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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR / Pearl S. Buck
AMOR / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Bons dias, mamã - saudou Donald Sheldon da porta do quarto, enquanto, através da janela, via levantar-se o Sol sobre a baía.
Habitualmente, se se lembrava de entrar nos aposentos da mãe antes das dez horas da manhã, encontrava-a adormecida, com a parte inferior do rosto envolta numa espécie de romeira e o cabelo coberto por uma rede. Ficou, por isso, surpreendido ao vê-la sentada na cama, com os olhos azuis muito abertos.
- Donald! - exclamou ela, com a sua voz nasalada. - A esta hora?...
O rapaz envergava ainda o smoking.
- É verdade. Em todo o caso, voltei antes da Sara...
Entrou e sentou-se na beira da cama.
Sara, sua irmã, tinha mais dois anos do que ele; todavia, naquela manhã, apesar dos seus vinte e dois anos, Donald sentia-se tão velho como um centenário. Saíra do clube enojado pela conduta de Sara, que dançava com o Velho Ford Hammerwood.
Deixando o automóvel à irmã, regressara a pé pela baía, cujas águas, apesar da preiamar, ofereciam aspecto repugnante.
"Faz-me pensar em água de lavar pratos" notou, para consigo, olhando-a.
De facto, a água estava engordurada e turva. Cheirava mal, fedia. Tudo fedia. Até o clube, com a sua amálgama de dançarinos jovens e velhos. Os jovens deviam manter-se
afastados dos velhos, agrupados à parte, porque, apesar de poluídos, sempre eram novos. Os velhos obesos e as velhas arquipintadas eram repugnantes. A vista de Sara agarrada ao gordo Ford Hammerwood havia-o nauseado.
- Precisas mais do automóvel do que eu - resmungara. - Ainda posso andar...
Enlaçada pelos braços de Ford e requebrando-se ao ritmo dos Ulues, a rapariga rira alvarmente. Quanto mais ébria estava, mais se ria daquele modo.
Chorando de tanta hilaridade, gaguejara:
- Quem... quem... é que... que... quer... an... andar?
Desde os sete anos que tinha aquele defeito na voz, mas como todos a haviam sempre achado encantadora assim, Sara nunca fizera nenhum esforço para se corrigir. Agora, isso já nada tinha de sedutor
- como Donald lhe repetia com muita frequência porém ela continuava.
Lançara ao irmão um olhar distante. Estava embriagada, ou pior ainda. E Ford, aquele velho asqueroso, andava a divorciar-se da sua terceira mulher.

 

 

 

 

- Eh, escuta! - gritara Ford. - Deixa o meu par em paz, ouviste ?
Sara contorcera-se a rir, com o rosto meio coberto pela sua farta cabeleira loira.
Donald não cometeu a vileza de contar tudo brutalmente à mãe. Aliás, esta nem sequer o ouviria se, como parecia, tinha qualquer outra preocupação.
- Por que não dormes ? - perguntou.
- Não consegui conciliar o sono - suspirou a mãe. - Nem fechei os olhos. Que preocupação! As duas filhas de um primo de teu pai... Oh! nem sequer são verdadeiramente da família... Até me havia esquecido da sua existência...
- Bem, mas que se passa? - inquiriu Donald.
- Lembras-te dos Harts, Ruth e Thomas, missionários na Coreia? É tão ridículo! Partiram no ano em que nasceste. Recordo-me perfeitamente de ter dito a teu pai que isso nos prejudicaria. Deviam ter ficado em casa.
A incoerência da mãe divertia sempre Donald.
- Chegam tarde, esses escrúpulos! Nunca ouviu falar deles até mil novecentos e cinquenta!
- A culpa é dos comunistas!-exclamou a senhora Sheldon, fazendo uma careta de nojo, como se tivesse acabado de tocar nalgum deles. - Deram cabo de tudo! Já é tempo de agir contra esses Russos. Que maçada! E, agora, aqui me tens com as duas raparigas às costas, em pleno Verão. E tão crescidas que nem ao menos as posso mandar acampar: dezassete e dezoito anos!
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Por que vêm para cá- perguntou Donald.
Porque, a bem dizer, não conhecem ninguém,
além de nós. Como se nos conhecessem! Onde está essa "coisa" ?
A "coisa" era uma carta, perdida nas dobras da colcha de seda. O rapaz viu a ponta de um sobrescrito e pegou nele. Mas a mãe arrancou-lho da mão e leu em voz alta:
"Querida Lillian: No meio da nossa desgraça, temos procurado, com o desespero do medo, defender as nossas queridas filhinhas. Decerto se recordam de Mary e Deborah. Não, naturalmente não as reconheceriam. O Senhor fê-las fortes e nós educámo-las na fé, para que sejam úteis e generosas. Deborah é a mais velha, como sabem. Está em idade de entrar na Universidade, mas temos adiado esse momento, porque ouvimos falar dos costumes estranhos que reinam agora na América, e, antes de mais nada, queríamos assegurar a sua fé. Mary iria mais tarde. Mas não é prudente esperar... As coisas já se complicaram aqui, na Coreia, durante a ocupação, devido à presença de numerosos rapazes americanos; contudo, conseguimos proteger a inocência das nossas queridas filhas. Agora, porém, são os rebeldes quem há que temer, e isto é pior. Já não nos atrevemos a conservá-las junto de nós. Não tendo família, ao cabo de tantos anos consagrados ao serviço do Senhor, confiamo-vos o nosso tesouro. Pobre Coreia, chamada País da Manhã Tranquila! Enquanto escrevo, ouço o zumbido dos aviões e o matraquear das metralhadoras..."
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A senhora Sheldon interrompeu a leitura.
- Continua neste tom durante páginas e páginas. Eles ficaram, ou refugiaram-se no Japão, e pergunto a
mim própria porque não levaram as filhas. No Japão deve haver
tranquilidade, com Mac Arthur.
- Quando chegam as pequenas ?
- Isso é o pior - gemeu a mãe. - A carta veio atrasada. Recebi um telegrama, esta noite, quando me estava a deitar. Já desembarcaram e chegarão a Nova Iorque amanhã, de comboio. Conheces o teu pai... Sem dúvida estará muito ocupado. E eu tenho hora marcada no cabeleireiro...
Afastou a romeira e o seu rosto recuperou o aspecto familiar.
- Que horas são? Mas... ainda é de noite! Dirigiu uma olhadela de soslaio ao filho. Formosa
na sua juventude, procurava conservar artificialmente os seus encantos, embora há muito houvesse perdido a candura própria da mocidade, que Donald já não tivera ensejo de conhecer.
Lembrou-se do motivo da sua visita.
- Mamã, preciso de lhe contar algo de terrível...
- Não podes esperar? - perguntou ela, com voz lamentosa.
O sol entrava a jorros e cegava-a; desejaria que Donald corresse o estore. Aquela luz crua também pouco favorecia o filho: o seu rosto distendido tinha uma palidez de defunto, e os seus ombros, apesar da largura, eram duma fragilidade impressionante.
- Preferia que não te fatigasses tanto - queixou-se
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a mãe. - Por que não bebes mais leite e procuras descansar?
Ele não respondeu. Não queria engordar. Desgostá-lo-ia converter-se num tonel e ostentar uma cara de lua cheia como a de Ford Hammerwood.
- Mamã - disse - Sara procura tornar-se a próxima esposa do gordo Ford.
Viu uma chama passar nas pupilas da mãe. Esta cerrou os seus grandes olhos azuis.
- Oh, Senhor! - suspirou.
- Mamã, há que pôr termo a isso.
- A quê?
- Temos de impedir que Sara o provoque. A mãe abriu os olhos.
- Donald, estás a ser perverso.
- Sara também, e o gordo Ford igualmente.
- Donald, não devias tratá-lo assim. É um velho amigo de teu pai.
- Então não pensa fazer nada ?
Ela levantou as mãos, num gesto de impotência.
- Sara não me ouviria.
- Não ouve ninguém. Contudo, podia aconselhá-la, mamã.
Fitou-o de soslaio.
- Não percebo o que queres dizer.
O rapaz não prestou a menor atenção a esta resposta.
- Podia mostrar-lhe o aborrecimento de deixar-se possuir por esse velho baboso...
- Donald, estás a ser mais do que perverso!
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.Diz-lhe, mamã?
Ela endireitou-se na cama.
. Não. Em primeiro lugar, não poderia fazê-lo.
Isso de ter conversas tão indecentes é bom para vocês, rapazes. Nós fomos educados de modo diferente... Não falamos dessas coisas.
O rapaz conteve as palavras que lhe ditava a cólera: "Não, mas fazem-nas!" E acrescentou, com os dentes cerrados:
- Então consentirá que seja a sua quarta...
- Cala-te, Donald!
- Mas se é o que vai suceder! Se a visse agarrada ao velho biltre...
Fora demasiado longe; os olhos azuis da mãe relampejavam.
- Cala-te, Donald! Não quero ouvir mais essas palavras. Não respeitas ninguém; nem mesmo os teus pais. Não sei o que pensam vocês. Além disso...
Cingiu melhor o roupão e confidenciou:
- Se queres saber a verdade...
- Sem dúvida - assentiu Donald, em tom excessivamente amável.
A senhora Sheldon prosseguiu, apressada:
- Hoje, as raparigas têm dificuldade em casar. Sara não se contentaria com o que lhe pudesse dar um marido novo. Está acostumada ao luxo. Ford pode facultar-lhe
tudo quanto desejar. É rico... deve ser o homem mais rico que conhecemos. Não me parece muito mau para Sara.
A mãe evitou o olhar carregado que lhe deitou o
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filho. Era melhor ir até ao fim. O seu semblante encantador tomou um ar duro e prosseguiu:
- Gostava que a vida correspondesse às tuas ilusões, meu filho; porém, enganas-te. Sara é mais positiva do que tu. As mulheres são sempre mais realistas do que os homens. Sabemos que o casamento não é apenas amor...
- Então, concorda...
Donald não pôde continuar; tinha a boca seca. Gostava de Sara a seu modo, embora, às vezes, chegasse a detestá-la.
- Alguém será a quarta mulher de Ford - disse a senhora Sheldon, resolutamente. - Ele deseja que seja nova e bonita, e as outras não têm nenhuma probabilidade de conquistá-lo. Sendo assim, por que não há-de ser Sara, se ela quiser? Deixa lá que ela pensa em tudo, até nas coisas de que querias lhe falasse... Não é nenhuma ingénua e não tenho nada que revelar-lhe. Não me surpreenderia que fosse ela que tivesse alguma coisa para me ensinar... E, depois, poderá divorciar-se, mais tarde, se não conseguir suportá-lo.
- Terá sempre a sua pensão - observou Donald, sarcástico.
A mãe simulou não ter entendido.
- Exactamente; era isso mesmo que queria dizer. As raparigas do nosso tempo devem mostrar-se realistas. É ridículo não fazer o melhor casamento possível. Os homens desejam as mulheres cada vez mais novas.
Ele não respondeu. Agitava sem cessar as mãos
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ssudas, simultaneamente atento e surdo às palavras da mãe. O casamento de seus pais teria sido tão friamente concertado?
. , O pai e a mãe eram novos quando se casaram-
murmurou.
- Tens razão; mas o teu pai era rico.
Houve um grande silêncio, durante o qual o rapaz compreendeu que a mãe desejava vê-lo sair para recomeçar o seu sono, pois deixou cair a cabeça na almofada e bocejou. Desanimado, Donald levantou-se.
- Bem, até logo.
- Até logo, meu filho.
Pressentia que ela se lhe escapava e se entrincheirava na sua reserva, que ninguém jamais conseguira penetrar, e muito menos ele.
- As nove e quinze, meu filho - acrescentou, quando o viu abrir a porta. -
É a hora do comboio, amanhã. Toma nota porque posso não te ver. Hoje tenho uma partida de bridge no clube.
O rapaz voltou a fechar a porta e dirigiu-se para o seu quarto nas pontas dos pés. Seria, de facto, ingénuo e ridículo? A mãe teria razão? Como podia ser ditosa
? Era feliz no seu egoísmo, e, por mais que, de vez em quando, a detestasse, amava-a, apesar de tudo. Quando queria, sabia mostrar-se gentil. Donald censurou-se por não aceitar a vida como esta era, por erguer os olhos demasiado alto e pretender salvar Sara contra sua vontade.
Deteve-se diante do quarto da irmã e abriu a porta. Sim, já havia regressado! Tal como o irmão,
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Sara tinha uma chave da porta de serviço. Ambos gratificavam Nancy, a criada de fora, para que esta lhes abrisse a porta às escondidas, todas as noites, depois de Harry, o mordomo, a haver fechado. Julgava-se que Donald e Sara tinham chave da porta principal, mas a verdade é que a perdiam regularmente, facto que muito encolerizava o pai.
- Se continuam assim, dentro em pouco todos os ladrões de Nova Iorque terão a chave da nossa casa
- dizia furioso.
Os dois jovens deixaram de falar das chaves, tal como haviam deixado de conviver com ele desde a sua infância.
Estendida na cama, envergando ainda o vestido de noite, Sara dormia. Uma ponta do vestido sobressaia da colcha de seda em que se envolvera. Os cabelos caíam-lhe em desordem sobre o rosto pálido, can- sado e manchado de carmim. Mas até naquele estado era bonita. Que aborrecimento! Sara era tão bonita que, a bem dizer, estava condenada. Os tipos como Ford Hammerwood cair-lhe-iam sempre em cima como galfarros. Voltou a fechar a porta e, outra vez nas pontas dos pés, entrou no seu quarto. Muito fatigado, despiu-se e deitou-se.
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O potente comboio penetrou majestosamente no túnel da Grande Estação Central, nas entranhas de Nova Iorque. As nove e um quarto em ponto, Donald esperava no cais. Viu passar uma multidão de mulheres, novas e velhas, e alguns homens. Perscrutava ansiosamente os rostos desconhecidos. Como encontrar as primas ? De súbito, viu duas raparigas, vestidas de algodão, grandes chapéus de palha muito simples e cestos de vime em vez de malas. Não podiam ser senão Mary e Deborah. Adiantou-se e pigarreou um pouco.
- Bons dias; sou Donald Sheldon e vim esperá-las.
Duas mãozitas frágeis estenderam-se simultaneamente.
- Bons dias.
- Bons dias.
As vozes eram a tal ponto semelhantes que se confundiam.
- Precisaremos de um coli para nos levar disse uma das raparigas.
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A sua pronúncia muito pura, que não era em absoluto de uma estrangeira, nem, tão-pouco, de uma americana, fazia pensar numa francesa falando inglês com a ponta dos lábios, com uma voz extremamente doce, suave e musical.
- Mary, o papá disse que na América não há autênticos colis - respondeu a outra.
As duas vozes ressoaram simultaneamente. Donald fez sinal a um moço, que simulou não entender. As duas cestas de vime não eram muito imponentes, e ele muito menos, disse para consigo. Todavia, lamentou não ter aceitado a ajuda da secretária de seu pai. Decerto o moço não se atreveria a virar-lhe as costas. Pegou nas cestas.
- Sim, seu pai tinha razão. Venham comigo. O motorista não podia abandonar o carro e está à nossa espera.
As raparigas seguiram-no tão de perto que ouvia os seus passos atrás de si. Adivinhou-lhes o temor de se perderem dele. A Grande Central era, com efeito, enorme
e justificava tal receio.
- Esta estação assemelha-se a um dos nossos templos budistas - murmurou Deborah.
- Mas sem ídolos - replicou Mary.
O rapaz ouviu esta troca de impressões e notou que reconhecia a voz: a de Mary, apesar de mais nova, não tinha a doçura da de Deborah.
- Na América não há ídolos - prosseguiu esta última.
- Sim, foi o que disse o papá.
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com a continuação, teria de acostumar-se a este dueto de vozes, em que as observações se cruzavam no decorrer dos dias.
Morris, o motorista, esperava perdido no meio de uma infinidade de táxis. O seu ar imponente não sofreu a mais leve alteração à vista das cestas, que colocou no porta-bagagens. As duas raparigas ficaram imóveis, ao lado uma da outra. Morris abriu a portinhola e esperou. Elas dirigiram uma olhadela a Donald, e este notou, sob a aba dos chapéus de palha - provavelmente chapéus de colis coreanos
- os dois semblantes de tez fresca, nem bonitos nem feios, de expressão interrogadora.
- Façam favor de entrar - disse, procurando não sorrir e sem saber a origem desse desejo.
Elas obedeceram e sentaram-se encostadas uma à outra, com as mãos enluvadas de algodão branco colocadas cerimoniosamente sobre os joelhos. Ambas traziam um lenço, também de algodão branco, e não tinham mala de mão. O rapaz entrou e Morris fechou a porta.
Enquanto o grande automóvel abria dificilmente caminho pelas ruas obstruídas, nenhum falou. As raparigas pareciam habituadas a estar caladas; os seus grandes olhos cinzentos contemplavam aquele quadro tão novo para elas.
- Por que é que aqueles automóveis são pintados de amarelo ? - perguntou Deborah, por fim.
- São táxis; carros de aluguer - explicou Donald.
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- À espera da sua presa, como os tigres - disse Mary. - Têm olhos de tigre.
- São faróis - tornou a explicar Donald.
- Por que é que a cidade fica tão baixa ? - interrogou Deborah.
- O papá disse que, em Nova Iorque, as casas são muito altas - recordou-lhe Mary.
- Isso não explica nada.
- Manhattan é uma ilha - disse Donald. - Por isso, há pouco espaço.
- Mas há muito, lá fora - observou Deborah.
- Na Coreia - acrescentou Mary - as casas não são altas. As pessoas não gostam; crêem que trazem desgraça. Dizem que é preciso viver perto do solo e ver o céu.
Donald sentia-se incapaz de descrever Nova Iorque e não conhecia a Coreia. A terra e o céu não possuíam existência real, a seus olhos. Por isso, voltou a reinar o silêncio.
Ao cabo de dez minutos sentiu-se no dever de indicar-lhes alguns monumentos por que iam passando. As raparigas olhavam, em geral sem fazer comentários, embora uma ou duas vezes trocassem algumas palavras numa língua desconhecida, talvez a coreana. Deborah lançou-lhe uma olhadela.
- O papá e a mamã recomendaram-nos que não falássemos coreano diante dos americanos; porém, o inglês nem sempre exprime bem o nosso pensamento.
Era uma maneira de desculpar-se.
- Não tem importância - tranquilizou-a o rapaz.
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- Obrigada - disse Mary.
Entraram nos arrabaldes, de ruas ladeadas de árvores.
- Saímos "na" ilha? - perguntou Deborah.
- "Da" ilha - corrigiu a irmã.
- Já não estamos na ilha ? - propôs, então, Deborah.
- Não estar num sítio não quer dizer que se esteja noutro - protestou Mary.
- Pois quer - insistiu Deborah.
- É verdade? - perguntou Mary a Donald.
- Creio... - respondeu o rapto. - Segundo...
- Segundo o quê ? - perguntou Deborah.
- Segundo o que se quer dizer - respondeu ele, vagamente. - Não sou forte em explicações.
- Pois receio bastante que tenhamos de lhe pedir muitas - disse Deborah, docemente.
- Sara terá resposta para tudo - assegurou Donald.
- Sara é sua irmã; tem o nome da primeira mulher de Abraão - afirmou Mary.
- Não tenho a honra de conhecer essa senhora respondeu Donald, sorrindo.
Pela primeira vez as ouviu rir, com um riso muito alegre e fresco.
- É uma piada - disse Deborah a Mary.
- Não precisei de ajuda para perceber - replicou Mary.
Confundido de dúvida e assombro, Donald escutava o diálogo. Brincavam como crianças, ou gracejavam
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como mulheres? Relanceou os olhos pelos dois rostos, indecifráveis na sua seriedade, sem obter resposta.
O automóvel penetrou na avenida do jardim e as raparigas olharam a grande casa de granito cinzento.
- É a nossa casa - disse Donald. - Eu chamo-lhe "O Montão", o Montão da baía. É horrível, não acham?
- Não gosta dela? - perguntou Mary, com interesse.
- Detesto-a menos do que queria - respondeu o rapaz, francamente. - Minha irmã e eu nascemos aqui, e portanto...
Deteve-se; era precisamente nisso que residia o aborrecido: nunca odiava nada tanto como queria. O mesmo sucedia com seus pais. Achava-os extremamente superficiais, mas não conseguia detestá-los tanto como mereciam, sobretudo a mãe. Contudo, ela tinha bom fundo, era forçoso reconhecê-lo. Superficial, mas dotada de bom génio; e nem todas as mães eram assim. Em contrapartida, seu pai tinha mau génio.
O automóvel deteve-se diante da escadaria e Morris abriu a portinhola. As raparigas saíram, seguidas de Donald. Mary parou e aspirou o ar com o narizito delicado.
- De que é este cheiro "escuro"? - perguntou.
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- "Escuro" emprega-se para as cores - corrigiu Deborah, resolutamente.
Donald fungou.
- É da água da baía. Nós já estamos acostumados e nem sequer o notamos.
- Mas de que é este cheiro tão "escuro" ? - repetia Mary, obstinadamente.
- Dos esgotos - explicou Donald. - Vêm desde a cidade até aqui. No tempo de meu avô, havia neste sítio uma aldeia de pescadores; agora estamos nos subúrbios.
As duas raparigas aspiraram ao mesmo tempo, com as narinas frementes.
- Cheira a matérias em decomposição - disse Mary. - Mas o vento é fresco...
- Porque vem do céu - completou Deborah.
Absortas nos seus pensamentos, pareciam esquecidas do que as rodeava. Esta era uma das suas virtudes; o rapaz teria de notá-lo mais tarde, embora, naquele momento, isso não lhe agradasse. Devia interromper os seus devaneios?
- Ali está minha irmã - disse.
Sara tomava o seu banho de sol, no terraço, perto da piscina. Depois de haver deixado as cestas em casa, Morris metia o carro na garagem.
- Venham - convidou Donald, atravessando a álea arrelvada.
As duas raparigas seguiram-no. Se as surpreendeu a maneira de vestir mais que ligeira de Sara, não lho demonstraram. Ambas lhe estenderam as
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mãozitas finas, e Sara, assombrada, teve de apertá-las.
- Bons dias - disse.
- Como estás? - perguntou Deborah.
- Ao léu - respondeu Sara, ainda surpreendida. As duas irmãs entreolharam-se.
- Desejo que isso queira dizer muito bem declarou Mary.
Donald redarguiu, ante o olhar turvado de Sara:
- "Ao léu" é uma expressão popular que significa "perfeitamente" - explicou. - O vosso pai não vos ensinou as expressões populares ?
- Talvez as ignore; mas ouvi falar os soldados americanos. A mamã não nos deixava sozinhas com eles; por isso pouco pudemos aprender.
A senhora Sheldon apareceu à porta e precipitou-se ao encontro das recém-chegadas.
- Queridas! - exclamou com efusão. - Já aqui! Tiveste muito trabalho para encontrá-las, Donald?
Apoderou-se das mãos frágeis e tomou uma expressão acolhedora.
- Nenhum, mamã; reconheci-as imediatamente. Ela já não o ouvia.
- Não, não me digam...-prosseguia, com ar jovial. - Esta é Deborah.
- Não, é Mary - corrigiu Deborah.
- Mas se Deborah é a mais velha!
- Sim, de facto, eu sou a mais velha; mas Mary aparenta ter mais idade do que eu. Parece-se com o papá e eu com a mamã. O papá parece mais idoso.
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- Vocês parecem-se com eles em tudo - assegurou Sara.
As raparigas protestaram.
- Oh, é impossível! O papá e a mamã são muito diferentes.
- Entrem, queridas - convidou a senhora Sheldon. - vou indicar-lhes os quartos.
Levou-as e voltou ao cabo de um quarto de hora. Donald, em fato de banho e com os pés na água, estava sentado na borda da piscina. Sara flutuava, deitada de costas, com os cabelos formando uma coroa de reflexos metálicos. A senhora Sheldon sentou-se numa cadeira de jardim.
- São umas crianças - suspirou.
- Desengana-te, mamã - protestou Donald. A princípio, também supus o mesmo; mas agora garanto-te que são mais maliciosas do que parecem.
- De qualquer modo, demasiado jovens para Sara e para ti.
A senhora Sheldon olhou, assombrada. As duas irmãs desciam os degraus do terraço. Haviam-se limitado a tirar o chapéu, sem alterar em mais nada o resto do trajo. Os cabelos negros entrançados estavam penteados de idêntico modo.
- Ah! - suspirou a senhora Sheldon. - Julguei que desejavam trocar os vestidos por outros mais leves.
- Já nos arranjámos-disse Mary.-Não temos mais nada do que os vestidos sujos da viagem e os dos domingos...
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- Oh! - A senhora Sheldon tomou um ar ausente, mas recuperou imediatamente a sua boa disposição. - Sara, podias emprestar-lhes os teus vestidos de tomar banhos de sol.
- Não, obrigada - recusou Deborah.
- A mamã recomendou-nos que não expuséssemos a pele - explicou Mary, com simplicidade.
- Para não provocar tentações-concluiu a irmã, no mesmo tom.
Sara olhava-as fixamente. Donald ria às gargalhadas.
- Minhas filhas, vejo que não compreendem. Precisamente, é preciso tentar; tudo reside nisso.
- Ê pecar - replicou Mary.
- Exactamente. Tentar para provocar o pecado, eis o que torna o amor agradável - disse Deborah.
- Que conversa! - protestou a senhora Sheldon.
- Vocês não sabem o que dizem.
- Isso é que sabemos - afirmou Deborah.
- Há muito tempo - precisou Mary. Nada denotava acanhamento na sua voz.
- O amor só é pecado quando se faz mau uso dele - declarou Deborah. - O papá explicou-me, quando o sargento americano me beijou. O papá disse-me que em todos os homens se encontra o velho Adão, e em todas as mulheres a jovem Eva. Perguntei-lhe por que motivo Eva era sempre nova e ele respondeu-me: "Porque julga sê-lo".
A senhora Sheldon não ocultava o assombro, esquecida do seu acanhamento.
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- Que estás a murmurar, Donald- perguntou de súbito.
- Perguntava a mim próprio que necessidade haverá de Adão ser barrigudo - respondeu o rapaz, dirigindo um olhar de soslaio à irmã.
Estendida de costas, a bela criatura aquecia-se ao sol, sobre o mármore do terraço, dissimulando os olhos formosos sob óculos escuros e a boca apetitosa debaixo de espessa camada de pintura. Sentadas à sombra de um olmo, Deborah e Mary, apesar de frescas, não eram bonitas nem feias.
- Que quer dizer barrigudo? - inquiriu a mais nova.
Donald fez um gesto significativo.
Sara levantou-se bruscamente. Percebera tudo.
- Não te julgava tão vil, Donald! Odeio-te!
E, pegando no seu casaco encarnado, dirigiu-se para casa.
- Por que te odeia a tua irmã? - perguntou Deborah, vendo afastar-se a graciosa silhueta quase nua.
- Oh, não o odeia! - interveio a senhora Sheldon. - É apenas modo de dizer. Não devias aborrecê-la, Donald.
- Aborreceu-se ? - perguntou Mary.
- Parece-me que o almoço já está pronto - disse a senhora Sheldon. - Não sei de que me esqueci...
Levantou-se, fazendo girar a saia plissada, e foi juntar-se a Sara.
- Agora aborreceu-se, também, ela - disse Mary, pensativa.
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Donald estava demasiado furioso para ocultar a causa do seu mau humor.
- Ouçam, não lhes queria dizer nada, mas mudei de opinião. Não empregarei meios
termos; explicar-me-ei por palavras de quatro letras, simples e claras.
- O que são palavras de quatro letras?
- Grosserias - replicou o rapaz, brutalmente. Sara vai casar-se com um homem velho, rico e obeso: Ford Hammerwood. Não o ama; ninguém poderia amá-lo. Foi casado três vezes. Ela será a quarta mulher.
As duas irmãs escutavam, com os doces semblantes frescos como uma flor.
- Concubina? - perguntou Mary. Donald fitou-a; e compreendeu:
- Não, esposa.
- Impossível - interveio Deborah. - Esposa é a primeira e mais nenhuma. As outras são concubinas. Deve ser desagradável para Sara tornar-se um número entre outros.
- Não me compreenderam - replicou o rapaz, impaciente. - Na América, manda-se embora a primeira mulher antes de casar com a segunda, a segunda antes de casar com a terceira, e assim por diante.
As raparigas estavam muito admiradas.
- Que péssimo costume! E, se ele quiser a quinta, mandará Sara embora ?
- Receberá uma pensão.
- Que é isso ? Uma casa ?
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- Não, dinheiro, muito dinheiro - respondeu Donald, rindo-se.
- Pagar-lhe-ão para se ir embora? - perguntou Mary, gravemente.
- Pouco mais ou menos.
- E, depois, para onde irá? - interrogou Deborah.
- Ver-se-á mais tarde. com muito dinheiro, pode fazer o que quiser e comprar o que ambicionar: até um segundo marido.
- E os filhos?
- Não haverá filhos, naturalmente - replicou Donald.
- Terá de haver - protestou Deborah. - Todas as pessoas casadas têm filhos.
É a vontade de Deus e o destino dos homens. Disse-nos a mamã e ensinou-nos o papá, na
Bíblia.
- Mas ela não terá filhos; lá se arranjará.
- Arranjar-se-á ? Como ?
- Tomará precauções - explicou o rapaz, com ar sombrio.
- Impossível! - exclamou Deborah, admirada.- Seria contra os desígnios de Deus.
- Ah! Acreditas nisso? - troçou Donald.
- Deus criou-nos a todos - tornou a rapariga.
Donald ficou surpreendido pela sinceridade destas poucas palavras, pronunciadas sem vergonha nem acanhamento. Jamais ouvira falar de Deus com tanta ternura, e não
sabia que pensar de semelhante inocência. As raparigas não eram, certamente,
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ignorantes, e, embora desconhecesse os limites exactos da sua cultura, pressentia e perguntava a si mesmo se, na realidade, não saberiam mais do que ele.
Elas pensavam, Mary estava apoiada ao tronco do olmo e Deborah rodeava os joelhos com as mãos.
- Sara não terá melhor meio de encontrar marido ? - perguntou a mais velha. - Não terão sido os vossos pais quem
combinaram esse casamento com um homem idoso ?...
- Meu pai não sabe de nada - respondeu Donald.
- E minha mãe pouco se importa com isso. Basta-lhe a satisfação de ver Sara arrumada.
- Contudo, os pais têm o dever de preparar a felicidade dos filhos - declarou Deborah. - Os nossos pais explicaram-nos isso. Não quiseram o sargento americano para mim, nem o cabo para Mary. Disseram-nos que encontraríamos mais homens na América, mas recomendaram-nos muito que não nos comprometêssemos antes do seu regresso, isto é, nos próximos dois anos. Entretanto, a mamã preveniu-nos contra as tentações. Afirmou-nos que estamos, como toda a gente, sujeitas à tentação, o que, aliás, já sabíamos pela nossa experiência com os americanos, não é verdade, Mary?
- É, sim - confessou a interpelada. - Se nos sentirmos perturbadas, deter-nos-emos para impedir que, em consequência da tentação, nos nasçam filhos. Como não somos casadas, não teríamos lar para lhes dar. E é pecado não ter lar para dar a um filho. Antes de deixar-se seduzir, a mulher devia pensar no filho.
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O Sol brilhava no ar tranquilo e quente, e nem a mais pequena onda enrugava a superfície da piscina. Nas árvores, as folhas pendiam, inertes, e os pássaros ocultavam-se na sombra. No ambiente silencioso as vozes das duas irmãs ressoavam tão claras que Donald olhou à sua volta, para Ver se alguém poderia ouvi-los. Não, ninguém. Apenas, ao fundo do jardim, Broome, o jardineiro negro, estava inclinado sobre um canteiro.
Apesar disso, Donald sentiase incapaz de manter semelhante conversa. Tal realismo deixava-o estupefacto. Como seria possível beijar uma rapariga de pensamentos tão cristalinos? E, no entanto, acariciara a ideia de beijar Deborah... A sua boquita de lábios flexíveis e doces atraía-o pela sua cor natural, tão diferente dos lábios pintados das outras jovens. Não era preciso tirar o carmim com a ideia de que, sem esse artifício, talvez não valesse a pena. Uma boca fresca e rosada e, além disso, desconhecida, um cérebro prudente, talvez demasiado prudente, e total ausência de garridice, eis o que o encantava em sua prima.
O gongo anunciando o almoço ressoou em casa, quebrando a calma pesada do meio-dia.
- Ah! Aí está o almoço! Venham!
Ficara contente com esta diversão.
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III
Sara não queria almoçar. Na sua opinião, essa era a melhor maneira de castigar as intrusas. E ela queria puni-las; achava-as antipáticas, embora sem motivo, reconhecia.
Mal vestidas e pouco atraentes, eram, no entanto, demasiado simples para notarem o que o seu aspecto tinha de ridículo. Mas, nesse caso, por que a irritavam? Eram parvas e inconscientes da sua maldade; porém, o idiota do Donald ria-se e tomava o partido delas. O que, entre ambos, se passara no clube era inadmissível; estragara-lhe o resto da noite e Ford parecia ter-se zangado.
Pegou no telefone colocado em cima de uma mesinha de marfim e marcou um número, lentamente, como contra sua vontade. Respondeu-lhe uma secretária experiente, que ligou para o chefe, depois de ligeira hesitação.
- Senhor Hammerwood, Miss Sheldon!
- Viva, bons dias!
Simultaneamente encantada e hostil, Sara ouviu a voz bem sua conhecida cantar-lhe ao ouvido.
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- Não sei por que lhe telefono - disse a jovem, bruscamente.
- Sei eu - respondeu Ford. - Tinha-me prometido, lembra-se?
- Para ser franca, não - e riu-se.
- Pois eu recordo-me dos mais pequenos pormenores da nossa noite... querida. Achei-a tão encantadora...
Gostava da voz de Ford ao telefone: era agradável e profunda, e as suas inflexões acariciavam-lhe o ouvido. Tentou esquecer a repulsa que ele lhe inspirava, apesar do cuidado com que tratava da sua pessoa. Vigiava a sua linha, lutava contra a calvície, perfumava a boca e cuidava das unhas. Além disso, era bom camarada. Mas, embora não o pudesse explicar, Sara pressentia-o corrompido. Achou-se detestável por julgá-lo assim, provavelmente, os outros homens não eram melhores do que ele, nem as mulheres. A corrupção e a morte roíam o coração de todo o ser vivente. Ela, por exemplo, tão nova e formosa, encontrar-se-ia um dia estendida, solitária, na tumba onde apodreceria. Logo, para que arreliar-se? Não valia a pena. Para que se vem ao mundo? Pobre criança que vai para a escola e saúda a bandeira, cantando Goa bless America; My Country tis of thee, conformada com a maneira de viver americana...
-Está-me a ouvir, querida?
- Sim, Ford... estou.
- Então, que diz a isto, queridinha ?
- A quê?
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- Logo vi que não estava a ouvir!
- Estava, sim, mas fizeram barulho, o gongo ou não sei o quê...
- Dizia eu que nos encontraremos às oito. - Indicou um restaurante. - Um novo restaurante francês, excelente cozinha. Diga a sua mãe que não sei a que horas a levarei a casa, mas que não tenha receio pela sua preciosa filhinha, que também é muito preciosa para mim.
Agora já ouvia. Sorriu. Que divertido era sempre aquele velho Ford! Podia ser pior.
Por exemplo, teria sido pior se se tivesse apaixonado por Lars Bjornsen, o ano passado, na Noruega, quando fora aos desportos de Inverno. Mas soubera recusar a sua franca proposta.
- Não posso oferecer-lhe uma vida confortável, Sara. A que tenho é dura e, se quiser, terá de compartilhá-la. Seguir-me-á a todos os recantos do mundo, a todas as partes onde me mandarem.
Lars era epidemiologista e a sua missão consistia em visitar os lugares devastados pelas epidemias, para estudar "in loco" as causas e os remédios. Noite após noite, instalados na vivenda, ante um fogo de troncos crepitantes, haviam discutido a possibilidade de se casarem.
- Mas, Lars, que pode interessar-lhe uma infinidade de pessoas desconhecidas?...
- Não, Sara, não fale assim; amo-a muito para ouvi-la exprimir-se tão friamente.
- Estou a dizer-lhe o que penso.
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Desorientado por tanta insensibilidade, ele protestara :
- Você, tão linda, tão terna... Como pode ter um coração tão duro? Por que é assim, Sara? Em que a feriu a vida ?
A vida não a ferira. Desde que nascera que vivia rodeada de luxo e ternura. Seu pai adorava-a, e a mãe enchia-a de mimos. Adivinhavam todos os seus desejos; e daqui provinha, por certo, o seu perpétuo tédio. Era terrível não desejar nada, sentir-se vazia.
-.Querida, está a ouvir-me? - perguntou Ford.
- Estou, estou; não faltarei à festa.
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IV
- Não sei o que se passa nesta casa - resmungou o senhor Sheldon.
Resmungava amiúde, o que parecia aliviá-lo. Segundo o modo de ver americano, que era, também, o seu, alcançara o objectivo que se propusera na vida. Tendo ganho
com que comprar a comodidade e o luxo, contava encontrar incluída em ambos a ausência de toda a espécie de preocupações e aborrecimentos.
A senhora Sheldon voltava, com ar lânguido, as páginas de um jornal ilustrado. Tentou apaziguar o marido.
- Não te sentes bem, Ned?
Ele resistiu à resposta fácil; sim, tivera um dia muito atarefado, inúmeras visitas, etc... Se cedesse à tentação de deixar que se compadecessem de si, obteria um alívio efémero e acabaria por se apiedar de si próprio, também: rendido de cansaço e sem ser apreciado pelo seu justo valor. Era um hábito adquirido há muitos anos; mas, naquela tarde, resistiu-lhe, sem saber porquê. Na realidade, não trabalhava por
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aí além. Levantava-se tarde, comia um sólido pequeno almoço, achando muito natural que a qualidade fosse igual à quantidade, chegava ao escritório a meio da manhã e encontrava a sua tarefa perfeitamente organizada pela sua meticulosa secretária. Os clientes mais maçadores haviam sido excluídos, e as personagens mais importantes
seleccionadas com todo o cuidado. Podia dizer -se que o seu trabalho já estava "mastigado". Raramente regressava a casa esgotado. A bem dizer, a única vez que se
fatigara - por causa de um acidente de trabalho que aceitara, fazendo calar a voz da razão - fora por trabalhar afanosamente, dia após dia, para regressar de noite, de bom humor e com a alegria no coração. Estimulara-o muito a ideia de defender a causa de um moço soldado que voltara são e salvo da guerra para vir cair nas engrenagens de uma máquina da sua fábrica. Experimentara enorme prazer, vendo o jovem dotado com uma generosa pensão para os poucos anos que lhe restavam de vida.
- Claro que me sinto bem-respondeu muito irritado. - Julgas que adoeço por não encontrar a minha família como desejava ?
A senhora Sheldon suspirou e não respondeu. Não compreendia o marido, nem qualquer outro homem. Os seus raros conhecimentos provinham de retalhos de conversas recolhidos aqui e ali, no clube feminino de Cressmere. As mulheres da sua geração não falavam dos seus maridos da mesma maneira que as novas; eram fiéis e estavam sempre um pouco inquietas
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- nunca se sabe o que pode acontecer com um homem... A senhora Sheldon contentava-se com o facto de Ned, seu marido, nunca lhe ter dado motivos para duvidar
da sua fidelidade, e gostava de ouvir as suas amigas celebrarem, extasiadas, a maneira como ele a acarinhava e se ocupava dela, como se fossem recém-casados. com efeito, Ned era muito amável com ela, sobretudo em público. Aliás, ambos se conduziam como pessoas distintas - pelo menos assim o julgava. Contudo, gostaria que ele não fosse tão impaciente em casa. Esta tendência acentuava-se com os anos, e havia dias - ou noites - em que não sabia que fazer para acalmá-lo. Tornara-se susceptível, via críticas em tudo, e censurava-a imerecidamente. Ela esforçava-se por continuar a ser bela, porém o marido em nada reparava.
No Verão anterior, devido a uma infecção, a mão inchara-lhe de tal modo que, durante uma semana, nem sequer pudera pegar na maleta. Pois ele não dera por nada.
Lembrou-se de que as suas amigas sofriam com o mau génio dos maridos. Mau génio ou indiferença, qual seria pior ? Não devia considerar-se infeliz, pois não havia indiferença em Ned. Resmungava, é verdade, mas à noite voltava para casa.
- As vezes pergunto a mim próprio se a culpa será dessas pobres pequenas! - resmungou de novo.
- Referes-te a Deborah e a Mary? - perguntou, surpreendida.
- Sim.
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- Mas, Ned... Eu acho-as amáveis...
- Oh, são muito amáveis! - exclamou o marido, dobrando o jornal e recostando-se na cadeira. - Têm um ar tão puro... Que fazem durante o dia?
A senhora Sheldon ficou pensativa.
- Para falar verdade - disse por fim - não sei; contudo, parecem-me absolutamente felizes.
O marido fitou-a.
- De maneira que não te dás ao trabalho de levá-las a sair, de as distraíres ?
- Não têm desejo de sair. Estão sempre ocupadas a lavar as suas roupas e a ajudar as criadas. Bem gostaria que não fossem a toda a hora meter-se na cozinha, pois a Luísa é capaz de se ofender...
Calou-se. Impusera-se a obrigação de nunca falar dos criados ao marido. Por haver esquecido esta elementar medida de prudência, a pobre Doris Hammerwood levara Ford Hammerwood a divorciar-se. Este não queria ouvi-la queixar-se todas as noites dos criados, e ficava furioso quando algum se ia embora. Segundo ele, toda a mulher devia saber conservar os criados. Era injusto, evidentemente, mas os homens nada sabem a respeito de criadagem.
O senhor Sheldon, sobre este ponto, estava em paz com a sua consciência. Fazia quinze dias que as duas pequenas estavam em sua casa e ainda mal lhes dirigira a palavra, convencido de que a mulher e a filha se ocupavam delas.
- Teremos de fazer qualquer coisa pelas pequenas - declarou. - Dar uma recepção em sua honra...
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- Não sei se gostariam...
- Já lhes perguntaste?
- Não pensei em tal.
- Vamos perguntar-lhes agora.
- Oh, Ned! Agora? É tarde e já estão deitadas.
- Que dizes? São apenas dez horas... Para Sara é como se fosse meio-dia. A propósito, preciso de falar-te acerca dela. Não aprovo a sua intenção de casar com o Ford.
Nada tenho contra ele; porém, tem quase a minha idade, esteve casado tantas vezes e ela é uma rapariguinha... dezanove anos!
- Que podemos nós fazer? - suspirou a mulher em tom convicto. - É com ela.
O marido resmungou, amachucou o jornal e atirou-o ao chão.
- Maldita seja! Acho que podemos fazer qualquer coisa, Lillian. Ao fim e ao cabo somos os responsáveis pela sua presença no mundo, pois não somos? Não é como qualquer gato nascido num portal; quisemos que ela nascesse e, desde então, creio bem que nunca deixámos de ocupar-nos dela.
- Sim, Ned - voltou a suspirar a senhora Sheldon. - Contudo, não compreendes os jovens de hoje. Nenhum de nós pode compreendê-los. Estão tão agitados, tão inquietos... Talvez por sentirem a guerra rondar. Evidentemente que a da Coreia não é grave; no entanto, impressiona-os e, além disso, há a Rússia e a sua estranha conduta. Lembras-te da nossa juventude, Ned? Era tudo tão maravilhosamente calmo! Então era possível fazer-se projectos
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para toda a vida; nunca pensei que chegaríamos a isto.
Emocionado pelo seu fácil sentimentalismo, apertou a mão da mulher.
- Não podemos renunciar assim, Lil; temos de manter os nossos princípios. Nada mais existe.
- Sim, Ned. Porém, que princípios ? Estou tão perturbada!...
Não podia explicar-se. Há bastantes anos que, quando pensava na vida da mulher, sentia uma grande piedade. Já não servia para nada. Já não podia ter filhos. Já tinha pouco que fazer em casa... Passava horas inteiras, sabia-o bem, no cabeleireiro. Conhecia os esforços desesperados que as mulheres da sua classe faziam para parecerem contemporâneas de suas filhas; metiam-se nas boas obras, sem, no entanto, lá deixarem nada delas mesmas: um pouco de trabalho de beneficência, uma ou duas horas por semana no hospital infantil e alguns esforços de comissão para arborizar as ruas urbanas. Tudo isto não passava de pretextos. Ele, porém, não tinha coragem para lho dizer. Nenhuma destas mulheres conhecia o defeito do seu coração. Não se atrevia a falar-lhe das suas próprias preocupações, do seu horror ante o perigo "vermelho"... fosse qual fosse a sua importância.
Apesar de tudo, não julgava os comunistas perigosos; por um acaso histórico, tinham alcançado o poder num momento em que a maior parte do mundo carecia de alimento, de vestuário e de casas. Não confiara em Roosevelt, que achava antipático, mas
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concordava plenamente com as suas palavras acerca dos "vermelhos".
Quando pensava na família, surpreendia-o que aqueles seres bem alimentados e bem alojados não fossem felizes. Sara, pelo menos, não o era, sabia-o bem; quanto a Donald, continuava a ser um enigma. Nem ele próprio se sentia ditoso, embora ignorasse porquê. Quando meditava reconhecia no seu espirito a obra do medo, não do medo de pequenas coisas, mas de algo imenso, desconhecido, dum horrível crime de que não era responsável. Havia no mundo qualquer coisa que não funcionava bem, e sentia-se vagamente culpado, sem saber o que era nem como contribuía para tal desordem. Vivia numa atmosfera pesada, sem conforto possível, assim como todos os homens que conhecia, exceptuando os originais como Ford. Que bom velhote, original, feliz e rico! Talvez Sara tivesse razão. De qualquer modo, as duas raparigas em nada se pareciam com a filha.
- Vai buscá-las - repetiu. - Vamos perguntar-lhes agora.
A mulher levantou-se, foi ao terraço e voltou.
- Pois sim, vou lá.
Subiu as escadas e ele consolou-se com um cocktail e com a ideia da esplêndida recepção que daria em honra das duas irmãs. As pobrezitas nunca haviam visto nada. Faria com que lhes comprassem bonitos vestidos.
A senhora Sheldon voltou com Deborah e Mary, de mãos dadas como duas garotas. Vestiam uns quimonos
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esquisitos e tinham os cabelos lisos entrançados. Os seus rostos ovais e pálidos pareciam mais puros do que nunca.
- Creio que não as fizeste sair da cama... - disse Sheldon.
- Estávamos a ler a Bíblia - disse Deborah. Ele sorriu.
- Muito bem.
Quanto tempo duraria aquilo? Quando se casara, Lillian e ele rezavam juntos. Não se lembrava quanto durara essa febre piedosa, nem por que acabara. Fosse como fosse, não voltaria.
- Sentem-se - disse às pequenas. - Vejo-as pouco; vocês distraem-se?
Sentaram-se ao pé da janela.
- Somos muito felizes - afirmou Mary. - Há tanto que fazer, tantas pessoas a quem conhecer...
Sheldon fitou-as.
- A quem conheceis já ?
- Donald e Sara - respondeu Deborah. - E a tia Lillian, também. A si, quase o conhecemos, porém ainda falta um bocadinho.
- Ainda falta um bocadinho ?
- Pois. Conhecemos muito bem Harry e Luísa, assim como Nancy e Mr. Broome; qualquer dia conheceremos Mr. Morris, o seu motorista. Queríamos chamar a Harry "Mr. Gates",
mas ele não quer. Ensinamos-lhe coreano.
- O quê?
-Pois ensinamos. Depois ele ensina-o ao filho,
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que vai para a guerra, lá. Pedimos-lhe que nos trouxesse o filho; poderíamos falar-lhe da Coreia e evitar que vá cometer erros. Os coreanos são bons, mas os americanos ignoram-no.
- Ah! E Harry trará o filho ?
-Tem medo de lhe desagradar se o fizer explicou Deborah. - Eu sei perfeitamente que ele está enganado, e já lho disse. Vai reflectir. Trocamos receitas com a Luísa e ensinamos-lhe pratos coreanos. A cozinha aqui é muito diferente. Preparamos para nós comida coreana, mas não lhe dizemos nada. Ofender-se-ia e as ofensas ao amor-próprio são mais graves que as feridas do corpo, porque a carne sara e o coração não.
- E o velho Broome?
- Mr. Broome tem um cancro - respondeu Deborah. - Ele disse-nos, mas ninguém mais o sabe, é segredo. Não lhe queria contar nada, mas não tem dinheiro para ser operado. Não lhe diga que lhe falámos disto; faça-lhe uma observação casual acerca da sua má cara e assim facilitará tudo.
- Por que motivo nunca me falaram dessas coisas ? - perguntou a senhora Sheldon.
- É preciso tempo para falar, tia Lillian - observou Mary - e a tia tem sempre tão pouco... Vemo-la sempre muito ocupada.
- E Nancy? - perguntou o senhor Sheldon, um pouco severamente.
- Nancy gosta de Donald; está triste. A senhora Sheldon empalideceu.
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- Se soubesse que essa rapariga...
- Donald ignora-o - disse Deborah, suavemente.
- Nancy é uma rapariga séria e não lhe dirá nada. Está triste por ver que ele é tão desgraçado.
- Donald, desgraçado? - perguntou ansiosamente a senhora Sheldon.
- Oh, muito!-afirmou Mary.-Acha tudo vazio. Sara também está triste...
O senhor Sheldon fez um esforço para mudar de conversa.
- Que diriam duma recepção, hem, minhas filhas?
As raparigas olharam-se, sensibilizadas.
- É muito amável por pensar nisso - disse Mary, sinceramente. - Mas que faríamos nós lá ?
- Levariam uns lindos vestidos que vou comprarlhes ; pôr-se-iam bonitas, dançariam e divertir-se-iam.
As pequenas reflectiram. Viu-as olharem-se novamente e reprimir um sorriso.
- Nós não sabemos dançar - observou Deborah.
- E isso não vai induzir-nos em tentação ? - perguntou Mary, inquieta.
- Decerto que não - respondeu gravemente o senhor Sheldon. - Têm que acostumar-se. Aqui estamos tão habituados à tentação que é preciso muito para que, de facto, sejamos tentados.
As raparigas pensaram na resposta que deviam dar, com os grandes olhos cinzentos absortos.
- Aceitemos - disse Deborah à irmã.
- Será a vossa estreia mundana - disse o senhor
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Sheldon, deitando uma olhadela à mulher, que as contemplava com o lindo rosto entristecido por uma espécie de terror.
- Absolutamente de acordo - aprovou ela, dando à voz um tom jovial. - Amanhã combinaremos isso, não é verdade ? Agora já é tarde.
- Tem graça que ontem à noite pedimos nas nossas orações que nos sucedesse qualquer coisa extraordinária - confessou Deborah. - A Mary nem sequer sabia o que desejava.
- A minha fé é demasiado débil - afirmou, desculpando-se, a mais nova. - Parece-me difícil ter fé aqui, na América. Até na Igreja é difícil. Há tanta música...
As pequenas dirigiram-se para a porta, mas, subitamente impressionado por esta observação, o senhor Sheldon deteve-as:
- Esperem um minuto! - pediu. - Que querem dizer com isso de "É difícil ter fé aqui..." ? E que tem a música a ver com tudo isso ?
- Ignoramos - respondeu Deborah, após curta hesitação. - Contudo, tentamos compreender. Desde que chegámos que nenhuma das nossas preces foi atendida.
- Excepto a da noite passada - observou Mary.
- E porquê ? Por que teria sido essa ? - perguntou Sheldon.
- Ignoramos - repetiu Deborah. - Averiguaremos.
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Levemente desconcertado, Sheldon voltou a fitar a mulher quando a porta se fechou.
- Ouve, estão a troçar de nós ou são simplesmente tontas ? Gostaria de saber o que queriam dizer, supondo que pensaram, de facto, em qualquer coisa.
- Não tenho a mínima ideia-suspirou a senhora Sheldon. - vou deitar-me.
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v
No seu quarto, as duas raparigas meditavam na repentina realização dos seus desejos. Em vez de pensarem em silêncio, trocavam as suas reflexões; porém, sabiam tão bem os pensamentos uma da outra, que quase não precisavam de palavras. Tinham tido uma juventude solitária, não obstante o carinho mesclado de curiosidade com que as rodearam os habitantes da pequena cidade coreana onde viviam seus pais. Esta atmosfera carinhosa aguçara-lhes a sensibilidade e tirara-lhes todo o temor, embora a curiosidade de que eram objecto as tivesse marcado como seres à parte. Por muita que fosse a ternura que as duas irmãs experimentavam pelos indígenas, sentiam-se fora do seu elemento, o que as fazia sofrer. Agora, porém, que viviam entre seres da sua raça - apesar disso, até que ponto estranhos! - choravam, às vezes, não só por se lembrarem dos pais, mas, também, porque as invadia a nostalgia da atmosfera de paz em que haviam crescido. Faltava-lhes ternura, não a ternura autoritária e um pouco severa dos pais,
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mas a meiga doçura dos seus amigos de pele morena. Estes haviam aceitado entre si aquelas estranhas crianças de olhos e tez clara, que se haviam convertido em rapariguinhas cheias de vida e malícia e, logo a seguir, em jovens doces e graciosas, desabrochadas ao calor da ternura ambiente.
Era esse calor que lhes faltava agora; recordavam-no com melancolia, procurando nele a força que sempre lhes dera.
- Acreditas que começam, finalmente, a estimar-nos ? - perguntou Deborah.
- Claro que sim. De contrário, os pais de Sara e Donald não gastariam tanto dinheiro para dar um baile em nossa honra - respondeu Mary, em coreano.
Durante quarenta anos os coreanos tinham sido obrigados a falar a língua dos seus conquistadores japoneses; porém, em todas as famílias os pais se escondiam para ensinar aos filhos a língua nacional, de claras e belas sílabas e escrita sucinta. Na intimidade, as duas irmãs falavam sempre em coreano, trocando os seus pensamentos mais secretos.
O conhecimento desta língua e do inglês valera-lhes o encontro com um sargento e um cabo americanos. Um dia, quando passavam na rua, viram os dois militares parar diante de um ancião e perguntarem-lhe, em japonês, o nome da cidade em que se encontravam.
O ancião tomou uma expressão pesarosa e abanou a cabeça. Então o sargento pegou-lhe por um ombro e repetiu a pergunta, em voz alta.
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Naquele momento, Mary dirigiu-se-lhe:
- Largue imediatamente esse velho! - ordenou.
- Não sabe ser educado ?
O sargento olhou-a fixamente e soltou um assobio. Voltou-se para o cabo, e disse-lhe, piscando o olho:
- Já viste quem chega ?!... Deborah afastou-se, mas Mary insistiu:
- Por que são mal educados ao ponto de falar japonês a um coreano? Acaso ignoram que os coreanos detestam essa língua? Juraram não voltar a falá-la.
- Ouves a rapariguita? - perguntou o cabo, com admiração.
- Desavergonhados americanos! - exclamou a pequena e, de seguida, pronunciou algumas palavras, pedindo desculpa ao velhote. Como toda a gente daquela cidade, este conhecia as duas irmãs e suplicou-lhes que não ofendessem os seus novos conquistadores.
Mais tarde, este incidente serviu de tema às duas raparigas para pregarem as boas maneiras a todos os americanos, os quais, além do resto, continuavam a ser rudes e grosseiros.
- Não creio que haja aqui algum amor - disse Deborah. - Faz tudo parte dum plano egoísta.
- Não censuremos antes de termos a certeza replicou a outra, com a sisudez habitual. - Aceitemos a festa, pois o dom de poderem dar os torna ditosos. Bem sei que te assusta a ideia de encontrar muitos
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estranhos, mas Deus dar-nos-á forças. Até agora não deixou de fazê-lo.
- Agora é mais difícil - suspirou Deborah. Sinto-me muito só; se não fosses tu, estaria completamente abandonada. As pessoas daqui sorriem-nos e falam-nos amavelmente, mas não pensam em nós. Só pensam nelas e nos seus secretos anseios.
- Não façamos como elas, pensando, também, em nós mesmas - disse Mary, com firmeza. - Ajudemo-las a obter o objecto dos seus desejos, de modo que os seus corações se sintam satisfeitos e elas se julguem livres.
Deborah reflectiu. Embora fosse a mais velha, recorrera sempre ao espírito mais sólido e intrépido da irmã.
- Quais são os seus desejos? - perguntou, por fim.
Desta vez, foi Mary quem reflectiu. Desde a sua chegada, as duas irmãs só tinham saído de casa para irem à igreja. As visitas mostravam-se amáveis para com elas, porém, como Deborah observara, depressa as esqueciam. Tinham a impressão de que todos os membros da família, começando nos senhores e acabando nos criados, corriam encarniçadamente atrás da felicidade que lhes fugia. Ninguém pensara em sair com elas, nem sequer Donald que, às vezes, buscava a sua companhia para falar com elas, ou melhor, para ouvi-las falar. Faziam-lhe muitas perguntas, que ele iludia com impaciência. com Sara apenas trocavam breves palavras de cortesia. No
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entanto, todos lhes mostravam amizade, até o senhor Sheldon, cujos aborrecimentos às vezes as magoavam. Seu pai tinha mau génio, mas sabia dominar-se. Os coreanos
envergonhar-se-iam de manifestar em publico o seu mau humor. Era para eles uma demonstração de vulgaridade ou de falta de carácter. O senhor Sheldon parecia não conhecer esta regra de decoro.
- Falemos de todos os habitantes da casa - propôs Mary. - Comecemos pelos que melhor conhecemos. O velho Harry, por exemplo.
- Ah, pobre velhote! - suspirou Deborah, docemente. - Como é grande a sua solidão! Perguntei-lhe um dia se tinha um lar, e ele respondeu-me: "Não, uma casa, apenas". A mulher morreu e ele não tomou outra. Acho que é bom. Perguntei-lhe porque não voltara a casar, e confessou-me que não tinha coragem para recomeçar.
- Tem o filho, Henry - protestou Mary.
- Sim, mas não se atreve a querer-lhe muito. Sei-o, porque quando lhe falei nele disse-me: "Eu sou velho e ele é novo". Aqui os novos não têm grande necessidade dos velhos.
- É bem verdade - reconheceu Mary. - Já reparaste que na América os anciães têm medo ? Ninguém lhes quer.
- É uma injustiça não respeitar a velhice.
- Aqui não há limite definido entre a justiça e a injustiça, entre o bem e o mal.
- Harry precisa muito de carinho - volveu Deborah.
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- Mas onde arranjar-lho ? Somos só duas a tê-lo.
- Luísa não está triste -declarou Mary. - Tem o coração satisfeito. Não tem sentimentos.
- Toda a gente os tem - contestou a irmã. - Os de Luísa estão escondidos sob o seu orgulho. Gosta de mandar e sofre se não lhe obedecem. Quando se zanga é terrível.
- Gosta de pensar que é uma pérola de cozinheira. Prepara com carinho pratos deliciosos, não para dar prazer aos comensais, mas para demonstrar a sua qualidade de habilíssima cozinheira.
- Sim, é verdade. Quem se segue?
- Nancy - continuou Mary, seguindo o curso dos seus pensamentos. - Essa, pelo seu lado, deseja o amor, não o amor verdadeiro que nós conhecemos; quer que Donald a ame e ele nem sequer põe os olhos nela. É um desejo egoísta, pois ela devia dar-se conta de que tal amor não teria significado algum para Donald.
- Sim, há muito egoísmo da parte de Nancy apoiou Deborah com tanta convicção, que Mary a olhou, surpreendida.
- Julga-la severamente ?
- Não; é fácil amar Donald.
Mary absteve-se de fazer mais perguntas. Fitou a irmã com ar pensativo, e prosseguiu:
- De Sara não sabemos nada.
- Sara é a mais infeliz desta casa. Tentemos facilitar-lhe o que deseja - propôs Deborah.
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- Mas como havemos de descobrir os seus desejos? Nunca nos fala. Muda de vestido e penteado muitas vezes ao dia; porém, o seu rosto é sempre o mesmo e, quando sorri, só a boca toma o jeito dum sorriso.
- Procuremos - insistiu Deborah. - Gosto de Sara.. Sinto por ela o "amor verdadeiro".
O "amor verdadeiro", tal como lhes ensinara o velho Kim Soong, seu professor coreano, discípulo de Confúcio, é o sentimento que se experimenta por aqueles de quem nenhum benefício se espera. É um amor desprovido do "eu", uma boa vontade desinteressada que, mesmo que a escorracem, não morre.
- És melhor do que eu - disse Mary, com pesar.
- Quando Sara não nos fala e, na nossa presença, se porta como se lá não estivéssemos, detesto-a.
- Porquê? - perguntou a irmã, olhando-a com ar preocupado.
- Porque ela também me detesta - respondeu Mary, sem rodeios.
- Isso não é exacto; ela detesta-se a si própria sem saber.
Mary olhou o rosto sério da irmã. Haveria nela uma ponta de fariseísmo ? O velho Kim ensinara-lhes, também, que "se uma pessoa se julga demasiado virtuosa, então toda a virtude desaparece". Porém, o rosto pálido e puro de Deborah apenas revelava a sua preocupação "acerca de Sara e da sua perturbação ante o pecado da dúvida".
- E os pais ? - perguntou Mary.
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Deborah reflectiu um momento.
- A mais feliz é a senhora Sheldon - afirmou.
- Porquê?
- Não é que seja verdadeiramente ditosa; é, apenas, a criatura mais feliz das que vivem nesta casa. Modelou o coração, fazendo-o, com o rolar dos anos, cada vez mais pequeno; reduziu-o até ao ponto de conformar-se sempre com o que o presente lhe oferece. Não procura ir mais além e conserva no coração o menor espaço livre possível. Pensa: "Tenho isto e aquilo e não quero mais nada. Não olharei para lá da porta. Recuso-me a conhecer o que lá existe. Ocupar-me-ei dos meus parentes; que me importam os outros?"
- Então como pode ser feliz? - perguntou Mary, assombrada.
- Julga-se feliz, porque nunca conheceu a verdadeira felicidade.
- E o homem?
- Muito inquieto - respondeu Deborah, decididamente. - Já não é novo e tem medo da velhice, porque sabe, ou suspeita, que não é ditoso.
- Deborah, o que é a felicidade?
À pálida luz da Lua, Mary viu Deborah voltar a cabeça e apoiar o queixo na mão. - Tu sabe-lo e eu também - respondeu.
- Sim, mas gostava que a traduzisses em palavras.
- Fá-lo tu.
- Como sabes que és feliz?
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- Sou - respondeu Deborah, firmemente. - Não desejo nada; posso esperar.
- E se não houvéssemos nunca experimentado o "amor verdadeiro"?
Deborah sacudiu a cabeça.
- Custa-me imaginá-lo.
Encostou a cabeça à almofada e não disse mais nada. Adormeceram sob os raios pálidos da Lua.
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VI
O projecto da festa tomava corpo e enchia a casa duma atmosfera um pouco febril. Uma vez tomada a decisão, o senhor Sheldon estava disposto a aproveitar o mais possível das projectadas diversões. Rejeitou, por esse motivo, a sugestão de sua mulher, que queria organizar o baile no clube.
- Não - respondeu ele, com firmeza. - Lá reina sempre a mesma trivialidade; o mesmo bar, os mesmos salões e as mesmas caras. Não, desta vez será diferente.
- Não compreendo porque tomas o caso tanto a peito - declarou a senhora Sheldon.
- Nem eu; porém, tenho desejos de esquecer a minha insignificante pessoa, ao menos uma vez. Convidemos apenas as pessoas a quem estimamos.
- Também podíamos dar o baile em honra do noivado de Sara...
O marido franziu as sobrancelhas.
- Ela está decidida?
- Aceitou ontem à noite.
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- Podia ter-me dito alguma coisa - disse ele, após breve silêncio.
- Parece-me que Ford queria anunciar-te pessoalmente o acontecimento.
- Não me importa. Anuncia o noivado publicamente, se quiseres. Quanto a
mim, organizo o baile para as duas pequenas. Quero que os salões sejam decorados por um
florista. Broome que apanhe as flores: muitos lírios e flores brancas; uma coisa aérea e delicada, com leves toques de rosa e amarelo.
- Eia! - exclamou a mulher. - Nunca te vi entrar tanto em despesas.
Ele sorriu.
- Não sei porque me interessam tanto as flores. Sinto cá por dentro que gostaria de ver as pequenas bem vestidas, num quadro florido. E, além disso, nada de pratos ordinários, hem?
- Pois quê?! - exclamou a senhora Sheldon, um pouco ofendida.
- Não sei, manjares exóticos, talvez. vou encarregar Miss Gray deste assunto.
Miss Gray era a sua glacial secretária.
- Pareceme bem que não me fica quase nada para fazer - observou a mulher.
- Podias comprar-lhes os vestidos. Abro-te um crédito de uns cem dólares para cada um.
- Sara também quererá um.
- Compra-se-lhe! Bem depressa será Ford quem lhos há-de pagar. Quando quer casar-se ?
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- Em Outubro. Ele não tem, naturalmente, vontade de esperar; e ela tão-pouco...
- Ah! Aposto que quer ver-se livre quanto antes de todos os preparativos. Ela que não me diga que gosta dele.
- Oh, não sei! Sara é bastante nova para se sentir atraída por um homem de tanta experiência.
- É pelo seu dinheiro! - exclamou o marido, sombriamente. - Gostaria de saber que mais querem as mulheres de hoje.
- Temos sorte.
Sheldon olhou-a friamente, e mudou de assunto.
- Trata de arranjar vestidos bonitos.
- De que categoria ?
- Que sei eu? Qualquer coisa que seja um pouco... leve, etéreo.
Depois saiu do aposento, porque aos domingos à tarde dormia sempre uma sestazita. Sara saíra com Ford; Donald e as duas irmãs distraíam-se na piscina. Ao ficar só, a senhora Sheldon recostou-se e fechou os olhos. Aquelas pequenas eram verdadeiramente inocentes e Ned estava atraído pela sua inocência, como havia sido atraído pela da mulher, anos atrás. Sara nunca tivera aspecto inocente. Reflectiu um momento e perguntou porque teria ela própria perdido aquela expressão. Ora, fora-se apagando, pouco a pouco, com a juventude; eis tudo. Talvez as outras mulheres tivessem contribuído, com o seu cinismo, para apagar-lha do semblante. Nunca tivera uma aventura sentimental, nem a desejara, tão-pouco.
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Continuava fiel a Ned e não via, verdadeiramente, outro homem a quem tivesse podido amar tanto. Por outro lado, achava bastante difícil satisfazer o marido e nem sequer pensava que se pudessem suportar gostosamente as complicações de um adultério. Os homens, no casamento, são terrivelmente egoístas. Só os seus desejos contam.
Se uma mulher os não satisfaz, tornam-se irritáveis ou abandonam-na logo. As vezes desejava sinceramente dizer a Ned: "Pelo amor de Deus, procura alguém que... que...".
Naturalmente, nunca lho dissera. O marido pertencia-lhe; ela, porém, nunca se lhe dera completamente. Quereria ser sua de corpo e alma, mas não podia. Conhecia-o
demasiado bem. Começara a afastar-se dele desde o princípio do casamento; depois, o fosso cavado pelas pequenas friezas e desacordos quotidianos não cessara de alargar.
As secretas rebeliões e as pequenas hipocrisias da vida conjugal tinham feito morrer o amor. Havia muito tempo que já não acreditava no amor, e revelara a Sara o
seu cepticismo. "O amor não é mais do que uma palavra resplandecente - dissera-lhe - e o seu resplendor serve para esconder uma enormidade de pormenores que vale mais não se conhecer nunca. Para se viver é preciso esquecer muitas coisas".
Construíra o seu próprio universo, elegante e confortável, e nada, nem sequer a guerra, chegara até ela. Donald era muito novo quando rebentou a última conflagração, e os filhos das outras mulheres não lhe diziam respeito. Apesar disso, há algum tempo que
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começara a ter muitas preocupações. Por que motivo os jovens americanos - desta vez, talvez Donald, também - tinham que deixar-se matar por umas pessoas que nunca tinham visto? Ela nunca se permitira pensar nos demais. Para que havia de começar a fazê-lo agora? Ignorar... Não desejava outra coisa.
Donald estava estendido ao sol, no terraço contíguo à piscina.
Nem Debo-rah nem Mary sabiam nadar quando chegaram, mas não haviam tardado a aprender... Deborah fora a primeira; o seu corpo de formas graciosas movia-se agilmente na água.
Ao princípio não tinham querido, sequer, chegar-se à piscina. Uma tarde quente a senhora Sheldon insistiu, e elas expuseram-lhe os motivos da sua recusa com aquela franqueza natural que a ofendia mais do que uma desculpa meio disfarçada.
- Não gostamos de estar tão nuas - disse Mary.
- Mas, na nossa época... -protestou a senhora Sheldon.
- Quando toda a gente anda quase nua, creio que é menos interessante - disse Deborah, com voz clara e sem sombra de embaraço.
A senhora Sheldon olhou-a friamente. Que queria dizer? Impossível sabê-lo. Deborah tinha uma panela sobre os joelhos, e descascava ervilhas.
- No entanto, ajuda a cozinheira - disse a tia, irritada.
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Em seguida, porém, cedeu, como fazia sempre com aquelas enigmáticas raparigas.
- Mandarei fazer fatos de banho de encomenda...
- Desde aqui... até aqui - disse Mary, indicando o pescoço e os joelhos.
- Assim nadaremos - confirmou Deborah.
Eis porque, no momento mais quente daquele dia de calor, as duas irmãs nadavam, envergando fatos de banho de seda, muito sóbrios, que lhes aderiam ao corpo e desenhavam inocentemente as suas formas juvenis. Deborah ultrapassou Donald em poucas braçadas; os seus compridos cabelos flutuavam atrás dela, como se fossem algas. Nem Deborah nem Mary se importavam de molhar o cabelo. Apesar de tudo, não tinham manifestado desejos de se enfeitar. Numa palavra, pareciam não ter mudado em nada, e continuavam com o mesmo aspecto inocente. Sem manifestar opinião sobre o vinho ou a água, o whisky ou o leite, bebiam água e leite e recusavam, até, as bebidas gasosas.
-Porque é picante? - perguntou um dia Deborah, ao provar ginger ale.
- Para dar gosto - respondeu Donald.
- Não aprecio - declarou ela.
A guerra na Coreia tomava proporções inquietantes, e Donald perguntava a si mesmo se os tentáculos do polvo chegariam até ele. Naquele formoso dia de Outono a suposição parecia-lhe improvável. Sabendo que as aparências iludem, fez uma pergunta a Deborah. A rapariga veio para junto dele, sentou-se no
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rebordo da piscina, deixando as pernas delgadas dentro de água.
- A Coreia é muito diferente da América ? - perguntou o rapaz.
Ela torceu os compridos cabelos e, depois, deixou-os cair sobre os ombros.
- Completamente - respondeu.
- Evidentemente que as pessoas dormem, comem, andam e trabalham...
- Essas coisas são iguais em toda a parte. A diferença está noutro lado.
- Para melhor ou para pior ? A rapariga hesitou.
- Aqui nada tem muita importância, e lá cada ser é importante.
Donald não compreendeu.
- Isso não explica nada - resmungou.
- Não sei explicar, mas é assim. Lá, o amor está na atmosfera.
- Que espécie de amor ? Ela abanou a cabeça.
- Como o ar, o sol e a chuva, está em toda a parte.
O rapaz irritou-se com esta resposta vaga.
- Devem ser muito cruéis; ontem fuzilaram dezoito homens nossos que se tinham rendido. Isto não é, na realidade, uma prova de amor.
Deborah voltou a abanar a cabeça, parecendo aprovar estas palavras e negar-se a discuti-las. No entanto, acabou por dizer:
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- É preciso compreender a atitude das pessoas e o motivo dos seus actos. Não basta declarar: está bem ou está mal. Não se podem julgar bons ou maus os actos de uma pessoa que não se conhece.
- Então por que razão um homem mandou executar dezoito criaturas que nunca tinha visto ?
A rapariga fitou-o bem de frente.
- Por que motivo se encontravam lá os dezoito ?
- Para ajudar os demais coreanos. Abanou outra vez a cabeça.
- O que se está a passar não tem nada que ver com a Coreia. Aos coreanos não interessa. Por isso a atmosfera habitual está transtornada e tudo é confusão; o amor está à parte. Isto não modifica absolutamente o que eu disse antes.
- Se tiver que partir para a Coreia, Deb, falas-me do país?
com ar inquieto, a rapariga inclinou-se para ele e disse muito seriamente:
- Não vás, suplico-te! Não vás, não vás! Não é bom para ti.
- Se me mandarem, que remédio terei senão ir. Por que não há-de ser bom ?
- Se fores, escreverei a todos os meus amigos a dizer que és diferente de todos
os americanos.
- Sou, de facto, diferente?
- Sinto-o.
Voltou-se e agitou na água os pezitos brancos.
- Em que sou diferente, Deb ?
Donald sabia desde o princípio que a amaria. Vacilante,
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receoso, preso já pelo amor, comprazia-se em fazê-la falar dele.
- Sinto-o - repetiu ela.
- Mas, como? - insistiu.
Mary nadava debaixo de água, longe deles. Emergiu no extremo oposto da piscina e estendeu-se na erva. Deborah olhou-a com ar pensativo.
- Mary e eu falámos de ti, ontem. Achamos que és um coração amante.
- Um coração que te ama - disse ele, audazmente.
A rapariga ruborizou-se e Donald viu-lhe o colo e os ombros estremecer levemente.
- Não falo do mesmo que tu - replicou Deborah.
- Eu penso no... -hesitou, mas acabou por encontrar o termo desejado - no amor do próximo.
- Talvez o amor, como a caridade bem compreendida, comece por isso...
Arreliava-a, embora o seu coração batesse apressado.
- Parece-me que não quero falar mais - replicou ela, levantando-se bruscamente.
"O amor do próximo"... Algumas semanas atrás, antes da chegada das duas irmãs, não teria compreendido esta frase. Agora, porém, começava a compreender. Aquelas raparigas tão ignorantes dos hábitos do seu mundo, simultaneamente doces e obstinadas nas suas ideias fora de moda, traziam consigo o verdadeiro "amor do próximo". Prestavam atenção a todos, até àquele velho tonto do Broome, e faziam-
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-no com muita graça, com as mãos abertas. Geralmente, tinham as mãos sempre assim e os dedos delicados afastados como graciosas pétalas. O seu corpo e a sua alma, penetrados pelo amor do próximo, pareciam sempre em paz.
Não se escondiam atrás de barricadas; espalhavam à sua volta todo o amor que podiam.
Uma manhã, ouvira Broome confiar-lhes as suas preocupações; Broome, que se cerrava como uma ostra quando alguém tentava aproximar-se de si! Tinham-no ouvido com tanto interesse e compaixão, como se fosse ao próprio pai. Quem podia interessar-se por Broome ?
- Não devem consentir que o velho Broome as importune - dissera o rapaz, para que notassem a sua presença.
- O que o senhor Broome nos conta é interessante e muito triste. Estou muito comovida - confessara Deborah, com ar pensativo.
Nunca se envergonhavam das suas emoções. Aliás, nunca se envergonhavam de nada, pensava Donald, nem dos seus curiosos vestidos, nem dos feios sapatos coreanos. O rapaz cerrou os olhos e sentiu no rosto a carícia ardente do sol. Não queria que Deborah mudasse; porém, seria possível ? Dentro de alguns anos talvez fosse frívola, superficial e semelhante às outras raparigas que conhecia, ou, provavelmente, pior, pois ostentaria as suas virtudes como uma careta de falsidade. Oh, preferia vê-la morta a transformada !
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Quando Deborah e Mary entravam num aposento, sentia-se fundir a hostilidade latente, as rivalidades e as críticas. Traziam consigo como que um perfume, uma expressão de respeito e interesse quase ingénuo por todas as pessoas. Segundo Deborah, era "o amor do próximo". A palavra amor, porém, traduzia mal aquele brilho tão complexo. O amor, no sentido americano da palavra, representava um conflito perpétuo, a luta, a posse, o triunfo e, também, a submissão. Timidamente, o seu espírito tentava descobrir as possibilidades de amar Deborah. Deixarse-ia absorver por aquela atmosfera de que ela se rodeava, ou encontraria nos pensamentos da rapariga um lugar só para si? Desejava obter dela mais do que o amor do próximo.
As duas irmãs faziam a prancha, deixando flutuar o corpo leve na superfície da água, com os olhos fechados e as faces semelhantes a lírios. Donald contemplava-as, roído por uma dor surda. Invejava-as por possuírem uma qualidade que não sabia definir: uma espécie de felicidade espontânea. Ninguém lhe ensinara a ser feliz. Sentia-se infinitamente solitário, separado delas e de tudo quanto conhecera antes.
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VII
Os preparativos do baile prendiam cada vez mais a atenção de todos, excepto das duas raparigas. Estas aceitavam o acontecimento como os fenómenos naturais semelhantes ao nascer e ao pôr do Sol. Esperavam-no com prazer, sem, contudo, permitir que empanasse as outras alegrias quotidianas, e sem se deixarem impressionar pelo fausto.
Toda a família, incluindo a criadagem, andava agitada. A senhora Sheldon, que ao princípio aceitara a ideia como um trabalho mais, deixou-se distrair e, a pouco e pouco, absorver pelos agradecimentos das duas irmãs. No decorrer dos últimos dez anos perdera gradualmente importância aos olhos da sua família; sabia-o, embora se negasse a pensar nessa verdade dolorosa. O filho e a filha já não precisavam dela; nas raras ocasiões em que lhes pedia qualquer coisa, sobretudo um pouco de carinho ou atenção, só se lhe deparava crescente impaciência.
Sentia também que perdera o respeito de Donald, e, sem querer descobrir o motivo, suspeitava desde
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quando datava essa mudança: da noite, ou melhor, da madrugada em que fora ao seu quarto suplicar que impedisse o casamento de Sara com Ford Hammerwood. Defendia-se
da própria consciência repetindo que dissera a verdade e que mais valia a seu filho saber as realidades da vida do que ignorá-las. Mas não, aquela noite não influíra
em nada. O rapaz separava-se dela à medida que ia crescendo, eis o que era. Todos os filhos eram iguais... pelo menos se desse crédito às queixas das outras mulheres do clube. Nenhuma sabia explicar porquê, mas todas afirmavam que os filhos, sobretudo os rapazes, as detestavam. Todavia, entristecia-a não ver já nos olhos pardos do filho aquele olhar carinhoso e compreensivo que, sem o suspeitar, se lhe tornara indispensável.
As vezes pensava que já ninguém lhe queria. Sara não tinha afeição por ninguém; quanto ao marido, o trabalho absorvera-o completamente. O carinho de Donald tinha-a confortado, porque o rapaz lhe quisera verdadeiramente - os filhos gostam sempre das mães - mas há algumas semanas que só via nele frieza.
Deborah e Mary tinham-se mostrado amáveis desde o princípio e as pequenas atenções que lhe dispensavam, tão raras na juventude de hoje, pareciam-lhe encantadoras. Deborah afagava-lhe a mão, beijava-a carinhosamente e, de vez em quando, presenteava-a com um desenho (as duas irmãs tinham propensão para o desenho e a senhora Sheldon admirava nos
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seus esboços paisagens que lhe eram desconhecidas, talvez recordações da Coreia). Teve ainda ocasião de conhecer melhor as suas protegidas quando as levou a Nova Iorque para lhes comprar os vestidos para o baile. Descobriu, então, que também precisavam de roupa interior, pois a pouca que tinham era de algodão ou seda grossa e, provavelmente, feita pela da mãe. Quando lhes viu os corpos esbeltos e gráceis, sentiu um grande impulso de ternura por elas. com grande surpresa verificou que, havia muitos anos, não experimentava tais impulsos. As duas raparigas não tardaram a dar-se conta deste carinho, e corresponderam-lhe, não com efusões, mas com uma reserva delicada e amorável, que expressava simultaneamente o seu respeito por aquela mulher de mais idade e uma admiração demasiado sincera para ser lisonja.
- Quando sorri parece-se com a deusa da piedade
- disse Deborah enquanto provava um vestido amarelo claro, com a saia muito ampla.
Inclinou a cabeça de caracóis negros. A senhora Sheldoh pedira-lhes que cortassem o cabelo, e elas haviam concordado, cheias de divertida curiosidade. A senhora Sheldon observara então, assombrada, o encanto daqueles semblantes, enquadrados na cabeleira naturalmente encaracolada.
- Quem é a deusa da piedade ? - perguntou a costureira, com a boca cheia de alfinetes.
- Está numa sala do templo - explicou Deborah.
- Silenciosa, furtasse aos olhares e só sorri quando um ser precisa dela.
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A costureira, que estava a provar-lhe o vestido, mudou de conversa.
- É preciso subir o corpo pelo menos dois centímetros - disse.
- Pois suba-o - mandou a senhora Sheldon. Esta repetia, comovida, as palavras de Deborah.
Parecia-lhe que a descrevera fielmente comparando-a com a deusa da piedade. Há tanto tempo que ninguém lhe dizia qualquer amabilidade! Não ligava importância
aos cumprimentos prodigalizados em tom agudo por mulheres invejosas: "Minha amiga, o seu chapéu é lindo, favorece-a muito". Sentiu-se ao mesmo tempo confortada pelas palavras da rapariga, e surpreendida por precisar de conforto.
Pelo seu lado, o velho Broome descobria a alegria de inspirar respeito. Desconfiado, a princípio, com a atitude deferente das duas curiosas raparigas, acabara por aceitar. Passara poucos anos na escola e nunca nenhuma mulher o quisera para marido. Abandonavam-no umas atrás das outras, embora nunca lhes batesse e se mostrasse bom para com elas. Nem, sequer, tinha um filho.
As duas irmãs começaram por perguntar-lhe o nome das flores que não conheciam.
- Na Coreia não temos destas flores, mas temos outras -dizia Mary.
O jardineiro conhecia bem o seu ofício, e as duas irmãs ouviam-no interessadas.
Chamavam-lhe apenas "Senhor Broome", e chegaram, até, a fazer-lhe crer que, sob certos aspectos,
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a velhice é invejável. Segundo ela, os anciãos tinham a sabedoria. Quando perdeu a desconfiança, começou a conversar com elas. Recomendou-lhes que não andassem com os pés descalços sobre o orvalho, porque o orvalho de Abril está envenenado; que não passassem por debaixo do escadote quando estivesse a lavar os vidros, e outros conselhos desta natureza que lhes dava para seu bem. Gostava tanto de ver que o escutavam que acabou por lhes contar que, quando era pequeno, um rapazito branco maior do que ele o agarrara e lhe metera a cara na lama, para depois lhe dizer que não precisava lavar-se, pois a cara era já da cor da lama. Contou-lhes, também, que tinha um pedaço de terreno e uma casa, perto de Gressmere, mas que o seu vizinho, um branco, lhe negava o direito de passagem, porque comprara o terreno contíguo. Tentara metê-lo num pleito, mas perdera, porque os documentos que lhe tinham passado, quando comprara a casa, haviam desaparecido. Tendo os juizes declarado que ele não possuía nenhuma prova concludente, via-se obrigado a entrar na sua própria casa às furtadelas, como um ladrão. Por último falara-lhes do tumor que tinha nas costas, uma bola dura que cada vez lhe doía mais. Acrescentou que nunca se deixaria operar por um branco.
Quando lhe falaram no baile, cuidou com mais ardor -dos lírios, para que estivessem em flor no momento oportuno. Gostava de lírios, não só dos de grande corola majestosa, mas, também, das pequenas açucenas de perfume delicado e cor de marfim. Imaginava
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antecipadamente enfeites de açucenas, de lírios e de heliotrópio, não dos grandes heliotrópios rijos, mas dos pequeninos, graciosos, tirados da estufa. A
senhora Sheldon aprovou os seus planos.
Nancy já não se atormentava com o amor sem esperança que dedicava a Donald. Consciente da sua indiferença, a jovem irlandesa, a princípio apaixonada, chorara muito. Admirava-se de as duas pequenas terem adivinhado o seu segredo. Tinham-na, a bem dizer, confessado, com muita amabilidade, num dia em que estava a limpar a sala-de-música, onde só elas entravam. Em vez de a censurarem ou de se rirem, haviam-lhe revelado a doçura de amar sem ser amada. Nancy não se sentira ridícula, mas, sim, ditosa, compreendendo tudo; desde então, deixara-se invadir pela febre geral, e preparava gostosamente a casa para o baile. A donzela conservava bem no fundo do coração o maravilhoso segredo do seu amor. "É muito corajosa", dissera Deborah, e Nancy gostava de pensar na sua coragem.
As duas irmãs haviam prometido nunca falar no caso a Donald, e Nancy confiava absolutamente nelas.
O mordomo Harry e a cozinheira Luísa, perguntavam a si próprios por que motivo desejavam trabalhar para as duas raparigas e, na sua presença, se sentiam melhores. Elas nunca pediam um favor, mas, pelo contrário, procuravam fazê-los aos outros. Por
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exemplo, naquela noite em que lhe doíam os pés contava Luísa - queixara-se todo o dia, principalmente à noite, ao lavar a loiça. Não podia dormir de tantas dores que tinha. De repente, abriu-se a porta do quarto, e uma das pequenas entrou, ridícula na sua camisa de dormir, e começou a dar-lhe maçagens duma maneira extraordinária. Tivera vergonha dos seus velhos pés deformados pelos calos e pelos joanetes, devido a estar de pé há tantos anos, e, ainda por cima, inchados por causa do escaldão que lhes dera ao deitar-se. Quisera esquivar-se, mas a pequena continuara, suavemente, a maçagem.
- Eu fazia sempre isto a minha mãe - dissera.
- Depois de ela acabar, dormi como uma justa afirmava Luísa. Contudo, continuava com medo dos ralhos da senhora, se ela chegasse a saber.
- vou pôr todos os cinco sentidos nos merengues
- disse a Harry. - Vão ficar como nunca.
Harry não disse nada. Nem, sequer, lhe contou que as duas irmãs se tinham dado ao trabalho de escrever para a Coreia, a fim de melhorarem a sorte de seu filho. O pobre rapaz fora bater-se obedecendo a umas ordens que não compreendia.
- Os coreanos não querem bater-se - dissera Mary. - O senhor não calcula como detestam a guerra e, até, as brigas.
- Se era assim, por que fora o seu único filho bater-se?
As cartas das duas irmãs seriam muito úteis; o rapaz encontraria amigos, amigos coreanos que lhe
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ensinariam a distinguir os aliados dos inimigos. Graças a isso, talvez conseguisse sair de lá com vida. Enquanto reflectia, Harry resolvia-se a vigiar os rapazes convidados: caso algum se adiantasse, pô-lo-ia de pernas ao ar.
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vIII
Sara empenhava-se em conseguir que o baile se realizasse no clube, e a mãe apoiava-a um pouco; porém Donald e o pai negavam-se obstinadamente. Havia muito tempo que os membros da família Sheldon não estavam tão divididos.
- No clube uma pessoa aborrece-se - resmungava Donald. - Não se sabem portar como deve ser, parecem porcos. Não quero que Deborah e Mary contemplem tal espectáculo.
- Oh, pobres anjinhos! - sibilou Sara. - Espera que se habituem e verás que são piores do que as outras.
- Não comeces, Sara! - exclamou, intervindo, a senhora Sheldon.
- Que cretino! - volveu a rapariga. - Pasma diante das meninas...
- Sara! - gritou a mãe.
Mas esta não queria ouvir nada.
- Ainda não percebeste o que se passa diante do teu nariz, mamã? Está apaixonado pela Deborah.
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O senhor Sheldon e a mulher tomaram um ar estupefacto. Donald abandonou o aposento.
- Podia ter escolhido pior - disse, por fim, o senhor Sheldon.
- Era mais fácil dar o baile no clube - voltou a insistir a senhora Sheldon.
- O baile realizar-se-á na minha casa e não lá fora - afirmou, categoricamente, o marido.
Sara tinha vontade de chorar.
- Detesto essas raparigas! - exclamou, enraivecida. - Tentam dar-me a impressão de que sou uma mulher perdida.
- Por Deus, Sara... - começou a mãe, num tom suplicante.
O senhor Sheldon levantou a cabeça com ar interessado, e perguntou:
- Que fazem para isso ?
- Não sei - respondeu Sara, esforçando-se por não chorar. - É... a sua atitude.
- Que estupidez! Tens inveja, é o que é.
A rapariga mordeu os lábios e saiu. Aplicou a ira alguns dias depois, comprando um vestido sumptuoso para apagar a delicadeza dos vestidos escolhidos por sua mãe
para Mary e Deborah. Uma semana antes do baile, vestiu-o para a ceia, disposta a causar-lhes inveja; ficou, porém, desconcertada com a sua admiração espontânea. As raparigas prodigalizaram-lhe elogios, e distinguiram-na como um ser à parte, superior na sua beleza. Sara compreendeu que nenhuma sombra de hipocrisia ou censura lhes empanava a
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genuína adoração. Aceitavam-na tal como a descreviam por palavras: a rapariga mais formosa que seus olhos jamais haviam visto. Ninguém poderia resistir à sua beleza, acrescentavam com estranha piedade no olhar, como se receassem que lhe adviesse alguma desgraça. Sara subiu ao seu quarto, despiu o vestido, foi buscar uma antiga fotografia de Lars Bjornsen que há meses não via, e chorou um pouco. Conhecera Lars no ano anterior, na Noruega, quando fora aos desportos de Inverno, e amava-o desde então.
Preocupado, também, com a ideia do baile, Donald esperava-o cheio de receios: não iria Deborah modificar-se? Descobriria outro homem o seu profundo encanto e tentaria conquistá-la antes de lhe poder falar no seu amor? Quem teria a coragem de dominar-se como ele, porque a conhecia e não queria deitar a perder o futuro ?
De toda a família, era o senhor Sheldon quem mais se regozijava com a ideia do baile. Havia muitos anos que não tinha ocasião de divertir-se deveras, mas desta vez aproveitaria. Não olharia a despesas para que tudo corresse bem.
A lista dos convidados era muito extensa, mas, no entanto, estudara-a cuidadosamente, acrescentando alguns nomes e retirando outros. Não queria uma multidão de personagens insignificantes. Queria convidados que se orgulhasse de apresentar às suas duas protegidas, e que soubessem apreciar a sua delicada frescura, sem lhe tirar o brilho.
Não queria que elas se convertessem em meninas
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bonitas da sociedade. As pessoas encantam-se sempre com o que é novo. Deborah e Mary valiam mais do que quaisquer raparigas amáveis; traziam em si uma espécie de virtude milagrosa, cuja origem estava, talvez, na sua integridade. Era-se obrigado a acreditar nelas, até mesmo quando a razão tentava impedi-lo. Evidentemente, não se podia governar a vida apenas por meio do amor - como ambas chamavam à sua indefinível virtude - mas era-se obrigado a crer nele, porque elas o incarnavam. Combatiam o egoísmo, não em palavras, mas com actos. Seguiam o caminho da fé.
Como gostava de boa música, seleccionou ele próprio o que se havia de tocar durante a festa, e escolheu uma orquestra de categoria. Queria música e não ruído: a orquestra tocaria na sala-de-música, onde a acústica era boa. Quando tudo estava pronto, verificou que se esquecera dum pormenor importante: as duas irmãs não sabiam dançar; era preciso ensinar-lhes.
As pequenas começaram por negar-se a aprender. Fitaram-se, trocaram, como de costume, os seus pensamentos num olhar, e Mary disse, por fim:
- Temos de deixar-nos estreitar por braços de estranhos ?
Sheldon achava-as ao mesmo tempo pudicas e desempoeiradas. Fugiam de todo o contacto, por amistoso ou carinhoso que fosse, e ele habituara-se já a nunca lhes tocar. Apesar disso, vi-as correr descalças e, até, deslizar em camisa de dormir pelo corredor.
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Alegres quando sabiam que qualquer vizinha esperava um filho, falavam do amor e da maternidade com tal segurança, que o deixavam a ele, velho pai de família, boquiaberto.
- Não - continuou Mary - não é necessário.
Decidiu-se, por isso, que só se tocariam valsas, polcas e outras danças antigas, proibindo o jazz. Nada de danças lânguidas ou endiabradas.
Daria à festa carácter reservado, uma delicadeza um pouco solene, para que fosse digna das duas irmãs. Todos aqueles preparativos o distraíam das espantosas preocupações actuais, das terríveis incógnitas que o futuro reservava, aquele futuro que lhe podia destruir a casa e toda a família. Parecia-lhe, portanto, uma grande alegria poder dizer depois: "Pelo menos tenho isto".
Este contraste dava-lhe um prazer desconhecido, um pouco triste. Fosse qual fosse o futuro, não consentiria que lhe fizesse perder as horas breves daquele baile. A sua juventude passara; porém, queria que as suas protegidas aproveitassem a delas e sentissem, nem que fosse uma única vez, a alegria da sua feminilidade e a plenitude da sua doce beleza. Sheldon não compreendia por que experimentava tal ternura por elas. Queria aos filhos, porém estes não despertavam nele qualquer sentimento romântico; tinham sido amassados na mesma argila que ele. Esse sentimento romântico nada tinha de comum com o puro enternecimento dum velho diante de duas jovens. Era uma ressurreição do espírito, um regresso do que sentira
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no tempo longínquo da sua juventude, no tempo em que ainda acreditava na vida.
Quando deixara de crer, e porquê? Ignorava-o. Pouco a pouco, de modo imperceptível, a fé abandonara-o, a fé na bondade, na humanidade, em si próprio, em Lillian, sua mulher, e até nos filhos e no valor da vida. A ideia da morte, o conhecimento da brevidade da sua existência haviam feito nele a sua obra de destruição, e nada poderia já apaziguar o mal de que sofria a sua esperança. Administrara à esperança moribunda o estimulante da competência, da derrota dos seus rivais nos negócios, nos desportos, em todas as ocupações da vida; porém, depois de cada vitória, voltava a saborear o gosto da morte. Era rico e estimado, obtivera grandes êxitos, só não ganhara nunca a batalha da fé. A morte continuava inevitável. Se conseguisse descobrir o sentido da vida
- fosse qual fosse - talvez compreendesse que a sua existência não fora vã.
Aquelas duas criaturinhas, que não tinham nada de notável nem de genial, que não possuíam o brilho admirado pelos homens, nem a categoria das fotografias dos jornais ilustrados, dos concursos de beleza ou dos cartazes cinematográficos; aquelas duas criaturinhas despertavam nele a nostalgia duma nova fé na vida. Por que milagre? As raparigas possuíam a fé, incarnavam-na, eram a manifestação viva da esperança, criam na bondade da vida e encontravam-lhe sentido.
Sheldon perguntava a si próprio se não viriam a
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perder a fé, e tentou recordar-se do que era na sua idade. Não o conseguiu. Parecia-lhe ter sido sempre tal como se via na velhice. Donald e Sara apenas se distinguiam dele pela idade, pois, como ele, estavam amassados na mesma inquietude, nas mesmas aventuras superficiais. Durante toda a vida não fizera mais do que roçar a superfície das coisas. Fugira da dor. Quando os pais lhe morreram, fizera-lhes funerais sumptuosos e refugiara-se no trabalho, para esquecer. Lillian e ele há muito tempo tinham afastado da memória a recordação do seu primeiro filho, que lhes morrera, idiota, antes de completar um ano. Não concediam significado a nenhum acontecimento da vida e apenas procuravam esquecer. Desta maneira tinham escapado às tragédias da guerra. Haviam comprado bónus de Defesa, feito donativos à Cruz Vermelha e, felicitando-se pelo facto de Donald ser ainda demasiado novo para se bater, tinham esquecido a guerra. Não liam as listas dos mortos; não viam as fotografias dolorosas de crianças esfomeadas. Para quê, diziam, para que haviam de sofrer? Lillian ainda ia mais longe: não lia livros que "acabassem mal".
Neste ponto dos seus pensamentos se encontrava Sheldon quando, na véspera do baile, Miss Gray lhe pôs um telegrama sobre a secretária. Abrira-o, anotara-o como "particular", e pusera-o diante dele sem dizer palavra.
Sheldon levantou os olhos do expediente que examinava e pegou no papelito amarelo.
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Remetente: as autoridades militares; procedência: Coreia. O nome da cidade estava ilegível, o que não importava, pois não conhecia.
As poucas palavras da mensagem eram claras e compreendeu-as num relance. Numa pequena cidade da Coreia, seus primos por afinidade, os pais de Mary e Deborah, tinham morrido juntos durante uma epidemia de cólera. Lembrou-se de ter lido no jornal umas palavras soltas acerca da cólera na Coreia. Procedente da Coreia do Norte, propagava-se até ao Sul, por intermédio das tropas. O Exército tomava providências para conter a epidemia. Lera depois as informações financeiras e esquecera-se do resto. E agora, aquelas poucas palavras convertiam as duas raparigas em órfãs e deixavam-nas a seu cargo, pois não deviam ter mais ninguém.
Estendeu a mão para o telefone, mas logo se arrependeu. Não, não diria nada a Lillian; seria incapaz de guardar segredo. Ia transtornar-se e preocupar-se muito por aquela carga suplementar. Teria de ocupar-se das duas órfãs, velar pela sua educação. Não teria de sacrificar a sua próxima viagem à Europa e a temporada de Inverno na Florida? Lillian denunciaria, pela expressão e pelas atitudes, o seu aborrecimento. E ele não queria dizíer nada às pobres pequenas antes de terminado o baile. Tinham tempo de saber a notícia. Que faria se, na sua dor, as pequenas perdessem a confiança na vida? Não seria isto o fim de toda a fé? Não saberia consolá-las.
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Abriu uma gaveta e escondeu o telegrama. Mais tarde receberia pormenores. Certamente devia existir uma Comissão das Missões e escrever-lhe-iam... ainda que, bem vistas as coisas, por que teria de esperar que lhe escrevessem? Carregou num botão e Miss Gray apareceu à porta.
- Telefone à Comissão das Missões, ou não sei lá que organização a que meus primos pertenciam, e tente saber pormenores.
- Imediatamente.
Sheldon voltou a ocupar-se do expediente, esforçando-se por concentrar nele toda a atenção. Não se pode lutar contra a morte, e ele precisava de prosseguir no seu trabalho.
Miss Gray voltou ao cabo de meia hora.
- Ouça o que consegui averiguar: esses senhores tinham-se negado a obedecer à ordem de retirada dos americanos e ficaram no interior da cidade. Segundo se conseguiu saber, cuidavam dos doentes num campo onde reinava a cólera.
- Uma enorme imprudência, se pensarmos que tinham filhos - resmungou Sheldon.
Miss Gray não respondeu. Impassível, esperava.
- Quero que ninguém saiba - resolveu ele, por fim. - Direi eu mesmo às pequenas, depois do baile.
- Perfeitamente - declarou a secretária, saindo.
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IX
Ao anoitecer o restaurante enchia-se e, pela meia-noite, o ambiente era, verdadeiramente, alegre; porém, à uma hora da tarde, a vasta sala meio vazia proporcionava um retiro tranquilo, propício às conversas sérias. Na véspera do baile, Ford Hammerwood convidou Sara para almoçar ali.
Decidido já a casar-se, insistira com ela para aquele encontro, pois queria metê-la entre a espada e a parede, e, para o conseguir, só via um caminho: anunciar o
noivado. A despeito da inconstância de ideias de Sara, decidiu que estavam prometidos e
manteve-se nisso. Todas as mulheres eram caprichosas e volúveis; talvez fosse
devido à sua constituição, dizia para consigo, sem tentar aprofundar o assunto. Nada lhe metia mais medo do que entabular uma discussão. Julgava exigir pouco da vida, e parecia-lhe estranho não poder obter o que desejava quando estava disposto a pagar esplendidamente. Ansiava por encontrar uma mulher a quem pudesse amar muito e que fosse capaz de lhe retribuir ao menos um
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pouco do seu amor; uma mulher nova e bonita, da qual se sentisse orgulhoso em público; uma mulher que ele tornaria feliz, cobrindo-a de presentes, de viagens e de diversões. Isto era tudo quanto desejava. Três vezes julgara ter alcançado o seu objectivo e três vezes as lindas raparigas se haviam convertido em mulheres caprichosas e descontentes.
Ford não tinha ilusões sobre si próprio; reconhecia a sua falta de inteligência. Contudo, reunira uma grande riqueza e isto tinha alguma importância, com os diabos! Para algumas mulheres, mesmo, nada teria tanta importância como esse facto; porém, essas não lhe interessavam. Queria uma linda rapariga, a quem pudesse abraçar.
Instalado a uma mesita, num canto, esperava. Colocara uma magnífica orquídea no lugar de Sara. Experimentava por ela um sentimento completamente novo. As outras tinham sido raparigas novas, mas desconhecidas; enquanto que Sara a conhecia desde sempre. De rapariguinha impertinente, a vira transformar-se em formosa jovem. Continuava, no entanto, a ver nela a rapariguinha e era isso que lhe agradava.
A filha dos Sheldons entrou naquele momento, mais juvenil do que nunca, com um vestido verde e um chapelito também verde sobre os caracóis. Ford pôs-se em pé, dum salto, para a receber e lhe afastar a cadeira, e depois pousou-lhe a mão sobre a pele lisa do pescoço, sob os caracóis.
- Minha flor, parece uma menina de doze anos -
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disse com ternura, voltando a sentar-se e inclinando-se sobre a mesa, para melhor lhe contemplar o semblante fresco e encantador.
- Nesse caso, sou demasiado nova para usar orquídeas - respondeu ela, pagando-lhe na mesma moeda, enquanto prendia a flor na blusa, com um alfinete. As pétalas palpitantes roçavam-lhe no queixo a cada movimento.
- Fica muito bem sobre esse verde - disse ele. Escolhemos as cores por transmissão de pensamento, minha querida.
A rapariga afastou os olhos do rosto ávido, do olhar húmido; uma compaixão repentina - rara nela
- crispou-lhe o coração. Pobre velhote! Que deslealdade casar com um homem stem o amar! Queria desesperadamente amar alguém com toda a sua alma, mas não o conseguia. Nem sequer era capaz de amar Lars o suficiente para casar com ele e compartilhar da sua vida aventurosa. No entanto, se ele tivesse acedido a viver como ela desejava,
talvez...
- Que toma, minha filha ? - perguntou Ford. Sara contemplou a ementa.
- Ainda estou em jejum - disse.
- Dormiu até agora, queridinha?
- Sim - respondeu Sara, em tom breve, com os olhos postos na ementa.
Porque seria que todas as ementas eram sempre iguais? Fosse qual fosse o restaurante, os pratos eram sempre os mesmos. Se se casasse com Ford havia de pedir-lhe que lhe prometesse não voltar a
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chamar-lhe "queridinha" ou qualquer coisa no mesmo estilo. Deixou cair a lista.
- Sumo de laranja, café, pão torrado, ovos mexidos; não há mais nada que valha a pena.
- Vamos, vamos - protestou o galã, num tom de ralho carinhoso. - Há pastéis de carne, rissóis, pãezinhos, uma infinidade de coisas boas para as rapariguinhas.
- Ford, já basta!
Não podia dominar-se mais.
O rosto gordo do homem tornou-se escarlate.
- O que é que basta, queridinha ?
- Deixe-se de chamar-me queridinha e de falar-me como a um recém-nascido!
O mordomo precipitou-se para ele, com um olhar pesaroso.
- Que deseja que sirva, senhor? Ford respondeu tartamudeando.
- E para beber, senhor ? - perguntou o homem, sem desfitar Sara. Essas loiras...
- Whisky e soda para mim; quanto à minha... à senhora, tomará o pequeno almoço. Desejo o bife pouco passado.
- Está bem, senhor.
Sara estava grata ao criado pela sua oportuna intervenção.
Ford olhou-a, e falou-lhe com voz humilde, suplicante :
- Não se sente bem, minha filha?
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- Estou muito bem! - volveu ela, jovialmente.
- Mas nós, os desta geração, não somos sentimentais.
A alusão era demasiado clara. Ford mostrou-se viril e retorquiu, colérico:
- Na minha opinião, a sua geração precisava dum par de açoites. Se fosse seu pai, e podia muito bem sê-lo, sua pequena descarada, há muito tempo que lhos teria dado. No entanto, pode muito bem ser que ainda os leve.
Verificou, satisfeito, que adoptara o tom conveniente.
Sara desatou a rir.
- O papá tentou fazê-lo uma vez e eu mordi-lhe!
- Onde?
- Numa perna, através do pijama. Deitou-me nos joelhos e pegou num sapato...
Agora riam os dois.
- Que tinha você feito ? - perguntou Ford.
- Tinha-lhe pegado na navalha, na sua velha navalha, que não trocaria por um milhão de máquinas de barbear, para fazer um barco de madeira.
- Tinha muitíssima razão - aprovou Ford. Não há nada como uma boa navalha, por velha que seja. Eu também tenho uma.
Acariciou o queixo.
- Toque aqui - disse.
Sara inclinou-se e, com a palma da mão, tocou-lhe no queixo; ele, porém, pegou-lhe na mão e beijou-lha.
- Está presa, meu amor.
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A rapariga tentou libertar-se, sem, no entanto, mostrar aborrecimento.
- Oh, Ford! Que criancice!
- Pois para que quereria casar consigo se a não amasse tanto? - murmurou o velho sem lhe largar a mão.
Magoava -a; viu como o rosto de Sara se crispava, e largou-a logo.
- Falemos a sério, Ford. Francamente, não sei se quero ou não casar-me. Não posso impor-lhe esta incerteza.
- Aceito o risco - declarou ele. Sentia-se apavorado quando a rapariga falava seriamente.
Sara fitou-o com os seus formosos olhos, e retorquiu, gravemente.
- É um grande risco, Ford, deve saber.
O criado Serviu o sumo de laranja, o café e o whisky e desapareceu.
A conversa tornava-se pesada para Ford.
- Se você ama outro, Sara, devia dizer-me. Creio que a amo o suficiente para me sacrificar e renunciar a si, se é isto que quer.
A rapariga esvaziou o copo antes de responder.
- Não amo ninguém; mas acontece que tenho desejos de liberdade.
- Mas será livre, filha! - exclamou, inclinando-se para ela, por cima da mesa. - Sou um homem muito atarefado. Não estou em casa todo o dia. com esta ameaça de guerra, pode ser que recorram a
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mim em Washington... Enfim, tudo pode acontecer.
- Que iria fazer a Washington?
- Não posso dizer.
Tomou aspecto oficial: rosto duro, enrugado e frio. Era um homem muito importante, o mais importante de todos os que se davam com a família Sheldon. Cuidaria dela em tudo e por tudo; morreria antes dela, como, naturalmente, era de prever; deixar-lhe-ia todo o seu dinheiro... Ainda teria tempo para...
O criado trouxe o pão torrado, os ovos e um grande bife quase cru, que provocou uma careta em Sara.
- Oh, Ford! Um bife cru tão cedo!
- Não é cedo - replicou ele, deitando sal e pimenta na carne. - Estou no escritório desde as nove horas. Não faço cura de sono para conservar a beleza. Não serviria de nada, não é verdade?
Ford sorriu. "É encantador - pensou ela quando não está sentimental". Detestava os excessos de ternura. Recebera demasiado mimo em toda a vida. O pai e a mãe adoravam-na, e até Donald lhe queria mais do que ela podia querer-lhe. Se fosse consultar um psiquiatra, não lhe diria que, por ter recebido demasiada ternura na infância, agora não queria mais?
A ternura era absolutamente diferente do amor. O amor físico não lhe inspirava a mesma repulsa. Sabia perfeitamente que Ford... Não tinha importância ; talvez gostasse disso também. Os homens maduros
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eram mais hábeis. Os jovens só faziam disparates.
- Serei obrigada a tomar o pequeno almoço consigo, todos os dias? - perguntou.
- Não será obrigada a nada. - Largou o garfo e a faca. - Olhe, Sara, vou fazer-lhe uma promessa: se casar comigo fará sempre o que quiser.
Na semiobscuridade, pareceu-lhe bom e quase heróico. Era alto, e a sua grande cabeça de traços vincados, mas regulares, agradava-lhe. Para ter tão bom aspecto naquela
idade, devia ter sido muito bem parecido na juventude. Sem motivo algum, os olhos de Sara marejaram-se de lágrimas. Estendeu a mão por debaixo da mesa e ele apertou-a na sua.
- Oh, Ford! Gostaria tanto de me decidir... e... pode chamar-me queridinha, quando quiser.
- Obrigado, jóia; tentarei evitar, só se me escapar..
Olhou-a atentamente, e viu correr-lhe as lágrimas pelo lindo rosto.
- Querida, querida! - murmurou em tom suplicante.- Não pode decidir-se... é muito nova... Não lhe desejo mal por isso. Não tem culpa de eu lhe querer tanto.
Estreitou a mão com que Sara afagava o ramo de cravos vermelhos que enfeitavam o centro da mesa.
- Escute-me, querida: talvez fosse melhor tomar só uma decisão de cada vez. Anunciemos primeiro o nosso noivado, e teremos dado o primeiro passo.
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Sara reflectia, com as pestanas ainda húmidas de lágrimas. Ford era bom e persuasivo.
- Podíamos anunciá-lo nesse baile - disse ela, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Precisava de bondade e Dars não lha daria; era rude e exigente. Insistira para que estivesse à altura das circunstâncias, e ela detestava isso. Um dia, na escola, a professora censurara-a por não se mostrar digna da brilhante inteligência dos seus antepassados; erguera a cabeça e gritara: "Não posso mostrar-me digna dos meus antepassados!"
- Então seja digna de si mesma.
- Não, isso não quero - replicara obstinadamente.
- Pois bem, por que não anunciá-lo no baile? prosseguiu Ford, razoavelmente. - Quanto mais depressa melhor.
- Seria horrível se mais tarde... me voltasse contra si... como as outras!
Nunca tinham falado dos casamentos anteriores de Ford. Sara viu como ele estremecia.
- Aceito também esse risco - declarou calmamente.
Estreitou-lhe suavemente a mão, e retirou-a em seguida, voltando a pegar na faca e no garfo. Ficaram um momento calados, até que Ford disse, com voz dura, estranha:
- Não deve pensar nessas mulheres, Sara. Nenhuma era como você. A si conheço-a desde tenra idade. As outras eram estranhas para mim e conti-
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nuaram a sê-lo. Pense apenas em si e confie em mim ; quanto ao resto...
Tinha um aspecto vigoroso, sentado ali à sua frente, a comer o bife; tinha, também, expressão bondosa, embora ela soubesse que não era um santo. Além disso, se fosse um santo, também não o quereria. Queria um homem, um homem que cuidasse de si e lhe perdoasse os seus pecados passados e futuros, pois não sabia o que viria a ser. Queria um homem que a fizesse sentir-se segura, e Ford podia fazê-lo. Era rico e bom; perdoar-lhe-ia sempre e deixá-la-ia chorar quando lhe apetecesse. Pelo seu lado, tentaria não o irritar, e, se se aborrecesse dele, seria perdoada. Perdoar sempre... Não era uma prova de amor? Se não podia retribuir esse amor, podia recebê-lo
e mostrar-se agradecida.
Ford esperava.
- Que é, Sara?
- Sou muito egoísta; julgo que notei isso pela primeira vez na vida. Você dá-me muitíssimo mais do que eu lhe concedo. Sou uma tonta.
- Conheço-a - replicou ele ternamente - conhecia-a antes mesmo de você se conhecer... desde o seu nascimento, na realidade.
É quase como se me pertencesse, não é?
Incapaz de falar, Sara concordou com um aceno de cabeça, e Ford correu em seu auxílio com palavras cordiais e sensatas:
- Vamos, tudo corre bem. Não se preocupe mais. Empregarei o tempo que me resta de vida a tratar
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de si. Coma os ovos, como uma menina obediente... Depois ficará melhor. Tem apetite sem dar por isso. O coração perturbado de Sara adivinhava por detrás destas palavras
um sentido secreto que lhe fazia medo; recusou-se, porém, a pensar nele e começou a comer.
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x
Na véspera do baile um barco sueco ancorou no porto de Nova Iorque. Lars Bjornsen, com as malas no chão, contemplava o horizonte com aspecto sombrio. Na nossa época, pensava ele, as cidades deviam esconder-se debaixo da terra. Felizmente, no seu país nada se temia. A Suécia, o terror da Europa alguns anos atrás, aproveitara, finalmente, a lição dos acontecimentos. Depois das guerras a terem deixado quase exangue, tivera que escolher entre a paz e a guerra, isto é, entre a vida e a morte. Há muitíssimo tempo que o povo sofria; faltava dinheiro e quase não havia homens; tudo quanto restava eram mulheres esfomeadas e desesperadas. Fora por isso que a Suécia escolhera a paz e, de há cem anos para cá, voltava lentamente à vida.
Ele, no entanto, um jovem, sabia que não podia fugir ao seu destino e não queria ficar na sua terra, ainda que ela fosse um paraíso. Do outro lado das fronteiras ficava o mundo e queria viver com ele.
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Por isso se fizera epidemiologista. Não faltariam epidemias durante alguns anos. As armas da guerra moderna deixariam a humanidade desamparada ante as matanças em massa e as doenças dizimantes. Na Coreia reinava já o caos, e ele era lá preciso.
Teria seguido para lá directamente, de avião, se não fora ter recebido uma carta de Sara, precisamente quando se preparava para partir. Reconhecera imediatamente
a grande caligrafia tão pouco dinâmica, e, no entanto, tão juvenil, uma caligrafia de menina saída da escola. Mostrava-se cínico com respeito a Sara, sem, contudo,
deixar de a amar. Quando recebeu a carta estava a passar as últimas noites em Estocolmo, com os pais e o irmãozito, na casa em que, desde há muito, habitavam. Queria jogar ao ténis com Sven, remar no canal; aproveitar-se de todos os pequenos prazeres pela última vez antes de partir... quem sabe Se para não voltar mais.
Por mais que lesse e relesse a carta, não chegou a compreender o motivo por que Sara lhe escrevia. Apesar disso, decidiu
deter-se no caminho e ir vê-la. Que se passaria?
Era difícil imaginar Sara preocupada. Desiludida, inconsolável, talvez um pouco comovida, sempre muito bela e nunca desamparada. No fim de contas, há dois anos que não se viam; e em dois anos envelhece-se. Ele, Lars, amadurecera muito. O seu coração saíra vitorioso da batalha que travara contra o amor. O melhor que tinha a fazer era renunciar ao casamento. No seu género de vida não ficava bem uma mulher. Na nossa época um homem deve
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permanecer livre. Para quê dar a vida a uns filhos? Olhou o relógio. Ainda era muito cedo. Podia instalar-se num hotel, telegrafar-lhe e esperar resposta.
Havia muito que se impusera o hábito de ser metódico; por isso, quase não se comoveu quando, algumas horas mais tarde, já banhado, barbeado e reconfortado com um sólido pequeno almoço, recebeu resposta de Sara: um telegrama redigido com extravagância, como uma carta:
"Querido Lars: Acabo apenas de acordar, mas venha. Esta noite há um grande baile em casa, por isso, melhor. Será estupendo voltar a vê-lo, Lars. Conservarei a tarde livre para si. Sara".
Lars não se apressou. Um baile? Pouca sorte; partiria antes. Uma tarde bastaria para descobrir se Sara...
Tomou bastante tarde um almoço leve, na companhia dum sábio a quem desejava falar. As duas e meia alugou um grande automóvel descapotável porque Sara gostava - e dirigiu-se a Cressmore. Já estivera em casa de Sara, numa visita que, anteriormente, fizera à América. Lembrava-se da imponente vivenda, tão feia apesar do seu aspecto rico. Gostava das casas claras como laboratórios, muito modernas e sem cozinha, residências onde todos os aposentos são acolhedores.
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Não telefonou a avisar da sua chegada. Ela esperá-lo-ia, sem dúvida, e era inútil enervar-se. Chegou, finalmente, a Cressmore, uma aglomeração de luxuosas vivendas, escondidas em jardins simétricos. Viver ali seria morrer de aborrecimento - pensava. Graças a Deus, a sua Sorte estava noutro sítio. Deteve-se diante da casa maciça de que tão bem se lembrava. Apeou-se e subiu os degraus de granito. Nada de Sara. Molemente estendidas em cadeiras de viagem, com os olhos cerrados, os pés descalços e as mãos abertas, estavam duas raparigas. Admirou-se da frágil delicadeza das suas mãos.
- Fazem favor... - disse.
Abriram os olhos e uma delas levantou-se.
- Sou Lars Bjornsen e esperam-me - explicou o
recém-chegado.
- Quem o espera, por favor? - perguntou a que se levantara, com uma voz que o encantou pela sua cristalina doçura.
- Miss Sara Sheldon - respondeu.
As duas extraordinárias criaturas fitaram-no com um arroubamento inexplicável.
- Oh! exclamou a que ainda não falara.
- Nunca ouvimos Sara falar de si - disse a primeira.
A outra ergueu-se, e, com o rosto e os olhos transbordantes de súplica, perguntou:
- É amigo de Sara ? Lars hesitou.
-Oh, diga que sim, peço-lhe! vou já busca-la.
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Sem esperar resposta, deitou a correr como uma flecha, deixando-o só com a outra. Pareciam-se duma maneira extraordinária e, contudo... não, não se pareciam muito, disse Lars para consigo, ao ver uma sem a outra.
- Perguntávamos a nós mesmas como poderíamos tornar Sara feliz - disse a rapariga.
Uma rapariga? Uma mulher? Talvez as duas coisas. Na sua expressão liam-se ao mesmo tempo a inocência e a experiência. Falava-lhe sem rodeios, como se fossem velhos conhecidos, e Lars sentia-se aliviado. A vida passava, para ele as horas eram curtas, mas sentiu desejos, ele que reprimia sempre todos os seus impulsos, de lhe explicar francamente o motivo da sua visita.
- Recebi uma carta de Sara. Somos velhos amigos. Noutros tempos amei-a e sofri por ela. Nunca consegui que compartilhasse esse amor. Creio que isso agora já não
tem muita importância. vou em missão à Coreia. Só disponho de algumas horas, talvez roubadas ao meu dever. A carta de Sara fez-me pensar que podia precisar de auxílio
ou que mudara de ideias. Não compreendi muito bem e vim para ver o que se passa.
Ela escutou-o gravemente, com compreensão, e o visitante sentou-se numa cadeira desocupada.
- Quem é você ? - perguntou.
- Mary - respondeu a rapariga, sem dar mais explicações.
- Vive aqui?
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- Vivíamos na Coreia, mas nossos pais mandaram-nos para aqui.
Fitava-o na cara, com doçura e sem curiosidade.
- Vai gostar da Coreia - continuou, franzindo ligeiramente as finas sobrancelhas. - Aqui todos guardam os seus pensamentos secretos. Os americanos são muito amáveis. Estendem logo a mão e apertam-na; sorriem, dão-nos coisas, comodidades e dinheiro, mas não se interessam por nós nem pelos nossos sentimentos. Além disso, são terrivelmente solitários. Aqui toda a gente é solitária. Faz-me pena.
Os olhos humedeceram-se-lhe e, logo a seguir, desatou a chorar, sem a menor timidez, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
- Penso nos americanos que combatem na Coreia. Que sós se devem sentir! Confio em que o povo coreano compreenda a sua solidão e os auxilie. A solidão vem deles mesmos,
não dos outros.
O epidemiologista nunca tivera conversa semelhante... Gostava da franqueza e espontaneidade, porém encontrava mais do que isso: uma verdadeira compreensão mútua entre aquela rapariga e ele. Sentia estabelecer-se uma corrente entre ambos, embora ela lhe fosse totalmente desconhecida. Quanto havia lutado para estabelecer este contacto com Sara, sem nunca o conseguir! Lars tinha uma finura de discernimento muito pessoal.
Um grande sábio, o seu último professor, dizia: "Escute-me, Lars. Compreenda bem as minhas
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palavras. Se utilizar os seus conhecimentos só para si, está perdido. A ciência é o conhecimento do Universo; tem de servir a humanidade para que foi criada. O seu coração não deve pertencer-lhe só a si, nem a um ser amado, mas sim a toda a humanidade. De contrário, a ciência com que sonhamos causará a perdição de todos".
Este pequeno discurso significava para Lars que a ciência é um dom perigoso para todo o homem que não dedica ao mundo inteiro o amor pregado por todas as religiões. "Deus amou muito o mundo...", dizem os cristãos no Ocidente. "Todos somos irmãos...", dizem os discípulos de Confúcio no Oriente. Mas como sabia aquela rapariga tudo aquilo?
- Diga-me, onde descobriu tanta verdade ? - perguntou.
- Aprendi - respondeu, voltando a cabeça.- Ensinaram-me a colocar o coração à frente de tudo; aqui, o coração vem em último lugar.
Ficaram silenciosos até ao momento em que Deborah reapareceu, seguida de Sara.
Esta parecia mais bela do que nunca; o ouro pálido dos cabelos, o ouro escuro da pele queimada pelo sol, o azul resplandecente dos olhos... Trazia um vestido branco que lhe deixava os ombros nus, e a saia curta e larga permitia ver as pernas bronzeadas, também nuas.
- Lars, que extraordinário é isto! Pensava precisamente em si, e está aqui!
Estendeu-lhe as duas mãos.
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- Venha - acrescentou, sem prestar atenção às duas irmãs.
Levou-o para casa. Ele voltou a cabeça e olhou-as.
- Quem são aquelas pequenas, Sara ?
- Umas primas - respondeu ela, levando-o para uma varanda onde se instalaram. - Podia ter-me telefonado, Lars.
- Recebi a sua carta.
A rapariga afastou os olhos.
- Não devia ter-lhe escrito essa carta; não sei por que o fiz.
Escrevera-a sem pensar e deitara-a logo no marco; fizera o possível por esquecer, mas a recordação não a abandonava. E agora, ali estava, diante dela.
- Esperava... - começou Lars a dizer.
- O quê?
- Não sei... que poderíamos comer tranquilamente e dançar. Tenho de partir amanhã de manhã.
- Para onde vai ?
- vou à Coreia.
- Que vai lá fazer?
- Como, não sabe?! Grassa lá uma epidemia de cólera.
- Não costumo ler os jornais.
- Devia lê-los, Sara; estão lá americanos a morrer.
Ironia inútil, porque ela nem a notou. O seu rosto,
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subitamente iluminado, obscureceu-se logo a seguir. O rapaz conhecia bem aquele olhar longínquo.
- Julgava que tinha vindo à América... por mim
- disse ela.
- Estou aqui por si.
- Oh, por uma ou duas horas! - exclamou Sara, aborrecida.
- Uma hora da minha vida conta muito. Quantas me restam?
- E diz você que me ama ?
- Sim - reconheceu ele, tristemente.
Todo o seu ser a reclamava. Como alcançar o seu coração, através daquela couraça que o envolvia? Sob a couraça, o coração devia palpitar, vivo e quente, mas adormecido, paralisado pelo egoísmo, talvez porque ninguém tentara formar-lho para a vida.
- Sara...
- Que é, Lars?
- Como explicar-lhe em inglês? É uma língua tão fria... Queria dizer-lhe...
- O quê, Lars?
- Não tenha medo de amar-me, Sara! Se me quer bastante, sem segunda intenção, talvez o seu coração se abra e me queira cada vez mais. Então poderemos dedicar o nosso amor e nós próprios, também, a uma obra que nos engrandecerá e sublimará o nosso querer... Sara, expresso-me muito mal.
Tomou-a nos braços e apertou-a contra o peito, com o rosto escondido na loura cabeleira que cheirava a sol. A rapariga entregou-se-lhe nos braços, mas
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depressa se recompôs. Lars sentiu como, pouco a pouco, lhe ia fugindo. Que prazer experimentava retendo-a contra sua vontade? Já não ouvia bater o coração de Sara debaixo da couraça...
- Fique pelo menos esta noite, Lars - disse ela, compondo os caracóis louros. - Não posso sair, o baile realiza-se um pouco em minha honra.
Não podia dizer-lhe mais nada, tão indecisa estava. Comprometera-se com Ford, mas não estava ainda decidida. Um noivado pode sempre romper-se. Antes de anoitecer precisava de tomar uma decisão com respeito a Lars. No entanto, não seria uma evasão acompanhá-lo tão longe, a um país impossível onde nada encontraria que lhe agradasse ? Sentiu que enfraqueciam os tímidos esforços que fazia para amar Lars. O amor não lhe parecia recompensa suficiente para semelhante sacrifício. Lars não podia exigir tanto dela. com o coração apertado, Sara contemplou o seu corpo harmonioso, jovem, esbelto e viril; o seu rosto formoso, de olhar atrevido. A angústia e a ira sacudiram-na com violência inaudita. A cólera dava-lhe sempre vontade de chorar; mordeu os lábios e voltou a cara.
Lars viu, e exclamou:
- Sara, você ama-me!
- Não, não quero - gemeu ela, fugindo-lhe.
- Mas ama-me, Sara - insistiu ele.
Então sentiu-se tentada e, escutando uma secreta voz feminina, tomou uma decisão. Sem responder sim ou não deixou-se beijar por Lars. com os olhos
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húmidos, retribui-lhe os beijos, que se iam tornando ardentes e apaixonados.
- Sairei esta noite consigo, Lars. Não direi nada a ninguém. Comeremos juntos na cidade e passaremos juntos os últimos minutos que lhe restam.
- Obrigado, meu amor.
De momento, isto bastava-lhe.
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XI
Durante os últimos preparativos do baile, todos os conflitos da família se exacerbaram e foram postos a nu.
- Onde está Sara? - gemia a senhora Sheldon, desesperada.
Ford Hammerwood, de smoking branco, não se afastava dela. A senhora Sheldon tinha a impressão de que ele a espiava, e esta vigilância inquietava-a, tanto mais que nada sabia ainda das intenções da filha. O velho seguia-a como se fosse a sua própria sombra, e a sua presença aborrecida aumentava ainda mais o mal-estar latente na atmosfera familiar. A senhora Sheldon estava consciente desse mal-estar e tentava ocultá-lo exibindo um rosto sorridente, tal como se arruma uma casa sem a limpar.
- Não devemos querer mal a Sara por isto disse a Ford, em tom desprendido. - No fundo é boa e amável; o pior...
Interrompeu-se, sem saber como acabar a frase, e voltou-se para as duas irmãs, que ainda não estavam
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vestidas. As raparigas ajudavam Harry, o mordomo, e arrumavam pratos no aparador. Que ridículas estavam!
À senhora Sheldon a situação parecia insustentável diante
de Ford.
- Vão vestir-se - mandou.
As raparigas desapareceram imediatamente.
- São muito tontas essas pequenas - disse Ford. Interessava-se sempre pelas mulheres novas e
bonitas, e a senhora Sheldon notou-o perfeitamente, sem, no entanto, fazer qualquer comentário, pois, sob a sua aparente doçura, havia cinismo. "As mulheres aceitam os homens tal como são", dissera a Sara.
- Mas, afinal, onde se meteu a minha filha? voltou a perguntar.
Donald chegou, muito elegante, de smoking. O orgulho inspirado pelo filho fê-la esquecer a inquietação que lhe causava a ausência de Sara.
- A gravata....- disse ao mesmo tempo que lha endireitava, sem reparar na irritação de Donald; os filhos modernos irritam-se por tudo e por nada. Não vês Ford, Donald? - perguntou depois, para o aborrecer.
Donald fez um aceno de cabeça a Ford, que lhe disse:
- Olá, Don. Viste a Sara ?
- Não - respondeu o rapaz, afastando-se.
As grandes salas espaçosas eram acolhedoras. Chegavam os convidados; os grupos de raparigas bonitas alternavam com os de rapazes de branco e preto, e algumas pessoas de idade respeitável. Na
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sala-de-música, a orquestra experimentava os instrumentos. O senhor Sheldon estava perto da porta. No vestíbulo, Donald vagueava como uma alma penada, sem encontrar em parte alguma Deborah ou Mary.
- A menina Sara ainda não voltou, minha senhora- murmurou Nancy ao ouvido da dona da casa. - Preparei o vestido e tudo...
- Mas onde terá ido? - perguntou a senhora Sheldon, pela centésima vez.
- Sabe Deus...-respondeu a criada, olhando para Donald e admirando-lhe a elegância.
"É um cavalheiro; felizmente as pequenas abriram-me os olhos"-disse para consigo.-"Fui muito infeliz até ao dia em que me ensinaram a não pensar só em mim, mas nele também. Só teria arranjado dissabores se tentasse atraí-lo para mim, eu, que mal sei ler".
No seu quarto as duas irmãs olhavam-se, sentindo-se desamparadas.
- Vê-se a forma do teu peito e a mim deve suceder o mesmo - disse Mary.
- Oh, não gosto disto! - exclamou Deborah.
- E se puséssemos os nossos lindos vestidos coreanos ? - sugeriu a mais nova.
Tinham-nos muito bem dobrados e envoltos em papel de seda, sem nunca os terem usado. Eram uma recordação da senhora Kim, sua avó adoptiva. A nobre anciã escolhera para os seus vestidos cores que condiziam com os seus temperamentos. O de Deborah tinha o corpo cor de salmão muito pálido e
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a saia ampla cor-de-rosa mais escuro; o de Mary tinha o corpo amarelo-chá e a saia oiro velho. Desembrulharam-nos e contemplaram-nos, com saudade.
- Estaremos muito mais à vontade com estes vestidos - disse Mary.
- E a tia Lillian não se ofenderá ? - perguntou Deborah, inquieta.
- Se se ofender depressa a sossegaremos. Tiraram os vestidos modernos, que as modelavam
demasiado, e deixavam os ombros nus, e envergaram os coreanos. Ficaram como que transformadas. A dignidade e o subtil mistério da antiga China, cultivados durante mil anos pelas mulheres coreanas, impregnavam cada prega da pesada seda tecida à mão. As linhas sóbrias davam uma graça harmoniosa aos corpos flexíveis das raparigas, sem fazer sobressair nenhumas das suas formas, mas também sem ofuscar a sua beleza juvenil.
Fitaram-se e sorriram.
- O papá compreenderia - disse Mary.
- E a mamã também - acrescentou Deborah. Tranquilas, dispostas a divertirem-se, saíram do
quarto e detiveram-se no cimo das escadas. Já se dançava. com os olhos fitos nos pares enlaçados, contemplavam aquela intemperança da carne.
- Porque será que só as mulheres estão seminuas- murmurou Deborah, como se falasse consigo.
- Para tentar os homens - respondeu Mary, com a sua naturalidade e sisudez habituais. - Agora compreendo,
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Deborah. As mulheres têm que tentar, porque, sem isso, os homens não olham, e, não olhando, como hão-de arranjar marido? Aí tens como devem viver as mulheres
de cá.
- Que vergonha! -murmurou Deborah. Desceram devagar, sem saber como incorporar-se
na multidão. Os pares estavam absortos na dança e os donos da casa discutiam a meia voz por detrás da escada.
- Ned, faz qualquer coisa para encontrar Sara.
- Nunca! Naturalmente foste tu quem a fez fugir, à força de a atirares para os braços de Ford.
- Isso não é verdade! Eu não disse nada, a não ser que era uma ideia admirável a de...
- Pois, pois! com certeza falaste-lhe na riqueza dele.
- Foi Sara quem me falou nisso.
- Cala-te, cala-te! Deitámos a perder a educação dos nossos filhos...
A senhora Sheldon fez um grande esforço para não romper em soluços. Ela que tanto trabalhara para aquela festa! Ficara tudo bem, mas à custa de que trabalhos! De repente ouviu a voz sonora de Ford.
- Olhem os anjinhos que descem a escada. Procurara Sara por todos os cantos e sentia-se
cada vez mais inquieto. A música parou, os pares separaram-se e todos os olhos se voltaram para a escada.
- Que vestiram vocês ? - exclamou a dona da casa, olhando-as fixamente. - Oh, que coragem!
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Deu um passo em frente, mas o marido reteve-a, pegando-lhe num braço.
- Espera, Lillian; não as aborreças.
- Esqueces-te de todo o tempo e dinheiro que perdi com os seus vestidos de baile ?
- Isso não tem importância. Pobres garotas! Olha, Lillian, deixa-as divertir-se. Tenho que dizer-lhes uma coisa horrível.
- Que aconteceu, Ned? - perguntou, petrificada. O marido tirou um papel amarelo da algibeira e
estendeu-lho. Ela leu-o e quando acabou mostrou uma cara desesperada.
- Que vamos fazer delas? - murmurou devolvendo-lhe o papel.
- Que queres dizer?
- Teremos que ocupar-nos delas, não é? Oh, meu Deus!...
O marido deitou-lhe um olhar tão duro, que ela se calou.
- Pensa só em ti, duma vez para sempre, sim?
- disse Sheldon, afastando-se.
Ela viu-o dirigir-se para a escada.
- Desçam - gritou às duas raparigas, estendendo-lhes as mãos. Elas desceram, hesitantes, como se flutuassem sobre as amplas saias.
Pegou-lhes nas mãos e voltou-se para os convidados :
- Apresento-lhes as minhas duas princesas anunciou em voz alta. - Vestiram os seus vestidos da corte.
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Escondida atrás da escada, a senhora Sheldon levou o lenço aos olhos. A orquestra tocou outra coisa e Ford Hammerwood convidou Mary. Ned dançava com Deborah. Estúpidos! Estúpidos velhos! As raparigas não achavam agradável aquele contacto, mas eles nem sequer notavam que elas se entesavam e se mantinham o mais possível afastadas deles. A senhora Sheldon via tudo negro desde que sabia que teria de ficar com as duas irmãs. A voz de Donald soou aos seus ouvidos.
- Que tem, mamã ?
- Nada. Não danças ?
- vou agora. Por que chora ?
O telegrama serviu-lhe de pretexto.
- Ah, Donald! Teu pai recebeu notícias horríveis. Os pais das duas pequenas morreram. Não quer dizer-lhes nada enquanto não terminar o baile.
- De que morreram?
- De cólera. Tenho estado muito ocupada nestes últimos dias e nem li o jornal.
Donald lera-o, mas sem prestar grande atenção à epidemia de cólera. Só lhe interessava aquela estreita faixa de terra onde as tropas americanas se encontravam encolhidas, entre o inimigo e o mar. Separou-se da mãe e encaminhou-se para onde estavam os bailarinos, disposto a pôr ele próprio Deborah ao corrente do que se passava, com toda a sua ter-
nura e amor.
Tirou-a ao pai e levou-a para o terraço. A noite
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estava fresca e escura. Mal distinguia as feições de Deborah. Pegou-lhe na mão.
- Deborah, minha querida, queria dizer-te uma coisa... Não; não queria, mas é preciso.
- Alguma má notícia? - perguntou a rapariga com a sua voz doce.
- Uma coisa terrível, Deborah. Trata-se de teus pais...
Ela estava imóvel; Donald pressentia-a assustada, na expectativa.
- Deixaram de existir, Deborah. A cólera... Tu sabes melhor do que eu o que é. Meu pai recebeu um telegrama. Não queria dizer-te enquanto não terminasse o baile. Mas eu não podia suportar a ideia de que fosse outro, e não eu, a contar-te. Desejava estar só contigo, para compartilhar a tua mágoa. Quero-te tanto...
O pior já estava feito. Apertou nos braços o corpo frágil da prima e colocou-lhe a cabeça no seu ombro. Deborah ficou assim, como uma flor murcha.
- O papá e a mamã, os dois?... -A sua voz era tão fraca que Donald mal a ouvia. Tentou consolá-la.
- Pode haver qualquer equívoco. Há por lá tanta desordem...
- Não é equívoco. É bem verdade. Eu sei que nunca se separavam.
Levantou a cabeça e começou a chorar.
- Não chores, Deborah. Oh, não chores! Não posso ouvir-te chorar.
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- Deixa-me chorar - pediu ela, entre soluços.
O rapaz compreendeu que ainda continuava a pensar só em si, e apertou os dentes, colérico, ante o seu incrível egoísmo.
- Chora, minha querida - murmurou - chora, que te aliviará. Não penses em mais nada.
Imóvel, tinha-a apertada nos braços e deixava-a chorar. Tê-lo-ia ouvido declarar-lhe o seu amor? Não lho perguntaria, pois o momento não era oportuno. Sentia-se num estado de êxtase, de exaltação, completamente novo para ele. Provara os mais fortes licores e os melhores champanhes franceses, mas o calor que sentia agora nas veias proporcionava-lhe uma embriaguez imaterial, na qual o seu corpo e o seu espírito encontravam total satisfação.
Compreendeu: compartilhando a dor de Deborah sentia-se invadido de pura felicidade; conseguira esquecer-se.
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xII
Mary dançava com o homem gordo. A rapariga demonstrava-lhe bondade, por compaixão; e deixava, passivamente, que a cingisse contra o ventre alto e bem apertado, observando,
com estranheza, aquele homem que desprezava os prazeres próprios da sua idade para imitar a juventude. Em vez de dançar, devia fazer os netos saltarem-lhe sobre os
joelhos.
Ford achava aquela dança muito agradável. Havia muito tempo que não via uma rapariga tão delicada e tão pura. Como aquela já não existiam na América. Compreenderia que a estava a galantear? Como lhe parecia que ela não reparava em nada, mostrou-se mais ardente. Sentia que voltava aos vinte anos. A primeira rapariga que amara era tão inocente como Mary. Aos homens cega-os sempre o espectáculo da inocência. Uma rapariga que nada sabia do amor, a quem se tinha de ensinar tudo, eis uma coisa que rejuvenescia! O gordo baixou os
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olhos e ficou perturbado pelo olhar pensativo do seu par. Longe de expressar inocência, aquele olhar pareceu-lhe, pelo contrário, muito prudente. O suor humedecia-lhe o pescoço.
- O senhor mexe-se muito -disse Mary, docemente. - Sentemo-nos para descansar.
A música não acabara ainda, mas Mary, sem qualquer intenção torpe, conduziu-o para um canto, fazendo-o sentar-se num banco confortável, e instalando-se, também, numa cadeira de espaldar alto. Estavam ao lado da multidão trepidante dos dançarinos, e Ford não sabia onde esconder-se.
- Parece que tem muito calor - murmurou ela, amavelmente, tirando um leque pequeno da manga e começando a abaná-lo. - Está muito encarnado prosseguiu. - Não devia mexer-se tanto. Já sei que o faz para ajudar a senhora Sheldon e contribuir para o êxito do baile, assim como para me permitir que me divirta; mas eu gosto tanto de conversar como de dançar. Por isso, fiquemos aqui, não acha? Tem filhos? E netos, também?
Ford olhou-a. Estaria a troçar dele? Não, a rapariga estava séria e delicadamente interessada.
- Tenho dois filhos maiores - respondeu em tom breve. - Um está casado e tem dois miúdos, talvez três, não os vejo com muita frequência.
Nunca falava dos netos. Fora tão ridiculamente jovem e inexperiente como a mulher, quando se casou pela primeira vez. O nascimento dos filhos bem o surpreendera.
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- Que pena! - exclamou Mary, sem deixar de o abanar suavemente. - É tão agradável ter netos... Eu espero ter muitos.
O gordo deu uma risada breve.
- Tem aspecto de avó... Depois veremos.
- Os seus netos não vivem na mesma casa com o senhor ?
Ford disse para consigo que a rapariga queria alargar a conversa.
- Não preciso que me distraiam.
- Distraio-me a mim própria - replicou ela. Isto interessa-me. Gosto de falar com toda a gente para conhecer melhor a vida.
Ford voltou a olhá-la: não troçava dele.
- Vivo só; não estou casado.
- Mas... tem netos ?!
- Estou divorciado.
- Quer dizer que não vê a mãe de seus filhos ?
- Faz trinta anos que não a vejo.
- Há trinta anos que vive só? - a sua voz vibrava de compaixão, que lhe transbordava dos olhos.
- Escute, minha pequena - exclamou Ford, subitamente ofendido - creia que há muitas coisas que você não compreende. Não tenho nenhum interesse em ser avô. Não me acho velho. Na verdade, tenho, até, intenção de anunciar esta noite o meu noivado com Sara.
Mary deixou cair o leque sobre os joelhos.
- Mas como, se Sara saiu com um rapaz ?!
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Os seus olhos claros chispavam, com uma espécie de malícia.
- Está a brincar comigo - exclamou Ford.
- Sinto muito, mas disse a verdade - replicou a rapariga.
Ele tentou levantar-se. Impossível. Tremiam-lhe os joelhos; agarrou-se aos braços da cadeira.
- Que rapaz? - Sara garantira-lhe que não existia mais ninguém...
- Nós não sabemos. Era um rapaz alto, muito belo. Chegara de Nova Iorque. Ela saiu com ele afirmou Mary.
Ford suspirou. Tinha a cabeça às voltas. Havia algum tempo que lhe davam tonturas quando se desgostava. Esteve tentado a pôr os braços sobre uma mesa e a pousar neles a cabeça, mas não podia. Sara rira-se dele. Fechou os olhos.
- O senhor não está bem - disse Mary.
Ford voltou a sentir no rosto a brisa perfumada do leque.
- Não se mexa, que eu abano-o. Quer água ?
- Podia trazer-me um whisky - murmurou ele.
- Transtornou-me com essa história... mas não acredito. Ainda ontem Sara me prometeu...
- Espere - disse Mary. - Aí está ela, finalmente. vou chamá-la.
A rapariga levantou-se, e agitando o leque chamou Sara em voz alta, sem a menor cortesia.
- Sara, Sara!
- Senhor!... - suspirou o gordo.
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Era verdade. Sara estava no umbral da porta. Mary deteve-se, inquieta, e fitou-o.
- Está a rezar?
- Não; não grite, sim ?
- Não quer ver Sara?
- Claro... claro - grunhiu, irritado.
Ford cerrou os olhos e voltou a abri-los um instante depois. Sara estava no mesmo sítio, com a magnífica cabeleira loura emoldurando-lhe o formoso semblante, parecendo, no seu vestido cor de coral, uma flor rara e preciosa. Quando se casassem havia de levá-la a Hawai. De momento, porém, não tinha vontade de se levantar. Sentia as pernas como se fossem de algodão. Estava à espera do whisky.
Viu essa criatura exasperante e juvenil deslizar entre os pares e pousar a mão no braço de Sara. Esta voltou-se para ela, olhou-a, e abanou a cabeça em sinal de negação. Não queria vir ter com ele? Ficou furioso. No fim de contas, quem se julgava ela? Não era mais do que a filha daquele bom velhote, do Ned Sheldon. No mundo não faltavam raparigas. Podia ter as que desejasse. Estendeu o lábio inferior, mas, de repente, viu Sara dirigir-se-lhe, de cabeça levantada.
- Por favor, onde está o whisky, Harry? - sussurrou Mary.
De roda das mesas apertava-se uma multidão de raparigas e rapazes, restaurando-se num amálgama de conversas. Mary achava-lhes um aspecto muito
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materialista. Pareciam comer por pura avidez, sem se preocuparem com o gosto dos alimentos, e beber para se embrutecerem.
Ela provara todas as bebidas, para escolher aquela de que mais gostava. O mesmo fizera com os alimentos, pois a sua velha ama coreana dizia-lhe sempre: "Cada organismo tem as suas preferências e suporta mais ou menos as diferentes qualidades de bebidas e de alimentos. Se se dá ao corpo o alimento que lhe convém, ele prospera, assim como o espírito, que se desenvolve com o corpo".
Mary lembrava-se de que os pais tinham opiniões diferentes a respeito do álcool. Para sua mãe, beber álcool era um pecado. O pai, porém, protestava: "Nas Escrituras diz-se que o vinho, em pequena quantidade, faz bem ao estômago".
- Então vela pelo teu estômago, não pelo meu! replicava sua mãe.
Quando os pais discutiam, Mary e Deborah retiravam-se, como devem fazer os filhos respeitosos.
É vergonhoso para os novos assistir a uma disputa entre pessoas mais
idosas. Não, os filhos não devem tomar partido, sem terem formada a sua própria opinião.
Deborah não gostava de nenhuma das bebidas que provara em casa dos Sheldons: queimavam-lhe a garganta delicada. Mary, porém, descobrira um vinho branco, doce sem ser demasiado açucarado, que lhe parecia multo bom. Harry chamava-lhe "Sauternes" e servia-lhe apenas deste vinho, enquanto levava bebidas fortes aos convidados.
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-.Para que quer o whisky, Miss? - perguntou Harry, severamente; detestava as recepções, sobretudo aquelas em que os jovens se embriagavam como perus.
- É para aquele senhor de idade - disse Mary, indicando Ford Hammerwood, e apontando-lhe o dedo indicador.
- Não devia apontar - repreendeu Harry. Além disso, o indicador não é melhor do que os outros.
- Pois como queria que lho mostrasse? E para que servem os dedos ?
- E também não há aqui nenhum senhor de idade, devia saber - volveu Harry sem lhe responder. Aborrecem-se se os acham velhos. Nós somos todos novos, bastante novos para ter um pouco de juízo. O nosso país está cheio de galopins. Vamos desconcertar o mundo e ensinar-lhe o que é a civilização americana. Arrastaremos a Terra toda num torvelinho de jazz e de cocktails, daremos palmadinhas nas costas uns dos outros e adiante com as caixas de música e com os hot dogs whoopee!...
Mary contemplava, aturdida, o rosto desesperado do mordomo.
- Harry! Que lhe aconteceu ?
Ele respondeu com os olhos cheios de lágrimas:
- Meu filho parte esta noite para esse ditoso país donde vocês vieram, e eu nem sequer posso acompanhá-lo à estação.
- A que horas parte ?
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- ã meia-noite.
A rapariga olhou para o relógio que tinha preso no peito.
Passava das onze.
- Vá, que eu fico no seu lugar.
- Isso é impossível, menina. Devo fazer o meu trabalho. Ele tem a mulher e os filhos para o acompanharem. Aqui tem o whisky.
Mary não lhe tocou. Lá fora, na semiobscuridade do terraço, acabava de reconhecer a silhueta do rapaz alto que saíra com Sara.
- Harry, faça favor de levar o whisky ao senhor de idade. Eu estou a pensar.
Ficou calada, no lugar de Harry, que, arreliado, pôs o copo numa bandeja e saiu dali. Mary deslizou até ao terraço.
- É você? - disse. - Chega mesmo a tempo. Faz tanta falta... Pode servir no bufete ?
Lars baixou os olhos e reconheceu a rapariga. Estava aborrecido e sentia-se muito infeliz. Fracassara : nem Sara nem ele queriam fazer concessões.
- É melhor que nos separemos, Sara - dissera ele, e haviam regressado muito mais cedo do que o previsto.
- Não sou criado - respondeu friamente a Mary.
- Bem sei - replicou ela. - Mas Harry queria ir à estação despedir-se do filho único que parte para a Coreia. A guerra... sempre a guerra - suspirou.- Não podemos detê-la, mas, pelo menos, podemos ajudar os que sofrem. A jaqueta de Harry deve assentar-lhe
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bem. Você tem boa presença. A sua gravata também servirá. A camisa é branca. Muito bem. As calças é que são azul marinho, mas não se nota.
Pegando-lhe nos pulsos fizera-o dar uma volta com uma força de que ele não suspeitara.
- Você mantém-se direito e Harry não o pode fazer, mas, à parte isso, passará muito bem por ele.
- Está a brincar comigo, hem- disse ele em tom de censura.
Apesar de tudo achava aquilo divertido. Acabava de passar um mau bocado; o seu novo papel distraíria-o-
e permitir-lhe-ia observar Sara.
- Não, não estou a brincar - protestou Mary, em tom suplicante, mas sem lhe largar o pulso. - Espere aqui, por favor.
Entrou na sala e voltou a sair acompanhada de Harry.
- Dispa a jaqueta, Harry, e dê-a a este senhor. Servirá em seu lugar enquanto você vai à estação.
- E quem me garante que... - Harry hesitou que este rapaz não me levará a baixela de prata? Harry sabia destas coisas...
- Perdão, senhor; mas só esta menina seria capaz de me levar a fazer semelhante coisa. Pode estar tranquilo. Além disso, seu filho único... vai para tão longe... Quem sabe se voltará?
Harry derramou uma lágrima. Bebera um copito para ter coragem, explicou. Mary compreendeu perfeitamente.
- Não se preocupe - disse a rapariga. - Não
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chore. Escrevi a meus pais falando-lhe de seu filho. Eles tratarão dele e hão-de ensinar-lhe os costumes do país, de maneira a que os habitantes gostem dele. Se
souber fazer-se estimar nada lhe sucederá.
Harry despiu a jaqueta e deu-a a Lars. Se não se baixasse, ninguém notaria que lhe estava estreita.
- Tome o meu casaco; não pode sair em mangas de camisa - disse-lhe Lars.
O velhote afastou-se com passo um pouco vacilante.
- Estou contente - disse Mary. - Harry ficou muito satisfeito, e a sua presença servirá de consolo ao filho. Agora vou ensinar-lhe o trabalho.
Conduziu-o ao bufete. Os convidados estavam agrupados de roda das mesitas, e nenhum pareceu notar a substituição.
- vou ajudá-lo - propôs Mary, sorridente. Lars e ela puseram-se por detrás da vasta mesa
e começaram a servir os convidados. O rapaz de vez em quando deitava uma olhadela de soslaio a Mary. Vendo-a tão séria e imperturbável, reprimiu um sorriso e consagrou-se inteiramente ao seu trabalho.
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XIII
O senhor Sheldon divertia-se muito. Na realidade, havia muito tempo que não folgava tanto. A discussão que tivera com a mulher irritara-o, e fora buscar aos cocktails
o bom humor perdido. Conseguiu-o perfeitamente, e escutou com ouvidos complacentes os cumprimentos que lhe faziam acerca das suas jovens protegidas, as suas "pupilas",
como lhes chamava agora. Confiou a uma dúzia dos seus amigos mais íntimos que, naquela ocasião, eram órfãs sem o suspeitarem.
- Espero pelo fim da festa para lhes revelar esta desgraça - dizia. - Que se divirtam agora o mais que puderem.
- Tens absoluta razão; é sempre cedo para se saberem más notícias; eu que o diga!-exclamava um dos amigos.
- Bem disseste tu-afirmava outro.-São muito sossegadas.
- Pois são - replicava o senhor Sheldon, - São tudo o que já não querem ser as raparigas de hoje.
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A festa já perdera para ele o sabor de tristeza.
Via-se já com os rasgos dum nobre benfeitor, protegendo umas inocentes criaturas, e circulava entre os convidados distinguindo-os somente através duma bruma cor-de-rosa.
Todos folgavam. Assim é que devia ser. Que se divertissem.
Viu a filha, Sara, que já tinha voltado. Estava a dançar com o velho Ford. Por um segundo teve intenção de ir separá-los; porém o seu bom humor venceu. Que dançassem, que diabo, com esse bom velhote! O maior defeito que lhe encontrava era ser demasiado gordo e demasiado velho. Era àqueles que deviam matar e não aos novos. Eis uma boa ideia: mandar todos os gordos e velhos para a Coreia, e estava o caso arrumado. Isto pareceu-lhe divertido. Abriu caminho por entre os pares até chegar a Ford. Este desde o princípio que andava a dançar, mas já não resistiria muito. Todos os velhos tinham deixado de dançar e agora restauravam-se ardorosamente. Só o bom do Ford continuava a resistir. Sara esgotava-o. Já suava em bica; de longe via-se-lhe a testa reluzente.
- Eh, Ford!-gritou. - Farias melhor se descansasses um pouco. Acabas por rebentar.
Sara deitou-lhe um olhar frio e furioso.
- Papá, está ébrio - sibilou em voz baixa.
- Isso não é verdade - protestou Sheldon, indignado. - Queria dizer qualquer coisa ao Ford e por tua causa esqueci-me. Ah, achei! Ouve, Ford...- Pôs a mão no braço do outro, que deixou de dançar.
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Ouve, tenho uma ideia.-Os pares volteavam à sua
roda. - Tu és velho e gordo; eu também. Depois dos vinte e cinco anos, toda a gente é velha e gorda. já não servimos para nada, compreendes? Pois bem, é a nós que
compete ir para a Coreia. Porque não?
Soltou uma grande gargalhada e deu uma formidável palmada amistosa no ombro de Ford.
Começavam a olhá-los. Cada olhar queimava Sara como um ferro em brasa.
- Repugnam-me - murmurou com os dentes cerrados, fitando o rosto suplicante de Ford, escorrendo suor. - Os dois - acrescentou, afastando-se.
- Vamos sentar-nos - disse Ford ao dono da casa. - Não me sinto bem.
- Que tens? - perguntou Sheldon, transbordante de comiseração.
Deu o braço a Ford e atravessou com ele o salão. A música cessou; os que dançavam, impacientes por recomeçar, mudavam de pares.
- Não sei o que tenho - queixou-se Ford. - Não bebi, ou por outra, bebi apenas um pouco de whisJcy para me reanimar, porque me senti subitamente muito cansado.
Instalaram-se num sofá que as suas ancas enormes encheram por completo.
- Não devias agitar-te tanto - aconselhou Sheldon, em tom sério. - Não queiras seguir o ritmo de Sara, pois se não tens um bocadinho de cuidado deixas uma viuvinha...
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- Não foi Sara. Mal a vi ainda. Não sei onde estava. Não, foi a outra pequena.
- Qual pequena ?
- Uma das tuas princesas.
- Porquê? Que te disse?
- Oh, não foi o que disse! -replicou Ford, com voz lamentosa. - Foi a sua maneira de fazer as coisas...
- Que maneira, Ford?
- Diferente. Não estou acostumado a isso. Senti logo a impressão de ser centenário.
Seguiu-se um largo silêncio, que Sheldon cortou por fim:
- Compreendo o que queres dizer - murmurou.
- Vamos beber qualquer coisa.
Levantaram-se e, de braço dado, tomaram a direcção do bufete.
Ao chegar a meia-noite a senhora Sheldon sentiu-se muito cansada. Doíam-lhe os pés; não podia continuar prodigalizando palavras amáveis e sorrisos. Certa já do êxito
da festa, decidiu ir descansar meia hora, espalhou à sua volta um último sorriso, acenou cordialmente a uma rapariga elegantíssima, divorciada dum milionário de
Nova Iorque, que vivia num retiro temporal em Gressmore, e, por fim, eclipsou-se. Podia repousar um bocadinho. Não sabia onde estavam as duas irmãs, mas pouco lhe
importava. Precisava absolutamente de tirar os sapatos e estender-se pelo menos meia hora. Não para dormir,
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evidentemente, mas para descansar um pouco. Depois desceria de novo, procuraria Sara, e perguntar-lhe-ia se sempre se anunciavam os esponsais. Ninguém notou a sua ausência. Estendeu-se, exalou um profundo suspiro... e adormeceu imediatamente.
Lá fora, ao luar, Donald e Deborah continuavam a conversar, deixando falar as almas. Donald tentava mostrar-se a Deborah tal como era, e a sua voz grave dominava os estribilhos da música, o ruído das vozes e os risos que chegavam até eles vindos da casa brilhantemente iluminada.
- Como hei-de saber o que devo fazer agora? perguntou Deborah. - Meus pais morreram e eu não te conheço, Donald. Quero-te muito, mas quando uma pessoa se casa é para toda a vida. Desconfio desta sensação nova que sinto aqui - pôs a mão no peito quando te vejo.
- Que espécie de sensação, Deborah ?
- Uma coisa rara. É o amor, naturalmente, mas que espécie de amor?
- É uma impressão muito natural e normal, Deborah. Eu sinto o mesmo por ti. Por isso quero desposar-te.
A rapariga abanou a cabeça.
- Depois do casamento, esta impressão é normal, como tu dizes, porque sem ela não existe amor; mas antes do casamento, não é seguro.
- Explica-me o que queres dizer, Deborah pediu Donald.
- Nunca pensei no que seria o meu casamento -
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declarou Deborah. erguendo a cabeça e pousando nele o seu olhar puro e franco. - Sei perfeitamente que quero casar-me, pois sem isso a vida não tem significado. Quero um bom marido e serei uma boa esposa. Quero ter filhos: rapazes e raparigas. Sei tudo isto. O amor físico no matrimónio é normal e está bem. Sei que gostarei de ti e tu de mim; há, porém, mais qualquer coisa.
- O quê, Deborah?
Quanto gostava da sua desenvoltura, da sua inocência calma e juvenil! A seu lado sentia-se muito mais velho do que ela, mas também tinha a impressão de ser apenas um rapazinho.
- Há os teus pais e Sara... sobretudo teus pais.
- Mas que relação há entre eles e nós ?
- Uma relação muito importante-respondeu ela firmemente. - Sei que não tem importância para os americanos, mas enganam-se. O casamento não é feliz se todos - incluindo os pais - não forem felizes. No casamento continuas a ser filho, embora já sejas marido.
- Então casaremos, Deborah? - interrompeu Donald.
A rapariga protestou, com as mãos estendidas, como se quisesse afastá-lo.
- Não, apenas falava.
- Ouve, poderemos ir para onde quiseres. Viveremos sós. Não temos necessidade de ver os meus pais.
Deborah olhou-o, horrorizada.
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- Donald! Como podes falar assim? Eu quero ver teus pais! Gosto deles. Não compreendes.
- Tento compreender.
- Pois escuta-me, por favor. O casamento é um assunto de família. Casando contigo, aceito teus pais como meus.
- Isso não é indispensável.
- Digo-te que é! - declarou a rapariga, batendo com o pé.
- Pronto, Deborah; estava só a ajudar-te a explicares-te.
Ela sorriu.
- Desculpa, Donald. Tenho muito mau génio...
- Não tens nada.
- Tenho, tenho, garanto-te. É melhor que o saibas já. Quando estou a explicar qualquer coisa não gosto que me interrompam.
- Perdoa-me.
- Quero ser também a filha de teus pais, Donald
- disse ela, retomando, muito séria, o fio do discurso. - Quero viver com eles. Quando tivermos filhos, precisam de ter um avô e uma avó. Não é bom para as crianças crescer longe dos avós. Devem ver à sua volta novos e velhos. Eles são novos, mas, se virem pessoas idosas, saberão como hão-de ser, um dia. O pai e a mãe não chegam. Eu sei como pensamos na Coreia. Todos os coreanos têm um avô e uma avó e sentem-se muito bem, mas Mary e eu não tínhamos. Isto punha-nos tristes, como se a nossa família fosse incompleta. Ficámos contentes de vir
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para cá, porque, embora tivéssemos de separar-nos de nossos pais, esperávamos encontrar avós. Onde estão eles, Donald ?
- Os pais de meu pai morreram, Deborah. Os de minha mãe vivem na Califórnia. São muito velhos. Desde pequeno que não os vejo.
- Por que estão na Califórnia ? Por que não estão aqui, para desfrutarmos a sua presença ?
- Parece-me que a minha mãe não se entendia muito bem com eles. No entanto, não tenho a certeza.
- Que vergonha! - suspirou a rapariga. - Fizeram-te uma tremenda falta, Donald. Quando estivermos casados...
- Então está decidido? Casamos?
- Não; e lá voltas tu a interromper-me!
- Oh, desculpa!
- Quando estivermos casados - prosseguiu ela
- iremos em viagem de núpcias à Califórnia, e ficaremos em casa dos teus avós.
- Senhor!
- É meu desejo - afirmou Deborah, com suave obstinação.
- Que maçada vai ser!
- Maçada, porquê? - protestou, indignada. Será muito agradável.
- Tudo será agradável na tua companhia, querida.
- Além disso, não gostaria de viver sozinha contigo numa casa solitária.
- Mas não estarás solitária, Deborah.
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- Sim, sem família estarei só.
- Teremos os nossos filhos.
- Precisamos de pais para nós e avós para eles, repito-te. Todos os nossos amigos coreanos foram mais felizes do que Mary e eu. Só tínhamos o papá e a mamã. Agora nem sequer a eles temos. Portanto, tenho de viver com os teus, que serão os meus.
Rompeu de novo a chorar baixinho e enxugou os olhos com o lenço de seda florida.
O rapaz cedeu, e voltou a apertá-la nos braços.
- Deborah, terás a tua família, ainda que eu haja que sofrer por isso. Talvez tenhas razão. Talvez seja essa a verdadeira maneira de viver.
- Evidentemente que tenho razão - teimou ela, apertando-o a si. - Assim todo este amor não será somente para nós dois.
- Não te chegaria eu só ?
- Não se trata disso.
Levantou a cabeça e recomeçou a sua explicação:
- Se não tivesses teus pais, claro que me chegarias, embora o lamentasse. com pais, o nosso amor é infinitamente maior.
- Pelo menos não podes prescindir de mim. Ela olhou-o horrorizada.
- Quem disse tal coisa ? Sem ti já não teria nada.
- Era isso que queria saber - disse Donald. Estamos prometidos.
- Sim - aceitou Deborah. - E agora temos de dizê-lo a Mary.
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xIII
Donald e Deborah começaram à procura de Mary, percorrendo todas as salas. Quando Donald não podia resistir à música, fazia dançar Deborah. A rapariga dançava bem, improvisando, às vezes, passos originais, sem, no entanto, perder o ritmo. O rapaz achava-a tão leve, que sentia desejos de a erguer.
- Onde estará Mary? - perguntava ela, de vez
em quando.
- Vamos procurar na cozinha - acabou ele por propor. - É capaz de estar a ajudar a Luísa.
Atravessaram a sala-de-jantar e dirigiram-se para o bufete... onde se lhes deparou Mary. Ao mesmo tempo Donald viu Lars, reconheceu-o, e exclamou:
- Oh! Mas... diria...
- É o rapaz que saiu com Sara - observou Deborah. - Que fará ali?
- E onde está Harry ?
Deborah abriu caminho e aproximou-se de Mary.
- Mary, por que estás aqui ?
A irmã voltou-se, radiante, para ela.
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- É uma sorte que Sara não goste deste rapaz explicou. - Encontrei-o abandonado no terraço. Sara foi não sei para onde com o senhor Hammerwood. Suponho que estão a dançar, mas não os vi.
- Por que é que Sara não gosta desse rapaz? perguntou Deborah, desanimada.
- Não tive tempo de lhe perguntar - respondeu Mary. - Estamos muito ocupados. Toda a gente quer comer e beber entre as danças. Deborah - perguntou com ar grave -
achas que devo recusar o whisky ou o vinho aos que já estiverem embriagados? Que
dizes?
Deborah reflectia.
- Sim - disse com firmeza. - Acho que devias recusar. Responde assim: "Senhor, ou senhora, já está um bocadinho tonto; permita-me que lhe ofereça uma chávena de chá".
- Não há.
- vou fazê-lo -decidiu Deborah imediatamente.
Desapareceu em direcção à cozinha, onde encontrou Luísa a dormir, com a cabeça apoiada na mesa. Sem a despertar, encheu uma grande chaleira de água a ferver e levou-a
a Mary.
- Aqui tens o chá - disse-lhe. - Apareceram alguns ébrios enquanto estive na cozinha?
- Não, mas estou daqui a ver dois. Que horror! São os dois velhotes. Ninguém os vigiou para impedir que bebessem demais. Onde está Donald? Ele é que devia ocupar-se do pai.
Deborah ruborizou-se e empalideceu logo a seguir.
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Não, entre toda aquela gente e com aquele barulho, não podia revelar a Mary a morte doB pais.
- Logo digo-te uma coisa - começou, mas Mary não a ouvia.
Olhava os dois homens com ternura e pena.
- Já estamos - declarou o senhor Sheldon. Ainda tinha consciência suficiente para verificar
que Ford estava perdido de bêbado e que ele próprio não se tinha limitado a "um pequeno whisky".
- Anda, Ford; bebe uma pinga e verás como ficas bom. Onde está Harry ?
- Permita-me que o sirva, senhor - ofereceu-se Lars, com prontidão.
Mary interpôs-se, impulsivamente.
- Por favor, basta de álcool, basta de whisky. Agora um bom chá quente. É muito melhor para os senhores duma certa idade. Eu mesma sirvo. Aqui está. Um pouco de açúcar, Deborah.
As duas raparigas atarefavam-se de roda das chávenas. Num abrir e fechar de olhos, Sheldon e Ford encontraram-se sentados a um canto, diante de duas chávenas de chá. Quando as esvaziaram, as duas irmãs voltaram a enchê-las.
Ao ver Donald aproximar-se, Deborah disse-lhe:
- Vem cá, peço-te. Teu pai bebeu demais, precisa que se ocupem dele.
Donald foi para o terraço e sentou-se num banco. O seu sentido humorístico representava-lhe certas perspectivas da vida em comum com Deborah. Desatou a rir, sacudido por um acesso de profunda alegria.
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- De que te ris ? - perguntou Sara, saindo da sombra e aproximando-se do irmão, com aspecto triste e abandonado.
- Que é isso ? Não danças ? - perguntou ele, pondo-se na defensiva.
- Asfixia-se lá dentro - respondeu Sara, sentando-se junto dele.
- Parece que vai tudo bem. Todos se divertem, até as pequenas. Parece que gostam imenso de se ocupar dos convidados.
- Já estou farta delas - rosnou Sara, entre dentes. - Quisera nunca as ter visto!
- Porquê ? Elas são muito amáveis contigo. Pelo menos, mais do que tu com elas.
- Muito amáveis... - repetiu Sara, escarninha.
- Ouve-me - prosseguiu Donald. - Segura-te bem: vou casar com Deborah.
Sara encolheu os ombros.
- Sabia-o desde que chegaram.
- Pois eu só esta noite o soube - replicou ele.
- Não te aborreças, Donald. Sou muito desgraçada!
- Quem tem a culpa? - perguntou ele, surpreendido.
- Eu não, se é isso que queres insinuar.
- Es muito susceptível.
com grande surpresa e aborrecimento viu-a desfazer-se em lágrimas. Ficou um momento imóvel e, logo a seguir, deixou-se enternecer.
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- Pronto, está bem. Despeja o saco. Quem é o traidor?
- Lars - disse ela entre soluços. - Lars Bjornsen.
- O novo mordomo ?
A rapariga deixou repentinamente de chorar.
- O quê?
Donald fez um gesto com a cabeça na direcção da casa.
- Aquele tipo que está ali com Mary.
- Mary?
Sara levantou-se, dirigiu-lhe um olhar duro e surpreendeu-lhe um sorriso nos lábios. com as faces ainda molhadas de lágrimas, pegou na saia comprida e desatou a correr para casa.
Deborah viu-a deter-se na ombreira da porta, com os olhos brilhantes de lágrimas e o formoso semblante crispado de cólera. No bufete havia um momento de calma; os convidados dançavam, trocando os atractivos da ceia pelos da música de ritmo arruIhador. O senhor Sheldon e Ford, que continuavam sentados no mesmo sítio, pareciam aliviados; mas estavam pensativos. Lars falava com Mary. Deborah viu a irmã ruborizar-se, e o seu instinto fê-la correr em seu auxílio para a livrar de Sara. Não despedira esta o viajante?
Sempre prática, o seu espírito concebeu uma ideia que, semelhante a um raio de sol, atravessou o seu coração perturbado simultaneamente pela tristeza e pela felicidade. Mortos os pais, cabia-lhe a si, pois
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era a mais velha, proteger Mary e tornar-lhe acessível a felicidade. Uma vez que Sara preferira o velho rico, por que não havia de ocupar-se da felicidade de Mary?... Os pais não existiam; elas estavam sós no mundo. Sua mãe teria sido a primeira a aconselhar-lhe que casasse com um homem digno e procurasse outro para Mary. As mulheres não estavam em segurança enquanto permaneciam sós; a mãe dizia-lho constantemente. Apesar de tudo, para se decidir a obedecer, Mary devia sentir primeiro todo o alcance da sua solidão. Mary era tão moderna, tão independente.. Podia recusar-se a contrair um casamento de conveniência.
Nisto reflectia, vendo Lars e a irmã conversarem. Ao ver Sara, tão bela na sua fúria, pensou chegado o momento. Tocou no braço de Mary.
- Vem cá, Mary. Preciso de falar-te.
- Fala aqui.
Também vira Sara. Lars viu-a igualmente e fez-lhe um sinal amigável.
- Impossível - disse Deborah. - É uma coisa triste. Precisamos de estar num sítio onde possamos chorar.
Mary olhou para a irmã e viu-lhe lágrimas nos olhos. Voltou-se para Lars.
- Desculpe-me. Preciso ausentar-me por uns minutos.
- E voltará ? - perguntou Lars, inquieto. - Já sabe que não posso ocupar-me sozinho do bufete.
- Voltarei - prometeu a rapariga.
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As duas irmãs afastaram-se juntas e atravessaram silenciosamente a cozinha, onde Luísa continuava a dormir e Nancy cabeceava, apoiada contra a parede. Saíram para a horta, e sentaram-se num banco entre as couves, as batatas e os últimos tomates, sobre os quais as janelas da cozinha projectavam reflexos luminosos.
Deborah pegou na mão de Mary e estreitou-a. Finalmente só com a irmã, sentia todo o peso da trágica notícia. Na companhia de Donald não compreendera verdadeiramente que seus pais tinham morrido. Recebera a mensagem dos lábios dele, mas só agora, que tinha de repeti-la a Mary, avaliava a extensão da tragédia. Estavam sós naquele quintal escuro, em terra estranha, e com a casa cheia de desconhecidos, dançando, rindo-se, sem se preocuparem nem pouco nem muito com elas. Ninguém compartilhava a sua dor. Se estivessem na Coreia, os seus amigos e vizinhos ter-se-iam reunido em sua casa, para lhes apertar a mão, acariciar-lhes as faces e chorar com elas.
- Mary - murmurou, e as palavras acudiram-lhe subitamente aos lábios, em coreano, a formosa língua da sua infância, a língua dos segredos e das confidências. - Mary, somos órfãs. Nossos pais já não vivem. Abandonaram-nos, minha irmã. Partiram e não voltaremos a vê-los.
Rodeou com o braço os ombros da irmã, mas esta soltou-se.
- Dize-me-exclamou em inglês.-Não tentes...
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- Digo-te tudo-respondeu Deborah, também em inglês. - Há cólera na Coreia. Conheces o papá e a mamã, sabes como eram. Onde estava o sofrimento e a morte, estavam eles.
- E deixaram-nos! - gemeu Mary.
- Tão longe! - suspirou Deborah.
Lutando para reter as lágrimas, esperou que Mary chorasse. O silêncio, porém, reinava sobre elas. Ainda esperou um pouco, mas OB olhos molharam-se-lhe, a garganta apertou-se-lhe...
- Oh, Mary, chora comigo! - soluçou.
As duas órfãs caíram nos braços uma da outra e, com os rostos unidos, misturaram as lágrimas, gemendo ao mesmo tempo, como tinham ouvido antigamente, nas obscuras noites coreanas, quando, meninas ainda, perguntavam uma à outra o que era a morte. A música cobria todos os ruídos. Ninguém as ouvia.
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XV
Sara atravessou a sala. Que estava tramando aquele par de patetas? Por que volteavam à roda de Lars? Onde estava Harry? Por que se fazia Lars tão ridículo?
Deixou escorregar a saia comprida e dirigiu-se majestosamente para Lars. Este viu-a aproximar-se, impassível.
- O quê, diverte-se muito, não? - atacou ela.
- Por que não? Seria idiota se me encerrasse sozinho num quarto de hotel até partir para a Coreia.
- No entanto, era isso o que você desejava fazer.
- Sim, era isso o que tinha decidido.
- Então quem é o responsável ?
- Ninguém. Cada qual segue o seu caminho. Sara contemplou-o, mas não viu sombra de pesar
no seu belo rosto. Não podia suportar a derrota. Perdera-o, mas tentaria de novo.
- E se fôssemos dançar, Lars? - sugeriu com voz doce.
- Vai dançar com o mordomo ?
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- Não diga tolices!
- Mas não posso sair daqui enquanto não me substituírem.
- Porquê ?
- O meu dever consiste em permanecer aqui.
- E você cumpre sempre o seu dever, não é ?
- Sempre - retorquiu o rapaz, inflexível.
Sara voltou a cabeça e viu Harry saindo da cozinha, com a cara encarnada e parecendo muito cansado.
- Oh, menina Sara! Espero que... Obrigado, senhor, muito obrigado. Tudo vai bem. Não sei como mostrar-lhe a minha gratidão.
Lars despia o casaco e, por detrás dele, Harry tentava fazer o mesmo, muito desajeitadamente, esforçando-se para que ninguém o visse e sem deixar de fitar Sara. com grande à vontade e sem se apressar, Lars, em mangas de camisa, voltou-se para ele.
- Chegou a tempo?
- Cheguei, sim, obrigado. O comboio saiu com um pouco de atraso e pude falar um bom bocado com meu filho. A mulher e os filhos também lá estavam.
Ficou muito satisfeito
por me ver.
- Vai melhor, assim.
Sara não dizia nada. Harry sorriu estupidamente.
- Foi verdadeiramente amável, senhor - insistiu o homem - e a menina Mary, também. Acontecem coisas muito chocantes em tempo de guerra. Em época normal não teria aceitado.
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Sara continuava calada, com uma expressão longínqua, indiferente. Voltou-se para Lars.
- E se dançássemos agora?
- com muito gosto - respondeu ele cortesmente. Formavam um par ideal. Sara contentou-se, por
um momento, com aquela harmonia. Não falaria, não exigiria qualquer explicação. Que tudo fosse esquecido. Recomeçaria. Dançaram em silêncio. Durante o breve intervalo entre duas músicas, mantiveram-se cara a cara, sempre calados, até que ele voltou a enlaçá-la.
- Que música tão suave! Nunca dancei assim na América; nem sequer consigo, Sara.
- Se durasse muito não gostaria disto - replicou ela, com voz indiferente.
- No entanto, você dança com a graça que põe em todas as coisas.
A doçura daquela voz apaziguava no coração seco e dolorido de Sara uma vaga nostalgia.
- Oh, Lars! - suspirou. - Porque se nega a... ?
- A quê, Sara ?
- A ficar a meu lado!
"Fica a meu lado, fica a meu lado"; a música gravava estas palavras no espírito solitário da rapariga. Nunca lhe haviam negado nada na vida: nem os brinquedos, na sua meninice, nem, mais tarde, toda a espécie de luxos. Tinham satisfeito os seus mínimos caprichos, possuía tudo... menos Lars!
- Por que se nega você a seguir-me, Sara? perguntou ele, gravemente.
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- Creio que não me deixariam partir consigo, mesmo que quisesse.
- Se você o desejasse verdadeiramente, haveria algum meio; há sempre um meio de fazer as coisas,
quando se quer.
- Se me amasse de verdade não me pediria isso.
- Não peço nada, Sara. Digo apenas: "Se você
quisesse..."
- Eu quero estar a seu lado, Lars.
- Pois onde está o obstáculo ?
- É você que deve ficar. Eu não quero ir à Coreia
por nada deste mundo.
- Você ama outro muito mais do que a mim.
- Não é verdade.
- Sim... a si própria.
Abrasada pela ira e pelo amor desiludido, exclamou em tom amargo, atirando a cabeça para
trás:
- E você não ama ninguém mais do que a mim, uma vez que se nega a ceder? Ou a você próprio,
talvez ?
- Não, não me quero a mim mesmo, Sara. Se pensasse só em mim, julga que não ficaria?
- Pois, a seus olhos, quem lhe interessa mais
além de você e eu?
Apoderou-se dele uma pena enorme. Aproximou a cabeça daquele lindo rosto. Já não tinha o coração amargurado de sofrimento, compreendia que o amor morria. O amor e a piedade não podem existir ao mesmo tempo; um ou outro tem de morrer.
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- Nós somos só dois - explicou - mas além de nós há o mundo inteiro.
Sara desviou os olhos, deu alguns passos e parou repentinamente.
- Não posso dançar ao compasso desta horrível música! - exclamou desprendendo-se-lhe dos braços.
Atravessou a sala a correr e subiu para o seu quarto.
Lars sentiu que lhe pegavam no braço. Baixou os olhos e reconheceu o cavalheiro de certa idade a quem Mary dera chá.
- Desculpe - disse o velho. - Chamo-me Ford Hammerwood. Não nos conhecemos; aliás, era inútil. Queria apenas perguntar-lhe se Sara o deixou.
- Sim - respondeu Lars - creio que sim. Não quis continuar a dançar, porque não gostava da música.
O ancião fez um gesto com a cabeça, satisfeito, e voltou a sentar-se no seu lugar.
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XVI
O baile chegava ao fim. Despontava a alva. Lars resolveu voltar à cidade. Para quê esperar que os convidados partissem? Saiu sem se despedir de ninguém: Sara não voltaria a descer e ele não fora convidado. Ninguém o cumprimentara à chegada, nem ninguém lamentaria a sua partida. Esqueceria aquela estranha noite; esqueceria também Sara, se pudesse, pois assim era necessário para poder cumprir a sua missão.
Sentia-se triste, mas não infeliz. Não seria descortês partir sem se despedir da rapariga vestida de coreana, a princesa, como lhe chamavam? Sabia que ela não era princesa, mas o nome ficava-lhe bem. Achava-lhe um aspecto delicado, uma segurança moça, uma doce autoridade e, também, um ar de "manhã tranquila" que vinha, sem dúvida, do país onde nascera, cuja graça antiga adornava a sua juventude. A graça adquire-se no decurso dos séculos e transmite-se, por herança, de velhos a novos. Privados da companhia dos anciãos, os jovens são brutais, a sua beleza quase rude, o seu espírito inculto. Os
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velhos são raízes que prendem os novos ao seio pátrio. Lars levantou os olhos para o céu, onde a Lua, tão velha e tão tranquila, resplandecia sempre. Adivinhou o desespero de Sara. Era moça e infeliz porque lhe faltava a prudência paterna e a doce ternura materna. Os velhos queriam rejuvenescer - oh, lamentável erro de alguns anciãos! - e os jovens sentiam-se roubados e perdidos. Depreciavam os velhos, que bem o mereciam, e desesperavam-se por não poderem querer-lhes.
Compreendeu que não estava na sua mão dar felicidade a Sara. Nascera num mundo desequilibrado, e unir-se a ela equivaleria a perder-se com ela. Encolheu os ombros e aceitou a tristeza de renunciar voluntariamente à rapariga.
Dirigiu-se para o automóvel, mas, já com a portinhola fechada, ainda hesitou. Onde estaria Mary, naquele edifício todo cinzento ao luar? Não sabia onde procurá-la. A orquestra tocava uma última valsa. Através dos vidros distinguia silhuetas enlaçadas. Invadia-o uma imensa solidão.
Naquele momento Deborah saiu e aproximou-se dele.
- Mary e eu estamos na horta - explicou sem rodeios. - Acabo de dar-lhe uma triste notícia.
- Pode a tristeza aproximar-se só de vocês duas ?
- perguntou Lars, um tanto divertido.
A rapariga contou-lhe em poucas palavras o que sucedera, e ele saiu do automóvel.
- Onde é a horta ? - perguntou.
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Deborah indicou-lhe o caminho com o dedo e ele afastou-se. A rapariga ficou a olhá-lo quando, de súbito, sentiu um braço rodear-lhe a cintura: Donald.
Andei à tua procura por toda a parte - disse
ele. Vem, é a última música.
Entraram os dois em casa.
Não sabia se querias dançar - murmurou ele.
- Porquê?
por causa... das más notícias.
Minha própria mãe me teria aconselhado a dançar. Negar-me seria descortesia.
Na horta Lars viu a pálida sombra de Mary destacando-se sobre o fundo escuro das árvores.
EstoU desolado - começou a dizer em tom um
pouco solene. - Ia-me embora sem me despedir de ninguém, irias com pena de não a ver. Foi então que sua irmã me comunicou a má notícia. Não podia supor que receberia um golpe tão brutal quando me
dispunha a partir.
Obrigado - disse a rapariga, estendendo-lhe a
mão.
O rapaZ sentou-se a seu lado e não lha largou. Agora parece-me que não posso abandoná-la
assim.
Ias tem de partir. Agora mais do que nunca.
Meus pais lho aconselhariam e a mim também. Gostaria tanto de poder ir... Sei que morre muita gente na
Coreia.
Mary já não chorava. com o seu sentido prático
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habitual, via a realidade das coisas: Deborah casaria com Donald e ficaria na América; mas ela, que faria? Não desejava ficar.
Lars apertou-lhe a mãozita.
- Escreve-me para a Coreia? - pediu. A rapariga fez um gesto afirmativo.
- Escreverei com muito gosto.
Depois falou tranquilamente da morte de seus pais.
- Naturalmente estarei muito perto do sítio onde eles se encontravam - disse Lars.
Admirava-se de sentir tanta harmonia entre eles, e lutava com o desejo de apertá-la nos braços. Tal pressa não convinha aos acontecimentos. Escrever-lhe-ia, ela responder-lhe-ia e, mais tarde, talvez...
- Tenho de separar-me de si - suspirou por fim.
Ela soltou a mão e levantou-se.
- Sim, é necessário partir. O baile está quase a terminar e não tarda que seja dia.
A rapariga hesitou e levantou a cabeça para ele. Era muito mais alto do que ela.
- Esta noite toda a minha vida mudou - confessou.
- Compreendo - respondeu Lars.
Mary estendeu-lhe a mão e ele levou-a aos lábios.
- No meu país é assim que um homem expressa a sua admiração por uma mulher.
Apertou-lhe a mão, inclinou-se e, por fim, afastou-se. Ela seguiu-o com o olhar.
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Quando Mary ouviu o roncar do motor, voltou para a sala-de-baile. Deborah dançava com Donald. Ford continuava sentado ao lado de Sheldon. Ao ver Mary este levantou-se e foi ter com ela.
- Divertiste-te muito? - perguntou.
Tinha o coração tão apertado que não sabia como dar-lhe a notícia. Esta noite? Amanhã? Não, não, não se devia esperar mais.
- Mary - começou em tom solene - tenho de anunciar-te uma coisa terrível. Não sei como começar. Tem coragem, minha filha, e não te esqueças de que tens aqui um lar para todo o tempo que quiseres. E a tua irmã também, evidentemente.
A rapariga pousou o olhar penetrante naquele rosto cheio de pueril bondade.
- Já sabemos - informou. - Já nos disseram.
- Oh! Quem? Proibi expressamente que vos falassem disso antes de acabar o baile.
- Deborah disse-mo, com toda a bondade. Foi Donald quem lhe contou a ela, ternamente.
Sheldon cerrou os dentes. Fora Lillian, sua mulher..
Mary pôs-lhe a mão no braço.
- Peço-lhe que não se zangue com ninguém. Puseram-nos ao corrente de tudo numa atmosfera de felicidade... O papá e a mamã deviam ter querido que fosse assim.
- Quero que se sintam aqui como em vossa casa
- repetiu o pai de Sara.
- Deborah sente-se - declarou Mary. - Ela de-
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pois explica-lhe. Quanto a mim, onde quer que viva será aqui que deixo um pouco de mim mesma.
- Não compreendo-balbuciou o senhor Sheldon.
- Oportunamente o compreenderá. Todos devemos esperar a obra do tempo.
Antes que pudesse encontrar qualquer resposta para esta frase tão típica de Mary, sempre prática e razoável, mesmo quando repetia lugares comuns, Sheldon viu Sara
descer a escada com a mãe. Ambas eram belas e majestosas; não podia afastar os olhos delas.
- Tão belas e tão orgulhosas - murmurou Mary.
- Tão americanas. É difícil distinguir a mãe da filha.
Ford Hammerwood levantou-se ao vê-las. Dirigiu-se-lhes com os lábios enrugados num sorriso.
Já nos últimos degraus, a senhora Sheldon deteve-se e fez um sinal à orquestra. A música interrompeu-se.
- Creio que todos se divertiram e agradeço-lhes o terem vindo - declarou com voz clara. - Antes que partam, Sara e seus pais querem anunciar-lhes uma grande notícia. Onde está Ned?
Ford, sorridente, esperava.
- Diabos me levem se me levanto - murmurou o senhor Sheldon ao ouvido de Mary.
- Não sei onde está Ned - prosseguiu a senhora Sheldon, em tom jovial, sem deixar de perscrutar à sua volta; - pior para ele. Ouçam: Sara e Ford estão noivos. Ainda não se fixou a data do casamento. Venha, Ford.
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Sara pegou na mão do velhote e todos aplaudiram, sorrindo.
- Pobre velho! - suspirou Mary.
- Não era isto que eu queria, mas que posso fazer ? - murmurou Sheldon.
- Isto: quando Sara voltar, infeliz, não se zangue com ela. Acolha-a e ajude-a. Há sempre ocasião de ajudar.
- E agora um pouco de ver... dadeira mu...música - exclamou Sara, por cima da cabeça dos seus convidados, começando a gaguejar. - Um pouco de j... jazz.
Numa algazarra de ruídos discordantes, com ritmo louco, a orquestra atacou uma música diabólica, tão infantil como um vagido de recém-nascido e tão velha como o homem da selva.
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AMOR E LAR
Sentado na biblioteca da sua casa confortável, Maxwell Coombs esperava Francesca, sua mulher. O aposento era pequeno, estava mobilado com gosto e tinha uma janela
que dava para uma alfombra que se inclinava em suave declive até um arroio. Uns grupos de arbustos, bem dispostos, assinalavam os jardins dos vizinhos. Nem um nem
outro teriam vivido felizes sem vizinhos; no entanto, não tinham desejos de vê-los de cada vez que chegavam à janela.
Max supunha que, pelo menos sobre aquele ponto, Francesca estava de acordo com ele. De um dia para o outro, porém, tudo podia mudar. Nos dois últimos anos, durante
os quais Francesca desempenhara o papel principal na peça de êxito da Broadway Três vezes um, Max acostumara-se a viver com a mulher que era sua legítima esposa,
Francesca Coombs, em solteira OMalley, mas que nada se parecia com a Francesca com quem casara, a qual, pelo seu lado, era também diferente da rapariga por quem
se enamorara.
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A Francesca, que vira pela primeira vez, fazia o papel de ingénua na peça O Campo Dourado. Fixara-a porque só ela lhe parecera suportável numa obra que Max achara insuportável. Por acaso, anunciara essa opinião na crítica que, depois da meia-noite, escrevera para o jornal, acrescentando que a peça não valia nada. Uma vez terminado o artigo, deitara-se, resolvido a só se levantar para comer.
Porém, antes das dez, despertou-o uma voz forte e clara que o chamava de baixo.
A desculpa da criada, dizendo que ele estava a dormir, de nada servira.
- Então que se levante. Aliás, a sua consciência não deve deixá-lo dormir - dissera a voz juvenil. Max ficara um bocado mais na cama, gemera um pouco, como sempre
que o despertavam, e levantara-se. Aos tropeções alcançara o roupão, abrira a porta e saíra para a escada.
- Senhora Bailey, quem está aí?
Respondeu a rapariga em lugar da senhora Bailey.
- Sou Francesca OMalley e estou aqui porque não me deixam estar noutro sítio.
Max assomara ao corrimão e distinguira um rosto fresco como uma primavera.
- Que quer você de mim? - perguntara com mau
modo.
- Você fez uma crítica da peça.
- Naturalmente.
- Os homens como você deviam ser fuzilados!
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- E os seres que escrevem obras daquela categoria deviam ser clorof ormizados.
O espírito entorpecido de Max compreendera, finalmente, com quem estava a falar.
- Ah! - exclamara. - Ê você ? Mas... a que vem tudo isso? Não me meti consigo; até disse...
- Como se atreveu a não se meter comigo ? Imagina o que fez? Fez com que os meus melhores amigos me detestem.
- Se tem amigos dessa categoria... Ela, porém, interrompera-o:
- Se, ao menos, se tivesse metido comigo também, a obra poderia fracassar decentemente, e todos continuaríamos a ser bons amigos. Se soubesse quanto trabalhámos! E agora ainda temos que vigiar o autor, não vá tomar alguma dose demasiado forte de narcótico ; era a sua primeira peça!
- Eu também tenho de ganhar a vida, e prefiro dizer a verdade, quando me é possível. Você é uma boa actriz, o resto não vale nada.
Ela engolira a custo a saliva, e sentara-se no primeiro degrau. Max ficara-se a observá-la a retocar o rosto, já de si deslumbrante.
A senhora Bailey, ao lado da rapariga, guardava um silêncio equívoco. Max chamou-a:
- Senhora Bailey!
- Senhor!
- Ponha dois talheres.
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- Para mim não, obrigada - dissera Francesca OMalley, levantando-se vivamente.
- Para si e para mim, peço-lhe. Quero explicar-me.
A actriz hesitara:
- Se não fosse ter fome... Bem pode pensar que me tirou o pão da boca. Contava trabalhar naquela peça durante seis meses.
Max insistira.
- Permita-me que lhe ofereça um bom almoço. A senhora Bailey tem um talento especial para preparar ovos com presunto. Espere, senhora Bailey; ainda tem dessas salsichas pequenas?
- Sim, senhor, mas queria guardá-las - respondeu pouco amavelmente a mulher.
- Apetece-me comê-las esta manhã. Queira sentar-se, senhora OMalley. Desço já.
Isto terminara com o mais delicioso almoço que jamais comera. Estava completamente de acordo com Francesca, que acusava os críticos teatrais de tipos ruins, e prometeu-lhe
encontrar uma boa peça para ela. Max perguntara a si mesmo se tinham existido alguma vez olhos tão lindos numa criatura humana, rosto tão belo e cabelos dum ouro tão claro. Era um pouco alta para o palco. Felizmente ele também era alto.
Mantivera todas as promessas e descobrira para ela Procurando um coração. Antes da estreia tivera ocasião de a pedir em casamento e de escrever um grande elogio da obra nas colunas do seu jornal.
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Tinham de casar no dia de Natal. Francesca escolhera aquela data para evitar que se esquecesse dos aniversários, fosse qual fosse a peça que estivesse a interpretar. Esta observação, no momento, pouco o impressionara; fora-lhe, porém, apreendendo o sentido durante os quatro primeiros anos de casado. Quando chegou o Natal fazia três meses que Francesca interpretava o papel de Clemence e Max sentira vagamente que, em vez de casar com Francesca, casara com uma rapariga tímida e reservada, recém-chegada do Maine, muito ingénua e simples, com pouca graça, e que se chamava Clemence Partrídge. Max queixara-se disso.
- Fran - dissera-lhe durante a sua lua-de-mel de três dias - deixa de representar e sê tu mesma, querida.
Ela abrira uns grandes olhos muito graves, donde parecia ter fugido o esplendor da juventude.
- Mas se sou eu mesma, Max - respondera. Ele não sabia explicar o que queria dizer; depois
de novo esforço renunciara a consegui-lo, resignado a terminar a viagem de núpcias com Clemence. Desde então ela interpretara o papel de senhora Chenery, e quando a obra fracassou, como ele predissera, Francesca trabalhou em Três vezes um, onde continuava triunfalmente a representar o primeiro papel. A senhora Chenery preocupara Max; fizera desabrochar em Francesca certas características diametralmente opostas a Clemence, e ele não estava preparado para isso; perguntava a si mesmo se aquela incarnação
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seria duradoira. A senhora Chenery comunicara um certo picante a Francesca; isso, às vezes, agradava-lhe, se ela não tivesse feito aproveitar dessa circunstância uns estranhos, a quem umas vezes Max desejava pedir desculpa e outras correr à cacetada. Quisera discutir com Francesca enquanto esta era senhora Chenery, mas ela replicara com um sorriso misterioso:
- Garanto-te, sou eu mesma, Max.
Uma noite chegou até a propor-lhe ter um nené. Ela resmungara, franzira a bonita boca, e respondera francamente:
- Gostaria de saber se alguma vez desejarei tê-lo.
Max ficara estupefacto, horrorizado. Os filhos tinham sempre feito parte da sua maneira de conceber a vida e recordou-lhe que, quando representava o papel de Clemence, lhe dissera que desejava um e que a sua vida não seria completa enquanto o não tivesse.
Ela limitara-se a encolher os ombros e a responder:
- Isso era então; agora... é agora.
Graças a Deus a senhora Chenery fora de curta duração e Max mostrava-se bastante satisfeito com a Linda actual em Três vezes um. A mulher jovem, moderna, elegante, activa, a mulher da época. Pelo menos acostumara-se.
Naquele momento ouviu abrir-se a porta principal,
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fechar-se de novo e uns passos rápidos subirem a escada. Deixara aberta a porta da biblioteca, pensando que Francesca entraria e imprimiria nos seus lábios
o boijo cálido e breve a que Linda o acostumara. Um beijo diferente daquele, abrasador e asfixiante, da senhora Chenery, mas de que gostava. Francesca subira directamente para o seu quarto, parecendo tê-lo esquecido. Um marido menos compreensivo do que ele mostrar-se-ia com frequência ofendido por estes esquecimentos. Uma vez fora suficientemente estúpido para se queixar, e ela perguntara-lhe :
- Então, se te esqueço, que vais fazer-me? Bates-me ?
- Não, Francesca; no entanto, gostava que soubesses que estou aqui.
- Geralmente, lembro-me.
- Geralmente és encantadora...
- Então, evoca nesses momentos - disse ela com a brusquidão de Linda, e logo a seguir, porque o amava verdadeiramente, acrescentou:-Vais talvez detestar-me, mas vale mais que te avise de que, desde agora até à nossa morte, muitos momentos haverá em que não pensarei em ti. Meu Deus! Até pode acontecer que, à hora do passamento, pense no meio de morrer da maneira mais elegante.
Max viu reflectir-se-lhe nos olhos, enquanto falava, uma espécie de sonho, e interrompeu-a:
- Por favor, Francesca, não penses já na representação dessa cena.
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Ela desatou a rir e depois passaram um dos serões mais agradáveis.
O silêncio era total na casa. Max suspirou, levantou-se lentamente, e, arrastando os pés, subiu a escada. Tentou abrir a porta de Francesca. Não compartilhavam do mesmo quarto, porque Francesca pretendia que uma actriz e um crítico não deviam ser obrigados a dormir no mesmo aposento. Tinha a certeza, dissera, de que haveria momentos em que Max desejaria sentir-se completamente livre para escrever o que quisesse sobre as actuações da mulher, e a ela, em tais momentos, agradaria também sentir-se absolutamente à vontade para o odiar sem ter de lembrar-se que era seu marido.
A porta estava fechada à chave. Ele suspirou novamente e encostou o ouvido à fechadura. A voz de Francesca elevou-se e Max distinguiu claramente:
- Não sou uma mulher? Por acaso não sangro quando me ferem, não choro quando me desprezam?
- Valha-me Deus! - gemeu Max.
A voz tornou-se num zumbido e, passado um momento, Max chamou da porta, alegremente:
- Francesca!
Seguiu-se um silêncio, até que, decorrido um bocado, ela perguntou:
- Que queres, Max ?
- Posso entrar?
Francesca abriu a porta de par em par.
- Max, descobri um papel maravilhoso!
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Ele ficou à porta, olhando-a fixamente. Francesca envolvera-se, da cabeça aos pés, numa colcha que tirara da cama, e cujas pregas tesas pareciam esculpidas. Os seus olhos eram trágicos e insondáveis.
- Mas Linda...
- Já me aborreci dela - declarou Francesca. As mulheres jovens e elegantes são tão superficiais... - E o contrato ?
- Oh! A peça continuará no cartaz. Verna deseja doidamente que eu desapareça.
Verna Leight era a substituta de Francesca. Max entrou e sentou-se no banco de tafetá cor-de-rosa, mas ela apressou-se a desalojá-lo.
- Não te sentes aí! - exclamou. - Esse banco tem o estofo rasgado e eu conservo-o para o decorador ver. Deves lembrar-te de que quando aceitei o papel de Linda gastei o dinheiro da primeira semana para estofar de novo o quarto.
Levou o marido para uma cadeira inglesa de madeira entalhada.
- Creio que não faria mal se rasgasse mais um bocadinho.
- Não, porque me fariam perguntas e eu gosto de ser sincera.
Max fingiu-se surpreendido:
- Deveras?
Ela percebeu e exclamou, indignada:
- De sobra o sabes, Max Coombs; interpreto sempre um papel exactamente como o sinto.
- Estou persuadido disso. Onde está a obra?
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Ela pegou num monte de folhas dactilografadas e deu-lho. Max viu o nome do autor na primeira página e resmungou:
- Este velho beberrão!
- Não é velho, tem uns quarenta e cinco anos, mais ou menos. Em todo o caso ainda não fez cinquenta.
- Um beberrão - repetiu ele, com firmeza. A sua última peça era um aborto.
- Esta é divina.
com olho experimentado, Max percorreu as folhas. Na terceira apareceu-lhe a futura personificação da mulher. Leu as suas falas e tomou-lhe cada vez mais aversão; uma mulher dramática, sentimental, que se apiedava de si própria, maldizia a natureza por não a ter feito homem e, segundo o costume da época, punha as mulheres sob um microscópio para descobrir o que não funcionava bem, como se só ela pudesse dar-se conta do desarranjo. Max resistiu ao impulso de atirar o manuscrito por ares e ventos. No entanto declarou, com o seu ar mais frio de crítico:
- Lamento ser obrigado a dizer a minha opinião sobre esta comédia.
Viu as faces de sua mulher corarem e, logo a seguir, tomarem a cor normal.
- Maxwell Coombs, sabes o que dizem de nós ?
- Não sei nem me interessa.
- Desconfio que tens tantos ciúmes dos meus
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êxitos que nunca farás crítica favorável a uma peça onde eu entre.
Max esforçou-se por sorrir, mas ela continuou séria.
- Sabes o que vai acontecer?
- Nunca sei o que vai acontecer.
Ela andava dum lado para o outro, duma maneira de que ele gostava: a maneira de Linda.
- Não tarda que os empresários tenham medo de me contratar para primeira figura das suas peças.
- Fazes-me orgulho, querida, mas sei que não me ligam tanta importância - replicou ele com falsa modéstia.
De repente ela tirou a máscara de Linda.
- Claro que és um homem importante! - afirmou ternamente.
Deixou-se cair aos pés do marido e ficou silenciosa, a reflectir, durante uns instantes. Depois tirou a colcha, uniu as mãos sobre os joelhos de Max, apoiou nelas o queixo adorável, e olhou-o com olhos de Francesca.
- Suplico-te, Max, não leves a mal querer esta peça. Concede-lhe uma probabilidade de êxito.
Enquanto contemplava os olhos de sua mulher, uma ideia tomou corpo dentro dele, adejou na sua mente como um pássaro que descesse pela chaminé.
- Escuta-me - começou, lentamente.
- Dize - pediu Francesca, muito dócil.
Max não pôde resistir à tentação de levantá-la nos braços, sentá-la nos joelhos e beijá-la muitas vezes.
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Felicitou-a pelo brilho do cabelo, sem perder de vista a sua ideia.
com grande e íntima satisfação, verificou que ela correspondia com entusiasmo às suas efusões, perguntando logo a seguir:
- Não ias a dizer-me qualquer coisa ?
- Não te disse que te amo ?
- Oh, isso!... - exclamou ela, fazendo duas covinhas nas faces. - Queria falar de...
- De qualquer coisa mais prática - interrompeu ele. - Neste momento o meu amor é o que há de mais prático, de mais real, de... - calou-se, lembrando-se de que, quando um daqueles momentos passava, passava de facto, e não tinha remédio senão esperar por outro.
A mulher continuava confortàvelmente sentada nos joelhos dele, rodeando-lhe o pescoço com o braço. Max voltou a considerar a sua ideia.
- Tenho uma ideia - afirmou.
- Exterioriza-a - pediu ela, beijando-o.
- É simplesmente isto: vou escrever uma peça teatral para ti. E que peça!
Francesca ficou tanto tempo calada, que Max se voltou para lhe ver o rosto.
- Bem - perguntou - que se passa nessa cabeeita?
Francesca passou os dedos delicados pelos cabelos.
- Saberás escrever uma peça ?
- Há muitos anos que ando a explicar aos outros como elas se fazem.
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- Ah! - exclamou ela, como que assaltada por mil dúvidas.
Max fê-la descer dos seus joelhos.
- Escuta-me um momento, rapariguinha. vou escrever uma peça para ti e encerrar-te nela para todo o tempo que te resta de vida. Obterás um êxito tão grande, que nunca mais quererás interpretar outra ?coisa.
- Prometes?
- Prometo.
- E entretanto?
- Acostumei-me à minha velha Linda - declarou ele sem o menor respeito; mas pensava já em enterrá-la.
A obra era inspirada. Seria inútil pretender o contrário. Max mendigou, pediu emprestado, roubou tempo ao seu trabalho; conseguiu que Benny Wales escrevesse as críticas em seu lugar e rangeu diária mente os dentes ante a brandura da pena do seu substituto. Em Broadway apresentava-se em cena uma enormidade de literatura sem valor: faltava Max para meter todos na ordem. Deixou, no entanto, que as coisas seguissem assim; absteve-se primeiro de ler a coluna da crítica, depois de ler o jornal e acabou por se limitar a comer quando se sentia abatido e a deitar-se para dormir quando o cérebro se recusava a trabalhar.
Até concluir o plano da obra, nunca trabalho algum lhe parecera tão árduo. Daí em diante, porém,
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tudo foi fácil. Quis descobrir qual a Francesca que preferia, para fazer dela a esposa com que sonhara. Podemos compará-lo a Pigmaleão. Ele era o Pigmaleão e ela o mármore que esperava ser esculpido. Serviam-lhe de ferramenta as palavras brilhantes e aceradas.
Durante semanas evocou dificilmente a mulher dos seus sonhos, e deve dizer-se, em abono da verdade, que a Francesca viva nunca lhe perguntou se já começara a escrever ou se o trabalho ia adiantado. Continuava a sua tarefa, mantinha-se uma Linda estranhamente dócil, aguardando a troca da sua personalidade.
Quando Max a evocou, quando a viu claramente, tal como desejava, quando viu o seu amor, a sua mulher, perguntou-lhe:
- Importavas-te que lhe chamasse Francesca ?
- Não, se isso pode ajudar-te.
- Efectivamente, facilitar-me-á. Estou tão louco por ela que gostaria de chamar-lhe Francesca.
Ela sorriu duma maneira esquisita, que ele se apressou a introduzir na obra. Naturalmente, suprimiu muitas coisas, mas também acrescentou outras. Fez entrar na peça Clemence, a senhora Chenery e Linda; ele também entrava, no papel de um tipo alto, obstinado e inflexível, à procura de sua mulher. Descobriu-a numa Francesca desconhecida, numa jovem que, algumas vezes, o olhara com olhos de Francesca, que lhe falara, ainda que raramente, com voz de Francesca, numa mulher que nunca conseguira que
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permanecesse a seu lado. Na peça que escreveu ela ficava junto de si e dava-lhe um filho.
Uma vez terminado o trabalho, entregou-o a Francesca.
- Leremos juntos ? - perguntou ela.
- Não é possível - declarou Max, abanando a cabeça. - Se não gostasses, dela ou da peça, não poderia suportá-lo.
Francesca disse, gravemente:
- Eu não saberia fingir.
- Já sei.
Leu a obra sozinha, naquela noite, enquanto o marido roía as unhas na biblioteca e quase endoidecia de raiva ao percorrer os artigos escritos sob a direcção de Benny. No dia seguinte voltaria ele com a sua sã virulência contra todas as nulidades do teatro. A ideia da sua própria obra deteve-o por um momento. Sentiriam tanto entusiasmo pela crítica sincera os seus companheiros de profissão e simultaneamente escritores? Ficou um momento perturbado com a seriedade dum homem que deu demasiados encontrões no decorrer do seu caminho. Depressa se recompôs. Não, se Francesca e ele, com juízo severo, achassem a obra medíocre, esta não veria nunca as luzes da Broadway. Queria ter a certeza, como haviam de tê-la todos, de que a obra era digna dos que lhe tinham dado vida. Se falhasse, o coração despedaçar-se-lhe-ia, pois estava enamorado de Francesca e desejava vê-la viver eternamente. Atirou os jornais ao chão e deixou-se ficar, sentado, com a cabeça entre as mãos.
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Era meia-noite quando ela abriu a porta, e Max notou imediatamente que Linda desaparecera. Viu em seu lugar uma mulher cheia de ternura, uma verdadeira mulher e não uma mulherzita, uma dessas cabeças ocas que tanto detestava. Fizera da sua Francesca uma mulher de membros torneados, uma mulher sensual sem excesso, cheia de bom senso, de inteligência e sensibilidade. Um temperamento ardente e generoso, que gostava de crianças, e não só das que eram suas.
Ela entrou na biblioteca e ficou de pé, com o manuscrito encostado ao peito.
Max adiantou-se, pegou nos papéis e atirou-os para cima duma cadeira.
- Oh, Francesca, choraste! - disse com doçura.
Ela fez um gesto afirmativo e as lágrimas voltaram a cair-lhe dos olhos.
- Não pude evitá-lo-confessou humildemente.- Foi por me teres feito exactamente como eu queria ser. É uma obra magnífica! Obrigada, Max! Gostaria de representá-la toda a vida.
Ele tomou-a nos braços e apertou-a ao coração sem dizer nada. Toda a sua vida! Pronunciara a frase eterna. Não, essa frase não existe realmente. "Toda a minha vida" é uma frase de sonho. Pode significar muito tempo; não é, porém, a eternidade. Continuava com Francesca nos braços, triunfante por tê-la conquistado, e começou a fazer projectos para a conservar.
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Principiaram os ensaios. Francesca despojou-se de Linda, satisfeita, como se largasse um vestido demasiado estreito.
- Alegro-me por me teres livrado desta mulher
- confessou.
Converteu-se rapidamente na Francesca de Max. Vivia com a peça, falava dela, dormia com o manuscrito debaixo do travesseiro para que, dizia, o seu cérebro se impregnasse dela. O seu entusiasmo divulgou-se nas notícias e nas conversas, e o entusiasmo alheio aumentou o seu, a tal ponto que Max começou a ter medo do que fizera.
- Supõe que, no fim de contas, a obra não presta. Nem tu nem eu somos imparciais - observou uma noite.
Iam deitar-se, tarde, demasiado tarde, após um ensaio de catorze horas. Ela deu um salto.
- Já está o crítico a denegrir uma obra ainda antes de... Desconfio que vais fazê-la em tiras na tua coluna do jornal.
- Nesse dia será o Benny quem escreverá o artigo, e Benny é demasiado suave para que o receemos. Não quero ver-te destruída.
Ela desatou a soluçar e Max procurou consolá-la, mas em vão.
- Estou vencida. Converti-me inteiramente na "tua" Francesca.
Deixou de chorar e fitou-o com uma expressão nova nos formosos olhos.
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- Que é ? - perguntou Max, inquieto.
- Sim, sou tua mulher, Max, meu amor - murmurou ela.
- E depois?
- Quero ter um filho teu.
Ele assustou-se. Pensou ter cometido a pior das loucuras permitindo-lhe que tivesse o filho que tanto desejava no próprio momento em que ia interpretar o papel mais difícil da sua carreira. Mas não houvera maneira de negar-lhe aquele filho. Foi numa atitude quase religiosa que consultou o médico, no próprio dia da estreia, para ter a confirmação da existência da criança. Depois dessa consulta, Francesca sentiu-se cheia de confiança. O pano subiu para dar início a uma peça impecável e de grande profundidade. No dia seguinte Benny escreveu no jornal que jamais assistira a espectáculo tão belo.
Max, escondido no canto mais escuro dum palco atestado de gente, dera instruções para que não lhe falassem durante a representação. Sentia-se cada vez mais aterrado à medida que as cenas se sucediam. Que fizera ? Criara uma Francesca à medida dos seus sonhos; ela, porém, elevava esses sonhos a um grau muito mais alto. Riu-se, com riso nervoso, e os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas. Falou com o filho ainda por nascer: "Sabes que terás de vir em meu auxílio?" murmurou.
Mas quando, no Verão seguinte, a criança nasceu, Max teve dúvidas. Como poderia ser-lhe útil uma
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coisa tão pequena? Sim, certamente cresceria, mas seriam precisos vários anos para que aquele pequeno ser pudesse expressar-se com clareza e convicção. Max pai fitou Max Coombs filho com certo ar reprovador.
- Não sabia que vinham ao mundo tão pequenos
- disse.
Francesca abriu os olhos cansados.
- Mas não é pequeno: pesa três quilos e novecentos! Dá-mo.
Quando a enfermeira lho entregou, Francesca pôs a criancinha na curva do braço esquerdo e apontou para Max:
- Olha-o bem - disse ao menino adormecido. É um crítico. Não faças caso do que ele diz. Já começa a criticar-te a ti também.
Tinham-se suspendido as representações. Ninguém pensava em substituir Francesca. Quando, passadas seis semanas, o espectáculo recomeçou, Francesca apareceu mais bela do que nunca, e os jornais afirmaram que a interpretação era agora, se possível, superior às da primeira série.
A criança desenvolvia-se graças aos cuidados da mãe. Tinham contratado uma ama para permitir que Francesca dormisse de manhã, pois o Max pequeno acordava, geralmente, cedo; durante o resto do dia, no entanto, era cuidado com adoração por sua mãe que, antes de partir para o teatro, ia sempre aconchegar-lhe a roupita do berço, com extremos de ternura. Esta abnegação surpreendeu Max, pois não era o
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prolongamento da Francesca da peça. Porém, nada disse, e até se censurou por esta manifestação do seu desagradável espírito crítico. Deixou-se absorver por uma alegria que nunca conhecera, embora tivesse sido sempre feliz. Francesca nunca fora tão bela, tão adorável. Chegava a supor que a Francesca que criara era verdadeiramente a sua, que cristalizara o verdadeiro "eu" de sua mulher. No entanto, não estava absolutamente certo disso.
As representações sucediam-se com um triunfo fabuloso, pelo qual ambos se deixavam arrastar. Naquela atmosfera de alegria e encanto, o menino crescia maravilhosamente. Começou a gatinhar, depois a andar e por fim a falar. Adorava a mãe e não ocultava que a preferia ao pai. Francesca correspondia inteiramente (a este carinho. Quanto a Max, mantinha energicamente a sua posição no triângulo familiar, sendo, contudo, forçado a confessar que o filho era um rival impiedoso.
As vezes, quando acordava durante a noite, Max pensava que aquela felicidade era demasiado perfeita para durar. Chegaria o dia, a hora, o minuto em que ela... Então, resolutamente, fazia por dormir.
O inevitável deu-se numa manhã de Março, quando a obra tinha cerca de três anos e o menino dois. Francesca resmungou ao acordar, e Max sentiu que aquele resmungo traduzia qualquer novidade. Estava a barbear jse, fazendo o mínimo ruído possível, porque abrira silenciosamente a porta do quarto da mulher
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para poder admirá-la enquanto dormia. Viu-a sentar-se, alisar nervosamente o cabelo para trás, deitar um pé para fora e depois o outro.
- Que é? - perguntou ele. - Estás bem? Resmungara de novo.
- Creio que sim.
Max largou a navalha, limpou o sabão que tinha no queixo e entrou no quarto da mulher.
- Não devia ter-te despertado.
- Não me despertaste-replicou ela em tom indiferente. - Já tinha acordado ou quase. Estava a pensar.
Max sentiu um calafrio.
- A pensar?
Ela, sentada na cama, com uma camisa de dormir vaporosa e o cabelo solto caído sobre os ombros, parecia um anjo numa nuvem.
- Escuta, Max... - começou. - Não te aborrecerás ?
Ele abanou a cabeça.
- Ainda que tenha de me aborrecer, quero saber o que se passa.
- Mas não gosto de causar-te aborrecimento.
-Não sejas tonta. Sou feito de barro de modelar.
Ela riu-se, puxando o cabelo para trás.
- Max, começo a estar um pouco cansada da peça... Oh! Não é da obra em si, mas de repetir sempre o mesmo.
Já estava. Max engoliu a pílula corajosamente.
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- Não te censuro - disse amavelmente. - Durou muito tempo. Tens outro papel em vista ?
Ela olhou-o de alto a baixo.
- Por que não escreves outra peça ?
- De que é que gostavas ? Esperou. Ela reflectiu, e depois disse:
- Talvez uma jornalista, ou mulher de acção; uma coisa atraente.
Max sentiu o sangue subir-lhe à cabeça ao ouvir falar duma mulher de tal categoria.
- Não me julgo capaz de escrever outra peça.
- Não sejas modesto - disse ela docemente. Sabes bem que eras capaz. Muitos jornalistas dizem que és um escritor teatral nato.
Ele abanou a cabeça decididamente.
- Dizem isso porque são meus rivais. Não, Francesca, seria impossível. Escrevi para ti tudo quanto tinha dentro de mim; a partir de agora limitar-me-eí a destroçar as peças dos outros.
Não cedeu. Quando ela declarou que iria para Hollywood, replicou filosoficamente:
- Saberemos tirar-nos de apuros, o Maxie e eu. Tal não aconteceu, porém. Quando anunciaram
que Eunice Fram substituiria Francesca, imediatamente lhe foram propostos numerosos papéis, e ela escolheu rapidamente o de Lady Susan, que já tivera êxito em Londres.
Max leu a peça, e foi obrigado a concordar, embora de má vontade, que era muito boa. Achava Lady Susan excessivamente snób, mas tinha boas qualidades.
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Disse para consigo que poderia suportá-la durante um par de temporadas, e preparou-se para a transformação.
Apesar de tudo, os ensaios não foram fáceis.
- Desempenhei muito tempo o papel de Francesca. Não consigo entrar na personagem de Lady Susan.
Durante vários dias, Francesca mostrou-se aborrecida, facilmente irritável. Maxie chorou muito, e Max passou mais tempo com ele. Procurava acalmá-lo, explicando-lhe o que era a vida duma actriz. Não tinha a certeza de fazer-se entender. Ao fim e ao cabo, o vocabulário do filho não chegava até à palavra "temperamento", não obstante o miúdo possuir uma boa dose dele.
- Creio - disse Max a Lady Susan ao fim de algumas semanas - que o menino está prestes a adoecer.
Max estava na biblioteca e ela regressava do ensaio geral. Deteve-se na escada.
- Meu Deus! Oxalá que não. Agora que julgava ter-me compenetrado do papel...
- Está bem -disse ele. - Vamos vê-lo juntos. Subiram e ele notou que Francesca se convertera
em Lady Susan. Mudara até na voz, falava secamente. Tinha a cabeça erguida como uma égua impaciente, e caminhava muito direita dentro da saia elegante e do casaco de mescla. Suspirou e abriu a porta. A ama saíra, mas o candeeiro da mesa de cabeceira
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estava aceso. Inclinaram-se ambos sobre a cama do menino. Maxie abriu os olhos e fitou os pais.
- Olá, rapaz!-disse o pai, alegremente. Maxie sorriu-lhe e olhou fixamente para a mãe. Os olhos piscaram-lhe e a boquita tremeu.
- Vamos, Maxie, filhinho, que tens? Era Lady Susan que falava.
Maxie deitou-lhe um olhar de rancor e começou a chorar. Max pegou nele e abraçou-o.
- Vamos, vamos - murmurou.
- Mas... tem medo de mim! - exclamou ela.
- Não - disse o marido. - Só tem medo de Lady Susan. - E continuou abraçado ao menino, que soluçava.
- É estúpido... - murmurou ela debilmente.
- Não há nada de estúpido nisto. É um pouco triste para nós dois, depois de nos termos acostumado a Francesca.
Ela olhou-o com uma expressão estranha.
- Não te preocupes connosco - acrescentou ele, num tom animado. - Maxie acostumar-se-á à medida que for crescendo.
- E entretanto... - começou Francesca.
- Continuarei a ser o mesmo - disse Max.
- Crês que faço mal ?
- Não, minha querida, não.
O menino, com a cara voltada para o lado oposto ao da mãe, já estava tranquilo.
- Bem sabes, Fran, que as crianças precisam de ter a certeza daquilo que somos.
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- Mas se sou a mesma... para ele.
- Precisa de compreender que assim é - respondeu Max, pacientemente. - Precisa de ouvir-te e ver-te sempre igual a ti mesma, e tu não o és.
Seguiu-se um largo silêncio. Max voltou a deitar o menino, baixou a luz, e saíram do quarto. Uma vez no patamar, Francesca disse:
- Deixa-me só por um momento.
- vou para a biblioteca - disse Max.
Ficou sentado, sem ler, à espera. Ao fim de pouco tempo - ou muito - meia hora certa, a porta abriu-se.
Na ombreira estava Francesca, com a sua velha bata azul, o cabelo solto, pronta para se deitar. Foi ter com ele e aconchegou-se-lhe nos braços, no sítio onde estivera o filho.
- Tonfêi um bom banho quente - disse em tom sonolento, sem o modo cortante de Lady Susan. Nem sabes como estava cansada.
- Não suponhas que te quero diferente daquilo que desejas ser - disse ele, inquieto. - Não serviria de nada se te constrangesses por minha causa ou por causa de Maxie. Notaríamos perfeitamente a tua falta de naturalidade e não daria resultado.
Que se passara naquela meia hora em que ela estivera só ? Dir-lho-ia alguma vez ?
- Sou natural, tonto - disse carinhosamente. Não quero ser uma mulher que faz chorar o filhinho. Continuarei a ser eu mesma. Quando o pano desce,
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desce sobre toda a representação, regresso a casa e volto a encontrar-me a mim própria.
- Isto -disse Max levantando a ampla manga da bata - pertence a Francesca.
Ela desatou a rir.
- És um velho astuto. Fizeste a Francesca à minha imagem.
E não quis acrescentar mais nada.
Max ficou surpreendido com a inteligência da mulher, e procurava uma palavra de admiração apropriada, quando ela lhe pôs um dedo sobre os lábios.
- Escuta - disse.
O menino voltara a chorar. Max ia a levantar-se,
mas ela não lhe deu tempo.
- Não, deixa-me ir eu. E saiu apressadamente.
Pela porta aberta viu-a subir a escada a correr, envolta numa suave nuvem azul, e um momento depois descer de novo. Apareceu à entrada da porta, abraçada ao menino, que lhe pusera os bracitos de
roda do pescoço.
- Já não tem medo de mim - disse meigamente.
Max contemplava-os com adoração.
- Agora compreendo por que motivo os pintores antigos pintavam sempre as mães com os filhitos.
Admirou um instante o grupo, dizendo para consigo: "Que formoso quadro!" Depois aproximou-se e rodeou com os braços a mulher e o filho.
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AMOR E ARTE
- Não o quiseram ? - perguntou Lyle. Gostaria de não trazer o vestido amarelo.
- Não, não o quiseram - respondeu Stan.
Os dois, de pé na cozinha, tinham os olhos fitos no grupo de barro que Stan trouxera, desembrulhando-o logo e colocando-o sobre a mesa. Assim que o mafêdo entrara, Lyle compreendera que se passara o pior: a negativa que temiam sem se atreverem a falar nela. Deixara de mexer o tacho que tinha no lume, tirara-o para cima da chaminé e fizera a pergunta cuja resposta adivinhava.
- Nunca fizeste nada melhor - disse sossegadamente.
O suor da fronte apartava-lhe uns fios castanhos que se enrolavam atrás das orelhas em graciosos caracóis. Os olhos negros mantinham-se calmos.
Stan fizera uma maqueta para um monumento dos mortos da guerra. Quando regressara da Europa, depois da batalha do "Bulge", não contara nada a
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Lyle, mas esta compreendera que, como consequência das angustiosas horas que vivera sozinho, tinha compreendido o significado da vida e da sua renovação. Sempre fora emotivo, de humor variável, propenso a alternativas de desânimo e exaltação. No seu trabalho actual notava-se, no entanto, um esforço para expressar a ressurreição da vida. A seu lado, Lyle aprendeu a conhecer outros escultores, e pensava que eram todos uns emotivos, obrigados a lutar com uma matéria recalcitrante que tinha de obedecer à sua inspiração. Esta luta era-lhes tão necessária como uma-pedra de afiar facas. Lyle já não se assustava por ver Stan atirar ao chão uma cabeça de barro, pisando-a até a tornar irreconhecível. Ao princípio, precipitavajse, horrorizada, para proteger o ser indefeso que ele criara, mas depois aprendeu a esperar pacientemente. Passado o desânimo, Stan recomeçava.
Olhou-o de soslaio. Era um homem enorme, nascido nos campos de trigo do Kansas. Lyle perguntava a si mesma porque se fizera escultor, em vez de ser lavrador, como o pai. Tinha os cabelos da cor das espigas, os olhos da tonalidade do céu do Kansas e as feições rudes. No dia seguinte ao seu casamento jamais se esqueceria - Stan vira-se ao espelho.
- Que pena não ter podido modelar a minha própria cabeça! - dissera. - Não a deixaria tão mal retocada. Parece feita a machado.
Em Paris, onde tinham passado um ano, deixara crescer uma barba tão amarela como o cabelo, mas
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no regresso, parecendo-lhe que aquilo era um pouco afectado, envergonhou-se e cortou-a. Lyle alegrou-se, porque gostava do queixo do marido. De resto, tudo nele lhe agradava e sentia-se satisfeita por ser pequena e morena, pois sabia que era esse o tipo de mulher de que Stan gostava. Dissera-lho ele, quando se tinham visto pela primeira vez, junto dos leões do Museu Metropolitano.
Cada vez que pensava naqueles leões, estremecia ao pensar o que teria sido de si se, naquele dia de Junho, não tivesse decidido comprar uma sanduíche e dar um passeio em vez de almoçar como de costume, e ele, levado pela sua fome habitual, tão voraz, não tivesse saído para comprar um grande almoço. Vira-a, apoiada num dos leões, a comer a sanduíche com ar pensativo, embora não pensasse em nada. Ao passar, deitara-lhe uma olhadela, dizendo com um amplo
sorriso:
- Olá, sanduíche!
- Olá, rosbife! - respondera ela.
Não eram, então, mais do que dois jovens estúpidos.
O que Lyle via naqueles olhos azuis escuros não lhe agradava nada.
- O almoço está pronto - disse de repente. vou pôr a mesa.
Ele continuava imóvel, com os olhos fixos naquelas figuras humanas que criara, naqueles homens de feições tensas, ávidos por alcançar uma região mais elevada.
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- Vai mudar de fato, Stan - tornou Lyle, ansiosamente.
Ele voltou-se, parecendo não a ouvir, e subiu a escada. Quando desceu, trazia o fato de trabalho: calças cinzentas de cotim e camisa azul de colarinho aberto. Sentou-se
à mesa, que ficava defronte da chaminé. O aposento era grande e tinham-no dividido em três partes: cozinha, sala-de-jantar e saleta. Lyle fazia sozinha todo o trabalho da casa, e era-lhe mais fácil tirar os tachos quentes do fogão e servir logo a comida. A imensa e velha chaminé da Pensilvânia era apropriada para uma vida campesina. Nem ele nem ela gostavam dos costumes da cidade.
Lyle fizera carne guisada, segundo uma receita que lhe dera uma francesa no Verão em que tinham percorrido a Bretanha a pé, e acrescentara batatas e ervilhas colhidas na horta. As maçãs de Verão estavam a amadurecer, e ela assara algumas, regando-as com sumo de limão e muito mel, e perfumando-as com canela. Levavam-lhes o leite duma granja próxima e Lyle fazia ela própria o pão. Depois de terem comido o pão de França, não se tinham habituado ao da padaria. Stan gostava de ter um naco ao lado do prato, desmiolá-lo, e comer grandes bocados untados de manteiga.
Lyle não tentou falar. O que lhes acontecia era catastrófico, e as palavras não serviriam de nada. No princípio de casados, cometera a tolice de querer animar Stan, como sua mãe tentava animar o marido. Agora Lyle perguntava a si própria se o pai não se
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teria também aborrecido sem nunca se atrever a dizer nada. Stan tinha ousadia para dizer tudo. Quando, pela primeira vez, notara que ela se esforçava por animá-lo, gritara furioso:
- Cala-te por uma vez! Estou doido de raiva e quero continuar assim.
- Gostas, por acaso ?
- Gosto de ser como sou.
Quando, depois daquela noite sombria, ele voltara a ficar calmo, esforçara-se por convencê-lo:
- Stan, devias evitar as tuas mudanças de humor.
- Porquê ?
Lyle precisara de muito tempo para se acostumar à brusquidão do marido.
- Porque essas tuas diferentes disposições são passageiras e só servem para te ocultar a verdade. As coisas só existem para ti através da tua maneira tte sentir.
- A minha maneira de sentir sou eu, tal qual sou.
- No dia seguinte és um homem absolutamente diferente.
- De acordo, sou um homem diferente.
Ela era teimosa e, apesar da sua pequena estatura, não quis ceder.
- Corres o perigo de, durante um dos teus acessos de mau humor, praticares uma acção contrária à tua natureza.
- Expiarei os meus actos.
As vezes dizia para consigo: "É mais duro do que o mármore que esculpe". Apesar de já estarem casados
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há sete anos, ele em nada mudara. Continuava exactamente o mesmo que fora aos vinte e dois anos. Era absurdo casar-se tão novo. Ela só tinha vinte anos. Mas
por que havia de ser absurdo, se nem um nem outro estavam arrependidos?
Encheu o prato do marido e começaram a comer em silêncio. Os pássaros piavam sobre a ampla chaminé. Quando Stan deixava de acender o forno, os pássaros faziam lá os ninhos. Antes de voltar a acendê-lo, Lyle amarmhava por ali acima para se certificar de que estavam vazios. A chaminé era bastante ampla para se introduzir nela uma escada de mão. Às vezes um passarito caía do ninho, e então Lyle voltava a colocá-lo lá. Gostava das coisas pequenas e, às vezes, tinha pena de não ter filhos.
No entanto, Stan bastava-lhe e perguntava a si própria se, tendo um filho, poderia impedir que Stan se fosse embora. Sabia bem que ele lhe queria tanto quanto lhe era possível querer a uma mulher, mas o seu amor era superior ao de Stan, porque não tinha mais que fazer além de amá-lo e ele tinha muito mais a que se dedicar.
- Queres mais guisado? - perguntou.
Ele aproximou o prato, que Lyle voltou a encher. Stan comia exageradamente, mas, apesar disso, o corpo mantinha-se-lhe esbelto. Nunca se fartava. Entre as refeições, mordiscava um pãozito enquanto trabalhava. Talvez o bem estar do corpo lhe consolasse a alma e aliviasse o espírito. Ela também se sentia melhor à medida que ia comendo. Esperara
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um grito de furor, de indignação, mas o marido limitou-se a empurrar o jarro do leite.
- Já não temos vinho? Estou farto de leite!
- Temos uma garrafa de vinho tinto - respondeu.
Levantou-se, foi ao aparador buscar copos e colocou-os sobre a mesa. Depois desceu à cave para trazer o vinho. Stan fizera umas prateleiras para garrafas num canto fresco e sombrio. Na cave havia outro fogão; em tempos destinaram-no a aquecer água para a comida do porco e para lavar a roupa. Agora servia para guardar os cestos de fruta e de tomates, pois Stan fizera com umas tábuas uma espécie de armário.
Subiu, encheu os copos, e Stan bebeu o vinho a grandes goladas, entre bocados de pão e queijo.
- Dedicar-me-ei de novo à agricultura-declarou. Pareceu-lhe que a mão do marido lhe batera
em plena cara, mas calou-se. Olhou-o gravemente e esperou.
- Nunca farei nada melhor do que isto-afirmou apontando para o grupo de barro colocado sobre a mesa da cozinha.
- Sempre disse que era a tua melhor obra...
- Nunca farei nada melhor - repetiu ele, furioso.
- Se eles não o vêem, então nunca compreenderão nada de escultura.
"Eles" eram sempre os mesmos, os que apreciavam as maquetas, as escolhiam ou rejeitavam. Algumas vezes tinham pronunciado um juízo favorável,
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mas Stan esquecia-se disso. Em todo o caso, na maioria das vezes, a opinião era desfavorável.
- Gostavas de ser mulher dum lavrador? - perguntou fitando a mulher.
- Sim, se o lavrador fosses tu - respondeu ela, aliviada dum grande peso.
Stan não estava furioso, mostrava-se estranhamente satisfeito, quase alegre.
- Voltaremos a casar. Desta vez casarás com um camponês, com um rural que ordenhará as vacas. No fim de contas, gosto muito de leite. É melhor do que esta porcaria áspera que estou a beber - e afastou o copo.
- Iremos para o Kansas ? - perguntou ela.
- Não, cultivaremos mesmo aqui. Os nossos doze hectares chegam-nos. Teremos vacas e criação. Os agricultores não vão a Paris nem compram mármore. São pessoas independentes, que não precisam de suster a respiração enquanto uns tipos decidem se pode ou não continuar a viver.
- Como queiras, Stan.
Ergueu-se e levantou a mesa. O marido voltou a calar-se, fumou o seu cachimbo e bebeu o resto do vinho. Passado um bom bocado, tão grande que ela tivera tempo de lavar e arrumar a louça toda, levantou-se e saiu. Lyle pegou no cesto da roupa e sentou-se ao pé da janela.
Sentia um desejo louco de seguir o marido, de ir para junto dele. Assustava-a aquela calma. Estava acostumada às suas borrascas, aos seus gritos quando
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não conseguia que compreendessem o que queria exprimir. Aquele silêncio, aquela mansidão eram estranhos, pareciam a calma espantosa que precede o ciclone. Uma vez, de regresso ao Kansas, vira desencadear-se um ciclone e compreendera que nunca teria coragem para viver naquela região. Aterrorizara-a a ideia de que Stan pensasse em instalar-se lá, mas naquele ano tinham ido para Paris. Quando, meia hora antes, o marido falara em dedicar-se à agricultura, receara que ele pensasse voltar ao Kansas. Mas não, ficariam ali, segundo dissera.
Suspirou profundamente, de momento tranquilizada, e olhou pela janela. A seus olhos estendia-se a rica paisagem verde, sob um céu azulado. As colinas cobertas de árvores e os vales cultivados pareciam unir-se, no horizonte, ao céu sem nuvens. O arvoredo ocultava as granjas próximas, mas Lyle sabia que estavam perto; frescas casas de pedra, de paredes grossas e pesadas vigas. A casa deles era de igual construção e Lyle sentia sob os pés o sólido solo centenário. Não tinha remédio senão viver numa casa sólida, pois Stan era a tormenta, o vento, o furacão. Desejara aquela casa desde que a vira, casita de pedra, maciça, que apenas tinha uma divisão grande em baixo e duas no andar de cima. Por detrás de Lyle elevava-se uma escada de caracol. Stan conseguira pagar a casa toda graças ao seu primeiro êxito.
Temia o marido? Largou a costura sobre os joelhos. Sim, talvez o temesse um pouco. Mas o facto de se temer um homem não impede que se lhe queira.
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Aliás, não temia nada contra ela. Stan nunca lhe bateria. Se se sentia mal (porque era fraca e adoecia com frequência), Stan perdia a cabeça e pedia auxílio aos vizinhos, quase os endoidecendo. Da última vez, correra às granjas próximas à procura de mulheres, que tinham chegado, muito inquietas, uma hora depois. Lyle, muito fraca, desculpara-se:
- Não façam caso de meu marido: assusta-se quando me vê doente.
- Não me parece que você se encontre muito bem -. observara a senhora Mauser. - Vamos ficar para a ajudar um bocado.
- Seu marido é uma criança - acrescentara a senhora Bahn.
E tinham arrumado a casa e preparado comida pelo menos para três dias.
Stan não era uma criança. O seu corpo alto e juvenil encerrava uma alma tão grande como a de Fídias. Compreendia coisas que ela não alcançava. Lyle admitia que o marido vivesse ainda mil anos, enquanto que ela já não seria mais do que pó. Como imaginá-lo lavrador? Sorriu com o pensamento. No entanto, Stan era bem sucedido em tudo quanto se metia. Quando ele se sentava ao piano, ela escutava-o até sentir um grande cansaço, mas ficava, apesar de tudo.
- Por que não te dedicaste à música? - perguntara-lhe um dia.
- É demasiado fácil; com um piano não é preciso lutar.
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Se se fizesse agricultor, lutaria com a terra.
Ao longe ouviram-se umas pancadas. Levantou-se, deixando cair a costura no chão, e olhou para fora. Ressoavam marteladas tão formidáveis como um trovão no alto da montanha.
O ar estava pesado, sereno, e as pancadas ecoavam, de modo que ela não compreendeu logo donde provinham. Correu ao jardim, por detrás da casa, e escutou ao ar livre. As marteladas vinham do fundo do prado, donde começava a colina. A oficina de Stan era ali perto. Ele negava-se a chamar-lhe "estúdio".
- É o sítio onde trabalho com as minhas mãos
- dizia.
Desatou a correr, metendo-se pela vereda que Stan percorria todos os dias. A porta da oficina estava aberta. Lyle entrou. Achou-a vazia. A obra inteira de Stan, os bustos, as maquetas, os esboços, tudo desaparecera.
As marteladas tornavam-se ensurdecedoras. Vinham da pedreira. Lyle correu para lá. Chegou à beira duma cova profunda que tinham aberto e, no fundo da mesma, entre penhascos, Stan levantava o maço de pedra e deixava-o cair, golpe após golpe, com grande estrondo. Estava a destruir a sua obra. Os modelos de barro estavam feitos em bocados; Lyie reconheceu o do menino abaixado a apanhar um caracol, o menino de que tanto gostava, reduzido a um montão de destroços. Stan batia também no mármore, e a isso se deviam as marteladas que ouvira. Já quebrara uma figurita que a representava
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e o busto do próprio pai. Lyle permaneceu de pé, silenciosa, apiedada. Era inútil falar, tão inútil como levantar a mão para deter o vento, os relâmpagos ou a trovoada. Além disso, era tarde. Estava tudo destruído.
Stan levantou a cabeça e viu a mulher, e esta contemplou-lhe o rosto coberto de suor e de lágrimas, com mechas de cabelo amarelo pegadas à testa. Atirou o maço ao chão, sentou-se numa pedra e ocultou a cabeça entre as mãos. Ela também se sentou, à beira da cova. A erva cobria o solo duro e rochoso. O sol caía sobre ambos, mas ela estava mais protegida. No fundo, onde ele estava, o calor devia ser infernal. Lyle desejava ardentemente descer, pegar na mão do marido, animá-lo a subir, mas sabia que nada o faria ceder. Tinha de sofrer até ao fim para se libertar.
Continuou, por isso, sentada, esforçando-se por não soluçar. Amanhã arrepender-se-ia. Amanhã sentir-se-ia perdido sem aquele pequeno mundo criado pelas suas mãos. Já uma vez esmagara uma estatueta, mas nunca o fizera a todas. Talvez pretendesse encerrar toda a possibilidade de regresso àquele trabalho.
De repente, lembrou-se. Stan deixara o grupo de barro, o que se destinava ao monumento dos mortos na guerra, em cima da mesa da cozinha, ainda fora de perigo. Levantou-se fazendo resvalar algumas pedras. Ele olhou-a desabridamente.
- Onde vais ? - gritou.
Lyle não respondeu e desatou a correr. A saia
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prendeu-se-lhe num arbusto; deteve-se para desprender o vestido, o seu belo vestido amarelo. Ouviu Stan aproximar-se, já estava ao pé da colina; com certeza também se lembrara do grupo. Deu um último puxão na saia e continuou a correr. Perderia com certeza grande parte da vantagem que levava, porque nunca correra muito. Stan, porém, não a alcançaria, embora diminuísse a distância que os separava. Chegou primeiro à cozinha e trancou a porta. Correu à mesa e levantou o grupo nos braços. Protegeu-o assim, subiu a toda a pressa ao seu quarto e fechou a porta. Mas as fechaduras naquela velha casa não eram nada para a força lde Stan. Lyle ouviu-o entrar estrepitosamente na cozinha, parar à procura do grupo e logo a seguir subir a escada com passo pesado. Abriu bruscamente a porta do quarto, depois a da casa-de-banho e gritou:
- Lyle!
Ela não respondeu. Estava diante da maqueta, com a cabeça erguida e os braços para a proteger. Não tardaria a ser descoberta.
Ele rugiu de novo:
- Lyle!
Começou a trepar a escada do desvão. Ouviu-o subir o bastante para chegar ao ponto onde poderia vê-lo. Os passos
aproximaram-se e, com o ombro, Stan fez pressão
sobre a porta. A velha porta de nogueira resistiu e Lyle, na ponta dos pés, foi apoiar-se a ela.
- Lyle, tonta, sei que estás aqui.
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Como ainda não a vira, não podia ter a certeza, e por isso ela continuou calada.
Nada, no entanto, resistia à força daquele homem formidável e quando Lyle notou que a porta cedia e a fechadura se quebrava, correu para a maqueta, curvou-se sobre ela e rodeou-a com os braços. Assim a viu Stan. Parou, mas ela não se voltou.
- Lyle, que diabo estás aí a fazer ?
- Quero conservar esta - respondeu ela sem o olhar.
- Já te disse que não voltarei a trabalhar nisso. vou dedicar-me à agricultura.
- Mais um motivo para que conserve esta recordação.
Ele deixou-se cair numa cadeira.
- Meu Deus! - exclamou. - Que susto me pregaste ! Não compreendia por que fugias daquela maneira.
Ela continuava de pé, em silêncio, em atitude protectora.
- Lyle, senta-te - gritou ele.
- Não me sento enquanto não me prometeres que ma deixarás.
- Já não quero vê-la!
- Escondê-la-ei.
De repente começou a tremer. Aquilo era demais para as suas forças. Era filha de pais calmos, razoáveis e, pela primeira vez, desejara não estar casada com Stan.
Inclinou-se sobre a mesa e começou a chorar.
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- Que tens ? Lyle soluçava:
- Estou cansada.
Fitou-a, com os olhos sombrios.
- Senta-te - disse em tom peremptório.
Ela cedeu, sentou-se num velho banco de vime, apoiou os cotovelos na mesa e escondeu a cara com as mãos.
- Vais ficar outra vez doente. Ela abanou a cabeça.
- Não estou doente.
- Cansada de mim, suponho.
Stan nunca lhe falara daquele modo, e ela respondeu :
- É possível.
Seguiu-se um silêncio tão grande, que ela afastou as mãos dos olhos para o ver. Estava imóvel, a fitá-la, e pareceu-lhe muito pálido.
- Lyle, é por ter quebrado as minhas... as minhas coisas? - perguntou com uma voz esquisita, cheia de humildade.
Ela reflectiu. Seria devido a isso ?
- Não - disse em tom muito suave - não é só por isso. Parecesme demasiado violento para mim. Calou-se por momentos e depois acrescentou: - Sempre tive medo dos ciclones.
- Mas antes de te casares já sabias como eu era
- replicou ele.
Tinham-se unido durante um dos tais ciclones, como ela lhe chamava. Ele decidira de repente abandonar
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o seu trabalho com William Bentley, o maior escultor do país, apesar de ser uma honra ter sido chamado para o ajudar nos seus mármores. Mas um belo dia Stan,
resolvido a ir para a guerra, e preso no torvelinho duma decisão muito natural num rapaz, perguntara a Lyle se queria casar com ele. Ela resistira, dizendo que ele possuía um tesouro dentro de si e não devia desperdiçá-lo numa batalha. Chegara até a tentar convertê-lo, por motivos de consciência, em antimilitarista. Ele protestara,
escandalizado, e despedira-se, voltando pouco depois com a prova de que se alistara. Quando Lyle compreendeu que não havia remédio, cedeu, após um dia inteiro de discussão; ao anoitecer, o reverendo casara-os.
- É verdade - disse ela - sabia que espécie de homem és; mas não supunha que me cansaria tanto.
Assustara-o; via-o bem, mas continuou indiferente. Afastou um pouco o grupo de barro.
- Tanto me faz. Toma também este, quebra-o, Stan, se quiseres.
- Poeira volta à poeira-disse ele sombriamente.
- Não tem importância. No fim de contas, vai a dar no mesmo.
Ambos fitavam as figurinhas, ela com tristeza, ele com uma espécie de
repugnância.
- Lyle, querida - murmurou Stan, sem se voltar para ela, com os olhos sempre postos no grupo.
Ela abanou a cabeça:
- É verdade, tanto me faz. Pergunto a mim
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mesma por que gostava delas. Talvez o júri tenha razão; não valem tanto como supunha.
- Como não? O grupo é excelente!-exclamou ele. - O mal é esse. É demasiado bom.
- Se este grupo é demasiado belo para todos menos para ti, é exactamente como se o não fosse o bastante. Se não se pode viver a seu lado, tanto importa que seja
demasiado bom ou demasiado mau ; vem a ser o mesmo. Temos que viver!
Falava ao acaso, sem saber o que dizia, sem se preocupar com as palavras que pronunciava. No momento em que declarara que estava cansada, deixara-se cair num abismo
de fadiga. E quando se sentia cansada, dizia qualquer coisa, sem se interessar com o sentido das palavras, ao acaso.
Mas os olhos azuis, sombrios e ardentes, iluminaram-se subitamente.
- Diabos me levem se não acabas de dizer uma coisa importante, Lyle - declarou Stan, alegremente.
Levantou-se, com os olhos postos no grupo de barro, e, mergulhado em reflexões, deixou descair o lábio inferior. Começou a andar em
torno da mesa quadrada, observando com atenção as figurinhas, sob todos os aspectos. A isto chamava ele "rondar".
- À tua maneira, disse, com uma voz muito doce - acabas de
expriimir o que evocam estes tipos.
Ela olhou-o, depois examinou a atitude tensa daqueles homens, de mãos levantadas para o céu, rostos terríveis e despidos de qualquer sombra de resignação. Não era
possível viver junto deles, e é
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preciso viver tanto com os mortos como com os vivos. É preciso pensar que estão a dormir, descansando, e não vê-los lutar, com tanto ardor, para voltarem à vida.
Lyle sentia tudo isto sem saber traduzir os pensamentos por palavras.
- Quando os olho, canso-me - declarou.
- Sim - replicou o marido - bem vejo. Quando o marido pensava, a sua voz tornaVa-se
muito suave, e Lyle descansava ao escutá-la. Stan levantou o grupo para o levar.
- Vais parti-lo ? - perguntou ela.
- vou fazê-lo em papa - disse ele alegremente.
- vou atirá-lo à cova, Lyle. Mas sabes para quê? Porque vou recomeçar a fazê-lo. Já não vou tirar estes dos túmulos, pois foi isso que fiz.
Ela aprovou com um aceno de cabeça e afastou os olhos.
- Tenho de trabalhar todo o dia, Lyle. Não te importas? Tenho de reproduzi-los tal como os vejo agora.
- Bem sei - respondeu ela.
- Tu, descansa.
A voz de Stan estava cheia de ternura e exaltação.
- Está bem, Stan.
Deixou-o ir-se embora, depois deitou-se na cama e adormeceu.
- Oh, meu Deus! - disse, ao despertar, umas horas depois. - Morrerá de
fome, como de todas as vezes que se deita ao trabalho.
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A casa estava calma e silenciosa. Lyle molhou a cara com água fria, alizou o cabelo e desceu à cozinha. A porta pendia num dos gonzos e ela deixou-a ficar como estava.
Pôs a toalha e colocou sobre a mesa pão, manteiga e leite, compota de maçãs e queijo. Depois tocou a velha campainha, sentou-se e esperou. Stan chegou pouco depois.
Deteve-se àentrada da porta e em seguida, sem dizer nada, abriu uma arca que estava sob a janela, tirou uma turquês, um martelo e pregos. Tinha jeito para carpinteiro
e trabalhava depressa. Uma vez consertada a porta, voltou a guardar a ferramenta.
- Vamos - disse - tenho fome, e ainda preciso de trabalhar toda a tarde.
Sentaram-se e ele começou logo a comer o pão. Ela deitou leite para os dois e viu que Stan lhe estendia a mão enorme; colocou a sua na dele e o marido apertou-lha.
- Quando eu te desagradar atira-me à cabeça seja o que for.
Ela sorriu, com os olhos fixos na mão de Stan, que envolvia completamente a sua.
- Quero ser bom para ti - disse ele humildemente.
- Já sei.
- Oh, Lyle!-exclamou Stan ardentemente.- Nunca fiz nada que valesse tanto como o que estou a fazer agora!
- Já sei - repetiu ela.
Verificava que algumas palavras que dissera naquela tarde tinham devolvido ao marido toda a sua paixão pelo trabalho. Verificava sem saber explicar a razão por que assim acontecia. Às vezes, ao terminar um
serão de Inverno, os troncos estavam consumidos na vasta lareira, quase reduzidos a cinzas, mas na manhã seguinte voltavam a arder facilmente, desde que se soubesse
a maneira própria de os reacender.
- Come, Stan - disse ela.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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