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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR SEM ESPERANÇA / Corin Tellado
AMOR SEM ESPERANÇA / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AMOR SEM ESPERANÇA

 

A rapariga debruçava-se sobre a amurada do grande transatlântico.

Estava escuro; lá em baixo, via-se o brilho fluorescente das ondas e a sombra alongada do grande barco, que se perdia de vista no escuro da noite. No horizonte, uma lua pálida erguia-se e traçava uma linha prateada sobre as águas, em direcção ao navio.

A rapariga desviou os suaves cabelos dos olhos, com dedos levemente trémulos. Perguntou a si própria durante quanto tempo poderia reter as lágrimas. Aquela noite parecia feita para romance, mas para ela não haveria romance.

Naquela noite, teria de enfrentar a amarga situação de ter de dizer adeus ao homem que amava.

No convés, atrás dela, soaram uns passos leves. Uma voz masculina disse:

— Pensei que te encontraria aqui.

Pôs-lhe as mãos nos ombros e, suavemente, voltou-a para si e viu as lágrimas que lhe enevpaVam os olhos.

— Susan — disse ele, com voz entrecortada —, tornei-te tão infeliz! E era a última coisa que eu desejaria fazer.

Ela murmurou:

— Este é o nosso adeus, Brian. Ê a única coisa que poderemos dizer um ao outro, não é verdade?

— Adeus — repetiu ele. — Sim.

Susan Holt acenou com a cabeça, não se sentindo com forças para falar.

— Amanhã — continuou ele — o nosso barco chegará a Southampton. Iremos para terra, separadamente. Não voltaremos a ver-nos. Seguiremos diferentes caminhos, como... estranhos. — com desespero, apertou-lhe as mãos, geladas. — Oh, minha querida, porque havia de acontecer isto? Porque te apaixonaste por mim... um homem casado?

Era verdade. Brian Fenton era casado e, naquela viagem maravilhosa, de regresso da Austrália, Susan apaixonou-se por ele, irremediavelmente.

— Eu estou também apaixonado por ti — continuou ele, lentamente. Enquanto falava, entre eles pairava a sombra da esposa distante. — Nunca pensei envolver-te nos meus problemas, Susan. Já estou habituado à infelicidade. Mas tu... não posso suportar que sofras.

— Amanhã, tudo estará terminado — disse ela, com voz trémula. — Tu esquecer-me-ás, Brian. Tudo se esfumará. Como se nunca tivesse existido.

— E tu? Que te acontecerá a ti?

Ela voltou a cabeça lentamente. O coração deu-lhe a resposta. Para Susan não haveria mais ninguém. O tempo não conseguiria apagar o que se passara naquela viagem.

Amava-o e sabia que o amaria sempre.

— Não interessa o que me acontecerá. —Então, terá de ser... adeus?

— Sim.

Os seus lábios estavam perto uns dos outros. Ele sabia que a encantadora figura da jovem e o seu ar de

infelicidade o perseguiriam sempre.

Vai! — disse ele, roucamente.— Vai-te embora agora,

Susan. Depressa!

Na sua cabina, de segunda classe, ela lançou-se sobre o beliche e deu vazão às lágrimas que ameaçavam sufocá-la.

Uma rapariga entrou e acendeu a luz.

— —Querida! — exclamou. — Que te aconteceu?

Susan tentou controlar-se.

— Nada, Lyn. Já... já estou melhor.

Lynette Davis passou um braço pelos ombros da amiga. Susan conhecera-a na Austrália e tinham viajado juntas na mesma cabina, desde Melbourne.

— Viste Brian Fenton novamente, não foi?

— Sim. — A voz de Susan era um murmúrio. — Mas, desta vez, foi para dizermos adeus. Por isso, não tens de te preocupar, Lyn.

— Não estou preocupada, Susan. Tenho medo, por tua causa. Sabes bem que não podes pôr de lado o facto de Brian

Fenton ser casado. E sempre o soubeste, desde o princípio.

Susan concordou, sombriamente.

— A sua mulher está... internada num hospital de doentes mentais. Está ali há três anos. Nem sequer conhece Brian, quando a vai visitar.

— Sue!-A rapariga estava chocada.. — Mas isso é terrível!

— Enlouqueceu seis meses depois, do casamento continuou Susan, lentamente. — Teve um aborto e o choque sofrido roubou-lhe a razão.

Lyn correu a cortina da escotilha e olhou para o mar, calmo.

— Há uma coisa que continuo a não compreender disse ela. — Julgava que um homem casado com uma mulher internada numa hospital para doenças mentais tivesse bases

para pedir o divórcio. Porque não o faz Brian?

Ela não foi dada como incurável. Os médicos disseram que um dia poderia recuperar. Lyn suspirou.

— Terás de tentar esquecê-lo. É o único caminho que te resta.

No dia seguinte, ancorariam em Southampton. Brian sairia ali, para ir ver a sua mulher... aquela pobre mulher que

nem sequer reconhecia o homem com quem casara.

E ela? Que seria dela?

Permaneceu às escuras, pensando no seu sombrio futuro.

Não tinha pais, apenas um irmão, um pobre diabo, um vagabundo, que não se importava com ela. Quando tinham ficado sozinhos no mundo, ela tirara o curso de enfermeira.

Depois de conseguido o diploma, aceitara um lugar como enfermeira num barco e viajara por todo o mundo.

Jim regressara, entretanto, a Inglaterra e arranjara um bom emprego, em Londres. Pensava assentar por fim e comprara uma vivenda no Norte da Inglaterra. Escrevera

a Susan, perguntando-lhe se gostaria de regressar e tomar conta da sua casa.

A perspectiva de voltar a ver Inglaterra e de viver com o irmão parecera-lhe atraente. Aceitara a oferta e reservara lugar no primeiro barco. Lyn Davis decidira vir com ela e tentar a sua sorte em Inglaterra.

Lá em cima, soou a sereia do navio, enchendo o ar com o seu rouco silvo. Susan sentou-se no beliche e arredou as pequenas cortinas que tapavam a escotilha.

A pouca distância viam-se as falésias brancas e os campos cinzentos de Inglaterra. O grande barco estava a chegar.

Susan levantou-se. Estava quase vestida, quando bateram levemente à porta.

— Sue — disse uma voz, que tinha o poder de fazer bater o seu coração mais fortemente. — Sue, preciso de falar contigo antes de irmos para terra. Tenho algo importante

para te dizer. Vai ter comigo ao convés, assim que puderes.

Ela acabou de se vestir e correu para o convés. Viu o homem que amava junto da amurada, olhando para os guindastes e gruas do porto distante.

— Brian — disse.

Ele voltou-se e puxou-a para si. O seu rosto estava pálido e sombrio. Ele também passara a noite sem dormir.

— Tenho notícias para ti — disse ele. — Podem ser... boas notícias.

— Que queres dizer? Ele hesitou:

— Sabes quais são os meus sentimentos acerca de Pauline. Tenho uma pena terrível por ela. Uma pena que sai do fundo do meu coração. Mesmo que saiba que nunca mais

a poderei amar, sei que ela tem todos os direitos sobre mim e que não devo abandoná-la.

— Compreendo — disse Susan, suavemente.

— Ela não me conhece. Não se recorda de mim. Não terá saudades de mim. Oh, Sue, tendo em consideração tudo isto, não me parece que seja criminoso tentar obter a

liberdade. Telegrafei para Painswick Mental Home, que é onde Pauline está internada. Se o médico certificar que ela é incurável... poderei obter o divórcio.

— O divórcio?

— Sim!-Pegou-lhe na mão. — Oh, minha querida, não vais pensar mal de mim por causa disso, pois não? Tenho bastante dinheiro e providenciarei sempre para que ela

tenha os melhores cuidados. Hoje, quando o Correio chegou a bordo, havia uma resposta de

Painswick;.

Susan sentiu as faces afogueadas.

— Diz-me o que se passou. Ele tirou uns papéis do bolso.

— Mandei este telegrama. Leu-o em voz alta:

Enfermeira Brand, Painswick Mental Home. Regresso a Inglaterra. Decidi obter a liberdade. Pode ajudar-me?

Uma ruga surgiu na fronte de Susan.

— Porque telegrafaste à enfermeira? Não seria melhor dirigires-te ao médico?

— A enfermeira Brand tem sido uma boa amiga para mim. Compreende Pauline melhor do que ninguém. Desde que parti de Inglaterra, há cerca de um ano, tem-me escrito

regularmente todas as semanas a contar-me como Pauline se encontra.

— Sim — disse Susan. — Mas... Ele fitou-a e sorriu.

Vejo que não compreendes. A enfermeira Brand é

muito amiga de Pauline. Tem. feito tudo quanto pode para a ajudar. Sei que Marion... a enfermeira Brand não hesitaria em me dizer da impossibilidade do divórcio,

se pensasse que a minha atitude poderia ferir Pauline.

Susan acenou com a cabeça, compreendendo.

E a resposta, Brian? Que diz?

— Recebi esta manhã uma carta de Marion Brand. Diz que compreende o meu desejo de liberdade e que tem a certeza de que Pauline não sofrerá com isso.

A sereia do navio soou fortemente.

— Temos de nos apressar — disse ele. — Tinha de te informar. Assim que atracarmos, dirigir-me-ei para Painsiffick. Se as notícias forem boas, regressarei imediatamente

a Londres.

Rapidamente, ela beijou-o.

— Serão boas, certamente — disse. O seu rosto estava radiante.

Depois, a sereia soou novamente, e eles tiveram de se separar.

Em Painswick Mental Home, nos alojamentos das enfermeiras, Brand preparava-se para sair.

Fitou-se no espelho e viu um rosto pálido, mas atraente. Os olhos negros e enigmáticos destacavam-se na palidez das faces. Os seus lábios eram finos e duros, mas

tinham sido pintados cuidadosamente pareciam suaves e mais cheios. Sorriu.

— Brian Fenicn regressa — disse, em voz alta, para si própria, dando um toque no provocante chapéu. Desaja a liberdade. Pois bem, penso que isso pode ser arranjado... — Sorriu para a sua própria imagem. — Por um preço justo.

Saiu do quarto e começou a caminhar pelo longo corredor. Um homem de casaco branco vinha em sentido contrário. Era um homem magro, com o cabelo negro como asa de

corvo. Tinha uma pele cor de azeitona e pequenas cicatrizes numa das maçãs do rosto.

Ao ver Marion Brand, os seus olhos, negros, brilharam durante um momento, cheios de admiração.

— Estás maravilhosa, hoje. Quem é o felizardo? perguntou.

— Não é o doutor Lalu — disse ela, com fria insolência. — vou encontrar-me com Brian

enton.

O sorriso do doutor Lalu não era nada agradável.

— Surpreendes-me. Brian Fenton é casado. Ela riu secamente.

— Ambos nos conhecemos muito bem, doutor Achmet Lalu — disse. — Eu sei que a Polícia marroquina ficaria muito contente se soubesse o nome sob que te escondes em

Inglaterra. E sei...

Pequenas gotas de suor surgiram na testa do médico.

— Sua estúpida! Falar nisso em voz alta...-disse ele, olhando para todos os lados do corredor. — Queres arruinar-nos a ambos?

— Apenas te quis recordar aquilo que sei — disse ela, de forma descontraída. — Tens toda a razão, no que se refere ao facto de Brian

Fenton ser casado. Mas, se certificares

que a sua mulher é incurável, ele poderá obter o divórcio, não é verdade?

O médico fitou-a, espantado.

— Estas louca! Ela não é incurável. Todos os dias tem experimentado grandes melhoras. Um dia poderá recuperar completamente.

. Talvez. — Marion sorriu de forma calculista.— Mas

se nós quisermos, ela poderá ficar aqui para sempre. E ninguém o saberá.

O doutor Lalu limpou a testa. Não era a primeira vez que aquela rapariga sem escrúpulos o fazia tremer de medo.

— Que esperas conseguir com isso? Pensas que Fenton deseja casar contigo?

— Não sei. Ele está só. Antes de partir para a Austrália, éramos bons amigos. Confia em mim. — Riu baixinho. — Talvez queira casar comigo. Não sei. Talvez queira

casar com outra. — Esfregou o dedo polegar no indicador, num gesto muito expressivo. — Em qualquer dos casos, desde que eu consiga a sua liberdade, será um negocio rendoso.

Afastou-se do médico e continuou o seu caminho, para ir ao encontro de Brian, na pequena aldeia de Painswick.

Dez minutos mais tarde estava sentado com ele, numa pequena e agradável casa de chá.

Brian Fenton curvou-se para ela:

— Foi sempre tão gentil comigo...

Ela pestanejou e pousou os olhos no atraente e viril rosto masculino.

— Todas as semanas me escreveu, a dar noítcias de Pauline.

— Não foi só gentileza — disse ela, baixando os olhos.

— Sentia pena de si, Brian.

— Eu nunca tivera pena de mim próprio. Sempre pensei que a doença da minha esposa era qualquer coisa que eu tinha de suportar sozinho.

— E agora?-Ela curvou-se para a frente. — Tem outras ideias?

— Sinto falta de companhia. Sou um homem sozinho. Acha mal que deseje ter uma companheira na minha vida? —Hesitou. Estava ansioso por lhe falar em Susan.

Marion Brand sorriu. Não podia adivinhar o que ele pensava. Talvez gostasse dela... ou talvez não. Se gostasse, tudo seria mais fácil. Se não gostasse, mesmo assim tiraria vantagens desse facto. Decidiu que era a altura de o obrigar a tomar uma atitude.

— Falei hoje com o doutor Lalu — disse.— Confirmou-me que a sua mulher é um caso sem esperança. Nunca melhorará, e ele está disposto a passar-lhe o certificado.

Curvou-se ansiosamente para ela.

— Isso significa... que poderei divorciar-me. E Pauline não sofrerá. Preciso de falar com o doutor Lalu.

Marion mordeu os lábios. Seria perigoso. O doutor Lalu faria tudo quanto ela quisesse, mas não podia consentir que Brian fosse ao hospital. Acima de tudo, não podia suspeitar, de forma alguma, que a sua mulher estava a melhorar."

Não precisa de ir ao hospital — disse, suavemente.

— Seria doloroso para si. Eu tratarei de tudo. Farei que o doutor Lalu lhe mande o certificado amanhã.

Brian hesitou. Não tinha qualquer motivo para desconfiar da rapariga. Na realidade, sempre fora uma boa e dedicada amiga. Chamou o criado e pagou a conta. Quando saíram, pegou-lhe no braço, com amizade:

— Claro que já deve ter compreendido que desejo casar novamente — disse ele.-Depois de tudo arranjado, teria muito prazer em que conhecesse a mulher de quem gosto. Chama-se Susan Holt. É muito jovem e encantadora. Sei que simpatizarão uma com a outra.

O coração de Marion Brand bateu furiosamente. Não ia ser tão fácil como pensara. O sonho que acalentara, durante algum tempo, de poder casar com ele, morreu subitamente.

Em Londres, Susan recordava os tempos em que vivera ali. Apanhou o autocarro para Waterloo, para o hotel onde o seu irmão estava hospedado.

Sentia-se levemente excitada e alegre com a perspectiva de voltar a ver o seu aventureiro irmão. No entanto, teria de lhe dizer que talvez não pudesse tratar-lhe

da casa que comprara. As últimas palavras que trocara com o homem que amava tinham-lhe dado uma nova esperança para o futuro.

Na recepção do hotel, o empregado fitou-a com espanto.

— Mister Holt? Partiu a semana passada. Pode dizer-mee o seu nome, se faz favor?

— Não está?-Susan sentiu-se desapontada e surpreendida. — Sou sua irmã e ele disse que me esperaria aqui.

— Ah, miss Holt! — disse o empregado.-O seu irmão deixou-lhe uma carta e reservou-lhe um quarto.

Voltou-se para os cacifos e tirou uma carta.

Susan rasgou o sobrescrito e leu a pequena folha, em

silêncio:

Querida irmã:

Afinal, tive a sorte de arranjar um emprego na Rodésia e vou partir para mais uma das minhas viagens.

Lamento o desapontamento que sentirás. A vivenda, em Dawsbury, é tua e está pronta para te receber. As pessoas dali esperam um irmão e uma irmã, mas terás de ir sozinha. Desculpa, mas iu bem sabes como eu sou: não posso estar parado muito tempo no mesmo sítio.

Um beijo amigo.

 

Dobrou a folha mecanicamente.

Um paquete conduziu-a até ao quarto que o irmão lhe reservara. Era um quarto agradável, com uma vista aobre os telhados de Londres. Na mesinha-de-cabeceira tinha um telefone.

Estava no quarto havia cerca de meia hora, quando este tooou. Pegou no auscultador e ouviu a voz do homem que amava. Estava nervoso, ansioso.

— Sue querida... vai tudo correr bem. O quarto pareceu girar à sua volta.

— Brian, queres dizer...

— A enfermeira Brand disse-me que conseguirei o certificado, o que significa que poderemos casar.

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

— Oh, Brian — disse, com voz trémula. — Eu devia rir, devia cantar, mas tenho vontade de chorar.

— Minha querida — disse a voz de Brian, distante —, amanhã irei falar contigo. Traçaremos os nossos planos.

Susan sentou-se sobre a cama. A felicidade, que lhe parecera fora de alcance, estava agora quase assegurada.

Levantou-se cedo e estabeleceu planos para a chegada de Brian. Pelo menos, a reserva que existia entre eles desapareceria. Agora, poderiam ser, finalmente, verdadeiros namorados.

Cassava um pouco das dez, quando o homem que ela amava bateu à porta.

Correu a abri-la.

— Brian!... Oh, Brian!

Aproximou-se dele, passou-lhe os braços pelo pescoço e ofereceu-lhe os lábios sem qualquer constrangimento.

Ele estremeceu. A suavidade da carícia enervara-o.

Fê-la entrar no quarto e fechou a porta. Ela reparou, imediatamente, que o seu rosto estava cinzento e transfigurado.

— Sue — disse ele, roucamente —, não posso suportar isto...

Fitou-o. Subitamente, o coração pareceu parar-lhe. Até àquele momento, nunca conhecera o verdadeiro significado da palavra "medo".

— Brian, diz-me...

— Marion Brand enganou-se — disse. — Recebi, esta manhã, uma carta dela, informando-me de que o médico náo quer passar o certificado.

— Brian!

A angústia da sua voz fez-lhe perder o controlo.

Os seus braços rodearam-na. Abraçaram-se fortemente, com desespero, Sabendo que o

mundo proibia o seu amor.

— Como posso, agora, deixar-te? — Havia agonia na sua voz. — Como poderei suportar a ideia de te perder?

— Brian, não!-Respirou profundamente. — Se nos amamos, não temos o direito de sermos felizes?

Ele abanou a cabeça.

— Não posso pedir-te semelhante coisa — disse ele, como se tivesse perdido todo o interesse pela vida. Oh, se pudéssemos ir para qualquer sítio onde não fôssemos

conhecidos, onde nos pudéssemos ver todos os dias! tudo o que peço. Não seria teu amante... Nunca seria capaz de te exigir semelhante degradação. Amo-te demasiado

para o poder fazer. Mas queria ter um lugar na tua vida, como um amigo... um irmão... qualquer coisa que...

— Um irmão!

A exclamação dela interrompeu-o. com uma única palavra, todos os acontecimentos tomavam outra forma. A sua viagem através do mundo... a carta de Jim... a vivenda

vazia que esperava por ela... Não fora tudo preparado pelo destino para aquele preciso momento?

— Irmão e irmã — murmurou. — Sozinhos, num lugar onde ninguém nos conhecesse! Brian, podíamos, podíamos!

Ele fitou-a, espantado.

Rapidamente, falou-lhe na vivenda em Dawsbury. As pessoas dali esperavam a chegada de um irmão e de uma irmã. Porque não havia Brian de.tomar o lugar do seu irmão?

Ninguém saberia a verdade.

Brian escutou-a em silêncio. Abraçou-a e apoiou o rosto contra o dela.

— Sue, serias capaz de fazer Isso por mim? — Amo-te — murmurou ela, simplesmente. Durante um longo momento, nenhum deles falou. Depois, Brian disse:

— Juro-te que, se te puder ver todos os dias, nada mais exigirei.

. Juro também o mesmo. — Fitou-o nos olhos. — Seremos apenas... como os irmãos devem ser, Brian.

Teremos de traçar os nossos planos com cuidado.

Tu serás a única prejudicada, se descobrirem alguma

coisa.

— Como descobrirão? Temos ao nosso dispor aquela vivenda, em Dawsbury. Está mobilada e toda a gente sabe que dois irmãos vão viver para ali.

— preciso fazer algo mais do que isso. Tenho de desaparecer e reaparecer como Jim, o teu irmão. Haverá muita gente que quererá saber porque Brian

Fenton desapareceu.

Temos de ter a certeza de que ninguém nos encontrará.

Ela reteve a respiração. Subitamente, compreendeu a extensão do que planeavam.

— Brian, como o conseguirás?

— Terás de ir sozinha para Dawsbury — disse ele, lentamente. — Terás de me informar de quando poderei ir. Se alguém viu o teu irmão e for capaz de o reconhecer,

isso seria muito perigoso...

— Averiguarei. E depois?

— Tens de cortar com todas as tuas amigas. A tua velha vida deve desaparecer, como se nunca tivesse existido.

Então, enquanto se abraçavam, perguntando como poderiam ter forças para negarem a si próprios a expressão plena do seu amor durante os meses que se seguiriam, bateram à porta.

Assustado, Brian Fenton olhou à sua volta.

— Tenho de sair. Não posso ser visto contigo, aqui.

— Há uma entrada de serviço, na casa de banho — murmurou Susan. — Podes sair por aí.

Ele beijou-a no rosto e saiu. Aquela pancada na porta mostrara-lhes, de forma mais evidente do que quaisquer palavras, como teriam de ser cautelosos. Ele era um homem casado, e Susan solteira. Mesmo um amor puro, como o seu, era uma coisa proibida, um sentimento que seria mal interpretado por toda a gente; ninguém acreditaria na pureza das suas relações.

Só foi atender quando ouviu bater a porta da casa de banho. O seu rosto inundou-se de alegria, quando viu diante de si o rosto, sorridente, de Lyn Davis.

— Estavas fechada à chave! — disse ela. — Onde está o teu simpático irmão?

— Não está aqui — disse Susan, sem pensar. — Ele...

— Calou-se, corando. Devia aprender a mentir melhor.

— Oh!-exclamou Lyn, e os seus brilhantes olhos, azuis e muito argutos, examinaram o perturbado rosto da amiga. — Que se passou? Ele foi-se embora sem te dar uma satisfação?

— Não — disse Susan, tentando reparar o seu erro. Tudo corre bem. Ele... ele está na vivenda.

Lyn soltou uma gargalhada.

— Isso é maravilhoso, mas, provavelmente, agora necessitará de uma nova governanta.

— Porquê? Que queres dizer?

— Não vais viver com ele, pois não?

— Mas porque não? — Susan começava a ficar contundida com aquelas inesperadas perguntas.

Lyn fitou-a de forma perspicaz.

— Passa-se qualquer coisa. Quando nos despedimos, no barco, estavas espantosamente excitada porque Brian ia pedir o divórcio. Falavas já em casamento... Que aconteceu?

Susan sentiu os olhos rasos de lágrimas.

Brian enganou-se. O médico não passa o certificado.

Oh, Sue, lamento imenso! — Lyn passou um braço pelos ombros da rapariga. — Mas anima-te. Eu estarei junto de ti e divertir-nos-emos juntas. Onde fica essa vivenda?

Eu... eu não sei.

As faces de Susan ficaram escarlates. Aquela era a primeira prova. Tinha dê cortar com todas as suas amigas.

— Não sabes? — Lyn demonstrava, claramente, a sua incredulidade.

— Não... não posso dizer-to. Não mefaças perguntas. E, desesperada, Susan desfez-se em lágrimas.

Lyn fitou-a de forma quase acusadora.

— Passa-se qualquer coisa. Tu vais para algum lado e não mo queres dizer — Deu um estalido com os dedos.

— Já sei: Brian Fenton!

— Não, não. Não deves dizer isso.

— Mas é verdade, não é? —E Lyn podia ver que era.

— Oh, Sue! Sempre tive medo de que chegasses a uma situação dessas. Não o faças, minha querida. Não resultará. Nunca dá bom resultado.

— Mas não é como tu pensas — disse Susan, freneticamente.

E, rapidamente, pos a outra rapariga ao corrente do seu plano.

Lyn escutou-a em silêncio.

No fim, sorriu carinhosamente e sentiu-se comovida, ao ver o rosto, desfigurado e coberto de lágrimas, da amiga, pateticamente encantador, naquele momento.

— Está bem — disse ela, lentamente. — Vai e vive o teu sonho. Amor platónico, numa vivenda. Talvez tu e Brian consigam o que nunca ninguém conseguiu...

— Temos de o conseguir — disse Susan, desesperadamente. — É a única forma.

— Entretanto — acrescentou Lyn —, eu terei de procurar emprego. E não conseguirás adivinhar para onde escrevi a pedir emprego... Para Painsurick Mental Home. Precisam de uma enfermeira para o bloco cirúrgico, e eu tenho uma tia que vive para aqueles lados.

Susan sentiu-se empalidecer.

— Mas, Lyn, poderás ver a mulher de Brian.

— Como enfermeira do bloco operatório, não terei muitos contactos com os doentes vulgares.

Houve um grande silêncio entre elas, e depois Susan murmurou:

— Mas, se a vires, por favor escreve-me a dizer como ela está. Tu poderás informar-me melhor do que Brian.

— Se conseguir o emprego, certamente que o farei. Mas, primeiro, terei de saber para onde vais viver.

Susan respirou profundamente. Brian avisara-a de que ninguém deveria saber onde ficava a vivenda, mas... era um caso diferente.

— Está bem — disse ela. — Mas ninguém, além de ti, saberá a direcção.

Susan olhou à sua volta, mirando uma vez mais a cozinha da vivenda, em Dawbury. Estava tudo impecável.

Está tudo em condições — murmurou Susan. — Apenas tenho de esperar a chegada de Brian.

Só naquela manhã Brian respondera à carta em que lhe dissera que ninguém, dali, conhecia o seu irmão. infOrmava-a de que estaria ali ao princípio da tarde.

Bateram à porta. Rapidamente, correu a abri-la.

— Susan! — murmurou Brian.-És a coisa mais encantadora que um homem pode encontrar quando chega a casa.

Avançou, abraçou-a e beijou-a ternamente no rosto. Depois do jantar, ficaram na sala, junto da lareira. Susan pousou a cabeça no ombro de Brian.

— Oh, Brian, poderás ser realmente feliz, comigo?

— Como nunca o fui, na minha vida.

As horas passaram rapidamente. Por fim, chegou a altura de se deitarem. Subiram as escadas juntos, de mãos dadas.

— Este é o teu quarto — indicou Susan. Gravemente, Brian olhou para as duas portas. Na do quarto dela estava uma chave.

Calmamente, ele tirou-a e colocou-lha na mão.

— Esta chave deve estar do lado de dentro, Susan, para fechares a porta.

Os seus olhos encontraram-se e os dela encheram-se de lágrimas. —No entanto, estava muito calma, quando pousou a chave sobre uma mesinha do patamar.

— Nesta casa, nunca fecharei a porta — disse, com firmeza. — Não dependeremos de portas fechadas, maa sim de confiança em nós próprios e no nosso sentido de moralidade.

O doutor Achmet Lalu, de Painswick Mental Home, estava preocupado.

Durante um momento, ficou no corredor, olhando para a porta, que indicava: "Mistress Brian

Fenton". Depois, encolheu os ombros e afastou-se, ajustando a bata branca.

No andar inferior, entrou na zona principal do grande hospital. Ouviu, então, passos rápidos atrás de si e uma rapariga loira, muito elegante, com o uniforme de enfermeira, tentou passar por ele, no corredor.

— Enfermeira Davis— disse o médico, sorrindo e estendendo uma mão para a deter-, parece muito apressada.

Lyn Davis sorriu, com ar comprometido. Alisou o cabelo, brilhante. Não gostava daquele melífluo médico, sempre extraordinariamente delicado.

— Desculpe, doutor, mas queria ver se ainda apanhava o carro do Correio.

O médico olhou para o relógio de pulso.

— Receio bem que já tenha sido feita a recolha. Mas, se é urgente, poderá deitá-la em Painswiek. Há uma tiragem, à noite.

— Ora bolas! — exclamou Lyn, com o seu feitio impulsivo. — Esta noite estou de serviço.

— Que pena! Levá,-la-ia lá no meu carro, com todo o gosto.

— O senhor vai para Painswiek? — perguntou Lyn, ansiosamente. — Então, poderia, deitar esta carta...

Ele pegou na carta, olhou de relance para o endereço e viu que era dirigida a miss Susan Holt. Pelo menos, não se tratava de um homem. Meteu a carta no bolso, não pensando mais nisso.

— Doutor Lalu...-Lyn fitou o moreno médico, sabendo que ele se sentia atraído por ela e que poderia

aproveitar-se disso.-Pode dizer-me alguma coisa acerca de mistress enton?

— Bem, é um estranho e interessante caso. Por vezes, pensamos que está a um passo da cura... outras, desesperamos — disse o médico, encolhendo os ombros.

— Gostaria de a ver. Dá-me licença?-Os bonitos olhos azuis tinham uma expressão suplicante.

O homem coçou o queixo.

— Não vejo qualquer inconveniente — disse ele, lentamente. — Fale-me nisso noutro dia.

— Está bem — concordou ela. — Agora, tenho de ir.

O médico curvou-se delicadamente e afastou-se, pensativo. Entrou no gabinete, que ficava defronte da entrada principal, e disse a um contínuo para ir chamar a enfermeira Brand.

Cinco minutos depois, bateram à porta. Marion Brand entrou, acto contínuo.

— Tenho uma notícia que te chocará, Marion — disse ele, suavemente.-Penso que Pauline

Fenton recuperará totalmente. Tem momentos de completa lucidez... durante os quais me tem contado diversas coisas.

— Que coisas?

— Por exemplo, que o marido não era o pai da criança que morreu. Sente remorsos por ter atraiçoado o marido e acredita que o aborto foi um castigo pelo pecado cometido.

— Não me importa nada disso. — Marion quase gritou. — Brian Fenton só obterá a liberdade por meu intermédio.

Se eu quiser, passarás um atestado certificando que Pauline Fenton é incurável.

— Estás a ir demasiado longe — retorquiu Lalu, com o rosto lívido. — Isso seria desumano... Ela poderia ficar aqui toda a vida.

— Que te importa isso... se a alternativa é uma cadeia marroquina?

Lalu empalideceu.

— Estás louca — disse ele, mas sabendo que estava derrotado. — De qualquer das formas, perdeste o rasto do homem...

— Sim — murmurou ela. — Mas não será por muito tempo. Não ficaria surpreendida se ele estivesse em qualquer lado com essa rapariga... — Enclavinhou as mãos.— Mas encontrá-lo-ei! Quando penso nisto... Brian Fenton e Susan Holt...

— Susan Holt? — O rosto de Lalu demonstrou a maior perplexidade. — Já ouvi esse nome. Eu... —Tirou do bolso o sobrescrito que Lyn lhe entregara. — Aqui está: "Miss Susan Holt. Linden Cottage. Dawsbury".

jPondo-se de pé de um salto, Marlon Brand arrancou-lhe o sobrescrito das mãos. Ouviu as surpreendidas explicações do doutor Lalu e riu alegremente:

— Que sorte! Agora, sei o que hei-de fazer. Susan Holt poderá dizer-me onde ele está escondido!

 

Susan estava novamente sozinha, na vivenda. Mas sentia-se espantosamente feliz e cantarolava enquanto trabalhava, cozinhando e limpando. Brian, dentro de momentos, estaria em casa. Fora a Londres consultar o seu advogado.

O portão rangeu, no Jardim, e ouviu passos que se aproximavam da vivenda. com o coração cheio de alegria, Susan abriu a porta para receber o homem que amava.

Mas não era Brian. Uma rapariga morena, de olhos rasgados, apareceu na sua frente. Fitou Susan com ar descontraído e perfeita segurança.

— Susan Holt, tenho a certeza — disse. — Permita-me que me apresente. Sou Marion Brand.

— Marion Brand!

O nome surgiu involuntariamente nos lábios de Susan, quando verificou quem era a visitante. Levou uma mão à boca. Durante uma fracção de segundo, sentiu-se desmaiar.

Controlou-se depressa, mas não tão rapidamente, que o seu nervosismo não fosse apercebido pelos argutos olhos da outra rapariga.

— Miss Brand — repetiu Susan, sorrindo. — Ou devo traía-la por enfermeira Brand? Tenho muito prazer em

a ver.

As duas raparigas fitaram-se, sem falsas simpatias, mas ainda com uma máscara de boas maneiras.

— Não... não quer entrar?

A sua hesitação não passou despercebida à visitante.

— Obrigada. Sorriu e penetrou no vestíbulo. Enquanto Marion olhava à sua volta, não perdendo um único pormenor do ambiente confortável daquela casa, Susan sentia-se cheia de medo.

Dentro de poucos minutos, Brian regressaria da sua viagem a Londres. Se Marion Brand o visse chegar, com a sua mala de viagem, apenas poderia pensar uma coisa. E essa suspeita nunca deveria cruzar o seu cérebro. Susan tinha de conservar o seu segredo — um segredo inocente e puro, mas, no entanto, que seria julgado pecaminoso.

Sentiu-se dominada pelo pânico.

Rapidamente, conduziu a rapariga para a sala de estar, que dava para o pequeno jardim. Teria de se livrar dela tão depressa quanto pudesse.

Marion Brand sentou-se numa poltrona, junto da janela. Apenas teria de olhar por cima do ombro, pensou Susan, para ver Brian, assim que este aparecesse. Susan sentia-se

gelada de medo. Mas Marion Brand sorria-lhe.

— Suponho que deve estar a pensar por que vim aqui. Susan acenou afirmativamente, receando falar, com medo de cometer algum deslize. Que saberia aquela rapariga?

— Soube o seu endereço por uma amiga sua — continuou Marion Brand. — Lyn Davis. Como deve saber, é enfermeira de cirurgia, em Painswick.

Lyn conseguira o emprego! Trabalhava na casa de saúde de Painswick. Mas Susan dissera-lhe que o seu endereço devia ser mantido sob o maior segredo.

Porque o dera àquela rapariga?

Durante um momento, Susan não conseguiu falar. Depois, instintivamente, sentiu que a rapariga mentia. Certamente que obtivera aquele endereço por meio de Lyn...

mas não com a facilidade que alardeava.

Sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias. Marion Brand tinha qualquer fim em vista... mas o quê? Decidiu que seria melhor falar-lhe com calma, sangue-frio e de forma directa.

— Miss Brand, o que deseja? — Conhecê-la...

— Mas porquê? Eu nem sequer sabia que conhecia a minha existência! — interrompeu-a Susan.

A outra rapariga curvou-se para a frente.

— Mas Brian contou-me tudo a seu respeito — disse ela. O seu tom dizia claramente que Brian lhe fizera confidências, que sabia coisas que Susan ignorava. — Tenho tanta pena de si! Desejava tanto ajudar...

— Ajudar? — Susan conservou-se calma. — Porquê, se não me conhecia sequer?

Marion Brand mordeu os lábios. Parecia desconcertada com o controlo daquela encantadora e elegante rapariga.

— Minha querida — disse rapidamente —, no meu trabalho encontro muitas tragédias, muitas esperanças desfeitas. Mas o caso de Brian sempre me pareceu o mais triste

de todos... —

Calou-se subitamente.

— Sim?

— Sei que você e Brian desejam casar — continuou, depois de uma pausa, durante a qual os seus olhos perscrutaram o rosto de Susan. — E quero ajudá-lo.

— Então, porque não o procurou directamente? Porque me procurou?

Embora Susan soubesse muito bem por que Marion Brand não pudera dirigir-se directamente a Brian — não sabia onde ele se encontrava — estava decidida a não deixar escapar a mais leve pista. Não diria nada àquela rapariga, morena, de olhar fugidio, que fora ali com um propósito determinado.

Obbservou como os frios olhos se estreitavam até se tornarem quase duas frestas.

— Vim aqui para procurar Brian! — murmurou Marion Brand. — Porque você é a única pessoa que sabe onde ele está.

Um silêncio, carregado de tensão, caiu entre as duas jovens. Durante um momento, Susan ficou paralisada pelo medo. Marion teria adivinhado que ele vivia também ali?

com ar gelado, disse:

— Receio bem não a poder ajudar. O que a leva a pensar que conheço o paradeiro de Brian?

A rapariga suspirou profundamente.

— É pena não saber onde ele se encontra... porque tenho notícias da mulher dele. Notícias que podem ser vitalmente importantes para ambos.

Susan sentiu uma onda de esperança e, sem se poder controlar, perguntou:

— Que notícias?

— Oh... — Marion abanou a cabeça, com uma fingida timidez. — Tenho de falar primeiro com Brian. Terá de ser assim...-Hesitou. — Mas parece que ele desapareceu.— Bem, não sei onde ele está — retorquiu Susan, controlando-se. Sentia-se apavorada. Queria libertar-se o mais rapidamente possível daquela rapariga de palavras suaves, antes de dizer qualquer coisa comprometedora, antes qui o homem que amava aparecesse. — Pode escrever ao seu advogado em Londres.

— Mas não se pode escrever a um advogado por causa de...-fez uma pausa calculada, antes de concluir a frase — divórcio!

Fixou os olhos em Susan, cujo coração começara a pulsar doidamente, ao ouvir aquela palavra. Liberdade, por fim... Seria verdade?

— Não, não lhe posso dizer nada, pois nada sei. Vivo aqui com o meu irmão...

Susan calou-se. Na sua perturbação, ao ouvir a palavra "divórcio", fizera uma afirmação que mais tarde poderia lamentar. Oh, que louca fora!

Lentamente, levantou-se. Tinha de se livrar imediatamente da enfermeira da casa de saúde de Painswick. A rapariga explicara a razão da sua visita e não tinha já qualquer desculpa para poder ficar.

com firmeza, Susan acompanhou-a até à porta e fechou, assim que ela saiu. A visita de Marion Brand deixara-a sem pinga de sangue. Exausta, Susan apoiou-se contra a porta.

Soaram passos no vestíbulo. Soltou um grito e rodou.

Era Brian, com o atraente rosto muito pálido e preocupado. Durante um momento, Susan não se moveu, depois correu para ele e abraçou-o.

— Oh, meu querido, por onde vieste? Foi pavoroso! Marion Brand esteve aqui.

— Eu sei — disse ele, com voz sombria. — Eu sei. Acariciou-lhe o cabelo.

— Não te preocupes, Susan. Tudo correrá bem. Ela não me viu.

— Tenho medo de Marion Brand — disse Susan.— Não confio nela.

O homem soltou-a.

— Não tens motivos para isso — disse, com voz reprovadora.— Marion foi sempre uma boa amiga para mim.

— Mas como foi que ela soube que eu morava aqui? Susan estava ainda intrigada. — Tenho a certeza de que Lyn não lhe diria nada.

Na aldeia, Marion; sentada num café, esperava pelo autocarro que a levaria até à estação. Tinha os lábios crispados e fumava nervosamente.

Que ganhara com aquela viagem?

Absolutamente nada.

Encontrara Susan Holt, mas não vira qualquer sinal de Brian Fenton.

Marion pediu a conta, irritada. Qualquer coisa estava errada. Havia qualquer coisa que não ligava. Porque seria que Susan Holt ficara tão assustada quando a vira?

Não havia qualquer dúvida a esse respeito — ela ficara assustada.

Que recearia?

Pensativa, pagou a conta e dirigiu-se para o autocarro.

Foi já perto da estação que verificou ter deixado no café o porta-moedas e o bilhete de regresso.

freneticamente, tocou a campainha e o condutor parou o autocarro. Dali até ao café eram quase duas milhas, e quando conseguiu reaver o porta-moedas já partira o último autocarro para Dawsbury. A pé, também não chegaria a tempo para apanhar o comboio de ligação.

Fora uma viagem desastrosa. Durante alguns momentos, Marion Brand manteve-se indecisa, não sabendo se deveria procurar Susan Holt, para lhe pedir alojamento por uma noite. Mas, por fim, decidiu que não o faria. A dona do café, miatress Jukes, tinha um quarto de hóspedes e prontificou-se a arrendar-lho.

Na manhã seguinte, ainda irritada com o atraso, Marion Brand desceu para tomar o pequeno-almoço.

Mistress Jukes andava pela pequena cozinha, cheia de actividade, falando animadamente.

Então, a enfermeira da casa de saúde de Painswick crispou-se.

Um homem e uma rapariga desciam a rua. Um homem e uma rapariga, que sorriam de forma íntima.

Susan Holt... e Brian Fenton.

Brian Fenton! Levantou-se rapidamente. O seu primeiro pensamento foi aparecer-lhes na frente, colocando-os perante uma situação difícil, mas nesse momento, mistress Jukes aproximou-se da janela, sorrindo.

— Bons dias, miss Susan!-exclamou. — E bons dias, mister Holt!...

"Mister Holt"!?

A rapariga morena sentou-se novamente. Sentia-se trémula de excitação. Subitamente, desejou rir em voz alta. Como fora estúpida! E que sorte a sua em ter perdido o comboio na noite anterior!

— São um par simpático — disse, com um sorriso, para mistress Jukes.

— São novos na vila — disse ela, acenando, numa concordância com a afirmação de Marion. — Ela é encantadora, mas não vemos muitas vezes o seu irmão. compraram aquela vivenda no cimo da colina... a Lindens, como lhe chamam.

Continuou a tagarelar, mas Marion Brand não ouvia o que ela dizia. Pensava.

Sentia vontade de rir.

Se Brian Fenton, até ali, já desejava o divórcio, desejaria dez vezes mais, depois de ela pôr em execução o seu plano.

com um sorriso nos finos lábios, Marion Brand preparou-se para a viagem de regresso.

Nessa tarde, ao entrar no vestíbulo principal, o porteiro disse-lhe que o doutor Lalu desejava falar com ela. Dirigiu-se para o seu gabinete.

Encontrou-o a passear, sem sossego, pelo aposento, com a morena testa coberta de suor.

— Que se passa, doutor? — Mal disfarçando o desprezo que sentia por ele, tirou um cigarro da caixa que estava sobre a secretária.

O médico voltou-se abruptamente. As suas palavras pareceram sibiladas:.

— Pauline Fenton está completamente lúcida há mais de vinte e quatro horas!

O cigarro caiu dos dedos da rapariga.

Que significa isso?

Que temos todas as razões para acreditar que está curada. Pode nunca mais ter qualquer recaída. Temos de informar o marido.

Fez-se silêncio na sala. Depois, Marion Brand disse, com voz gelada:

— Ela ficará aqui enquanto eu o desejar, e não participarás nada ao seu marido.

— Mas o risco de tudo isso... —O homem falava roucamente. Limpou a testa com dedos trémulos. — Os outros médicos... Como poderei guardar

secreto esse facto?

— Mistress Fenton é tua doente — disse ela, trocista.

— Podes muito bem controlar essa situação.

— Mas a pobre rapariga — disse o doutor Laluterá de sofrer... Não tens coração? Esteve a falar comigo. Quer divorciar-se, confessar ao marido o que fez.

Marion apertou as mãos. Brian Fenton não podia saber o que se passava. Ele não poderia obter o divórcio daquela forma.

— Ela fica aqui — repetiu Marion Brand. — Ninguém a verá. E, quando eu to pedir... certificarás que ela é incurável.

E, com aquelas palavras, a rapariga abandonou o gabinete do médico e dirigiu-se para o seu quarto. Pegou num bloco e sentou-se, pensativa, com ele no regaço. Depois começou a escrever, com letras grandes:

Vigiem 'iLAnden Cottage". Eles não são irmãos.

Não assinou a missiva. Meteu-a num sobrescrito e endereçou-a a mistress Jukes, a proprietária do café de Dawsbury. Desceu as escadas e meteu a carta na caixa do correio do hospital.

Uma semana depois destes acontecimentos, Susan e Brian estavam a jantar. Havia já alguns minutos que não falavam. Finalmente, o homem quebrou o silêncio:

— Que se passa, Susan? Não comeste nada. Ela afastou o prato.

— Não me apetece.

Ele levantou-se, rodeou a mesa, pousou um braço nos ombros da rapariga e curvou-se para a beijar.

— Não — disse ela. roucamente. — Não faças isso, Brían. As cortinas... não estão bem corridas.

Ele olhou à sua volta. Estavam fechadas, até quase sobrepostas, de forma forçada. Não se via absolutamente nada do jardim.

— Estão bem fechadas — disse.ele, surpreendido.— Que se passa, minha querida?

— Parece que aconteceu qualquer coisa, na aldeia.

Em frases curtas, contou-lhe os pequenos acontecimentos daqueles últimos dias. Analisados, um por um, pareciam não ter importância, mas ela sentia que não era assim.

Na véspera, uma pessoa evitara-a ostensivamente; outra passara junto dela sem retribuir o seu "bons-dias". Mistress Jukes parecia estranha. Tinha a sensação de que aquelas pessoas a observavam, cochichavam nas suas costas.

— Estás a ficar nervosa, Susan — disse Brian.— Estás a imaginar coisas. Não te preocupes.

Deiois de lhe ter contado as suas dúvidas, Susan sentiu-se melhor. As suas desconfianças, agora, pareciam-lhe absurdas. Nenhuma das coisas que mencionara tinha muita importância. Talvez Brian tivesse razão em dizer que ela via coisas que não existiam.

Voltou a sorrir novamente. O resto da noite decorreu num ambiente de perfeita harmonia e felicidade.

por fim, Susan foi deitar-se e apagou a luz. Fechou os olhos.

Do cruzamento da estrada, no cimo da colina, vinha o som de risadas e de carros. Àquela hora da noite, a estalagem já estava fechada.

Momentos depois, as vozes, galhofeiras, aproximalam-se da vivenda. Era como se os habitantes da vila andassem a divertir-se pelas ruas. Mas, quando chegaram ao portão da vivenda, não continuaram o seu caminho. Com uma leve opressão no peito, Susan notou que as pessoas paravam ali.

Rapidamente, sentou-se na cama, com o coração a bater fortemente. Sentia-se aterrada.

E então, sem qualquer aviso, o vidro da janela do seu quatro estilhaçou-se. Qualquer coisa caiu sobre a alcatifa.

Susan soltou um grito de medo. Assustada, saltou da cama e viu uma pedra embrulhada num papel. Com dedos trémulos, pegou nela e, tropeçando, correu para o patamar.

Os braços de Brian rodearam-na. Mas Susan já arrancara o papel que envolvia a pedra. Estava coberto por uma letra garrafal, de pessoa pouco culta:

Não queremos "arranjinhos", aqui. Porque não casam?

Susan estava pálida e trémula. Brian sentiu o coração oprimido, ao verificar o medo que ela sentia. Desejara que o seu amor fosse uma protecção para ela e, na realidade, colocara-a numa situação perigosa.

Apagou a luz do patamar e levou-a para o seu quarto. Ali, as cortinas estavam abertas e o luar passava pelas vidraças, estendendo-se pelo chão do quarto.

— Tu dormes aqui — disse ele, gentilmente. — Fica nas traseiras da casa que dá para o jardim. Aqui, ficarás sossegada.

Ela sentou-se na cama. Estendeu as mãos, trémulas, para o interruptor.

— Não acendas a luz — disse Brian, rapidamente. — Podem ainda estar a espiar.

Espiar! Susan retirou a mão, como se a tivessem picado. Tinham, então, chegado àquela situação! Voltou a cabeça, desesperada.

Brian saiu do quarto. Ouviu-o andar lá fora, no jardim. Depois, ele regressou.

— Foram-se embora — disse, com voz pausada. — Mas tu ficarás sempre neste quarto. Eu passarei a dormir no teu.

Puxou-lhe os cobertores até ao queixo, curvou-se e beijou-a, suavemente, nos lábios.

— Oh, Brian, o que nos acontecerá? — murmurou ela.

— Nada — disse ele, com firmeza. — Agora, não te preocupes. Espera apenas e deixa que tudo

passe e esqueça.

Mas a sua voz não revelava grande convicção. E, subitamente, Susan pensou que o seu idílio, a sua tentativa para viverem o seu amor com inocência e pureza chegara ao fim. com lágrimas nos olhos, levantou os braços e rodeou o pescoço de Brian.

Tenho tanto medo — murmurou, no escuro. — Agora não seria capaz de te perder.

Os braços dele apertaram-na fortemente.

Não me perderás, minha querida, não me perderás.

Depois, lentamente, saiu do quarto.

Na manhã seguinte, Susan levantou-se muito cedo. Vestiu-se e deixou a camisa de noite sobre a almofada. Saiu do quarto, bateu à porta do de Brian, para o acordar, e desceu as escadas. Poucos minutos depois ouviu-o atravessar o patamar, para ir vestir-se no seu anterior quarto.

Calmamente, Susan preparou o pequeno-almoço. Brian desceu e, embora os seus rostos, vincados e crispados, traíssem os seus pensamentos, nenhum deles mencionou os acontecimentos da noite anterior.

Bateram à porta e Susan foi abrir. Era mistress Pennel, que todos os dias ia limpar a vivenda. Tinha uns belos cabelos brancos e, apesar da sua aparência frágil, possuía uma capacidade de trabalho espantosa.

Enquanto Susan continuava a preparar o pequeno-almoço, ela subiu as escadas, com o aspirador e o pano de limpar o pó. Mas, poucos minutos depois, Susan ouviu-a descer as escadas. Surpreendida, foi ver o que acontecera e encontrou a mulher a dias a pôr o chapéu e a vestir o casaco.

— Vou-me embora — disse ela, com determinação.

— Mas porquê? — perguntou Susan, incrédula.

— Porque só trabalho para pessoas decentes. — As suas faces estavam coradas de indignação e os seus pequenos olhos até pareciam maiores. — A dormirem no mesmo quarto! Deviam ter vergonha!

Saiu e atirou com a porta. com o coração oprimido, Susan correu pelas escadas e entrou no quarto de Brian. Reteve a respiração, ao verificar o que chocara a mulher.

A sua camisa de noite, finíssima, e o pijama de Brian estavam, juntos, sobre os lençóis. Mistress Pennell limitara-se apenas a tirar uma conclusão óbvia, alicerçada, certamente, nos comentários que deviam circular pela aldeia.

Lentamente, voltou à cozinha e sentou-se diante de Brian. Este fitou-a, com ar interrogativo.

— Mistress Pennell foi-se embora — disse Susan, lentamente.

A despeito do controlo que exercia sobre si própria, as lágrimas correram-lhe pelas pálidas faces. Contou a Brian o que acontecera.

Ele ficou sentado, com os ombros descaídos, absolutamente paralisado. Mas, por fim, levantou-se e aproximou-se de Susan. Passou-lhe um braço pelos ombros e apertou-a contra si.

— Sue, minha querida, queres Ir embora daqui?

A rapariga levantou para ele os olhos, marejados de lágrimas.

— O que acontece aqui, acontecerá em qualquer lado disse, suavemente. — Nós não estamos a fazer nada de errado, Brian. vou ficar e lutar contra eles. Porque havemos de desistir, sem lutar?

Susan pôs-se de pé e começou a levantar a mesa. Ele murmurou uma desculpa, saiu e caminhou rapidamente pelos campos, até à aldeia, para ver se conseguia aclarar ideias.

Tinha de tomar uma decisão. Mas qual? A única coisa ue poderia fazer por Susan era casar com ela. No entanto, estava ainda casado com outra rapariga.

Se conseguisse o divórcio...

por associação de ideias, lembrou-se de Marion Brand. Marion aparecera na vivenda, dizendo que desejava dar-lhe notícias acerca do divórcio.

Brian deu um estalido com os dedos e apelidou-se de estúpido. Por que não entrara em contacto com ela há mais tempo? O facto de Susan ter detestado a rapariga e não haver confiado nela influenciara-o mais do que pensara. Mas a intuição de uma mulher nem sempre é infalível.

Rodando nos calcanhares, encaminhou-se para o posto dos Correios da aldeia, que ficava nas traseiras de uma pequena e abafada loja, e redigiu um telegrama:

 

               Preciso falar consigo.

               BRIAN FENTON

 

Mas, assim que acabou de escrever as duas últimas palavras, amarfanhou o telegrama e deitou-o fora. Que loucura ia fazer! Escrevera o seu verdadeiro nome!

O responsável pelo posto conhecia-o por Jim Holt. Não podia enviar o telegrama da aldeia e, de qualquer das formas, não seria conveniente que Marion Brand soubesse que ele vivia ali. Já tinha suficientes motivos para desconfiar.

Não, o melhor seria visitar Painswick e.procurar a morena enfermeira.

Saiu da loja e regressou a casa, para dizer a Susan que ia até Londres. Porque ela não confiava na enfermeira e tentaria, certamente, impedi-lo de fazer aquela viagem, decidiu não lhe dar grandes explicações.

Mas Susan aceitou a sua decisão calmamente. Estava preparada para a luta; não deixaria que Brian visse nela qualquer sombra de receio.

Na pequena loja, o velho mister Parker saiu de detrás do seu balcão. Um colarinho muito branco e engomado apertava-lhe o pescoço, rugoso, e um tufo de cabelo grisalho contornava-lhe a calva cabeça.

Baixou-se e apanhou o telegrama amarfanhado, que se encontrava no cesto dos papéis. Alisou-o cuidadosamente e leu, avidamente, a mensagem. Depois, tirando os óculos, de aros de aço, dirigiu-se para a sala das traseiras.

Agitou o telegrama diante da mulher:

— Olha para isto, minha querida, pois é bastante intrigante. Vai-te fazer pensar. O jovem Jim Holt escreveu-o há poucos minutos, mas assinou a sua mensagem com o nome de Brian Fenton!

Lyn Davis estava sentada na beira da cama do seu pequeno quarto, na casa de saúde de Painswick. Olhou pela janela e viu a luz daquela tarde de Outono desaparecer dos verdes campos.

— Quem me dera — disse, num murmúrio desesperado — nunca ter posto os pés aqui! Causa-me arrepios.

Uma vez mais, leu a carta que Susan lhe escrevera:

Marion Brand veio visitar-me. Não sei como arranjou o meu endereço, a não ser que tu lho tenhas dado. Preciso que me digas a verdade, Lyn. Contaste-lhe alguma coisa a meu respeito?

Lyn Davis dobrou a folha de papel, lentamente.

Nunca disse uma palavra a Marion Brand. — Abanou a cabeça, intrigada. — Passa-se qualquer coisa de estranho em tudo isto.

Levantou-se e saiu do quarto, para procurar o doutor Achmet Lalu.

Encontrou-o, casualmente, a sair do seu gabinete. Ele sorriu-lhe abertamente.

— Doutor Lalu — disse, francamente —, que notícias me dá acerca de mistress Fenton? Como está ela?

Os olhos do doutor Lalu estreitaram-se e o seu sorriso tornou-se um pouco forçado. Parecia desconcertado com o inesperado da pergunta.

Esfregou o queixo e hesitou na resposta. Depois disse:

— Estou profundamente preocupado com ela. Está bastante mal.

— Posso vê-la?

— Não seria aconselhável.

Lyn perguntou, directamente:

— É perigosa? Ou está tão doente que não consegue aguentar uma conversa?

— Oh, não é nada perigosa! — disse Lalu, apressadamente. — Mas não consegue, evidentemente, sustentar uma conversa coerente. Não, não posso consentir que a veja.

Lyn baixou a cabeça, numa aquiescência.

— Muito bem — disse, lentamente, rodando imediatamente nos calcanhares e afastando-se.

Pensativa, subiu as escadas.

Para a esquerda ficavam os quartos particulares das pensionistas. Era ali, por detrás de uma daquelas portas fechadas, que estava Pauline Fenton.

Pensando nela, Lyn Davis sentia-se cada vez mais preocupada, mais intrigada. Prometera a Susan procurar saber tudo quanto pudesse acerca da pobre mulher de Brian.

Mas, depois de um mês, sabia tanto como quando chegara ali.

Uma auxiliar aproximava-se, descendo o corredor. Lyn dirigiu-se-lhe e perguntou:

— É a senhora quem trata de mistress Fenton? A mulher acenou afirmativamente.

— Como está ela?

A auxiliar fitou Lyn, com ar hermético:

— O doutor Lalu pode informá-la.

— Penso que a enfermeira me saberá informar melhor— disse Lyn, com firmeza, satisfeita, naquele momento, com a sua posição de enfermeira-vigilante. O doutor Lalu ainda não a viu, esta manhã.

A auxiliar baixou os olhos, sob a observação directa da enfermeira.

— Mistress Fenton está bem — resmungou. — Só tem uma obsessão: está sempre a perguntar pelo marido.— Depois acrescentou, subitamente, com veemência: — Não percebo porque a têm fechada. Há dois meses, ela podia sair e misturar-se com os outros doentes. Agora que está melhor...

Calou-se. Lyn insistiu:

— Continue.

Mas a auxiliar compreendera que fora longe de mais:

-Será melhor falar com o doutor Lalu— esquivou-se... Avisou-me para não falar do caso de mistress Fenton e ele é muito esquisito nesses assuntos.

A auxiliar afastou-se. Levava um grande molho de chaves, que dependurou num gancho por cima da secretária do corredor. Depois afastou-se. Uma daquelas chaves abria a porta do quarto de Pauline Fenton. Durante um momento, Lyn sentiu-se tentada a experimentá-las, mas resistíu àquele desejo. Era demasiado perigoso e poderia perder o emprego.

Mas as palavras da auxiliar ressoavam no seu cérebro. Paulinn Fenton, aparentemente, estava melhor, mas conservavam-na fechada, em estrita reclusão. Marion Brand demonstrara grande interesse por Susan Holt, a ponto de ir até Dawsbury para a ver. Lyn recordou-se do estranho pouco à-vontade do doutor Lalu, quando lhe falara na doente. Havia em tudo aquilo um certo mistério, que a enchia de desconfiança e de pressentimentos pouco agradáveis.

E tinham fundamento. A auxiliar procurou imediatamente o doutor Lalu e contou-lhe toda a conversa que tivera com a vigilante Lyn. Marion Brand estava presente.

Assim que a auxiliar saiu, disse para o médico:

— Tens de te livrar dela, Lalu. Tens de despedir a enfermeira Davis.

— Não me agrada essa ideia. — Achmet Lalu abanou a cabeça. — Não tenho qualquer fundamento legal para a despedir.

-Não precisas de fundamento.-O pálido rosto da rapariga estava corado e os seus olhos brilhavam.

Digo-te que ela está aqui a fazer trabalho de espia para Susan Holt. Dá-lhe um mês de vencimento e livra-te dela. Dá-lhe boas referências... mas livra-te dela!

O homem abanou a cabeça, mas não resistiu ao tom imperioso de Marion e, obedientemente, pegou no seu bloco de papel timbrado. Hesitou, escreveu uma breve nota a Lyn Davis, passou um cheque e chamou um contínuo.

— Leve este sobrescrito à enfermeira Davis, se faz favor, é urgente e confidencial.

Marion Brand acalmou-se um pouco.

— Assim é melhor — disse, com voz triunfante. Agora, posso encontrar-me calmamente com Brian Fenton.

Lalu fitou-a, espantado.

-Vais encontrar-te com Fenton?

— Sim, em Pinswick.— Marion sorriu, com ar vitorioso. — Está preocupado e deseja falar comigo. Riu. — Penso que a minha curta visita a Dawnbury e o plano que pus em execução estão a dar os seus frutos. — Levantou-se — Adivinho que deve estar desesperado e quererá o divórcio a todo o custo. Pois bem, poderá tê-lo. Mas, segundo o preço que eu impuser.

— És um demónio — disse Achmet Lalu, com admiração. — Brian Fenton não teria quaisquer problemas se fizéssemos o que devíamos... e déssemos alta à sua mulher.

— Depois de todos os riscos que corri?-retorquiu Marion, com desprezo. — Estás louco! Não, ele pagará para obter o divórcio.

— E se ele não aceitar?

— Não te preocupes. Tem vivido com aquela rapariga Dawsbury, fingindo ser seu irmão. Obteremos dele o que desejamos e sem qualquer dificuldade.

Atirou um irónico beijo a Achmet Lalu e, com um sorriso, mas com gelo nos olhos, Marion Brand dirigiu-se para a porta.

Porém, no café de Painswick, encontrou um Brian muito diferente.

Naquela outra tarde, ainda esperava que Brian Fenton desejasse casar com ela. Falara-lhe na possibilidade de obter o divórcio com toda a facilidade... e soubera que ele amava outra mulher. E o destino forçara-o a viver com essa mulher, como se fossem apenas irmãos. Era a sua única esperança de vida em conjunto.

Agora o seu segredo — censurado pelo mundo — estava quase desvendado. Sentado diante da Marion Brand, fumando cigarro após cigarro, os olhos de Brian Fenton revelavam o seu tormento. E, depois de uma troca de palavras triviais, abordou o assunto que lhe interessava:

-Marion, foi visitar Susan Holt a Dawsbury.

— Ela vive ali com o irmão, não é verdade?

Brian fitou-a demoradamente. Mas o rosto dela tinha uma expressão impenetrável, sorrindo apenas. Impossível dizer o que se escondia por detrás daqueles olhos.

— Disse-lhe que desejava falar comigo — continuou ele — acerca do meu divórcio. Susan informou-me que não lhe quis dizer mais nada.

— Não podia — retorquiu Marion Brand, suavemente.

— A Susan... não!-Curvou-se para a frente. — Deseja muito casar com ela, Brian?

O seu tom incitava às confidências. Os pensamentos de Brian voltaram-se para a rapariga que amava, sozinha em Dawsbury, à mercê de todos os mexericos, vítima das mentalidades atrasadas e mesquinhas das gentes da aldeia, travando uma batalha perdida para conservar a sua felicidade. Sentia-se dominado por uma angústia infinda.

— Não há nada que eu deseje tanto, no mundo — disse, em voz baixa. — Marion, tenho de o conseguir. Não sei como. Se puder ajudar-me, terá de o fazer...

— Mas eu posso fazer muito pouco. — Marion Brand encolheu os olhos, desanimada, recostando-se na cadeira e observando o homem através dos olhos semicerrados.

— Temos de conseguir a ajuda do doutor Lalu.

— Irei falar com ele hoje — disse Brian Fenton, resoluto. — Expor-lhe-ei o assunto.

Mas a rapariga pousou-lhe a mão no braço, rapidamente.

— Brian — murmurou —, não fique chocado. Mas acontece que eu sei como persuadir Lalu. com dinheiro!

Brian fitou-a, horrorizado.

— Quer dizer que, para ele passar um certificado que declare Pauline como incurável, terei de pagar? Marion Brand acenou afirmativamente.

— Quanto quer ele?

— Cinco mil libras.

Reteve a respiração, ao ver a expressão de Brian, pois ela falara com demasiada ansiedade. Não fora a enormidade da quantia pedida que o chocara. Ele observava-a de forma perscrutadora.

— Marion... que tem a ver com isto? Está também envolvida nesse negócio?

— Não acredita que eu seja capaz de sujar as mãos em coisas dessas, pois não? — Conseguira controlar a voz. — Não, Brian, sempre fui sua amiga e... esta é uma forma de o ajudar. Quando desapareceu, não pude deixar de pensar que estava metido em qualquer problema.

Tem toda a razão — concordou Brian. Ficara demasiado confuso com a proposta de Marion para poder pensar no verdadeiro estado de saúde da mulher. Ela estava doente havia tantos anos... e ele amava tanto Susan!

Está bem, passarei um cheque!

Não! — interrompeu-o Marion Brand. — Lalu é demasiado esperto para aceitar semelhante coisa. Fingirá sempre nunca ter aceitado qualquer importância. Será melhor entregar-me o dinheiro, Brian, em notas. Em notas de uma libra, de preferência. Eu farei com que Lalu aceite esse dinheiro da forma que ele deseja... discretamente

e sem ninguém saber. Terá de confiar em mim, Brian — disse, ao vê-lo hesitar. — Após a recepção do dinheiro, ele enviar-lhe-á o certificado que lhe possibilitará o divórcio.

Brian fitou-a durante um longo momento, recordando as suspeitas de Susan acerca daquela rapariga. Agora, verificava que elas poderiam ter fundamento. Não era tão ingénuo que acreditasse que ela fizesse tudo aquilo apenas por amizade. Depois, afastou a ideia de chantagem. Tinha de confiar nela... se desejava ser feliz.

— Está bem — concordou, pondo-se de pé.

Quando saíram do café, sentiu-se mais animado. Parecia-lhe que, finalmente, tinha nas mãos a chave do seu futuro.

com o coração mais leve, Brian Fenton regressou a Londres, para levantar o dinheiro que o médico exigira. Isso levou-lhe uns dias, pois não queria que as suas retiradas do Banco provocassem comentários. Por isso, embora estivesse ansioso por voltar a ver Susan e por contar-lhe as maravilhosas notícias que tinha, escreveu-lhe apenas uma carta a dizer que tudo corria bem.

Na paragem do autocarro, em Painswick, Marion Brand, com uma sensação de aborrecimento e contrariedade, encontrou-se com Lyn Davis.

As duas raparigas fitaram-se com declarada hostilidade.

— Ouvi dizer que nos ia deixar, miss Davis — disse Marion Brand, de forma insolente.

— Não se preocupe — retorquiu a amiga de Susan. Partirei sem criar dificuldades. O doutor Lalu parece ter tanta pressa que acho que não o devo estorvar por mais tempo.

— Tenho a certeza de que encontrará emprego sem qualquer problema.

Lyn riu baixinho e fitou a outra, directamente nos olhos.

— Não terei quaisquer problemas, o que não me parece ser o seu caso e o do doutor Lalu.

— Que quer dizer? — perguntou Marion Brand, empalidecendo.

— Apenas que, hoje, vi a vossa doente favorita, depois de uma longa espera.

— Refere-se a...

— Pauline Fenton — continuou Lyn, calmamente. Agora, recomendarei a Brian Fenton que coloque a sua mulher sob os cuidados de outro médico.

— Isso... isso é uma injustiça. — Marion tinha os lábios brancos.

— Se é... tente prová-lo.

O autocarro aproximou-se. Lyn subiu, deixando Marion Brand no passeio.

Só cerca de meia hora depois, Marion Brand chegou à casa de saúde de Painswick.

Já anoitecera, mas o edifício estava profusamente iluminado. Verificou isso, mas não reparou no movimento, desusado àquela hora da noite.

Agitada, dirigiu-se para o gabinete de Achmet Lalu. Fechou a porta e apoiou-se contra esta.

— Eu avisei-te de que Lyn Davis era uma espia de Susan Holt!— disse, de forma crispada, para o homem que estava junto da janela. — Ela esteve a falar com Pauline Fenton.

Mas, ao ver a expressão do rosto do médico, Marion Brand calou-se. Sentiu um arrepio de medo. Lentamente, o médico tirou o cigarro da boca. O seu rosto, moreno, tinha uma palidez estranha.

— Viu-a! — Soltou uma gargalhada escarninha.— Mas Pauline Fenton fugiu!

Marion Brand sentiu que todas as forças a abandonavam. Sentou-se abruptamente.

— Temos de a encontrar rapidamente. Não podemos consentir que se afaste.

— Temos homens a procurá-la em todos os parques que rodeiam o hospital — retorquiu o médico. — A Polícia também foi avisada.

— A Polícia? — gritou ela, histericamente. O médico olhou-a com dureza.

— Não sejas pateta. Não podia esconder um caso destes.

Bateram à porta e um inspector da Polícia entrou. Fitou o doutor Lalu.

— O senhor é o director desta casa de saúde, segundo me informaram. Fugiu uma doente? — Falava calmamente e com autoridade.

O médico acenou afirmativamente.

— A que atribui essa fuga, doutor Lalu?

Marion Brand e o médico trocaram um, rápido olhar. Então, muito apressadamente, ela relatou ao inspector a visita que Lyn Davis fizera à doente, Indo contra as ordens expressas do médico. A essa visita seguira-se a misteriosa fuga da doente. O inspector escutou-a em silêncio.

— Parece-me que será melhor procurar a enfermeira Davis e fazer-lhe algumas perguntas-; disse ele, por fim.

Lyn Davis pediu um bilhete de três dinhelros, depois de o autocarro ter arrancado. A tia vivia perto de Painswick; essa fora uma das razões que a levaram a pedir colocação naquela pequena casa de saúde de província.

Saiu do autocarro e começou a subir o pequeno bosque da colina, no cimo da qual ficava a vivenda da tia. Estava ansiosa por chegar a casa e contar-lhe o que se passara.

Subitamente, uma voz de mulher quebrou o silêncio que a rodeava:

— Enfermeira!... Enfermeira!? Lyn Davis parou e estremeceu. A voz tinha uma nota que lhe era familiar.

— Quem é?-conseguiu perguntar. Enquanto olhava à sua volta, uma figura esguia saiu, tremendo, de detrás da sebe. O luar bateu-lhe em cheio no pálido rosto, e Lyn soltou uma exclamação:

— Mistress Fenton!

— Graças a Deus — murmurou a doente — que é a enfermeira que me foi visitar. Foi tão boa... tão compreensiva! Oh, por favor, ajude-me!

Durante um momento, quando aquela voz a chamara no silêncio da noite, Lyn tivera medo. Depois, ao ver aquela mulher esguia, de rosto pálido e olhos castanhos, todo o medo desapareceu. A mulher estava aterrada mas não louca.

— Fugiu — disse. — Porque o fez?

Paulim Fenton falou lentamente:

— Depois de a enfermeira ter saído, alguém se aproximou da porta e rodou a chave na fechadura... afastando-se imediatamente. Pensei que tivesse sido a senhora. Parecia...

parecia uma resposta às minhas preces. Saí imediatamente.

-Não fui eu — disse Lyn, abanando a cabeça. Suspirou. — Sei, no entanto, que serei considerada responsável por isso.-Pegou no braço da rapariga e sentiu o fino vestido

cheio da humidade da noite. — Como chegou aqui?

— Corri pelos campos. Vi as árvores e pensei que poderia esconder-me aqui. Oh, para onde hei-de ir?

Lyn pensou na vivenda da tia.

-Será melhor vir comigo.

— Não me denunciará? Promete-me que não o fará? — De qualquer das formas, serei acusada de lhe ter facilitado a fuga — disse Lyn, encolhendo os ombros. Prometo.

Conduziu a trémula Pauline Fenton pelo estreito atalho. Quando ultrapassaram uma curva e a vivenda apareceu diante dos seus olhos, Lyn soltou uma exclamação e recuou precipitadamente.

A sua frente estavam dois brilhantes pontos vermelhos — os farolins de um carro. Junto da luminosa sereia via-se distintamente uma antena. Era, sem sombra de dúvida, um carro da Polícia.

— A Polícia!

Pauline Fenton cambaleou, ao ouvir aquelas palavras. Tentou libertar-se

das mãos de Lyn.

A jovem falou-lhe rapidamente e com suavidade:

— Não seja pateta. Não vou entregá-la. Mas temos de agir rapidamente.

A mulher desatou a soluçar baixinho.

— Tenho medo. Preciso de falar com Brian. Preciso de lhe contar a verdade.

— Brian? — repetiu Lyn, lentamente.

— Sim, talvez seja o melhor. Ele saberá o que deve fazer. — Olhou para a sua companheira. — Se lhe disser onde o poderá encontrar, irá directamente para lá?

— Bem sabe que sim. — A maior sinceridade estava patente naquelas palavras.

Lyn arriscou-se:

— Vá para Dawsbury— disse lentamente. — Procure Linden Cottage.

Pergunte por Jim Holt e pela sua irmã.

Tirou o casaco e deu-o à trémula senhora.

— Vista isto-ordenou, com suavidade — e leve a minha mala. Encontrará aí bastante dinheiro.

Um momento depois, Pauline desaparecia, como um fantasma, no meio da escuridão.

Lyn voltou-se, encheu-se de coragem e foi ao encontro da Polícia, que a aguardava na vivenda.

Meia hora mais tarde, o inspector telefonava para a casa de saúde.

No escritório do doutor Lalu, Marion agarrou imediatamente no auscultador.

— Conversámos com a enfermeira Davis — disse o inspector.

— Falou de forma bastante confusa, parecendo saber mais do que disse. Afirmou apenas que indicara a Mistress Fenton o lugar onde poderia encontrar o marido...

Marion enclavinhou os dedos no auscultador, até ficarem brancos. A voz, calma, continuou:

-Tem alguma ideia de onde será? Poderia ser uma pista para a encontrarmos.

Lentamente, Marion Brand deu o endereço de Brian Fentou em Londres. Mas sabia que isso não os ajudaria nada.

O único endereço que Lyn Davis conhecia era o de Linden Cottage, perto de Dawsbury. Fora para ali que ela mandara Pauline Fenton!

Marion Brand pousou o auscultador. Lenta e pensativamente, dirigiu-se para o armário junto da secretária do médico e tirou uma caixa com duas seringas hipodérmicas.

Meteu dentro da caixa algumas ampolas de morfina.

Se Pauline Fenton se dirigia para Dawsbury, teria de a encontrar primeiro, antes da Polícia. Teria de a trazer de volta para Painswick e esconder da Polícia a existência de "Jim Holt" e da sua" irmã — o segredo que lhe daria cinco mil libras em notas.

Deixou um bilhete ao médico, explicando-lhe que tinha de se ausentar e que levaria o seu carro por um ou dois dias. Depois dirigiu-se para o Norte.

E enquanto Marion conduzia cuidadosamente, com os faróis no máximo, para iluminar bem as bermas da estrada, Pauline Fenton seguia numa

carruagem de um comboio quase deserta. Comboio e carro seguiam no mesmo sentido.

Susan estava sozinha, na cozinha de Linden Cottage. Passou uma mão pelo cabelo, com extremo cansaço. Curvou-se sobre a mesa e agarrou numa folha de papel.

Ali estava outro bilhete anónimo. Chegara naquela manhã. Leu-o, cheia de infelicidade:

Desapareçam enquanto é tempo.

De alguém, que sabe tudo.

O seu rosto revelava traços de ansiedade. A noite anterior fora a primeira que Brian passara fora de casa, desde que os problemas tinham começado a surgir. Sentia a falta do conforto da sua presença; o facto de saber que ele estaria junto de si, pronto para a ajudar e proteger, seria o suficiente para lhe acalmar os nervos.

Vagueou pela pequena casa. Ali vivera com o homem que amava. A sua presença enchia cada aposento! A recordação das suas conversas encontrava-se em cada canto.

Subitamente, lá em baixo, a campainha soou.

com o coração a bater fortemente, Susan curvou-se cautelosamente da janela. Tinha medo de abrir a porta, nunca sabendo que nova humilhação a esperaria.

Mas viu que era uma estranha que se encontrava lá em baixo, uma rapariga magra, de cabelos loiros. Olhava nervosamente para trás, como se tivesse medo de ser vista.

Susan desceu as escadas rapidamente e abriu a porta.

A mulher fitou-a e avançou um passo.

Posso entrar? Oh, por favor, posso entrar? — suplicou.

Susan fitou-a, atónita. Viu que os castanhos olhos da recém-chegada estavam cheios de lágrimas e tinham uma expressão aterrada, que tocou e comoveu Susan.

Abriu a porta totalmente e a mulher entrou rapidamente. Ao fechar a porta, Susan viu o polícia da aldeia passar lentamente junto do portão, na sua bicicleta. Lançou um demorado olhar a Linden Cottage e afastou-se.

Susan voltou-se e viu a rapariga encostada à parede, como se estivesse exausta. O seu rosto estava mortalmente pálido.

— Que se passa?-perguntou, ansiosamente. — Não se sente bem?

Pensou que a rapariga se sentira mal, ao passar junto da vivenda, pois as cores já começavam a voltar-lhe às faces.

— Agora, já me sinto melhor. — Sorriu levemente e passou uma mão pela testa. — O que deve ter pensado de mim! Esta é Linden Cottage'!

— Sim — respondeu Susan, sentindo o coração dar um pulo.

— Procuro Brian Fenton — acrescentou a mulher. Sussn levou uma mão à garganta. Instintivamente, simpatizara com aquela tímida rapariga, de ar assustado. Mas ficou, imediatamente, desconfiada.

— Esta casa pertence a Jim Holt — disse friamente.— Sou sua irmã. Porque veio aqui procurar...

— Brian Fenton?-A rapariga loira pacecia tragicamente incrédula. — Mas disseram-me para vir aqui.

— Quem lhe disse isso?

— Foi...-Calou-se e mordeu os lábios. — Não posso dizer-lho. Mas, por favor, preciso de encontrar Brian Fenton. Não me pode ajudar?

Pauline Fenton sentia-se desorientada. Durante anos, o seu pobre cérebro encontrara-se mergulhado em profundo nevoeiro. Agora, aquelas espessas nuvens começavam a afastar-se, mas o mundo onde se encontrava parecia-lhe estranho, perturbador e desesperadamente antagónico.

— Receio bem que não.

Susan conservava um tom seco e impessoal. Aquilo era uma armadilha; tinha a certeza disso. Alguém tentava apanhá-la numa fatal confissão, que mais tarde usaria contra ela. Pior do que isso: poderiam usá-la contra o homem que amava.

— Mas eu sei que ele está aqui. "Ela" disse-me que estava. Deve ter sido...

A tensão daquela longa noite em que fugira de Painswick, a solitária viagem de comboio, o medo de ser perseguida, tinham sido excessivos. Começou a ficar muito pálida e a perder o equilíbrio.

Susan não pôde deixar de se sentir comovida.

— Está doente! — disse, com convicção.-Tem de se sentar. Venha... venha para aqui.

Pegou no braço da rapariga e levou-a para a sala de estar, que dava para o jardim. Ali, a rapariga desmaiou.

Susan correu, freneticamente, para a cozinha. O seu primeiro pensamento foi procurar um revigorante. Não havia brande em casa, mas uma chávena de chá bem quente ajudaria. Torceu um pano sob a torneira da água fria e perguntou a si própria se não deveria chamar o médico.

Mas pensou que devia debelar aquela crise sozinha. A mulher perguntara por Brian... Quem quer que fosse, Susan compreendeu que devia livrar-se dela sem que outras pessoas soubessem da sua vinda ali.

Encheu uma bacia com água e olhou à sua volta, à procura de um jornal, para o colocar sob ela.

O jornal da manhã estava, ainda por abrir, sobre a mesa da cozinha, entregue havia pouco pelo ardina da aldeia. Pegou nele e abriu-o.

Um título atraiu a sua atenção:

 

               DOENTE FOGE DE CASA DE SAÚDE

 

Já ia a caminho da sala, quando qualquer coisa a fez olhar novamente para o jornal. Sobre o título estava uma foto, muito mal impressa, mas que, mesmo assim, identificou: era o retrato da mulher que se encontrava na sua sala de estar.

Leu a notícia rapidamente:

«Mistress» Pauline Fenton, uma doente da casa de saúde de Painswick, fugiu dali a noite passada. O director, doutor Lalu, disse a um repórter que «mistress» Fenton parece perfeitamente normal, mas que, quanto mais depressa regressar à casa de saúde, tanto melhor. A Polícia pede a quem a encontrar que entre em contacto imediatamente com o posto de Painswick.

Durante um momento Susan sentiu-se desfalecer. A pobre mulher de Brian estava ali!

Se Pauline Fenton tinha de ser encontrada pela Polícia ou por alguém, não poderia ser ali, naquela vivenda.

Controlou-se e dirigiu-se para a sala de estar.

A mulher começava já a recuperar os sentidos e, sob us cuidados de Susan, bem depressa as cores voltaram às suas faces. Susan deu-lhe uma chávena de chá e, sentando-se perto dela, começou a falar, escolhendo as palavras com o maior cuidado:

— Não sei o que a fez pensar que Brian Fenton estivesse aqui. Claro que eu e o meu irmão o conhecemos... Ele visita-nos de vez em quando. Devia procurá-lo na sua casa, em Londres.

Pauline arregalou os olhos.

— Brian está em Londres?-murmurou. — Eu... eu

não quero ir lá.

Susan compreendeu imediatamente o seu receio. Sabia que a Polícia a procuraria ali. Parecia impossível que aquela rapariga estivesse desequilibrada. Mas era isso mesmo que dizia a notícia do jornal. Persuasivamente, continuou:

— Se não quer ir para casa dele, pode ficar em qualquer outro lado e telefonar-lhe. Se... se ele estiver em Londres, certamente que irá ter consigo.

O rosto da mulher animou-se. A esperança voltou aos seus castanhos olhos. Agarrou aquela ideia imediatamente, como Susan esperara.

— É verdade. vou para lá. — Levantou-se e, impulsivamente, pegou na mão de Susan. — Foi muito boa para mim — disse, agradecida.-E muito gentil. Deve achar estranho o meu aparecimento aqui. Gostaria de lhe explicar tudo. Talvez um dia o possa fazer.

Susan acenou afirmativamente, engolindo os soluços que teimavam em subir-lhe à garganta. Novamente se sentia cheia de remorsos e de culpa por causa do duplo papel que se via obrigada a representar. Se a outra rapariga soubesse toda a verdade a seu respeito, talvez dissesse outras palavras.

" Acompanhou-a até à porta e ficou a ver a esguia figura afastar-se pelo caminho, em direcção ao portão, que ficava ao fundo do jardim. Depois, Susan fechou a porta e encostou-se a esta.

As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces. Era a reacção normal, depois do choque sofrido.

Mas não era ocasião para choros ou fraquezas e tentou controlar-se. A visita da mulher de Brian concretizara todos os seus receios. Não adiantava lutar pela felicidade que ela e Brian desejavam.

Havia demasiados riscos. Podiam arruinar as suas vidas e a de Pauline Fenton, também.

Devia proteger Brian das consequências daquele amor por ela que tudo lhe dava sem nada lhe exigir em troca.

Tinham de se separar. Aquela experiência chegara ao fim. Mesmo que não pudessem voltar a encontrar-se novamente, tinha de correr esse risco — tinha o dever de tomar essa atitude.

Levantou a cabeça e limpou os olhos e as faces.

Deixou passar alguns minutos, para que a mulher de Brian se afastasse e, depois, vestiu o casaco e dirigiu-se para a garagem, que ficava ao lado da casa. Tirou a sua bicicleta e pedalou para a aldeia. Dirigiu-se para os Correios. Mandou um telegrama para Brian:

Não regresses. Escreverei a explicar tudo.

SUSAN

Depois, sorrindo para o velho mister Parker, que a fitava com curiosidade, montou na bicicleta e regressou à casa, a fim de escrever uma longa carta a Brian, explicando-lho o que se passara":

Meu amor, sempre te amarei. Não posso acreditar que a nossa felicidade fosse perversa ou errada, mas temos de nos separar. Não suportaria ver-te envolvido num sórdido escândalo, por minha causa — e será isso que acontecerá se não enfrentarmos a realidade.

É com grande dor que escrevo isto, mas sou eu que tenho o dever de tomar esta atitude. Sei que, por minha causa, enfrentarias tudo, e não o posso consentir. A minha decisão é inabalável.

Assinou a carta e, ao enfrentar a realidade da atitude que tomara, não aguentou. Pousou a cabeça sobre a mesa e chorou convulsivamente.

Exausta por aquela noite de condução, Marion Brand estacionou o carro do doutor Achmet Lalu no cimo da colina, perto de Linden Cottage.

Lentamente, saiu do carro e desceu, cautelosamente, pelo pequeno bosque. Havia ali muitos arbustos, e bastante altos, mesmo defronte da casa de Susan, e seria fácil esconder-se ali e observar quem entrava e saia.

Deslizou para detrás de um arbusto, donde podia ver distintamente a porta principal. Teve sorte, porque não precisou de esperar muito.

A porta abriu-se e uma rapariga saiu.

Pauline Fenton!

Com olhos brilhantes, Marion Brand viu-a descer o jardim e olhar para trás, quando chegou à estrada. A enfermeira viu imediatamente que Pauline Fenton não encontrara ainda ajuda ou abrigo. Continuava receosa e fujria, ainda.

Lentamente, olhando muitas vezes para trás, Pauline Fenton começou a descer a colina. E Marion não esperou mais. Saiu do seu esconderijo e correu atrás dela. Colocou uma mão no seu braço e sorriu, ao ver os apavorados olhos da mulher.

— Não irá mais longe, minha querida mistress Fenton. Tem de regressar comido.

com ar sombrio, e violentamente, puxou-a para dentro do carro e pegou na caixa que continha a injecção de morfina, que preparara para aquele momento. Arregaçou o casaco de Pauline e descobriu-lhe o braço.

Pauline gemeu, quando a agulha se lhe cravou no braço. Depois, a enfermeira voltou-se para colocar a agulha dentro da caixa. Durante um momento, ficou de costas e Pauline abriu a porta do carro e fugiu.

Marion Brand soltou uma praga e correu atrás dela. Pauline não poderia ir muito longe. A droga não tardaria a fazer efeito.

Mas a fugitiva correu para Linden Cottqge — para a rapariga de olhos suaves e mãos carinhosas.

Abriu o portão e correu sobre o saibro.A porta principal estava fechada e, por isso, ela correu para as traseiras.

Havia ali uns degraus de pedra, que conduziam a um poço, coberto por trepadeiras, que não era utilizado.

Marion Brand apanhou-a quando ela chegava ao cimo da pequena escada de pedra.

— Vamos embora! — gritou-lhe.

Durante um momento, as duas lufaram.

com desesperada energia, a mulher conseguiu soltar-se, com um sacão brusco, mas desequilibrou-se e caiu pelos traiçoeiros degraus, indo chocar com a pedra do poço.

Ficou ali imóvel, numa posição grotesca. Marion Biand compreendeu imediatamente a verdade.

PauHne Fenton estava morta!

Marion Erand ficou trémula de terror. Sabia que arrastara aquela mulher para a morte, pelo medo que lhe causara.

Durante um momento, olhou à sua volta, desesperada. Depois, o velho poço chamou-lhe a atenção. Soluçando com medo e uma estranha repulsa, Marion Brand tomou uma decisão. Arrastou o inerte corpo para o poço, arredou a folhagem e atirou-o para dentro.

com os olhos fechados, ouviu a pancada do corpo ao cair na água.

Depois, lentamente, contornou a casa e dirigiu-se para o carro.

Sozinha em casa, Susan passeava sem descanso, indo do rés-do-chão para o primeiro andar. Não podia continuar a viver em Linden Cottage.

Sabia que nem ela nem Brian poderiam continuar naquela situação. Ninguém acreditava na pureza do seu amor, e os perigos eram demasiado grandes.

Resolutamente, decidiu telefonar para o agente de compra e venda de propriedades da cidade mais próxima. Era tarde mas, sabia que ele morava no andar por cima do escritório.

Fala miss Holt, de Linden Cottage — disse ela. — posso pôr a vivenda à venda? Que devo fazer?

Uma voz agradável respondeu-lhe do outro lado do fio:

— É muito simples. Segundo penso, a propriedade está em nome do seu irmão. Peça-lhe que lhe mande uma procuração em seu nome e eu porei a casa à venda imediatamente. Não teremos dificuldade em encontrar comprador.

— Obrigada. — Susan desligou.

Só o seu irmão, Jim Holt, poderia vender a casa, mas este encontrava-se algures, em África.

Dirigiu-se para a cozinha e olhou, pela janela, para o jardim, já envolto em sombras. Sentia-se desesperada. O tempo estava chuvoso e a água corria pelas vidraças.

Que podia fazer? Porque se lembrara daquele lugar? Se a casa pertencia a seu irmão, nem sequer a poderia arrendar. O agente queria uma procuração e sem isso nada feito.

— Enquanto eu permanecer aqui, Brian nunca se afastará — murmurou, angustiada. — Enquanto ambos estivermos aqui, haverá sempre perigo. — Fechou os olhos.— Tenho de partir, tenho de me afastar.

Metodicamente, começou a preparar tudo para fechar a casa. Nem mesmo chorava; era como se o seu coração estivesse morrendo. Cada vez sentia mais a falta da presença de Brian.

Por fim, cansada, foi para a cama. Aquela seria a última noite no lugar que considerava o seu lar. Quando se deitou, toda a amargura e tristeza acumuladas venceram-na finalmente, e ela deu-lhes vazão. Mergulhou o rosto na almofada. Os seus soluços era o único som na casa vazia.

Não fazia ideia de havia quanto tempo estava ali, quando, subitamente, a luz do quarto se acendeu. Assustada, sentou-se na cama e viu Brian Fenton no umbral.

Durante um momento, mal pôde acreditar no que via.

— Brian!-gritou ela, cheia de incredulidade e alegria.— Porque vieste?

Brian não respondeu. Ficou apenas a olhar para ela. Depois, estendeu-lhe os braços e avançou ao seu encontro.

— Oh, Susan, Susan — murmurou, encostando a cabeça ao peito da jovem. — Procedi mal, querida? Mas tive de vir aqui, assim que recebi o teu telegrama. Apertou-a nos braços, fortemente.

— Oh, não devias ter vindo. — Enquanto dizia aquelas palavras, apertava-se contra ele. — Não é prudente permaneceres aqui durante mais tempo.

— Mas, assim que recebi o teu telegrama, tive de abandonar tudo e vir para junto de ti. Minha querida, se alguma coisa corre mal, o meu lugar é aqui.

Ela conseguiu sorrir levemente. Como ele era maravilhoso! Mas como ficaria horrorizado, quando soubesse o que acontecera!

Acariciou-lhe o rosto e fez uma pausa, antes de murmurar:

— Brian, a tua mulher esteve aqui... Foi por isso que te mandei o telegrama.

— Pauline!?-O rosto dele ficou cinzento. Apertou Susan mais fortemente. — Mas como teve conhecimento da existência desta casa?

Susan encolheu os ombros.

— Chegou de manhã. E. Brian, ela não me pareceu desequilibrada. Não tive medo dela. Desejei falar com ela, mesmo ajudá-la... mas só queria falar contigo.

— Falar comigo... — Brian respirou de forma ofegante. — Aqui, em Linden Cottage? Isso significa que ela sabe tudo... acerca de nós!

Susan abanou a cabeça.

— Acho que não. Tê-lo-ia dito, se o soubesse. Desejava falar contigo, mas não disse quem lhe indicou este endereço. Por isso, sugeri-lhe que te procurasse em Londres.

Disse-lhe que, ali, te encontraria com mais facilidade. Expliquei-lhe que tu apenas nos visitavas, a mim e ao meu irmão... de vez em quando.

Durante um momento, o homem ficou silencioso. Franziu os sobrolhos, tristemente. Pensativo, disse:

— Passa-se qualquer coisa de muito estranho em tudo isto, Susan. Como é que Pauline sabia que me poderia encontrar aqui? Quem lho disse? E como pode ser considerada louca, se foi capaz de apanhar o comboio, procurar-me e falar de forma racional? Marion Brand dizia que ela nem sequer me reconheceria, se me visse!

— Marion Brand! — Susan não pôde reprimir o azedume que sentia contra aquela mulher. — Nunca confiei nela.

— Não — disse Brian, lentamente. — Talvez eu tenha confiado demasiado nela.

Pensou rapidamente no negócio que fizera com a morena enfermeira. Pagar-lhe-ia cinco mil libras e ela fornecer-lhe-ia o certificado necessário para obter o divórcio.

Depois do que acabara de saber, tudo aquilo lhe parecia muito suspeito.

— Não posso desistir — murmurou ele, e a sua voz estava carregada de comoção. — Não me importam as consequências e quanto possa sofrer, Susan.

Não poderia viver sem ti.

Ela beijou-o na testa.

— Pensas que também seria fácil para mim? Durante um momento fitaram-se, em silêncio.

— Amo-te — murmurou ela. — Devo fazer aquilo que é melhor para ti. Não poderemos ficar juntos, enquanto a tua muíher... estiver livre. Supõe que ela volta aqui?

— Pois bem. Vamo-nos embora daqui — disse ele, por fim. — Teremos de procurar Pauline, mas fá-lo-emos juntos. — Beijou-a no rosto. — Teremos de resolver este assunto, e não desistiremos. — Sorriu-lhe, tentando confortá-la e, depois, levantou-se e dirigiu-se para a porta.

Apayou a luz.

— Boas noites, meu amor — murmurou, no meio da escuridão, enquanto cerrava a porta suavemente, atrás de si.

Na casa de saúde de Painswick, tudo estava calmo e a madrugada começava a romper.

O doutor Lalu, descendo lentamente a grande escadaria, apertava o roupão, aconchegando-o mais a si.

Sob a porta do seu gabinete saía um pequeno rectângulo de luz viva. Sorriu sombriamente. Não se sentia surpreendido. Ficou uns momentos cá fora. Depois bateu levemente na porta e entrou.

Maríori Brand estava de costas para a porta e mexia, febrilmente, numa caixa esterilizadora. Ele fechou a porta suavemente e a mola do trinco deu um estalo.

Marion Brand rodou.

— És tu!

Fora um grito assustado. Mas controlou-se imediatamente. Soltou uma gargalhada nervosa.

-Por um momento, assustaste-me!

— Onde estiveste, minha querida?-A voz dele parecia veludo, mas os seus olhos brilhavam.

— Não tens nada com isso.

Os olhos do médico pousaram sobre a caixa, junto da jovem.

— Reparo — continuou ele, suavemente — que tiveste a amabilidade de me devolveres a seringa e a morfina que levaste, além do meu carro.

Na realidade disse ela, com uma expressão gelada no olhar —, nunca estive ausente, não te pedi emprestado o carro e não toquei, sequer, nas agulhas ou na morfina.

Compreendo!-A voz dele era quase acariciadora.

— Precisavas de um álibi. é isso?

— De forma alguma! Não faças perguntas, aceita apenas o que digo.

Sempre tenho feito o que tu queres, minha querida Marion. — Sorriu. — Sou obrigado a fazê-lo. S a cruz que tenho de suportar. — Aproximou-se e olhou para o armário dos medicamentos. —Vejo que utilizaste alguma morfina. Para ti? — Fitou-a demoradamente. — Não, claro que não. Para quem foi ?

-Já disse para te calares!

Ele sorriu e encolheu os ombros.

— Então, encontraste a pobre Pauline ? — Viu-a estremecer... — Sim? Foi para ela que precisaste da morfina?

Durante um momento, fitou-o com olhos fuzilantes.

Depois, avançou rigidamente para ele e esbofeteou-o com violência. Fora uma loucura, aquele gesto, mas os seus nervos não aguentavam mais.

O médico levou os dedos à marca vermelha que tinha no rosto. Durante um momento, Marion Brand sentiu medo, ao ver o ódio que se espelhava naqueles olhos. Mas conseguiu dominar-se.

-Faz o que te digo — repetiu, com dureza. — Se alguém fizer perguntas, responderás que eu não saí da casa de saúde, que não te pedi o carro e que não toquei nas tuas ampolas de morfina.

Ele concordou e sorriu de forma ácida.

— Como é encantadora a forma como fazes prevalecer os teus desejos, minha querida Marion! Claro que farei o que dizes.

Mas ela sentiu um medo estranho perante aquela atitude irónica. Preferia que ele evidenciasse cólera ou medo. Disse:

— Estou cansada. vou deitar-me.

— Fazes bem — concordou ele. — Conduziste durante um bom pedaço. Daqui até Dawsbury são uns bons quilómetros...

— Não te disse que fui a Dawsbury.

Tinha os olhos dilatados e a sua voz tremia.

Ele encolheu os ombros.

— Foi apenas uma mera conjectura — acrescento: suavemente. — Ambos sabemos que, provavelmente, Lyn Davis disse a mistress Fenton para procurar o marido em Dawsbury.

Presumi que tivesses ido até lá.

Marion Brand ficara muito pálida.

— A Policia sabe alguma coisa acerca de Dawsbury?

— Claro que não. Mas não achas que lho devemos dizer? Quanto mais depressa ela voltar para aqui, melhor...

Não! — quase gritou ela.

Durante um momento, fitaram-se em silêncio. Depois, Achmet Lalu sorriu levemente.

— Está bem, imagina o que quiseres — disse ela, roucamente. — Não te posso impedir de o fazeres, mas não te direi nada. Estou metida num sarilho, é tudo. E se for descoberta, arrastar-te-ei comigo. Por isso, é melhor que faças o que eu digo.

Passara um mês sobre o desaparecimento de Pauline. Brian Fenton, naquela fria tarde de Dezembro, dirigia-se para a casa de saúde de Painswick. com firmeza, o rosto crispado, encaminhou-se para a porta principal. Um porteiro conduziu-o até ao gabinete do doutor Lalu.

— Boas tardes, mister Fenton — cumprimentou o médico, levantando-se e estendendo-lhe a mão, com um sorriso aberto.

Brian olhou para aquela mão e ignorou-a. Mas o médico continuou a sorrir. Apenas os seus olhos se semicerraram levemente.

— Queira fazer o favor de se sentar — convidou, com delicadeza.

O visitante abanou a cabeça.

— Vim para saber qual é a situação, respeitante à minha esposa.

O médico franziu o sobrolho e acendeu um cigarro, lentamente.

— Receio bem — disse, com voz modulada — que ela não esteja já sob a responsabilidade deste estabelecimento hospitalar.

— Mas consentiram que ela fugisse. O senhor devia... O médico interrompeu-o:

— Meu caro senhor, isso talvez seja verdade. Talvez não tenhamos vigiado devidamente a sua esposa. Mas, se um enfermo se ausenta de uma casa de saúde de doenças

mentais por um período superior a catorze dias, então, torna-se necessário um novo certificado de insanidade. Isso pode ser tratado por um médico ou por um magistrado.

Sob o ponto de vista legal, a sua mulher, actualmente, está curada... e não se encontra sob a nossa responsabilidade.

Ao ouvir aquelas palavras, Brian deixou-se cair numa cadeira, como se a fúria inicial o tivesse abandonado. O médico observou-o, sem revelar qualquer comoção.

— Sei isso — disse Fenton, com ar cansado. — Mas temos de a encontrar. Não podemos ficar na expectativa.

— Passou uma mão pela testa. — A Polícia também não tem quaisquer notícias. — Olhou para o médico. — Claro que sabe que ou pensava pedir o divórcio...

— Baseado em loucura incurável. — O médico inclinou a cabeça, numa afirmativa.

Brian Fenton fez uma pausa, antes de continuar:

— Vai ajudar-me?

— Talvez, mas não sei como. Brian cnrrou os punhos.

— Não estejamos com evasivas — disse, duramente. — Eu ia dar-lhe cinco mil libras para certificar que a minha mulher era incurável.

— Nunca ouvi semelhante coisa. — O médico falava suavemente. — Tem algum documento escrito?

— Não.

Mister Fenton — o médico levantou uma mão —.

o senhor está, compreensivelmente, perturbado, mas não deve pensar, certamente, que eu seria capaz de conservar uma mulher encarcerada, durante toda a vida, por cinco mil libras. O problema é este, posto de forma crua. nunca a viu... Não sei porquê, persuadiu-se de que seria mau visitar a sua mulher.

Se o tivesse feito...

O rosto de Brian Fenton estava cinzento.

— Quer dizer... que teria verificado que ela estava melhor?

— Teria visto o que devia ver — replicou o outro, de forma enigmática. — Mas, agora, a sua mulher está livre. Se deseja um divórcio, é um assunto que diz respeito aos tribunais e não aos médicos.

Seguiu-se um silêncio.

— Talvez eu tenha sido injusto com o senhor, doutor— disse Brian Fenton. — Compreendo a sua posição, mas não pode dizer-me... para onde teria ido Pauline? O outro hesitou.

— Francamente, não faço a mínima ideia. Não estava perfeitamente normal, como uma pessoa que nunca tivesse estado doente e sujeita a tratamentos prolongados, mas quando fugiu estava curada. Ela queria encontrá-lo, para falar consigo.

— Eu sei. A enfermeira Davis relatou-me a conversa que teve com a minha mulher. Parece que a criança não era minha.

— Sim, eu sei. Mas é estranho que ela tenha desaparecido com o seu segredo. — O médico estava pensativo. Ela estava obcecada pela ideia de lhe confessar a verdade... de lhe conceder a liberdade...

— Terá acontecido alguma coisa? Ter-se-á suicidado? O médico encolheu os ombros.

— Duvido, porque o seu corpo seria encontrado. Mas, no entanto, pessoas com pesos na consciência fazem isso muitas vezes. Quem pode saber?

Pesadamente, Brian Fenton pôs-se de pé. Fitou o rosto moreno do médico.

— Se ela estivesse viva, teria ido ter comigo — disse com uma voz sem expressão. — Tenho a certeza disso.

Voltou-se e, cegamente, saiu do gabinete. Mariou Brand, com o uniforme branco, estava à espera no vestíbulo. O rosto iluminou-se-lhe ao ver o homem que, secretamente, desejara conquistar.

— Brian...

Ele fitou-a, mas o rosto crispou-se-lhe numa expressão de desprezo. Passou por ela, sem uma palavra, deixando-a rubra e trémula.

Cheia de raiva, entrou no gabinete do médico.

— Que se passa com Brian Fenton? Ele sorriu friamente.

-Nada. Não deseja tratar mais nada connosco. Receio bem que o teu plano para lhe extorquires cinco mil libras tenha ido por água abaixo.

— Que queres dizer?

— Ele foi bem explícito. — Sorriu novamente. — Só está à espera de que a sua mulher seja encontrada. Quando ela aparecer, um médico e um magistrado não terão qualquer dificuldade em certificar que ela está completamente curada. E, depois... depressa consentirá no divórcio que ele deseja.

— E supõe... que ela não aparece?

Então, ele e essa rapariga, Susan Holt, terão de

esperar muito tempo. Até que a sua mulher seja considerada morta. Ou talvez ele peça o divórcio alegando abandono do lar por parte da esposa. — Atirou com o fumo para o ar. — De qualquer das formas, já não é assunto nosso. Não ganharás cinco mil libras.

— Não? — murmurou.

No seu cérebro havia um pensamento: o segredo que ela possuía podia ainda valer cinco mil libras.

Mas, dessa forma, seria pura chantagem. Mais perigoso do que se vendesse um certificado médico e làngasse as culpas sobre o médico que tinha sob o seu domínio.

Mas, no entanto..

Reteve a respiração. O que não faria com cinco mil libras! Poderia sair do país. O que interessava o facto de ser mais perigoso? Não estava já metida no perigo?

Não havia um corpo no poço da solitária Linden Cottage? Se fosse encontrado, a Polícia procuraria o.assassino...

Sentia a pele coberta de um suor frio.

"Cinco mil libras!" As palavras repercutiam-se no seu cérebro, fazendo-lhe antever a maravilhosa perspectiva da fuga para outro país.

Quando saiu da casa de saúde, Brian Fenton dirigiu-se para a vivenda onde Lyn Davis morava com a tia. Durante as últimas semanas, Susan vivera também ali, enquanto Brian ajudava a Polícia, tanto quanto podia, nas investigações sobre o desaparecimento da sua mulher.

Lyn Davis abriu-lhe a porta.

— Susan saiu — disse ela, depois de o ter cumprimentado. — Foi dar um passeio pela colina..— Segurava nas mãos um vestido dobrado cuidadosamente.

— Está a fazer as malas, Lyn? —perguntou Brian. Está, então, decidida a partir de Inglaterra?

A rapariga australiana sorriu tristemente.

— Bem, aqui o futuro não se apresenta multo risonho. Toda a gente pensa que eu facilitei a fuga a sua mulher-, Brian, embora não o possam provar. No entanto, dos boatos fica sempre qualquer coisa e eu acho preferível voltar para casa.

— Tem sido uma boa amiga — disse o homem, um pouco atrapalhado. — Lamento imenso que tenha sofrido por nossa causa. Gostaria que nada disto tivesse acontecido.

Ambos ficaram silenciosos, recordando os dias quando Lyn trabalhara, como enfermeira, na casa de saúde onde Pauline Fenton estivera internada. Lyn tentara ajudá-los, mas como compensação tivera apenas problemas.

— Fiz isso principalmente por Susan — disse ela, com a habitual franqueza. — Gostaria que ela regressasse comigo à Austrália.

— Austrália? — perguntou Brian, num fio de voz.

-Aqui, qual será o destino dela? Não pode casar com ela e não me parece que o possa fazer algum dia. Porque não lhe concede uma oportunidade para ela ser feliz?

— Se ela deseja partir... não a reterei.

-Claro que ela não deseja partir. Mas diga-lhe para ir.

Brian fitou a rapariga, tão implacável no que se referia à sua amiga, e concordou sombriamente.

— Vou ver se a encontro — disse ele, lentamente.

Caía um leve chuvisco. No cimo da colina não viu sinal da rapariga que amava. Para a esquerda, ficava uma velha igreja. Pensou que talvez ela se tivesse abrigado ali.

Sem fazer barulho, dirigiu-se para o templo. com dificuldade, viu uma figura esguia, sentada no alpendre.

Sem uma palavra, sentou-se junto dela e pegou-lhe na mão. Não há qualquer esperança, Susan. Não a encontraremos.

Viu os olhos dela encherem-se de lágrimas. Ele continuou quase impiedosamente, mas sentindo o coração oprimir-se-lhe a cada palavra que dizia:

— Pode levar anos.

Os dedos dela apertaram os seus. Brian desejou confortá-la; mas que adiantava a ternura quando só os expunha à tentação que representava o amor que sentiam um pelo outro?

— O que havemos de fazer? — perguntou ela, num murmúrio.

— Separar-nos! — disse ele. — Que mais poderemos fazer? Como poderemos viver, dia a dia, nesta angústia? Só Deus sabe durante quanto tempo esta espera se prolongará...

Talvez para sempre. — Estava a ser brutal, mas era o único caminho que lhe restava. — Será melhor voltares para a Austrália.

Fechou os olhos, quando viu a expressão horrorizada do rosto dela. Lentamente, ela obrigou-o a pôr-se de pé e conduziu-o, silenciosamente, até ao altar. Ali-, disse-lhe:

— Se o nosso amor fosse pecaminoso, sabê-lo-íamos neste lugar. Como poderíamos, aqui, sentir esta paz? — Fitou-o. — Certamente que não me mandarás embora, não me afastarás de ti...

De mãos dadas, saíram da igreja.

Cá fora, na luz cinzenta do entardecer, estava Mariou Brand, à sua espera.

— Que bonito par — disse com ar malicioso e malévolo.

— Um par muito bonito, mister Fenton! Ou devo-dizer... Mister Jim Holt?

 

Susan sentiu-se gelar de medo. Rapidamente, estendeu a mão a Brian. Ele apertou-lha com força, quase a magoando.

De mãos-dadas, fitaram a rapariga pálida, de cabelos pretos, que os fitava com um sorriso trocista.

Brian perguntou:

— Como me chamou?

— Jim Holt — troçou Marion Brand. — Não vai fingir que nunca ouviu este nome, pois não?

— Claro que já ouvi. Jim Holt é irmão de Susan.

Os lábios de Marion Brand curvaram-se num sorriso gscarninho.

— Ora, ora! Não está a tentar convencer-me de que é o irmão de Susan, pois não? Eu não sou tão ingénua como os aldeões de Dawsbury.

— Muito bem — concedeu Brian —, sabe a verdade. Susan e eu amâmo-nos. Sabe isso há muito tempo. Que importância tem para si esse pequeno pormenor?

Marion Brand sorriu.

— Para mim, nenhuma. Para si, pode significar muito. Eu estava a ajudá-lo a conseguir o divórcio, não estava? Eu procurava conseguir que a sua mulher fosse considerada louca incurável.

— Contou-me uma série de mentiras a esse respeito — respondeu Brian, friamente. — Persuadiu-me para que não a visitasse.-Se a tivesse visitado, teria constatado imediatamente que ela não era incurável e que estava a recuperar. Teria ouvido dos seus lábios a história acerca do seu filho! —Mordeu os lábios. —Meu Deus, que espécie de mulher é você?

— Bem depressa o descobrirá — retorquiu Marion, friamente. — Estava a tentá-lo ajudar.. por causa de um pequeno lucro que auferiria. Ter-lhe-ia conseguido o divórcio por cinco mil libras... se a sua mulher não tivesse fugido na pior altura.

Brian fitou-a horrorizado.

— Agradeço a Deus o facto de ela ter conseguido fugir. De outra forma, ficaria encarcerada durante o resto da sua vida... embora estivesse completamente curada.

— Poderia ser assim. Mas esse pequeno assunto das cinco mil libras ficou por resolver.

Brian soltou uma gargalhada.

— Não pensa, certamente, que lhe darei esse dinheiro agora!

A rapariga fitou-o com ar imperturbável.

— O senhor encontra-se numa situação muito difícil — continuou ela. — Não gostaria que a história de Linden Cottage se tornasse pública, pois não? Se isso acontecesse, seria mau para... Susan e... pior para si.

— Mas... é chantagem! —Brian tinha os lábios brancos. Ela encolheu os ombros.

— Esse é um nome feio. Mas pode chamar-me como que quiser. Suponha que a sua. mulher aparece dentro em breve e consente no divórcio? O que acha que o tribunal pensará se souber que viveu com outra rapariga em Dawsbury?-Riu.-Irmão e irmã! Que bela peta! Claro que eles acreditariam... especialmente quando eu apresentasse alguns aldeões como testemunhas!

A mão de Susan crispou-se na dele. Brian compreendeu que ela estava assustada.

Fitou a enfermeira.

— Não adianta dizer que não acredito que seja capaz de levar por diante a sua ameaça, porque vejo claramente que o fará. Suponho que é dinheiro que deseja. Pois bem... quanto?

Marion Brand soltou um suspiro de alívio. Aquela sua primeira tentativa de chantagem fora mais fácil do que pensara. Antes, sempre sentira que tinha o doutor Lalu entre ela e a Lei, se alguma coisa corresse mal. Mas agora... agia sozinha.

— Alegra-me que seja sensato. O preço continua a ser o mesmo: cinco mil libras. — Sorria de forma triunfante.

— Em dinheiro, exactamente como o combinado anteriormente.

Durante um segundo, Brian hesitou; depois voltou-se abruptamente e, com o braço sobre o ombro de Susan, obrigou-o a afastar-se rapidamente, em direcção à vivenda de Lyn.

A rapariga morena fitava-os com ar triunfante.

Iam muito juntos a caminho da pequena vivenda. O seu amor nunca fora feliz, calmo; nunca houvera entre eles os momentos de alegria de qualquer par de namorados.

Nunca tinham conhecido a terna entrega e suave comunhão de todos os sentidos, que é o casamento, mas as contrariedades apenas serviam para os aproximar mais, como acontece em todos os amores verdadeiros.

— O que vamos fazer? — perguntou Susan.?

Brian hesitou.

— Tudo depende do facto de Pauline ser ou não encontrada.

Susan fitou-o, espantada.

— O que queres dizer com..."ser ou não encontrada"? Ela tem de ser encontrada.

Ele abriu os braços, num gesto de impotência.

— Ela procurava-me — disse com gravidade. — Já teve tempo de me encontrar.

— Talvez... talvez tenha perdido a razão novamente...

— Se isso tivesse acontecido, já teria sido encontrada. Terá de estar no seu perfeito juízo e cheia de inteligência para se conservar escondida durante todo este tempo! Mas... não de mim. Não, isto não faz sentido.

— Queres dizer... que lhe aconteceu alguma coisa? Fitou-o, cada vez mais apavorada.

— Não sei. Não sei.

— E se ela está morta!...

— Já teria sido encontrada — disse, desesperado. Certamente que já teria sido encontrada.

— Sim, suponho que sim. Mas qual será o nosso futuro se ela estiver morta e nós... nunca o soubermos... nunca?

Ele passou a mão pelo rosto e fechou os olhos.

— Não, não poderia ser. Não poderíamos viver sempre na dúvida. Tudo tem de se resolver... Tudo se solucionará.

Mas faltava convicção à sua voz. Naquela tarde, a esperança parecia muito remota. Em silêncio, abriram a porta da vivenda. Lyn apareceu no pequeno vestíbulo.

— Entrem — disse ela, com os seus descontraídos modos australianos. — Pensei que se tivessem perdido Não está tempo para se andar lá fora.

Ajudou Susan a despir o casaco e olhou, de forma interrogadora, para Brían. Os rostos brancos, crispados diziam-lhe que acontecera algo de grave. Sem rodeios, foi direita ao ponto que lhe interessava:

— Brian, falou a Susan na minha sugestão?

— Que sugestão?

— Que ela devia regressar à Austrália comigo. Susan fitou o homem que amava.

-Não irei. Não me mandes embora, Brian. Ele fitou Lyn.

— Vê? Que adianta?

-Muito bonito e encantador-disse Lyn. — Daqui a pouco, desato a chorar de comoção perante atitude tão bela... Mas isso não adianta nada, Susan. Porque não enfrentas a realidade e vês que tens de fazer qualquer coisa para ajudar Brian a sair do sarilho em que se encontra?

Susan fitou-a, espantada.

— Que queres dizer?

— Apenas que ambos estão sentados em cima de um vulcão. Basta pensarmos em algumas pequenas coisas: a mulher de Brian está em liberdade, vocês os dois vêem-se todos os dias e aqueles dias passados em Dawshury podem tornar-se do domínio público... Todas essas coesas podem criar grandes problemas.

— Estás a tentar separar-nos — disse Susan. Sorriu para Lyn, mas os seus olhos tinham uma expressão magoada. — Não te posso censurar por isso. Para ti, sou apenas uma pateta que se apaixonou por um homem casado. Mas é muito mais do que isso.

— Não disse semelhante coisa — protestou a-rapariga.

— Se tu queres continuar esse jogo de amor-numa-cabana, sugiro apenas que a Austrália é um lugar seguro para isso.

— Queres dizer... que Brian poderia ir comigo?

Susan estremeceu, mas uma onda de esperança envolveu-a. A Austrália ficava no outro lado do mundo, ficava muito longe dos mexericos, do perigo, de... Marion Brand.

— É isso precisamente que quero dizer — respondeu Lyn.— Claro que não pensei sempre assim. A princípio, pensei apenas em ti. Vem de avião comigo. Brian pode ficar aqui uns dias para tentar resolver este assunto. Quer o consiga ou não, irá ter contigo.

Brian pegou nas mãos de Susan.

— É sensato — disse suavemente-, embora odeie a ideia de estar longe de ti durante algum tempo.

O doutor Achmet Lalu levou o cigarro aos lábios com a mão pouco firme.

Bateram à porta. Ele rodou, quando o homepi entrou. Era um dos contínuos, um homem forte, com umas velhas calças de ganga e um casaco de cotim.

— Não está — disse ele. — A enfermeira Brand partiu.

— O quê?

-,Fez as malas. Deixou-as no quarto com uma nota que diz: "Virão buscá-las". Mas ela não está lá.

Achmet Lalu praguejou entre dentes. Despediu o contínuo com um gesto seco. Depois, dirigiu-se para a secretaria e marcou um número no telefone interno. Uma voz atendeu.

— Porteiro Lodge — disse o doutor Lalu —, viu sair a enfermeira Brand?

— Sim. Há dez minutos. —Como ia vestida?

— Sem uniforme. — Era evidente que o porteiro estava surpreendido. — Ela vai-se embora... como o senhor sabe.

— Bem sei. — Desligou o telefone.

Ficou parado uns segundos e, depois, entrou em acção. Correu para a garagem e meteu-se no carro, pondo-o em movimento numa fracção de segundo.

Teve sorte. Pouco tempo depois, viu a rapariga que procurava, caminhando rapidamente em direcção à aldeia de Painswick. Não transportava bagagem, mas levava ao ombro um grande saco de cabedal. Ele afrouxou a velocidade, o carro derrapou levemente e parou junto dela.

— Minha querida Marion — disse ele e a enfermeira quase soltou um grito de susto-, se tinhas tanta pressa em nos abandonar, eu teria muito prazer em te dar uma boleia.

Ela ficou muito quieta, com os dedos nervosos cravados no saco de cabedal.

— Será melhor entrares — disse ele. — Não te preocupes, que não te levarei de volta para a casa de saúde.

Ela controlou-se rapidamente e o seu rosto tomou uma expressão de sorridente indiferença. Sentou-se ao lado do médico.

— Estás com pressa, não é assim ? Fizeste as malas em segredo. Deixaste a bagagem no quarto, para ser levantada depois. Nem sequer pediste um táxi.

— Não tens nada com isso — retorquiu ela, com indiferença.— Posso fazer o que quiser, como sempre fiz.

— Claro — concordou ele. As suas maneiras eram suaves, embora os olhos escuros

brilhassem com uma fúria enorme. — Posso deduzir que te vais embora para sempre?

— Podes.

— Posso atrever-me a ter a esperança de que nunca mais nos encontraremos?

— Assim o espero.

Ele sorriu, então, e tirou um maço de cigarros do bolso, oferecendo-lhe um. Ela pegou-lhe com dedos trémulos. Ele reparou imediatamente.

— Sabes o que isso significa para mim — disse suavemente.-Conheces o meu segredo, sabes que o meu verdadeiro nome não é Achmet Lalu, que a Polícia de Marrocos ficaria contente se conhecesse o meu paradeiro. Forçaste-me a fazer muitas coisas contra a minha vontade, só por causa desse segredo. Posso concluir... que tudo isso acabou?

A voz dela foi brutal.

— Não me importa um "chavo" o teu passado ou o teu futuro.

Tinham chegado à estação e o homem afrouxou lentamente. Marion Brand abriu o saco e procurou um fósforo para acender o cigarro. Qualquer coisa tilintou lá dentro.

O médico aproximou o isqueiro.

Mas, enquanto lhe oferecia lume, com a outra mão arrancou-lhe o saco e abriu-o.

Soltou um assobio.

— Estás rica!

— Dá-me isso. — Lutou com ele, mas, apesar do seu corpo magro, ele era duro e forte. — Tanto dinheiro! Quanto? Cinco mil libras? —Soltou uma gargalhada, enquanto lhe segurava as mãos.

Ao ver que acertara, atirou-lhe com a mala. Marion Brand apertou-a contra si. Estava furiosa.

— Aviso-te para não me irritares — disse ela. Isto é meu.

Não terei de me preocupar mais com homens insignificantes como tu.

— Claro que não. — O seu cérebro raciocinava rapidamente. Onde arranjara ela todo aquele dinheiro? Curvou-se para ela. — Brian Fenton deu-te esse dinheiro, calculo.

Ele... não reagiu?

Marion procurou acalmar-se, tentando sorrir e parecer à vontade.

— És um diabo esperto — Lalu disse com desprezo. — Mas porque hei-de ter medo de ti? Sei demasiado a teu respeito. — Acariciou o saco. — Foi uma pequena oferta de Brian Fenton. Ele pensa que foi a primeira e última.. — Soltou uma gargalhada. — Mas só acertou ao respeitante à primeira.

Desapareceu na estação.

O doutor ficou muito quieto.

-Pobre Fenton — murmurou. — Pobre diabo!

Depois, pôs o carro em movimento e afastou-se lentamente. Havia uma coisa que o intrigava.

Como podia Marion Brand estar certa de que Pauline Fenton não apareceria?

Recordou-se daquela informação que ele escondera da Polícia — que Pauline Fenton, quando fugira, se dirigira para Linãen Cottage, em Dawsbury.

Lyn Davis mandara-a para lá — e era quase certo que, depois, mentira à Polícia. Mentira para proteger a sua amiga Susan Holt. E Marion Brand também nada dissera à Polícia, porque o segredo da vivenda era valioso para ela.

— Marion foi a Dawsbury naquela noite em que me pediu emprestado o carro — disse em voz alta: — Tenho a certeza disso. Pelo conta-milhas verifiquei que ela percorreu, mais ou menos, essa distância.

Coduziu o carro para a berma da estrada principal de Painswick e travou.

Lentamente, saiu do carro e dirigiu-se para uma cabina telefónica. Ligou para a telefonista e poucos minutos depois puseram-no em ligação com a Scotland Yard Whitehal mil e duzentos e doze. Era mais seguro do que telefonar para a Polícia local, onde a sua voz poderia ser identificada.

Quando a ligação foi estabelecida, disse calmamente:

— Se ainda procuram Pauline Fenton, a doente que fugiu da casa de saúde de Painswick há seis semanas, sugiro que a procurem na aldeia de Dawsbury, no Norte de Inglaterra.

— Dawsbury? — repetiu o homem numa voz sem qualquer emoção, obviamente ocupado em tomar nota. — Foi Pauline Fenton que disse?

— Sim — respondeu o médico lentamente. — E procurem em primeiro lugar em Linden Cottage.

— Quem fala, se faz o favor?

Mas o homem pousou o auscultador, sorrindo. Era um tiro às cegas. Mas se havia qualquer coisa para descobrir... a Polícia descobri-la-ia.

O grande carro da Polícia quase enchia o pequeno relvado defronte de Linden Cottage. Três homens saíram, deixando o motorista ao volante. Dois deles vestiam uniforme e o terceiro estava à paisana.

— Lugar bonito — disse o homem à paisana. Olhou para o jardim cheio de folhas caídas, para a pequena vereda cheia de saibro que ia até à porta principal, para o portão aberto que chiava monotonamente. — Não está habitado?

Um dos homens uniformizados, o mais novo, concentrou-se, para relatar o que achava de interesse.

— Pertence a James Holt. Comprou-a há cinco meses, pagou-a a pronto, sem qualquer hipoteca. Veio viver para aqui, depois, com a irmã. Estiveram aqui algumas semanas e depois partiram.

O homem à paisana abriu o portão.

— Partiram?

— Parece que sim, sir. Nunca mais fizeram compras, não se vêem luzes à noite. Houve uns certos mexericos, enquanto eles aqui estiveram.

— Mexericos? Que espécie de mexericos?

— Oh, conversas de aldeia, siri Provavelmente sem qualquer fundamento. Diziam que eles não eram, afinal, irmãos. Parece que alguém começou a mandar cartas anónimas, mas tudo morreu quando eles desapareceram,

— Compreendo. Um ninho de amantes, hem? — O detective resmungou. — Não tem nada aspecto disso.

É um lugar sombrio.

A porta principal estava fechada. Espreitaram pelas janelas, mas lá dentro estava escuro. Rodearam a casa e tentaram abrir a porta das traseiras. Estava também fechada.

O detective suspirou. Fez um gesto rápido com o cotovelo. O vidro estilhaçou-se.

— É uma pena — observou. — Pode ter sido —feito por qualquer vagabundo à procura de abrigo.

O inspector concordou e sorriu.

— Vamos lá abrir essa porta.

Poucos minutos depois estavam dentro de casa. O polícia da aldeia seguiu-os.

— Sugiro — disse o detective, voltando-se para ele que vá dar uma volta pelo jardim.

Dentro da casa cheirava a humidade. Lentamente, percorreram-na, acendendo as luzes, examinando as divisões.

— Bonita casa — disse o detective — e bem mobilada. Desceram as escadas.

— Uma viagem em vão — disse o detective. — James e Susan Holt... que diabo teriam eles a ver com mistress Fenton? Os telefonemas anónimos... agoniam-me.

Fecharam a porta das traseiras, cuidadosamente. Juntos, dirigiram-se para o carro e entraram, para esperarem pelo policia.

— Meu Deus, porque se demora tanto esse homem? disse por fim o detective com aspereza. — O jardim não é muito grande!

O motorista tocou a buzina e o detective e o inspector olharam para a casa.

Então, pouco depois, viram aparecer o polícia. Não trazia capacete. O seu rosto estava cinzento. Correu, aos tropeções para o carro. Quando chegou à janela, pousou as mãos enluvadas na janela, como para se amparar. Estavam húmidas e, agarradas à lã, havia uma espécie de fungos que crescem nos lugares húmidos e sombrios. Não podia articular uma palavra. Fitou apenas os homens que estavam dentro do carro com os olhos cheios de horror.

— Está bem, Smith. Acalme-se. — O detective falou com calma autoridade. — Mostre-nos apenas o lugar onde a encontrou.

O potente avião começou a ganhar velocidade. Poucos momentos depois estava no ar. Como um enorme pássaro prateado descreveu um círculo em direcção a Sudeste.

Lyn Davis apertou o braço de Susan.

— Já passou — disse ela. Olhou para a amiga e viu-lhe os olhos cheios de lágrimas. — Querida, não choraste quando disseste adeus a Brian. Porque choras agora?

— Porque junto dele não queria chorar.

Durante um momento ficaram silenciosas. Ambas tinham muitos momentos para recordar.

— Lyn, tudo correrá bem? Voltarei... a vê-lo?

— Tem confiança nele, querida. Sabes que ele irá ter contigo. Assim que puder. Assim que seja prudente fazê-lo.

— Sim, claro. — Sorriu levemente para a amiga. Esta a melhor solução. Na Austrália... teremos uma nova oportunidade.

— Aposto que sim — concordou Lyn.

A hospedeira aproximou-se. Sorriu para as duas raparigas, mas os seus olhos tinham uma expressão de desconfiança.

— É miss Susan Holt? — perguntou. — Posso ver os seus papeis e passaporte?

Espantada, Susan entregou-lhe os documentos pedidos. A rapariga examinou-os rapidamente. Susan lançou um olhar intrigado a Lyn.

Depois, a hospedeira curvou a cabeça e afastou-se, entrando na cabina do piloto. Pouco depois, voltou a passar, olhando com curiosidade para Susan, mas não disse nada. O avião começou a descrever uma larga curva no céu. — Lyn disse, com ar consternado:

— Estamos a regressar, Susan. Vamos voltar ao aeroporto de Londres!

— Apertem os cintos, por favor! Não há razão para alarme — disse a hospedeira caminhando pelo corredor central do avião. — Vamos regressar ao aeroporto de Londres.

Conservem-se calmos. É: apenas um assunto de mera rotina.

Quando passou junto de Susan fitou-a novamente.

— Porque estará ela sempre a olhar-The? — Susan sentia-se intrigada e aborrecida. — O que achas que aconteceu, Lyn?

— Não faço a mínima ideia. Eu não me preocuparia. Deve ser qualquer pequena avaria ou coisa no género.

As duas raparigas fitaram-se. Depois, Susan disse com voz levemente trémula:

— Não pensas que aconteceu qualquer coisa, pois não?

— O quê? Não sei. Que podia acontecer?

Susan acenou afirmativamente. Lyn tinha razão. Que podia acontecer?

Dentro de poucos minutos, o avião pousava suavemente na larga pista de aterragem e rolou para junto dos edifícios de Recepção. Havia uma espécie de ansiosa expectativa entre os passageiros.

A hospedeira aproximou-se de Susan. com suave autoridade disse:

— Quer fazer o favor de me acompanhar, miss Holt? É muito importante.

Susan lançou um olhar a Lyn.

— E eu?-perguntou a rapariga, rapidamente. — Se ela sair, eu também saio.

Se é miss Davis, também tem de me acompanhar.

Susan e Lyn soltaram os cintos de segurança. Os passageiros trocavam comentários enquanto elas se dirigiam para a porta das traseiras.

O vento frio daquele dia de Inverno açoitou-lhes os rostos e os cabelos quando desceram para a pista.

Três homens esperavam por elas. Homens duros, com olhos observadores, perspicazes.

Um deles falou; tinha os olhos de um cinzento-escuro e a voz estranhamente rouca.

— Susan Holt?

— Sim.

— Sou o detective-inspector Lcwson. Tem de interromper a sua viagem. Desejamos faser-lhe umas perguntas. Importa-se?

— Importo-me? — Susan arregalou os olhos, espantada.-Claro que me importo!

O detective fitava-a. Susan teve o pressentimento de que todas as suas acções e reacções estavam a ser cuidadosamente analisadas.

— Pensei que adivinhasse — replicou o homem. Os seus modos eram secos. Procurou uma fotografia no bolso. Mostrou-a a Susan. — Sabe quem é?

Ela fitou-a e reteve uma exclamação. Era a fotografia de Pauline Fenton.

— Sim — murmurou. — é: mistress Fenton... Pauline Fenton.

— Encontrou-a alguma vez?

— Sim... Não!

Subitamente, as faces de Susan ficaram dá cor da cal, Ela encontrara Pauline. Encontrara-a no dia em que a pobre rapariga aparecera na vivenda em Dawsbury. Fora um incidente que nem ela nem Brian Fenton se Unham atrevido a relatar à Polícia.

— Tome uma decisão depressa — disse o detective. Pegou-lhe no braço com firmeza e encaminhou-a para um carro que os esperava. — Se nunca a encontrou, como reconheceu esta fotografia?

— Eu... eu já a tinha visto antes. Mister Venton mostrou-ma.

— Oh! Então conhece mister Fenton?

— Sim. Encontrei-o no barco em que vim da Austrália.

O detective tentou uma nova táctica. Teria de bombardear Susan com muitas perguntas enquanto ela estivesse demasiado surpreendida para poder pensar.

— Conhece a Linden Cottage, em Dawsbury?

— Claro. Vivi lá.

— Só?

— Não. Com...-Calou-se. Compreendeu a armadilha em que caíra. Começou a tremer.

— com quem? — O detective insistiu piedosamente: — com... com o meu irmão.

— Oh! Mas o seu irmão está em África, miss Holt.— Fitou o seu rosto crispado. — Oh, sim, verificámos isso! Não podia, pois, ser o seu irmão, não é verdade?

— Eu... eu não tenho nada a dizer. — A voz da rapariga era quase inaudível. — Porque me fizeram sair do avião? Para onde me levam? Estou presa?

O detective abanou a cabeça.

— Estamos a fazer investigações, miss Holt. Pensámos que nos poderia ajudar. — Hesitou e arriscou o seu trunfo naquela jogada. — Sabe que encontrámos Pauline Fenton, não é verdade?

O rosto de Susan era uma máscara de incredulidade.

— Não!-murmurou. — Não sabia. Onde... estava? O detective não desviava o olhar do Seu rosto.

— Estou surpreendido por me fazer essa pergunta.

— Porquê? Há meses que a procuram! Onde estava? O homem fez uma pausa, antes de responder sombriamente.

— Num poço coberto em Linden Cottage. Assassinada.

Houve um momento de silêncio opressivo. Susan cambaleou e o detective estendeu o braço. Mas era demasiado tarde. Susan desmaiara.

Lyn Davis correu para a frente. Chegou junto da amiga, quando um homem forte, à paisana, pegava em Susan.

— O que lhe vão fazer? O que aconteceu?

— Fique onde está — ordenou o detective-inspector Lowson. Tirou o chapéu e passou um lenço pela testa encharcada em suor. — Quem me dera saber o Significado desta reacção. — Depois, fez sinal ao polícia que transportava Susan nos braços e fez-lhe um sinal na direcção do carro. — Leve-a para a esquadra e arranque-lhe uma declaração. A todo o custo.

Susan estava sentada na pequena sala da esquadra. O banco era de madeira, a sala vazia e sombria. Durante uma hora, ela não se moveu; parecia paralisada.

Na sala contígua, o sargento estava sentado à secretária. Não estava ali ninguém e ele lia uma edição especial de um jornal da tarde. A parangona atraiu-lhe a atenção.

 

         MULHER DESAPARECIDA

         ENCONTRADA MORTA NUM POÇO

 

O sargento leu a sensacional história. Depois, leu as notícias da "Critma Hora":

 

         MULHER MORTA NUM POÇO

 

Um avião da linha aérea para a Austrália regressou ao aeroporto de Londres pouco depois de ter levantado voo. Duas passageiras foram detidas para serem interrogadas pela Polícia, por causa da morte de Pauline Fenton.

O sargento dobrou o jornal. Sabia que não era invulgar os suspeitos serem interrogados na esquadra antes de ser passado um mandado de captura. As suas declarações eram quase sempre úteis, dando bases para a emissão imediata do mandado de captura.

"— Contudo — pensou ele, perplexo —, a rapariga que eles trouxeram ainda não fez qualquer declaração. E não a podem obrigar a isso, se ela não quiser".

A porta abriu-se e o detective-inspector Lowson entrou. Parecia bem-humorado e sorriu para o sargento.

— Está praticamente tudo resolvido — disse ele. — Traga-me a rapariga, sargento.

— Praticamente resolvido?-perguntou o sargento, esperando mais alguns esclarecimentos.

— Sabemos quem é o homem.

O sargento acenou afirmativamente, como se compreendesse perfeitamente. Depois, disse para um polícia uniformizado, que estava junto da porta da sala onde estava Susan:

— Traga miss Holt.

Susan surgiu caminhando lentamente, parecendo não ter forças. Olhou para o detective, como se não o reconhecesse.

— Faça o favor de se sentar, miss Holt.

Ela sentou-se. Pensou, como pensara centenas de vezes: "Se Brian estivesse aqui! Se eu pudesse ao menos falar com Brian!"

A notícia da morte de Pauline Fenton — do seu assassínio — tinham-na estupedificado. Fora uma notícia terrível, demasiado chocante, para que a pudesse compreender.

Tinha apenas uma ideia — conservar afastado de suspeita o homem que amava. No entanto, se se encontrasse na posse de todas as suas faculdades, veria que isso seria impossível.

O detective falava novamente. com grande esforço, concentrou-se, para ouvir o que ele dizia.

— Muito bem, miss Holt. Decidiu ajudar-nos? Tem alguma coisa para nos dizer?

— O que posso dizer?

O inspector Lowson curvou-se para a frente.

— O homem que esteve consigo em Linden Cotiage chamava-se Brian Fenton. Quer contar-nos o resto?

Os olhos de Susan encheram-se de lágrimas. Deslizaram lentamente pelas faces, mas ela não soluçou. O homem disse suavemente:

— Pauline Fenton foi à vivenda, não foi? Deve tê-la visto.

Ela continuou sem dizer nada. O detective suspirou.

— Este caso apresenta-se com mau aspecto para Brian Fenton — disse ele. — Porque não nos conta o que aconteceu, miss Holt? Brian Fenton perdeu a cabeça, quando a mulher os surpreendeu na vivenda?

Susan pôs-se de pé. As suas desconfianças tinham, pois, razão de ser! Levou as mãos ao rosto, apertando a fronte entre os dedos. Fitou o inspector Lowson com uma expressão horrorizada. Ele não fizera qualquer acusação, mas ela compreendera a insinuação. Brian era considerado suspeito!

— Brian não a matou. Oh, não, não! O que está a pensar? Brian nem sequer soube que ela esteve lá!

O homem acenou com a cabeça, com ar compreensivo. Lançou um olhar de triunfo ao sargento.

— Mas a senhora estava lá — disse ele, suavemente.

— Sim — disse ela, num murmúrio. — Sim. Bateu à porta. Entrou e...

Susan cambaleou e o inspector Lowson segurou-a por um braço e amparou-a.

— Miss Holt, antes de continuar, devo dizer-lhe que está aqui porque é considerada suspeita pela morte de Pauline Fenton. Devo avisá-la que tudo quanto disser será usado como prova contra si.

As suas palavras aterraram a assustada rapariga. Fitou-o, com os olhos muito arregalados, espantosamente pálida.

— Quer dizer... que pensa que eu fiz isso?

— Primeiro, queremos as suas declarações. Comecemos pelo princípio, sim?

Mas a sua voz calma não teve qualquer efeito sobre Susan. Parecia não as ter ouvido. —.Não fui eu!

Era um grito cheio de angústia. Parecia que a razão a queria abandonar...

— Comece pelo princípio — repetiu o inspector Lovson.

— Comece pelo seu encontro com Brian Ferton. Será melhor para ambos. Não adiantará nada tentar esconder o que se passou.

Durante um momento, Susan não se moveu. Depois, o seu controlo desapareceu. Cobriu o rosto com as mãos e deixou-se cair numa cadeira. Lágrimas amargas correram-lhe pelos dedos. com voz trémula, começou a contar a história do seu amor, que começara com tanta esperança e tanta vontade de o levar avante no único caminho possível que restava a ambos.

O sargento escutava-a e a caneta deslizava no papel, registando cada palavra. Suspirou. Ninguém pensaria que aquela rapariga seria capaz de cometer um crime. Parecia tão pura, tão sã! E também muito bonita. Suspirou novamente. Quase sentia pena por ela.

A caneta continuava a escrever, a escrever — apontando os resultados de um amor que quisera apenas ser puro e só causara desespero e angústia.

O doutor Achmet Lalu, o director da casa de saúde de Painswick, mirava-se no espelho. A pele morena parecia mais escura do que habitualmente e as maçãs do rosto mais salientes. Nas têmporas, o liso cabelo negro estava já pontilhado de branco.

Atrás de si, na secretária, soou o besouro. Achmet Lalu voltou-se e carregou num botão. Uma voz metálica disse:

— Um senhor deseja falar-lhe: mister Brian Fenton.

— Mande-o entrar.

O médico sentou-se e fechou os olhos. Depois, abriu-os para olhar para um calendário. Estava-se em Janeiro. Tinham passado já duas semanas do novo ano, mas— os problemas do ano anterior continuavam a pesar sobre ele.

Pôs-se de pé, quando a visita entrou. Ficou chocado ao verificar a mudança operada em poucas semanas naquele jovem. Brian Penion tinha o rosto sombrio, os ombros curvados, os olhos tinham uma expressão febril, de animal perseguido.

— Faça o favor de se sentar, mister Fenton.

Obedientemente, Brian sentou-se. Os seus olhos pousaram em Achmet Lalu, perscrutando o seu rosto. Falou de forma crispada.

— Sabe o problema em que me encontro envolvido. Na próxima semana, Susan Holt será julgada e... —Calou-se. Curvou-se sobre a secretária. — Não preciso de lhe explicar nada. Deve ter lido os jornais. Sabe tudo.

— Na realidade, sei.

— Sinto-me enlouquecer.! Ela não é culpada. Não pode ser culpada. Não me importo com o que dizem sobre nós... têm destruído as nossas reputações, mas isso não me interessa. — Deu um soco no braço da cadeira. — Susan não fez isso. Eu...

A voz quebrou-se-lhe num soluço rouco. Achmet Lalu abriu uma gaveta e tirou uma garrafa e copos.

— Desculpe — disse Brian, controlando-se com evidente esforço.

— Está com os nervos destroçados — disse o médico.

— Tome uma bebida. — Observou o homem que estava na sua frente. — O que deseja de mim, mister Fenton?

Brian pegou no copo e esvaziou-o.

— Não sei. O julgamento é na próxima semana. Sinto-me enlouquecer. A situação de Susan apresenta-se muito má, mas ela está inocente. Eu sei que está. — Pousou o copo. — Estou desesperado. Tento descobrir qualquer coisa, em qualquer lado, que me dê a chave para o que se passou.

— E pensou que eu o poderia ajudar — disse o doutor Lalu. Sorriu. — Esperava que eu lhe pudesse dizer qualquer coisa, mister Fenton. Esquece-se, no entanto, que eu testemunharei no tribunal. Que lhe posso eu dizer que a Polícia não saiba já?

Brian mergulhou a cabeça entre as mãos.

— Não sei. Não sei — Endireitou-se, com um esforço.

— O que dirá no tribunal?

— Não tenho quaisquer dúvidas em esclarecer o tribunal sobre o estado de saúde mental da sua esposa.

— E como escapou ela daqui?

— Esse mistério continua por desvendar.

O homem premiu as palmas das mãos contra os olhos. Perguntou com voz arrastada:

— E acerca de Marion Brand?

Achmet Lalu agarrou num cigarro e acendeu-o. A mão tremia-lhe levemente.

— O que aconteceu com ela?

— Sabia que ela fazia chantagem conosco?

— Será melhor beber um pouco mais, mister Fenton. Acha que será prudente faer afirmações dessas?

— Porque não?

— Disse à Polícia que estavam a ser vítimas de chantagem?

Brian mordeu os lábios. Baixou os olhos.

— Não, não disse.

— Pensa que a revelação desse pormenor ajudará o seu caso?

Brian encontrou os olhos negros do médico e gemeu:

— Não. É o pior de tudo. Só conseguiria agravar mais a situação. Daria a Susan um maior motivo para o crime.

— Acho que sim. — Achmet Lalu aspirou profundamente o cigarro. Nos seus olhos negros apareceu uma expressão de alívio. — Mister Fenton, penso saber porque veio aqui. É verdade que eu não estou completamente na ignorância das actividades de Marion Brand. Devia ter feito alguma coisa acerca delas, mas a sua esposa era minha doente e senti que lhe devia algo a si. Se eu acusasse Marion Brand, acusá-lo-ia a si, igualmente.

Brian levantou-se. Estava desesperado.

— E se lhe fizerem qualquer pergunta no tribunal acerca de Marion Brand?

— Não vejo razão para essa pergunta. Se ma fizerem, no tribunal, sei que estou sob juramento e terei de dizer a verdade. Mas, na realidade, penso que o meu testemunho se relacionará apenas com pormenores médicos.

Brian fitou-o, esperançado.

— Então, não há qualquer razão para que a chantagem se torne conhecida?

— No que me diz respeito, não.

Brian baixou a cabeça. Sentia que talvez tivesse conseguido uma pequena vitória para ajudar Susan. Se o tribunal soubesse que estavam a ser vítimas de chantagem, esse facto poderia aparecer aos olhos de todos como motivo que arrastara Susan para o crime. Seria melhor que nada se soubesse a esse respeito.

Apertou a mão do médico, gravemente, e saiu.

Achmet Lalu ficou uns momentos parado, olhando para a mão que Brian apertara.

"— Ele pensa que sou um amigo — disse suavemente. com um gemido de tristeza e desprezo por si próprio encheu um copo. Esvaziou-o de um trago e sentou-se. Pequenas gotas de suor surgiram na sua testa. — Aquela rapariga...-murmurou — aquela Susan Holt... E se eles a condenam por homicídio voluntário?"

Encheu outro copo e começou a beber. Havia uma grande diferença entre Brian e Achmet Lalu. Brian acreditava que Susan estava inocente. Achmet Lalu sabia que Susan estava inocente.

Cegamente, levantou-se e dirigiu-se para a porta. Saiu do edifico e dirigiu-se rapidamente para o seu carro.

Pos o potente carro em marcha e afastou-se da casa de saúde, tomando a estrada principal para Londres.

Uma vez na grande cidade, Achmet dirigiu-se para o bairro próximo de Euston Station, onde as ruas estavam cheias de pequenos hotéis e pensões baratas. Bem depressa encontrou o endereço que procurava — um hotel não muito longe de Russell Square.

Entrou, como se conhecesse o caminho e dirigiu-se para a escada principal, seguindo os dísticos que indicavam o número dos quartos nos diferentes patamares. Parou junto do número dezasseis e bateu à porta.

Uma voz perguntou, com tom levemente agudo:

— Quem é?

— Lalu... Doutor Lalu.

Seguiu-se uma pausa. Depois, a chave rodou na fechadura. A porta abriu-se um pouco e uns olhos espreitaram. Em seguida,a porta abriu-se totalmente.

Era Marion Brand.

— Entra — disse ela A sua voz estava rouca, desafiadora e insolente.

Achmet entrou. Fitou-a e ficou espantado com a mudança que viu nela. Vestia uma saia e uma blusa branca amarrotadas. O cabelo estava desgrenhado. Tinha marcas de nicotina nos dedos, o rosto estava cinzento, os olhos tinham uma expressão assustada.-Sobre a mesa estava um tabuleiro com o jantar intacto. Este tinha mau aspecto — gorduroso, frio e de má qualidade.

— Para que estás a olhar-me dessa forma? Como diabo soubeste que eu estava aqui?

— Deixaste o endereço para te remetermos as tuas cartas — disse o homem. — Olhou novamente à sua volta e um sorriso apareceu nos seus lábios, um sorriso sem qualquer espécie de alegria. — Para uma rapariga que possui cinco mil libras, não me parece que estejas com grandes ideias de as gastar...

— Cala-te!-Marion gritou aquelas palavras e os seus olhos fuzilaram. Depois, controlou-se. — Não tenho cinco mil libras. São demasiado quentes enquanto não se realizar o julgamento. Pu-las de lado. Não podem provar que as tive em meu poder, pois não?

O doutor Lalu acenou afirmativamente. Ofereceu um cigarro à rapariga.

— Estás muito perturbada. Tens medo do que se possa dizer no tribunal?

— Medo? Porque havia de ter medo?

— Por exemplo, do facto de teres feito chantagem. Ela apoiou-se à mesa.

— Claro que tenho medo. Quando as pessoas começam a falar no banco das testemunhas, nunca se sabe o que pode acontecer.

O moreno doutor sorriu.

— Tenho boas notícias para ti, Marion. Estive hoje com Brian Fenton. Ele não te denunciara.

Marion rodou. O seu rosto estava iluminado. —Não? Porquê?-As unhas cravaram-se no braço do homem. — Que queres dizer?

— É muto simples. Brian Fenton pensa que, se se souber que ele e Susan Holt estavam a ser vítimas de chantagem, isso seria mais um motivo para a rapariga ter cometido o crime...

Marion Brand ficou silenciosa durante um momento.

Depois, atirou com a cabeça para trás e desatou a rir às gargalhadas.

— Isso é maravlhoso. Estupendo! Que bom! — Limpou os olhos e acrescentou, ainda sacudida por pequenas gargalhadas. — Significa que posso sair daqui. Posso ir para um lugar mais elegante. Posso comprar roupas, divertir-me.

Caminhou lentamente pelo quarto, agarrando no casaco e nos seus pertences. Por fim, parou junto de Achmet Lalu.

— Só não compreendo uma coisa. Porque vieste dizer-me isso?

— Para salvar a minha pele — disse ele, aproximando o rosto do dela. — Tu sabes demasiado a meu respeito, e suficiente para eu ser extraditado. Se qualquer coisa te acontecesse, não consentirias que eu andasse cá fora, enquanto tu estavas encerrada numa prisão.

Ela riu cinicamente.

— Isso é verdade. Se alguma coisa me acontecer, denuncio-te também.

Dirigiu-se para a porta. Ele deu um salto para junto dela.

— Não saias ainda — disse suavemente. A sua boca estava muito apertada, os seus lábios retesados.

Ela voltou-se, para o fitar.

— Que queres?

— Assassina!-murmurou ele. Viu-a empalidecer e sorriu de forma mordaz. — Agora, tenho-te também em meu poder. Levaste o meu carro para Dawsbury. Lutaste com determinad pessoa nele... Encontrei um pedaço de tecido preto junto do fecho da porta. Pauline Fenton vestia um casaco preto, não era? Tu levaste morfina da minha mala de emergência...

usaste alguma e devolveste o resto. Pensa apenas que eu peço à Policia para analisarem o corpo de Pauline Fenton... procurando morfina? Quererás que eu te forneça um álibi. E se eu não to der?

— Não... te atreverias.

O rosto de Marion estava cinzento.

Ele abanou a cabeça. Apertou as mãos.

— Tens razão — murmurou. — Não me atreveria. Sou tão mau como tu, Marion Brand. Eu não te denunciarei... e tu não me denunciarás. Apenas para salvarmos as nossas

precisosas peles.

— Sim — murmurou ela, passando a língua pelos lábios ressequidos. — Sim, ficarás calado.

— Deus tenha piedade de nós — murmurou ele quando condenarem à morte essa rapariga inocente.

Marion Brand engoliu em seco. Afastou-se dele. Agarrou na mala. Colocou o casaco sobre o braço. Dirigiu-se para a porta.

Ele ouviu os seus passos distanciarem-se, correndo pelo corredor. Ficou no meio do quarto, odiando-se pela sua fraqueza.

Mas não faria nada. Sabia que não faria. Marion Brand estava salva e ela sabia-o bem. E Susan Holt seria... Não podia suportar mais aqueles pensamentos. Cegamente, saiu daquele sórdido quarto, onde Marion Brand estivera escondida durante tanto tempo.

O tribunal de Old Bailey estava cheio. A galeria pública não tinha um lugar vago. Desde madrugada que se tinham formado bichas cá fora, esperando a abertura do tribunal.

Aquele era o primeiro dia do julgamento do caso que fora comentado largamente por todos os jornais.

Susan Holt estava no banco dos réus. Estava muito calma e passiva. As nuvens de incredulidade que tinham invadido o seu cérebro, quando fora presa, tinham desaparecido.

Estava calma e consciente da sua inocência. Aquelas semanas passadas na cadeia tinham-lhe dado uma grande paz de espírito, ao contrário de Brian que sofrera torturas e remorsos, cá fora, sabendo-a presa.

Olhou à sua volta. Tinha a consciência tranquila e não sentia pena nem. remorso pelo que fizera.

Amava Brian. Estivera disposta a dedicar-lhe toda a sua vida para o tornar feliz. Nada houvera de mal nas suas relações, apesar do que as pessoas pudessem dizer.

E quanto ao crime — isso era fantástico. Pensou que se sentia contente por o julgamento começar. Dentro em breve, todos saberiam a verdade e ela ficaria livre.

Os seus pensamentos fizeram-na sorrir levemente. Todos os seus movimentos eram, porém, observados por toda a gente. Ela parecia mais encantadora do que nunca.

Tentava ver Brian no meio da multidão que enchia o tribunal. Oh, como tinha saudades dele! Desejava pousar os olhos sobre ele, para surpreender no seu rosto aquela expressão de amor tão sua conhecida.

Esse fora o maior sofrimento de toda aquela provação. Durante a longa espera para o julgamento, não tinham consentido que ela falasse, uma única vez, com o homem que amava.

O Delegado Público expunha as provas que tinham levado o tribunal a considerá-la suspeita de crime na pessoa de Paulne Fenton. Ela não o escutava, pensando apenas em Brian. Dentre em breve, vê-lo-ia.

— E agora — dizia o delegado — gostaria de chamar a minha primeira testemunha, Brian Fentoa, para que informe o tribunal acerca da vida em comum que teve com a ré em Dawsbury.

Curvou-se na direcção do juiz. O oficial de diligências chamou:

— Brian Fenton!

Susan olhou. O seu coração começou a bater de forma descontrolada. Enclavinhou as mãos no corrimão, tremendo de emoção.

Então, lentamente, Brian entrou no tribunal e subiu para o lugar das testemunhas. Os seus olhos procuraram a rapariga que amava mais do que a própria vida e sobre a qual recaía a acusação de homicídio voluntário, a rapariga que nesse dia, tinha a certeza disso, seria condenada à morte pelo assassínio de sua mulher. Durante uns breves segundos, fez-se silêncio no tribunal.

Quando Brian Fenton entrou na plataforma das testemunhas, Susan semiergueu-se, mas um polícia obrigou-a a sentar-se.

Havia uma centena de olhos ansiosos, esperando as suas reacções — sabendo que aquela era a primeira vez que a rapariga via o homem que amava, desde que fora presa.

Ouviu-se um leve murmúrio, que logo desapareceu. Susan não o ouviu. Todos os seus pensamentos estavam centralizados em Brian Fenton. Sentia-se desfalecer de alegria, só por o ver novamente.

Ele ficou muito direito, mas os seus olhos voltaram-se para ela.

"Como está magro — pensou ela, angustiada. — E no seu rosto há vincos que antigamente não existiam. Oh, Brian, sou eu a culpada de tudo isso?"

Os seus olhos encontraram-se e transmitiram uma mensagem silenciosa. Sabiam que se amavam mais do que nunca. O mundo poderia condená-los, mas não poderia mudar os seus sentimentos.

Brian Fcnton prestou juramento e Susan, muito pálida, estremeceu quando o delegado público se aproximou dele.

— Agora, mister Fenton — disse ele, com modos suaves — conte-nos como conheceu a ré.

Susan ouviu à sua história de amor,o seu encontro no Barco que vinha da Austrália, o maravilhoso sentimento que surgira entre eles. Brian falou também do divórcio que desejava obter, mas que lhes parecera um sonho impossível.

— E quando descobriu que não podia divorciar-se de sua esposa — insistiu o delegado inexoravelmente — decidiram separar-se?

— Não.— A voz do homem era quase um murmúrio.

— Eu... não podia abandoná-la.

— Oh? O que fez então?

— Fomos... para a vivenda próximo de Davvsbury.

— Ah! — O delegado parecia satisfeito. A assistência esperava a continuação quase sem respirar. — Diga-me a quem pertencia essa vivenda?

— Ao irmão de miss Holt. Comprara-a para ela.

— Compreendo. E como soube tudo isso?

— Miss Holt contou-mo.

— Claro. Portanto, foi por sugestão dela que foram para ali... viver em conjunto?

— Não, não.-Brian passou uma mão pela testa. Mas o mal já estava feito. Toda a gente pensava que Susan Holt o iludira, arrastando-o para uma falsa posição.

As explicações que Brian Fentou prestou a seguir, afirmando que tinham vivido apenas como dois irmãos, foram escutadas com cepticismo.

— O senhor confessou estar apaixonado por essa rapariga— disse o delegado friamente. — No entanto, quer fazer-nos acreditar que, enquanto viveu com ela, sob o mesmo tecto, sozinhos, vendo-se todos os dias, não houve entre os dois quaisquer relações íntimas?

— Sim.

O delegado voltou-se e abriu os braços, numa atitude de descrença. Aquele gesto dizia mais do que quaisquer palavras. com grande eficiência, pusera a reputação de Susan Holt de rastos. Olhou para Brian Fenton. A sua voz soava metálica ao dizer:

— Susan Holt foi sua amante.

— Não! Nunca!

— Prestou juramento, mistr Fenton.

-Não preciso de ser lembrado — disse Brian amargamente. — A resposta continua a ser "não".

— Susan Holt foi sua amante — continuou o delegado. — Foi esse o segredo que os aldeões de Dawsbury descobriram, não foi?

— Quem dá ouvidos a mexericos da aldeia?

— Limite-se a responder às perguntas. Esta rapariga sabia muito bem que nunca casaria consigo, enquanto sua esposa estivesse viva!

Um murmúrio percorreu o tribunal. O delegado apontara um segundo ponto de extrema importância. Ali estava o motivo que podia muito bem surgir no íntimo de uma rapariga ciumenta, despeitada, que estava apaixonada por um homem casado.

Depois de um longo interrogatório, Brian pôde voltar ao seu lugar. Pela última vez, olhou para a rapariga que amava.

Os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Os seus lábios moveram-se sem articular um som. Sentia-se cheia de compaixão por Brian.

Fizera tudo o que pudera por ela, lutara por ela. Agora, ao sair do lugar das testemunhas, parecia um homem derrotado, destroçado.

O julgamento continuou num clima de crescente emotividade. O policia de Dawsbury jurou que vira uma rapariga, com as características físicas de Pauline Fenton entrar na vivenda. Susan Holt abrira-lhe a porta. O médico declarou-lhe que a morte fora causada por uma pancada na cabeça. O estado de decomposição do corpo coincidia com a data que o polícia indicara.

O doutor Lalu fez uma rápida declaração, dizendo que a falecida estava louca, mas que não era irrecuperável.

Achmet Lalu foi seguido por Lyn Davis, uma Lyn irritada, de olhos fuzilantes que fitou Susan com uma expressão que dizia: "Estou a teu lado, querida!"

Lyn Davis contou como o doutor Lalu, da casa de saúde de Painswick, lhe recusara licença para ver Pauline Fenton.

— Eu fui persistente — admitiu — e por isso despediram-me.

— Mas porquê?

— Não faço ideia. Mas estava decidida a ver Pauline Fenton. Por isso, entrei no seu quarto.

O delegado franziu o sobrolho e esfregou o queixo.

— E falou com ela?

— Sim. E, se ela estava louca, eu também o estou. Ouviram-se risadas e só a pancada dada pelo juiz, com o martelo, conseguiu silenciar o auditório.

— Dispensamos comparações — disse o delegado, secamente. — Diga-me, em resumo, sobre que falaram.

— Ela recordava-se de Brian. Sabia que era casada. Lembrava-se perfeitamente de cada pormenor da sua vida. Recordava-se... também do bebé que nascera prematuramente.

— Sim?

— Pediu-me para a deixar sair ou para levar Brian Fenton junto dela — continuou Lyn. — Disse-me que tinha um segredo pavoroso que lhe queria confessar.

O delegado fez uma pausa, como se estivesse a ponderar o que ela dizia, e, depois, perguntou:

— Que segredo?

— A criança não era de Brian Fenton. Ela queria reparar o mal que lhe fizera.

O tribunal ficou electrizado com aquela revelação.

— Não preciso mais da senhora — disse o delegado, secamente.

A irritada Lyn Davis sentou-se no seu lugar.

O doutor Lalu foi imediatamente chamado.

O moreno médico testemunhou que a sua doente tinha momentos em que raciocinava e era capaz de manter uma conversação.

— Pauline Fenton diria a verdade ao fazer as afirmações relatadas por miss Davis? — A voz do delegado era dura e crispada. — Ou seria, apenas uma forma de loucura?

Achmet Lalu olhou para as mãos. Depois, fitou o rosto pálido de Susan. Ela fitava-o, na expectativa.

— Nos seus momentos lúcidos — disse ele, com um esforço.-, quando era capaz de falar, o seu cérebro estava perfeitamente normal. Não há qualquer razão para pensar que tenha mentido à enfermeira Davis.

— Obrigado.

O julgamento continuou. Mas, agora, estava carregado de amarga ironia. Susan Holt teria assassinado uma mulher que estava ansiosa por dar a liberdade ao marido?

No terceiro dia, Susan foi chamada para depor. Calmamente, declarou que Pauline Fenton aparecera na sua vivenda. Admitiu que ela procurava o seu marido, Brian Fenton.

— E disse-lhe onde o poderia encontrar?

Susan fitou o advogado com a sua longa toga preta.

— A minha única ideia foi salvar Brian — disse ela, lentamente. — Queria livrá-lo de qualquer problema ou escândalo. Por isso... disse a mistress enton que procurasse o marido em Londres.

— Mandou-a embora!

— Vi-a sair do portão e nunca mais voltei a vê-la. O advogado baixou a cabeça.

— Temos provas— de que ela entrou na sua casa, mas não temos qualquer prova de que ela tenha saído. A minha ideia é que discutiram e a senhora a feriu.

— Não! Não!-A voz de Susan tremia. — Gostei dela. Senti muita pena por ela.

O juiz baixou a cabeça e o advogado disse à rapariga para se sentar. Estava satisfeito. Estava tudo esclarecido. As palavras de Susan Holt não eram necessárias.

A defesa alegou que todas aquelas provas eram frágeis. Mas o delegado sabia que o julgamento corria a seu favor.

O júri retirou-se para deliberar.

Susan Holt esperou numa pequena sala ao lado do tribunal. Uma mulher-polícia estava a seu lado, guardando-a.

Ao longo do corredor ouviam-se passos. A mulher-policia olhou e levantou-se.

Disse para Susan:

— Já regressaram.

Os membros do júri estavam já nos seus lugares, muito pálidos, os olhos sem expressão.

O juiz entrou e toda a gente se pôs de pé. Depois Susan ouviu uma voz seca perguntar:

— Membros do júri têm o veredito?

— Sim, excelência.

— E veredito unânime?

— Sim, excelência.

— E qual é o veredito?

— Culpada.

Durante um momento, Susan não compreendeu, depois cambaleou, quando percebeu o significado daquela palavra. As suas faces ficaram brancas como a cal. Culpada? Não podia ser, não podia ser.

Gritou:

— Estou inocente!

Mas ninguém escutou o seu protesto. O juiz leu a sentença. E, depois, levaram-na para o carro, que a conduziria à prisão.

Entre aqueles que ficaram nas escadas de Old Bailey, para verem Susan Holt ser metida no carro, estava Achmet Lalu...

Parecia uma estátua negra. A multidão gritava excitadamente e alguém o empurrou para ver melhor.

Achmet Lalu cambaleou e fechou os olhos. Enclavinhou as mãos enluvadas. Parecia rezar a algum deus do Oriente.

Brian Fenton surgiu a seu lado.

— Susan — murmurou ele com angústia indescritível — Susan! O que lhe farão? Oh, meu Deus, o que lhe farão? — perguntou com desespero.

Aquelas palavras foram como balas que tivessem ferido Achmet Lalu. Rapidamente, voltou-se e afastou-se. A agonia de Brian Fenton era qualquer coisa que ele não podia suportar. Era um caso de consciência e de profundo remorso. Sabia que aquele sofrimento e o Destino pavoroso que esperava Susan Holt tinha sido provocado por ele próprio, Achmet Lalu.

Marion mirou-se no brilhante espelho do elegante bar. Mexeu os ombros nus e os sequins no corpo do vestido despediram centelhas fulgurantes.

Um homem aproximou-se do bar, com passo marcial. Era alto, desempenado, mas tinha o bigode grisalho e era bastante mais velho do que a rapariga, que o recebeu com um sorriso nos lábios.

— Minha querida miss Brand — disse ele, quando chegou junto dela-, fi-la esperar. Mil perdões.

Pediu dois cocfcíoiZs e abriu o jornal da tarde sobre o balcão polido.

— A rapariga foi considerada culpada — disse ele. Marion Brand olhou para o jornal. A fotografia de uma rapariga de grandes olhos, que ela conhecia tão bem, parecia fitá-la.

— Que pensa deste caso? —perguntou com ar natural.

— Acha que ela cometeu esse crime?

— Sem sombra de dúvida. — Gerald Wright pousou a mão sobre a dela. — Mas não falemos dela. Há assuntos mais agradáveis para si e para mim.

— Tem toda a razão. — esvaziou o copo e preparava-se para o pousar sobre o balcão, quando os seus olhos caíram sobre alguém que estava atrás do seu companheiro.

O copo escapou-se-lhe dos dedos nervosos e cstiIhaçou-se no chão.

Junto da porta, um homem fitava-a com ar desesperado, fazendo-lhe sinal para se aproximar.

Era Brian Fenton.

Durante um momento, Marion Brand ficou aterrada. Não podia obedecer àquela chamada....Depois, controlando-se, sabendo que não tinha outra alternativa, conseguiu dar uma desculpa aceitável ao surpreso major Wright e aproximou-se de Brian Fenton. Silenciosamente, ele seguiu-a até ao foyer principal.

— Porque veio aqui? Que deseja? —perguntou Marion Brand.

— Toda a gente contou a sua história, menos você. Agora, vai contar-me o que sabe.

— Brian, não sei nada — murmurou. — Tem de acreditar nisto. Eu...

Calou-se. Olhou para o bar. Gerald Wright esperava-a ali.

— Espere-me no meu quarto.

Afastou-se rapidamente, descendo as escadas.

Pensativo, Brian Fenton subiu para o quarto dela. As janelas davam para Hyde Park. Ficou ali,

tentado olhando, sem ver, o movimento lá fora.

— Tem uma bela vida — disse ele, de forma mordaz, quando Marion se lhe juntou cinco minutos depois. — Tem a certeza de que possui tudo quanto deseja?

Marion Brand fitou-o com ar desafiador. Estava mais calma, pois tivera tempo para pensar. Fitou-o, sem dizer nada. Ele que falasse! Ela nada lhe diria.

— Deve sentir-se satisfeita — disse ele, lentamente. Conservei o seu nome afastado do tribunal, Marion. Passou a mão pela fronte. — Mas, agora, deve compreender

que isso já não interessa.

Marion ficou rígida.

— Que quer dizer?

— Susan vai morrer — disse ele, com voz sem expressão. — Já não a pode prejudicar o facto de a Polícia saber que eu estava a ser vítima de chantagem.

— Brian — implorou ela — não faça isso, suplico-lhe. Devolver-lhe-ei o dinheiro, se quiser.

— Como se isso me importasse! —disse o homem, com desprezo. — Apenas penso em Susan. Tenho de descobrir a verdade, para a salvar. — Passeou, agitado, pelo quarto.

— Você sempre soube mais do que nos contou. Soube que eu e Susan estávamos em Dawsbury. Mas como?

— Casualmente. Encontrei uma das cartas de Lyn Davis para Susan.

— E Lalu? — perguntou ele. — Lalu sabia? Ela tapou o rosto com as mãos.

— Brian, por favor. Não posso dizer-lhe nada. Não me atrevo.

O homem recuou. Respirou profundamente.

— Então, é isso — murmurou, pálido, desfigurado. Lalu! Que estúpido fui!

Durante um momento, nenhum deles falou. Depois, Brian Fenton dirigiu-se para a porta.

— Ê consigo — disse, voltando-se, ali. — Diga-me o que sabe e eu tentarei protegê-la. Se o não fizer, irei direito à Polícia.

com um salto, a rapariga aproximou-se dele.

— Dê-me tempo... apenas algum tempo. Preciso de pensar.

— Até à noite, então. Esperarei pela sua decisão lá em baixo.

Saiu, fechando a porta.

Marion, respirando de forma ofegante, deixou-se cair sobre a cama.

Brian Fenton seria capaz de a meter na cadeia. Podia também mandar prender Achmet Lalu. E se Isso acontecesse, a Polícia descobriria a verdade acerca do médico árabe. Descobririam que o seu nome não era Achmet Lalu, descobririam que era um homem procurado em Marrocos e que havia um mandado de extradição passado em seu nome. E depois...

Marion Brand enterrou a cabeça nas mãos. Lalu, uma vez nas mãos da Polícia, não teria a mínima compaixão e faria que ela, que o insultara e atormentara tanto, fosse condenada não por chantagem... mas por homicídio voluntário.

Levantou-se e correu para o telefone. Achmet e ela teriam de se ajudar mutuamente. Teriam de se encobrir. Seria a única forma de escaparem à Polícia. Obrigá-lo-ia a ficar do seu lado. Levantou o auscultador e pediu o número da casa de saúde de Painswick. A vigilante de serviço atendeu-a.

— Fala Marion Brand, recorda-se de mim? — Fez uma pausa e, depois, disse apressadamente:-Preciso de falar com o doutor Lalu imediatamente.

É muito urgente.

— Doutor Lalu? — a voz do outro lado do fio soava surpreendida. — Mas ele não está. Não sabe o que aconteceu?

— O que foi?

— Foi atropelado. Está no Hospital de St. Erik. Sem querer acreditar no que ouvia, Marion Brand

desligou.

Ficou uns momentos pensativa.

Depois, pegou novamente no auscultador e pediu à telefonista o Hospital de St. Erik.

Os olhos de Marion Brand brilharam cheios de maldosa alegria. O doutor Achmet Lalu estava morto! Isso significava que o último elo que a ligava à morte de Pauline Fenton tinha desaparecido. A última testemunha desaparecera. Estava finalmente salva.

No entanto...

Toda a alegria que a inundava desapareceu, O triunfo desapareceu do seu rosto pálido.

Brian Fenton estava lá em baixo, à espera. E Brian Fenton continuava a ter o poder de a meter na cadeia por chantagem! Mesmo sem o testemunho de Achmet Lalu.

"— Não — disse ela, roucamente. — Não pode ser.

Quero gozar a vida, enquanto sou jovem e bonita.

Febrilmente, dirigiu-se para o guarda-roupa. Despiu o brilhante vestido de noite que envergava e escolheu um sóbrio saia-casaco preto. com dedos trémulos, limpou o bâton. Um hábil toque com uma sombra escura deu aos olhos um ar de animal perseguido, infeliz.

Depois, desceu as escadas para procurar o homem que a esperava.

— Então?-disse ele, quando a rapariga se aproximou.

— Aqui... não — murmurou. — Precisamos de estar sós, Brian.

Seguiu-a e, na rua, chamou um táxi. O motorista resmungou quando lhe disse para ir para qualquer lado, mas Brian nem sequer o ouviu.

Dentro do táxi, correu o vidro de comunicação e Marion Brand disse:

— Decidi contar-lhe tudo. Entrego-me nas suas mãos. A rapariga notou o silêncio dele e suspirou, baixando a cabeça.

— Não fui eu quem fez chantagem — murmurou. Foi... Lalu. Eu não queria fazê-lo. Mas-ele obrigou-me.

— Obrigou-a?-perguntou Brian, secamente.

— Oh, eu fui uma estúpida — disse Marion Brand, com ar pesaroso. Continuou, inventando mentiras rapidamente.

— Eu consenti que... Lalu me cortejasse. Ele consegue ser fascinante quando quer. — A voz estrangulou-se-lhe num soluço. — Mas enganou-me e... guardou as minhas cartas, ameaçando-me revelá-las.

O comentário de Brian Fenton foi sarcástico:

— De qualquer das formas, você agiu muito bem. Mas Marion abanou a cabeça.

— Não compreende. Foi a última coisa que fiz para ele... o preço da minha liberdade. Eu... apaixonei-me por outra pessoa. Um homem rico deseja casar comigo. Vive aqui no hotel onde me encontrou. Mas eu não me atrevia a ficar noiva, enquanto Lalu conservasse as minhas cartas. Estava desesperada para as ter em meu poder.

A sua história parecia verdadeira. Tomou confiança e continuou a falar. Brian Fenton, junto dela, no escuro, não podia pensar que ela mentia. E Marion Brand mentia com multa facilidade e com segurança. Só ela sabia que Achmet estava morto e que não poderia negar o que , ela dizia.

Por fim, o homem interrompeu-a:

— Escute, Marion. Não me importa que Lalu seja um chantagista ou não. Só desejo saber a verdade sobre a forma como a pobre Pauline foi morta. Quero saber como e porquê ela fugiu de Panswick; quem lhe abriu a porta e lhe disse para se ir embora.

A rapariga suspirou profundamente.

— Oh, se eu o pudesse ajudar! Mas só Lalu sabe essas coisas.

— Então, arrancar-lhas-ei — retorquiu Brian Fenton, sombriamente.

O som de soluços abafou as suas palavras. Olhou para a rapariga que tinha a cabeça escondida entre as mãos.

— Nessa altura, dará também cabo do meu futuro disse de forma patética. — Mas se isso puder ajudar Susan, não me importo.

Brian Fenton não respondeu. A sinceridade das suas palavras tocara-o profundamente. Bateu no vidro e disse ao motorista para parar.

— Claro que não desejo denuncia-la, Marion — disse, pouco à vontade. — Mas não prometo nada. Tudo depende do que conseguir de Lalu. Saio aqui. Preciso de passear um pouco, para pensar. Este táxi levá-la-á ao hotel.

Brian dirigiu-se, lentamente, para o apartamento que tinha em Londres. Sentia-se exausto, terrivelmente exausto, de corpo e espírito.

Uma vez no apartamento, lançou-se vestido sobre a cama e adormeceu.

De manhã, foi acordado pela luz fria da madrugada que batia nas vidraças sem cortinas. Ouviu o ardina deixar-lhe o jornal sobre o tapete, lá fora.

Foi buscá-lo e desdobrou-o.

Desinteressadamente, olhou para as parangonas e ficou gelado, subitamente.

 

               MORTE DE UMA TESTEMUNHA

 

O doutor Achmet Lalu morreu num acidente de viação.

Rapidamente, leu a breve notícia e atirou com o jornal, desesperado. Um soluço estrangulado subiu-lhe à garganta. Era o último golpe que ele não podia suportar.

O inspector Lowson estava muito mal-humorado. A enfermeira-chefe do Hospital de St. Erik cheirava a sabão e desinfectante. Ele odiava todos os cheiros de hospitais, que o faziam sentir-se mórbido e pouco à vontade. Passou uma vez mais, de forma impaciente, defronte da secretária da enfermeira-chefe.

A enfermeira premiu a campainha. Uma enfermeira de uniforme azul apareceu pouco depois: jovem e parecendo bastante assustada.

— Aqui tem a enfermeira Grey, inspector Lowson disse a enfermeira-chefe. — Não esteja assustada, enfermeira. Conte-nos o que aconteceu a noite passada, Lowson fixou o olhar na enfermeira.

— Estava junto do doutor Lalu, quando ele morreu? — perguntou. — Ele estava consciente?

A enfermeira respondeu gravemente:

— Tinha muitos ferimentos na cabeça. Nunca esteve completamente consciente.

— Mas falou?

— Sim. Disse muitas coisas.

O homem suspirou.

— Se calhar náo significavam nada — disse ele para a enfermeira-chefe. Voltou-se para a enfermeira. — Muito bem. Que disse ele?

— Falou muito numa pessoa chamada Marion. Dizia continuamente. "Foi Marion quem fez isso! Foi Marion quem fez isso".

— Isso o quê? — O inspector Lowson estava exasperado.

— Ele não disse.

Lowson lançou um olhar furibundo à enfermeira-chefe. —Mais alguma coisa?

A enfermeira sentiu o seu cepticismo. As suas faces coloriram-se levemente.

— Sim — disse com voz firme. — Ele disse: "Encontrarão morfina nela".

— Em quem? — perguntou o homem subitamente alertado. — Nessa Marion?

— Não.

— Nunca ouvi falar em qualquer Marion — disse o inspector Lowson franzindo o sobrolho.

A enfermeira apertou as mãos.

— Quando falou em morfina, referia-se a Pauline Fenton — disse ela, claramente. — Foi por isso que falei à enfermeira-chefe e ela participou à Polícia. Penso que o doente queria dizer que encontrariam morfina no corpo de Pauline Fenton.

— Mas já houve uma autópsia. — Lowson abanou a cabeça. — Ninguém mencionou a existência de morfina.

A enfermeira-chefe disse lentamente:

— Talvez o patologista não a procurasse, inspector.

— Mais alguma coisa? — perguntou à, enfermeira.

— Sim — respondeu ela, ainda com firmeza. — Disse muitas vezes: "Ela levou o meu carro". Tentei sossegá-lo e achei que o conseguiria se lhe perguntasse onde Marion levara o carro. Ele respondeu apenas: "Dawsbury".— Fitou Lowson e acrescentou: —E depois... morreu.

-É tudo?

— Sim.

— Obrigado, enfermeira — disse o inspector Lowson. A rapariga olhou nervosamente para a enfermeira-chefe e esta fez-lhe sinal para sair.

— Posso usar o telefone? — disse o polícia e levantou lentamente o auscultador. Poucos minutos depois, estava em comunicação com a Scotland Yard. A sua voz estava crispada, quando falou com o seu chefe. — Surgiram novas provas. O nosso laboratório poderá verificar se há morfina no corpo de Pauline Fenton?

Brian Fenton chegou ao Hospital de St. Erik meia hora depois do inspector Lowson. Quando o polícia saiu das grandes portas chocou com o jovem.

— Fenton — disse surpreendido-, que faz aqui?

Brian fitou o inspector. Pensou o que sempre pensara antes — que Lowson era um homem decente, meticuloso e teimoso.

— Venho saber se Achmet Lalu disse alguma coisa antes de morrer.

— Esse trabalho compete-me a mim, não é assim? disse o inspector Lowson com dureza, — Mas qual era o seu interesse?

— Sei que Susan Holt está inocente. A verdade tem de surgir e farei tudo para a descobrir.

Preparava-se para entrar no hospital, mas o inspector segurou-o por um braço.

— Calma — disse ele e, pela primeira vez, sorriu. O olhar com que fitava Brian não tinha qualquer animosidade. Sentia admiração pela forma como aquele jovem se conservava ao lado da rapariga que amava. E não fora nada fácil. — Porque pensa que Lalu teria qualquer coisa para dizer? — perguntou.

— As pessoas falam quando estão doentes — disse Brian. — Era apenas uma leve possibilidade.

— Bem pequena, na verdade — concordou o outro.— Escute Fenton, você nunca cooperou connosco. Talvez não deva censurá-lo. Sentia que devia proteger essa rapariga.

Pois bem, não penso mal de si por causa disso, mas talvez a tenha protegido excessivamente.

Brian fitou o inspector e respirou profundamente.

— Talvez tenha — concordou lentamente. — Está bem, eu contar-lhe-ei tudo. Não tenho nada a perder. Esse Lalu fazia chantagem comigo. Sabia da existência de Susan Holt e sabia que vivíamos em Dawsbuiy.

O queixo do inspector retesou-se, mas controlou a sua surpresa.

-E Susan Holt sabia disso?

— Sim. Foi por isso que me calei. Tornaria as coisas muito piores para ela. Dar-lhe-ia um novo motivo para desejar a morte de Pauline. O inspector fitou Brian.

— Bem, tem razão numa coisa! Lalu falou antes de morrer. Talvez me possa ajudar a esclarecer algumas das suas palavras. Já ouviu falar numa rapariga chamada Marion?

Brian Fenton levantou a cabeça vivamente. Murmurou:

— Marion! Marion Brandi-Quaisquer pensamentos de protecção varreram-lhe naquele momento. — Sim disse com mais firmeza. — Posso ajudar. Marion esteve envolvida com Lalu em todo este... negócio de chantagem.

Tinham chegado junto do carro do polícia e o inspector fez sinal a Brian para entrar.

— vou até Painswick. Gostaria que viesse comigo. Quero que me conte tudo sobre Lalu e essa Marion Brand. Quero que me conte tudo, sem me omitir um único pormenor.

O carro rolava pela estrada que saía de Londres.

Hora e meia mais tarde, Brian Fenton e o inspector Lowson estavam na garagem da casa de saúde de Painswick, junto do carro de Achmet Lalu. Lowson recolheu cuidadosamente uns pedaços de tecido negro que se encontravam no fecho da porta da frente.

— Tecido negro — comentou. — Muito interessante. Mistress Fenton vestia um casaco preto quando a encontraram. Estava também rasgado.

Meteu os pedaços num sobrescrito. O rosto do jovem estava muito pálido e nos seus olhos brilhava uma nova esperança.

— Pensa que descobriu alguma coisa? — perguntou ansiosamente. Não conseguia conservar a voz firme.

— Não posso dizer nada, por enquanto. Não tiremos conclusões precipitadas. No entanto, já descobrimos duas coisas que não sabíamos anteriormente.

— Quais?

— Marion Brand saiu neste carro na noite em que Pauline Fenton desapareceu. Não voltou senão na tarde seguinte. De acordo com o registo das milhas apontadas pelo nosso cuidadoso amigo doutor Achmet Lalu, ela podia ter ido a Dawsbury e voltado.

Brian Fenton engoliu em seco.

— Continue, inspector.

— Segundo, se encontrarmos morfina no corpo de Pauline Fenton, então terá sido administrada por Marion Brand. Deve ter levado as seringas e o material do gabinete do médico. Ele tinha uma farmácia particular no seu gabinete. Nesse aspecto, ele era também muito cuidadoso. Tem um registo de todas as drogas retiradas da sua farmácia.

Encontrámos uma seringa, cuidadosamente embrulhada em gaze. Tinha restos de morfina. É provável que tenha também impressões digitais.

— Mas pensa que foi Marion Brand quem a tirou? Porquê? E porque a teria voltado a colocar no gabinete?

— Se a levou, porque não haveria de a devolver? E falta uma ampola de morfina, que o médico não registou.

— Não vejo ainda a razão porque ela se envolveu nisto — murmurou Brian.

— Uma razão muito simples: podiam ser as cinco mil libras que esperava receber de si. Não as receberia com Pauline Fenton livre e declarada curada.

— Vai prendê-la?

— Apenas por chantagem — replicou Lowsou. Recuou e apontou o número da matrícula do carro. — Veremos se alguém em Dawsbury viu este carro no dia do crime. Sorriu para Brian e deu-lhe uma palmada no ombro. O noso trabalho é verificar — disse ele, quase jovialmente.

— Verificar datas, impressões digitais, pedaços de roupa. Quando uma pessoa esteve aqui e além... Leva tempo, como sabe, mas acabamos sempre por chegar a uma conclusão.

Marion Brand aproximava-se do hotel, quando viu o carro da Policia parar defronte. Durante um momento, fraquejou, ao ver os dois polícias à paisana que saiam dele.

Dirigiram-se para a porta do hotel e para o imponente porteiro.

Ouviu-o responder, com voz inexpressiva:

— Miss Brand, sim , no quarto setecentos e quarenta e dois.

Mas a proprietária do nome e do quarto não esperou mais. Rodou nos calcanhares e afastou-se do hotel. Tão rapidamente quanto pôde, misturou-se com a multidão.

Durante duas horas, aproximadamente, Marion Brand andou nos autocarros, dirigindo-se para os subúrbios de Londres. Numa das paragens, comprou um jornal da tarde.

Abriu-o, quando se sentou novamente. Parecia não ter notícias de interesse. Mas, por fim, encontrou o que procurava nas colunas da "Critima Hora".

Caso Fenton. A Polícia reiniciou as investigações. Foi encontrada morfina no corpo da mulher assassinada...”

O jornal caiu-lhe dos dedos e olhou fixamente pela janela.

O condutor disse:

— Russell Square. É a sua paragem, miss. Aos tropeções, Marion Brand saiu do autocarro. Encontrou-se sozinha no meio da escuridão. Estava frio e o nevoeiro gelou-lhe a garganta. Começou a caminhar e o edifício sombrio da Euston Station surgiu diante dela.

Dirigiu-se para lá e pediu um bilhete para Liverpool. Lentamente, começou a passear pela plataforma. A fuga talvez fosse mais fácil do que pensava.

Estava na gare quando viu um polícia à entrada da porta. Olhava para o pequeno grupo de passageiros entre os quais se encontrava ela. Não eram muitos e Marion sentiu-se um pouco protegida.

Chocou com um homem e dirigiu-se, cegamente, para o ponto mais distante da grande gare. Nervosamente, arriscou-se a olhar para trás. com apreensão, viu o polícia aproximar-se lentamente, examinando as pessoas que esperavam o comboio.

O polícia aproximava-se cada vez mais. Ela avançou para a zona não iluminada e, de repente, encontrou-se na rampa deserta no fim da gare. À sua frente, ficava o negrume de um túnel.

Bem sabia que era perigoso. Mas era mais perigoso ficar ali. Estava convencida de que o polícia a procurava. Rapidamente, Marion Brand tomou uma decisão.

Correu pela rampa, mergulhando na perigosa zona das linhas férreas electrificadas.

Estava escuro no túnel — escuro e silencioso. No entanto, encostada à parede, a fugitiva sentia-se a salvo. Podia ver a gare iluminada, lá ao longe.

Cheia de tensão, observava o policia. Ele parecia hesitar. Avançaria ou ir-se-ia embora?

Do escuro do túnel, Marion Brand continuava a observá-lo. Ele voltou as costas, afastouse dela. Ao presenciar a sua lenta retirada, Marion Brand sentiu uma onda de triunfo envolvê-la. Ela era multo esperta! Conseguira, mais uma vez, enganar e vencer!

Cautelosamente, saiu do túnel e começou a caminhar pelos carris brilhantes.

O comboio eléctrico surgiu rapidamente. Ocupada com a sensação de triunfo que a dominava, Marion não o ouviu aproximar-se.

Só de madrugada encontraram o seu corpo.

A noite estava cheia de estrelas e o grande navio, partindo de Southampton, vibrava sob a força das suas potentes máquinas. Nos conveses interiores as luzes estavam acesas, mas no convés superior havia apenas escuridão e — silêncio.

Susan, com o braço de Brian a rodear-lhe os ombros, sentia os olhos rasos de lágrimas.

— Temos muitas coisas para esquecer — disse Brían, suavemente, acariciando-lhe os cabelos. — Procedemos mal, Susan. Ambicionámos demasiado, quisemos tudo feito depressa. Não tínhamos o direito de vivermos juntos. Não tínhamos o direito de procurarmos a felicidade...

— No entanto, nunca procedemos mal. — A voz de Susan estava suplicante,os seus olhos procuravam os dele. — As pessoas nunca acreditarão nisso, Brian?

Ele beijou-a suavemente.

Susan sorriu orgulhosamente para o homem que amava. O seu rosto estava espantosamente encantador e terno sob a luz suave da lua que despontava no horizonte.

— Que importa isso agora, meu amor? Tenho aquilo que sempre desejei... a única coisa que sempre amei. Tenho-te a ti, minha querida.

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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