro, por mais tempo que fosse. - Voltou a beijar-me na face. - Agora, diz-me, por favor, que estás contente com a minha presença aqui!

- Claro que estou contente, Charlotte! - garanti-lhe. - Caso contrário este esquema do Harvey seria imperfeito.

- Queres que conclua que tudo o mais é perfeito, Rick? - inquiriu Harvey, apertando-me calorosamente a mão. - Sabes que não aguento imperfeições na vida.

- Só falta um uísque com soda - retorqui. - Isso tornaria as coisas perfeitas.

- Foste ultrapassado, Rick - redarguiu, num tom alegre. - Está à espera lá dentro. Apressemo-nos a tomar essa bebida. Há uma hora que estamos a observar essa tua ombreira e doem-me os pés. Começava a pensar que irias trabalhar toda a noite. Não me importaria nada que o fizesses, mas antes da manhã as solas dos pés decerto me atraiçoariam.

Entrámos no bungalow, acendemos as luzes e Charlotte preparou bebidas para nós os três. Encomendara, convenientemente, uma bandeja com sanduíches.

- Então, Rick, meu filho da mãe - começou Harvey com uma expressão de agrado no rosto magro e comprido, enquanto se sentava e esticava confortavelmente as pernas. - Este é um dos dias mais felizes da minha vida, Deus nos abençoe. Os meus dias felizes ocorrem em duas notáveis ocasiões. Uma delas é quando te recompões e te instalas para trabalhar num novo livro. A outra é quando o acabas. Parece-me inútil falar-te do que me vejo obrigado a aguentar, dada a natureza da minha profissão e negócio, uma sucessão de dias e noites morosos e infelizes. Uma destas fases horríveis, um longo mês, chegou mesmo agora ao fim, Deus nos abençoe. É adequado e simbólico que o fim se tenha verificado com o pôr-do-Sol dourado sobre o Pacífico azul. Por que é que te metes sempre em grandes confusões quando te encontras no intervalo entre dois livros, Rick, com mil raios? Sei tudo a respeito deste último episódio. Jack Bushmillion contou-me. A jovem, atraente ou não, com quem te envolveste recentemente, foi a responsável por uma das minhas piores fases. Podes achar que estas ligações amorosas periódicas constituem prémios que te são concedidos por seres o que és, mas considero-os castigos. Passei a maior parte do último mês a dar voltas à cabeça e a preocupar-me contigo. Fui incapaz de dormir mais de metade da minha quantidade habitual de horas de sono, não é verdade, Charlotte?

- Oh, Rick, tem sido terrível! - concordou ela com um franzir de sobrolho exagerado e deitando-me um olhar acusador. - Passava a maior parte da noite deitado no chão e a gemer como um cão doente. E eu para ali ficava sozinha, sem ninguém que me aquecesse os pés!

- Recuperarás o perdido em Dezembro, Harvey - retorqui com uma gargalhada. - Decerto te lembras que é quando pomos em ordem o sono do ano.

Charlotte sentou-se ao meu lado no amplo sofá, tapando as pernas com a saia e encostando a cabeça no meu ombro. Suspirou da expectativa.

- Rick - dirigiu-se-me com um fascínio irresistível.

- Como era esta última rapariga, Rick? Não consigo esperar nem mais um segundo para te perguntar tudo a seu respeito. Era atraente? Era bonita? Era inteligente? Tinha uma figura bonita? De que cor era o cabelo? Que idade tinha?

- Sim tudo isso - respondi com uma gargalhada.

Charlotte encostou mais os cabelos negros de encontro ao meu corpo com um movimento insinuante.

- Era sempre meiga, Rick, ou algumas vezes cruel e dura?

- Sim.

- Nem sequer tentas levar-me a sério - protestou, socando-me, ao de leve, no peito com a mão.

- Muito bem, Charlotte - redargui. - Vou tentar falar a sério. Volta lá a fazer as perguntas.

- Tiveste uma ligação com ela, Rick?

- O que pretendes dizer exactamente?

- Sabes muito bem o que quero dizer. Tiveste?

- Num sentido técnico, não. Num sentido isento de técnica, sim.

Apertou-me a mão, num gesto compreensivo.

- Lamento, Rick - comentou.

- Também eu.

- Pobre Rick! - comentou devagar. - Esforças-te tanto e falhas tantas vezes.

Ninguém pronunciou palavra durante algum tempo. Harvey agitou o gelo no copo.

- Nunca aprenderás, pois não, Rick? - declarou Charlotte em seguida, sacudindo a cabeça, tristemente.

- Aprender o quê?

- De que não há futuro nisso... para ti.

- Não há futuro no quê?

Obviamente agradado com a conversa, que se processava entre nós, Harvey inclinou-se para diante e acendeu-nos os cigarros.

- Não há futuro no quê, Charlotte? - insisti.

- Não há futuro nas tuas frenéticas tentativas, quando estás entre dois livros, de encontrar a mulher ideal. Essa criatura não existe, Rick. Acredita que não. Haverá sempre o mesmo fim banal, nunca serás capaz de a encontrar porque ela só existe na tua imaginação. A maior parte dos escritores sofre dessa mesma doença ocupacional e tu não foges à regra. Criaste o hábito de tornares as mulheres da ficção tão atraentes e desejáveis - quando não as tornas abomináveis e cruéis que sempre te sentirás desapontado em relação a elas, na vida real. Esse o motivo por que acabarás sempre frustrado e descontente.

- Mas não me senti descontente com a Tess - foi exactamente o contrário.

- É assim que te parece, Rick, porque é no que desejas acreditar. Escolheste-a entre não sei quantos milhões de mulheres no mundo e dedicaste-te depois a provar a ti próprio que podia ser tão ideal na realidade, como a tinhas imaginado na ficção. Bom, para a pobre rapariga era impossível desmembrar-se e unificar-se de uma forma que se comparasse, ainda que de longe, a uma das tuas avassaladoras personagens femininas. Essa rapariga, à semelhança de todas as jovens normais, vive no mundo da realidade. Tu vives em dois mundos - um mundo em part-time da realidade e um mundo em part-time da imaginação. Torna-se impossível uni-los. Não entendes, agora? Esse o motivo que a obrigou a pensar numa boa desculpa para desistir de ti e te afastar. Ignoro qual foi a desculpa, mas houve uma. Qualquer mulher com um pouco de honestidade tomaria essa atitude.

- Presumo que queres dizer que não sabia como fazer amor com ela, na vida real.

- As relações amorosas mudaram, Rick, e tu não te apercebes. É essa uma parte do teu problema. Deixaste-te absorver tanto pelo teu trabalho ao escreveres sobre um mundo fictício, que ignoras as mudanças que se operaram neste nosso mundo real. É pena que muitos homens se deixem absorver a tal ponto pelos negócios e carreiras profissionais, que ignorem o que se passa aqui e agora - no assim chamado lado romântico da vida. As mulheres sabem, mas o mesmo apenas pode afirmar-se em relação a poucos homens. Devido às exigências da natureza de que alguém o faça bem, uma rapariga tornou-se pela necessidade uma amante muito superior ao homem. Sei do que estou a falar, Rick. Podes dedicar-te a uma investigação da próxima vez que te encontrares entre dois livros e descobrires à tua custa, quão pouco evoluíste.

- Não tenho, entretanto, motivo para me sentir feliz, se o que afirmaste é a verdade.

Deu-me uma palmadinha de conforto na mão.

- Pobre Rick! - continuou, em seguida, num tom abafado. - A tua felicidade é tanto maior, quanto mais infeliz te sentes. E serás sempre infeliz, Rick. E isso porque estás tão habituado a fazer com que as personagens fictícias levem as suas vidas segundo os teus desejos e vontade, que te é impossível passares ao concreto e descobrires o que não existe na vida real. As pessoas e coisas normais, medianas, vulgares e do quotidiano - ou até mesmo as pessoas e coisas extraordinárias - jamais podem conferir-te a felicidade e satisfação, que retiras da ficção. Esse o preço que os escritores têm de pagar por o serem.

Harvey esboçou um aceno de concordância e serviu-me mais um uísque com soda, num gesto grave.

- É a primeira vez que me é dado saber que pertenço aos defeituosos - retorqui. - E a situação piora pelo facto de vocês falarem do assunto, como se o facto vos fizesse felizes. - Fitei Harvey, sem desviar o olhar. - Acho que o pequeno e inteligente discurso de Charlotte foi cuidadosamente preparado e ensaiado. E acho que sei também qual o espírito mestre, que ameaçou espancá-la se não se saísse bem.

- Não é assim tão mau, Rick - declarou Charlotte num tom jovial, beijando-me na face. - Talvez tenha exagerado a minha conversa filosófica, de coração nas mãos.

- Contrariamente às tuas suspeitas - interferiu Harvey finalmente - não ajudei a preparar e a ensinar a Charlotte e tão pouco a ameacei de que lhe espancava o traseiro. Concordo, todavia, com tudo o que ela te disse. Quando estás a escrever um livro, vives num mundo diferente. Quando acabas uma novela e sais para apanhar ar, após o que tentas integrar-te na vida como as outras pessoas, sentes-te perdido e destreinado. Consequentemente e durante vários meses, ficas triste e infeliz. É nessa altura que tentas, desesperadamente, recuperar a vida que perdeste durante um ano ou dois. Esforças-te vigorosa e habilidosamente, Rick, mas nada consegues de válido, porque ela não foi feita à tua medida - não é o teu género de vida. É nessa altura que ficas enredado nas malhas estendidas por jovens e bonitas mulheres, munidas de serras e garrafas de rolhas pouco apertadas. E inevitavelmente ou a franguinha corta o mal pela raiz ou tu abres a garrafa. Ou as duas coisas. Quando acordas com um baque e um alto na cabeça e dizes a ti próprio que estás farto, apressas-te a escrever um novo livro, à semelhança da toupeira que regressa ao buraco. Assisti a essa cena vezes sem conta desde que te conheço e é isso o que o futuro te reserva. O modelo é sempre o mesmo. Esse o motivo por que és o escritor que és e, na qualidade de editor, sinto-me orgulhoso disso.

- Não é uma conjectura nada agradável em que meditar - argui, infeliz. - É algo de muito triste.

- Claro que não é agradável, até começares a escrever um novo livro. Então sublimas-te e todo o mundo realista à tua volta transforma-se num outro abstracto. Não pagas as contas, não vais às reuniões de amigos, não cortas o cabelo. Nada te interessa à excepção desse livro. Se tivesses uma mulher submissa, espancá-la-ias. Se tivesses uma namorada fogosa, abandoná-la-ias. Se tivesses uma velha e fiel amante, pô-la-ias a andar. É a sublimação que te dá felicidade. Recusas alguém ou qualquer coisa que interfira com a tua escrita. As mulheres com ou sem serras deixam de te atrair. As garrafas, rolhadas ou desrolhadas, não te interessam. Situas-te naquele reino distante, onde os escritores se deixam embalar num leito de sublimação e escreve sem parar a seu contento.

Harvey calou-se e fitou-me atentamente por instantes.

- É esse o motivo por que Charlotte e eu partiremos amanhã cedo. Sei quando chega a altura de te libertar o caminho. Já não estaremos por perto, quando acordares de manhã.

- Pela minha parte, podem partir já - redargui num tom brusco. - Até preferia.

Harvey endireitou-se no assento, com um brilho nos olhos.

- É essa a ideia, Rick! - exclamou Harvey, num tom mais agudo de excitação. Bateu com o punho cerrado na palma da mão. - É o que tenho estado à espera de ouvir, Deus nos abençoe!

Charlotte sorriu-me, estendeu-me uma sanduíche de atum e beijou-me na face.

- Lamento que esta tua última mulher não te tivesse ajudado mais - ou o que quer que tenha feito ou não, em nada contribuísse para te agradar - observou, terna. - Mas na próxima vez que estiveres entre dois livros, lembra-te desta minha conversa sobre a forma de fazer amor e talvez tudo corra de uma outra forma. Tens isso a que te agarrar, Rick.

- Vocês parecem muito felizes com a minha infelicidade ou o que quer que me desgoste - redargui. - Parece-me uma atitude egoísta.

- Sinto-me feliz porque o interlúdio com essa tal lá como se chamava acabou e desejas voltar de novo ao trabalho - arguiu Harvey, num tom sério. - É o indício de que estarás lúcido e a salvo até um novo intervalo entre livros. Não poderia considerar-me um bom editor, se não me interessasse pelo teu bem estar e agora posso regressar a Nova Iorque, com a certeza de que tudo corre bem. Desnecessário será, porém, acrescentar que escreverei uma nota pessoal com a data de um ano a partir de agora. Servirá para me lembrar que terei de me preparar para o próximo episódio entre livros. E tal significa, além disso, que teremos um novo romance histórico por Roderick Sutter a publicar, daqui a um ano e quatro meses. Vou programá-lo para liderar a nossa tabela de Outono do próximo ano.

Continuei sentado sem pronunciar palavra, enquanto Harvey aproximava a cadeira. Vivia um daqueles momentos em que não sabia se havia de me sentir mais irritado do que agradecido pelas coisas que me dissera e a sua forma de as dizer.

Tinha havido alturas em que sentira vontade de dar um salto do assento e deitá-lo ao chão com um soco; outras, tinha vontade de lhe pousar as mãos nos ombros e garantir-lhe que ele era o mais sincero e compreensivo amigo, que me restava no mundo. No presente, não fiz nenhuma dessas coisas.

- Rick - pronunciou Harvey, ao mesmo tempo que uma expressão alegre se espalhava pelo seu rosto magro e comprido: - Estamos aqui sentados, Rick, num lugar que, desde há muito, representa um país de magia. Digamos há cem anos. Há cem anos que a região, entre estas elevadas montanhas cobertas de nevoeiro e este oceano azul, se mantém uma das regiões mais românticas do mundo. Ao longo desta costa pejada de flores de hoje, consegues distinguir vestígios da vida colorida e excitante, que aqui existiu há cem anos. Existiram vagas de aventureiros, exploradores, vendedores ambulantes, bandidos, ladrões, canalhas, idealistas, benfeitores, oportunistas, homens diabólicos e outros de fé religiosa, homens imbuídos de um espírito pioneiro e, obviamente, a percentagem habitual de germes de estirpe feminina. Conflitos excitantes, perigosos, e rocambolescos ocorreram neste lugar ao ritmo dos ponteiros do relógio, dia e noite, quando os bons tentaram dominar os maus e vice-versa. Houve uma época em que os ladrões roubaram o honesto agricultor, outras em que canalhas despojaram viúvas e órfãos das terras e bens, que lhes pertenciam, em que os pregadores condenaram os seus rebanhos de pecadores a chamas eternas, em que a boa rapariga tentou reabilitar o homem mau e em que a rapariga má lançou o isco ao homem bom, capaz de o levar à ruína. Os romances excitantes nascem deste tipo de conflitos, sobretudo quando os personagens vestem as roupagens dessa era de há cem anos - e ao longo desta costa plena de flores dispões de todo este cenário exótico e arrebatador, capaz de impregnar o teu romance com o latejar da vida. Regista a grandeza dessa era passada, Rick. Passa à história todas essas centenas de bravos pioneiros e canalhas sem escrúpulos, que atravessaram o continente em carroças desengonçadas, pelo calor abrasante do deserto, a fim de criarem este cenário de inspiração, capaz de permitir que escrevesses um romance histórico de arrepiar a espinha. Não os desiludas, depois de tudo o que fizeram por ti, Rick. Deus nos abençoe pelo memorial tão adequado à humanidade que irás criar!

 

 

                                                                  Erskine Caldwell

 

 

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