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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR POR ANEXINS / Artur Azevedo
AMOR POR ANEXINS / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Esta farsa, entremez, entreato, ou que melhor nome tenha em juízo, o meu primeiro trabalho teatral, foi escrita há mais de sete anos, no Maranhão, para as meninas Riosa, que a representaram em quase todo o Brasil e até em Portugal. Pô-la em música e em boa música, Leocádio Raiol; mas ultimamente representaram-na sem ela, Helena Cavalier e Silva Pereira: desencaminhara-se a partitura. Tem agora nova música, e não inferior, de Carlos Cavalier.
PERSONAGENS: ISAÍAS (solteirão) INÊS (viúva) UM CARTEIRO


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A cena passa-se no Rio de Janeiro. Época, atualidade.
 
 
ATO ÚNICO Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d’água. Cadeiras.
 
 
CENA I
 
INÊS (cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela)  Lá está parado à esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver-me livre de semelhante cáustico! Ora, eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento, havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali! Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena)
 
COPLA
 
Eu que, por gosto, perdido Tenho casamentos mil, Com mais de um belo marido, Garboso, rico e gentil, De um velho agora a proposta, Meu Deus! devia aceitar? Demais um velho que gosta De assim tão jarreta andar! Nada! nada! Não me agrada! Quero um marido melhor! É bem mau não ser casada, Mas malcasada é pior.
 
Ainda hoje escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda em que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira) Ela aqui está. (Lê) “Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá-la no gozo da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela segunda vez. Ruim é quem em ruim conta se tem, e eu não me tenho nessa conta. Jamais senti por outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira.” (Declamando) Que enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler) “Tenho uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus melhora, e mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada a ninguém, e quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo seu, Isaías.” (Guardando a carta) Está bem aviado, senhor Isaías! Vou às compras; é um excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins. Vou preparar-me. (Sai pela porta da direita. Pausa)
 
 
CENA II
 
ISAÍAS (deita com precaução a cabeça pela porta do fundo)  Porta aberta, o justo peca. (Avançando na ponta dos pés) A ocasião faz o ladrão. Preciso estudar o gênio desta mulher: antes que cases, olha o que fazes. Dois gênios iguais não fazem liga; se a pequena não me sai ao pintar, para cá vem de carrinho. É preciso olhar para o futuro: quem para adiante não olha atrás fica; quem cospe para o ar cai-lhe na cara, e quem boa cama faz nela se deita. Resolvi casar-me, mas bem sei que casar não é casaca. Alguém dirá que resolvi um pouco tarde, porém, mais vale tarde que nunca. Deus ajuda a quem madruga, é verdade; mas nem por muito madrugar se amanhece mais cedo. Procurei uma mulher como quem procura ouro. Infeliz até ali! Vi-as a dar com um pau: bonitas, que era um louvar a Deus de gatinhas; mas... nem tudo o que luz é ouro; feias também que era um deus-nos-acuda; mas muitas vezes donde não se espera, daí é que vem. Quem porfia mata caça dizia com meus botões, e não foi nada, que enquanto o diabo esfrega um olho, cá a dona encheume... o olho. Pois olhem que não me passou camarão pela malha... Esta é viúva e costureira... Estou pelo beicinho, e creio que estou servido. Quem já deu não tem para dar, é certo; mas, ora, adeus! quem muito quer muito perde. Já tomei informações a seu respeito: foram as melhores possíveis; mas como o saber não ocupa lugar, e mais vale um tolo no seu que um avisado no alheio, observei-a. Eu sou como São Tomé: ver para crer. Vi-a andar sempre sozinha... e nada de pândegas! Dize-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens. (Examinando a casa) Boa dona-de-casa parece ser! Asseio e simplicidade. Pelo dedo se conhece o gigante. Há de ser o que Deus quiser: o casamento e a mortalha no céu se talham. (Reparando) Ai, que ela aí vem! (Perfilando-se) Coragem, Isaías! Lembra-te de que um homem... (Atrapalhando-se) é um gato e um bicho é um homem! Disse asneira.
 
 
CENA III Isaías e Inês.
 
INÊS (vem pronta para sair, ao ver Isaías assusta-se e quer fugir)  Ai!
 
ISAÍAS (embargando-lhe a passagem)  Ninguém deve correr sem ver de quê.
 
INÊS  Que quer o senhor aqui?
 
ISAÍAS  Vim em pessoa saber da resposta de minha carta: quem quer vai e quem não quer manda; quem nunca arriscou nunca perdeu nem ganhou; cautela e caldo de galinha...
 
INÊS (interrompendo-o)  Não tenho resposta alguma que dar! Saia, senhor!
 
ISAÍAS  Não há carta sem resposta...
 
INÊS (correndo à talha e trazendo um púcaro cheio d’água)  Saia, quando não...
 
ISAÍAS (impassível) Se me molhar, mais tempo passarei a seu lado; não hei de sair molhado à rua. Eh! eh! Foi buscar lã e saiu tosquiada!...
 
INÊS  Eu grito!
 
ISAÍAS  Não faça tal! Não seja tola, que quem o é para si, pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue! Não exponha a sua boa reputação! Veja que sou um rapaz; a um rapaz nada fica mal...
 
INÊS  O senhor, um rapaz?! O senhor é um velho muito idiota e muito impertinente!
 
ISAÍAS  O diabo não é tão feio como se pinta...
 
INÊS  É feio, é!...
 
ISAÍAS  Quem o feio ama bonito lhe parece.
 
INÊS  Amá-lo, eu?!... Nunca!...
 
ISAÍAS  Ninguém diga: desta água não beberei...
 
INÊS  É abominável! Irra!
 
ISAÍAS  Água mole em pedra dura, tanto dá...
 
INÊS  Repugnante!
 
ISAÍAS  Quem espera sempre alcança.
 
INÊS  Desengane-se!
 
ISAÍAS  O futuro a Deus pertence!
 
INÊS  Há alguém que me estima deveras...
 
ISAÍAS  Esse alguém (naturalmente) sou eu.
 
INÊS  Era o que faltava! (Suspirando) Esse alguém...
 
ISAÍAS  Quem conta um conto acrescenta um ponto...
 
INÊS  Esse alguém é um moço tão bonito... de tão boas qualidades...
 
ISAÍAS  Quem elogia a noiva...
 
INÊS  O senhor forma com ele um verdadeiro contraste.
 
ISAÍAS  Quem desdenha quer comprar...
 
INÊS  Comprar! Um homem tão feio!...
 
ISAÍAS  Feio no corpo, bonito na alma.
 
INÊS (sentando-se)  Deus me livre de semelhante marido!
 
ISAÍAS  Presunção e água benta cada qual toma a que quer... (Senta-se também)
 
INÊS (erguendo-se) 
 
Ah, o senhor senta-se? Dispõe-se a ficar! Meu Deus, isto foi um mal que me entrou pela porta!
 
ISAÍAS (sempre impassível)  Há males que vêm para bem. 
 
INÊS  Temo-la travada.
 
ISAÍAS  Venha sentar-se a meu lado. (Vendo que Inês senta-se longe dele) Se não quiser, vou eu... (Dispõe-se a aproximar a cadeira)
 
INÊS  Pois sim! Não se incomode! (Faz-lhe a vontade) Não há remédio!
 
ISAÍAS (chegando mais a cadeira)  O que não tem remédio, remediado está.
 
INÊS (afastando a sua)  O que mais deseja?
 
ISAÍAS  Diga-me cá: o seu noivo?... (Faz-lhe uma cara)
 
INÊS  Não entendo...
 
ISAÍAS  Para bom entendedor meia palavra basta...
 
INÊS  Mas o senhor nem meia palavra disse!
 
ISAÍAS  Pergunto se... fala francês...
 
INÊS  Como?
 
ISAÍAS  Ora, bolas! Quem é surdo não conversa!
 
INÊS  Mas a que vem essa pergunta?
 
ISAÍAS (naturalmente)  Quem pergunta quer saber.
 
INÊS  Ora!
 
ISAÍAS (sentencioso)  Dois sacos vazios não se podem ter de pé.
 
INÊS  Essa teoria parece-se muito com o senhor.
 
ISAÍAS  Por quê?
 
INÊS  Porque já caducou também.
 
ISAÍAS (formalizado)  Então eu já caduquei, menina? Isso é mentira.
 
INÊS  É verdade.
 
ISAÍAS  Não é.
 
INÊS  É. 
 
ISAÍAS  Pois se é, nem todas as verdades se dizem. (Ergue-se e passeia)
 
INÊS  Ah! o senhor zanga-se? É porque quer; não me viesse dizer tolices! (Ergue-se)
 
ISAÍAS (interrompendo o seu passeio, solenemente)  Na casa em que não há pão, todos ralham, ninguém tem razão.
 
INÊS  Ora! somos ainda muito moços!
 
ISAÍAS  Quem? nós?
 
INÊS (de mau humor)  Não falo do senhor: falo dele...
 
ISAÍAS  Ah! fala dele...
 
INÊS  Havemos de trabalhar um para o outro...
 
ISAÍAS  É bom, é: Deus ajuda a quem trabalha.
 
(Canto)
 
INÊS  Sem desgosto viveremos, Seremos ricos, talvez; Muitos morgados teremos...
 
ISAÍAS  Mas um só de cada vez... (Zangado)  A faceira Talvez convidar-me queira Para padrinho de algum!
 
INÊS  E não suponha que, apesar de pobre, não me faça bonitos presentes o meu noivo.
 
ISAÍAS  É! Quem cabras não tem e cabritos...
 
INÊS  Insulta-o?
 
ISAÍAS  Cão danado, todos a ele! Pois eu havia de insultá-lo, senhora?
 
INÊS  Se estivesse calado...
 
ISAÍAS  Sim, senhora: em boca fechada não entram mosquitos... mas é que o seu futurozinho me interessa...
 
INÊS  Muito obrigada. (Senta-se)
 
ISAÍAS  Não há de quê. Se bem que eu não seja nenhum Matusalém, estou no caso de lhe dar conselhos. Ouça-me: quem me avisa meu amigo é; quem à boa árvore se chega boa sombra o cobre.
 
INÊS  Mesmo por já estar no caso de me dar conselhos, é que o não quero para marido.
 
ISAÍAS  Se eu fosse jovem, não me havia de aceitar, por estar no caso de os receber. Preso por ter cão e preso por não ter!...
 
INÊS  Não desejo enviuvar de novo...
 
ISAÍAS  Vaso ruim não quebra...
 
INÊS  Desengane-se, senhor: não são os seus ditados que me hão de fazer mudar de resolução! (Passeia) Oh!
 
ISAÍAS (acompanhando-a)  Talvez façam, talvez!... Devagar se vai ao longe... muito tolo é quem se cansa... (Inês volta-se, param defronte um do outro) Menina, antes só do que mal acompanhado... Olhe que o pior cego é aquele que não quer ver...
 
INÊS (à parte)  Vou pregar-lhe uma peta. (Alto) Mas se me faltasse este noivo, outros rapazes há que me têm feito pé-de-alferes.
 
ISAÍAS  Águas passadas não movem moinhos!
 
INÊS  E entre eles...
 
ISAÍAS  O passado, passado!
 
INÊS  Não me interrompa!... E entre eles há um ricaço que em outro tempo... 
 
ISAÍAS  O tempo que vai não volta!
 
INÊS  Não me interrompa, já disse! E entre eles há um ricaço que noutro tempo se esqueceu da promessa...
 
ISAÍAS  O prometido é devido!
 
INÊS  Ai, mau!... se esqueceu da promessa que me havia feito; mas que está outra vez pelo beicinho...
 
ISAÍAS  Cesteiro que faz um cesto, faz um cento... (Movimento de Inês. Com força) Se tiver verga e tempo! E quem é esse... ricaço?
 
INÊS  É segredo.
 
ISAÍAS  Segredo em boca de mulher é manteiga em nariz... (A um gesto de Inês) de homem! Mas faz bem, faz bem: o segredo é a alma do negócio...
 
INÊS  O senhor tem na cabeça um moinho de adágios! Passa!...
 
ISAÍAS  O que abunda não prejudica.
 
INÊS  Bem! Para maçadas basta. Mude-se!
 
ISAÍAS  Os incomodados é que se mudam.
 
INÊS  Mas eu estou em minha casa, senhor!
 
ISAÍAS  Descobriu mel de pau!
 
INÊS  Irra! Que homem sem-vergonha!
 
ISAÍAS (examinando cinicamente a costura)  Quem não tem vergonha todo o mundo é seu.
 
INÊS  Se o meu noivo o visse aqui! Ele, que jurou dar cabo do primeiro rival que...
 
ISAÍAS  Cão que ladra não morde... E eu sou homem!... tenho força... E contra a força não há resistência!...
 
INÊS (irônica)  Ora, por quem é, não faça mal ao pobre moço, sim? 
 
ISAÍAS  Faço!... Quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre. Julga que não estou falando sério? Uma coisa é ver e outra...
 
INÊS (no mesmo)  Ora, não faça tal.
 
ISAÍAS  Faço! isto tão certo como dois e três serem cinco. São favas contadas. Quem não quiser ser lobo não lhe vista a pele!
 
INÊS  Mas sabe que ele é valente?
 
ISAÍAS  Também eu sou! Cá e lá más fadas há! Duro com duro não faz bom muro, e dois bicudos não se beijam!
 
INÊS  Ponha-se ao fresco, preciso sair; tenho que fazer lá fora.
 
ISAÍAS  E eu tenho que fazer cá dentro. Um dia bom mete-se em casa. (Pausa) Olhe, senhora, olhe bem para mim, acha-me feio: não acha? 
 
INÊS  Ai, ai, ai!... 
 
ISAÍAS  Eu também acho, e feliz é o doente que se conhece. Mas muitas vezes as aparências enganam e o hábito não faz o monge. Experimente e verá. (Suplicante) Case comigo.
 
INÊS  Gentes!
 
ISAÍAS  Ah! se fôssemos casadinhos, outro galo cantaria! Por exemplo: em vez de sair agora à rua, com este sol de matar passarinho, mandavame a mim, ao seu maridinho...
 
INÊS (arremedando-o)  Ao seu maridinho... (À parte) Oh! que ideia!Vou me ver livre dele. (Alto) Então, sem sermos casados, não pode prestar-me um pequeno serviço?
 
ISAÍAS  Conforme o serviço: ponha os pontos nos ii.
 
INÊS  Se me fosse comprar três metros de escumilha. Olhe... aqui tem aamostra... No armarinho do Godinho... Sabe onde é?
 
ISAÍAS  Sei; mas quando não soubesse? Quem tem boca vai a Roma.
 
INÊS  Está contrariado?
 
ISAÍAS  O que vai por gosto regala a vida.
 
INÊS  Tome o dinheiro.
 
ISAÍAS  Nada... não é preciso... (Vai saindo e estaca) Diabo! não me lembra um ditado a propósito! (Sai)
 
 
CENA IV
 
INÊS  Estás bem aviado... Quando voltares, hás de achar a porta fechada. Safa! que maçador! Agora, tratemos de sair: são mais que horas. (Aparece à porta um carteiro)
 
 
CENA V Inês, o Carteiro.
 
O CARTEIRO  Boa-tarde, minha senhora.
 
INÊS  Boa-tarde. O que deseja?
 
O CARTEIRO  Aqui tem esta carta... é da caixa urbana...
 
INÊS  Uma carta? (Recebendo a carta, consigo) De quem será? (Ao carteiro) Obrigada.
 
O CARTEIRO  Não há de quê, minha senhora. Passe muito bem!
 
INÊS Adeus. (O carteiro sai)
 
 
CENA VI
 
INÊS  Ah! a letra é de Filipe. Faz bem em escrever-me o ingrato! Há doze dias que nos não vemos... (Abre a carta e lê. Jogo de fisionomia) “Inês. Peço-te perdão por ter dado causa a que perdesses comigo o teu tempo. Ofereceram-me um casamento vantajoso, e não soube recusar. Ainda uma vez perdão! Falta-me o ânimo para dizer-te mais alguma coisa. Dentro em uma semana estarei casado. Esquecete de mim — Filipe.” (Declamando) Será possível! Oh! meu Deus! (Relendo) Sim... cá está... é a sua letra... (Depois de ter ficado pensativa um momento) Ora, adeus! Eu também não gostava dele lá essas coisas... Digo mais, antes o Isaías; é mais velho, mais sensato, tem dinheiro a render, e Filipe acaba de me provar que o dinheiro é tudo nestes tempos. Espero aqui o Isaías com o meu “sim” perfeitamente engatilhado! Oh! o dinheiro...
 
RECITATIVO
 
Louro dinheiro, soberano esplêndido, Força, Direito, Rei dos reis, Razão. Que ao trono teu auriluzente e fúlgido Meus pobres hinos proclamar-te vão.
 
Do teu poder universal, enérgico, Ninguém se atreve a duvidar! Ninguém! Rígida mola desta imensa máquina, Fácil conduto para o eterno bem!
 
Aos teus acenos, Deus antigo e déspota, Aos teus acenos, Deus moderno e bom, Caem virtudes e se exaltam vícios! Todos te almejam, precioso dom!
 
Inda hás de ser o derradeiro ídolo, Inda hás de ser a só religião, Louro dinheiro, soberano esplêndido, Força, Direito, Rei dos reis, Razão!...
 
 
CENA VII Inês, Isaías.
 
ISAÍAS (entrando)  Quem canta seus males espanta.
 
INÊS  Já de volta! O senhor foi a correr!
 
ISAÍAS  Nada! quem corre cansa. Encontrei outro armarinho mais perto.
 
INÊS (tomando a fazenda)  Muito obrigada. Quanto custou?
 
ISAÍAS  Um pau por um olho. Mil e duzentos o metro...
 
INÊS  Pois olhe: o outro vende mais barato.
 
ISAÍAS  O barato sai caro, e mais vale um gosto do que quatro vinténs.
 
INÊS  Regateou?
 
ISAÍAS  Regatear! Para quê? Mais tem Deus para dar do que o diabo para tomar.
 
INÊS  Já vejo que é tão pródigo de dinheiro como de anexins!
 
ISAÍAS  Da pataca do sovina o diabo tem três tostões e dez réis. Poupado sim, sovina não. Eu cá sou assim! Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Tenho um só defeito: quero casar-me. Cada louco com sua mania.
 
CANTO
 
Hei sido um gato-sapato; Preciso do casamento! O maldito celibato Não é viver, é tormento.
 
Quero honesta rapariga Entre as belas procurar, Muito embora o mundo diga: Quem já andou não tem pra andar...
 
A existência de casado Talvez venturas me traga, Se diz verdade o ditado: Amor com amor se paga.
 
Se eu for constante e fervente, Ela tudo isso será; Se eu amá-la eternamente, Ela também me amará!
 
Eu escravo e a esposa escrava, Viveremos sem desgosto; Uma mão a outra lava E ambas lavam o rosto!...
 
Faço-lhe pela milésima vez o meu pedido. Nem todos os dias há carne gorda. A senhora falou-me em um apaixonado. Por onde andará ele? Eu estou aqui, e mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.
 
INÊS (à parte)  Levemos a coisa com jeito. (Alto) O senhor... (Com uma ideia) Ah!
 
ISAÍAS  Oh!
 
INÊS  Já viu representar As pragas do Capitão?
 
ISAÍAS  Não, senhora. De pragas ando eu farto.
 
INÊS  Era um militar que praguejava muito. A senhora que ele amava deu-lhe a mão de esposa, mas depois de estabelecer-lhe a condição de não praguejar durante meia hora.
 
ISAÍAS  Falo em alhos, e a senhora responde com bugalhos!
 
INÊS  Já lá vamos aos alhos: aceito a sua proposta.
 
ISAÍAS (impetuosamente)  Aceita?
 
INÊS  Sim, senhor.
 
ISAÍAS (incrédulo)  Qual! Quando a esmola é muita, o pobre desconfia...
 
INÊS  Mas imponho também a minha condição...
 
ISAÍAS  Imponha: manda quem pode.
 
INÊS  Se conseguir levar meia hora sem...
 
ISAÍAS  Sem praguejar?...
 
INÊS  Não! Sem dizer um anexim! Se o conseguir, é sua a minha mão.
 
ISAÍAS  Deveras?
 
INÊS (sentando-se)  Deveras.
 
ISAÍAS  Mas eu posso estar calado?
 
INÊS  Como assim?! Era o que faltava! Há de falar pelos cotovelos!
 
ISAÍAS  Isso é um pouco difícil: o costume faz lei...
 
INÊS  Ai, que escapou-lhe um!
 
ISAÍAS  Pois o que quer? a continuação do cachimbo...
 
INÊS  Faz a boca torta, já duas vezes.
 
ISAÍAS  Nas três o diabo as fez.
 
INÊS  Ai, ai, ai! Vamos muito mal!
 
ISAÍAS  Mas não tínhamos ainda entrado em campo... Aqueles foram ditos de propósito. Agora sim! Agora é que são elas!
 
INÊS  Outro!
 
ISAÍAS  Protesto! “Agora é que são elas” nunca foi anexim. A César o que é de César!
 
INÊS  O senhor vai perder... Olhe: são duas horas. (Aponta para um relógio que deve estar sobre a mesa) Aceita o desafio? (Pausa) Bem. Quem cala consente...
 
ISAÍAS  Ah! agora é a senhora quem os diz! Virou-se o feitiço contra o feiticeiro...
 
INÊS  Ai, ai!
 
ISAÍAS  Foi engano.
 
INÊS  Dos enganos comem os escrivães. (Pausa) Então? Diga alguma coisa...
 
ISAÍAS  O que hei de dizer... senão... que gosto muito da senhora... e...
 
INÊS  Pois diga: vai tantas vezes o cântaro à fonte, que lá fica.
 
ISAÍAS  Não me provoque, senhora, não me provoque!
 
INÊS  Cada qual puxa a brasa para sua sardinha...
 
ISAÍAS (agitado)  Brasa! sardinha! Oh! que suplício!
 
INÊS  O que tem o senhor?
 
ISAÍAS  Nada... não tenho nada... é que esta proibição me incomoda... Este maldito costume... parece que não estou em mim...
 
INÊS  Sabe o que mais?
 
ISAÍAS  Vou saber.
 
INÊS  Diga o que quiser! Abra a torneira dos anexins, ditados, rifões, sentenças, adágios e provérbios... Fale, fale para aí!
 
ISAÍAS  E a condição?
 
INÊS  Caducou. (Dando-lhe a mão) Aqui tem: sou sua.
 
ISAÍAS (contente)  Minha! (Em outro tom) E os outros?
 
INÊS  Não existem, nunca existiram!
 
ISAÍAS  Pois estou acordado? Se estiver dormindo, deixa-me estar: não me acordes.
 
INÊS  Está bem acordado.
 
ISAÍAS  Estou?! (Pulando de contente) Então viva Deus! Viva o prazer!... Trá lá lá rá lá! (Quer abraçá-la)
 
INÊS (gritando)  Alto lá! Mais amor e menor confiança!
 
ISAÍAS  E que o rato nunca comeu mel, quando come... (Outro tom) Pode-se dizer este ditadozinho?...
 
INÊS  Quantos quiser!
 
ISAÍAS (concluindo)  ...se lambuza! (Tomando-lhe as mãos) E tu? amas-me, meu bem?
 
INÊS  Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido e deixe o barco andar!
 
ISAÍAS  Apoiado. Roma não se fez num dia!
 
INÊS  E tenha sempre muita fé nos seus anexins.
 
ISAÍAS  É verdade: O que tem de ser tem muita força. O homem põe... e a mulher dispõe!...
 
INÊS  Basta! Despeça-se destes senhores, e vá tratar dos papéis...
 
ISAÍAS  Quem tem boca não manda... cantar. Mas, enfim... (Ao público)
 
COPLA FINAL
 
Antes que daqui nos vamos, Inês vos dirá quais são Os votos que alimentamos No fundo do coração.
 
INÊS  Os votos que neste instante Fazemos nestes confins (Deita a mão sobre o coração) É que nos ameis bastante
 
Embora por anexins.
 
AMBOS  — Muitas palmas esperamos De vós: Metade para o autor, metade para nós.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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