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Atravessando uma fase de intenso empenho nos estudos, Faber Sales ganha uma folga que tem a generosidade de cair na semana natalina. Saiu de Recife para São Paulo quando fez dezoito, já se passaram três anos sem rever os pais, por isso não hesita em agarrar esta chance. Quarto velho, roupas adolescentes mofadas, e uma vizinha nova lhe rasgam o fôlego após sua chegada. A vizinha se chama Vênus, um ano mais nova, mil anos mais animada. Faber descalça qualquer possibilidade de se apaixonar.
Mas responda em silêncio: o coração é obediente? Ele precisa tomar cuidado, porque esta garota-planeta possui cabelos flamejantes e uma estranha constelação de causar arrepios. Essa é uma história de pinturas corporais, marés de indecisões, sentimentos desbotados e estrelas cadentes.
QUINTA-FEIRA, 19 DE DEZEMBRO
Os dígitos vermelhos do rádio-relógio brilham no escuro quando noto que já se passam das dez da manhã. De súbito, dou um salto, depois volto a me embrenhar nos cobertores,
relaxando. Meus olhos fraquejam, as pálpebras lentas percorrem o teto de gesso pálido e mofento. Não tão distante, na verdade com poucos centímetros da janela de
meu apartamento alugado, a cidade ruge com carros, sirenes de ambulâncias e policiais, furadeiras garimpando o solo de concreto em alguma fábrica, aviões latindo
e correndo no céu. O ar-condicionado condensa a atmosfera do quarto, e encolho meus pés para se camuflarem também. Foi uma deleitosa noite e manhã de sono. Raramente
acordo tão tarde. Por enquanto não preciso me importar com horários, estou numa folga de duas semanas.
Meu corpo pede liberdade. Uma liberdade que se esconde há tempos. Me chamo Faber Sales, tenho vinte anos. Faz três anos que ganhei a bolsa para cursar engenharia
aeroespacial na Universidade Delta em Santana - SP, e ainda estou aproveitando esse prêmio. Recebo uma grana boa para estudar, mas tenho de me empenhar muito. Sempre
tive o sonho de ser astronauta, e percebi que me afastar de onde nasci, Recife, era o único meio de voar até sua realização. Principalmente porque nos últimos anos
melhoraram as chances de ensino nessa área.
Terminando dois estágios por agora, ganhei uma espécie de folga, duas semanas, o final do ano completo. Para mim, é ótimo estar livre das aulas. Dos projetos, de
trabalhos que quase morri de cansaço tentando concluir. Planadores e protótipos de aeronaves costumam rodopiar por minha mente de tanto que estudo suas estruturas.
Quando durmo, não fico contando carneirinhos que pulam a cerca, surgem foguetes que disparam para o alto e navegam pelo céu. Se há pesadelos, é porque os foguetes
explodem no meio do voo. Um erro de cálculo. Um susto. Um despertar suado e assombrado na calada da noite. Seria melhor contar carneirinhos mesmo.
Não há tantos amigos por perto, minha vida social é tão silenciosa quanto o som do espaço. Quando cheguei em São Paulo, primeiro fiquei numa república com outras
pessoas, depois aluguei um pequeno - encolhido mesmo - apartamento, é o que a renda está sustentando por enquanto. Ando de metrô como muitos outros estudantes. Fico
pelado em casa quando chego cansado. Bom, surgem pensamentos adolescentes aqui e ali, ainda é um período de... crescimento psicológico, penso.
Não consegui mais trabalho depois de passar por um CallCenter, onde oferecia empréstimos; era desgastante e não levei um mês para sair dali. Meus pais depositam
um valor considerável na minha conta bancária quando a situação aperta, e nisso aprendi a economizar, para não dar gastos a eles. Mesmo que eles vivam bem, administrando
de longe três panificadoras. Mas agora, com uma quantia segura acumulada na minha conta, eles não precisam se preocupar comigo aqui. Só tenho que estudar, me empenhar
mesmo. Mesmo e mesmo. Está bom, não é? Penso que sim. Penso que não. Há tempos que traz comodidade, outros, desgaste físico e emocional. É bem inconstante. É a vida.
Se eu namoro? Não. Namoro é algo que consta em meu passado. E é estranho isso, o que estudo e como vivo sentimentalmente. Mal consigo administrar minha própria vida
pessoal. Tento ao menos não espelhar isso nos estudos.
Há um amigo de infância que tenta salvar minhas férias, as breves folgas, embora eu tenha ignorado a todos, e ele esteja incluso nessa massa de renegados. Ele se
mantém firme, um dos que ainda restou quando os quilômetros das cidades e o tempo afastaram. Desde que tive de ir embora de Recife. Seu nome é Pedro. Pelo menos,
acho que ainda é um amigo. Meus pais moram próximos dele. Nos falamos por celular sempre que possível, ou trocamos mensagens pelo Facebook.
- Não quer passar o Natal aqui? Galera geral morrendo de saudade de você, cara!
Recebo sua mensagem quando fico online. Ele quase que sempre está conectado. Imagino que sua faculdade de turismo local lhe dê bastante espaço vago. Todos os dias.
Não que eu me importe com isso. Na verdade, gostaria de um fiapo do tempo dele. Talvez isso seja errado de se pensar. Ter inveja do tempo alheio.
- Vou ter uma chance por agora, aproveitarei. Irão abusar da minha presença - envio isso, tento ser direto, não usar de tantas gírias como antes. Mas quase não aguento
o fardo desse meu egocentrismo idiota.
- Faz isso! E ninguém aqui vai abusar de nada.
Acesso o perfil dele para bisbilhotar suas coisas. Tem suas fotos com muitos amigos marcados. A que ele usa como avatar mostra-se usando óculos rayban preto, sua
pele mais amarelada que o comum por ter passado por um filtro de edição. Ultimamente esses aplicativos de editar fotos têm tornado-se uma febre. Pedro faz parte
dessa massa de contaminados. Seu cabelo curto, crespo, aparenta ter a cor azulada na foto, sendo que seria preto. Os pixels parecem distorcidos em algumas partes,
como em seu nariz onduloso, e pelas maçãs do rosto limpas, onde deveriam aparecer suas típicas espinhas que se revelam em outras fotos. Eu adoraria usar esses aplicativos
também.
Depois de alguns minutos sem respondê-lo, por não encontrar mais o que dizer, ele torna a mandar outra:
- Quando vai chegar? ?
- Provável que amanhã pela tarde.
- Uau! Avião, hein?
- Isso. Não estou a fim de passar um dia inteiro dentro de um ônibus... - após enviar isso, relembro que, para um estudante de engenharia aeroespacial, só peguei
um avião por uma única vez na vida, quando sai de casa.
- É, sei como é. Um saco.
- Um forno.
Organizo algumas pastas sobre minha mesa e checo o que ainda tenho de concluir dos estudos. Percebo que já terminei tudo, o que dá para suportar duas semanas sem
nada mais a fazer além de relaxar.
- Vai querer fazer surpresa pra todos? Porque estou agora mesmo te marcando num status com uma porção de gente...
Irrito-me com sua última mensagem. Aquela mania que as pessoas têm de querer tornar cada passo seu, público. Ou criar inveja nos que não acham tempo de fabricar
belos finais de semana em suas vidas, pois estão afogados em suas obrigações. Sei como é ficar enquadrado por horas. Faço isso todos os dias. Sou um atleta de minutos
atrasados. Salto almoços para adiantar tarefas. Não quero que me marquem num status assim.
Entendo também que preciso melhorar meu temperamento com urgência, que essas irritações não ajudam em nada. Que tenho me tornado um chato. Talvez Pedro pareça mais
animado porque marque status virtuais com sua turma. Porque é onde a grande massa está concentrada, e realmente as pessoas comparecem. Porque está mesmo feliz.
Era o que eu deveria estar fazendo, procurando ser feliz.
- Melhor não... meus pais já sabem. Não farei tantas visitas assim, então, vamos deixar isso no silencioso.
- A gente se vê mais tarde - recebo. - Terá novos vizinhos esquisitos, mas aposto que vai gostar de como está o lugar. A praia está limpa e criaram um calçadão depois
da avenida, depois de arborizarem mais a área. Muita gente bonita se encontra por ali à noite, você vai ver.
- Aposto que sim. ?
Me perco imaginando as praias de Recife, as próximas e longínquas, nos portos, píeres, embarcações naufragadas que por vezes aparecem nas praias - às vezes chegam
até mesmo baleias encalhadas, gerando uma comoção instantânea, onde todos os banhistas se agrupam para rebocá-la de volta ao mar num ato esperançoso.
E como não tenho mais assunto com Pedro, pois redes sociais rasgam minha paciência, desejo-lhe um bom dia e me desconecto do bate-papo. Fecho o notebook, abro meus
braços por trás da nuca e me jogo na cama. Fico ali quieto, olhando meu teto branco iluminado fracamente pelas frestas que vem da janela de vidro, e chegam rostos
da minha adolescência num relance. Locomovem-se ao meu redor como um caleidoscópio. Não sobraram tantos amigos assim, como Pedro tenta afirmar. Ele apenas quis ser
positivo com a situação. Ele próprio já me parece um tanto desconhecido.
Preciso de mudanças.
Os lampejos de memórias me atormentam, expugnam minha calmaria. Rostos de várias garotas que já namorei, que me iludiram, algumas que desejei e não tive chance,
outras que me queriam e eu não dei qualquer sinal de intenções maiores que amizade. Já fui tão pretensioso que até me espanto com o passado. Decido, depois de muito
pensar, fazer uma coisa totalmente adolescente: me masturbar baixar alguns jogos online pro meu velho e querido Playstation II.
As responsabilidades moldaram um jovem-adulto, com a tensão nos ombros me deixando corcunda - não realmente corcunda, mas pesado de obrigações. Minhas roupas formais
estampam esta nova fase. Tem temporadas que me sinto deslocado, e esta é uma delas. Queria novamente ter momentos de correr livremente pela praia, suar até a camisa
ensopar, enterrar os pés na areia fofa e depois dar um abraço no mar. Não me sobra tanto tempo para administrar comigo mesmo, e essa cidade paulistana não tem destes
atrativos. E isso me coloca numa fase estranha, como uma revolução querendo minar do meu interior. Uma Revolução das Roupas, é como costumo nomear. Retiro todas
as peças e ando pelado pela casa. É a sensação mais livre que consigo ter nesses dias, e aproveito. Parece esquisito, indecente, errado? Quero falar só a verdade.
É isso que sinto.
Depois que meus olhos lacrimejam de ficar próximo do televisor por muito tempo, e os jogos estarem torrando minha paciência, vou à cozinha e furto da minha pequena
geladeira alguns frutos. A pequena mesa de mármore branco é colada na parede da cozinha, próxima o bastante da pia para respingar água por cima quando ligo a torneira.
Não entendo nada de decoração de casa, por isso as tinturas das paredes variam. Por enquanto, atenuei tudo em preto, prateado e branco, não exatamente como xadrez.
Por exemplo: a geladeira é prateada e preta, a cafeteira, o microondas e o fogão seguem essa tonalidade. O sofá da sala tem uma coberta cinzenta, o rack é de mogno
escuro, sustentando uma tevê bordada em tom prata. Minha mãe com toda certeza faria uma Revolução das Cores caso aparecesse por aqui, mas, como não recebo visitas,
pouco me importa os modelos de decoração atuais. É um abrigo.
Só me interessa o conforto, e este apartamento é o grande refúgio, apesar de tão pequeno. Apesar do barulho que o metrô faz ao passar com cerca de dez metros da
única janela na sala. Apesar de o pôr do sol ser pouco degustável. E das manhãs de inverno fazerem as paredes racharem a tintura pela umidade, tornando tudo um grande
refrigerador. Tem também aquele vizinho bêbado que ouve músicas bregas na maior altura em finais de semana. E ainda há o porteiro fumante, que adora apreciar seu
cigarro abaixo da janela do meu quarto, fazendo aquela fumaça subir e deixar o mundo inteiro tossindo. Mesmo com tudo de esquisito, nesse lugar cabem minhas ansiedades
e sonhos.
Debruço-me no puff da sala e começo a divagar. Imagino que estou precisando de uma companhia, e logo esvaeço essa ideia. Devo parar com certos pensamentos errantes.
Como cuidarei de um relacionamento, se quase não tenho folga? Se neste lugar não há quem me pareça confiável? Se o frio, e o céu acinzentado me enfadam tanto, a
ponto de eliminar minha vontade de sair e conhecer mais pessoas? Não posso tirar a tranquilidade do meu coração. Mesmo que ele pareça resfriado. Vitamina C deve
resolver. Se apaixonar é muito arriscado. E, pelo que algumas poucas garotas já me ensinaram, dói.
Retorno ao videogame outra vez, até que perco a consciência depois de exterminar monstros por grande parte da noite. Quando acordo, o aparelho está ligado e estou
no chão, com um pé no sofá. E me permito divagar sobre o que sonhei de torto e embaçado, até uma pergunta saltar: sabe aquela primeira impressão que se tem de uma
pessoa? Eu costumo estragá-la quase sempre. Mas tenho moderado. Embora alguns pensamentos poluídos me assaltem - e quem nunca os teve? O rádio-relógio me relembra
as tarefas.
Mar, seu tempestivo de nostalgia, aqui vou eu.
? CONSTRANGIMENTOS ?
SEXTA-FEIRA, 20 DE DEZEMBRO
Faço o check-in no aeroporto de Guarulhos quando já são 11h32min. Passei por tantas portas giratórias que meus olhos ainda estão rodopiando. Com mais dez minutos,
entro no avião com destino a Recife.
Fitando a janela pelo seu interior, percebo que o avião começa a se locomover. No momento do arranque, que as turbinas recebem sua estimada função, meu cérebro meio
que se condensa. Ninguém nunca revela que acontece isso num voo, mas é verdade: os testículos sentem o maior desconforto, como se estivessem querendo voltar para
o solo, tem náuseas. Acredito que seja a parte mais tensa. Acredito que todo cara sinta isso não apenas se ele tiver testículos sensíveis.
Chego ao Aeroporto Internacional de Recife às 15h24min. Pego um ônibus urbano para chegar ao meu bairro após reencontrar minha bagagem, uma simples mala cinzenta
de viagem com rodinhas que tive imensa dificuldade de localizar - acho que ela passou umas oitenta vezes pelo balcão giratório.
Começo a suar enquanto caminho a pé, me aproximando da casa de meus pais. Um lugar simples e belo da zona sul, respeitosamente chamado Maré, próximo do bairro Boa
Viagem - o mais nobre da cidade de Recife. O vento marítimo é contagiante até aqui. A maresia corrói minhas lembranças. As ruas são as mesmas, não há tantas mudanças,
além das que recebem nesta época do ano.
Passeio pelas calçadas, reconhecendo algumas residências. A da esquina mora uma cabeleireira. Os muros são altos, com azulejos brancos e azuis fazendo desenhos rítmicos.
As três seguintes possuem um muro de madeira na altura do meu ombro, pintadas de cores cinzentas. Depois delas tem uma casa sem muro algum, um alinhamento de flores
demarca a calçada, da grama, como sendo as únicas barreiras ali. Duas laranjeiras se erguem no meio de uma pequena trilha feita de pedras, levando até a casa com
varanda. Ainda não é o meu destinatário, mas eu paro ali ao ver uma cena peculiar. Tem uma garota que...
Zumm!
O patinho de borracha chega raspando pela minha nuca, e a garota de cabelos revoltosamente rubros está tendo uma espécie de discussão com um pássaro de penas verdes.
Sem querer arremessou aquele objeto, que atravessou a rua e quicou na calçada oposta.
- Ei, parece que perdeu alguma coisa - chamo-a de longe, já com o brinquedo balançando alto nas mãos. A garota solta seu papagaio na varanda, ele rapidamente adentra
sua casa, grasnando, e só então ela corre até meu encontro.
- Não o perdi, estava, estava, eu estava ensinando a voar - sua voz é apressada, e me surpreendo por não ter o sotaque carregado local, até parece meu modo de falar.
É como se os três anos no sudeste tivessem modificado minhas cordas vocais, notei isso com as ligações para meus pais nos últimos meses. Então, consigo ouvir a distinção
do timbre dela também.
As mechas rubras da garota pululam ao redor de seu crânio, parecendo estarem sobre um efeito elétrico, ela arfa se recuperando da correria, e no final da voz tem
uma espécie de suspirar, como se quisesse falar mais. Usa uma saia de babados rendada e branca, com uma blusa de cetim azul. Uma pequena tiara de flores está coroando-a.
- Bom, ele não deve ter aprendido muita coisa - repasso-lhe o patinho, me ocupando em seus traços mais do que a educação permite. Ela esboça um olhar tímido, não
ultrapassa seu limite de rosas, não o pega de minhas mãos, não mexe um passo, vira uma estátua de poucos instantes. Começo a achar que está com medo de mim.
- Segura - arremesso-lhe, e só agora ela se mexe , as palmas recebem seu pato de borracha. - É isso aí. Assim ele vai sentir segurança.
Ela o lança de volta, me surpreendendo, mas também não o deixo cair. Com uma mão, endireita sua tiara. Minha mala mantém-se estacionada ao lado de meu tornozelo.
- Estava ensinando meu papagaio a voar - se corrige.
- Se continuar assim, este aqui aprenderá primeiro - digo isso após ela recebê-lo de volta. Com o seguinte silêncio, faço a pergunta que primeiro me veio à mente:
- Qual seu nome?
- Ensine-o- atira-o novamente, e dessa vez corre de volta para sua casa, ignorando a pergunta, trancando a porta atrás de si.
Fico com o patinho de borracha amarelo nas mãos quando me aproximo da casa seguinte, o meu ponto final. Entendo que tenho agora uma vizinha que cuida de um papagaio,
ensina patinhos de borracha a voar e acha que sou um turista. Bom, é como se eu fosse mesmo um turista, tenho uns dias para aproveitar. Consigo sustentar um sorriso
enferrujado ao dar os passos seguintes.
Na frente da minha antiga casa existe um jardim pequeno, com orquídeas e tulipas sorrindo por pétalas, um muro baixo pontilhado de pilares brancos e rachados, cercando
uma residência de dois andares, onde várias mini lâmpadas natalinas coloridas fazem um emaranhado pelas paredes. As quatro velhas oliveiras formam uma fila de dois
pares em direção à porta de entrada. Estanco perto do pequeno portão de madeira, onde ao seu lado encontra-se um pequeno botão verde acima de uma estaca. A velha
campainha da família Sales.
Num vislumbre pelo restante da rua, noto que os vizinhos já apinharam suas casas com os mesmos enfeites. O Natal bem próximo. Dá até pra sentir o gosto de panetone
rondando no ar.
Não preciso tocar a campainha, eles já me avistaram de longe e se achegam para me receber, ansiosos. Um casal bem deslocado. Minha mãe usa um vestido florido, um
chapéu de praia - embora já esteja anoitecendo - que encobre seus curtos tufos de cabelo branco. O olhar continua o mesmo, limpo e sereno. Meu pai tem um ar mais
rabugento, careca, calça azul e uma camisa de listras verdes o recobrem. Algumas cicatrizes por seu rosto demarcam certos momentos ruins de seu passado, onde tento
ignorar essas partes na observação. Para mim, parecem ter envelhecido mais de dez anos.
Eles fazem suas diferenças combinarem com o que sentem um pelo outro, desse modo não se enjoam. É o que sempre refleti.
- Parece que andou se alimentando muito mal - minha mãe nota isso de primeira, chegando e já tentando apalpar meu abdômen. - Saiu daqui bem nutrido. Olha isso, Fausto.
Não está?
- Deixe-o chegar primeiro, mulher - meu pai se aproxima de mim e tapeia meu braço. Sorrio brandamente.
Enquanto falamos, vamos caminhando até a casa, adentrando lentamente por uma porta amadeirada de contornos envidraçados, e vou assimilando que o lugar sofreu reformas.
Parece uma catedral pela sala inicial ampliada. Só que os objetos de decoração são sutis, de cores calmas. Têm luminárias e lustres quase flutuando por corredores,
lâmpadas modernas pelas paredes, até mesmo algumas no piso. Tapetes abraçam o chão em sua maior parte. Os móveis são de mogno, as janelas ganharam tamanho, e revestimento
por dentro, com cortinas largas e sedosas, escadas ganharam novos e polidos corrimões. As paredes, de cores concentradas num branco esmaltado, empenham-se em segurar
quadros de flores dentro de jarros, pinturas de paisagens. Os porta-retratos digitais estão espalhados por mini mesas e estantes, revelando minhas fotos infantis,
adolescentes, de meus pais juntos, e até mesmo alguns parentes.
É bom revê-los. Bom mesmo. Liberta toda a nostalgia. Traz mais vivacidade do que tenho provado. Vontade de ser irresponsável, e correr pelas ruas. Pelado de medos.
Minha mãe preparou aquela comida que só mesmo as mães sabem fazer. Meu pai quer detalhes de como estão indo meus estudos. Tento bombardeá-los com toda a informação
que consigo obter, mas não são muitas. Percebo que meus dias foram maçante, não recheados de aventuras.
- E quando veremos uma nora? - é ela quem quer saber. Sempre aquelas mesmas perguntas.
- Amélia, já quer esmagar a saudade do garoto? Dê um pouco de espaço pra ele, mulher faladeira!
- Um garoto muito lindo, Fausto. Tem mais é que...
- Se divertir, não? - meu pai retruca outra vez.
- Deixe ela falar o que quiser - lhe corto, dando atenção para minha mãe.
Amélia Sales afaga meu rosto, e fica ali, me encarando e abraçando depois de trocarmos mais memórias. Meu pai não suportou ouvir suas perguntas e foi preparar um
café na cozinha. Troco com ela as experiências dos dois últimos anos de ausência. Percebo que eles viveram mais coisas emocionantes do que eu, neste lugar pacato.
Isso de certo modo me deprime.
Chego ao meu quarto e a nostalgia me abraça. Ele não foi modificado. A porta branca mantém a pichação em vermelho com as palavras "Não Incomode". Adentro e fecho-a.
Vejo que tudo ali dentro parece de uma Era ancestral. Ainda há pôsteres de garotas peitudas dentro das portas do guarda-roupa.
Despejo minhas roupas na cama, e checo se as revistas Playboy que guardava num buraco ao lado do colchão ainda estão escondidas. E continuam ali, corroídas pelo
tempo. Meu quarto não tem um fisgo de poeira, minha mãe tem conservado ele limpo. Santa Mãe.
Arqueio as cortinas e abro uma das janelas de madeira. A tarde já quer chegar ao fim, o sol está me dando seus últimos acenos. O muro que delimita a casa vizinha
é de madeira também, e baixo nessa parte, com um minúsculo salto consigo ultrapassá-lo. A grama do outro lado se encontra com a nossa, são da mesma cor, nada daquela
velha história sobre a grama do vizinho ser mais verde.
Noto que a dita casa vizinha tem novos moradores, ao ver um corpo estranho se locomovendo através de uma janela, uma cabeça que mais parece um grande espanador de
plumas vermelhas. Antes, até onde me lembro, morava ali uma família gentil, um casal comum, com três filhas recém nascidas, trigêmeas. Agora tem a garota do patinho
de borracha.
Volto ao guarda-roupa e abro uma das portas em que há um grande espelho, na medida do meu tronco. Tenho que me abaixar um pouco para ver meu rosto.
Barba bem feita como sempre, corpo alto e esguio. Tiro o blazer preto. Um peitoral sedentário e comum, com pelos quase invisíveis. Meu cabelo está bem passado no
gel, médio e liso, há duas grandes sobrancelhas querendo se encontrar, por cima de olhos confrontadores de pupilas negras e profundas.
Já fiz muitas garotas ficarem excitadas se aproximarem de mim apenas com uma jogada de olhar, mas noto que atualmente este dom me abandonou. Já me relacionei com
tantas, e hoje estou só.
Destino legal. Só que não.
Para onde foi todo aquele magnetismo de antes? As obrigações, a rotina, criaram uma carapaça de tédio aparentemente impenetrável. Um ser chato.
Faço o último ato da revolta: retiro o restante das minhas peças. Deixo apenas as meias. A calça de malha e o sapato preto polido jogo tudo num canto do guarda roupa,
juntos e sem cerimônia. Sem nenhuma fachada agora pelo reflexo. Até mesmo bagunço e quebro a resistência do gel no cabelo. Percebo que deixei a janela aberta, quando
de repente ouço um assobio de longe.
Vejo outra janela, a da casa vizinha, aberta, com uma garota me encarando junto a um sorriso de deleite. A garota do patinho de borracha.
- Olá - ela acena sorridente e distante, e me descambo a achar algo que me cubra. O lençol da cama é a primeira coisa que fico agarrado como um escudo.
- Ei - aceno de volta, minha voz não ultrapassa os lábios, mas ela os lê. Ela fecha sua janela, e em seguida sai pelo quintal. Vem em direção da minha casa, atravessa
gramados e arbustos toda serelepe.
Fico estático, congelado no momento. E estranhamente excitado.
O que ela pensa que está fazendo?
- Você sempre troca de roupa com a janela aberta? - arremessa sua pergunta. Há uma fresta de sorriso por seus lábios róseos. A pele dela é bege, o cabelo é volumoso,
encaracolado numa cor laranja-avermelhada, e o vento ajuda a espatifá-lo. Há sardas por seu nariz que combinam com o restante do corpo. Ela não se incomoda em estar
pisando em cima do jardim de minha mãe, ou com o fato de que seu vestido branco cheio de rendas e flores amarelas esteja sujo de uma tinta azul fresca.
Acautelo-me para ficar mais coberto, utilizando agora uma almofada pequena.
- Algumas vezes, sim - lhe respondo.
- Então me desculpe, mas não pude deixar de ver seu bumbum branquelo, vizinho novo. Devia fechar estas cortinas, servem para estes momentos.
- Use as suas nestes momentos também, para não ver a vida dos outros.
- Que mau-humor - ela debruça os braços no peitoril da janela e boceja. - Bom, este lugar não tem muita animação. Faz um mês e a coisa mais impressionante que vi,
foi um carro batendo na árvore da esquina. Empolgante porque árvore se salvou - ela vê meu olhar de incredulidade. - E o motorista bêbado também, mas sua ferramenta
de locomoção nunca mais vai poluir a atmosfera.
Uma estranha na minha janela, falando de suas peripécias. Quão louco o mundo está? Mas isso me diverte de algum modo, por isso espero ver até onde sua tagarelice
chegará.
- A rua ficou interditada por uma semana, e você não sabe como foi ótimo jogar bola sem precisar ir até a praia pra fazer isso. As traves foram substituídas por
garrafas de refrigerante cheias de areia. Sensacional! E agora este momento, aqui, uma ótima captura de um bumbum masculino.
- Você o quê? Tirou uma foto minha pelado?
- Sim. Sou uma ótima fotógrafa, sou modesta também, mas acredito que meu trabalho agrada. E pinto quadros. Já fiz uma seção de nu-artístico, esse tipo de coisa.
E queria te pedir que me desse a sua autorização pra usar esta foto numa exposição inusitada que estou organizando pro inicio do ano que vem. Adoraria muito de tê-la
no catálogo - atira as palavras de uma vez, parecendo estar com medo de que elas fossem esquecidas, ou que eu fosse fechar a janela. Sinceramente estava cogitando
a última opção.
- Me deixa ver como fiquei? - peço, com falsa ternura. Ela não hesita em me entregar sua câmera, que é de um modelo surpreendentemente novo e duma marca de prestígio,
noto.
Apago a foto no momento em que a encontro, sem ao menos vê-la por completo, e devolvo sua máquina.
- Obrigado, mas prefiro deixar minha bunda quieta e fora das suas doidices. Agradecido.
Ela entristece-se de repente, e distancia-se da janela. Acho que finalmente consegui me livrar de sua presença.
- Você ganha quanto pra ser irritante? - me pergunta enquanto vai afastando-se, de costas, derrapando em alguns pequenos jarros de planta da minha mãe, os cabelos
sendo açoitados pelo vento.
- Me diz você. O que ganha pra ser intrometida?
- Doses de arte - responde com convicção, desenhando um breve sorriso. - Mas tudo bem, já estou relaxada - sua voz torna-se berros audíveis até o outro lado da rua,
na medida em que chega a sua casa. - JÁ SUPEREI O SEU BUMBUM, NOVO VIZINHO!
Ela corre de volta para sua casa, rindo, o vestido seguro pelas mãos para o vento não alteá-lo, as pernas beges, o cabelo alaranjado, a mente cheia de mistérios.
Não demoro a fechar as janelas, com o pensamento de que não devo reabri-las enquanto estiver pela região. Não devo ficar nu. Terei chance de novos e belos dias para
conquistar ainda.
- Faber, você ouviu alguém gritando? - minha mãe diz isso com a mão no trinco da porta. Desconfio de que esteja com a orelha ali perto também.
- Sim. Uma louca destruiu seu jardim - falo isso calmamente, como se estivesse lhe dizendo bom dia. - E é melhor você não entrar aqui agora. Não estou muito apresentável.
? DESAJUSTES ?
SÁBADO, 21 DE DEZEMBRO
Na manhã seguinte, tomo um banho bem cedo. Retornam à mente as loucuras da estranha que apareceu na janela. Fico rindo da situação inusitada, pensando que talvez
eu conte pra alguém um dia.
Provo algumas vestimentas antigas, e entendo que não cresci tanto assim. Mesmo que pareçam desajustadas. Há desenhos de caveiras e outras aberrações pela maior parte
das camisetas. Me visto com uma cinza que há um triangulo branco no centro recheado por constelações, uma bermuda jeans, e meu mofento sapato Converse preto.
- Vou à casa do Pedro daqui a pouco, acho que passarei o dia lá, ou até dormirei - falo quando estou na cozinha, abocanhando uma fatia de bolo de milho feita pela
minha própria mãe. Ela está descongelando um frango no microondas ao mesmo tempo em que faz gelatina, com um avental de flores dependurado pelo pescoço, e murmura
em consentimento. Meu pai está na sala lendo um jornal, e ouve quando falo isso, sua cabeça aparece ao longe através do corredor para que possamos vê-lo. A menção
do nome lhe atrai, pousa seu jornal no sofá e chapinha os passos até onde estamos. Lá se vem alguma rabugice.
- Pedro? Ainda continua um vagabundo. Nem vai notar diferença.
- Pai, não chame meu amigo de vagabundo.
- Mas então - minha mãe nos corta, parando momentaneamente suas tarefas -, já viram como o dia está lindo? Que tal pegar uma praia? Surfar?
- Surfar? Amélia, você está bem, querida?
Sei que minha mãe apenas quis evitar uma discussão. Em geral, eu e meu pai conseguimos provocar uma guerra, nos escondendo em trincheiras de desafios e jogando bombas
de palavras ácidas. Ela sempre foi ótima em selar o acordo de paz entre nós, e isso a faz uma pessoa inteligente. Tentei seguir estes modos tranquilizadores, mas
nunca foi minha praia.
Saio após terminar o silencioso café-da-manhã. Ao caminhar pelas calçadas, noto que esqueci o celular, mas decido não fazer o retorno.
Pedro está me aguardando em sua casa, que fica a três quarteirões da minha e tem uma garagem enorme servindo como sala de estar. Há cerca de quinze pessoas só ali
na sala, com idades variando entre os dezoito e vinte e cinco, e seus pais, o casal Cristina e Wilson Marins.
- Lembra da Júlia? Roberta, Aline, Priscila, Cristine, Rafa, Fernando... - vai me apontando e indicando minha mão para muitos dos presentes, que me saúdam com beijos
no rosto, abraços, apertos de mãos e tapinhas no ombro. - Não sei se também lembra, mas eles moram na zona oeste, vieram também passar o Natal e a virada do ano
aqui em casa por tua causa.
- Uau, valeu gente! - me viro para Pedro, com ar saturado. - Cara, só se passou três anos. Sei quem são eles. Vocês vivem atualizando fotos no Facebook...
- É - alguns riem, confirmando.
- Mas são eles que não te reconhecem tanto. Você não publica muita coisa, Faber.
Engulo em seco. Sei que eu fui o que me distanciei primeiro. O que repentinamente mudou. Tenho me aprisionado num casulo de deveres, e esquecido de manter relações
amigáveis. Os erros gostam de se originar em mim.
E mesmo com todas aquelas fotos que postam, alguns dos rostos presentes me causam desconhecimento. Eles parecem felizes, estão animados como um domingo de praia
ensolarado. Estão até bem vestidos, seguindo os traços da moda. Acho que não os reconheço tanto porque, em geral, costumam tirar fotos mostrando muita pele, pouca
roupa, e sorrisos forçados.
Começo a ficar incomodado com o passar das horas. O almoço é gorduroso, a base de salsichas fritas, camarão refogado, baião de dois - uma mistura de arroz com feijão
-, e refrigerante de laranja para gaseificar minha paciência. Até que no meio da tarde, Pedro chama todos para sua nova piscina nos fundos da casa.
O quintal é estreito, cimentado, sem nenhum tipo de vegetação. O muro que nos cerca é recoberto por argamassa branca, com dois metros e meio, sustentando grandes
cacos de vidro com pontas mirando o céu - o modo mais barato de evitar ladrões. A piscina pega quase todo o terreno disponível, e com dez pessoas já parece lotada,
de modo que eu nem cogito entrar. Nem ao menos peguei uma sunga apropriada, por isso fico sentado próximo ao aparelho de som que alguém estacionou numa janela, vendo
todos se divertirem enquanto faço o papel de DJ.
A manhã se foi, a tarde esquentou o que tinha de esquentar, e a noite chega lentamente. Logo me sinto frio e seco ao mesmo tempo, um cubo de gelo que saiu para se
aventurar numa área tropical. Não deve demorar tanto para que eu me esfarele. Quero estar livre desse ambiente. Quero correr na praia pelado. Pelado de embaraços
mentais e descalço de dúvidas.
- Como te disse, já está ficando de noitinha, vamos todos sair daqui alguns minutos, vai rolar um pequeno sarau na beira da praia só com a galera conhecida - Pedro
demonstra confiança, tocando meu ombro enquanto se enxuga, já bastante saciado da piscina. Tento parecer confiante também. - Chamei umas garotas novas pra te apresentar.
Agora toma isso e tira essa cara de fome - ele me passa uma latinha de cerveja e adentramos na casa.
Jogo a bebida numa lixeira quando encontro uma, no instante em que as pessoas começam a me esquecer. E quando a atenção sobre mim evapora, perambulo pela casa sozinho
- há tantos cômodos como a minha, os corredores são estreitos, tem sempre alguém surgindo aqui e ali. Pedro está agarrado com sua namorada, conversando com outros
dois casais num sofá da sala. Há crianças pulando num tapete de frente pra um telão onde música eletrônica jorra barulho sobre todos.
E de súbito Cristina Marins me agarra pelo ombro.
- Vou te apresentar a minha galera agora - ela meio que salta comigo pelos cômodos adentro. Apesar de não ter nenhum andar em cima, o lugar parece um labirinto.
As colegas e parentes de Cristina, as que também vieram passar o fim de ano em sua casa, são idosas. E o mais bizarro de tudo é que consigo conversar com elas sem
nenhuma dificuldade, o que não aconteceu com meus antigos colegas. Acho que porque não tem nenhuma questão maliciosa envolvida, porque não pensam se estou afim delas,
porque não existe nada que consigam apontar de mudança, já que não me conhecem.
Acho que sou um idoso preso num corpo adolescente, com alguns surtos de hormônios. Com a Revolta das Roupas me atacando vez por outra.
Depois, os mais jovens são convocados para o sarau que acontecerá ali próximo. Uma espécie de festa onde rola música acústica ao redor de uma fogueira na areia da
praia. Este é um exemplo de sarau simples, do tipo que Pedro e eu já frequentamos bastante em anos passados. Do tipo que eu já me esqueci se é realmente agradável.
Caminhamos cerca de cinco minutos pelas ruas abertas até cairmos na avenida principal de Boa Viagem. Pedro tenta ser animado e conversar com todos que nos seguem.
Estou tomando a primeira latinha de cerveja da minha vida, dessa vez não tive onde esconder minha repulsa. Mas até que a bebida ameniza aos poucos minhas inquietações.
Vejo o cobertor de escuridão tapando o céu, os postes de luz amarela clareando as primeiras palmeiras distantes, coqueiros, outras avenidas movimentadas, e a beira
da praia.
- Você parece tenso, cara. Se solta mais, todos estão felizes por você estar aqui - Pedro diz dando um tapinha no meu ombro, um braço enlaçado em sua namorada, que
só depois me apresentou, chama-se Camila.
Fito brevemente as outras pessoas. Estão sorrindo para seus parceiros e amigos de muita proximidade. Pareço deslocado por ali, Pedro só quer camuflar isso.
- Estou legal, fiquei quietão de uns tempos pra cá, é só isso. Já, já eu me animo se continuar tomando isso - alteio a lata de cerveja e ele faz um brinde com a
sua.
Depois de acesa, rodeamos uma fogueira pequena, como de costume. A areia está fresca, o mar se encontra nas minhas costas, por alguns poucos metros. Sento-me e encaro
as chamas. À minha direita há duas garotas com violões desafinados, que são repreendidas por seus parceiros, eles alegam que elas tocam e cantam mal, decidem tomar
seus lugares, e conseguem fazer ainda pior.
Tiro conversa com alguns poucos, falamos besteiras, sorrimos sem tamanho entusiasmo - pelo menos do meu lado de lábios. As garotas que meu amigo chamou para me apresentar,
não vieram. A noite de sábado acaba de virar uma madrugada de domingo. Fiquei namorando as chamas, ouvindo cordas desafinadas.
- Devia ter convidado a Renata, ou a Cíntia - ouço Camila cochichar para Pedro, um olhar meio entristecido em minha direção.
Algo que mais abomino: alguém sentir pena de mim. Isso sim me deixa deslocado.
- Desculpa mesmo - ele volta a se dirigir a mim, percebendo que ouvi a conversa. - Mas aqui sempre cola mulherão, por isso não fiquei tão preocupado assim, e também
que...
Enquanto Pedro vai me despejando suas justificações, percebo que seus amigos estão fazendo comentários sobre alguma coisa estranha que lhes furta a meia-noite, causando
sorrisos de gozação em uns, e de piedade em outros.
- Deixem ela - uma defende.
- Aposto que ela vai tirar fotos da gente. Quem quer fazer um nu artístico aqui? - o cara que diz isso ri desdenhoso, mas para quando ouve sua namorada falar, com
enorme convicção, que adoraria fazer uma seção de fotos naquele estilo com a estranha. Outros riem da cara dele agora. Giro o rosto, e noto o vulto branco caminhando
sobre a borda do mar.
Então eu me levanto para me juntar a desconhecida de vestido branco, que perambula descalça, tocando a água, ignorando tudo ao seu redor. Porque já sei de quem se
trata. A doida da janela. Do patinho de borracha, da fotografia inusitada. Largo a latinha na areia e ignoro os chamados pelas minhas costas. Percebo que não sei
o nome daquela garota, mas que adoraria sabê-lo. Entendo que gostaria mais da difusa companhia dela, do que a do grupo que me infiltrei. Se ela parece deslocada,
minha deslocação poderá lhe combinar.
Sou encorajado pelos gritos de duas garotas, que falam em conjunto atrás de mim, sobre notas de violão desafinadas:
- Um viva para o amor! E vivam o amor. Vivam!
? MERGULHOS ?
DOMINGO, 22 DE DEZEMBRO
São 00h08min, segundo meu relógio digital marca, com o display emitindo uma claridade azulada. A garota toca os pés na água gélida, enterra os dedos na areia fofa
a cada passo, cabeça baixa, caminha olhando para o chão, contrariando a brisa, ignorando olhares e balbucios. Ocupada demais sentindo seus pés saborearem as águas
do mar.
- Ei - a chamo.
Vejo que ela tem um vestido azul claro agora, de longe parece até branco, com rendas, nenhuma mancha de tinta. Uma presilha de flores amarelas pelo desgrenhado cabelo
ruivo-claro. Nas mãos, um lenço que dança pelo vento.
- Uma flor da noite?
- Uma rosa da noite - diz isso sem pausar os passos, sem olhar para mim, não dando importância para quem quer que eu seja.
- Qual seu nome? - pergunto-lhe, acompanhando seu movimento, discreto. Aos poucos vamos distanciando-nos das áreas movimentadas, mas as luzes dos postes banham toda
a vasta região. Pelo horizonte escuro do mar, pontos brilhosos serpenteiam, iates, barcos e lanchas. No céu há estrelas esfareladas, ainda meio tímidas por conta
da claridade urbana.
- Isso não é muita intromissão?
Ela ainda não me olha, mas percebo que escondeu um sorriso pelo rosto abaixado, notou quem sou.
Continuamos caminhando. Entra água no meu sapato, minha meia fica ensopada. Suspeito que a estranha tenha saído de casa assim mesmo, sem nenhum calçado. Uma pequena
criatura bizarra.
Pela primeira vez estou medindo seu corpo, chega até meu ombro, o vento faz com que seu vestido fique colado nele, e isso demarca muito de suas formas. E paro de
olhar quando algumas partes minhas começam a se reformular também.
- Você já me viu pelado, acho que isso me dá o direito de saber seu nome também.
- Você não sabe nada sobre direitos - defende-se, e dessa vez pausa, retira sua presilha de flores e arremessa-a no mar junto com o lenço. A espuma de sal faz com
que seu acessório fique flutuando, até uma onda engoli-lo de nossa visão. Não pergunto, nem ela diz nada sobre o ato.
- Tenho o direito de olhar pela minha janela para onde eu quiser. Tenho o direito de meus olhos, está vendo? - ela arregala-os com as mãos, como se estivesse fazendo
uma careta para uma criança. Não consigo deixar de rir.
- Estou ouvindo, na verdade.
- Isso - torna a caminhar, e volto a seguir seus rastros. - O que nos leva ao seguinte: posso ouvir o que quiser, e falar o que me der na língua também. Então, tenho
dezenove anos e me chamo Vênus. Isso é o bastante?
Toda uma tagarelice para depois me dar seu nome. Talvez seja sua forma de dizer que, para conseguirmos algo, é preciso gastar atenção com todos os sentidos que dispusemos.
Que a conquista só traz o verdadeiro mérito se você passar pelas dificuldades. Ela é a dificuldade e o mérito ao mesmo tempo.
- Como a deusa romana? - estanco meus pés.
- Isso me cheira a elogio. Estou certa? - ela decidiu parar também. - Vênus, o segundo planeta do Sistema Solar, com uma atmosfera extremamente densa, formada principalmente
por dióxido de carbono. Os ventos venusianos se movem até sessenta vezes mais que a velocidade de rotação da Terra, e...
- Onde desliga sua língua? Ajudou a editar este seu próprio tópico no Wikipédia? Boa escolha seus pais tiveram.
- Na verdade, eu mesma escolhi esse nome, há muito tempo, e meus pais aceitaram modificá-lo no cartório - ela vira-se e agora retorna de onde viemos. Nossos rastros
foram apagados pelas ondas. O vento ali não descansa nunca.
- Você não quer saber o meu? - não sei por que, mas pergunto. Parece-me uma pergunta deprimente. É uma pergunta deprimente. Queria o interesse dela sobre mim. Queria
saber ainda mais de sua vida, e isso é tão estranho como toda a situação. O que há com essa vida? Vive nos pondo pessoas inusitadas, que nos acorrentam o interesse.
- Que diferença fará o nome? Você irá se afastar em algum momento, e deixaremos de nos falar. Conhecerá outras pessoas, e depois mais outras, e outras, e outras.
Eu serei uma lembrança engarrafada e armazenada em algum freezer lacrado de seu cérebro. Não saber seu nome hoje poderá me fazer bem amanhã. Por que precisam dar
nome a tudo também? Ainda bem que existem sentimentos inexplicáveis que ainda não estão correndo risco de extinção. Porque você sabe, ultimamente os bons sentimentos
estão morrendo primeiro que as pessoas.
E a resposta é deprimente e confusa ao mesmo tempo. Penso em confrontá-la, perguntando por que simplesmente não deu para si mesma nome nenhum, um ponto ou uma vírgula,
mas deixo essa passar. Caminhamos agora sobre um píer pequeno e chegamos até sua ponta.
- O que pensa que... - mal consigo terminar, e ela salta no mar. Um mergulho longo, e então desaparece no meio das ondas por um tempo que se alarga.
5 segundos. Há postes iluminando a região, mas as árvores desse local me encobrem de meia escuridão. 10 segundos. Poucas pessoas transitam pela avenida e o calçadão,
os carros deram uma desacelerada na movimentação, bares e lojas estão fechados desde as dez, neste domingo tropical de uma semana natalina. 25 segundos. Talvez ela
só esteja se refrescando. Refrescando suas ideias, seus anseios. 40 segundos. Pulo na água.
Demoro a encontrá-la no mar, mas por fim uma braçada me atinge no olho. Desoriento-me, engulo algumas golfadas de água e ar quando emerjo, e tento ficar flutuando
no ritmo das ondas nervosas.
- Desculpe, eu não te vi - diz ela, com cabelos de chamas apagadas, desanimados. - Sempre faço isso, todas as noites. É minha maneira de aproveitar o mar - acautela-se
em busca de não molhar nem afogar suas palavras. - O único momento ao qual eu me sinto bem é agora, e pouco antes do amanhecer, se estiver no mar. Treinando para
uma travessia... - suas palavras somem no final da última frase.
- É o costume mais estranho que já ouvi - comento, parando de nadar e me levantando sobre o píer, a água cobrindo meu peito e as ondas me derrubando outras vezes.
- Não é costume. Estou apenas me preparando para atravessar o mar...
- Como assim? - tusso e água escorre pelo meu nariz, trazendo um desconforto irritante. - Que doideira é essa agora?
- Nada que você entenda - ela boia na água e faz um nado de borboleta que é quebrado pelas ondas raivosas.
Volto à segurança da margem ao lado do píer. Minhas roupas estão grudentas. Mas sinto que a água, ao invés de apagar, clareou minha noite. Foi um pequeno e inusitado
gasto de energia. Um mergulho de lavar a ansiedade.
Sento-me na areia e espero-a. Os passos de Vênus são lentos, densos, vem brincando com a espuma do mar.
- Que meias legais - ela comenta depois de sentar-se próxima a mim. Na ponta da meia há um furo, por onde se sobressai um dedão do meu pé. Ele não estava ali hoje
de manhã. Ignoro o comentário.
Estendo as pernas sobre o chão, o sapato no lado direito, os braços para trás apoiando meu tronco, o rosto inclina-se em busca de estrelas. Há muitas ali, mas tenho
dificuldade em focalizá-las, parecem ainda mais embaçadas. Como se estivessem nadando pela espuma do mar também.
- Você também namora o céu? - pergunta-me.
De relance, percebo que ela está me encarando. Ela quer mesmo uma resposta. Repenso sobre sua pergunta por breves instantes, depois, de ombros calmos, correspondo
seu olhar.
- Sim, namoro. A única relação que nunca rompeu comigo, ou eu me desinteressei.
Agora é ela quem começa a se deleitar com o teto estrelado.
- Se você transar com estrelas e engravidar, o que nascerá? - faço-lhe esta pergunta estranha, pra aumentar nossa divagação.
- Planetas - sussurra, e endireita-se também. As pernas finas e límpidas desdobram-se na areia, os dedos cavam o chão. Vou apreciando cada parte sua, até os fios
de cabelos rebeldes, enquanto ela se entretém em fitar o céu como uma criança admirando seu super-herói animado.
- Acho que seus pais são estrelas, Vênus.
É a primeira vez que vejo seus olhos brilharem, e depois de alguns segundos, lágrimas descem pelas sardas do nariz pequeno. Sinto vontade de abraçá-la, e pedir desculpas
se o que falei foi ruim, mas não temos essa proximidade com os toques. E, quando decido dizer algo que tente lhe tirar aqueles respingos do rosto, ela faz uma coisa
que me impressiona: encosta-se em meu ombro, suspira sobre a manga da minha camisa molhada, ergue o queixo e murmura:
- Obrigada por dizer isso - levanta-se de sobressalto e sai às pressas.
Meu corpo está com aquele peso que se sente depois de sair do mar, e ela é ligeira em me despistar numa corrida pela praia. Some pela noite, como uma estrela cadente.
Decido voltar para casa. Sozinho, perdi a vontade de namorar o céu. Ao me reaproximar do local onde Pedro e seu grupo estavam, vejo que não há mais sarau, apenas
as brasas da fogueira que a brisa insiste em deteriorar pouco a pouco.
Gostaria de estar num planeta mais denso agora. Gostaria de conquistar Vênus. Talvez estes pensamentos inquietantes sejam o resultado daquelas latinhas de cerveja.
Talvez eu devesse lembrar que antes de sair de São Paulo, não estava disposto a arriscar no amor. Mas agora parece uma coisa tão simples, tocável, desejável. Acho
que preciso disso. Eu sei, tem o insondável preço da dor pela partida, mas não quero pensar nisso agora. Involuntariamente, meus pensamentos estão chegando até ela.
Merda, acho que bebi demais.
Depois de chegar em casa, dormir as sobras da madrugada e me obrigar a levantar, o restante do domingo passa vagaroso. Pedro veio me visitar, falamo-nos brevemente.
Parecia um pouco irritado com meu desaparecimento repentino do sarau, como se eu estivesse sob sua proteção. É um papo tão idiota que não consigo deixar de soltar
uns palavrões para ele. E esquecer de pedir desculpas no momento seguinte. E rir, para que ele ache que não fiquei chateado com nada, nem que ele deva ficar.
Esgotei as horas seguintes jogando uma partida de futebol no quintal com meu pai. Ele me surpreendeu ao estar mais disposto. Quebramos parte do gelo que os últimos
anos nos deram. Depois, saí andando pelas ruas aleatoriamente. Dei cerca de cinco voltas pelo mesmo quarteirão em que meus pais moram, e em nenhum momento vi a casa
da vizinha louca com porta ou qualquer janela aberta. Nem mesmo a noite. Foi um domingo cinzento para tudo o que eu tentasse. Só aquela madrugada no mar teve seu
estimado valor.
? FOLHAS ?
SEGUNDA-FEIRA, 23 DE DEZEMBRO
Chego à varanda da casa ao lado, e bato na porta. São dez da manhã. Há duas cartas de cobranças pelo chão. Cadeiras de madeira almofadadas com uma forte camada de
poeira. Alguns sinos de vento suspensos. Um gramado esfarelado na frente, com dois pés de laranja contornando uma pequena trilha de pedras até a calçada da rua.
Não tem muros de tijolos demarcando a propriedade, há jardins com matizes inebriantes.
Ouço bramidos pelo interior da casa, passos rápidos. A garota abre a porta sem ao menos perguntar quem é.
- Que agradável dia bate na minha porta - solta um sorriso simples. E só por aquele breve ato, sinto como se minha segunda estivesse salva. Isso é estranho, esse
meu comportamento. Meu pomo-de-adão se locomove para cima e para baixo enquanto a observo. Vênus está usando meias cor de rosa. Um vestido azul claro, no mesmo estilo
que o de ontem, só muda a cor. Prendendo os cabelos alaranjados há uma fita amarela discreta. Parece uma boneca de porcelana bronzeada.
- Quer dar uma volta comigo? - lanço a pergunta.
Ela hesita.
- Não posso... - mordisca o lábio inferior, com o rosto expressando suas dúvidas. Martelando o que pode ou não fazer. Se deve recusar e me ignorar. - Estou fazendo
o almoço.
- Quem é ele? - um garoto com cerca de dez anos sai ao seu lado. O cabelo curto é todo emaranhado, o mesmo cabelo dela. Mesmo nariz. Sardas. Olhos amarelo-sol. Seria
seu filho? Ou irmão? De repente fico aturdido com a ideia de um marido saindo e me vendo ali, um bobalhão de roupas amassadas e desconexas chamando sua mulher para
dar uma voltinha.
- O novo vizinho, Cauã.
- Oi, novo vizinho - o garoto acena. - A Vêh não quer namorar você. Ela precisa cuidar de mim. - ele a abraça e ela enlaça um de seus braços ao redor dele. Fala
alguma coisa em seu ouvido, que o faz correr para dentro com algum estranho entusiasmo. Suspiro. Ele não a chamou de mãe, então, isso é um ponto negativo a menos.
- Tudo bem - ponho as mãos no bolso do short de tecido fino verde. Escolhi minha camisa branca sem mangas preferida para dias abafados. Meu rosto está abafado.
Quando vou me distanciando, Vênus me chama.
- Ei, vizinho, se você quiser me esperar, daqui a vinte minutos estou livre - espera para ver minha expressão, lança um aceno e retorna para sua casa aos saltos.
Sento-me sobre os degraus de madeira da varanda e fito o mundo afora. Aguardo.
Dez minutos. Os pássaros gritam nas duas laranjeiras que estão vazias de frutos. Parecem gritar de fome. As nuvens estão pálidas, borrifadas de cinza em grandes
partes. O azul do céu pouco se mostra.
Quinze minutos. Existe uma semelhança assustadora entre as duas casas do outro lado da rua. Até a cor dos carros são iguais. Anões de jardim espalhados a grama,
dois andares na estrutura das residências, duas caixinhas de correio amareladas, cercadas por muros de madeira branca. Se colocassem um grande espelho fatiando as
duas casas, seus vizinhos não notariam muita diferença no cenário.
Vinte minutos.
- Segura - Vênus abriu a porta de mansinho, só a noto quando já está atrás de mim e me atira um bombom de chocolate branco.
- E o Cauã?
- Ele ficará bem até eu voltar.
Ativamos nossos passos. Ela nota que eu estou apenas olhando para o presente que me deu com certa intriga. - Se você quiser, eu troco com você - Vênus está segurando
um de chocolate com amêndoas. - Mas precisa me alcançar primeiro. - Dispara a minha frente, ultrapassa as duas laranjeiras, salta o limite que seus jardins demarcam
e some pela calçada direita, o oposto da minha casa. Começo a correr também, minha animação se ergueu primeiro que meu corpo.
Tomo um banho de suor até conseguir chegar onde ela quis. Seus tornozelos são bem torneados, acho que por conta de ser experiente em correr. Não estou preparado
para essa adrenalina toda, e isso é humilhante. Vênus ameaça dar fim ao meu sedentarismo.
Ela entrou numa pequena loja de roupas, e eu sinto vontade de congelar o tempo, retornar até meu quarto, e me equipar com mais algumas notas de dinheiro. Tenho exatos
cinquenta reais no bolso.
- Fica bem em você - asseguro-a. Ela está provando óculos de sol e lenços de cabelo. Acho que tudo combina com ela, então minha opinião é suspeita.
- Olha só essa aqui - retira uma jaqueta do mostruário e mede meu corpo com ela. - Você fica bonitão com ela - me avalia com demora. Acho que comprarei a jaqueta
depois, já que ela gostou tanto assim. - Mas parece que roxo não combina muito com você... -Acho que não comprarei mais.
As duas funcionárias da loja nos olham com desânimo. Nenhuma vem ao nosso auxilio, e isso me conforta. Não terei como dizer que vou levar alguma coisa. Penso em
cochichar para Vênus o valor que tenho disponível, mas ela logo se cansa das roupas e sai lentamente do estabelecimento. Aceno e dou boa tarde para as garotas da
loja, meio que me desculpando pela entrada repentina e a falta de interesse em qualquer item. Elas trocam um bocejo, um olhar monótono, e voltam a encarar suas revistas
de novelas num balcão branco, cotovelos sustentando seus crânios e cabelos negros.
Vênus entra em todas as seguintes lojas, que estão abertas. De CDs, DVDS, até onde fabricam chaves. Em nenhuma delas se interessa por nada. Eu me interesso apenas
pela forma como ela fica envolvente em seu olhar de indecisão. Absorvo suas atrapalhações com encanto.
- Pra onde vamos agora? - Vênus eleva as mãos e remexe o cabelo, olhando a rua pouco movimentada. Pequenas lâmpadas de natal espalham-se de árvore em árvore, poste
em poste. As micro lâmpadas estão apagadas, mas os frágeis vidros que as encobrem são coloridos, animam os poucos olhares que se arriscam a perambular pela segunda.
- Que tal se apenas caminharmos até o fim dessa rua, e depois retornarmos? - antes de eu oferecer minhas mãos, ela adianta-se na frente.
- Você parece ser como eu. Gosta de andar por aí. Espairecer. O mar é benéfico para mim, assim com o céu é para você. Acertei?
Confirmo com o polegar. Meus passos encontram a velocidade dos seus. Vamos chutando latas e pedras pelas calçadas sujas. Ela cata algumas folhas secas, depois as
prende por seu cabelo. Um ser estranho, que me causa tamanha admiração.
Próximos de uma sorveteria fechada, nós vemos um senhorzinho caminhando com seu carrinho de pipocas vazio.
- Você quer pipoca? - pergunto já pensando que aquele homem ganharia uma boa gorjeta se preenchesse dois pequenos saquinhos para nós. Mas Vênus rejeita isso.
- Hoje não... Cauã já me fez enjoar disso ainda há pouco.
Passamos pela frente de casas movimentadas, outras fechadas. Um campo de futebol, uma praça com fonte no centro. E então chegamos ao muro que delimita a rua, uma
curva nos leva para mais outro longo caminho à direita. Giramos os corpos.
- O que você costuma fazer todos os dias? Estuda? - pergunto. Ela senta na calçada e repito seu movimento. Uma árvore gigantesca paira sobre nós. As rajadas de vento
vez por outra fazendo cascalhos e folhas emaranharem-se em nossas cabeças.
- Cuido do Cauã algumas vezes. - Ela afasta-se um pouco, como se estivesse incomodada com minha presença. Quentura sobe pelas minhas orelhas. - Tente fazer outros
tipos de perguntas.
- Cor predileta? - faço essa pergunta com um tom brincalhão, quero fisgar seus olhos de bronze. Ela endireita alguns tufos de cabelo, como caracóis ruivos prendendo-se
na orelha. Incrivelmente parece ter gostado da questão imposta.
-Não tenho uma predileta. Gosto de todas as cores.
- Você namora? - a frase furta meus lábios e foge pelo ar, desdenhando de mim.
- Sim. - um sorriso escandaloso parte seus lábios quando vê minha expressão seguinte. - Namoro o mar - completa.
Um suspiro de alívio me escapa. De repente a saliva torna-se difícil de circular pela minha boca, estanca na garganta e seca a língua. Tomo umas golfadas de ar,
quase entalado.
Percebo que ainda estamos balançando os dois bombons de chocolate pelas mãos, abro o meu e provo. Ela faz o mesmo. Em seguida, pergunto:
- Depois que você come um doce, não sente uma sede horrível?
- Se está querendo me beijar, precisa de uma cantada mais descente.
- Não estou querendo te beijar... - é metade verdade.
- Pois eu estou. - E ela foge de cena deixando suas palavras no ar. Dessa vez quase a alcanço, corremos sem uma pausa até sua casa. Paramos com a respiração tentando
se estabilizar. Suor escapa da minha testa, mas ela mantém-se normal, apenas com os pulmões remexendo seu tronco.
- Obrigado pelo passeio. Foi o mais estranho e rápido que já tive - Vênus situa-se do outro lado de sua linha de jardim. Estou na calçada de sua casa. Com um pulo
posso invadir seu território.
- Até a vista, Vênus.
Não tive como arriscar coisa alguma. Um abraço, por exemplo. Ou perdi o momento certo, e soltei as palavras erradas. E não comprei alguma peça de roupa, um sorvete,
ou qualquer coisa para ela. Sinto-me um idiota por não ter gastado um centavo. Ao mesmo tempo, conservo-me bem, pensando que Vênus manteve seu sorriso. Em algumas
partes, o desfez, mas por último, agora a pouco na despedida, carregou deleite no olhar para dentro de casa.
A lembrança do nosso passeio me infla de entusiasmo pela segunda-feira monótona inteira. E tenho medo disso. Não posso gostar de alguém assim. Não terei folga depois
nos estudos. Serei o cara que conhecerá outras pessoas mais a frente, e ela, a garota que fará o mesmo com outros, quando se cansar de namorar o mar.
Somos seres que se modelam através de lembranças. Que anseiam pelas mais agradáveis.
? FOTOGRAFIAS ?
TERÇA-FEIRA, 24 DE DEZEMBRO, 8H23MIN.
É véspera de Natal e minha mãe está maluca. Quer fazer a maior variedade de comida que conseguir até a noite. Seu capricho será ignorado por muitos. Ela virou um
robô, não para de se locomover, e aceita o que quer que lhe peçam, sem reclamar. Eu poderia pedir o sol que ela tentaria pescá-lo para mim.
Tios, avós, e mais parentes chegam a nossa casa a cada segundo. Rostos e perguntas que eu tento ignorar ao máximo. Algumas primas ficaram tão diferentes que parecem
aquelas atrizes dos comerciais de creme dental. Outros primos são musculosos como se morassem numa academia. Avós e tios estão cada vez mais insensatos e rechonchudos.
Minha antipatia por muitos ali é de épocas antigas. Um simples trecho de vida. Minha mãe casou-se com meu pai contra a vontade de todos. Quando precisávamos de ajuda,
como tantas vezes, não tinha ninguém que se dispusesse a nos estender a mãos. Minha mãe veio de uma família mais sossegada financeiramente, meu pai, não. Casados
e deixados ao relento, os dois batalharam naquilo que mais sabiam modelar: massas. Construíram sua primeira panificadora quando eu ainda nem tinha nascido. Hoje
são donos de quatro grandes panificadores de Recife, de modo que nem precisam se incomodar tanto com isso, é como se estivessem aposentados. Vivem bem. Hoje os parentes
que lhes negaram apoio lotam nossa casa e comem de graça. Formulam até novos enredos para as histórias sufocantes que passamos, criando pontos humorísticos que rasgam
sorrisos. Perambulam por uma visão embaçada. Não sou do tipo que fica com o pé atrás, mas ponho um olho na nuca. Não confio na maioria dos presentes. Não há quem
me faça.
Quando acho um caminho livre até meu quarto, me camuflo nele. Agradeço ao meu eu de alguns anos atrás por escrever "não incomode" na porta, pois ninguém chega para
que eu precise ouvir mais coisas sobre como estou magro, ou gordo, alto, belo, estranho, dentuço, se tenho namorada, se estou gostando de onde moro, se tenho planos
de morar aqui mais uma vez, e todas as outras questões que resistem aos anos.
Às vezes, mergulho num compartimento vazio de minha própria mente. Gosto do silêncio inicial - aquele antes das ideias invadirem a área. Os pensamentos sempre me
farejavam, eles seguem o rastro borbulhante, a fagulha de minha respiração. Sinto necessidade repentina de fugir para o avesso. Quero apenas comprovar que ainda
existe benevolência no âmago de seu ser.
Quando me canso da escuridão, abro a janela. E a casa a frente está com suas janelas todas abertas, um corpo locomovendo-se pelo meio, como se estivesse correndo
atrás de seu papagaio. Faço algo adolescente outra vez: pulo minha janela, e esqueço os limites de minha casa. Não olho para trás, com o receio de que tenham me
avistado, e me chamem. Se chamarem, fingirei não ouvir. Sou uma estátua onde só minhas pernas se locomovem.
Vou chegando vagaroso na janela desconhecida, mas Vênus me percebe.
- Ei - ela para o que está fazendo brevemente. - Você está provando como é ser intrometido? É bom, não é? - lança um sorriso angelical. Seus cabelos estão amarrados
por um lenço prateado. Ela segura um pincel, e seu vestido é próprio para o que está fazendo: pintando quadros.
- Queria ver se saía daquela casa. Estava muito abafado por lá.
Ela olha para trás de mim, depois fita seu quadro contendo alguma coisa que não consigo decifrar de relance, e solta um suspiro.
- Uh... Sim. Vejo como aquele lugar está abafado.
- Pois é. O que está desenhando? - debruço meus braços no peitoril, como ela fez na minha janela, e vejo um cômodo abarrotado de outros quadros, cada um contendo
partes estranhas, cores desconexas, folhas rasgadas pelo chão, galões de tinta pelos cantos.
- Não sei ainda. O que você acha que é? - vira o quadro para mim.
- Parece uma borboleta - digo, sem fazer noção alguma. - As cores e tal - aponto. - Ali parece ser uma asa, não?
- Parece uma pata... Ahm, eu acho que preciso continuar. Pode ser um pássaro. Gosto de pássaros. Às vezes eles aparecem nos quadros.
- Pode ser um planeta - sorrio. - Pode ser você.
Ela não devolve o olhar, sua testa está franzida. Mordisca o lábio inferior, coça a sobrancelha esquerda e mela-se de mais tinta verde pelo rosto, depois rasga a
folha. O barulho repentino me espanta.
- Não acontece com tanta frequência, estou me perdendo. Coisa estranha. Ultimamente não consegui fazer nada tão legal. Será que minha criatividade se foi? Meu Deus,
não permita isso agora!
Ouço seus passos frenéticos pelo cômodo, esbarrando em algumas de suas ferramentas.
- Ei, é só uma fase. Mas o que te leva a desenhar, numa véspera de natal? E seus pais, não estão ocupados com a ceia?
O rosto dela se fecha, e imagino que irá fechar a janela também.
- Desculpe se falei algo errado. Não sei muito sobre você. E...
- E? - questiona insegura, esperando. Acho que está mesmo decidindo se fechará ou não a janela. Preciso da resposta certa. Preciso que ela mantenha-se olhando para
mim. Preciso, preciso, preciso.
- E queria te beijar também - lanço.
Ela chega lentamente até meu rosto, nossos lábios quase se tocando, de modo que fecho os olhos, me empurra e fecha sua janela. Desequilibro-me e caio sobre um canteiro
de cebolas.
Cinco segundos se passam enquanto encaro o céu de nuvens carregadas. Parece que vai ficar assim o dia inteiro, um dia frio de natal, com uma casa abafada de gente,
com uma garota vizinha que me rejeita.
Então vejo uma sombra, e o seguinte flash me cega.
- Desculpe por isso, mas você me deu uma ideia para uma arte bem mais original. A queda no canteiro de cebolas. Veja só - se ajoelha ao meu lado, e seu perfume floral
preenche meus pulmões com uma sensação maravilhosa. Tento não suspirar com isso.
- Meus olhos - aponto o defeito da foto.
- Não - ela desce o rosto próximo do meu, e aponta a fotografia ao me repassar sua máquina. - Olhe com atenção. Você está assustado, foi pego de surpresa pela câmera,
enquanto ainda estava...
Só preciso inclinar meu rosto um pouco mais, para por fim conseguir beijá-la... Com minha breve movimentação, ela cai sobre mim no seu canteiro de cebolas, e eu
tiro uma foto nossa no momento exato. O clique quase perfeito. Nossos lábios se aproximando por uma fresta de segundos. Lábios que parecem ter a suavidade de um
pêssego. Aposto que o beijo dela tem gosto de chocolate, ou...
E então sua mão cheia de adubo cobre meu rosto. Vênus desenlaça-se de mim, se apruma, enquanto estou cuspindo e limpando a sujeira.
- Não devia ter feito isso. Não queira me beijar. Vai se arrepender.
Vênus junta duas mãos na cintura, o lenço prateado não está mais em seu cabelo travesso. E começa a bater um dos pés, parecendo uma pequena menina cheia de birra.
- Meu nome é Faber. O seu é Vênus. Ponto final.
- Vizinho - repete, mas estende a mão para mim, que nego de primeira. Ergo-me e tento me endireitar sozinho. Devolvo seu lenço, ela o recebe e acaricia meu rosto
com ele, limpando os resíduos de adubo. Sua câmera está segura em minha mão.
- Acho mesmo que devia ter feito isso - e entrego-lhe a máquina em seguida, mostrando a captura do momento em que quase nos beijamos, o susto dela, o canteiro de
cebolas, seu cabelo caindo por um lado, os olhos com a maior surpresa do mundo. Mostro-lhe a foto, e só agora sua testa deixou de demonstrar irritação.
Vênus arfa. Aquela mão suja de adubo quase chega para tapar a própria boca, eu detenho-a.
- Acho que você está capacitado para ver mais obras, se quiser.
E, depois de alguns segundos longos, percebo que aquele é um convite para entrar em sua casa.
- E seus... - ela faz um ato de negação com o rosto, interrompendo o momento em que eu mencionaria seus pais. Noto um vendaval querendo se formar por seus olhos.
Vênus não gosta de demonstrar suas fraquezas.
- Não estão mais aqui. Eles são estrelas hoje, como você disse.
- Seu irmãozinho ciumento?
- Cauã não é meu irmão, é meu sobrinho. Minha irmã mora na outra esquina. Ela quase sempre o deixa aqui pra me fazer companhia, mas hoje o manteve por perto. Pela
data. - Esse é um jorro de informações precisas. E sinto a nebulosidade de seus olhos pesarem.
Ofereço minhas mãos sem muito a dizer, mas é ela quem nos guia até sua varanda. Decido apenas acompanhá-la, com a ansiedade para ter em mãos seus mistérios desvendados.
? TEMPESTADES ?
TERÇA, 24 DE DEZEMBRO
Estou dentro da casa de Vênus agora, fitando seus olhos com extensa demora. São tão belos que parecem opalas alaranjadas. Seus cílios grandes, a sobrancelha fina
na mesma cor do cabelo. Depois vejo que estamos numa sala de estar em caos. Móveis desalinhados, cortinas caídas, um papagaio no chão usando uma tampa de margarina
como skate.
- Você é a primeira pessoa estranha que entra aqui depois que eles se foram - ela diz, e percebe minha expressão de inspetor. - Tente ignorar esta bagunça. Estava
arrumando ainda as aprontas de Cauã.
- Vênus, eu quero saber mais sobre você. Mas não quero que se sinta triste, por isso não insistirei no que não quiser contar. Mesmo que a curiosidade seja tão imensa.
Ela checa minha expressão e vê como estou falando sério. Enfia uma mexa encaracolada inutilmente atrás da orelha inutilmente, o cacho volta a se desdobrar de frente
ao seu rosto. Aproxima-se com poucos passos e toca meu ombro, descendo suas mãos pelo meu braço até chegarem ao meu peito, e a palma estanca ali, faz alguns movimentos
circulares de fricção sobre minha camiseta.
- Essa parte aqui, seu coração, é inconstante. Hoje você ama alguém, amanhã você pode odiar. Hoje ama alguém, amanhã está sentindo saudade, porque se separaram.
Hoje você ama, amanhã poderá sofrer muito. O importante é o hoje, eu sempre acredito, deve amar sem medo algum. Pois amanhã será seu novo hoje, que usará para amar
alguma outra coisa, ou a mesma. Então é mesmo importante que use isto aqui - seus dedos se tornam um punho, e soca de leve meu peito. - Porque se apaixonar e amar
são os melhores exercícios para um coração.
Procuro entender suas palavras, e elas se condensam, descongelam e bailam na minha cabeça fazendo algumas curvas. Quando seus olhos se aproximam tanto, é quase como
se eu conseguisse ver uma galáxia dentro deles, e isso tira minha concentração. O rádio está ligado, e começa a tocar uma música agitada, me desprendendo do transe.
Eu deveria pedir uma melhor explicação daquele pronunciamento, mas a única coisa que faço é estender as mãos na direção da garota e dizer:
- Você quer dançar?
- Não, porque não sei.
- Mas a vida já é uma dança - insisto.
- Por isso que caímos tanto?
Mesmo relutante ela se aproxima. Seu sorriso é o primeiro que aceita minhas mãos. Dançamos uma espécie de valsa, que depois se agita e modifica para momentos disformes,
onde nos separamos por alguns centímetros um do outro. Parece cômico, já que a música não tem nada a ver com nossa sincronia. Tentamos não cair pela sua sala abarrotada
de objetos pelo chão. Ela começa a rir depois de um tempo, e rindo eu já estava. Somos o reflexo um do outro por alguns instantes. Um planeta, e um satélite. Ela
é o planeta, eu sou um pequeno satélite tentando clarear seus mistérios. Quero a companhia dela. Quero usar meu coração para que ele ame nesse hoje, como ela aconselhou.
Esse é um dos pontos sobre ser jovem: você esquece os riscos, ignora possíveis consequências, e se entrega ao momento contagiante da mesma forma que deixa a música
te embalar.
E pouco a pouco, pequenas espécies de fagulhas se soltam pelo interior de meu peito. O sorriso de um planeta inteiro está fazendo isso, a minha frente. É tão estranho,
assim como o amor. É um sentimento novo e perto da paixão, um que não sei dar nome, pois é inexplicável, pois ela não quer que eu nomeie nada. Ela só quer o sentimento.
Hoje.
- Do que você tem vivido? - lanço a pergunta no começo da próxima música, esta mais calma que a anterior. Aproveitamos para resgatar o fôlego.
- De arte. Tenho uma pequena loja de frente à praia, onde vendo cordões, pulseiras, quadros que pinto, anões de jardim, todas estas coisas. Tem épocas que lucram
bastante - pisca os olhos, e faz uma fricção com os dedos após levantar a mão. - Sei economizar meu dinheiro para as temporadas difíceis. No momento, me dei férias
do lugar, mas não paro de produzir por aqui.
- Achei que você tinha se mudado recentemente.
Damos passadas longas, os corpos se locomovendo com lentidão, o ritmo mudando para a parte clímax da música. Ela segura minha nuca, afaga a região com brandura,
o rosto permitiu-se colar em meu ombro outra vez, e eu arrisco a tocar-lhe com calma também.
- Me mudei pra cá faz um ano. Cursava uma faculdade de Biologia em Manaus, morava por lá. Meus pais nasceram no Acre, e foi nesse lugar que nasci e passei a infância.
Eles venderam o restaurante que tinham, estavam aposentados, e queriam morar perto do mar. Acharam a nova casa pela internet. Eu nunca discordei, passava minhas
breves férias com eles. Depois que se adoentaram, decidi largar tudo e vir cuidar deles. Ajudei como pude. Minha única irmã tinha que administrar seu filho e o trabalho,
mas ela se esforçou por eles também. Esse lugar estava desorganizado assim, como vê, então imagine isso três vezes mais, e ainda não será comparável à calamidade
que encontrei.
Uma nova música preenche a estação de rádio, esta de rock alternativo, o ritmo contrariando a situação. Embalo Vênus e a rodopio um pouco lento demais, como se ela
fosse o satélite agora.
- Você teve coragem de largar tudo. Acredito que eles te amavam muito, e que você fez a coisa certa.
- Sim, eu fiz, sei disso - ela cessa a dança, vai até a sala e desliga seu rádio. Oferece uns biscoitos para seu papagaio solto, tira-os de uma embalagem aberta
sobre seu armário marrom que sustenta também peças de porcelana. Depois volta à sala, debruça-se sobre aquele sofá onde as duas peças foram unidas para formar somente
um. - O que me entristece é que eles só precisavam de um pouco de atenção. De algumas pessoas. Não falo de seus pais, eles até ajudavam, sim. Mas eu soube que estavam
numa situação ruim um pouco tarde. Cheguei atrasada. Eles só dormiam, e mal saíam da cama quando eu estava aqui. Até o dia que...
- Que viraram estrelas - seguro suas mãos ao cortar nossa distância. Ficamos em silêncio por alguns minutos.
Sento-me próximo, no ombro do sofá, o corpo dela deitado e com os braços juntos sobre o dorso parece uma estátua querubim. Fito novamente o interior de sua casa.
Quadros desajustados pelas paredes, que contém imagens de sua infância. Das janelas abertas tem cortinas finas e amarelas, que dançam na brisa singela, e quando
se alteiam mostram o mundo afora: o muro do outro vizinho de madeira pontilhada, como setas cravadas no chão apontando para o alto, a casa numa tintura verde desbotada,
e um pedaço do céu que se mostra sombriamente roxo.
Vênus suspira longamente no momento de uma forte rajada de vento que faz as cortinas tremerem, Seus olhos examinam o teto de gesso, onde há uma luminária apagada.
Parece estar ainda mais nervosa, seu pé direito começou a sacudir.
- E então, como eles já vendiam coisas na loja, vestidos de renda que minha mãe fazia, eu adicionei o que sabia fazer. Mas acho que as pessoas compram minhas coisas
por pena...
- Ei - minha mão ergue seu queixo. - Você é um planeta. As pessoas giram em torno de você - ela segura meus dedos e fica me olhando com aquela atmosfera nebulosa.
- Esbanja vivacidade, não pena.
- Quando um planeta chora, o quê acontece? - ela quer saber, evitando agora minhas mãos, tentando enclausurar sua dor.
- Uma linda cachoeira se forma numa área de solo seco - atrevo-me a passear meus dedos por seu rosto úmido, por cima do nariz, afastando o cabelo que planeja fechar
sua visão.
- Você mentiu agora - acusa ela, mas sem me afastar. - Quando um planeta chora, ocorre o transbordamento. Os mares ficam nervosos. Nascem tempestades.
- E sempre chega um sol depois das tempestades - beijo a ponta do seu nariz. - Que limpa o medo, e aquece o coração dos assombrados - um novo beijo por suas bochechas,
sobre as lágrimas. - E equilibra a vida mais uma vez - tenho o plano de selar nossos lábios com rapidez, para depois me afastar e deixá-la processar aquilo, mas
ela vira o rosto, fecha os olhos, e suas sobrancelhas franzem.
O silêncio é constrangedor, mas permaneço no lugar. Depois de alguns minutos, que mais pareceram horas, ela revela os olhos, sem nada a me dizer, e volta a encarar
seu teto. É quando insisto em fazer uma nova pergunta:
- Você quer passar o Natal comigo? Com tanta atenção pra ser despejada sobre os convidados, meus pais ficarão meio ocupados, como sempre acontece nessa noite. Mal
notarão nossa presença.
- Vai ter milho cozido? - é o único desejo dela, arqueando as sobrancelhas sem desviar os olhos do alto, ainda parecendo distraída.
- Tudo de bom que você possa imaginar feito com milho. Principalmente bolos. Minha mãe ama bolos.
Parece que consegui restaurar um fiapo de sua animação.
- Vejo que ela é realmente mais interessante do que imaginei. - E nisso levanta-se, ajeita os cabelos, e me encara com atenção. - Você deve ficar com eles agora,
não? Não precisam de sua ajuda?
Infiltro-me sobre seus olhos, e imagino as palavras que ela não quer soltar ali, para não serem acusatórias. Parece ditar: você deve cuidar dos seus pais, enquanto
ainda os tem vivos. Deve estar o máximo perto, enquanto tiver oportunidade. Precisa abraçar quem você ama antes que virem estrelas. Antes de estarem distantes.
- Vem comigo?
- Hm... Preciso terminar umas pinturas... - faz um movimento de rotação com os olhos, percebo que está escondendo anseios.
- Ah, Vênus, é Natal! Vamos, realize esse pedido meu. As pessoas fazem coisas legais umas com as outras nesta época...
- As pessoas deviam ser legais com as outras em todas as épocas - ela se ergue e direciona-se para sua sala de fabricar artes, abre a porta. Agora parece irritada.
- Eu preciso fazer uma coisa legal por mim mesma, que é me sustentar. Gosto de produzir algo vendível todo dia, isso faz com que me sinta bem - segura o trinco da
porta do quarto, uma penúltima lançada de olhar para minha direção. - Feche a porta quando sair, por favor. Meu papagaio não gosta de ver ela aberta.
- Qual o nome do seu papagaio?
- Ele não tem nome - responde indubitável. Sorrio com isso, mas ela parece temerosa.
- Você não tem medo de te roubarem? É mesmo por conta do papagaio?
Vênus detém-se por alguns instantes. Vejo agora que uma linha passou por seus lábios, bamboleante. - O que tinha de mais raro aqui já foi roubado - fita o chão num
relance. - Até mais tarde, vizinho - e fecha-se em sua sala de produções. Até mesmo sua janela, pois ouço o barulho rígido das venezianas sendo tapadas.
Retorno para casa saciado de alguns mistérios. Querendo poder ajudar aquele planeta. Querendo apagar suas tempestades.
? ESTRELAS ?
TERÇA, 24 DE DEZEMBRO, 19H18MIN.
A tarde moveu-se com lentidão. Vi sorrisos, algumas brigas, meus pais correndo de canto a outro. Crianças derrubando jarros e arruinando o jardim. Alguns primos
transformaram a sala de estar num show de karaokê, onde participei de algumas músicas. Acho que não mandei tão mal assim no vocal, mas com certeza ninguém notou,
escolhi bandas internacionais que poucos conheciam. Meus tios seguiram afirmando que eu precisava cantar algo no qual eles entendessem, e não aquele monte de frases
que lhe soaram como xingamentos. Essa foi a parte divertida, porque algumas músicas realmente continham xingamentos.
Infiltrei-me várias vezes em meu quarto e abri a janela. Mas em nenhuma das escapatórias vi sinal da janela de Vênus sorrindo para mim. Evitei os fundos da casa,
lá estava acontecendo um churrasco bem desorganizado entre avós e tios, com salsichas na grelha. Retornei ao meu quarto e decidi tomar um longo banho, vestir uma
roupa de minha adolescência e ignorar as novas e sérias vestimentas. Alguns resquícios da Revolta das Roupas ainda pululando na minha mente.
No mais tardar da noite, entro noutro banho rápido. Logo já estou enxugando meu cabelo como um cão remexendo seu pelo, só que fazendo isso com o auxílio da toalha,
enquanto passeio despidamente pelo quarto. No guarda-roupa escolho uma cueca boxer branca, com duas listras pretas horizontais na parte superior, e me visto aos
pulos, usando uma só mão, enquanto tateio o móvel aberto atrás dos itens indispensáveis. Acho a bolsa de viagem cinzenta e fico munido de um desodorante spray, onde
quase destruo a camada de ozônio ao utilizá-lo. Borrifo sobre mim um perfume amadeirado não muito forte. Sinto que eu poderia usar meu atual desleixe, por conta
dessas minhas férias breves, e ignorar tudo isso. Mas essa noite parece ser especial, pede esses cuidados. E não, isso não é coisa de garota.
Depois de arrumado, com uma camisa amassada azul-escuro, calça preta folgada e um AllStar azul-marinho - na aparência de dezessete anos outra vez, sendo que tenho
vinte - pulo a janela e caminho até o encontro de Vênus. Esperando que ela não tenha mudado de ideia, não tenha modificado seus polos de decisões. Rezando para estar
com os pensamentos ordenados.
Vejo ela exuberante, na frente de sua varanda iluminada por somente uma lâmpada fluorescente. Vênus decidiu usar um novo vestido, este de um bege claro, que combina
com sua pele e acetina a cor rubra do cabelo. Algumas lantejoulas discretas serpenteiam por bordados simples, dando um brilho suave. O contorno que o vestido faz
em seu corpo me enche de vontade de poder contorná-lo com as mãos. Prendeu seu cabelo para trás num coque alto e arredondado, seguindo o estilo da cantora Adele
no videoclipe Rolling In The Deep, liso, um pouco diferente do que me acostumei a ver.
- Você roubou todo o brilho das constelações - afirmo.
- Acho que meu cabelo vai estourar - ela finge não ouvir o comentário, endireita o coque, e vários fios encaracolados e ruivos se desprendem. - Desse jeito ele pesa
menos - suspira. E essa agora parece mais com ela. Diferente e tão atraente.
- Quero que se sinta bem, primeiro de tudo. Veja como estou, se isso te animar - com isso, ela desvia o olhar para mim, e solta uma risadinha, mas se achega e massageia
as mangas de minha camisa azul desbotada que tem a face de uma pantera rugindo. - Eles vão gostar de você independente disso, e também irão te ignorar, como fazem
comigo. Estão bebendo e comendo desde cedo, presumo que poucos estarão acordados até a ceia.
- Talvez eles tomem energéticos - suas palavras são ditas através de lábios róseos. Um batom que parece ser sua marca registrada. Parecem chamar meu nome a cada
movimento. Fisgo esse pensamento arriscado: queria que os lábios dela me dessem uma dose diária de energia. - Eu acho que preciso de um energético também.
- Aposto que sim. Vamos? - indico meu braço, e ela enlaça o seu por entre ele. Entramos unidos pelo salão, como um casal desconsertado. Uma jovem de dezoito anos
vestida lindamente, um adulto de vinte com roupas esquisitas de adolescente. Ao contrário do que pensei, Vênus consegue esbanjar seu charme em palavras para todos.
Ela é a própria festa. Está no momento de sua aurora boreal, encantando cada ser presente. Demonstra um sorriso, que é jogado para mim, e devolvido para outros.
Um desfile pela minha casa, que não é tão grande assim. A sala inicial é a parte mais extensa e cheia de gargalhadas.
Vênus cochicha para mim:
- As pessoas poderiam usar seus sorrisos amigáveis como porta-retratos e dependurar sempre algum por onde andam. Assim, quando olharem para trás, admirariam a felicidade
fragmentada em cada passo.
Sorrio, é meu primeiro ato.
- Acho que isso seria legal. Uma exposição de bons momentos. Está tendo ideias novamente?
Ela assente com um movimento de queixo.
Rodopiamos pela sala esbarrando em estantes com comida; provamos creme de milho, bolinhos de milho, cocadas e brigadeiros de variados tipos enquanto tomamos champanhe.
Apreciamos fatias de bolos de coco, beliscamos panetones e tomamos refrigerante com energético misturado. Até que finalmente chegamos à cozinha, onde algumas de
minhas tias se locomovem, tentando não sujar suas roupas novas ao repassar os penúltimos aperitivos, levando-os para ficarem a disposição de todos. É como se minha
casa tivesse se transformando num castelo.
- Está sentindo o cheiro? - pergunto num sussurro para a garota ao lado.
- Sim. Vem de lá - Vênus aponta para uma bandeja de alumínio coberta por um pano branco, estacionada acima do filtro de água, ao lado do microondas.
- Você tem um bom faro para isso - digo surpreso ao revelar o mistério da bandeja. Milho ainda quente, cozido. Pegamos duas espigas e nos deleitamos, sorrindo do
modo como nossos dentes ficam com farelos presos.
A ceia compartilhada contém peru, moqueca de peixe, caju cristalizado, mousse de caju, macaxeira gratinada com carne seca, ostras, camarões, casquinha de caranguejo,
arroz de leite inundado em legumes, e muitas outras especiarias que minha mãe faz tão bem. Quando encerramos, partimos para os abraços, as manifestações de carinho
adversas junto a canções contendo tilintares de sinos. Logo mais vejo a maior parte das pessoas já derrubada por sofás e cadeiras, o restante consciente prolonga
conversas e risos enfraquecidos por corredores amarelados. Eu e Vênus maneiramos na refeição por já termos beliscado o bastante pela casa.
- Quer namorar o céu agora? - pergunta-me Vênus, e tenho a ligeira lembrança de um ótimo lugar para fazer isso.
Guio-a pelo meio de pessoas que já cumprimentamos. Subimos discretamente o primeiro lance de escadas. No seguinte andar também há outros trocando conversa, encaram-nos
por breves segundos e tornam a nos ignorar. Levo-a até o final do corredor e abro uma porta que poucos possuem acesso. O cômodo é pequeno, minha mãe ainda usa-o
para guardar vassouras. Pela parede lateral há ferros fincados na horizontal, com espaçamento de trinta centímetros cada, formando uma escada para o teto. Subo primeiro,
e destranco a janela acima que dá acesso ao térreo. O baque que sucede é por conta dos anos que não foi aberta.
- Seguro? - ela pergunta de baixo.
- Como um abrigo.
O vento nos chicoteia. A noite está radiante. Finalmente as estrelas apareceram. Algumas nuvens ainda estão borrando nossa visão do vasto teto estrelado, mas por
pouco espaço. Caminhamos pelo térreo com cuidado, passando algumas vigas. Seguro na mão direita dela.
- Pise onde eu pisar - alerto-a. - É a única parte da casa onde minha mãe não fez uma limpeza...
Nossos passos chegam até uma ampla área que foi limpa pela brutalidade do vento constante. Estiro-me ao chão e Vênus se senta ao meu lado, as pernas meio cruzadas.
Está com o pescoço erguido, e afago as costas de sua mão com o polegar.
- Esse é o hoje mais iluminado que já vivi - sussurro.
Vênus declina seu olhar até meu rosto. Vejo indecisão no que ela está pensando em dizer. Imagino que na sua mente tenha uma extensa rede de meteoritos, atingindo
suas bases de segurança, gerando assim essas ansiedades amedrontadas.
- Quer ouvir uma história pequena? É sobre uma garota-girafa.
Como assinto, ela ergue seu olhar mais uma vez, e começa a debulhar palavras para mim. Ouço-a de olhos fechados, a história é esta:
O tronco perambulava pelo chão, mas a cabeça estava nas nuvens. Era uma garota-girafa. Certa vez, um desconhecido perguntou-lhe de longe, por que não mostrava seus
olhos. E lá de cima arremessou um murmuro: "Tenho medo de conhecer pessoas, é muito difícil quando as desconhecemos depois". Aquele foi seu primeiro medo atirado
que o estranho aparou. Desde então, sem perceber, ela foi fazendo-o conhecê-la, com a troca de seus temores pelas verdades dele. Tornou-se seu amigo logo, trocaram
olhares, até que suas ideias foram salvas e penduradas por varais de nuvens.
Demoro alguns minutos refletindo sobre as imagens que sua voz me desperta. Tento me firmar no local do desconhecido, mas sei que não sou ele. E penso se ela está
querendo me dizer, de uma forma diferente, que já tem um alguém que partilha segredos.
- Você é a garota-girafa - afirmo isso com certeza no olhar. Ela partilha da minha segurança. - E o desconhecido, onde ele está? - Vênus suspende minha mão, levanta
um de meus dedos e indica-o rumo ao céu. - Se transformou em uma estrela - desvendo. Um breve movimento de seu queixo confirma. - E por isso as ideias de vocês estão
salvas por varais de nuvens, salvas para sempre.
- Foi meu primeiro amor. Um acidente de carro. Ele estava bêbado, e tinha outra garota ao lado dele.
Sucedem alguns minutos silenciosos. Imagino que seja um assunto delicado, que ela não queira relatar os detalhes exatos, por isso me vem outra espécie de pergunta:
- Quantas dessas estrelas você reconhece no céu, as que passaram pela sua vida?
Vênus ergue mais três dedos, e abre minha palma. Quatro. Quatro estrelas que perdeu. Me assombro. Seus pais e um namorado somam três estrelas. Falta uma. Talvez
por isso seja tão fechada, e tenha quedas de humor, ou não confie muito nos outros. Apesar de que ainda mantém um belo pensamento: acredita no amor. No amor do hoje.
Ela é uma contradição ambulante. Acho que tem medo que eu me torne uma daquelas estrelas a lhe observar, sem não mais poder tocar. E um calafrio passa por meu corpo.
O hoje. Aproveitar o hoje.
- Você tem algum desejo de natal? - ela me pergunta, e dessa vez se deita ao meu lado. O corpo tentando angariar calor com o meu, um toque sobre meu ombro. Os cabelos
dela acariciam meu queixo. Tem cheiro de lavanda.
- Meu desejo já está aqui, se realizando do meu lado.
E selo nossos lábios uma nova vez. Lento. Ela não me evita.
- Eu desejo um beijo mais longo - ela sussurra, e eu realizo o pedido nos minutos seguintes.
Não há gosto de chocolate em sua boca, porque na verdade beijo não tem gosto algum. Mas quando se usa um pouco de imaginação misturado com a emoção do instante,
você sente algo diferente e saboroso, na medida em que as línguas se tocam e não querem mais parar de bailar por um novo céu. O beijo dela tem gosto de tudo o que
há de bom no mundo inteiro.
- Feliz Natal, Vênus - sussurro quando pausamos. Ela deita o rosto sobre meu peito, e imagino que irá chorar. Não consigo ter uma certeza exata de suas emoções.
É esse mistério que me amedronta, e cativa.
Uma estrela cadente corta a noite. Um planeta toca meu coração.
- Ele já está sendo feliz, Faber.
? PINTURAS ?
QUARTA-FEIRA, 25 DE DEZEMBRO
Acordei sentindo o peso de um planeta. Um planeta leve e belo sobre meu peito. Estamos despidos de nossos medos, e ainda vestidos com poucas roupas. Um colado ao
outro. E a noite foi maravilhosa, aos poucos me chegam os flashes de lembranças de como terminara.
O teto é branco com salpicos de tintas. Há muitos papéis pelo chão, e até mesmo sobre nosso cobertor. Estamos deitados sobre os dois sofás em conjunto da sua sala.
Vênus me trouxe aqui quando a noite ficou muito fria e as primeiras gotas de chuva nos fizeram correr, alegremente, pelos nossos quintais escuros, caindo sobre gramados
e canteiros de cebolas.
Levanto-me com cuidado, e deito seu rosto sobre um travesseiro no formato da cabeça de um urso panda. Fito por alguns segundos mais seu rosto sereno, lavado de qualquer
linha de preocupação, e desligo seu rádio - que ainda está tocando músicas natalinas. Levo para sua pia as canecas sujas de chocolate quente que tomamos ontem. Não
há nenhuma outra peça suja, nisso decido lavá-las e preenchê-las de mais chocolate quente. Abro sua geladeira - a sensação é de que estou invadindo um banco - e
vejo que não há muitos itens alimentícios.
Adentro em seu quarto de artes, e vejo uma recente pintura, um rosto. Parece-me familiar. Parece comigo. Vendo mais de perto, percebo que a tinta ainda não secou
completamente. Imagino se ela acordou na madrugada e desenhou-me. Um corpo deitado sobre uma grande manta azul - que se assemelha a cor de seu sofá. O rosto de olhos
fechados. Alguns traços espirais, tonalidades errantes, borrões de dedos. E de repente tudo ali parece admirável. Vou decifrando a mente dela a cada quadro. Um papagaio,
que sei não ter nome, no desenho ele não tem bico também. O mar e uma presilha de flores flutuando sobre o pássaro. Um esboço de sorriso através de um rosto angelical,
com cabelos em formas de chamas esvoaçantes. Este último eu tenho o ímpeto de arrancar para ver de perto. Ela conseguiu se desenhar, e ficou perfeito, apesar de
ter feito seu cabelo como chamas, e de o vestido estar borrado.
Um pequeno barulho capta minha atenção e meus olhos encontram a porta, que está sendo segura pela metade, com um rosto esboçando um meio sorriso. Ela está usando
minha camisa azul, que encobre até metade de suas coxas nuas.
- Ainda provando ser intrometido?
- Feliz manhã de Natal pra você também, Vênus. Estou decifrando melhor esse lugar. Você tem uma mente maravilhosa.
Ela passeia por onde já andei, para próxima de mim e toca meu braço.
- Alguns desenhos ficam imperfeitos, outros eu consigo terminar. Você foi uma arte de poucos minutos aqui. Parece que tem me dado inspiração, vizinho. Não é uma
surpresa isso? - seus dedos dançam e passeiam por meu ombro, arranham de leve. As unhas dela são pintadas de um esmalte amarelo, mordidas nas pontas, a cor combina
com seus olhos de caramelo. O timbre dessas palavras, que me parecem melhores do que um 'estou gostando de você', me fazem romper nossa distância. Minhas mãos se
apoiam em suas costas, e nos colo da forma como passamos a noite inteira, um sentindo os batimentos do outro.
- Você parece ter saído de um desses quadros, a mais bela arte viva - afirmo isso num sussurro, é a verdade que cada célula de meu corpo confirma.
Depois tomamos chocolate quente juntos, sentados em sua janela, fitando o céu de nuvens esfareladas e o sol que já se ergueu há duas horas. Ela passa uma perna por
entre as minhas, solta um sorriso sem mostrar os dentes, e ficamos de frente um para o outro, as xícaras com desenhos natalinos cobrindo nossos lábios, os olhos
se encontrando.
- Tenho um presente para você, mas acho que já o encontrou - ela desce e caminha até um certo quadro, arranca a tela e me estende meu próprio autorretrato. - Uma
fotografia de como você dorme. De boca aberta. Sou muito detalhista, não é? - e sorri de maneira meiga. Penso em dizer que seria melhor se presente fosse aquele
desenho que ela fez de si mesma, mas é claro que não reclamaria. É um presente. Foi feito por ela. Tem o mesmo significado. Não, tem mais importância ainda.
Pego-o e suspendo na janela, a maior parte da folha caindo para dentro do cômodo. Ponho minha xícara no peitoril, próximo da minha perna, e ela segura a borda do
desenho. Vênus está balançando suas pernas para fora da janela, sentada ao meu lado ali.
- Pelo menos dessa vez é uma parte menos constrangedora...
- O que há de constrangedor no corpo humano? Todos têm sua beleza, acontece que poucos enxergam - fala isso como se fosse de outro planeta. Mas na verdade, ela é
propriamente outro planeta.
- Nada, eu só falei que... - e paro ao dizer isso. Vênus retira minha grande camisa do seu corpo e arremessa-a para trás, no chão de seu quatro de artes. Não está
de sutiã. Nem de calcinha. Caio sobre seu canteiro de cebolas mais uma vez.
Quando me levanto, voltando ao parapeito da janela, ela agora está com os seios cobertos de tinta lilás, e pincelando mais cor por seus braços, fazendo alguns desenhos.
- Estranho como a cena mudou um pouco, não acha? Agora você está na minha janela. Intrometido - e sorri.
- Eu não tenho uma câmera. Mas gostaria de ter.
- Os olhos são câmeras de memória infinita - ela diz isso, e um respingo de tinta chega até meu peito. Pulo para o quarto e menciono fechar sua janela quando começo
a me despir também. Ela não está dando atenção para minhas vestes em seu piso, mas pede que eu não feche a luz, gosta da claridade que o dia trás, afirma que deixa
as cores mais intensas. Liberta a harmonia do instante. Ameniza.
- Posso? - peço seu pincel, que agora está tingido de vermelho. Ela me repassa-o meio hesitante. E continuo o que ela esteve fazendo pelo próprio braço, pequenas
pétalas de rosas esvoaçando na atmosfera de seu corpo. Vira-se, segurando o cabelo no alto, e eu faço milhares de desenhos pelas suas costas, descendo lentamente
e com demora em algumas partes, até terminar em seus pés.
Estou ainda ajoelhado quando Vênus fica de frente para mim, fito-a de baixo para cima, percebendo as outras flores que ela esteve pintando em si, enquanto eu cuidava
das costas. Estou respirando o ar puro. Meus olhos entendem o que ela quis retratar. Por seu rosto há duas borboletas, meio borradas de cada lado da bochecha. No
pescoço voam pássaros. Nos seios há montanhas, onde uma cachoeira deságua pelo meio. E descendo encontro mais outras magnificências. Ela é um planeta de biodiversidade
inestimável.
- Você sabe como me deixar fascinado - me levanto, pouco a pouco apreciando cada traço dela, cada desenho em curvas, e encontro o céu ao redor de seus olhos. Demoro
apreciando o fascínio.
- Posso? - me pede de volta o pincel, segurando uma nova lata, esta contendo tinta amarela. Vejo que seus lábios estão azuis como o oceano, e sinto vontade de mergulhar
neles. Mas me acalmo. Não nos beijamos desde ontem, no térreo de casa. Entrego-lhe o que me pede.
Vênus começa a pintar meu corpo com as próprias mãos depois de alguns minutos. A palma lisa espalhando a tinta. Sou uma estátua no tempo que se segue. Paciente.
Esperando. Desvendando pouco a pouco o que ela está fazendo. Trocando tintas. Misturando cores para criar novas. Usando cinza e branco sobre meu peito, e amarelo
com vermelho.
Depois de terminado, eu sou um grande sol. Com nuvens cobrindo minhas partes intimas, e o grande sol cobrindo meu peito esquerdo, com lampejos terminando nas costas.
Um ser luminoso.
- Aqui é onde o sol nasce - ela toca meu peito esquerdo e sente meus batimentos acelerados.
- Eu posso ser o seu sol? - isso, ao invés de animá-la, mina uma estranha emoção. - Imagino que esteja pensando que o sol é inalcançável, que é uma estrela e tal.
Mas serei um sol diferente. Quero te posicionar no centro da minha galáxia. Aquecerei, e ajudarei você a movimentar seus sonhos.
- É que tenho medo dos cometas - diz, ignorando minhas palavras. Uma nota baixa infiltra-se por sua voz, seus passos se direcionam até a janela.
Sigo-a, e nisso lhe abraço por trás.
- Qual o seu nome? - ela pergunta, parando, mas suspeito de não ter esquecido.
- Faber - respondo com um toque por seu cabelo, afagando. - O sol e seu planeta alinhados, bem próximos. O que será que nasce de uma relação dessas? - beijo sua
nuca de leve enquanto ela mantém-se silenciosa, os olhos fitando o mundo. Giro-a e dou atenção ao seu rosto com placidez emanando de mim. Penso em perguntar-lhe
no que está pensando. Aos poucos, vejo que está séria. Que talvez não queira responder coisa nenhuma.
Uma rajada de vento chega abruptamente, arrepia nossos corpos, faz as árvores lá fora balançarem com risco de partirem-se. Nuvens carregadas preenchem a região com
rapidez, e um trovão rasga o silêncio do céu.
- Faber - ela diz meu nome pela segunda vez, com o novo olhar sombrio, ruminando uma resposta nada tranquilizadora -, o Sol e o planeta bem próximos só gera destruição.
? PRESENTES ?
QUINTA-FEIRA, 26 DE DEZEMBRO
Lendo, tenho lampejos das histórias de Vênus sobre suas estrelas, e de repente começo a formular, depois a cantarolar uma breve nota para este dia. É basicamente
assim:
A tarde infestou-se com bolhas de sabão. Os humanos contaminados pelo vírus do cansaço arquearam os olhos, e foram abduzidos pelas esferas flutuantes. Perderam o
ar de seriedade, inflaram seus pulmões com o sossego de pensamentos. Os enclausurados que protegiam angústias, se esconderam. A maior bolha amarela estava acima
das nuvens, e sugava aborrecimentos por tempo determinado. Era preciso aproveitar o momento.
Depois que a chuva passou, consumiu o dia inteiro de ontem e ainda levou parte dessa nova manhã embora. Mas eu estava no grupo dos enclausurados. Vênus e eu passamos
a manhã em nossas casas, separados. Achei que estava tudo bem conosco. Parecia tudo bem. Dormimos juntos. Até tomamos café da manhã com biscoitos recheados e fizemos
algumas pinturas pelo corpo ontem. Ela não abriu a porta quando a chamei hoje. É como se a tempestade tivesse ativado alguma lembrança em sua vida, algo ruim, e
então ela me mandasse embora para conseguir espaço. Do nada agiu assim. Como entender? E será que agora, com o tempo arejado, voltou ao normal?
- Faber? Faber? - minha mãe chama com leves toques na porta. Murmuro que estou ali, que pode entrar. - Está doente?
Faço um sinal de negação com o rosto. Ela se debruça sobre a cama e me acolhe. Lentamente um abraço singelo. Imagino que ela vai cantar uma canção de ninar a qualquer
momento, mas não o faz. Sinceramente, eu gostaria de ouvir uma, pois são tranquilizadoras ainda nessa fase da vida. Depois, ela se afasta, com sua calça de seda
na cor pastel, e uma blusa branca simples estampada com o nome Jesus Cristo.
- Então se levante, venha aproveitar o dia. Já estamos nos despedindo de alguns dos seus tios - ela acaricia meu rosto, remexe os curtos cabelos que não mais usaram
gel, e sente o cheiro da minha camisa com nova atenção. - Não está meio mofada, essa aqui? O quê houve com suas roupas novas?
- Estou ignorando elas o máximo que consigo - afirmo, me levantando e sentando ao seu lado, a escuridão do quarto sendo varrida pela porta aberta que trás a luminosidade
do corredor.
- Adorei aquela garota de vestido branco. Qual era mesmo o nome dela? - desdobra a manga da minha camisa e tenta usar suas palmas pela gola, como se fossem um ferro
de passar movido a dedos.
- Vênus.
- Vênus. Uma deusa - minha mãe suspira. - Por que não convida ela pra vir aqui à noite novamente? Diz pra ela trazer seus pais...
Percebo que minha mãe não a reconheceu. Que não lembra tratar-se de sua vizinha. Decido não revelar isso.
- Mãe, eu a conheci faz uns dois dias, por ai.
- Dá pra se apaixonar em dois dias - ela pisca e toca minha bochecha. - Bonitão como meu filho é, dá pra se apaixonar em dois segundos - solta tapinhas no meu joelho,
levanta-se, estende a mão e me puxa para fora do quarto. - Mas agora precisamos dar atenção às visitas.
Queria que ela estivesse certa disso, com relação à garota. Será que Vênus também sente estes estalos no coração?
Passamos o começo da tarde nos ocupando com os parentes. Recebi mais presentes: algumas meias e roupas íntimas com tamanhos errados, um relógio de pulso, outra calça,
e mais algumas bugigangas. Porém, o que me alegrou foram os livros, há tempos que não me presenteavam com essa perfeição toda.
Lembro de quando tinha mais tempo para leitura. Quando a realidade esmagava, os livros me reconstruíam.
Uma das minhas avós maternas vira-se para mim quando abro o presente que me deu, enquanto folheio-o, e diz:
- É lendo que mais depressa arrancamos o sedentarismo da alma - desenlaça um sorriso. Agradeço com um abraço. Ela me arrancou todas as palavras da mente nesse momento.
Por um breve instante, esqueço sobre os problemas do passado que até esta pessoa mesma nos afligiu.
Gasto a sobra da tarde pelo térreo, com o vento assolando, o sol contra uma parede nas minhas costas, alguns raios chegando até a nuca. O mar é distante, mas um
terço dele está visível dali. Vez por outra olho para a casa vizinha à direita, e vejo uma janela fechada, com um canteiro de cebolas destruído abaixo. Um livro
em minhas mãos já devorado pela metade.
Minha ansiedade parcialmente quieta. Cinquenta por cento. Talvez um pouco menos.
Quero invadir uma casa onde mora uma garota de cabelos rubros que pinta quadros brilhantes. Pular uma certa janela. Desenhar flores em Vênus mais uma vez. Ela me
deixou com desejos estranhos. Quero somente isso mesmo, estar perto dela. Só assim para dar um jeito na minha impaciência. Ou talvez tenha outro jeito de me sentir
calmo...
Saio do térreo quando o sol desaponta no horizonte. Atravesso a casa pouco movimentada, com algumas das famílias já se despedindo dos meus pais. Aceno para poucos,
e então consigo me desgrudar do amontoado. As ruas estão folheadas de carros estacionados, e de nenhum ser vivo visível. Até mesmo os pássaros parecem estar com
suas famílias, quietos em seus ninhos e no oco das árvores. Acho que devo ser a pessoa mais deslocada da galáxia.
Impeço-me de passar próximo à casa de Pedro. Tenho evitado falar com ele. Receio que meu Facebook esteja acumulado de mensagens suas. Andei menos com meu celular
ultimamente, e nele eu percebi ter perdido ligações. Algumas de trabalho. Mensagens de variados tipos. Não respondi nenhuma delas, o que me parece algo errado. Por
hoje, não quero saber disso. Quero afogar meus receios. E o mar parece uma solução.
Espero que o mar esteja agitado. Com ondas altas. Quero surfar sobre meus medos. Molhar minhas incertezas com o sal. Quero e quero tantas coisas.
Caminho de encontro ao ponto onde me encontrei com Vênus antes, na noite do sarau. Perambulo rumando para um píer velho, e ao caminhar por cima dele, ouvindo meus
passos promoverem rangidos na madeira velha, vejo um corpo estendido na areia da praia, a minha direita, coberto também pelas sombras que o crepúsculo já está criando.
Um vestido amarelo com rendas e lantejoulas recobrem a estrutura inerte. Tufos de cabelos que mais parecem algas avermelhadas recobrem o crânio. Vênus. Inconsciente.
É nessas horas que os celulares são indispensáveis.
? FERIMENTOS ?
QUINTA-FEIRA, 26 DE DEZEMBRO
O céu está escurecendo, e meu interior também. Sinto o coração dela batendo fracamente, quase inaudível, através do vestido ensopado, e isso me tira o medo por alguns
segundos. Retiro o cabelo de seu rosto. Vamos lá, Faber, pense rápido. 1. Deixar o corpo confortável e de costas para baixo. Ok. 2. Fazer fricção com os pulsos sobre
o pulmão, num ritmo acelerado, para que a água seja expelida. Certo. 3. Abrir seus lábios, tapar seu nariz e fazer trocas de oxigênio. Vamos lá.
Nos primeiros segundos Vênus não reage às minhas debilitadas táticas de salvamento. Quando começo a me desesperar, praticamente enviando meu pulmão para dentro de
sua boca, ela abre os olhos, alarmada, vira o rosto de lado e vomita água.
- Dessa vez eu queria ser a flor no mar - ela resfolega, tossindo, se desprendendo de mim e engatinhando na areia, a cabeça baixa, expugnando os resquícios de líquido
em excesso que ingeriu. - Mas ele pelo menos me jogou de volta pra praia. - gira o corpo e se senta, de frente para a visão do mar. - E aqui vai um aviso: não nade
nessa parte. Tem algumas pedras logo mais a direita. Ou à esquerda. Estou meio confusa, quando melhorar, te digo onde não deve nadar - torna a fechar os olhos. Um
fiapo de sangue mina de sua testa, e as costas das mãos estão arranhadas.
Quando vou falar algo, Vênus se deita na areia e vejo seu corpo estremecer. Retiro minha camisa e me desloco sobre ela, levantando-a com uma mão no ombro e outra
na lateral de seu corpo.
- Preciso te levar pro hospital, garota-planeta - sussurro, seu rosto se enterra no meu pescoço e tenho dificuldade em vesti-la com minha camisa. Em seguida ergo-a
nos braços, e ela suspira um pouco, a testa demonstrando certa irritação. Meio desorientada.
- Qual o seu nome? - pergunta quando os olhos tornam a se abrir. Minha chateação pelos seus atos estranhos passou num segundo.
- Marte - digo-lhe.
- Olá, Marte - uma mão toca meu queixo, esboçando meio sorriso.
Atravesso a avenida pouco deserta e nos direciono ao hospital mais próximo. O hospital mais próximo fica distante. Algumas pessoas nos veem necessitando de ajuda,
mas reviram os rostos ao notar isso, preguiçosos demais, com nenhum tempo de sobra para gastar com desconhecidos. Assim é a maior parte das pessoas, indispostas
a ajudar.
- Pode me soltar, consigo andar - ela tenta desvencilhar-se de mim, e aperto-a mais, relutante.
- Sem essa.
- Você é bruto. Ouvi dizer que existe vida em você. É mesmo verdade, Marte? - despeja perguntas desconexas, a prova de que seu incidente na praia foi sério.
Passo em frente a duas clínicas particulares fechadas, até chegar ao hospital público. Incrivelmente há pessoas feridas ali também. Acidentes de carro envolvendo
pessoas alcoolizadas em maioria. Algumas crianças com rostos chorosos agarrando-se em suas mães, pais, ou irmãos. No hospital, Vênus consegue se locomover, com as
mãos seguras em meu ombro. Cambaleante. Somos atendidos com demora. Aguardamos sobre duas cadeiras nada confortáveis, estou na que perdeu seu apoio para as costas.
Vênus deita-se em sua cadeira, os pés apoiados em mais outra, posiciona a nuca nas minhas pernas e me olha como se eu fosse uma constelação.
- Era só uma oferenda boba. Sabe, o mar leva flores para as estrelas. Não estava praticando para a minha travessia - as mãos chegam para tapar sua visão. Vejo o
arranhão em seu braço, a raspagem sobre uma rocha, e só então começo a dar atenção para o que ela esta dizendo. - E eu me esqueci de fazer isso hoje cedo. Esqueci.
Burra como sou, esqueci. Porque estava...
- Porque estava comigo - afago seu cabelo. - Tudo bem, já passou.
Seus olhos me encontram, e estão indecisos.
- Não me arrependi de nada. O Faber é legal. Marte me trouxe para ajuda. Quantas pessoas boas ainda há em você?
- Tento desenhar novos sentimentos todo dia - repondo-lhe de outro modo, ativando um pequeno fiapo de brilho em suas expressões.
- Tente não dar nomes a estes sentimentos, Faber. Deixe-os ser independentes e escolherem por conta própria.
- Vênus? - ela espera. - Tente me dizer o que sente. Gostaria de ter a certeza, porque toda manhã você está diferente. E não sei como lidar com sua personalidade
forte o tempo inteiro. Tente me ajudar, entenda meu lado. Por favor. Me diga o que sente.
- Você quer ouvir uma daquelas pequenas histórias?
Demoro a lhe responder por não estar a fim de desvendar mais nada, mas por fim assinto com um dar de ombros. Espero. Ela começa como se um pequeno público de crianças
estivesse lhe ouvindo, um tanto animada, e destila, aos sopros, essa breve narrativa:
Era uma garota-gaivota. Todo dia voava sobre montanhas de desilusões. Uma vez encontrou uma árvore tão grande, que sua copa chegava até as nuvens. Pousou num dos
galhos, e a árvore remexeu-se, perguntou-lhe: "o que procuras, leve pássaro?" Lhe respondeu que queria uma sombra, pois suas asas estavam cansadas. A árvore então
lhe deu duas grandes folhas, que ela grudou em suas patas. Assim, conseguia rebater aquela ventania de aflições com disposição. A árvore afirmou-lhe que poderia
contar com sua sombra sempre. Até que um dia, alguém arrancou seu sombreiro. Quando a gaivota olhou pro alto, viu raízes saindo de uma imensa nuvem. A árvore estava
no céu, inalcançável. No entanto, ela tinha duas folhas, e com elas aprendia a ser inabalável.
Tento decifrar suas emoções, e há pouco que ela deixa transpassar. Quando ela conta uma história, tem toda uma combinação precisa. Tem vários sentidos de sua vida
contidos ali. É isso que consigo entender. A quarta estrela.
- Qual das estrelas que perdeu, esta árvore era?
- Meu avô. Viveu a vida que sempre quis. Sorriu até o último dia - percebo que não há tristeza ali, um território seguro de suas emoções demonstradas, como uma recordação
que ela sente mais entendimento positivo do que pesar.
Logo que somos atendidos, a recepcionista pede nossos documentos. Eu trouxe meu RG, Vênus esqueceu-se do dela.
- Qual seu nome? - a funcionária quer saber, erguendo uma fina sobrancelha para ela. E então a garota ao meu lado começa a tagarelar sobre porque todos precisam
nomear tudo nesse mundo, que isso é um ato meio errado de seu ponto.
- Vênus. O nome dela é Vênus - falo rápido para a mulher, privando-a de uma trovoada de aborrecimentos. Ela digita sobre algumas teclas em seu notebook e nos repassa
uma ficha para assinarmos. Depois, nos direciona para uma sala, onde seremos atendidos. Onde adentramos, e ficamos na espera, em silêncio.
Vênus senta-se na maca, e com os minutos se alongando, estira-se ali. Eu apenas observo aparelhos de medição cardíaca desligados. A doutora que chega para cuidar
de Vênus aparenta ter a idade de minha mãe, o tamanho é o mesmo, mas os cabelos são amarrados e tingidos na cor âmbar. Uniforme branco impecável. Vênus adormece
instantaneamente na maca, enquanto essa doutora limpa e cola um curativo por sua testa.
- Você pode ficar com ela até ela se sentir bem. Talvez precise de um repouso, mas... - vejo seu olhar de indecisão e decifro que não seria aconselhável ficarmos
ali, pois há muitos outros para serem atendidos, e poucas salas disponíveis.
- Obrigado - agradeço, e começo a sussurrar para que Vênus acorde. Ela reluta de olhos fechados.
- O planeta precisa dormir só mais um dia - resmunga, mas a ergo pelos braços. Quando seus pés tocam o chão, ela acorda de repente, confusa, olha ao redor, vê a
médica, as pessoas próximas do corredor esperando para serem atendidas, e enterra seu rosto no meu pescoço. - Me leve pro mar, por favor. Por favor. Por favor -
o sussurro estende-se. É uma criança agora.
Encontramos ruas desertas, bem iluminadas de cores emanando dos pisca-piscas, como se esperassem uma caravana com sambistas passar por ali.
- De que adianta todo este brilho noturno, se poucos dão atenção? - estou carregando Vênus outra vez. Meus braços parecem se acostumar com seu peso a cada minuto
restante. Quando esgoto minha força, ela caminha bamboleando ao meu lado. Estou indo direto para sua casa, nada de mar por hoje, e ela percebeu isso. Calou-se por
longos momentos. Esteve me ignorando e namorando o céu.
- De que adianta todas as estrelas no céu, se poucos dão atenção? - ela reformula minha própria pergunta. Dessa forma eu entendo ter feito uma pergunta idiota. -
São mais do que simbólicas. É o sentimento de uns poucos, costurados para quem quiser ver. Algum gigante costurou seus sentimentos no céu também.
Vênus dorme em meu colo antes de eu chegar a sua casa. Ela deixou a porta somente encostada, e duas lâmpadas internas acesas. Quando entro, um grito me recebe.
- Quem é você? O que fez com ela? - uma mulher com cerca de trinta anos segura um porrete, brandindo para mim. Urro de susto, mas consigo deslocar Vênus para o sofá
em segurança.
- Achei ela ferida na praia. Levei até o hospital. Trouxe de volta - ergo as mãos em rendição, proferindo cada frase com pausas. - Sou amigo dela.
- Mamãe, ele é o novo vizinho, gosta da tia Vêh - Cauã sai de trás de seu vestido. Ela o barra, limita-o de se aproximar, mas sua indecisão está se despedaçando
aos poucos.
- Você gosta dela? - me pergunta toda cheia de suspeita.
- Gosto, sim.
- Então saia da vida dela. O quanto antes. Ela não precisa de outro mané pra destruir seus sentimentos. Já foi muito difícil recuperar sua sanidade da última vez,
então, faça um favor a ela e esqueça-a - abaixa seu porrete depois de ditar suas ordens. Sinto-me como se tivesse levado uma surra com suas palavras.
- Eu não vou fazer mal a ela.
- É o que todos dizem no começo.
Logo recordo que daqui a poucos dias terei de voltar para uma desgastante rotina, numa região bem distante. Como encaixar um planeta naquele lugar? Se é que Vênus
aceitaria vir comigo. É claro que não aceitaria. Por que aceitaria?
- Saia - dita sua irmã, que desconheço nome, e que prefiro não conhecer mais.
Olho uma última vez para garota no sofá. Vênus boceja, seu queixo franze parecendo estar num sonho ruim. A testa treme levemente com o curativo. Beijo sua bochecha,
temendo levar uma porretada, e então saio sem nenhuma defesa.
? ÁLBUNS ?
SEXTA-FEIRA, 27 DE DEZEMBRO
A maré está ofegando. Começa a nascer um burburinho de vozes pelas minhas costas depois de três horas, é a cidade se erguendo às oito da manhã. Estou desde as cinco
sentado na areia. Hoje esperei pelo sol. As ondas do mar são barulhentas, porém meus pensamentos são mais. Fiquei na sombra do píer, no lado oposto de onde achei
Vênus no dia anterior. Minha calça verde-escura de tecido grosso está dobrada até o joelho. Tirei minha camiseta cinza quando o sol alardeou sua quentura pela região,
torci e pousei-a no meu ombro.
Búzios e variadas conchas estão espalhadas pela areia, que brilha como microscópicos cacos de diamante sendo arrastos pela ventania. O chapinhar dos passos alerta
meus sentidos, e meu rosto se direciona para a direção do som. Da primeira vez recebi uma visita de um guarda costeiro, que, me notando deitado na praia, achou que
estivesse morto. Decidi me manter sentado no restante do tempo, com meu rosto e peito sendo banhados pela luminosidade flamejante do sol. Mas agora quem está chegando
é uma garota de cabelos densos que escondem uma mente com ainda mais embaraços.
Vênus caminha com a face inclinada para o mar, o vento adorando brincar com suas madeixas. Hoje se cobriu com um short jeans azul-claro, curto e recheado de fiapos
nas bordas, como se alguém o tivesse rasgado. A blusa oliva de náilon parece apertar suas costelas. Seguras nas mãos há duas latas, que suponho ser refrigerante.
- Posso me intrometer no seu silêncio? - ela ergue as latinhas. - Eu tenho chá gelado e suco de pêssego.
- Você é expert em se intrometer.
Ela se senta ao lado e me repassa o suco de pêssego.- Ou você prefere o chá? Eu até teria trazido uma cerveja pra você, mas no Bar do Caramujo está em falta nessas
horas.
- Não sou muito fã de cerveja - abro a latinha, o lacre de alumínio sendo erguido pelo polegar, reproduzindo um típico estalo. - Você sabia que eu estava aqui?
- Não. Passei hoje na lojinha do chalé, tirei a poeira do lugar e então decidi vir até o píer pra treinar minha travessia no mar, daí te vi de longe - ela começa
a apreciar seu Chá Matte gelado.
- Que espécie de travessia é essa? - tomo um gole, e sinto que o aromatizante de pêssego é mais forte que o comum, desce arranhando minha garganta.
- Você não entenderia...
Fazemos silêncio, ficamos apreciando as ondas quebrando e gaivotas grasnando ao se empoleirar em pedras quase submersas, distantes.
- Minha irmã deve ter sido tão ignorante com você... Me desculpe por isso. Ela só está mais protetora, principalmente depois que meus pais se foram, parece loucura.
Às vezes acho que ela se sente a única culpada daquele... acontecimento. Mas não a culpo. E então conheci uns caras e, é aquela coisa, se apaixonar e sofrer e tentar
seguir. Ela tem medo dessas minhas fases. Porque ela me conhece.
- Irmã protetora. Arrogante. Entendi.
- Ei! Ela sabe ser alguém legal quando quer, não fale mal - ela se desloca para mais perto e afaga meu ombro, os olhos sincronizados com os meus. - Obrigado por
ontem, por tudo. Você me impressiona, Marte.
Nossos rostos estão clamando por um beijo nesse instante, e ele quase acontece, mas uma bola de vôlei, com duplas cores espirais, vermelha e branca, quica na minha
cabeça e pula na água.
- Ou! - minhas sobrancelhas franzem de chateação ao ver o grupo de moleques chegando ali. Uns estão dizendo de longe "Desculpa aí, tio", outros nos contornando velozmente
e se apossando de sua bola outra vez. Vênus está rindo, tentando se segurar.
- Sua expressão está engraçada - ela diz, continuando a sorrir.
- E quando vai me mostrar seu local de trabalho? - tento mudar de assunto rápido, relembrando e me interessando de fato sobre o lugar onde ela ganha seu sustento,
e isso faz Vênus se aquietar, o que me relaxa.
Ela deixa seu chá-lata enterrado na areia até a metade, cruza as pernas e apoia as mãos sobre elas num abraço, me lança uma expressão de dúvida, que evolui para
divertimento, e depois revira o rosto pro horizonte, deixando a brisa chacoalhar seus cabelos para longe dos olhos. Os lábios pequenos parecem tonificados, um pequeno
lampejo de brilho escorre por eles quando ela afaga um sobre o outro, e então sela-os com grande permanência. Sei que está me observando de reflexo, e devo estar
parecendo um bobalhão. Talvez eu sempre fique assim, meio sem orbitas, quando Vênus aparece. Fico a imaginar as linhas e trópicos de pensamentos que se passam pela
sua mente, até que ela se levanta de repente e me oferece sua mão.
- Vamos lá então, seu intrometido - ela sorri e segura minha palma, me arranca do chão em seguida.
Caminhamos fazendo as pegadas ficarem fundas na areia. Passamos de frente a um pequeno porto chamado Pécem, momentaneamente vazio, com cerca de cinco embarcações
brancas estacionadas que sustentam contêineres de metal lacrados. No lado esquerdo, a Avenida Boa Viagem tem seu movimento amenizado, e além dela situam-se vários
hotéis de luxo que dão uma ótima visão da orla. O Atlante Plaza é um dos mais destacados entre eles. Mas poucas janelas ou varandas estão apreciando este dia ensolarado.
Vênus toca minha mão, deixa uma beliscada ali, e sussurra:
- É aquela, a minha maquina de vender artes - aponta para um chalé pequeno, situado atrás de um paredão de barro e duas grandes pedras, como se alguém tivesse erguido
o solo para escondê-lo da cidade às suas costas.
Quatro coqueiros fazem a ronda através do chalé, ajudando a cobrir o teto, e no chão se ramificam cravos-de-areia, uma planta típica dessas áreas litorâneas. O chalé
é revestido com madeira tingida em um azul claro, todo desbotado, tem uma varanda singela, cheia de sinos de vento afivelados no teto de palha. Na frente, há duas
portas com retângulos de vidro encaixados sobre ripas, além das janelas, que também seguem o padrão das portas. Por trás, há um cercado, envolvendo como um retângulo
as costas do chalé, um quintal. A cerca de madeira é emaranhada de plantas trepadeiras, alta até meu ombro, e o seu interior é abarrotado de outras plantas, sendo
que um grande cajueiro no centro tem sua copa cobrindo todo o cercado, numa espécie de abraço. É como uma pequena residência, somente quem passa pela praia nota-lhe.
Subimos os dois degraus de chegar na varanda. O piso amadeirado range com nosso peso. Pelo chão, cinco jarros de porcelana pintados a mão fazem uma fileira, com
tulipas e bromélias sorrindo de suas bases. Esbarro a testa num sino de vento enquanto ela abre uma das portas.
- Sabe, eu amo isso aqui - ela adentra e já estanca num balcão que fica quase grudado na outra extremidade da parede. Tem dois cômodos, o que estamos ficam suas
obras de arte; há quadros pelas paredes das mais variadas paisagens e estacionados pelo chão abarrotados por cima de outros. Anões de jardim e milhares de outros
bichinhos de gesso circundam as extremidades das paredes. Mais sinos de vento. Miniaturas de santos com mensagens de "Estive na praia de Boa Viagem". Calendários
de bolso. E mais uma porção de outras coisas sobre as prateleiras nas laterais do cômodo. Além dessa área, uma entrada sem porta dá passagem para outro cômodo com
apenas uma pequena parte visível, onde mostra também a porta dos fundos, feita de madeira envernizada, com três ferrolhos espalhados num espaçamento de cinco palmos.
Vênus passa engatinhando por uma portinha discreta abaixo do balcão, ergue-se do outro lado, debruça os cotovelos sobre ele, e suas mãos seguram o rosto. Imagino
que ela deve permanecer assim quando submete seu tempo às vendas.
- Fique a vontade. Qualquer ajuda, estou aqui - lança uma piscadela ao me tratar como um cliente.
- Estou procurando um quadro com uma garota-planeta e um sol... - raspo o polegar no queixo de modo interrogativo, enquanto procuro faceiramente o item que não tenho
ideia alguma se ela o desenhou. O nu artístico que fizemos na quarta-feira de Natal.
- Não tenho nenhum quadro assim, desculpe - ela atrai meu olhar com um estalar de dedos sobre o balcão. - Porém, tenho uma foto de um momento estranho, sobre um
canteiro de cebolas, se lhe agradar - ela ativa meu sorriso ao dizer isso. - Só não sei se é uma boa ideia... - e tão logo desconecta meu entusiasmo.
- Por que não seria?
- Está no quintal junto com outras fotos. Me espera aqui pra eu pegar?
- Claro. Palavra de escoteiro - junto dois dedos e os levanto ao canto da testa, demonstrando confiança no ato.
Vênus vira-se, passa para a parte do cômodo vazio, abre a porta dos fundos, desce os degraus e seus tufos avermelhados somem no meio da folhagem com mil tonalidades
de verde. Me direciono para a porta da varanda e avisto o mar roncando, a praia vazia, céu limpo e claro. Solto um assobio, giro o corpo, pego impulso e corro para
o balcão, dando um salto e me estagnando na parede oposta com um leve baque. Caminho com silêncio para a porta dos fundos e adentro no mundo verde.
De começo, só sinto os galhos arranhando meu rosto enquanto busco passagem, meio agachado. Depois, ouço os passos sobre o tapete de folhas secas no chão, em seguida
os próprios pés dela, com poucos centímetros dos meus. Ergo o corpo lentamente, o olhar subindo, fazendo uma vistoria por seu corpo delineado, e chego aos olhos
dela, notando a chateação emanando dali.
- Suponho que você não seja escoteiro - seus braços estão na cintura, num modo de protesto.
- Sou, sim. Mas um do tipo intrometido - sorrio. E paro de olhar para ela quando vejo onde estamos. O centro do seu pequeno quintal, ao lado do tronco do cajueiro,
que tem uma copa espessa e tão baixa que parece proteger a área num abraço verdejante. O muro chega a ser quase imperceptível. O chão tem um colchão de folhas. Mas
o que chama a atenção são as fotos, milhares delas, dependuradas individualmente por grossos fios vermelhos e amarrados pelos galhos da árvore, chacoalhando pelo
ar a medida que a brisa marítima consegue romper o paredão de ramos. E em cada foto há Vênus, sorrindo com familiares e amigos; reconheço somente seu sobrinho Cauã
e sua irmã. Pelos traços semelhantes à garota do meu lado, vejo dois idosos com numerosas fotos repetidas, que tenho a suspeita de serem seus pais em momentos de
vivacidade.
- Desculpe, eu não pensei que fosse uma espécie de lugar sagrado pra você, ou coisa assim - fito-a, e percebo que ela não está chateada, mas agora olhando para mim
com certa admiração.
- Você merece estar aqui, eu sinto. Tenho uma inclinação para saber quando as pessoas serão importantes pra mim - ela alteia apenas uma mão, e quase sem olhar fisga
uma fotografia, girando-a para me mostrar. Tem a nossa queda no canteiro de cebolas ali, um beijo incompleto.
- Essa foto te agrada? - ela balança a fotografia e joga-a para mim, o fio desfila pelo meio dos outros e eu o agarro com precisão. Quando faço que sim, e selo meus
lábios sobre nosso rosto capturado por pixels, ela rompe o espaço entre nossos corpos e me beija contra o tronco do cajueiro. O beijo se multiplica em dois, depois
em quatro, em oito, até que ela se afasta ao perceber minhas mãos apertando sua cintura, e querendo descer sobre suas costas até a fronteira. Quando ela me beija,
sinto vontade de tirar a roupa.
- Tem alguma daquelas suas histórias que se encaixa sobre este lugar? - tento burlar nosso breve silêncio. Ela nega, rodopia entre as fotografias, dando uma volta
ao redor da árvore, tocando em cada foto como se fossem frutas dependuradas e maduras, depois escolhe uma para me mostrar.
Passamos boa parte da manhã conversando sobre as histórias que cada foto guardava. Conheci mais sobre os pais de Vênus, os artistas que compraram aquele chalé, que
se conheceram numa exposição de fotografia há várias décadas atrás. Sobre sua irmã adorável na infância, que se tornou uma adolescente rebelde, tendo o filho Cauã
aos dezessete, de um pai que se evaporou no mundo depois que soube da gravidez. Tinha foto somente de um namorado, o que morreu no acidente de carro junto a sua
amante, que ela não fez questão de mencionar tanto, só que ele merecia estar ali. Dos avós, o que morreu, e os que continuam vivos e morando numa cidade bem afastada
dali. E ainda de alguns poucos amigos que teve na escola, e hoje em dia estão distantes, ou se distanciaram por querer. Sei que nos sentamos no chão de folhas secas
depois das cinco primeiras histórias, eu segurei sua mão quando o relato era triste, e sorri alto nos momentos engraçados que envolviam basicamente sua infância.
Percebia que ela tinha poucas pessoas hoje em dia para trocar conversa, e isso, de algum modo, arranhava meu coração.
- Quer provar do mar? - ela se levanta depois das histórias acabarem, e percebermos que nos aninhamos um ao outro, encostados nas raízes da árvore. Levanto com certa
rigidez, que se quebra na correria até seu chalé, onde vamos nos livrando das roupas até ficarmos com as peças necessárias para o banho público - ela com biquíni
amarelo, eu com uma sunga preta.
No mar, esquecemos o restante do mundo e só damos espaço para os sorrisos. Perto dela, é como estar em outro planeta, onde a alegria reina e os medos são marés que
se quebram com um sopro.
? COMBATES ?
SEXTA-FEIRA, 27 DE DEZEMBRO
Chego em casa no meio da tarde.
- Onde esteve? - minha mãe quer saber.
- Afogando alguns monstros - gesticulo os ombros. Aceito um bolinho de chuva que ela me repassa. Meu pai não está em nenhuma parte visível. Há duas famílias acomodadas
ali ainda, meus tios com seus filhos, garotos com menos de dez anos cada. Tenho muitos parentes, e pouca memória para lembrar o nome de cada um. Passo por minha
mãe, com intuito de sumir em meu quarto, mas sua frase seguinte me estagna.
- Aquela ruivinha veio aqui hoje cedo. Eu disse que você ainda estava dormindo, nem te vi sair. Filho, tudo bem mesmo?
- Sim, mãe. Está vendo? - arqueio um sorriso realmente alegre. Ela assente, desconfiada. Hoje usa uma calça de seda branca, e uma blusa lilás pontilhada de três
grandes botões.
- Pedro está no seu quarto - ela despeja a informação e some rumando para a cozinha.
Pedro está folheando minhas antigas revistas Playboy, relaxado pelo meio da minha cama. A janela está aberta, e de relance vejo que a de Vênus está também, mas ninguém
visível pelo seu quarto de fabricar artes. Decido fechar a minha e ligo a claridade do ambiente.
- Sabe o que é mais interessante que estas revistas? São estas fotos aqui - Pedro despeja fotografias pela minha cama. Vou me aproximando lentamente até perceber
que são vários garotos nus, juntos com a mesma garota nas fotos. Tingidos de vários tons e desenhos. Inclusive tem uma foto dele, meu amigo, segurando os seios de
Vênus. Minha visão está sendo tingida agora. E a tinta que meus nervos usam é vermelha.
- Tentei te alertar bem antes, porque sou seu amigo - ele se senta na minha cama. - Tem muitas garotas pra você namorar nessa cidade, cara, mas esta aqui é do tipo
que se usa por uma noite.
Avanço para ele e paro alguns segundos de seu olhar. Olhos de águia, cortantes.
- Você não a conhece! Ela tira essas fotos pela arte.
- Tem certeza?
- Claro! - mas minha voz se desequilibra. A manhã foi ótima com aquela garota. O que poderia ser isso? Ciúmes está se aflorando pela minha pele. E se eu realmente
não tiver certeza? Ela tem uma personalidade bem diferente, isso é fato. Não, é só pela arte. Vênus é uma artista. É isso.
- Ela abre as pernas pela arte também - ele diz, esboçando um risinho de lado.
Um baque surdo. Pedro vai parar no chão de madeira, estatelado. Ele levanta-se pra revidar, e começamos um combate demorado. Recebo um soco no estômago. Miro seu
rosto e meu punho direito estremece aquela arcada dentária. Pelo meio da confusão, não vejo quando a porta do quarto foi aberta. Um braço nos separa, e atiro outro
murro cego pelo ar, que acerta meu pai.
- Qual a idade de vocês? Porque estou contando nos dedos e não consigo ultrapassar dos nove! - essa é a voz de minha mãe, amparando meu pai que sangra pelo nariz.
- Desculpe, mãe, eu, eu... não sei de nada - estou gaguejando. Tentando me impor ordem, mas não consigo. Meu cérebro parece uma roda gigante sem freio, com cadeiras
ocupadas de nervos gritando. - Não achei que existia tanta brutalidade em mim.
- Pedro, venha aqui e deixa-me ver esse queixo - minha mãe o chama, mas ele a ultrapassa e chega à porta. O olhar de ira está me incinerando. Sua boca também sangra.
No momento, meu rosto parece intacto de dor, mas só porque está engessado em adrenalina e ódio ao mesmo tempo. Ódio por ele.
- Esquece que sou teu amigo - são suas palavras finais. E eu quase sorrio.
Meus pais notam as fotos pela minha cama. Tento decifrar o que estão pensando através de seus olhares compartilhados.
- Oh, Deus. São fotos da vizinha - minha mãe quem aponta primeiro, uma mão tapa a boca, assimilando quem mais é esta vizinha. Parece horrorizada. Não sei se pelo
motivo certo. Não sei se existe um motivo certo para tudo isso.
- São. Da garota que tenho saído. Aquela mesma que apareceu na noite de Natal.
- Deixe ele comigo, Amélia - meu pai a despensa com uma leve tapinha no ombro, estancando o fluxo de sangue do lábio inferior com uma flanela branca. Segurando também
uma camiseta velha minha pelo nariz sangrando. Um rosto avermelhado me encara. - Olhe, não sei que problema está tendo. Você não me conta muita coisa já faz anos.
Mas agora isso? Violência?
- Quem é você para falar sobre violência? - confronto ele. Percebo que manteve o ímpeto de me esmurrar. O rosto é um tomate agora.
- Já superamos aquela fase, você sabe disso. Faz muitos anos que não bebo. Sua mãe me perdoou desde aquele tempo. Mas você nunca.
Nunca.
Nunca.
Nunca, uma palavra que se estende por meus pensamentos.
Os flashes retornam. Tenho o corpo de oito anos outra vez. Moro numa casa pequena, de uma cidade pacata no interior de Recife, bem longe do mar. Sustento sonhos
sobre ser astronauta.
É noite e minha mãe está falando comigo, que devo dormir, que não preciso me preocupar com ela, que está tudo bem. Ela se deita no sofá e espera, espera, espera.
Meu pai demora a chegar, e quando aparece, quase derruba a porta de entrada. Acordei pela terceira vez. A porta do meu quarto está entreaberta, tem uma fresta de
luz que fura a escuridão e chega até meus olhos. Meus passos descalços são lentos.
Meu pai esbarra em coisas enquanto marcha pela sala. Está tonto de bebida, o cheiro de álcool penetra o ar. Vejo que ele passou pela minha mãe sem percebê-la, chega
à cozinha, abre a geladeira e toma água direito de uma jarra. Atravessa a sala outra vez e se assusta com minha mãe ali, já sentada.
- Estava preocupada, e ouvi uns barulhos no teto, e... - e recebe um tapão gratuito no rosto que a faz deitar-se no sofá outra vez. Meu pai segurava um copo, e no
momento de sua agressão, ele caiu e se estilhaçou. Um caco voou até minha porta. Ele deu outro passo para bater na minha mãe, e então escorregou na água que derramou.
Caiu sobre os cacos, e não mais se ergueu. Desmaiou de exaustão, sem nem ao menos se incomodar com os ferimentos. O álcool serviu de morfina. Os roncos são cortantes
também.
Minha mãe aguentava isso todo fim de semana. Eu não entendia o por quê.
- Solta - ela tira com cuidado da minha mão o caco de vidro que seguro, que está rasgando minha palma, que tem uma ponta apoiada no pescoço de meu pai.
- Mãe, por que não o deixamos? Pra sempre?
Ela segura sua respiração. Teria de suportá-lo. Teria de ser forte para não explodir, era o que afirmava muitas vezes. - Ele é seu pai. E não temos para onde ir...
- Mãe, nós podemos conquistar o mundo juntos.
Ela quis sorrir, mas não conseguiu. O lado direito do rosto mantinha uma vermelhidão pelo recente contato brusco de uma mão.
Fiquei com aquilo enclausurado. Pensei em nuvens no momento. Mas como estava de noite, as nuvens se tingiram de azul escuro, depois preto, e desabaram sobre mim.
Meu pai está me encarando agora. Ainda tem algumas cicatrizes pelo dito dia, espalhadas em seu rosto. Uma lembrança eterna daqueles tempos. Ele quer alguma resposta,
mas não consigo achar nenhuma. Porque acho que perdoar é muito difícil, quando se trata de alguém que agrediu parte de seu coração na infância.
E por um instante aquele drama me faz esquecer o novo. A garota.
Ela abre as pernas pela arte. Ela abre as pernas pela arte.
- Estar estudando é menos doloroso do que tudo isso. Os anos passam mais rápidos. Vou embora.
- Não, filho - fiapos de lágrimas desgrudam dos olhos dele, e eu só consigo pensar que são falsas. - Você tem todo o direito de estar aqui. Eu posso sair.
- Não - minha mãe chega para nos abraçar em conjunto, estava ouvindo tudo atrás da porta. Sinto-me sufocado com isso. A pressão do momento, não os simples braços
tentando criar uma força potente para nos segurar.
- Amélia, não começa...
- Deixe ela falar! - corto-o, só pelo prazer de confrontá-lo.
Recebemos os dois um olhar dolorido de minha mãe. Ela passa a mão pela testa e desce os dedos pelo meio das sobrancelhas, enxuga ali as primeiras lágrimas.
- Vocês são os dois homens da minha vida. Nós três já cometemos muitos erros, e ainda cairemos nessas armadilhas. Mas será que não podemos ficar juntos um final
de semana, sem despertar o passado? Será que podem parar de guerrear um com o outro? Eu preciso dos dois pilares para me sentir completa.
E só por causa dela, eu desativo minhas defesas e armas. Calo minhas palavras e saio de casa outra vez.
? FUGITIVOS ?
SÁBADO, 28 DE DEZEMBRO
Minha nova confusão resumida no estilo Vênus:
Decidi fugir. Naveguei por oceanos de confusão e dúvidas. Corri sem rumo, mantendo distância dos males que me sondavam. Vi estranhos rostos e os coloquei em foco.
Sorrisos e aflições variados. Lá fora descobri um mundo não muito diferente do meu. Agora, sempre que desapareço não tardo a me reencontrar de um jeito aprimorado.
Sair pelas ruas me animou. Corri, corri, e corri até meus pés morrerem. Debrucei-me sobre gramados alheios. Distanciei-me do mar o máximo que pude, mas então cheguei
num outro ponto de encontro de suas águas, no bairro vizinho. Achei uma praia com pedras enormes ladrilhando toda a areia e subi por cima de muitas. Vênus me roubou
vários momentos de reflexão.
Tentei correr da dor, mas descobri que não era possível, pois ela tinha raízes fortes pelo meu corpo. E ali passei até me sentir melhor, o que levou a tarde inteira.
Retorno para casa pela praia, evitando as ruas escuras de postes embaçados. Depois de uma hora movido a passos lentos, de ter passado pelo chalé que me foi apresentado
no começo do dia, deparo-me com a praia onde encontrei com Vênus na noite do sarau, perto do píer. O mar está mais raivoso do que no dia, como se espelhasse minha
ira fragmentada. Tem pessoas transitando apenas pelo calçadão, e alguns guardas fazendo rondas a passos lentos, o olhar vagando pela rodovia e caindo na praia vez
por outra. No céu, estrelas foram embaçadas por uma camada gigantesca de nuvens.
Faço então a coisa mais idiota para completar esta data: entro no mar sozinho, e nado para onde meus pés não alcançam o solo. As ondas não tardam a puxar minhas
pernas e começar sua brincadeira violenta. Não sou um suicida. Quero somente lavar meus rancores. Afogar os aborrecimentos. Mas sou engolido também.
O mar me revira dezenas de vezes a cada minuto, por bolhas e espumas de sal. Depois de um tempo, meus braços desistem de nadar, os pés perderam a energia um pouco
antes. Meus pulmões gritam por ajuda, e o pedido não chega até meus lábios. O céu enevoado é a única coisa que vejo antes de fechar os olhos. Vi algumas estrelas
por um breve espaçamento de nuvens, eu acho.
??
- Ele já está nos ouvindo? - uma voz reconhecível. Uma nota baixa e tremida, aveludada.
- Sim - responde-lhe outro timbre, este grave e estranho. - Está perto de acordar. Parecia desidratado por conta do excesso de água salgada. Mas já vomitou muito.
Ainda bem que havia um vigilante perto daquela praia, se não...
Ouço minha mãe outra vez e meus lábios se mexem:
- Meu filho. Ah, filho... - percebo que estou muito cansado, minhas costas doem. Não sinto minhas pernas, mas consigo mexer meus dedos. Abro os olhos por um instante
e vejo um homem com uniforme branco, minha mãe, e meu pai ao seu lado. A sala também é branca, com equipamentos médicos espalhados sobre mesas e armários. Uma clínica
particular.
Minhas pálpebras pesam cem quilos, e durmo outra vez. Tenho sonhos rápidos e desconexos, onde soco Pedro utilizando controles de videogame, e minha mãe possui cabelos
ruivos e agitados como um enorme espanador. Ela está gritando que eu não devo ficar pelado na frente dos convidados, que isso é muito desagradável.
??
Com o resfolegar ao lado, desperto.
- Doutor, eu creio que o problema deste paciente, seja o coração imprudente.
- Parece ter ocasionado um coma temporário - ele ri. - Como tratamento, nada mais eficaz que três doses diárias de atenção.
Ouço passos se distanciando, avançando uma porta e sumindo por um corredor de outros passos. Imagino que seja Vênus quem tenha ido embora, por isso abro os olhos.
- Ei - ela me saúda sorrindo, sentada ao lado da maca, ajustando meu soro.
Uma parte inicial de mim aceita aquele sorriso doce. E logo me vem em mente suas fotos com outros garotos. Ela abre as pernas pela arte. Quando não devolvo a ação
harmoniosa dos lábios, ela acrescenta:
- Precisamos conversar mais tarde - suas mãos acariciam meu rosto. Os olhos estão calmos como uma suave brisa. Hoje está de calça jeans e uma de minhas camisetas.
Devo ter esquecido esta pela sua casa num certo dia de pinturas.
Ela abre as pernas pela arte.
- Mesmo? Porque não estou com vontade agora, e acho que nem depois - ela afasta-se da minha maca quando as frases lhe chicoteiam.
- Você esqueceu-se de viver o hoje?
- Eu estava vivendo no hoje - afirmo com firmeza.
- Não, você estava matando o hoje - Vênus junta e dobra os braços. No seu rosto escapole um ar desconfiado.
- Não, só queria fazer aquilo de namorar o mar.
- Qual o seu nome? - Vênus me pergunta, mudando o rumo do assunto conflitante. Um novo olhar surge para mim, este agora desafiador. Os cabelos estão presos por um
laço vermelho quase imperceptível dentro da sua natural tonalidade, algumas madeixas escapam do esforçado aperto.
- Faber - há displicência na minha voz, e descontentamento pelo resto do corpo quando ela vai embora sem nada mais a dizer.
??
Chegamos em casa já na madrugada. Participo de um jantar silencioso entre meus pais e as duas famílias que restaram para passar o fim de ano conosco. Eles sabem
do ocorrido por partes. Não sei por que me esperaram chegar para então se alimentarem. O dia parece ter sido o mais longo e tempestuoso da minha vida.
- Olhe, aquilo foi um acidente - corto a quietude. Alguns garfos param de tilintar. Poucos olhares me confrontam. As crianças presentes são as mais destemidas e
curiosas. Admiro a coragem das crianças. O restante está assentindo de leve.
- Claro que foi isso - Amélia Sales afaga minha mão com ternura. Meu pai está ao seu lado, é um dos que me encara, e nos olhos dele moram dúvidas.
Percebo que nada do que eu disser agora vai convencê-los bem. Que ontem mesmo estava eclodindo uma guerra pela casa, e hoje eu fugi por várias horas, até que receberam
a ligação do guarda praiano que me retirou do mar. Apenas meus pais foram ao chamado de imediato. E Vênus parece ter pressentido algo de errado, pois apareceu para
saber de mim depois. Roubou a notícia através de algum primo meu, suponho. As três pessoas que mais se importam comigo, num mundo tão lotado. E tudo que consigo
sentir é vontade de mudar algumas horas e consertar este tempo. Mas sei que se tivesse este poder, iria querer mais, e nisso devastaria o mundo. Portanto, chateação
é a melhor coisa que posso sentir agora, ela mostra minha fraqueza, e em seus respingos finais libertam minha coragem de reformar o que foi danificado.
? BOLHAS ?
DOMINGO, 29 DE DEZEMBRO
As histórias de Vênus me seduziram tanto que, quando menos notei, estava debulhando minhas próprias palavras seguindo aquele padrão. Num desses devaneios surgiu
esse pedido:
Queria que hoje o tempo ficasse nublado. Tão nublado que todos pensariam que o sol não mais retornaria. Mas de um nevoeiro diferente, nada de abafamento. Nuvens
polidas, borrifadas de suaves tons, transmitindo imagens para o mundo inteiro ver. Um telão revestindo o céu, onde cada pessoa que olhasse para cima avistaria aqueles
que tanto lhe fazem falta, acenando, sorrindo. Retribuiriam, comovidos, as saudações. Queria que o céu de nuvens televisivas eliminasse pesares para sintonizar doces
emoções.
Porém, não aconteceu como o pensamento narrativo. O céu decidiu ficar num azul perfeito para mergulhar. Estou no térreo faz três horas, minha mãe me chamou para
o almoço há duas.
Continuo devorando o teto azulado e as páginas amareladas de um livro, quando me sobressalto. Uma bolha de sabão estoura no meu rosto. Abaixo o olhar e percebo que
elas dançam ao redor da minha casa. Milhares delas, de variados tamanhos. Noto que se produzem no quintal vizinho, onde uma garota de cabelos turbulentos dança sobre
a grama, soprando um pequeno arco, segurando um copo com água de sabão.
Penso em ignorá-la, mas depois me pergunto por que continuaria fazendo isso. O quanto eu conheço esse novo Pedro, para confiar naquela acusação sobre a garota? O
quanto aquelas fotos revelam de sua índole? E por que não devo aproveitar o hoje, se tenho tão poucos amanhãs próximos para estar com ela? Vênus desvia os olhos
quando lhe encaro com minhas interrogações. Desço até meu quarto e retiro do lixeiro as fotos dela com os outros garotos. No alvoroço, abro minha janela e pulo ao
seu encontro.
É um lugar lindo de ver. Esferas contaminam o ar, e ela não cansa de fazer mais. Quando me achego mais, Vênus não se afasta, e finge que ainda está sozinha. Mas
quando seus lábios dão uma pausa na criação de bolhas, começa a destilar essa breve história:
"Guardou seus pensamentos em bolhas de sabão. Notou que muitas estouravam, e ideias despencavam. As que continuavam flutuando, continham seus desejos mais esperançosos.
Aquelas que se desfaziam, carregavam reflexões suaves, mas com farpas de dúvidas. O que tanto almejava, era mais resistente a queda. Até os sonhos se adaptam a novos
ambientes para se manterem vivos."
- Ei - eu chamo.
- Oi - responde ela. - Hoje está querendo ser intrometido?
- Acho que sim.
Vênus recomeça a fazer bolhas, e agora sopra-as na minha direção. Muitas estouram sobre meu rosto enquanto tento proteger os olhos.
- Isso é covardia, estou desarmado - abano as mãos, estourando muitas de suas criações. E ouvindo isso ela desfaz seu copo de plástico em dois e despeja metade da
sua água com espuma nele. Já tinha um de reserva, e me repassa outro pequeno arco de ferro. Começo a revanche de bolhas, e logo ela corre para se distanciar. Num
momento para, e então se dispõe a criar um novo contra-ataque demorado.
- Qual o seu nome? - lança a típica questão. Nunca sei quando acerto essa, se agrado, ou desagrado nas respostas. Faber já foi citado várias vezes. Marte serviu
bem por alguns instantes. Vizinho foi o rótulo inicial, mas este não é encarado como nome, assim como seu papagaio, não se chama papagaio.
- Não tenho nome hoje.
Ela alarga um sorriso dessa vez, e torna a fechá-lo quando lhes mostro as fotos. Sustenta todas em suas mãos, olha apreciadamente, depois me devolve, tentando captar
o que estou pensando. Como não digo nada, ela despeja outra de suas histórias revezando com bolhas de sabão, e ouço o borbulhar do seu timbre:
Ela plantava mentiras, para si mesma. E no começo, colhia flores tão belas que decidiu decorar sua casa com elas. O aroma que liberavam era estranho, mas não se
importou. Num certo dia acordou, e viu as paredes enegrecidas e exalando podridão. O jardim estava queimando. Aquela fumaça impregnou-se em sua vida de um jeito
que poucos conseguiam lhe reconhecer. Foi a partir das cinzas que decidiu renascer.
- Estou diante de uma Fênix?
- É um bom nome para um planeta? - sopra uma bolha, que baila centímetros de meu nariz e estoura. Meus olhos se fecham automaticamente quando os primeiros resíduos
líquidos bombardeiam minha pupila.
Confirmo sua pergunta com o polegar, e então preparo mais das esferas transparentes.
- Esses aí me pagaram para fazer uma sessão de fotos assim. Pagaram-me muito bem, posso ficar tranquila no tópico das finanças por um tempo - sua expressão é suave
ao ditar isso, olhando em meus olhos, cessando com a brincadeira. - Foi tudo no mesmo dia. Até achei estranho. Principalmente porque teve um certo alguém que eu
não confiava tanto...
- Quando estas fotos foram tiradas? - indago com uma inquietante suspeita.
- Faz uns dois ou três dias, até me esqueci do tempo agora. Sei que foi numa tarde, e que todos eles cochichavam muito uns com os outros.
Mordo a língua sem querer. Pedro fez isso. Com o único propósito de me humilhar. As fotos não passam de zombaria. A granada que explodiu.
- Não aconteceu nada além das fotos?
- Sim - Vênus cochicha com uma mão em forma de concha sobre os lábios. - Pediram que eu me calasse, pois suas namoradas jamais poderiam saber disso.
Saco meu celular do bolso e faço uma breve checagem no meu perfil do Facebook. Não ativo o bate-papo, e logo vejo minhas suspeitas se concretizarem. Meu mural está
lotado de frases depreciativas, de usuários que tampouco lembro ter adicionado. Todos masculinos. Tem até de Pedro. Escreveram coisas do tipo "A arte é bela, abre
suas portas a todos que a procuram. E que portas belas", "Vermelho em cima, vermelho embaixo", entre outras. Noto que datam de poucas horas. Decido não ler o resto.
Alguns dos meus colegas de universidade comentaram em determinadas publicações, perguntando o que significava tudo aquilo. Tem mais de quarenta mensagens esperando
respostas. Torno a guardar meu aparelho no bolso, sem espelhar nenhuma chateação.
- Você topa fazer uma nova sessão de nu artístico? - faço mais bolhas, que o vento ajuda soprar para perto de Vênus. - Uma onde você possa usar as fotos em sua exposição?
E os olhos dela brilham. Só não sei se brilharão quando eu revelar como ocorrerá dessa vez.
? AMEAÇAS ?
DOMINGO, 29 DE DEZEMBRO
O restante da tarde foi interessante. Visitei os perfis das namoradas de alguns dos caras que tiraram fotos com Vênus. Consegui o telefone de algumas delas ainda
mais rápido. Enviei todas as fotos do ensaio que seus namorados realizaram.
- Que vadia! - recebo tão logo a mensagem de Cintia, a namorada de Pedro.
- Galinha! - diz outra garota, chamada Júlia.
- Vou acabar com ela! - envia a terceira, Caroline.
- Espero que você seja tão atraente pelado quanto é por fora - responde a quarta, Victória. - Brincadeira. Eu topo, gostei da ideia.
- Calma, está esquecendo quem são os culpados. Vênus foi paga para fazer isso, é o trabalho dela. Posso afirmar, ela não fez nada demais com eles. Mas eles não tiraram
estas fotos com boas intenções - envio a mesma mensagem para as três que se revoltaram com o motivo oposto.
À noite, três das cinco namoradas se encontram no meu quarto. Cintia, Júlia e Victória. Vênus trouxe sua câmera, mas esta poderia não ser necessária, já que as participantes
trouxeram modernos aparelhos de celular, com câmeras de boa resolução.
- Não concordo com isso. Acho que devíamos era descontar nela - ouço uma das garotas, Júlia, cochichar isso para Cintia, com o olhar trucidando Vênus.
- E onde eles estão agora? Não era para estarem conosco? - Cintia delata, me deixando animado com aquela intriga. - Sabemos que eles são grandes amigos. Mas os domingos
deveriam ser sagrados para se usar com suas parceiras, não em jogos de futebol.
- Meninas, eles tiraram aquelas fotos. Nada mais justo. Eu topo. E estou cansada daquele machismo idiota deles - essa é Victória comandando as outras, e eu quase
lhe aplaudo. - E francamente, jogos de futebol no domingo? Eles se livram de nós quase sempre. Estamos mais juntas do que eles conosco. E não iremos traí-los, é
só uma repetição do que fizeram. - Ela abaixa um pouco a voz, mas ainda audível. - E ainda veremos aquele bonitão ali pelado... - Victória não se importa de direcionar
o olhar para mim, que estou perto da janela fechada, encarando a situação. Penso que nunca levei tantas garotas para a minha cama de uma só vez. Mas, estou sabendo
que não vai acontecer nada além do profissional.
Cintia ainda parece meio confusa, mas ela veio até aqui, isso já é uma aceitação do plano. Quando Vênus prepara toda a iluminação, e começa a retirar suas roupas,
todas elas fazem o mesmo. Decido acompanhar suas ações.
- Vamos usar tapa sexo - informo para elas, e Vênus auxilia-as com isso.
Logo já estamos começando a nos pintar por inteiro. Tento não olhar diretamente para os desenhos espalhados pelos corpos das garotas. São belos corpos. E Vênus me
pede ajuda mais uma vez em sua pintura, bem quando Victória parecia prestes a fazer o mesmo.
- Ela desenha bem - Victória se alarde. Vênus desenhou uma águia sobre meu corpo. - Mas seu físico ajuda muito.
- Obrigado, eu... - uma pincelada de tinta azul cai sobre meu rosto e boca.
- Epa - Vênus chega para me limpar, com uma camiseta minha em mão. - Foi mal. Às vezes os pincéis voam das minhas mãos. É a arte querendo fluir para o mundo... -
ela pisca para nós. Victória troca um olhar comigo, com um toque de chateação. - E agora, acho que já estamos todos prontos para as fotos. Vamos pessoal! - e solta
uma batida de palmas.
Pulamos juntamente em minha cama, e as garotas parecem tímidas, com exceção de uma animada Victória. Vênus ajusta sua câmera de tripé na minha cômoda.
Cintia pintou-se de violetas e ramos verdes pelos braços. Algumas pétalas caem por seu umbigo e descem até darem uma volta completa, saindo mais flores pelas suas
costas. Folhas que parecem reais, penduradas pelas pernas dela. Júlia é um grande morango, foi sua escolha, vermelha e cheia de linhas diagonais reproduzindo a pele
do fruto. Victória foi desenhada com a ajuda de Vênus também, mas ficou estranha. Pediu para ser transformada numa tigresa, e a tintura opaca deixou-lhe com a aparência
de uma hiena - foi justificado que a tinta amarela estava esgotada. Vênus é uma girafa alaranjada. Seus tons são precisos, combinaram em cada parte. Algumas manchas
negras espalhadas pelo seu magro corpo dão a sensação de que o próprio tronco é o pescoço. Seus cabelos foram aprisionados em tranças que caem discretas pelas costas.
Ajudei a pintar suas costas, mas o lado dianteiro, feito por ela mesma, ficou fantasticamente belo.
Vênus ajusta mais uma vez sua câmera, e pede que mudemos as posições. Victória fica a minha direita. Uma de suas pernas alteada na altura da minha cintura, cobrindo
onde seria o bico da minha águia. Ela sussurrou para que eu segurasse em sua coxa, e o fiz. Cintia está do outro lado, e Julia ergue-se em cinco almofadas atrás
de mim, para assim poder sentar-se em meus ombros. Meu outro braço segura suas pernas ali, até que ela decide passar ambas para cada ombro meu e enlaçá-las à frente
de meu peito, as mãos apoiadas na minha cabeça, o sorriso para a câmera, seu moranguinho do meio das pernas raspando abaixo da minha nuca.
Atrás de nós tem o fundo verde descascado da minha parede, que combina perfeitamente com nossos corpos desenhados.
Vênus fica na nossa frente, meio paralisada com o que está vendo. Parece contente ao máximo, e duvidosa em outros instantes. Temos que soltar um "já estamos no ponto!"
para ela começar as primeiras capturas. Corre para onde estamos e tenta ficar perto de mim. Cintia lhe concede espaço.
Os flashes demoram a cessar.
- É bom tiramos muitas, para depois apagarmos as que ficarem estranhas - Vênus afirma para todos. Trocamos a postura depois. O disparo automático de sua câmera foi
reprogramado umas quatro vezes, até que paramos.
Minha mãe bate na porta no exato momento em que estamos avaliando as fotos, sentados na beirada da cama. Pergunta se queremos alguma coisa para comer, eu aviso que
está tudo bem aqui. E repito isso, pois vejo sua sombra abaixo da porta mantendo-se firme, suas orelhas bisbilhotando.
- Tentem se prevenir direito - ela diz isso e sai do corredor. Olho para as quatro garotas ao meu redor e começamos a rir juntos.
- Eu me diverti muito - Victória espalha seu olhar. - Aposto que será um belo troco para aqueles garotos - e sorri, junto com suas amigas.
Mas Vênus fechou suas expressões, está procurando uma resposta para aquilo que ouviu, esperando que eu diga algo. - Vingança infantil? - me pergunta.
-Tinha outro motivo que eu não te contei... - começo me virando para ela.
Vênus tapa seus ouvidos nos restantes seguintes. Desvenda tudo. Uma gota de lágrima pula dos olhos da garota-girafa quando ela pega sua câmera, abre a janela e salta,
fugindo pelo gramado noturno.
- O que há com ela? - Victória quer saber, desorientada. - Bem, não interessa agora. Vejam só quantas pessoas estão comentando na nossa primeira foto! Marquei nós
todos, menos a girafa esquisitona, já que não tenho ela nos contatos. - Se anima repassando o aparelho. - Cintia, eu acho que seu namoradinho já comentou também...
Pelo novo olhar de Cintia, Júlia, e o que Vênus deixou no ar, sei que cometi um grande erro.
Depois de as garotas se limparem no meu banheiro, deixando um chão de cerâmica branca todo tingido das mais variadas cores, e irem embora, meu celular começa a receber
chamadas de números desconhecidos. Mensagens chegam com as primeiras ameaças. Meu perfil no Facebook tem uma série de novas intimidações. Mas a coisa só fica séria
a meu ver quando pedras voam pelo teto da casa no alongar da noite. Meus pais chamam a polícia duas vezes, viaturas passam e nada encontram de vândalos.
No instante onde consigo dormir, depois de o silêncio reinar, já são três da matina. Tenho sonhos barulhentos também. Estou no térreo quando uma garota gigantesca
e flamejante chega para me oferecer biscoitos e suco sobre uma bandeja metálica do tamanho de uma caixa d'água. O copo que sustenta vira, e lava cai sobre a minha
casa, que começa a derreter lentamente ao meu redor. Num momento nauseante em meio à fumaça, pulo dentro das chamas. Acordo ensopado de suor.
? SILENCIADOS ?
SEGUNDA-FEIRA, 30 DE DEZEMBRO
Essa manhã já começou com uma série de dificuldades. Tentei não dizer aos meus pais o que aprontei, mas tive de fazê-lo após fitarmos a destruição no quintal, as
pichações por paredes e ao redor da casa e nos muros baixos. Amélia Sales me repreendeu como se eu tivesse quinze anos outra vez. Sinceramente, é essa a idade que
estou sentindo ter nestes dias. E me envergonho pouco a pouco.
- Você não pode sair de casa até amanhã - meu pai começa quando retornarmos à segurança e limpeza da sala. Segura no meu ombro com rigidez. - Ouve o que estou dizendo.
- Claro que posso. O que há? Vou ficar preso agora? Eles tiraram fotos com a garota que eu... - gaguejo nessa parte. Como falar o sentimento certo que tenho por
Vênus, se ele é um tanto indecifrável? Ou será que não estou apenas querendo aceitar que já deram um nome para ele, e que não consigo acreditar ainda? -... da garota
que gosto - uma palavra segura. - Não foi tão grave assim para eles, só estão com o orgulho ferido. Isso passa.
- Melhor você preso em casa, do que no fundo de uma cova, dentro de um caixão - minha mãe o defende, com um ar sinistro. - Entenda isso, meu filho, é pro seu bem
- pousa uma de suas magras mãos sobre meu ombro.
- Você tirou fotos com as namoradas deles - meu pai torna a apontar. - Você não irá embora na quarta-feira? Temos a virada do ano em família e ninguém nem precisa
sair de casa. O estoque de comida está equipado. E precisamos resolver a situação da sujeira - seu olhar ergue-se para além da janela.
Passamos a manhã inteira limpando os estragos que vândalos deixaram no quintal. Lixo foi despejado na calçada e sobre vários outros pontos. Só me vêm Pedro em mente,
junto aos seus colegas, os namorados das garotas. E isso me diverte, por cima de toda a loucura do momento.
Alguns vizinhos estão nos estranhando. Sustentando pás logo cedo, varrendo os destroços. Minha mãe fica com o rosto vermelho na maior parte do tempo, mas nada diz.
Sinto os nós se formando em sua garganta, prendendo as palavras afiadas que tanto desejaria ribombar pela face dos desocupados. Meu pai está calmo de um jeito tenso.
Eu estou equilibrado na aparência. Apenas na aparência. O dia amanheceu nublado como as expressões deles dois.
Ao longo da atividade, de certo modo me animo. Suamos muito até deixarmos o exterior da residência apresentável outra vez. O gramado foi limpo parcialmente, algumas
latas de cerveja ainda brotam ao lado de anões e sapos de gesso no jardim. Depois o céu resolveu cobrir-se numa cortina de nuvens ainda mais densas, que não tardou
a chorar sobre nós. As pichações ficaram borradas pelas paredes, em variadas cores, mas ainda dava para se ter uma noção dos palavrões contidos. Ficamos os três
estirados na grama, ouvindo a chuva, sentindo olhares dos vizinhos sobre suas janelas até nós, sem ligarmos a mínima.
- Eu pensei que me mandariam limpar tudo sozinho, sabe - digo para eles meio que gritando, rompendo o silêncio entre nós, mas o chiado das gotas sendo rebatidas
pelo vento abafa minha voz. Viro de lado e dou um chute na minha pá, fazendo-a se afastar por poucos centímetros, caindo numa poça de lama que se formou no gramado
esburacado.
- Eu iria mandar você limpar tudo - minha mãe confirma. - Mas seu pai me lembrou que somos uma equipe.
- Somos um quarteto - meu pai volta a se pronunciar. - É o Quarto Integrante que está nos mandando essa chuva.
A janela de Vênus manteve-se fechada o dia todo. Às vezes suspeito tê-la visto sair, um lampejo vermelho pela sua varanda, mas então sumia muito rápido.
Pela noite, quando penso que já se passou um longo tempo para se anuviar as aflições, resolvo falar com Vênus. Pulo minha janela, ando furtivamente pelo seu quintal,
chego à varanda, bato em sua porta de madeira, vejo uma sombra se aproximando pelos blocos de vidro clareados pela luz interna, que então desaparece junto à luminosidade.
Ela desligou suas lâmpadas e não quer falar comigo. Eu mesmo não quero falar comigo. Mas sinto que precisamos acertar as coisas. Que temos alguma espécie de responsabilidade
um com o outro, mesmo que aparentemente quebrada pelo meu descuido. Vou à sua janela acima do canteiro de cebolas e tento ouvir os sons internos da casa. O quarto
de fabricar artes está silencioso. Capto um tinido muito baixo, quase imperceptível, e então começo a chamar pelo nome dela, como um bêbado apaixonado.
- Vênus... Queria me desculpar. Não era pra ser daquele jeito. Agi como um idiota. O dia foi três vezes mais nebuloso sem você - ouço um ofegar do outro lado da
janela e me convenço de que não estou falando sozinho. - Não quer andar na praia comigo e conversar um pouco? Me perdoe, Vênus . Quero muito te ver. Quando você
olha pra mim, meus problemas vão embora. Isso é sério.
Ela abre apenas as venezianas da janela. A luz no cômodo é azul e fragmentos daquela claridade chegam até seu canteiro de cebolas outra vez reconstruído, percorrem
por minha face angustiada.
- As pessoas poderiam ser legais em qualquer época do ano - a voz dela acerta meu rosto com rigidez, bem quando por fim abre sua janela. A blusa cor de vinho tem
um sol branco estampado no meio - Você parecia legal, até fazer aquilo - quando ela termina, o timbre cortante, percebo que está se segurando para não chorar.
Queria ter a agilidade e força de subir pela janela e abraçá-la, mas a nova expressão me derrotou. Vagueio pela minha mente nesse momento, naquele espaço vazio,
tentando achar alguma coisa engavetada, algum sentimento bom que ainda não recebeu nome, mas os pensamentos conflitantes detectam onde me escondi e invadem a área,
me jogam numa cela maior e tempestuosa, o mundo. Não sei exatamente o que fazer. O que eu digo?
Entro naquele olhar tristonho de Vênus, e fecho meus olhos. Preparo minha voz e faço minha primeira história para ela:
Era uma vez, um indeciso. Ele vivia correndo atrás de corações alheios. Porém, quando se apossava de algum, deixava-o cair, desanimado. Só a emoção da busca lhe
dava prazer... Mas então chegou o dia em que foi assaltado. Abriram seu peito de lata bem diante de seus olhos. Ouvi dizer que ele sofreu e aprendeu a lição, mas
era tarde quando prometeu mudar. Estranhamente, foi sem coração que aprendeu a amar.
Vênus pisca algumas vezes e cogita dizer algo, mas o que sai é um ofegar baixo. Torna a fechar sua janela, de modo lento. Seu olhar frio me desejou uma boa noite,
tão arrepiante que congelou qualquer gota da minha animação.
Caminho pela escuridão tocando as paredes de sua casa, me guiando até a varanda. Atravesso o gramado, duas laranjeiras, pulo o jardim enegrecido e então chego à
calçada. As ruas estão parcialmente vazias e com iluminação fraca. Minha vontade é de correr sem parar nunca mais. Ou me desintegrar lentamente. Eu só tenho alguns
dias por este bairro, e me apaixonei por uma garota de cabelos flamejantes. Hoje a garota está decepcionada comigo.
Aconteceu tanta coisa que ainda não consigo acreditar que se encaixaram em tão poucos dias. Parece com aquela sensação de se estar na praia, o tempo freia e aproveitamos
mais. Isso é psicológico, eu sei. Talvez eu devesse estar tranquilo, voltar para minha cama e ficar com meus pais, que tudo terminará bem. Mas ainda há muita adolescência
no meu corpo, de modo que meus passos correm até a esquina direita, em busca de sentir uma rajada de vento marítima.
Não notei que estava sendo seguido.
- Finalmente o coelhinho da mamãe saiu da toca - é a voz de Pedro. Seguido dele tem mais quatro caras. Um deles atira duas pedras no poste acima de mim, e a escuridão
chove pelo ar. - Cara, eu tentei te ajudar dando uns conselhos, fui legal, um camarada seu esse tempo todo que esteve distante. Ah! E te apresentei a primeira garota
com quem você transou, quando tinha quinze anos. Mas tudo isso foi ignorado - ele volta seu rosto para os comparsas, e por um frasco de claridade consigo enxergar
a falsa frustração em seu rosto. Percebo serem os namorados das garotas que ficaram peladas no meu quarto, e tiraram fotos agarradas comigo.
- Costumam chamar de idiotas aqueles que gostam de exibir seus esforços - soo controlado, mas só na superfície. Eu deveria estar com as pernas tremendo, mas nunca
fui disso. Já enfrentei muitas rixas na vida, não seria agora que iria demonstrar fraqueza.
- Galera, o que vocês acham que esse aqui merece? - e após Pedro dizer isso, o restante aproxima-se com porretes nas mãos. - O mundo é um bom professor, tu já ouviu
esse ditado velho? Te digo um novo agora: as ruas escuras algumas vezes têm aulas pra formatação de caráter.
Sou cercado, e eles começam com os chutes.
Nos primeiros minutos do combate eu desvio, defendo e ataco. Até que sou derrubado. É aí que as coisas começam a dar errado. Sou um saco de pancadas esparramado.
Permaneço acordado, já que não consigo me infiltrar num compartimento vazio no interior da mente, para assim conseguir ignorar o momento. Eles são cinco, fortes,
e minha força para reagir se esgotou nas investidas que recebi.
Sinto cada golpe, e meu corpo se recolhe e retorce. Olho o céu algumas vezes que me dão chance. Encontro estrelas traiçoeiras. Será que eu poderia estar entre elas
logo? Recebo um chute na minha barriga, arfo e me encolho mais. Por que as estrelas não vêm me buscar? Um deles se agacha e recebo um murro no lado esquerdo da face,
que faz meu pescoço girar com um estalo perigoso. Estavam demorando, as estrelas. Demorando. Demorando. Demorando... Um foguete sobe e explode no céu. Os cacos dele
estão caindo, flamejantes, em direção à esquina em que estou. Fecho os olhos, aguardando o fim brilhante que o destino me impôs.
Ouço um grito feminino, um apito distante. Ergo as pálpebras fraquejadas e não encontro mais os destroços do foguete no alto. Suspeito de que isso não passou de
um devaneio. Mas os chutes são reais, e continuam. Os porretes foram largados na rua, acho que meus agressores entenderam que seus pés estão fazendo um trabalho
melhor. Estão liberando toda a raiva por ver as pinturas que fiz junto com suas garotas. A claridade pode estar fraca, mas o ódio emana das faces escurecidas. Numa
compreensão fragmentada, sei que estão mais embravecidos por eu ainda estar consciente.
Mas logo o primeiro se cansa de me agredir, depois outro, até restar Pedro e mais dois. Quanto tempo já se passou? Cinco minutos? Meia-hora? Então, escuto meu nome
sobre um timbre ensandecido. Há uma sirene fazendo alarde, não sei se na minha cabeça, no exterior, ou nos dois lugares. Pararam de me bater quando novos pés entraram
em cena. O visitante trouxe uma lanterna, e do seu lado escuro chega um clique esquisito.
- Deixem meu filho em paz, se não quiserem morrer hoje - a voz é ranhosa, mas equilibrada. Por um olho vejo a arma se adiantando na frente da claridade da lanterna,
suspensa sobre uma mão cheia de tremidos. Tento imaginar como foi que ele soube que eu estava aqui. Porque eu não estava emitindo som algum, não queria que ninguém
descobrisse, o fim seria silencioso. - Vocês querem mesmo morrer hoje, garotos?
Outra voz corta a noite, emitindo meu nome, e a sirene ainda está muito longe, parece dobrar duas esquinas ainda para chegar ali. Agora quero que chegue logo, pois
a nova voz é feminina, e me leva até a infância, em momentos que me colocava para dormir.
- Soltem ele! - este é o terceiro timbre, ainda mais ferino para mim. Uma garota-girafa. - Pedro, pare com isso!
- Fausto, pare com isso! Parem todos com isso, pelo amor de Deus... - minha mãe enuncia mais uma vez, por cima da voz de Vênus.
Quando a atenção de meu pai é desviada, Pedro adianta-se sobre ele e toma sua arma. Meu pai o confronta em seguida, sua lanterna é solta e rodopia pelo chão. Um
feixe de luz clareia meu rosto por um breve instante, onde tento me levantar para ajudar meu pai em sua briga. Os outros comparsas fugiram pela ventania. A lanterna
para de girar quando revela minha mãe e Vênus com braços seguros uma na outra. Elas usam um vestido branco, combinando também, já no clima de ano novo. Estão lindas.
Menos suas expressões de desespero.
É então que o tiro rasga a noite, perfura a roupa, fura a vida. Há tinta vermelha se derramando de um vestido branco e tingindo outro ao seu lado com os respingos.
Eu gostaria de acreditar que é apenas tinta.
Um de meus olhos está machucado demais, porém o outro consegue vê-la se ajoelhar e segurar o dorso com surpresa. Lança um último olhar para mim, que lhe respondo
com os mais terríveis berros. Porque não consigo acreditar. Porque é terrível. Porque não pode estar acontecendo. Não pode estar acontecendo! Não! Não! Não pode
ser real!
A sirene nos encontra após eu ganhar uma estrela no céu.
? NOTIFICAÇÕES ?
TERÇA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO
Esse é o pensamento que bombeio, inspirado numa densa garota Vênus:
A grande esfera gira, incansável, e bombeia as devidas consequências. Estrelas são conspiratórias. Posso estar assustado, mas creio que representamos algo positivo
para o universo. Insisto em acreditar nos humanos. Porque não sustentamos acasos, carregamos propósitos.
Acordo algumas vezes e volto a adormecer com sedativos para calar a dor. Dor que escapa de lábios machucados. Meu coração vazado era antes uma lata cheia de tinta.
Não assimilo mais o passar das horas, mas senti breves e brandas carícias no rosto em por breves momentos. Algumas palavras foram suspensas pelo ar, e meus ouvidos
demoraram a sugá-las. Depois, consegui abrir os olhos, e enxerguei a cor vermelha.
- Ei, estamos esperando você - ela diz, falhando ao rabiscar um sorriso leve. Não consigo lhe responder nenhuma palavra, por mais que elas estejam todas ali na língua,
uma língua dormente e ensopada.
Volto a dormir. Acordo outras vezes e encontro o branco no teto, e nesses momentos não sinto vontade de permanecer consciente.
??
SEXTA-FEIRA, 3 DE JANEIRO
Meu corpo volta a ter energia pouco a pouco, as veias bombeiam vivacidade lentamente. Vejo quando trocam meu soro, a ausência de companhia, e a esperança de cabelos
alaranjados por perto.
- Já se passaram três dias. Você teve o prejuízo da sua passagem de avião sem reembolso, mas seu pai conseguiu enviar o atestado médico pra sua universidade via
e-mail - seus dedos tamborilam sobre os meus após sentar-se no desconfortável colchão hospitalar. - Ganhou mais duas semanas aqui, Marte.
- Me conte o que aconteceu com meu pai, e Pedro, e tudo - peço, falhando na voz. Ela endireita os cabelos revoltosos.
- Vi seus tios irem embora às pressas, assim que tiveram chance, alegando terem novos lugares pra passar a virada do ano - pausa. Ofego de leve, aguardando. - Pedro
foi preso, aguarda uma certeira condenação. Os amigos dele receberam uma intimação. Seu pai também foi levado à delegacia, tinha uma arma legalizada para se defender
apenas nos limites de sua casa, e a tal foi encontrada com Pedro na calçada. Eu fiz minha retratação da cena pra eles, e você fará a sua assim que sair daqui. Não
leva nem meia hora, só precisa dizer tudo o que aconteceu.
- Uma arma as vistas da lei levou minha mãe para sempre. Como eles vão recompensar isso? - tento urrar de raiva, mas apenas rumorejo.
Vênus acalenta minha mão direita por entre seus dedos. Cala-se por dois minutos, vira o rosto para os lados e levanta-se, caminha até abrir uma janela de ferro.
A claridade do dia me cega. Minhas pálpebras enfraquecem. Um galho de castanhola com folhas olivas aparece tapando a vista do horizonte.
- Seu pai está amargurado pela sala, atolou-se no sofá e não mais mudou de posição. Ouço ele fungando da minha casa.
- Ele devia estar preso - desfiro de olhos fechados.
- Não fale assim. Ele também precisa de ajuda - seus pés se movem num compasso aleatório. - A funerária fez o serviço completo em menos de quarenta e oito horas.
Tento ignorar essa última parte franzindo o cenho, até que Vênus pede meu braço, e depois puxa meu pulso. Levanto os olhos, notando que ali ela amarra uma pulseira
pequena, contendo uma concha miúda e amarela como pingente.
- Quando eu ganho uma estrela no céu, represento elas em conchas. Nem sempre ando com meu colar por aí, às vezes deixo em casa, ou lá no chalé, descansando. Mas
nunca, nunca me esqueço onde o deixei, assim como não me esqueço dos que se foram - seu timbre me aquece. - Isto é só uma homenagem, será algo importante caso preencha
essa concha de boas lembranças - ela avalia meu rosto por aqueles olhos doces e sensíveis. E abraço-a ali de novo, um aperto torcido, doloroso. Vênus afaga meu cabelo
do jeito que sempre faz. Enterro meu rosto pelo seu mundo alaranjado e macio. Tento esquecer os males, e por um breve momento consigo. Porque ela está ali, e me
faz bem.
- Creio que onde ela estiver, sente falta do que passou - Vênus começa a sussurrar depois de uns minutos de abraço. Tenciona achar meu olhar, mas ele está baixo,
pesado demais para se erguer. Toca meu rosto com placidez, os dedos brincam sobre meu nariz. - Mas para ela o sentimento não é dolorido, e sim como uma alegria engarrafada.
Enquanto ela guarda suas garrafas de memórias, você deve desenterrá-las e expor ao sol, pois merecem brilho Acredito que lá nesse lugar não existe desordem, nem
os poréns. Aposto que ela está se alimentando de sorrisos, cupcakes de estrelas e bolos de nuvens.
- Ela gostava de bolos - confirmo. - Já fez muitos na vida. Talvez esteja mesmo fazendo bolos de nuvens. - Vênus segura meu queixo e captura minha atenção. Demoramos
mais alguns instantes assim, até que nos afastamos pela posição que acaba causando câimbras.
- Obrigado - eu continuo - e desculpe por tudo -. Sua palma alisa minha bochecha com cuidado sobre os inchaços.
- Foi a virada de ano mais sinistra da sua vida também -esqueço de apontar uma interrogação no tom, mas já é quase uma certeza. Agora sim parece que aconteceram
coisas demais para poucos dias. Vênus não responde, acautela-se em sentar ao meu lado, repete o toque em minha mão, que tem alguns pequenos fios conectados.
Um médico de estatura baixa, cabelos alvos e óculos com armação azul adiantou-se pela sala, suspendendo alguns papéis e um olhar positivo. - Amanhã você recebe alta,
Faber Sales - é o que suas palavras ditam. Vênus solta um gritinho de excitação ao meu lado, e logo se recompõe.
- Faber, quem afirma que o ano já começou? Já ouviu falar que se perdem muitas horas com o passar das décadas? Podemos ter ganhado uns três dias. Podemos começar
o ano quando quisermos.
? FOGOS ?
SÁBADO, 4 DE JANEIRO
A mensagem que se formou na minha mente, da forma como Vênus faz:
A vida por vezes parece uma chuva torrencial, com emoções afogadas e submersas. Intensa. É aconselhável tapar as goteiras dos olhos para focá-los sobre as mãos ágeis;
há muitas torneiras derramando desespero pelo mundo que precisam ser fechadas. Poças de lástima se espalham pelas ruas, e então chega o momento de exercer duas grandes
tarefas: enxugar desilusões e aquecer o otimismo.
Meu depoimento sobre a noite do grande desastre levou mais do que uma hora. Isso porque as palavras não queriam escapar. Fiquei enclausurado na dor, remoendo-a.
Não vi Pedro, mas vi sua mãe chorando. Minhas verdades estavam concluindo a prisão de seu filho. Não teve outro modo. Era a justiça, e só. Era o que eu queria. Sai
da delegacia com Vênus quase grudada em mim. Queria que o abraço dela fechasse as lacunas de fraqueza.
Quando chegamos ao nosso bairro já são dez e quarenta da manhã, nos dispersamos sem trocar nenhuma palavra, cada um segue para seu lado. O portão da família Sales
está apenas encostado, e a porta da casa também. Entro furtivo, e quando faço o chamado da sala, ninguém o responde. Decido apenas fechar a porta atrás de mim, rodando
a chave, e farejar comida fresca na cozinha. A do hospital estava me deixando louco. Era insossa demais. Entendo que já sinto saudade dos pratos bem temperados que
minha mãe preparava.
Depois, enfrento meu quarto. Vejo-o bagunçado, do jeito que deixei. A arrumação era obra da minha mãe, e só para conseguir senti-la perto, começo a varrer o chão
e ajeitar os móveis no lugar, trocar cobertores, tirar roupas sujas dependuradas em maçanetas, espanar minha tristeza. Tenho movimentos lentos por conta dos machucados
espalhados pelo corpo, por isso demoro mais do que o comum. Rasgo duas horas no relógio. Não quebraram nenhum osso naquela briga, o que foi um ponto a se pensar
sobre a sorte. Decido abrir a janela após terminar a arrumação, mesmo que o dia lá fora esteja lindo e confrontando com meu momento.
Após passar uma hora deitado na cama, a dor pululando sobre meu interior, um assobio me espanta.
- Psiu, tenho uma coisa para te mostrar - chega a pronuncia dela sobre a janela.
- Ainda é um momento de preguiça e dor...
- Ah, você consegue. Só vai dar alguns passos. Deixa de ser preguiçoso - Vênus vestiu uma camisa de golas grossas e mangas curtas, o tecido é listrado com vermelho
e branco. Os cabelos estão presos para trás num emaranhado alto, escapando vários fios encaracolados. Apenas por ver ela tão perto outra vez, começo a minar de disposição.
- Está fazendo a sua exposição de fotografias na frente da sua casa? É isso? - tento adivinhar, mas recebo uma negação no movimento de seu queixo. - Passei perto?
- aí ela assente.
- Acho que eu posso usar minha câmera mesmo. Não tinha pensado nisso. Você é um gênio, mesmo todo quebrado, vizinho.
Não pulo a janela, pois ainda me parece arriscado para minha resistência. Atravesso minha casa e fico surpreso ao ver tudo claro, janelas arqueadas, brisa espalhando
calmaria pelos corredores. Meu pai não está por ali também, mas o fito de longe ao sair pela porta de entrada e olhar para o gramado vizinho, por baixo de alguns
varais de lençóis brancos. Ele não está sozinho e tem latas de tinta pelo chão.
Vênus já está com eles, e assim que chego próximo, há um grito de "Agora!".
Um tiro fura o céu limpo, e uma explosão em cores inunda a atmosfera. Há um pequeno objeto estacionado no chão, uma espécie de catapulta, que lança os foguetes.
A irmã de Vênus e meu pai estão reabastecendo-o com sacos transparentes contendo tinta. É um espetáculo, ainda mais belo que os fogos de artifício numa noite de
réveillon.
- Feliz ano novo, Faber, Marte, vizinho.
- Porque o ano começa quando queremos! - os outros dizem em coro.
O sobrinho de Vênus está saltitando pelo gramado aberto, e apesar de os corpos e mentes estarem desgastados com os últimos acontecimentos, a animação insiste em
nos dominar.
- Parece que sua irmã resolveu me dar uma trégua - cochicho para Vênus.
- O que alguns hematomas não fazem, hein? - ela responde em mesmo tom, traçando um sorriso no fim da frase.
Os dias seguintes se passam num borrão, como uma pintura de Vênus. Tem respingos de cores quando ela está por perto. Somente cinza quando se distancia. Meu pai começou
a beber, mesmo que não queira admitir. Sinto o fedor de seu hálito exalando pela casa. Uma casa grande que cria sujeira e poeira a cada segundo. Meus inchaços e
hematomas estão bem melhores, pouco a pouco sumindo.
??
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JANEIRO
A missa de sétimo dia de Amélia Sales acontece na mais clara das tardes. O céu está pedindo para ser paquerado, e eu atendo ao pedido. Ignoro as pouquíssimas pessoas
que compareceram, um numero diminutivo de vizinhos e avós. Vênus fica ao meu lado. Meu pai some quando o padre dá origem a suas orações de frente ao túmulo. Não
olho para o rosto de minha mãe sobre uma fotografia sorridente na lápide. Não sorrio ou choro. Meus olhos abraçam o céu, meus braços seguram Vênus.
- Ela é uma estrela - Vênus sussurra.
- Eu sei, acho que consigo vê-la mesmo agora - murmuro de volta, mirando as nuvens.
? ROSAS ?
QUARTA- FEIRA, 8 DE JANEIRO
Estou arrumando minhas roupas para pegar um voo no dia seguinte quando Vênus aparece da janela, dedilhando o parapeito amadeirado. - Eu poderia me intrometer? -
lança seu olhar de bronze cintilante.
- Sempre que quiser - seguro-a quando ela salta para dentro do meu quarto. - Acho que devíamos usar mais as portas, não?
- Pra quê essa demora toda? - ela endireita o vestido de linho azul com alças duplas por seu ombro fino. Percebo que usa um mini short branco por baixo.
- Só leva um minuto - tento ainda defender a ideia, mas já me achando um chato. Sentamo-nos pela beirada da cama, quando nossas pernas ativaram suas sirenes de cansaço.
Vênus toca meu ombro, alteia o rosto e sela minha testa com um leve arfar. Percebo que ela tem encarado minha mala de viagem, que a vê aberta atrás de nós.
- Dá para beijar muito num minuto - Vênus me surpreende com o beijo macio, seus lábios flexíveis tentam arrancar a rigidez dos meus, e caímos com um baque no colchão.
Outro daqueles momentos de fechar os olhos enquanto os pensamentos giram em torno dos pequenos toques. Muitos sentimentos ficam agitados nesse instante. O coração
esmorece. Calor queima os pulmões, nos sufocando sem piedade. E então as ações se desenvolvem, quebram suas fronteiras. A minha Revolução das Roupas não é nada comparado
a isso. É mais puro e belo com esta garota repetindo e correspondendo. Retirando minha roupa com cuidado, e deixando eu desenlaçar cada parte sua.
E então acontece o esperado ato para consumar a relação, transformando-a em algo que se deva pôr respeito e confiança daqui para frente, por mais difíceis que as
situações possam ser - pelo menos é como estou tentando ditar para mim. Vênus se deita sobre meu peito e os lábios chegam para beijar meu pescoço. Saboreio o cheiro
suave de seu cabelo. Ficamos calados e enroscados por um tempo longo, sentindo a pressão transpassada para o corpo um do outro, a cama trepidando, e os suspiros
sendo escapados pelos lábios dela.
Embargados no deleite de nossa conexão, as unhas dela começam a querer ferir meus braços. Às vezes Vênus sussurra algo incompreensível, relacionando a palavra "travessia".
Às vezes eu respondo e pergunto mais coisas desconexas, embriagado de prazer. Dentre suas frases silenciosas, decifro a última, a que mais me impressiona: "É a minha
primeira vez, da forma como sempre desejei, com alguém que tenho certeza de que gosto". Ela está agora tocando meu rosto com lentidão, as palmas raspam pelo maxilar,
eriçando a parte rústica onde a barba já está querendo renascer.
- Você é um planeta impressionante - começo a sussurrar iniciando por aí, e nos deleitamos com o passar dos minutos.
Os movimentos dela consistem principalmente arranhar meu peito com ferocidade, deixar escapar um longo suspiro e enterrar o rosto no meu pescoço, enquanto suas coxas
se envolvem sobre mim, tentando encaixar-se sempre com um novo movimento. Depois, se encolhe por cima de mim, os cabelos encaracolados afagando meu rosto, trazendo
um aroma de flores cítricas. Meus braços aninham aquela frágil estatura, até ficarmos suados, os pulmões esgotados, e ela nos desconectar, aprumando-se no meu lado
esquerdo, as bochechas pousando suavemente no meu ombro, o olhar baixo, um sorriso discreto.
- Posso voltar e te ver, às vezes me liberam num domingo, ou dois dias seguidos da universidade, sem nada para estudar... - anuncio. Colo o braço em suas costas
e massageio sua face com a ponta dos dedos. Rapidamente lembro que não disponho desse dinheiro todo para gastar com passagens aéreas. - Sei que darei um jeito. Você
pode me visitar. Você quer?
- Não me prometa nada, Faber - Vênus se senta abruptamente, e a cortina de madeixas cai para o lado direito, cobrindo seus seios. - Lembra de quando eu te falei
sobre aproveitar o hoje? - quando confirmo, ela prossegue. - Então, mudei alguns pontos. No dia que conheci você, comecei a querer te ver no dia seguinte também
- pousa suas mãos no meu ombro, o olhar está denso, e me impede de falar qualquer coisa, pois ainda não terminou. - Esquecia da travessia e... - quando tenciono
perguntar sobre aquela palavra, ela toca meus lábios com a ponta dos dedos, pedindo silêncio.
- Só não precisa se preocupar com isso - continua após um minuto. - Me dê apenas uma resposta positiva agora. Quer namorar o céu e mar?
A Revolução das Roupas teve seu fim por esta parte, onde cada um se reconstruiu pouco a pouco, repondo suas peças. Vênus começou a recitar bem baixinho uma de suas
histórias enquanto nos vestíamos, e captei todas as suas palavras:
"Éramos pássaros brincando sobre galhos de liberdade. Com a queda aprendemos a nos remontar, compartilhando peças. Ele quis meu coração, fiquei com o seu. Agora
um apoiava-se no outro, era o combinado. Uma grande célula, tendo a confiança como base. Não caímos mais em solidão, pois, onde um estivesse, haveria partes do outro."
Quando Vênus termina de falar, percebo algumas lágrimas querendo derrapar por suas bochechas coradas, e nisso lhe envolvo num abraço que dura o silêncio necessário
para ela fungar, soluçar, ofegar, e se recompor.
??
O mar está calmo e misterioso, guardando turbulências em seu interior, como um grande cérebro azul de nervos agitados. O céu esgotou suas nuvens, dando passagem
para a carruagem do sol. A areia é fria e sustenta nossos corpos sentados lado a lado. Vênus colheu rosas brancas de seu jardim e fez um buquê.
- Tenho cinco aqui. Uma delas é para você jogar.
- Você costuma dizer algumas palavras para eles?
- Para as estrelas que vão receber estas rosas? - um bobo e pequeno sorriso de lábios tímidos se manifesta. - Eu costumo pensar em alguma coisa de que gostavam.
Uma única palavra que finalmente consiga defini-los, e são muitas para escolher, por isso eu modifico toda vez que faço isso.
Infiltro-me no ritmo das ondas. O sacolejar intenso. O vento mostrando sua ferocidade, vibrando fios de cabelo, espalhando areia. Inspiro sua brutalidade, que se
transforma em frescor pelos meus pulmões.
- Vênus, eu não sei como meu pai vai se virar sem minha mãe, depois que eu for - fito-a demorado. Vênus retorna o contato, seus lábios franzem, querem dizer várias
coisas e diminuir tudo em poucas frases. É isso que consigo decifrar naquele respingo de concentração.
- Darei um jeito nisso, e minha irmã também, falarei com ela. As pessoas precisam sentir que estão existindo, e uma dose de atenção diária é benéfica para isso -
há um caminho de serenidade em cada traço seu. - Sei que minha irmã fará ele se irritar muitas vezes, quebrará alguns jarros de plantas, esburacará o gramado. Acho
que isso vai deixá-lo com ocupações o suficiente para não sentir tristeza. Ou próximo disso. Que tal?
Agora ela conseguiu me tirar um riso ao imaginar as loucas desventuras. Mas a brisa carrega o sorriso para longe em mesma velocidade. Queria estar participando daquelas
memórias, correndo junto, aprontando. Queria nossos apuros juvenis para sempre.
- Você é mesmo um planeta fantástico - destilo as poucas palavras, mansas e sinceras. Vênus sela nossos lábios bem rápido, quebra o contato e torna a sentar-se ao
lado, sujando as próprias pernas com areia.
- Eu não tenho nenhum perfil em redes sociais, e meu celular vive sem créditos - alerta-me. - E esse lugar aqui é o único ao qual eu gostaria de viver. Você precisa
saber disso. - De um discreto bolso em seu vestido ela retira um papel dobrado. Fico surpreso por ele se esticar em suas mãos à medida que ela vai abrindo-o, revelando
uma paisagem marítima. Ela mostra o lado do seu desenho para mim, e em seguida me entrega.
- É lindo - afirmo rápido, recebendo o desenho, gastando alguns segundos de apreciação. - E vou te ligar. Promete que me contará todos os detalhes, o que tiver sentindo,
e tudo? Você pode me visitar quando quiser, é só dizer. Não é tão ruim, você já morou numa cidade grande. Tem seus lugares atrativos.
- Vamos fazer isso logo - ela segura minhas mãos e me levanta junto, deixando minhas palavras soltas pela brisa, seu olhar de repente pareceu sombrio. Guardo o desenho
no bolso da camisa.
Entramos na água com as mãos unidas assim que o silêncio chegou até nós. Estancamos quando o mar emerge até a cintura dela, que então me arremessa uma de suas cinco
rosas e dá um mergulho profundo pelas águas escuras. Jogo a minha rosa em seguida, vejo-a boiar por um tempo longo, depois é engolida pelo sacolejo marítimo.
- Bolos - sussurro baixo. E retorno com Vênus para casa, através de uma extensa lentidão, de ombros apoiados e mãos acarinhadas.
? LIGAÇÕES ?
QUINTA-FEIRA, 9 DE JANEIRO
São 5h29min da manhã.
Acordo com Vênus ao meu lado. A primeira vez que dorme em meu quarto. Mas passamos a noite em sua casa, ouvindo música, tomando chocolate quente, pintando quadros
e a nós mesmo, até retornarmos a minha casa, furtivos, pulando janelas. Quando levanto, vejo resquícios da Revolta das Roupas pela nossa atmosfera. Transamos pela
segunda vez. Meu calção foi jogado de mau jeito por cima do televisor velho, o vestido dela agarrou-se pelo abajur, a camisa foi largada ao chão. Cato tudo e deixo
no cesto de roupas ao lado da porta do banheiro, não precisarei mais destas roupas logo mais.
Retorno à cama e fito a garota, o sutiã dela é pequeno e bege, abraçando seu dorso, quase a cor de sua pele. O cobertor encobre da cintura até suas coxas, por baixo
sei que não há vestimenta algo. Vejo o rosto de Vênus coberto pelo próprio cabelo avermelhado, como uma espécie de travesseiro macio. Só os lábios são visíveis,
e a beijo de leve, com o maior cuidado.
- Até breve, meu planeta Vênus - sussurro. Ela não acorda, mas ofega baixo, estou tocando em seus sonhos, quase chamando-a para a realidade ao fazer isso, e então
obrigo-me a sair de perto.
Tomo um rápido banho e pego minha mala. Vênus pediu para deixá-la dormindo, não queria me ver partir. Dobro o bilhete que lhe fiz e deixo-o preso na janela. Quando
ela acordar, sei que o encontrará.
O que escrevi para Vênus foi o seguinte:
Cansativo seria um mundo sem loucos.
Sem os poucos que impulsionam nossos sonhos, aqueles que vestem a rebeldia de ser feliz e pintam os muros da derrota com cores fortes.
Exaustivo seria um mundo sem amores.
Vênus, eu levarei nossos sentimentos em cores.
Pela sala, encontro meu pai enterrado no sofá. Ele tem ignorado o próprio quarto desde que minha mãe não o preencheu mais. Passo por ele e tenciono ignorá-lo, mas
então retorno. Ele abre um olho quando toco em seu ombro.
- A benção, pai? - é o que peço. Ele não se ergue, mas os olhos se abrem. Há muito que não ouvia aquele pedido. Uma palma escapa pelo meio de um amontoado de cobertores.
- Deus o abençoe, meu filho - uma voz grogue por conta de muita cachaça no corpo.
- Se cuide - eu sustento o aperto das mãos um pouco mais. - Se cuide mesmo. - De alguma forma minha extensiva indignação por ele foi limpa pela metade. Suspeito
que Vênus tenha me causado essa melhora. De enxergar melhor as coisas, ou ao menos tentar.
??
O dia lá fora está clareando. Os raios solares penetram as nuvens de um lado, e o avião que estou perfura do outro, entrando assim num amanhecer adiantado. Avião
lotado dessa vez. Pelo voo, com apenas uma escala em Santa Catarina, lembro-me que esqueci o desenho que Vênus me fez, ficou no bolso da camisa, jogado no cesto
de roupas sujas do meu quarto. Tento retirar essa pequena falha da mente.
O aeroporto de Guarulhos estava, como sempre, lotado no momento do meu desembarque. Pego um taxi na saída e pelo caminho vou fitando a cidade. Percebo o sol já bem
alto e encoberto de nuvens empalidecidas, com tons arroxeados.
É estranho voltar à rotina, sentir aquele gostinho amargo, contrastando com tudo o que vivi de pleno anteriormente. Ainda que tenha um relevante motivo de tristeza
sobrevoando meu coração. Uma concha segura pela pulseira no braço, minha estrela no céu. Mãe.
A universidade tem colegas que me saúdam com pesar. Eles souberam das últimas notícias, e com certeza se lembram de algo mais, uma foto marcada com várias garotas
em nu artístico, porém, em respeito à perda, camuflam suas brincadeiras através de olhares rápidos. O serviço prático ali é o mais fácil de aceitar, preenchem minha
mente, deixando assim pouco espaço para que certos sentimentos tomem posse do lugar.
Nos furtos de minutos vagos, onde me retiro ao bebedouro e banheiro, tiro o celular do bolso e chamo Vênus. Penso que só ouvir a voz dela já me causará entusiasmo
para enfrentar o dia. Ela me jogará muitas informações por partes, e nos instantes de silêncio ouvirei sua respiração. Mas em todas as minhas tentativas seu número
apenas chama, chama, chama, até cair na caixa postal.
Numa de minhas trigésimas ligações, ouço uma voz grogue.
- Vênus? Você está bem? Como estão as coisas?
- Sim. Seu pai está bem, Faber, mas ontem ficou ouvindo música romântica das antigas até meia-noite, com muitas luzes ligadas na casa. Depois de alguns vizinhos
jogarem pedras no telhado, ele se espantou e foi dormir - seu timbre continua suave.
Logo me furta o pensamento de que esqueci como é ouvi-lo de perto, como se desprende o aroma do cabelo dela levitando com a brisa enquanto conversamos. Talvez as
lembranças recentes sejam mais difíceis de focalizar do que as velhas. E nas ligações seguintes, ela despeja informações sobre si de maneira animada, mas declinando
lentamente.
Os meses do meu calendário de geladeira caem como folhas secas. Minhas conversas com a garota de Recife tornaram-se escassas. Muitas vezes não esteve em casa. Até
que passou a receber minhas ligações somente uma vez por mês, e os pedidos de desculpas começaram.
??
22 DE JANEIRO
- Perdoe minha demora, eu estive muito ocupada, Marte. Hoje eu fiz minha primeira exposição de arte. Adivinha onde? Na praia! Apareceu bastante gente pela manhã.
No começo não deu muito certo, as pessoas ficaram intrigadas, medrosas, mas depois se aproximaram. Expus apenas quadros, e aquele nosso foi comprado por um valor
bem avantajado. Você vai querer comissão? Acho que devo ligar para aquelas garotas e dividir o lucro dos quadros onde estamos com elas, não acha?
??
17 DE FEVEREIRO
- Oi, tudo bem? Cauã passou a noite comigo ontem. Tomamos chocolate quente e dançamos na cozinha. Ele é muito saltitante, mas caiu e machucou um dedinho do pé. No
entanto a diversão foi restaurada logo. Sentamo-nos nas poltronas e começamos a ver tevê, filmes, ler. Lembrei de quando fizemos isso algumas vezes, e senti um aperto
tão grande no peito que quase fui pra praia e... E me contive, dormimos no sofá da sala e roncamos.
??
20 DE MARÇO
- Sinto sua falta, Faber, vizinho, Marte. Quando apago a luz para dormir, que me aninho na cama, imagino que você é o cobertor, travesseiro, até o colchão, e nisso
beijo a todos vocês juntos. Durmo depois de muito tempo em silêncio. Desperto e logo venço o primeiro obstáculo: deixar o cobertor. A prévia inicial de bravura.
O café se qualifica como a recompensa do ato, um energético para os próximos desafios.
??
5 DE ABRIL
Em meio a projetos de planadores, aeronaves maiores e foguetes, meu ânimo é saciado pela voz dela nesse novo dia. Ainda assim, ela percebe como estou desanimado
com tudo, ao passo que também se sente cada vez mais desanimada. Vênus parece ser mais forte com a distância. Ou saiba administrar seu tempo melhor do que eu. Sinto-me
como um avião de asas quebradas, não consigo nem ao menos planar minhas ansiedades.
- Quando você aparecerá por aqui, vizinho?
- Ainda não posso, tenho até o final do ano pra ficar livre outra vez.
- Você está triste?
- São os dias, estão meio cinzentos e chuvosos por aqui - lhe falo num dos momentos que me escondo por baixo de uma única área verde da universidade, com olhares
curiosos sobre mim.
- Se vier logo, posso te oferecer um pouco da minha luz, tenho o suficiente para nós dois. Quanto à chuva, sei lidar com isso também. Já te mostrei como se forma
um arco-íris? - e quando repito que não tenho como abrir espaço entre minhas semanas para vê-la, ouço um ofegar do outro lado da linha.
Depois de um longo meio-segundo, Vênus começa a me dar informações sobre as tonalidades que usará no seu próximo desenho, onde cada cor precisa expressar um bom
sentimento. Diz que estes novos desenhos são importantes, que serão presentes, iguais o que fez para mim - aquele que eu esqueci no meu quarto antes de ir embora.
- Porque vocês são tão importantes pra mim, que preciso desenhá-los com cuidado - ela completa.
Os bobos devaneios de Vênus me deixam límpido nas seguintes semanas em que me deu seu habitual silêncio. Eu só não previa o significado daquela última conversa.
? RECEIOS ?
SÁBADO, 10 DE MAIO
Os fones já moldam minhas orelhas. As músicas se repetem no celular. Meus olhos se fecham lentamente, e quando acordam, fitam a árvore acima. Verde, vermelho, amarelo,
alaranjado, marrom, cinza. As cores que a natureza escolheu para pintar esta árvore; folhas verdes e amarelas, folhas secas alaranjadas caindo com a brisa, marrom
do tronco e cinza dos cascalhos que os galhos expugnam. Céu borrado de nuvens negras, um sol infiltrado sobre elas, sem brilho. Algumas gotas de chuva anunciam que
logo mais irá chover. Estou deitado sobre um gramado quadrado, rodeado de paredões brancos cheios de janelas. Onde dois edifícios da universidade se esbarram. Nunca
faço isso, de burlar tempo entre aulas. Parece um ato rebelde. Não é uma boa ação. Mas o momento está pedindo uma ação rude.
A turbina distante de uma aeronave me espanta e esperta por completo, me obrigando a levantar. Vejo algumas janelas abertas pelas laterais de minha visão, alguns
rostos que denunciam risos ou estranhamento por me ver ali, e depois somem, retornando aos seus deveres. Eu deveria estar com alguns deles, mas me dei um descanso
e fugi duas aulas. Precisava disso.
Precisava ainda checar se Vênus estava com o celular ligado. Faz mais de um mês que ligo para saber como ela está, e o que ouço são as seguintes palavras gravadas
pela operadora: "o número que você ligou não recebe chamadas ou não existe". É claro que existe. Existe. Existe. Existe.
Meu pai tem recebido minhas ligações, pergunto como vão as coisas e ele diz estarem bem. Como está Vênus?, é o que quero saber de primeira mão.
- Ela me trazia café todo dia, então parou. Cansei de ver ela saindo bem cedo pra aquela lojinha lá na praia. Ela cortou o cabelo, e não parecia mais tão simpática
como antes. Falei que você perguntava por ela, que podia usar o telefone daqui, mas ela dizia que estava muito ocupada, cheia de desenhos novos, uma coisa assim.
Até que sumiu, nunca mais soube notícia, talvez tenha ido morar em outro lugar. A irmã dela apareceu algumas vezes pela varanda, e só. É o que, que sei daquele pessoal,
filho - ele quase gagueja e silencia-se, me deixando assimilar tudo por um breve segundo, depois retorna: - E você, o que me conta?
Não tenho muito ao que contar para ele. Não quero fazer isso independente de ter o que falar, pois no momento estou equilibrando uma confusão, que aflora espinhos.
O relato sobre Vênus alastra minha impaciência. O que será que aconteceu? Qual o motivo de me ignorar assim? A distância? O seu 'hoje' mudou, para amar outro alguém?
Simplesmente foi embora? Milhões de perguntas negativas soltam granadas em respostas positivas que tento idealizar.
Pessimismo: Ela pode ter outro alguém.
Otimismo: Está apenas ocupada por enquanto.
Pessimismo: Vênus se cansou de esperar.
Otimismo: Provável que esteja pintando mais quadros do que antes.
Negativismo: Está abrindo as pernas pela arte.
Realismo: Decidiu ser uma pessoa diferente e esquecer o passado.
Otimismo Desestruturado: Não, ela apenas... tudo bem, me rendo.
- Precisamos de você no Setor 6, Faber.
Sobressalto-me. Uma voz feminina. Uma colega de estudo. Brena Sopes, está escrito em seu uniforme branco com listras azuis na lateral, a insígnia da universidade
Delta pelo peito é um foguete azul pronto para decolagem. A vestimenta é larga para o seu corpo magro. Ela tem cabelos cacheados que não ultrapassam o pescoço, o
olhar castanho claro, a pele tingida num bege desbotado, trazendo uma fragrância de flores cítricas que me enchem os pulmões de veemência. A expressão é variável
entre compadecimento e estranheza ao me ver.
- Obrigado, Brena. Eu já chego lá.
- Faber - ela endireita um caderno de anotações pela palma, tira seu óculos, e parece encarar um ponto de interrogação.
- Eu.
-Sim, você. Posso te falar umas palavrinhas inconvenientes?
- Pode - concedo.
- Não sou psicóloga, e não preciso ser para saber que está passando por uma fase difícil. Mas precisamos de sua concentração - ela ergue os braços e encaro o céu
de novo, seguindo a indicação. - Isso aqui é para ser formado por nós. Como você construirá aeronaves, se não consegue manusear suas responsabilidades? - agora seus
braços projetam uma rendição. - Espere, não estou te julgando sem ver o seu lado. Perder a mãe é muito doloroso. Sempre apanharemos da vida. Mas você precisa superar
isso. Temos aprender a planar pelos problemas.
- Estou tentando melhorar - é a única coisa que digo, começando a achar aquilo uma intromissão exagerada.
Fico em alerta ao ouvir outro rompante, o som de uma aeronave tendo seu bimotor religado. Brena assobia, depois eleva um dedo até os lábios, pensativa.
- Eu estou aqui disposta a entender tudo. Ajudo ao máximo minha equipe de colegas, e você está dentre eles. Sabemos que nesse tempo todo foi você o que menos interagiu
com o grupo, mas nunca o pressionamos. Até agora, porque chega o momento das oportunidades. Você sabe, o grande teste espacial. Apenas uma equipe terá a chance de
ir ao espaço, Faber. Vai perder essa mais uma vez?
Brena endireita o colarinho do uniforme, o semblante suave como se tivesse tido uma conversa tranquila e comum, e em seguida sai, a passos calmos. Sua calça de malha
branca ergue-se alguns centímetros quando ela passa por uma porta de vidro embaçado, e percebo que ela calça um All Star vermelho. Aquele item tão juvenil de alguma
maneira dá um clique no meu cérebro, na parte onde habitam as cores. Onde há pinturas para se apreciar.
Volto aos corredores da universidade e paro num bebedouro. A planta de plástico ao lado dele brota-me pensamentos nostálgicos e belos. Pela janela fito o mundo em
sépia. Os pássaros voam, parecem dizer que podem levar-me a lugares onde a realidade não alcança. Nuvens afirmam que sabem camuflar o ardor das tarefas, se lhes
emprestar os olhos por alguns minutos - pois o sol logo mais fará um espetáculo com roupas alaranjadas. Aceito tudo, aprecio longamente, por fim mergulho no oceano
que há dentro do copo d'água.
Esfarelando os conselhos de Brena, me chega a última decisão tomada aos goles rápidos: preciso achar Vênus.
Mal deixo a noite chegar, nem meus olhos se ajustarem com a visão interna do meu apartamento, e já estou com uma mochila desajeitada nas costas, em direção ao aeroporto
de Guarulhos. Amanhã é domingo. Amanhã não terei aula alguma, pela consulta no meu catálogo. Talvez eu me perca em algumas matérias por não adiantar projetos, mas
sei que posso dar um jeito. Agora, tenho que consertar as asas do meu coração.
? AMARGORES ?
DOMINGO, 11 DE MAIO
São 1h58min, marca o visor digital do relógio de pulso, emanando um enfraquecido brilho neon sobre meu rosto. Meus dedos esfolam a campainha da minha casa, sobre
um pequeno portão baixo de madeira. O taxi me deixou bem em frente a ela. Meu olhar recai para a casa vizinha, a esquerda, onde só se vê escuridão. As ruas estão
sombrias, com postes de iluminação embaçada, onde mosquitos noturnos sobrevoam ao redor das lâmpadas como se fossem planetas em translação numa estrela.
Ao perceber que meu pai com certeza não acordará, pulo o muro baixo de pilares, atravesso o gramado, passando por baixo das quatro grandes oliveiras que agora parecem
ter galhos secos em forma de garras, e chego até a porta. Bato nela quase com intuito de derrubá-la, até que um resmungo se alastra pelo interior. A porta amadeirada
de contornos envidraçados indica que algumas lâmpadas internas foram acesas.
- Quem está ai? - surge a voz grogue inconfundível de meu pai.
- Pai, sou eu, Faber!
- Ahm? Faber? Meu filho está longe. Longe.
- Não, pai, sou eu! Abra a porta, precisamos conversar. Aqui está frio...
- Saia, não acredito em você. Meu filho está longe - e pelo modo como profere estas palavras, um timbre rançoso, compreendo que ele está bêbado.
- Pai! - bato outra vez, mas a luz foi apagada no interior da casa, e os passos dele sumiram.
Sem nenhuma janela aberta ao fazer uma ronda pela minha residência, vou até a casa de Vênus e fico na varanda, onde há duas cadeiras com almofadas, e a escuridão
da noite incapacita qualquer pessoa que passar na rua de me ver ali. Acomodo-me nas almofadas. Tenciono bater na porta, me aquieto, e depois pulo no chão amadeirado
e chamo por Vênus quase aos sussurros, com toques finos na porta, o lado esquerdo do rosto grudado nela, as orelhas ouvindo um papagaio se assustar e resmungar algumas
palavras. Meu coração se anima com aquele som, e volto à cadeira confortável, com a certeza de que no amanhecer, Vênus me encontrará ali, e acertaremos tudo. Ela
nunca foi embora. Isso foi uma mentira tola de meu pai, posso perdoar essa. Eu e Vênus mataremos a saudade, ouviremos a voz um do outro, trocaremos olhares longos
e brincalhões, arriscaremos beijos tímidos até nossos lábios também saciarem a falta daquele contato. Durmo sentado ali, enroscado em minha mochila, com o vento
açoitando meu rosto, fazendo meu nariz parecer um iceberg.
Acordo com um toque suave no meu rosto, uma risada serena e baixa, e meu sorriso desperta primeiro que meus olhos. Porém, quando eles se abrem, não é a garota de
cabelos laranja-avermelhados quem está ali, é apenas seu sobrinho Cauã, de curtos cabelos encaracolados, com poucas sardas numa pele bege esmaecida, de dentes superiores
em falta, e olhos minúsculos cor de ouro.
- Tia Veh foi embora - ele diz. Por um instante a expressão do garoto fica confusa, e olhamos em conjunto para o céu que se arma num festival de nuvens, arrastando
um distante e tímido sol. Pássaros começam a cantarolar suas canções matinais sobre as duas laranjeiras a frente, o jardim tem flores que espreguiçam suas pétalas
e deixam-nas abanando pela brisa. O dia começa a ganhar cores, vivacidade, é um contraste contra meu cansaço, a coluna dolorida por ter dormido de mau-jeito, as
roupas amassadas. Tenho coceiras nos braços, onde fui picado pelos típicos mosquitos noturnos.
- E pra onde ela foi morar, meu camaradinha? - pergunto-lhe com um sorriso ameno, me esticando lentamente. A porta da casa agora está aberta. Ao lado, vejo que minha
casa continua inerte, meu pai deve demorar para voltar ao mundo da consciência. Penso que o garoto está apenas brincando comigo, que veio passar um típico dia com
sua tia Vênus, que ela ainda deve estar dormindo em apenas algumas paredes de distância.
- Lá - ele aponta pro horizonte. - Ela foi pelo caminho do mar pra chegar até o céu, perto das estrelas.
Uma rajada de vento fria arrepia meu corpo ao mesmo tempo em que as palavras do garoto. A porta da casa fecha-se, e abre novamente, dando batidas na parede, me sobressaltando.
Um chamado alarde de dentro da casa.
- Cacá? Você está aí fora? - não é a voz de Vênus, e sim de sua irmã. Os passos chegam até a varanda numa vagarosa velocidade, e os olhos dela, nada tão simpáticos
como os da irmã, mas sustentando a mesma cor, trazem um amargor para minha face. Por um breve segundo penso se ela irá voltar para dentro e se armar com um porrete
no intuito de me ameaçar, mas sua vista cai sobre o piso quando noto suas pupilas avermelhadas. Parece ter chorado, e aquilo aumenta minhas suspeitas.
- O que veio fazer aqui? - lança a pergunta sem olhar no meu rosto.
- Você sabe o que vim fazer aqui - me levanto, para ganhar autoridade com a altura. Não sei o nome da irmã de Vênus, porque nunca ouvi ninguém ditá-lo, porque Vênus
tem um estranho hábito que envolve deixar de nomear as coisas, e porque continuo sem interesse de saber.
- Eu te disse pra ir embora primeiro. E agora você fez ela ir embora, antes de eu conseguir segurá-la.
- Pra onde ela foi? Posso ir atrás dela e convencê-la a voltar. Preciso muito ver como ela está, preciso mesmo!
- Eu já te disse, tia Vêh foi pro mar! - Cauã interrompe, rodopiando ao meu redor, e sua mãe o fisga pelo braço, levando-o de encontro à porta.
- Ele já respondeu. Satisfeito?- suas expressões endurecidas parecem barro despedaçado, alternando para camadas de tristeza, piedade, e raiva. Ela não gosta de mim,
e eu também não consigo simpatizar com seu temperamento, mas não a odeio. No entanto, seu modo brusco faz minhas ideias martelarem. Vênus foi morar no mar. Não é
tão sério assim. A loja onde vende suas artes. Lá é o museu de suas exposições. A praia.
- Espero que ela acorde cedo também - falo isso ao puxar minha mochila, e descer os três pequenos degraus da varanda.
- Você não entendeu, garoto tonto - sua irmã ruge as palavras. - Ela está no mar. No fundo do mar.
Estanco. Meu corpo quase não consegue girar, de modo que pergunto de costas para ela.
- O que você disse?
Ela pode ser a irmã de Vênus, mas fazer esse tipo de brincadeira é a pior das maldades. Com a chateação filtrada e destilando-se em minha mente para algo ainda mais
desgostoso, meus passos se movem e chegam até a varanda em poucos segundos. Ela está aflita agora, e isso quebra parte da minha ira. Mas é Cauã quem corta o silêncio.
- Tia Vêh deixou um desenho para nós, um desenho muito lindo - ele estende um papel quadrangular, onde tem um pôr do sol magnífico, rosas boiando num mar cristalino,
tudo em tintas precisas, com pinceladas delicadas. Cauã endireita seu corpo e lê o que está escrito na parte de trás do desenho, como se tivesse ensaiado aquilo
um milhão de vezes:
Ela via o mundo colorido, e ele falava com animais. Ela falará dele para suas estrelas, e todas as noites olhará seus passos. Ela sempre amará seu pequeno grande
amigo, no mais infinito e belo espaço.
Ele me olha e não sorri, espantou-se com minha expressão estarrecida. - Quer que eu leia o recadinho no bilhete da mamãe?
Uma agitação ameaça destruir meu interior, e tudo o que faço é me atirar sobre eles, que me dão passagem, e reviro cada cômodo daquela casa, não achando nenhuma
Vênus. Quando retorno à varanda, a irmã-de-Vênus se sentou numa das cadeiras e Cauã está agarrado em seu colo, os olhares distantes.
O que está acontecendo? Não pode ser nada real. Não pode ser real, droga! Vênus está apenas morando na praia. Fazendo artes. Ela disse que me esperaria, não disse?
Ela disse algo assim...
- Estão de brincadeira comigo - hesito entre eles ao atravessar o piso amadeirado, dou passadas cegas para trás e chego ao gramado, me viro bem no momento que a
primeira lágrima cai e começo a correr. Dou a volta, pisoteando o jardim e entrando no território da minha casa. Arremesso um soco na porta, e dois chutes, tentando
expulsar minha angústia e achando um meio de acordar meu pai. Tentando não chorar. Buscando qualquer motivo para não acreditar no que acabo de saber.
- Vênia, é você? Cauãzinho? - meu pai pergunta do outro lado. Não sei se ele quis dizer Vênus, ou se finalmente descobri o nome da irmã dela. Bato agora na porta
com intuito de destruí-la, até que ela é aberta e o indivíduo sonolento, com pijamas folgados de listra azuis, se assusta por me ver ali. - Opa, meu filho! Você
não...
- O que aconteceu com Vênus? - eu seguro em seus ombros e vou empurrando ele pela extensa sala. Seu olhar adquiriu uma nova expressão: terror. - Me diga agora! Pra
onde ela foi? Fale alguma coisa! Alguém fale alguma coisa entendível, droga!
- Faber, vamos conversar um pouco. Você está me dando medo!
- Me diga onde Vênus está! Fale! - grito as palavras agora bem próximo de seu ouvido. Sinto seu hálito de café, e não de álcool.
- Ela está morta - ele endurece o olhar agora. - Era por essa reação que eu não contei antes. Você tem estudos e...
- Não! Está mentindo! Não é verdade. Me-diga-onde-ela-está!
Mas já estou desabando, meu nariz aproveitou para ficar resfriado. Minha garganta parece ter encolhido e a voz quase não sai. Desvencilho-me dele, deixando-o com
um semblante funerário, e passo como um foguete até meu quarto. Reviro os cestos de roupa suja e minha camisa branca ainda está lá, desde o dia que a deixei. Do
bolso, retiro o pequeno papel retangular, limpo o bolor que cresceu sobre ele e avisto a paisagem marítima impecável que Vênus fez. Pela primeira vez verifico a
parte em branco das costas, e vejo as palavras que ela escreveu tempos atrás:
Sabe-se que um planeta não vive sem o seu astro luminoso.
Mas poucos descobrem que quando um planeta denso se destrói, vira estrela.
Bom, talvez você seja o único a descobrir isso. E não entristeça.
O mar sempre receberá flores e carregará palavras até seu extenso refletor.
O céu contém estrelas que conservarão nosso amor.
Abro a janela do quarto com as mãos trêmulas e pulo, intencionando não passar por meu pai. Os pés ajudando na velocidade que sustento. Ganho as ruas sem movimentação,
o bairro ainda com casas fechadas. Cães latem em minha correria. O vento assobia pelas minhas orelhas. Minha pele está arrepiada, e mordo a língua para sentir outra
espécie de dor, não a do coração.
Não demoro cinco minutos e chego à praia. Passo pelo chalé onde Vênus vendia suas peças artesanais, e encontro-o fechado. Das janelas de vidro há longas tiras brancas
de tecido macio, que me deixam ter a certeza de que os dois cômodos estão vazios, com quadros despencados e outros com desenhos borrados. Miniaturas em madeira de
animais circundam o chão. Na varanda se encontra apenas sinos de vento, que não param de chacoalhar pela maresia. Faço o contorno e escalo o muro do quintal, praticamente
me jogando sobre os galhos verdes. Atravesso o emaranhado de ramos até chegar no ponto central, onde há um breve espaço oval. Por cima, há o teto de folhas: a copa
do cajueiro. E ao meu redor dançam inúmeros fios avermelhados, sem mais nenhuma foto por ali.
Faço o retorno, com pés fraquejados, e chego ao céu aberto. Vejo o mar. O misterioso manto azul. O ladrão de amores. Distancio-me do chalé e me sento na areia da
praia, sentindo meu corpo pesando uma tonelada. Ouvindo as ondas quebrando ao ritmo da minha respiração. O vento fatiando agressivamente meus cabelos e angústias.
Ao meu redor se vê barreiras de terra, ladrilhadas com uma vegetação rasteira, grandes o suficiente para camuflarem as avenidas, e parte da cidade atrás de mim.
Ali, me sentindo mais sozinho do que nunca, abro o desenho que Vênus me fez. Permito-me chorar até minhas lágrimas salgadas secarem, e eu repô-las ao me jogar no
mar.
? ECLIPSES ?
DOMINGO, 11 DE MAIO, 13H26MIN.
Voltar para São Paulo não é a coisa mais difícil que me obrigo a fazer. Estar em casa, ter um mundo agradável. Essa sensação foi perdida. Isso é difícil de aceitar.
E quando alguém se torna seu planeta? Me sentia mais forte antes, convivendo sem saber a verdade que meu pai omitiu. Sobre Vênus. Sobre um mês atrás ela ter feito
desenhos para seus dois familiares presentes, com frases de despedida - soube até que deixou um para meu pai. E então se infiltrado no mar, num horário matutino
que apenas um vigilante do Porto Pécem a enxergou, nadou atrás dela e não mais a encontrou.
Pelo que Vênus escreveu em meu desenho, já tinha orquestrado tudo muito antes. Era essa a sua tal travessia. Eu deveria ter insistido naquela assunto até ela me
contar. Ela deveria ter me explicado. E por mais que me venha o sentimento de que eu deva odiar seu ato, não consigo pensar nela com nenhuma fresta de raiva. Eu
sei que ela não sustentou nossa relação do modo certo, que foi tão de repente. Que nem chegamos a enfrentar as grandes dificuldades da vida. Esse universo está grampeado
de astros frágeis, que se explodem por qualquer pressão, descuido, falta de luz. Assim também são as pessoas. Mas penso que tenho grande porcentagem nessa culpa.
- Fiz isso para o seu bem, Faber. Me escute - meu pai toca minha mão quando arrasto minha mochila pela sala, de encontro ao céu aberto, e tapeio seu aperto dali,
não soltando nenhuma palavra sequer. Não vai ser nesse momento que ajustaremos nossa relação. Certas mágoas precisam de tempo para serem lavadas.
Consegui comprar minha passagem aérea com alguns cliques no celular, o aparelho já estava configurado e sincronizado com o site de minha linha área preferida, meu
cartão de crédito cadastrado, e o ânimo por este lugar arruinado.
Cauã e sua mãe estão ali com ele na nossa sala luxuosa, e noto certa aproximação entre ela e meu pai, um trocar de olhar confuso, um discreto aperto de mão demorado.
Com meu deteriorado apreço com relação a ele, e suspeitando que já arranjou um alguém para afagar seus pés cansados nos finais da tarde, cresce também uma certa
inveja momentânea daquele companheirismo, que impulsiona meus passos para fora.
Não olho para trás.
Não olho para os rostos desconhecidos pelas ruas, do aeroporto, pelo voo, nem da minha cidade, até chegar no meu apartamento em Santana, bem distante de Recife.
Com trilhos de metrôs guinchando a cada vinte minutos além da janela. A fumaça de cigarro que o porteiro produz escurecendo o mundo. Os carros na avenida tão próxima
rasgando seus pneus barulhentos. A tarde de domingo indo embora lentamente. E meus sentimentos mostrando-se tão cinzentos quanto este céu.
??
As semanas seguintes demoram a passar, eu praticamente me arrasto sobre os dias. Divago bastante, resmungo sobre planetas em meio a aulas e recebo olhares confusos.
Minha cooperação na universidade tem declinado, a concentração está capotando, e todos percebem. É Brena Sopes, a aluna dedicada, que novamente chega ao meu auxílio
com suas palavras.
- Você não está nada bem, colega. Espero que não me ache importuna - ela pousa um dedo sobre os cachos marrons e ajeita algumas ondulações em mechas que cobrem seus
olhos, de modo faceiro e rápido. - Faber, aqui você pode criar amizades, acredite. Só precisa saber amenizar seus dias. Sair, aceitar os convites. Quem sabe até
se apaixonar, hein?
- Deixei de confiar nas pessoas e perdi o interesse no amor - desfiro. - Acho que já sofri o bastante .
Começo a achar que falei demais, que expus dramas sem garantias, que o mundo não precisa saber disso. Brena dessa vez pareceu ficar impaciente. Tentar ajeitar meu
ânimo deve desmontar o entusiasmo dos outros.
- Me responda só esta: entraria num museu, onde o porteiro fosse logo avisando que te trancaria lá dentro, sozinho na escuridão, pra você achar a saída por conta
própria?
- Não.
- Viu só? Como espera que visitem e admirem seus quadros de sentimentos, se você vive trancando-se? Nós somos museus ambulantes. Sempre precisaremos de outras pessoas.
- Onde você aprendeu a falar assim? -. Onde você aprendeu a falar como Vênus?
Com meu olhar assustado, ela revela seu colar por cima do uniforme, com um pingente enferrujado no formato de um sol beijando a lua, um eclipse, e sela seus lábios
sobre ele. - Uma pessoa muito importante me dizia que se você tem um coração, sempre terá algo ao que amar no mundo.
Por esse momento, ainda me enxugando do banho de palavras que me deu, começo a refletir que posso sim amenizar meus dias. Vou com ela. Retorno às aulas e tento me
encaixar em algum círculo de colegas, sem tirar o foco dos estudos. Ganho alguns sorrisos de aprovação. Em momentos vagos, namoro o céu. Pela noite, faço isso em
casa também. Desembrulhei o desenho que Vênus me fez sobre o mar e grudei-o na janela de vidro do meu quarto.
Mesmo com dificuldade no começo, e algumas marés de agonias, vou aprendendo a refrescar minhas obrigações.
? ASTROS ?
DOMINGO, 24 DE AGOSTO
Abro as janelas ao acordar. Fico sentado sobre uma delas, esta bem diferente da janela de Vênus e das que tem pela casa de meus pais. É de vidro, o parapeito é mais
curto, e há risco de eu cair do outro lado, na calçada nada amistosa - por isso não tardo a voltar para o piso do quarto e me deitar no chão. Começo a fitar o céu
se iluminando através daquela abertura. Lembro das histórias de Vênus e imagino que eu poderia criar uma delas agora. Reformulo palavra por palavra várias vezes,
passando por muitas correções mentais, até ela surgir desse seguinte modo:
A fraqueza me domina, mas enfrento o batalhão de emoções negativas. Desabo na quinta flecha. Fito um céu esfarelado de nuvens e sorrio ao retirar o último item da
aljava: um livro. Folheio-o e leio sua primeira frase num timbre debilitado: "Ignore o medo". Há uma explosão, e então metade do exército inimigo dissipa-se em cinzas.
Arfo com a descoberta. A leitura protege minha vida.
??
Comecei a devorar livros nos meses que se seguiram, em minhas noites vagas, dentre eles de ficção, equilibrando com os didáticos. Numa manhã de agosto, sobre um
vago domingo, percebo que a prateleira de livros acima da minha cama logo precisa ser emendada com outra para agrupar mais volumes, unindo duas paredes. Empenho-me
nessa tarefa, munido com pregos e martelo. O resultado é desastroso, de modo que deixo as ferramentas de lado. Cubro os arranhões que fiz na parede com um quadro
exibindo um magnífico horizonte, de nuvens sobre um céu ralo, com um mar pastoso abaixo. Parece uma foto praiana de Recife, e isso me faz lembrar de Vênus.
Antes de ajustar melhor o quadro na parede, ouço o bip do celular sobre o travesseiro. Sei que só pode ser uma garota de cabelos cacheados e amarronzados. Atendo
no sexto toque, relutante. É a única que tem se aproximado mais, e não há nenhuma coisa entre nós além de amizade. Pelo menos, não que eu saiba.
- Alô! - seu tom agitado rompe o silêncio do aparelho - Sr Sales?
- Olá, Srta. Sopes - minha voz titubeia.
- Sr Sales, seu domingo está animado?
Faço uma pausa longa, alarmando a expectativa de Brena. Às vezes nos tratamos com extrema formalidade, apesar de nesse instante eu ter consciência de que é apenas
um dos modos engraçados dela comunicar-se comigo.
- Mais do que jogo do bingo entre idosos na virada do ano.
Ela sorri por um tempo através de uma gargalhada fanhosa, e o sinal falha, de modo que sua voz se transforma num rumorejo estremecido, onde afasto minha orelha do
aparelho por dez centímetros.
- Ainda está ai?
- Sim - afirmo. Ouço sua voz normalizada quando ligo o viva-voz, e me retiro da cama, caminhando descalço no piso gélido até a cozinha, seminu. Minha Revolução das
Roupas tomando conta, parecendo retornar das cinzas. - Pode falar - estaciono o celular em cima da geladeira e abro-a, munindo rapidamente minhas mãos com uma bebida
láctea, raspando a língua no interior do lacre metalizado.
- Já não deduziu o por quê da minha intromissão em seu domingo?
- Hm, você está entediada e quer me chamar pra sair? - sorrio com isso, parecendo patético. Ela ri também, e nega com educação.
- Minha namorada não deixaria - ela silencia-se, e me deixa consumir aquela revelação por um breve minuto. - Bom, é uma coisa legal. Nossa equipe foi a premiada!
- ouço gritos de comemoração do outro lado da linha, como se houvesse uma multidão num campo de futebol no momento de um gol espetacular, e lentamente decifro o
que suas palavras querem dizer. Equipe premiada. Uma inestimável viagem espacial, uma alavanca em nossos currículos, um sorriso estelar.
- Você está bem?
- Sim. Ainda em choque - respondo, pensando sobre vários tópicos de assunto. Sobre garotas levadas pelo mar. Garotas beijando outras garotas. Cores e mais cores.
- Sabe, essa vida é tão louca às vezes.
- É por isso que vale a pena, colega - Brena ri, e se despede, soltando o último aviso, imitando a voz eletrônica de uma nave: - Sr. Sales, compareça amanhã no Setor
10 da Universidade Delta, às 8h, munido de seus utensílios padrão. Lá encontrará o restante da tripulação. Juntos, treinaremos por dois meses, aprendendo a voar
no espaço, antes do grande dia. Deixe de lado os velhos projetos, agora seremos astronautas. E por favor, não se atrase. Obrigada - e desliga.
Começo desde já a aprumar minhas coisas para o dia seguinte. Remexo em todas as mochilas que possuo - são apenas quatro - e paro pela que levei na viagem à casa
de meus pais, no Natal passado. De um dos bolsos internos escapa um patinho de borracha, e aquele item tão ingênuo me traz um turbilhão de memórias. O primeiro contato
com a garota-planeta, a primeira visão de seus olhos, o vento batendo e brincando com aqueles cachos laranja-avermelhados. E tudo que consigo fazer é sorrir para
o patinho e jogá-lo dentro da pequena mochila que levarei para a universidade no dia seguinte, e em todos os outros, durante os dois meses de treinamento espacial.
??
TERÇA-FEIRA, 28 DE OUTUBRO
Demoramos cerca de dezoito horas no avião particular para chegar à base russa de lançamentos espaciais. São aproximadamente 10h23min, meu relógio se ajustou ao fuso-horário
automaticamente. As coisas mudaram já faz algum tempo, nesse quesito de possibilidades. Por exemplo: seis anos atrás, raramente um universitário brasileiro, estudante
de engenharia aeroespacial, seria selecionado para vir até a Rússia, na finalidade de entrar num de seus foguetes e dar uma voltinha rápida no espaço. Mas então,
governantes e presidentes de ambos os países fecharam acordos, apertaram as mãos, e muitas instituições nacionais de ensino aeroespacial surgiram, assim como os
sonhos de pessoas como eu. A cada ano uma única equipe é selecionada, dentro da própria universidade e de outras do país, para fazer o percurso que estou fazendo
agora, atravessando continentes. A tarefa primordial é simples: deixar um satélite de telecomunicação em orbita em torno do planeta.
É isso, chegou o dia do meu sonho. Porque se esgotou a última hora entediante no avião particular da Universidade Delta, e o céu perdeu a cor azul, desbotou para
nuvens ralas e cinzentas. Eu e minha equipe, agora bem instruídos sobre voos espaciais, estamos embelezados com o lugar. A base se chama Vostocnhy, perto do município
de Uglegorsk, na região de Amur; é a terceira base no território russo. O frio é ameno, e o muro baixo de concreto da base é rodeado pela taiga - uma densa floresta
de coníferas. Há oito plataformas de lançamentos, e apenas duas estão sem foguetes estacionados. Formamos uma fila e nos direcionamos para a Plataforma 6, que já
está com escadas preparadas para nosso embarque, e luzes azuis sinalizadoras ligadas. Respiramos o ar gelado que ronda o ambiente quando conhecemos os dois comandantes
russos do nosso voo. Eles distribuem apertos de mão, e algumas palavras descontraídas que não compreendo de imediato.
A equipe em que estou é composta por mais cinco pessoas. Brena está ali, enfileirada conosco, segurando discretamente a mão de outra colega, enquanto os comandantes
fazem perguntas sobre como se portar no espaço. O português arranhado deles é engraçado de ouvir. E já estamos aptos para tudo, isso é mais uma calibragem para a
memória. A ordem principal: não usar combustível no arranque, ou seja, não ligar os quatro motores do foguete. Essa parte fica com a Brena e outro aluno, que estarão
operando na cabine de controle. A eletricidade será o bastante acender as turbinas e atingir a velocidade necessária para romper as camadas atmosféricas, nos deixando
dançar ao redor do planeta. São veículos atualizados, mas ainda assim me admiro, pois a carcaça metálica dos foguetes pesa mais de cem toneladas, exigindo um consumo
de energia absurdo. Será que sem combustível esse troço todo irá levantar? No entanto, eu e minha equipe conhecemos todo o processo do maquinário, deteriorando qualquer
dúvida. As aulas preparatórias nestes dois últimos meses foram louváveis, simples, e nos deixaram acalmados - pois não era o mesmo que criar planadores e novos aeromodelos.
Não tínhamos de chegar em casa e nos empenhar num bilhão de projetos atrasados. E uma das tarefas mais interessantes foi aprender a liquidificar comida e colocá-la
em tubos prateados, no formato dos recipientes para creme dental, só que maiores. Lembrei de minha mãe nessa parte, sei que ela tentaria liquidificar bolo para mim.
Quando tudo está o.k para os comandantes, subimos juntos a escada metálica que rodeia o foguete. Os degraus que nos levarão para as estrelas. Sinto cansaço, mas
bem distante, porque estou conseguindo me extasiar de animação. Tenho focado maniacamente nos estudos, mas agora, neste momento, consigo respirar melhor. E a sensação
é tão plena e borbulhante ao mesmo tempo, que me permito soltar um leve sorriso enferrujado para o alto. Já é uma melhora sobre meu humor. Ultimamente, tenho escondido
minhas emoções. Elas estavam deterioradas o suficiente para que eu as guardasse num armário interno, e então vestir uma armadura. Agora estou despindo essa peça.
Estou pelado de medos.
Inicia-se a contagem do Sistema de Lançamento quando já estamos no interior do foguete, de nome peculiar: Venon. Acoplados com cintos de segurança em cadeiras brancas,
com todo o uniforme preciso.
10. Entendo que a força da gravidade logo ficará branda. 9. Meus joelhos tremem e consigo fitar o olhar de alguns colegas, através de seus capacetes de vidro, e
estão animados. 8. Será que sentirei ânsia de vômito, como alguns afirmaram ser comum? 7. Meu sonho astronáutico está se realizando, e as emoções eloquentes da minha
adolescência retornam planando em meus olhos. 6. Acho que o ano cinzento será salvo após este voo. 5. Talvez eu goste da experiência e seja minha grande meta de
vida. 4. Queria mesmo era reencontrar uma garota-planeta lá em cima. 3. Sinto calor, como se eu estivesse dentro da turbina acesa. 2. Quero ficar pelado aqui dentro.
1. Vênus e mãe, minhas estrelas, aqui vou eu.
O lançamento deu-se sem nenhuma falha, e não tardamos a sentir nossos corpos leves, e as pernas querendo flutuar enquanto estamos acorrentados nas cadeiras. Um sorriso
é compartilhado entre minha equipe, através dos capacetes envidraçados. As janelas deixam as nuvens para trás, e a claridade some lentamente, revelando as primeiras
estrelas.
As cores do espaço me hipnotizam. É um lugar maravilhoso e assustador ao mesmo tempo. Chega a ter pontos onde tudo parece um imenso vácuo, escuro e deprimente. Mas
não deixo o sentimento de solidão se manifestar. E sabe aquela estranheza que os testículos sentem num voo aéreo comum? Aqui é ainda pior. É quase impossível ficar
excitado. A pressão sanguínea aumenta. A dilatação temporal faz o tempo passar mais devagar do que na terra. E, um último ponto interessante: um astronauta pode
crescer até cinco centímetros no espaço, por isso os trajes espaciais que usamos são cinco centímetros maiores do que o necessário para cada um.
Não tivemos nenhum problema em nossa navegação. Liberamos o satélite de telecomunicação, a grande tarefa para nós, astronautas iniciantes. E ficamos um tempo a mais
pululando em torno do planeta, com uma incrível visão das estrelas através das janelas gigantes de vidro. Na cabine de controle, piloto e comandante logo anunciam
o horário de retorno, antes de indicarem o momento para nos alimentarmos.
Liberamos o pouco lixo que produzimos numa minúscula cápsula, que será destruída por algum asteroide enquanto voar no aleatório. Num ato rebelde, retiro um item
sigiloso de minha mochila, e deixo ele estacionado no bloco para desacoplar junto com o lixo. Em questão de segundos o pequeno objeto amarelo e emborrachado rodopia
pelo espaço, sem rumo, passa por uma das grandes janelas que estou fitando, e ninguém mais nota aquele excelente aprendizado de voo.
Voe até minha mãe e Vênus, sussurro para o patinho de borracha. Agradeça por mim. Diga que elas me trouxeram as melhores cores do universo.
Ton Adalclê
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